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COMUNIDADE TERAPÊUTICA: COMO ACOLHER EGRESSOS DE INSTITUIÇÕES DE RECUPERAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS? UM EXEMPLO DA IECLB EM FLORIANÓPOLIS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO por Rolf Roberto Krüger em cumprimento parcial às exigências do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia para obtenção de grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia São Leopoldo, RS, Brasil Dezembro de 2005 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 BANCA EXAMINADORA 1 º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Rodolfo Gaede Neto (Presidente) 2 º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr ª. Sissi Georg (EST- IEPG) 3 º Examinador: __________________________________________________________ Prof. Dr. Claus Schwambach (FLT) 3 DEDICATÓRIA Vera Rafael Mônica Que me incentivaram e acompanharam nesse processo de readaptação ao labor acadêmico. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. Rodolfo Gaede Neto pela sua constante disposição no processo de orientação. Agradeço as instituições, e as pessoas que a elas representam, por terem viabilizado esta pesquisa: CERENE (Centro de Recuperação Nova Esperança) GBM (Gnadauer Brasilien-Mission) MEUC (Missão Evangélica União Cristã) CRUZ AZUL no Brasil (com sede em Blumenau, SC) FLT (Faculdade Luterana de Teologia, São Bento do Sul, SC) IECLB – (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Paróquia Luterana da Sobriedade, Florianópolis, SC) EST - IEPG (Escola Superior de Teologia - Instituto Ecumênico de Pós-Graduação) PROSUP (Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares CAPES/MEC) Agradeço aos amigos que me incentivaram e apoiaram nesse processo: Eberhard Russ, Oziel e Cheryl de Oliveira, Hans Fischer, Luis Carlos e Roseli Ávila, Simony Westphal. 5 In memoriam Pablo ( homicídio) Periquito ( suicídio) Maurão ( overdose) Nivaldo ( doença oportunista) Apelidos de pessoas reais que me legaram a pergunta: O que fazer para que outros tenham melhor sorte? e Verner Walter Krüger, meu pai, ex-cliente da Souza Cruz, vítima do tabagismo. Que Saudade! 6 KRÜGER, Rolf Roberto. Comunidade Terapêutica: Como Acolher Egressos de Instituições de Recuperação de Dependentes Químicos? Um Exemplo da IECLB em Florianópolis. São Leopoldo : Escola Superior de Teologia, 2005. SINOPSE A presente dissertação apresenta as atividades terapêuticas da instituição de internação de pessoas com DSPA’s (Dependência de Substâncias Psicoativas) CERENE (Centro de Recuperação Nova Esperança), unidade de Palhoça, SC, e se ocupa com a questão da inserção sócio-eclesiástica de seus egressos bem como com a questão do acompanhamento pastoral aos familiares (co-dependentes) dos mesmos. Parte do princípio de que é tarefa da Teologia Prática auxiliar com suporte teórico-prático para que as comunidades cristãs possam desenvolver um acolhimento integrador. A espiritualidade integradora (conteúdo da fé cristã) e a diaconia acolhedora (práxis da fé cristã) formam a base para a articulação desse atendimento. Um olhar para a prática foi possível através da Paróquia Luterana da Sobriedade, formada pelas Comunidades da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) na região da Grande Florianópolis, SC. Pessoas que se dispõem ao serviço são para isso imprescindíveis. Essas deverão ser desafiadas a serem agentes comunitários em SPA’s (Substâncias Psicoativas), fazendo uma ponte entre a internação e a pós-internação. Palavras-chaves: Dependência em Substâncias Psicoativas, comunidade terapêutica, codependência, espiritualidade, diaconia, inserção social. 7 KRÜGER, Rolf Roberto. Therapeutic Community: How to embrace those leaving a substance abuse treatment center? An experience of the Evangelical Church of the Lutheran Confession in Brazil (IECLB) in Florianópolis . São Leopoldo : Escola Superior de Teologia, 2005. ABSTRACT This dissertation presents the therapeutic activities employed at CERENE (New Hope Rehabilitation Center) in Palhoça, SC, for people with psychoactive substance dependence. It deals with the matter of the social-ecclesiastical integration of those leaving the treatment center, as well as the pastoral follow-up of their families, who are considered to be co-dependents. It presumes that it is the task of Practical Theology to help through theoretical and practical support, so that the Christian congregations are able to develop a cordial and integrating reception. The integrating spirituality (the content of the Christian faith) and the cordial diaconal service (norms of the Christian faith) form the basis to articulate this service. A practical look was possible through the work of the Lutheran Parish for Sobriety, created by the congregations of the IECLB (The Evangelical Church of Lutheran Confession in Brazil) in the greater Florianópolis area in Santa Catarina. Having people that dedicate themselves to this service is vital. They should be challenged to be community agents in the area of substance abuse, creating a bridge between the period of internment and post-internment. Keywords: Psychoactive substance dependence, therapeutic community, co-dependence, spirituality, diaconal service, social integration. 8 LISTA DE SIGLAS A.A. – Alcoólicos Anônimos A.E. – Amor Exigente CERENE – Centro de Recuperação Nova Esperança CT – Comunidade Terapêutica CODA – Co-dependentes Anônimos DSPA – Dependente de Substância Psicoativa ou Dependência da Substância Psicoativa EST – Escola Superior de Teologia FLT – Faculdade Luterana de Teologia FETEB – Federação da Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil GAP – Grupo de Apoio aos Pais IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil IEPG – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação N.A. – Narcóticos Anônimos SEJA – Secretaria de Educação de Jovens e Adultos SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas SPA – Substância Psicoativa UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina 9 LISTA DE FIGURAS Figura 01 - Balanço com a Corda Arrebentada ______________________________________ 45 Figura 02 - Triângulo de Dramas de Karmann ______________________________________ 59 Figura 03 - Anseios Humanos ___________________________________________________ 75 Figura 04 - Anseios Humanos e a Auto-estima ______________________________________ 76 Figura 05 - Escada Farisaica ____________________________________________________ 98 Figura 06 - Círculo Vicioso da Moral ____________________________________________ 112 Figura 07 - Macro e Micro Sociedade ____________________________________________ 144 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 13 I - AS PESSOAS DEPENDENTES E CO-DEPENDENTES DE SPA: O TRATAMENTO COM VISTAS À REINSERÇÃO SOCIAL ________________________________________ 19 1.1 - Questões introdutórias .......................................................................................................... 19 1.2 - CERENE, unidade de Palhoça, SC ...................................................................................... 22 1.2.1 - Programa terapêutico do CERENE ............................................................................. 23 1.2.2 - Um dia típico na unidade do CERENE de Palhoça .................................................... 29 1.2.3 - O parecer de quem vive e ajuda a viver o programa terapêutico ................................ 30 1.3 - As etapas de um tratamento ................................................................................................. 37 1.4 - Co-dependência .................................................................................................................... 44 1.4.1 - Questões introdutórias .............................................................................................. 44 1.4.2 - “Soltando as pontas” ................................................................................................... 45 1.4.3 - Definindo a co-dependência ........................................................................................ 47 1.4.4 - Ausência paterna e simbiose materna: comum da DSPA e da co-dependência .......... 48 1.4.4.1 - Inversão de papéis ........................................................................................... 53 1.4.4.2 - O poder de escolha perdido ............................................................................. 54 1.4.5 - A co-dependência em evidência .................................................................................. 56 1.4.6 - Objetivos para um programa de tratamento da co-dependência ................................. 61 1.4.7 - Relutâncias ao tratamento ........................................................................................... 62 1.5 - Quem ajudará? ...................................................................................................................... 64 11 II – ESPIRITUALIDADE E DIACONIA: DOIS CONCEITOS TEOLÓGICOS E SUAS POTENCIALIDADES PRÁTICAS PARA FORJAR COMUNIDADES TERAPÊUTICAS __ 66 2.1 - Questões introdutórias .......................................................................................................... 66 2.2 - A importância da espiritualidade no tratamento .................................................................. 67 2.2.1 - Angústia humana ......................................................................................................... 72 2.2.2 - Medo gerador da angústia ........................................................................................... 72 2.2.3 - Medo da morte ............................................................................................................ 73 2.2.4 - Resposta para o medo .................................................................................................. 74 2.2.5 - Moralidade e religião ................................................................................................. 78 2.2.6 - Integração das pessoas sofredoras e marginalizadas ................................................... 81 2.2.7 - Meditação bíblica e seus métodos hermenêuticos ....................................................... 83 2.2.8 - Valor do indivíduo e o valor da comunidade .............................................................. 87 2.2.9 - A função da igreja ....................................................................................................... 88 2.2.10 - Conclusão sobre a espiritualidade no tratamento ...................................................... 89 2.3 - Considerações sobre a diaconia ............................................................................................ 90 2.3.1 - Aspectos bíblico-teológicos da diaconia ..................................................................... 91 2.3.1.1 - Textos bíblicos clássicos da diaconia .............................................................. 93 2.3.1.2 - A comensalidade de Jesus em Marcos 2.15-17 ............................................... 95 2.3.1.3 - Diaconia como tolhimento extremo ................................................................ 99 2.3.2 - Conclusão sobre a diaconia acolhedora .................................................................... 102 2.4 - Por uma práxis acolhedora ................................................................................................. 103 III - PARÓQUIA DA SOBRIEDADE: O DESAFIO DO ACOLHIMENTO DOS EGRESSOS DE INSTITUIÇÕES DE INTERNAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS ___________ 105 3.1 - Considerações preliminares ............................................................................................... 105 3.2 - Em busca da aceitação social ............................................................................................. 105 3.2.1 - Espiritualidade integradora ....................................................................................... 107 3.2.1.1 - Do medo à confiança .................................................................................... 107 3.2.1.2 - Da moralidade excludente à espiritualidade integradora .............................. 110 3.2.1.3 - Meditação bíblica .......................................................................................... 113 3.2.2 - Acolhimento diaconal ............................................................................................... 115 3.2.2.1 - A necessidade de pessoas que se envolvam .................................................. 115 12 3.2.2.2 - Suprindo o vazio relacional ........................................................................... 117 3.2.2.3 - Comensalidade como ação concreta .............................................................. 118 3.2.2.4 - Existir em favor dos outros ........................................................................... 120 3.2.2.5 - O resgatado resgata ....................................................................................... 122 3.2.3 - Para que uma instituição não se volte para si mesma ............................................... 123 3.3 - União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade ........................................................ 131 3.3.1 - O que é a Paroquial Luterana da Sobriedade ............................................................ 132 3.3.2 - O parecer de quem participa da Paróquia Luterana da Sobriedade ........................... 133 3.3.3 - O parecer do pároco da União Paroquial da Sobriedade ........................................... 138 3.4 - Pontuações para uma práxis acolhedora ............................................................................. 142 3.4.1 - Iniciativas nas e das comunidades cristãs ................................................................. 145 3.4.2 - Iniciativa das instituições de tratamento ................................................................... 150 3.4.3 - Casa de apoio ............................................................................................................ 152 3.5 - Considerações finais ........................................................................................................... 154 CONCLUSÃO ______________________________________________________________ 156 BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________ 159 ANEXOS __________________________________________________________________ 163 13 Introdução O problema da Dependência das Substâncias Psicoativas – DSPA (álcool e demais drogas) tem tomado proporções assustadoras. A repreensão – tarefa exclusiva do Estado – parece não estar dando conta da sua tarefa, o que ocasiona o aumento da oferta das substâncias ilegais (maconha, cocaína, crack, ecstase, entre outras). Por outro lado, a bebida alcoólica, considerada legal, tem seu consumo incentivado na mídia através de propagandas enganosas, que prometem a felicidade ao ingerir, por exemplo, determinada marca de cerveja. A cultura do alcoolismo parece estar fortemente impregnada em nossa sociedade, tendo na normalidade do consumo de bebidas alcoólicas a sua bandeira. Isso faz com que os e as adolescentes ingiram bebidas alcoólicas, começando assim o uso precoce, causando com mais rapidez o desenvolvimento da doença/compulsão alcoólica. Temos assim um quadro social que não pode passar despercebido pela Comunidade Cristã: a precocidade do consumo e as famílias destruídas pelo abuso das DSPAs ou o abuso das DSPAs como conseqüência da destruição das famílias. Ou seja, toda a problemática tem a ver diretamente com a pergunta pelas disfunções familiares: separações matrimoniais que fazem com que muitas vezes a figura materna carregue sozinha os filhos e, para tanto, tem a dupla função de mãe e pai, sendo a mantenedora dos 14 mesmos. Os filhos, por sua vez, ficam à mercê de uma rotina de rua, da ociosidade, o que ocasiona o contato com usuários, etc. Esse mega-problema da DSPA não pode continuar sendo ignorado e/ou pouco considerado pelo meio eclesiástico. Partimos do pressuposto de que é tarefa da Teologia Prática auxiliar com suporte teórico-prático para o atendimento dessa demanda. Diante dos diferentes modelos de atendimento ao DSPA optamos por direcionar nossa pesquisa para o modelo de internação e de grupos de apoio, visto serem estes os que mais estão emergindo a partir das iniciativas das comunidades cristãs. Em nossa caminhada empírica constatamos uma das maiores dificuldades no atendimento: o pós-internamento. O que pode ser feito, pela comunidade cristã, para melhor acompanhar a pós-alta? Essa é a nossa pergunta. Dividimos a pesquisa em três grandes momentos: Primeiramente observamos o que acontece numa instituição de internação para obtermos uma noção aproximada das intenções e realizações do programa terapêutico que o residente vive enquanto interno na instituição. Importou-nos saber como ele é preparado para enfrentar as intempéries corriqueiras da vida humana e, especificamente, como ele é preparado para as relações eclesiásticas. Para essa sondagem empírica optamos pela Comunidade Terapêutica (CT) CERENE, unidade de Palhoça, visto ser ela uma instituição que tem como fundamento o Evangelho de Jesus Cristo e objetiva a recuperação integral do indivíduo em seu aspecto biológico, psicológico, sociológico/familiar e, não por último, espiritual. Apresentamos assim, a visão terapêutica e o respectivo programa terapêutico que desenvolve atividades que contemplam a formação do indivíduo em seus aspectos individuais e relacionais, preparando-o para o convívio social que inicia num ambiente protegido e promove uma volta gradativa à sociedade. Todas as atividades interagem entre si, proporcionando a contemplação do todo: o aspecto físico/biológico, o aspecto psíquico/emocional, o aspecto social/relacional e o aspecto espiritual/educativo. Fundamentamo-nos em documentos da entidade e no parecer concedido através de entrevistas feitas com quem vive (seis residentes) e com quem ajuda a viver (cinco membros da equipe terapêutica) o programa terapêutico. O aporte teórico obtivemos na apresentação que 15 Fischer faz das dez etapas do processo de recuperação, que podem ser agrupadas em préinternamento, internamento e pós-internamento. Diante da visão sistêmica refletida na unidade do CERENE de Palhoça foi incluído, ainda na primeira parte da pesquisa, a temática da co-dependência, relacionada aos familiares dos DSPA’s, que têm na atitude de ‘facilitação e salvação’ a sua fraqueza. A ausência paterna e a simbiose materna geram pequenos adultos que se tornam adultos pequenos, etiologia comum na formação da maioria dos DSPA’s e de co-dependentes. Abordamos as fases da co-dependência, (negação, depressão, negociação, raiva e aceitação), comum às todas as doenças, e apontamos objetivos para um programa de atendimento aos co-dependentes que se resume em levar os mesmos a resgatar um projeto de vida próprio porque, via de regra, eles tem vivido a vida do DSPA. Relutâncias ao tratamento – também por parte dos co-dependentes - são comuns porque mexem com o núcleo familiar, trazendo à tona situações desconfortáveis para todos e mostrando que o DSPA não é o único problema/problemático da família. O co-dependente precisa de tratamento, não para garantir a recuperação do DSPA, e sim porque é um indivíduo que sofre e precisa de ajuda. Assim, definimos e apresentamos os dois públicos alvos que a comunidade cristã deverá ter em mente ao exercer seu papel de acolhimento: Os DSPA’s e os Co-dependentes. Na segunda parte desta pesquisa buscamos um aporte teórico nas temáticas da espiritualidade (conteúdo da fé) e a diaconia (práxis da fé). Para a articulação da espiritualidade e sua relação com o processo terapêutico ouvimos Eugen Drewermann, articulador de uma espiritualidade integradora fundamentada na graça de Deus. Ele critica fortemente a articulação de uma moral que exclua o indivíduo da vida eclesiástica e social. Entendemos que a abordagem de Drewermann sobre a relação ‘ser humano – Deus’ é um dos princípios fundamentais para a articulação da espiritualidade na recuperação de DSPA’s. O medo gerador de angústia existencial deve ser respondido através de programações específicas. A necessidade de uma hermenêutica que atenda as perguntas existenciais é fundamental no manuseio da Bíblia para que esta responda às mesmas. 16 Para a articulação de uma diaconia acolhedora, ancoramo-nos nas contribuições de Gaede Neto e Schweizer que fundamentam exegeticamente, a partir de perícopes bíblicas, alguns aspectos básicos da diaconia neotestamentária. A comensalidade de Jesus e o tolhimento extremo do serviço ao próximo fazem com que a diaconia se torne acolhedora. Para Gaede Neto, o texto bíblico de Marcos 10.35-45 é a porta de entrada para a leitura da diaconia nos ensinos e nas ações de Jesus, porque inverte os valores da sociedade da época e, por extensão, da sociedade atual. Os discípulos disputam o primeiro lugar, porém, Jesus inverte os valores, afirmando: “entre vós não é assim” e “quem quer ser o primeiro seja diácono/servo de todos”. O texto de Mateus 25.31-46 (julgamento final) enfatiza que a organização do trabalho diaconal parte da necessidade que as outras pessoas têm e não da bondade dos que servem. O texto de Lucas 10.25-37 pergunta sobre o que devemos fazer para que o outro, cuja vida está ameaçada, tenha vida. O texto de João 13.1-35 aponta a radicalidade de Jesus em seu gesto de servir, mesmo sendo o Senhor, dando assim o exemplo a ser seguido. E o texto de Marcos 2.1517 nos traz a narrativa sobre Jesus sentado à mesa com pecadores, sendo que esse gesto sinaliza a radicalidade da comunhão, da inclusão social, da inclusão eclesiástica. Schweizer aponta para a diaconia como tolhimento extremo, parte do exemplo de Jesus que se esvazia (Filipenses 2.5) do seu ser Deus e existe a favor dos outros. Jesus vive agora (cf. Mateus) nos sedentos, fugitivos, enfermos e presos (incluímos DSPAs e co-dependentes na categoria ‘enfermos’). A comunidade cristã é vista (cf. Paulo) como um corpo em que um membro ferido atinge todo o corpo. E em João o amor fraternal passa a ser a base para a convivência social. A partir do que vimos sobre diaconia, concluímos que não é uma questão de escolha acolher as pessoas ou não. É sim uma questão de obediência. Obediência ao ensino e a práxis do Senhor da Igreja. No terceiro momento da pesquisa procuramos aplicar à comunidade cristã a práxis integradora da espiritualidade e diaconia em relação ao público específico desta pesquisa: DSPA’s e seus familiares. A busca pela aceitação social poderá ser respondida pela 17 espiritualidade que integra, vencendo assim o medo e respondendo aos anseios existenciais. A diaconia conclama aos cristãos a se envolverem através de ações concretas que levam a existir a favor dos outros. A diaconia passa a ser também um ferramental terapêutico que traz razão para a existência do resgatado: esse passa a resgatar outros e conseqüentemente mantêm sua sobriedade. A instituição, por sua vez, deve cuidar para que não se torne ‘um fim em si mesma’, perdendo o objetivo central de sua existência: ser voltada para as pessoas que sofrem. Apontamos – a partir das entrevistas que fizemos – expectativas que os DSPAs, os familiares e a equipe terapêutica nutre em relação ao acolhimento na igreja. Para termos um referencial empírico, olhamos a Paróquia Luterana da Sobriedade, na região da grande Florianópolis, que procura promover a continuidade do tratamento oferecido pelas instituições de internação, especialmente pelo CERENE. A partir da aplicabilidade que fizemos das pontuações teóricas do segundo capítulo, elaboramos algumas pontuações que consideramos importantes para que a práxis seja organizada e promova a integração: iniciativas que as comunidades cristãs deveriam promover no e a partir do seu meio e as iniciativas que as instituições de internação deveriam aperfeiçoar para que o pós-internamento possa ser realizado com mais eficácia. A conscientização das comunidades, a organização das informações, a disponibilização de material didático e o incentivo e preparo de pessoas (agentes comunitários), constitui a base destas iniciativas. Assim, pode-se criar uma ‘rede de apoio’. O residente, durante o programa de internação e na fase final do mesmo, receberia informações sobre o que a instituição possui ao alcance dele, na área geográfica específica à qual retornará ou na qual irá dar continuidade ao seu tratamento: pessoas, comunidades cristãs, grupos de apoio, etc. Com essas iniciativas concretas, a comunidade cristã seria uma continuidade da comunidade terapêutica e ao mesmo tempo promovedora desta. Sugerimos também, para atender a demanda daqueles que não têm mais uma estrutura social básica, a criação de casas de apoio, iniciativas que deveriam partir de uma parceria entre as comunidades cristãs e as instituições de internação. 18 Assim, a pesquisa parte da necessidade concreta que os DSPA’s e os co-dependentes têm de acolhimento e integração social, mostra que a comunidade cristã tem intrínseco ao seu ensino (espiritualidade) e à sua práxis (diaconia) o potencial de contribuir no atendimento dessa demanda. 19 I – AS PESSOAS DEPENDENTES E CO-DEPENDENTES DE SPA: O TRATAMENTO COM VISTAS À REINSERÇÃO SOCIAL 1.1 - Questões introdutórias O limite entre o uso e o abuso de SPA (álcool e as demais drogas) é algo de contínuo debate. O usuário é visto como aquele que faz uso da SPA de forma controlada e sem maiores conseqüências. O “abusário” é o compulsivo, dependente (física e/ou psicologicamente) da SPA. Alcoolistas, alcoólatras, adictos (escravos), drogadictos, dependentes químicos, toxicomaníacos, quimiodependente, farmacodependente, etc. são alguns dos termos usados na referência ao que abusa do uso ou tem em si instalada a dependência de SPA’s. A dificuldade de uma terminologia própria se deve ao fato de as designações citadas acima, essencialmente com conotações negativas, “rotularem/estigmatizarem” o indivíduo que sofre dessa doença, supervalorizando os aspectos negativos da sua personalidade, sendo que a valorização dos aspectos saudáveis/positivos é o passo inicial para tratá-lo1. Porém, a terminologia é necessária. Estaremos usando a sigla “DSPA” ao nos referirmos à problemática da Dependência da Substância Psicoativa ou ao Dependente de Substância Psicoativa de forma generalizada; “participante” ao indivíduo que está no contínuo processo de reestruturação de sua 1 Cf. Augusto CURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 94. 20 vida através do grupo de apoio; “residente”, ao que está internado na instituição de tratamento e “co-dependente”, ao familiar do residente. Os modelos de tratamento são diversificados. Estes podem ser essencialmente classificados em: a) ambulatorial, caracterizado pelo acompanhamento através de momentos/horários específicos de atendimento psicológico/psiquiátrico/pastoral; b) internação, residência institucional intensiva (clínicas, hospitais e CT's) e c) grupos de auto-ajuda /de apoio (a exemplo de A.A./N.A.; A.E.; Cruz azul; Paróquia Luterana da Sobriedade, etc.). Há modelos em que as diferentes formas interagem entre si, como é o caso do hospital dia/turno que mescla ambulatório/hospital – o indivíduo passa um período do dia na instituição e o outro em sua casa ou emprego. As instituições de internação, via de regra, proporcionam o acompanhamento psicológico/psiquiátrico/pastoral e reuniões de grupos de auto-ajuda, etc2. Nosso foco de pesquisa concentra-se sobre o modelo de internação e de grupos de apoio. Visto ser nossa pesquisa na área da Teologia Prática, direcionamos nossa pergunta central sobre o papel que ocupa, ou deveria ocupar, a comunidade religiosa frente à problemática da DSPA. Dos 21 serviços que responderam a uma pesquisa do Departamento de Psicologia da UFSC, 43% desenvolvem a assistência espiritual como instrumento terapêutico, destes, sete são CT's3. Devido ao uso (e, por vezes, abuso) desse ferramental terapêutico, compete à Teologia Prática articular a importância da espiritualidade num programa terapêutico para a recuperação de DSPA’s – o que faremos adiante, destacando a ênfase integradora da espiritualidade e diaconia cristã. Como referencial empírico, buscamos ver o que é feito em duas instituições de tratamento, sendo uma com ênfase na internação e a outra com ênfase em grupos de apoio. As duas atuam numa parceria que integra suas especificidades: O CERENE (Centro de Recuperação Nova Esperança), que segue o modelo psicossocial das CT’s e a Paróquia Luterana da Sobriedade, que enfatiza o acolhimento social dos egressos da internação. A escolha das duas se 2 Numa recente pesquisa do Departamento de Psicologia da UFSC, feita no contexto da região da Grande Florianópolis, foram identificados 28 serviços de “Atenção à Dependência Química” distribuídos em duas clínicas, cinco ambulatórios, três hospitais, doze CT’s, três coordenações gerais de grupos de ajuda mútua e três programas de redução de danos. Dessas instituições, 21 responderam à pesquisa, dentre elas 8 CT’s. Cf. Daniele Ribeiro SCHNEIDER, Relatório Final (Avaliação dos Serviços...), p. 14. Os programas de redução de danos não têm por meta a abstinência, mas, como já indica o nome, reduzir os danos decorrentes do uso e abuso das SPA’s. 3 Cf. Daniele Ribeiro SCHNEIDER, Relatório Final (Avaliação dos Serviços...), p.57. 21 deve à nossa caminhada ministerial junto às mesmas, como articuladores no processo de formação e aperfeiçoamento do atendimento proposto e pelo aspecto teológico que envolve a ambas, visto estarem inseridas no contexto das comunidades cristãs, especificamente, nas paróquias da IECLB da região da Grande Florianópolis. A pergunta que perseguimos em nossa pesquisa surgiu durante nossa práxis4. A constatação empírica/subjetiva de um porcentual assustador de recaídas levou-nos a perguntar pelo pós-internamento/alta (aftercare). O que pode ser feito para melhorar o acompanhamento pós-internação? A Paróquia Luterana da Sobriedade tem basicamente dois públicos-alvos: os egressos da internação (a grande maioria do CERENE) e os familiares destes, os co-dependentes. Por isso percebemos, durante a pesquisa, que o assunto da co-dependência não poderia ser ignorado, visto a ênfase que ambas as instituições dão, cada vez mais, ao tratamento sistêmico. Assim, na primeira parte deste primeiro capítulo, queremos apresentar o que é feito na instituição de tratamento e o parecer de quem vive e de quem ajuda a viver o programa oferecido. Uma análise minuciosa caberia a uma outra pesquisa. A nós interessa focar o que é feito dentro da instituição de internação. Qual é a bagagem terapêutica e de ensino que o residente recebe? A partir disso, podemos perguntar pela continuidade, ou seja, do que é necessário no pósinternamento. Assim apresentaremos uma noção de como o egresso foi ‘preparado’ durante a internação. Contemplaremos assim o primeiro público-alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade. Na continuidade, abordaremos o assunto da co-dependência, público-alvo que acompanha o primeiro. A necessidade de atender a esses dois públicos, e como fazê-lo – durante e após a internação – é a mola propulsora desta pesquisa. 4 Estamos conscientes de que a nossa práxis ministerial (ao todo são nove anos de envolvimento direto no tratamento de DSPA’s) influencia nossa pesquisa, levando-nos, por um lado, a uma tendência de leitura romântica das instituições pesquisadas e, por outro lado, protegendo-nos de uma leitura estritamente racional/fria, leitura essa, muitas vezes, feita por pesquisadores que adotam a metodologia da suspeita, que geralmente parte de um olhar superficial para o que está sendo feito e obtém conclusões precipitadas, determinadas essencialmente pelos pressupostos pretensiosamente científicos. 22 1.2 - CERENE, unidade de Palhoça, SC Lá no Cambirela, bem pertinho do céu Existe um lugar que você está com Deus, com Deus. Todos os dias a gente ora trabalha e canta ao Senhor, ao Senhor. Lá as tristezas vão embora só por causa do Amor, do Amor.5 Quem chega à unidade do CERENE de Palhoça, fica impactado pela beleza do lugar, privilegiado pela sua exuberante paisagem. À frente se vê o mar e a bela ilha de Florianópolis. Aos fundos, o monte Cambirela, com toda a sua majestade. Como dizia este co-obreiro6: “Se só essa beleza toda ajudasse, o tratamento estaria garantido”. Não garante, mas ajuda. Ajuda na motivação pela permanência na internação. Ajuda, acima de tudo, a mostrar que a vida é bela e vale ser vivida em sobriedade. “É preciso re-aprender a viver, re-aprender as linhas básicas da contemplação do belo”7. Uma das características visíveis do CERENE, em todas as suas unidades, é o esforço empreendido para melhorar as instalações e a estética do espaço físico, por entender o seu valor terapêutico para aqueles que já há muito perderam o olhar para a beleza da vida. Também nessa postura se reflete algo que nem sempre é tão óbvio: a preciosidade e a dignidade do público alvo que é digno de um ambiente adequado para o seu tratamento. Os aspectos filantrópicos da entidade também ressaltam esse aspecto8. Todos – independente da classe social – são tratados com o mesmo respeito, amor e dedicação. Essa característica impacta a sociedade, acostumada a ver a distinção entre as classes sociais nos meios de atendimento à saúde. 5 A letra e melodia desse hino foram compostas por dois residentes do CERENE da unidade de Palhoça no ano de 1998. Na encosta do moro Cambirela, conhecido na região pela sua presença majestosa, encontram-se as instalações do CERENE. 6 Nossa caminhada no aprendizado sobre a dependência em SPA’s iniciou, após encerrados os estudos na FLT (Faculdade Luterana de Teologia, na época CETEOL – Centro de Ensino Teológico), no CERVIN (Centro de Recuperação Vida Nova – Rolândia, PR) seguindo na Cruz Azul de Panambi, RS. Após um período de ministério em comunidade eclesiástica, ingressamos na unidade do CERENE de Palhoça em 1997, até 2003, inicialmente como terapeuta pastoral e na seqüência como diretor da unidade. Optamos pela expressão “co-obreiro” - uma analogia com o dependente e co-dependente - como meio de uma auto-referência a nós e a este período que muito contribuiu para a aquisição de conhecimento do tema pesquisado. Não estamos mais diretamente envolvidos no modelo de internação, porém, sentimo-nos co-parceiros deste ministério. 7 Augusto CURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 54. 8 A gratuidade nas internações alcançou o índice de 64% no ano de 2004. Isso significa que apenas 36% das despesas foram pagas com contribuições dos beneficiários (possibilitadas pelos familiares, auxílio-doença, conhecidos, , etc). Cf. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p. 28-29, 23 A beleza do CERENE não se limita ao espaço físico. Reflete-se na convivência dos seus obreiros9 com os residentes em tratamento. O ambiente é familiar. As crianças, filhos de obreiros, correm pelo arraial como se fosse território próprio. Brincam e “brigam” com os residentes. Trazem à tona uma série de sentimentos – ora bons, ora ruins – que se refletem na terapia individual. Aos que são pais, a saudade que teima em mostrar o quando seus filhos são preciosos e precisam de pai. Aos que são filhos, a tristeza por não terem tido a possibilidade de brincar com seus pais, assim como vêem os obreiros brincando com seus filhos. Tristeza que tem a possibilidade de ser tratada. A presença feminina, das esposas dos obreiros, lembra a figura materna. O apelido de “Mama” já foi atribuído a algumas senhoras nesse contexto. O relacionamento marido-esposa do casal obreiro pode trazer luz e esperança para o residente – a maioria deles – que está em vias de separação matrimonial. Assim “o Céu, Deus e o Senhor” são grandezas refletidas pelo “Amor” que vai tomando o lugar da tristeza. Este hino foi composto em 1998 e é cantado hoje com a mesma convicção e empolgação da época. Com esse pano de fundo – aspectos da estrutura física e estrutura de convivência – queremos verificar os ingredientes do programa terapêutico que são oferecidos no decorrer da internação. 1.2.1 - Programa terapêutico do CERENE Atuar na prevenção da dependência de álcool e outras drogas e no tratamento do dependente e seus familiares, a partir de uma visão cristã de ser humano integral, buscando a reinserção social e uma melhor qualidade de vida.10 9 “Obreiros” é a designação para todos os membros da equipe terapêutica de uma unidade do CERENE, independente da função exercida. Essa designação é comum na maioria das Comunidades Terapêuticas. Em algumas delas “monitores” é o termo equivalente. A designação comum mostra a importância de todos e incentiva a mentalidade de equipe. 10 Missão do CERENE. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p. 5. 24 Conforme a Introdução ao Programa Terapêutico do CERENE11, o programa entende que a “dependência química é um estilo de vida e não somente o uso exagerado de determinada substância psicoativa”12. Parte da premissa de que é necessário criar um novo estilo de vida e não somente reformar o atual. Para isso, adota a modalidade de tratamento psicossocial de Comunidade Terapêutica. O objetivo geral do programa de tratamento é “oferecer um ambiente protegido, técnica e eticamente orientado, bem como suporte e tratamento para dependentes de substâncias psicoativas – SPA, do gênero masculino, com idade mínima de 12 anos”13. O ambiente protegido é necessário para o início da abstinência porque, por maior que seja a força de vontade do indivíduo em se abster da SPA, a pressão externa (ambiente de convívio com colegas usuários e a oferta da substância, bem como o ambiente que instiga constantemente através das lembranças que proporciona) e a pressão interna (fissura gerada pela dependência física e/ou psicológica) somadas geralmente com situações emocionais desestruturadas (conflito familiar, social) dificultam o início e a manutenção da abstinência no local de origem do DSPA14. Contudo, apenas um ambiente protegido não é suficiente para (co)responder à mudança de perfil de vida necessária. “Técnica e eticamente orientado com suporte e tratamento”, acompanhamento este que acontece através das programações da instituição, de cunho psicológico, laborativo e espiritual, mencionadas a seguir15. a) Aconselhamento individual. É indicado um conselheiro16, que acompanhará de forma individual (e pessoal) ao residente, através de diálogos periódicos/ordinários e, quando necessário, extraordinários. Diálogos que incluem, na medida da necessidade, os familiares ou 11 Documento elaborado em outubro de 2004. CERENE® . Programa Terapêutico do CERENE, p. 1. 13 Id.,Ibid., p. 3. As quatro unidades do CERENE, Blumenau, Lapa, Palhoça e São Bento do Sul (a ordem da citação lembra e respeita a ordem do surgimento de cada uma) atendem apenas ao gênero masculino. Quando ocorre a procura de alguém do gênero feminino, é praxe direcionar para outras Comunidades Terapêuticas estruturadas para esse fim, a exemplo do RENASCER, em Ituporanga, SC. 14 Há casos em que o indivíduo pára sozinho, em seu ambiente cotidiano. É possível constatar que a maioria desses casos ocorre como que através de uma terapia de choque, após um susto provocado, por exemplo, pelo alerta médico em relação à precariedade da saúde física, um acidente de trânsito, perda do cônjuge, um conflito ameaçador com o traficante, etc. Pelo conceito de recuperação apresentado na filosofia do CERENE, podemos perceber que a abstinência não significa necessariamente recuperação. Ela faz parte, porém não a define. Entre os DSPA’s encontramos gírias do tipo “apenas fechou a garrafa” ou “alcoólatra seco”, etc, que refletem essa realidade. 15 Cf. CERENE® . Programa terapêutico do CERENE, p. 6-8. 16 Na unidade de Palhoça, os conselheiros de tempo integral são formados em diversas áreas do saber humano: 1 em psicologia, 1 em teologia, 1 em contabilidade e arquitetura, 1 em engenharia civil. Também em caráter de meio turno: 1 agrimensor. O critério de contratação dos mesmos, refletido nas entrevistas, parece ser a postura de fé cristã e a disposição pessoal para esse ministério de recuperação. 12 25 responsáveis. O residente também tem acesso a outros profissionais do CERENE. Essa forma de aconselhamento lembra a figura de um monitor/tutor. É uma figura fundamental para que o residente tenha a quem recorrer quando enfrenta dificuldades emocionais ou relacionais. Esse acompanhamento personalizado gera uma atmosfera de cunho mais pessoal. Assim, o indivíduo não se esconde na multidão e não passa despercebido. b) Reuniões de grupo. Encontros periódicos que oportunizam o aprendizado do “ouvir”, através de recomendações mútuas e críticas construtivas. O compartilhar de sentimentos, a troca de experiências e a administração de tensões possibilitam a edificação pessoal bem como o aperfeiçoamento das relações. As reuniões também oferecem informações através do estudo dos Doze Passos e da Prevenção da Recaída17. c) Palestras Informativas. Nestas são repassadas informações a respeito da DSPA, das SPA’s, riscos à saúde física e emocional, espiritualidade, aprofundamento sobre o programa de internação, qualidade de vida etc. Os terapeutas entrevistados na unidade de Palhoça, referem-se a essas palestras como sendo “psicoeducativas”. d) Feedback. Este poderá acontecer através dos colegas de tratamento, nas reuniões de grupo (item b) ou pela equipe terapêutica que, em reuniões periódicas, avalia a evolução do processo de recuperação18. e) Regimento Interno. É parte integrante do programa de tratamento da internação porque (re)ensina a viver sob normas comunitárias, deixa claro os direitos e deveres do residente, 17 Doze passos do A.A., com adaptações bíblicas feitas pelo terapeuta Luis Carlos Kuchembecker. Cf. CRUZ AZUL. Comunidade Terapêutica & Dependência Química em pauta. Ano I, n. 3, p. 7-12. O programa de prevenção da recaída é inspirado em G.. Alan MARLATT, Judith R. GORDON, Prevenção de Recaídas: estratégias de manutenção no tratamento de comportamento adictos,1993. 18 Há instituições que chamam essa ferramenta de “confronto”, muitas vezes adquirindo a tônica, como a própria palavra diz, de confrontar a pessoa com a realidade de sua auto-manipulação e/ou manipulação das pessoas ao seu redor. Por vezes, esse confronto é feito pelos próprios residentes, ocasionando situações pejorativas e adversas, deixando de ser terapêutico. O feedback no CERENE procura dar apenas o que a própria palavra diz, um retorno das impressões, positivas e negativas, que o residente está causando para a equipe terapêutica e para os seus colegas de internação. Essa reunião de feedback é acompanhada pelo conselheiro individual, que procura conversar posteriormente com o residente sobre as impressões do grupo. 26 promove o respeito mútuo e reeduca o ritmo biológico de cada um (alimentação, descanso, atividades físicas, etc)19. f) Assembléia Geral. Reunião periódica em que se trata do andamento da Comunidade Terapêutica, oportunizando contribuições para o aperfeiçoamento do atendimento da entidade. Há algum tempo era conhecido por “lava-roupas”, por causa da possibilidade de também tratar de descontentamentos nos relacionamentos. g) Atividades esportivas e recreativas. O brincar, o lazer, dinâmicas, jogos (futebol e vôlei), torneios, gincanas etc, estimulam o exercício físico dentro dos limites individuais de cada residente. Esse aspecto lúdico é algo a ser constantemente estimulado porque ensina que é possível a satisfação através da sobriedade. h) Atividades pedagógicas de ensino. Parceria com entidades promotoras de alfabetização e ensino fundamental e médio (na unidade de Palhoça através do supletivo do SEJA – Secretaria Ensino Jovens Adultos, do Estado de Santa Catarina) possibilita alcançar o objetivo terapêutico de: ampliar o conhecimento, motivar à conclusão20 de cursos regulares após o internamento e elevar a auto-estima, entre outros. i) Cursos de caráter profissionalizante. Participação opcional, antes de optar, e obrigatória após a opção feita, por parte do residente, em iniciar o curso. Esses cursos são disponibilizados a partir de entidades promotoras, preferencialmente de curta duração. Exemplos de cursos: padaria, confeitaria, marcenaria, horta e floricultura, piscicultura, informática, etc. 19 A administração do regulamento nem sempre é fácil. O princípio do “sábado criado por causa do homem e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2.27) é o que deve nortear as diversas situações que surgem e que muitas vezes não estão previstas no regulamento. Na primeira semana de internação, o residente toma conhecimento do regulamento. Por ocasião da entrevista preparatória para a internação, são-lhe passadas as informações centrais do regulamento, mostrando, acima de tudo, a necessidade de se viver com regras. Após lido o regulamento, o residente assina um termo de compromisso em que concorda viver sob essas regras e que está ciente das conseqüências do não cumprimento das mesmas. Essa metodologia é importante para que não haja surpresas do tipo “eu não sabia”. Um sistema que tem sido adotado é o da pontuação negativa ou cartão amarelo, que sinaliza advertência por pequenas infrações. A soma de pequenas infrações poderá levar a conseqüências maiores, inclusive à interrupção temporária do internamento, através da “alta administrativa”. 20 Cursos incompletos são uma forte característica dos DSPA’s, como analisa Fischer, citando gráficos e autores que apontam para essa realidade. Cf. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 66-69. 27 Objetiva-se fortalecer a relação com o trabalho, ampliar e despertar conhecimentos profissionais21. j) Oficinas. A prática artística/artesanal estimula a criatividade e proporciona uma ocupação saudável nos horários livres do programa diário e de fins de semana. Somado com o item anterior, residentes com conhecimentos na área artesanal ensinam outros residentes, de forma livre e espontânea, possibilitando, em alguns casos, um meio de sustentabilidade futura. k) Acompanhamento médico e medicamentoso. O CERENE disponibiliza consultas periódicas para que o bem-estar físico e os sintomas de abstinência sejam amenizados. A medicação é administrada pela entidade, com prescrição médica. Casos de emergência são encaminhados para rede pública de saúde. Em casos de complexidades médias e altas, encaminha-se para instituições e/ou profissionais competentes, sob a responsabilidade da família ou responsável do residente. l) Promoção da Cidadania. Atividades que proporcionam (re)construir os meios de acesso e reconhecimento da cidadania do indivíduo (documentos, tratamento de saúde e odontológico, educação, lazer etc). O programa de tratamento é previsto em quatro fases, que iniciam com a ênfase na desintoxicação e abstinência, caminhando em direção a um retorno gradativo e intensivo ao meio sócio-familiar: a) Fase 1 – Adesão (até o 30 º dia). Não visita e não recebe visita, não se comunica diretamente com pessoas de fora da instituição (exceto eventual psicólogo, pastor, assistente social que tenha encaminhado à internação e pretende acompanhá-lo). Recebe e passa informações preferencialmente na presença e através do seu conselheiro individual. Correspondências são liberadas após o 20º dia. b) Fase 2 – Reencontros sócio-familiares (entre o 31º e o 75º dia). Os familiares e/ou responsáveis podem e devem fazer visitas ao residente, e a 21 É um ideal bastante apreciado o fato de promover essa possibilidade de formação. Porém, entre o ideal e o real, sempre ocorrem algumas dificuldades, entre elas, conseguir as parcerias promovedoras de tais cursos e a permanência dos residentes no curso, visto que a interrupção do internamento interrompe também a participação no curso. Mais do que formar profissionais em determinadas áreas, todo o programa de laborterapia, dos cursos oferecidos, relacionamentos pessoais, etc, somam para formar a pessoa do profissional, gerando assim um perfil que possibilita o constante aperfeiçoamento pessoal e profissional. Conforme a “programação semanal” do CERENE unidade de Palhoça [Cf. Anexo III] são cerca de cinco horas/dia direcionadas para o programa de laborterapia (terapia de labor) que envolvem atividades diversas: cuidado de animais (gado, porcos, frangos), horta, marcenaria, oficina, construções, manutenção, cozinha, limpeza, almoxarifado, jardinagem, etc. 28 eles são oportunizadas palestras orientadoras sobre o programa de tratamento, a DSPA e a codependência. Objetiva-se à reconstrução e fortalecimento dos vínculos familiares. c) Fase 3 – Saídas com Acompanhantes (entre o 76º e o 120º dia). A finalidade é proporcionar um retorno gradativo ao ambiente sócio-familiar. Para isso, o residente é motivado a fazer, a cada 14 dias, visitas domiciliares acompanhado por um responsável, permanecendo fora do CERENE dois dias e uma noite. e) Fase 4 – Saídas sem Acompanhantes (entre o 121º e o 180º dia). Intensifica-se o processo de reinserção ao ambiente sócio-familiar, com visitas domiciliares até três vezes ao mês. Depois do 150º dia, a permanência fora do CERENE aumenta para três dias e duas noites em cada visita, podendo ser em dias úteis para facilitar a procura de emprego e/ou providenciar documentos, bem como cuidar da saúde dentária. Assim, o tempo previsto é de 180 dias, podendo ser prorrogado por mais 120 dias no programa de reinserção social, em um sítio anexo ao CERENE. Essa metodologia responde à crítica que aponta, como ponto sensível da internação, uma anormalidade social, tirando o indivíduo da sociedade de origem22. A reinserção social começa com o ato da internação, possibilitando o aprendizado de convivência, e prossegue durante a internação e precisa de acompanhamento após a mesma. 22 “As comunidades terapêuticas para tratamento de dependentes químicos, por melhor que sejam, como hospitais e clínicas especializadas, constituem uma anormalidade social”. Wilson Kraemer PAULA, A Universidade como espaço alternativo de tratamento..., p. 115. O autor do referido artigo tem o nobre e louvável objetivo de mostrar que a universidade pode ser um espaço alternativo para a inserção do DSPA, através de um programa para tal. Porém, faz isso inicialmente criticando – forte e pejorativamente – o trabalho das CT’s para daí lançar a sua proposta. A incoerência do artigo está no fato de a sua proposta ter basicamente ingredientes psicoeducativos semelhantes aos das comunidades terapêuticas como, por exemplo, grupos de estudos (com metodologia das reuniões coordenadas por um facilitador), grupo de ajuda mútua, (metodologia que identifica o campus da universidade “um ambiente onde a maioria da população não é usuária de drogas, pode ser compreendida como a ampliação do contexto sadio do qual o recuperando necessita”, p.123), a utilização de regras claras (que fornecem “fichas para transporte urbano”, “almoço no restaurante”), participação em duplas nos programas e no Campus da Universidade, horários préestabelecidos e a obrigatoriedade da participação nos programas [p.124/5]. Uma proposta não exclui a outra. Somam-se! Infelizmente Paula não percebeu isso. 29 1.2.2 - Um dia típico na unidade do CERENE de Palhoça23 Às 6:30 horas acontece a alvorada, proporcionada pelo ruído estridente do sino tocado pelo obreiro que será o responsável do dia, fiscalizando arrumação do quarto, organizando as refeições, tocando o sino para os diversos horários a serem seguidos. Cama arrumada e higiene pessoal fazem parte desse início rotineiro. Uma leitura meditativa da Bíblia ou de algum devocionário já faz parte na vida de alguns. Vai-se para o desjejum proporcionado por um gostoso café feito por uma equipe escalada semanalmente para esse fim. O obreiro inicia com uma palavra meditativa e oração de agradecimento, o que, por vezes, também é feito por residentes24, para, na seqüência, cada um se servir, seguindo uma escala organizada pela numeração das mesas. Às 7:30 horas, o sino volta a tocar chamando para o programa matinal que é, conforme o dia, uma palestra bíblica, grupos de sentimento, culto ou grupos de estudo. Ás 9:00 horas começa a laborterapia, levando cada um para o seu setor de atividades. Um certo aglomerado se forma em frente ao almoxarifado, na busca por ferramentas de trabalho: foice, facão, machado, botas etc. Às 11:30 horas acontece a tão esperada pausa para descanso, higiene e um cigarrinho para os dependentes do tabaco25. A placa que sinaliza o local para “abastecer os pulmões” é significativa: do lado de fora consta “fumódromo” e, do lado de dentro, “canceródromo”, na tentativa permanente de conscientizar da necessidade de se abster também do tabaco. Ao meio-dia, o sino chama para o almoço, novamente dirigido pelo obreiro, iniciado com oração ou um cântico de mesa. O almoço é preparado pelo cozinheiro da casa, auxiliado por uma equipe de residentes. Repouso e/ou silêncio até às 13:30 horas e a volta à laborterapia, às 14:00 horas, com pausa de 15 minutos (às 15:30 horas) e término às 17:00 horas. Segue-se um momento livre que oportuniza o lazer. Às 18:30 é servido o jantar, às 19:00 assiste-se ao Jornal na TV e às 20:00 horas acontece um programa da casa, com palestra psicoeducativa, estudo 23 Passamos 5 dias na unidade com o objetivo de observar e de efetuar entrevistas com residentes e obreiros, o que possibilitou a descrição de um dia típico na unidade. 24 Oração muitas vezes encerrada com um responsório: “Ó vem Senhor Jesus sê Tu o nosso convidado e tudo o que nos dás nos seja abençoado”. 25 A unidade do CERENE de Palhoça não exige/impõe a abstinência do tabaco. Porém a incentiva através de palestras de conscientização dos malefícios que o mesmo causa ao organismo. São rigorosos, não permitindo que alguém inicie essa dependência durante a internação. 30 bíblico ou um filme facultativo (nas quartas-feiras). Às 22:30 horas é o momento de recolher-se para o repouso. Na condição de observador, é interessante perceber o movimento no decorrer do dia. É o trator sendo conduzido por um residente e outros “fazendo festa” na carroceria (mais parecendo um trenzinho da alegria). É um grupinho aqui outro acolá com suas ferramentas. É um residente ao lado de seu terapeuta, caminhando em direção do escritório para a terapia individual. É uma família em frente à ala administrativa, aguardando o momento da entrevista. É o veículo da unidade indo e vindo, ora para fazer compras, ora para levar alguém ao médico. No intervalo, é o grupo se organizando para mais um jogo de futebol, outros indo ao açude para dar uns mergulhos, outros conversando, lendo, fazendo exercícios na academia e ainda outros jogando o seu dominó, pacau (pebolim) ou tomando chimarrão. Esse movimento todo lembra uma verdadeira comunidade. 1.2.3 - O parecer de quem vive e ajuda a viver o programa terapêutico. Além da convivência in loco na unidade do CERENE de Palhoça – objetivando uma pesquisa participativa, fizemos algumas entrevistas com residentes que vivem o programa terapêutico26. São eles: Osmar27, 47 anos de idade, casado, um filho e dois enteados, quatro meses e meio de internação, 2º grau completo, balconista de farmácia. Ultimamente a SPA predominante era a cocaína. Iniciou aos 15 anos usando maconha, motivado pela curiosidade. Chegou ao CERENE através do projeto Siloé28, após ter sido enviado por um Padre da cidade de Maringá, PR. 26 Esclarecemos a cada entrevistado a possibilidade de se apresentarem com um pseudônimo. Significativo é o fato de todos terem se apresentado com o nome legítimo. Mesmo assim, usaremos pseudônimos para evitar siglas e numerações ao nos referirmos a eles, bem como para manter o anonimato. Visto que o objetivo não é uma pesquisa quantitativa e, sim, qualitativa, optamos em entrevistar seis residentes, seguindo o critério de maior tempo e/ou adesão ao tratamento, devido à tônica que damos à reinserção social. 27 Informações sobre Osmar (pseudônimo) no anexo I p. 12-13. 28 “O Projeto Siloé é uma entidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de caráter filantrópico e assistencial, criada por pessoas preocupadas com o crescente número de dependentes de drogas, álcool e congêneres, 31 Gerson, 49 anos de idade, separado, dois filhos, quatro meses de internação, 1º grau incompleto, eletricista. Dependente da bebida alcoólica, especialmente a destilada, iniciou aos 18 anos de idade, motivado pelas “companhias assim, para a gente se enturmar mais, dava mais segurança para se apresentar com os amigos ou ir para algum lugar, isso me fazia bem, me deixava mais tranqüilo”29. Procurou uma proposta de tratamento mais longo (pois já fizera três curtos de no máximo 28 dias) e assim, através de um amigo, chegou ao CERENE. Egon30, 28 anos de idade, união instável, dois meses e meio de internação, 1º grau incompleto, garçom. Dependente do crack e cocaína injetável, iniciou o uso de SPA aos 13 anos de idade, motivado pela curiosidade e busca por status. Sua primeira internação no CERENE foi em 2001, através de uma missionária da igreja Batista. Romeu31, 30 anos, solteiro, um filho, quatro meses e dez dias de internação, 2º grau incompleto, motorista. Cocaína é a SPA predominante. Iniciou o uso aos 15 anos, motivado pela curiosidade. Conheceu um voluntário do CERENE que atua em campanha de arrecadação de recursos32, pediu ajuda e assim conseguiu a sua vaga. Rogério, 29 anos de idade, casado, dois filhos, um mês e meio de internação, 1º grau incompleto, cenógrafo. Ultimamente “eu tava tomando cachaça e fumando mais era a pedra [crack)”33. Iniciou aos 14 anos usando maconha, motivado pela curiosidade e induzido por um amigo. Através de um diálogo com a família, auxiliado por um tio que também passara por internação, chegou ao CERENE. Ivo, 27 anos, solteiro (foi amasiado), uma filha, três meses de internação, 3º grau incompleto, vendedor. As SPA’s predominantes são o crack e a cocaína, sendo que usou vários objetivando de maneira concreta a recuperação das pessoas afetadas. Bem como, objetiva o apoio a pacientes portadores do vírus HIV, indicando-lhes uma vida com Jesus”. Cf. ‘www.siloe.org.br’ (11/07/2005). O Projeto Siloé mantém atendimento ambulatorial de aconselhamento psicológico e pastoral, encaminha DSPA’s para Instituições de Internamento, acompanha durante e após o mesmo. Mantém um vínculo bastante próximo com o CERENE. 29 Informações sobre Gerson (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no anexo I, p. 05. 30 Informações sobre Egon (pseudônimo) no anexo I p. 02-03. 31 Informações sobre Romeu (pseudônimo) no anexo I p. 20-21. 32 Trata-se de uma campanha em que o consumidor pode fazer uma doação mensal em sua fatura de energia elétrica, através da CELESC (Central Elétrica de Santa Catarina). Essa campanha tem sido feita de casa em casa, muitas vezes oportunizando esse contato direto com quem precisa do tratamento. 33 Informações sobre Rogério (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no anexo I, p. 17. 32 tipos de substâncias. Iniciou motivado pela “curiosidade, eu queria me enturmar com a rapaziada né, queria ver qual o lance da droga e deu nisso”. Através de uma amiga de sua ex-mulher “Deus colocou o CERENE no meu caminho, e eu estou lutando até hoje e sei que Deus vai me livrar dessa doença”34. Ao perguntarmos: Como você avalia as atividades feitas aqui no CERENE? As respostas foram unânimes em afirmar a importância destas. Ivo destaca que elas ajudam a desenvolver responsabilidade quanto a horários, adaptação a um ciclo de responsabilidade, ocupar o tempo e assim lidar com a ansiedade; elas geram crescimento e perseverança, levam a “acreditar que aquilo pode mudar e pra mim tá dando certo”35. Para Gerson, a mente ocupada evita dar margem “aos pensamentos destrutivos” como depressão, ansiedade, que proporcionam “a vontade de ir embora, de abandonar o tratamento, de talvez sair e resolver as coisas de sua própria maneira (...) o que é feito aqui dentro eu acho muito importante”36. Para Osmar, as atividades ajudam a esquecer um pouco os problemas lá de fora, as atividades são boas, porém, dependendo do local em que são realizadas, podem se tornar estressantes37. Rogério destaca que as atividades que realiza é para si próprio, que é bom para ele38. Romeu avalia: “tu trabalha, tu ocupa sua cabeça, ocupa mente, ocupa corpo, muito bom, para mim são muito boas as atividades em geral”39. Egon não vê dificuldades em realizar as atividades e vê a intencionalidade das mesmas “são pessoas que acolhem a gente, que amam a gente, se dão trabalho pesado é pra ajudar, se dão um trabalho leve é para ajudar, então os cultos também (...) a programação da casa é boa”40. É a equipe terapêutica que ajuda a viver o programa terapêutico. Falamos em “viver”, por causa da ênfase no (re)aprender um novo perfil de vida. O programa terapêutico não é feito para ser seguido, e, sim, vivido, pois deverá seguir por toda a vida. 34 Informações sobre Ivo (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no anexo I, p. 08-10. 35 Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 10. 36 Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 7. 37 Conforme trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 15. 38 Conforme trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 18. 39 Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 21. 40 Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 04. As falas em relação à espiritualidade e respectivos programas serão citadas adiante sobre a temática da espiritualidade no tratamento. 33 Perguntamos também a cinco membros da equipe terapêutica da unidade a opinião sobre o programa terapêutico do CERENE: Luis, 43 anos, formado em arquitetura e urbanismo pela UFSC, está trabalhando no CERENE desde 2001, reside no CERENE com sua esposa e duas filhas. Sua esposa é professora do curso de Supletivo em parceria com o SEJA. Já desde o início da unidade, em 1996, fez parte do comitê de voluntários que ajudavam a administrar a mesma. Ajudava com palestras e conversas informais, sendo convidado e desafiado a integrar a equipe em tempo integral como terapeuta pastoral. Sua longa resposta destaca a abrangência do programa que vê a integralidade do ser humano: Eu penso que é um programa bem abrangente, que entende realmente a necessidade de tratar o ser humano na sua totalidade, nas suas necessidades físicas, emocionais, espirituais, sociais, como um ser que precisa de vínculos familiares e a realidade de mercado, profissão, essas coisas todas. Destaca também a visão cristã: A gente tem, (...) palestras psicoeducativas e especialmente com enfoque, com uma visão cristã da vida e de recuperação a partir da graça de Deus, que oferece perdão, oferece uma nova esperança, oferece a libertação de vícios e pecados e capacita também a restauração de vínculos com a família e restauração também do bem-estar pessoal, enfim, uma reformulação de todos os níveis de relacionamento que o ser humano tem, com Deus, consigo mesmo e com o próximo (...) A importância da laborterapia: A laborterapia, que é um diferencial nesse modelo de comunidade terapêutica em relação a outras abordagens de tratamento (...) onde o residente pode perceber que ele é útil à sociedade, que ele pode produzir, o que via de regra não tava acontecendo antes de ele buscar o tratamento, então ali a gente pode conhecer quem ele verdadeiramente é, as dificuldades de relacionamento que ele tem, as dificuldades de problemas de caráter, as dificuldades de enfrentar desafios novos, lidar com frustrações, o tipo de conversas que ele aborda, e isso tudo é material terapêutico para ser trabalhado depois, em outros momentos, ou mesmo ali. O acompanhamento individual: Também damos ênfase ao acompanhamento individual, no qual um terapeuta vai acompanhá-lo desde o início do tratamento até o final, conhecendo a sua história de 34 vida, a sua situação familiar, a sua história da drogadição e da busca pela recuperação e ali, no aconselhamento, então se trava um vínculo mais íntimo entre terapeuta e aconselhado e isso eu vejo que é muito importante no processo de reestruturação da vida, a pessoa se sente valorizada, amada, respeitada, (...) é ouvida com carinho e mais do que informações, ali então recebe esse tratamento humano que eu acho que faz um grande diferencial para a recuperação. O lazer: Somado a todas essas atividades, também incluímos o momento de lazer né, o momento da educação física, do esporte, tem o horário livre né, é importante a gente observar como o residente aproveita o horário livre, também para organizar as suas coisas pessoais, para estabelecer amizades novas, e buscar opções saudáveis de lazer né.41 Ricardo, 30 anos, formado em Psicologia pela UFSC, reside e trabalha no CERENE há sete meses, seu filho de quatro anos passa fins de semana com ele na unidade, sentiu-se motivado por essa área de atuação pelo fato de já ter sido usuário de maconha. Percebeu que muitos em sua igreja já tinham sido usuários. Sentindo a necessidade de aprender na práxis e contribuir com sua formação, aceitou o desafio de auxiliar junto ao CERENE. Seu objetivo é um dia organizar um ministério específico de acolhimento a DSPA’s em sua igreja. Sua resposta chama a atenção sobre o aspecto da convivência: Olha, além das palestras dos grupos de sentimento, relacionamentos humanos né, acho que funciona quase que como que uma terapia em grupo mesmo, e dos aconselhamentos individuais, eu acho que o grande, o grande elemento que muda mesmo a vida das pessoas, ali onde elas podem praticar a fé cristã que é ensinada e as competências que são ensinadas, nas palestras, nos aconselhamentos, é a convivência, essa convivência intensa entre eles né, convivência de ficar o dia inteiro, de dormir junto, trabalhar, comer e essa convivência então ali no meio, de resolver os conflitos com a ajuda dos terapeutas, ali sim eles podem praticar as mudanças e levar essa mudança mais pra frente na vida deles.42 Reni, 39 anos, formado em Teologia pela FLT (Faculdade Luterana de Teologia, antigo CETEOL, em São Bento do Sul, SC), há dez meses reside e trabalha no CERENE, junto com sua esposa e filho. Sua esposa trabalha na secretaria da unidade. Quando atuou como obreiro em comunidade, deparou-se com situações de alcoolismo crônico, vendo a necessidade de ajudá-los. 41 42 Trechos da entrevista concedida por Luis Carlos Kuchenbecker, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p.55-56. Trecho da entrevista concedida por Ricardo Liberato Macedo dos Santos, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 53. 35 Respondeu positivamente ao convite de integrar esta equipe. Afirma que é pouco o seu tempo de atuação nesta área, porém: (...) é um bom programa terapêutico (...) ele não é perfeito e tem muitas coisas a serem ajustadas e melhoradas, no decorrer dos anos, mas se a pessoa se dispõe a cumprir e viver aquilo que é ensinado e é passado às pessoas que residem aqui no tratamento eles têm, e muitos já conseguiram com essas ferramentas sair dessa dependência química, para viver uma vida sóbria.43 Viktor, 30 anos, há 11 meses mora no CERENE, juntamente com sua esposa. Veio da Alemanha e é formado na área de laborterapia. Foi motivado a trabalhar na recuperação de DSPA’s a partir de uma prestação de serviço civil, aqui no Brasil (na unidade do CERENE de Palhoça) em 1997/9844. Gostou e voltou! Inclusive, ao voltar para a Alemanha, foi determinado a se formar nessa área, para melhor auxiliar. Juntamente com mais dois obreiros, coordena a laborterapia. Destaca a importância de fortalecer a comunicação entre a área laborterapêutica e aconselhamento para que o residente tenha um feedback mais realista: (...) é porque a visão do CERENE (...) é que a laborterapia é bem importante, mas isso poderia ainda ser aprofundado né, trazer mais informações da laborterapia para ajudar mais pessoas né (...) no aconselhamento, também dá para uma reflexão para a pessoa mesmo, como acontece junto com o conselheiro (...) porque muitas vezes perde muitas informações sobre a pessoa e a pessoa também não recebe essas informações né, já aconteceu, por exemplo, a pessoa falou ‘não, mas ninguém falou, eu não sabia’, porque às vezes a pessoa não percebe que tem dificuldade com os horários, sempre vem cinco minutos atrasado, ou vai [sai] antes, só cinco minutos, e ninguém falou nada e pra ela é normal e através disso também falar, a pessoa pode tratar esse lado se tem dificuldades.45 Edenilson, 38 anos, está estudando num curso de gestão de empresas e serviço, está no CERENE há aproximadamente 8 anos, reside na unidade com sua esposa e três filhas. Sua esposa atua na secretaria. É o diretor da unidade. Ao ser perguntado pela sua motivação, relata do seu tratamento, há 10 anos, no CERENE unidade de Blumenau. Após sua internação, tornou-se uma referência que despertou o interesse em outros, encaminhando-os para a internação. Daí veio o 43 Trecho da entrevista concedida por Reni Schmith, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 58-59. O jovem, na Alemanha, tem a opção de prestar serviço social no lugar de serviço militar e, quando feito em outro país, deve servir o dobro do tempo, cerca de 18 meses. 45 Trecho da entrevista concedida por Viktor Berglissof, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 50. 44 36 desejo de atuar de tempo integral dentro de uma unidade. Como diretor, considera-se suspeito para esta reposta, porém vê: (...) o programa do CERENE como um programa que ele é eficaz, na essência, ele trata de aspectos que são pertinentes assim pra a vida de qualquer pessoa, principalmente o aspecto espiritual, o aspecto do relacionamento do homem com Deus e também as questões psicológicas e emocionais que envolvem a questão toda de um tratamento de uma pessoa que tem problemas de distúrbio com dependência (...) o envolvimento da pessoa com atividades dentro da casa, laborterapia, os programas que são feitos a nível de espiritualidade, e também o envolvimento não só com o trabalho em si, mas o envolvimento com outras pessoas, esse envolvimento com a equipe, é uma questão que eu vejo que é muito importante (...) eu vejo que o CERENE como instituição falta muito pouco para alcançar assim... melhores objetivos na situação do tratamento da dependência química.46 Assim, é possível ter uma noção geral da programação de uma unidade do CERENE. O resultado positivo destas atividades depende, em certa medida, da conscientização que o residente tem da necessidade de mudar o perfil de vida. Ao CERENE – através da equipe terapêutica – compete motivar constantemente para que essas mudanças ocorram. A avaliação positiva expressa, na fala dos residentes, talvez seja reflexo das convicções da equipe terapêutica em incentivar e aprimorar o programa continuadamente. Essa simulação de uma “micro-sociedade”, que (re)ensina a viver em abstinência e sobriedade através de programações e treinos, é vista com uma certa empolgação positiva pelos residentes e pela equipe terapêutica. Criam-se sonhos e expectativas. Tomam-se propósitos. A partir do que é oferecido e feito, poder-se-ia constatar que o problema da DSPA está resolvido. Se assim fosse, a implantação de CT's resolveria a problemática. Com alguns meses de internação a vida voltaria ao normal. As constantes recaídas trazem um alerta significativo: não é tão simples como gostaríamos que fosse. O tratamento deve continuar. Para situarmos a continuidade do tratamento, queremos entender o processo de recuperação. Para isso, as etapas de um tratamento, apresentadas por Fischer (apud De Leon), são significativas. 46 Trecho da entrevista concedida por Edenilson João de Boris, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 46-47. 37 1.3 - As etapas de um tratamento A partir de De Leon, Fischer sintetiza as etapas de um tratamento, dividindo-as em prétratamento e tratamento. Do primeiro bloco, fazem parte a Negação, a Ambivalência, a Motivação extrínseca, a Motivação intrínseca, a Prontidão para mudanças e a Prontidão para o tratamento. Do segundo bloco, fazem parte a Desintoxicação, a Abstinência, a Continuidade e a Mudança de Identidade e Integridade. Essas fases se desenvolvem de forma bastante particular, sendo assim, o tempo de cada uma varia de indivíduo para indivíduo. A fase de negação parece ser a mais longa, por causa da negação da problemática, pelo indivíduo, apesar das evidências serem claras (especialmente em alcoolistas)47. A mentira “nessa etapa passa a ser o ‘pecado’ predileto, ela é a principal arma de defesa e é aperfeiçoada de forma assombrosamente rápida. Tanto para negar que usa alguma SPA como para negar que o seu consumo é problema para si e/ou para os outros”48. A fase da ambivalência mostra-se pela evidência de algum reconhecimento do problema, especialmente em horas críticas (ressaca), porém retrocede quando a situação melhora. O “reconhecimento categórico do problema somente ocorre a partir do momento em que a gangorra dos benefícios versus custos estiver contra o consumo da substância”49. A fase da Motivação extrínseca traz algum reconhecimento, porém coloca a culpa em fatores externos. Muitos chegam à internação quando estão colhendo as conseqüências dessa fase. Essa precária motivação se caracteriza essencialmente pelo fato de o residente não estar no tratamento por vontade própria, muitas vezes expressa verbalmente com “(alguém) me internou”. Quando ocorre uma internação nessa fase é necessário que os terapeutas conduzam a motivação para a fase seguinte. 47 Fase essa também vivida, muitas vezes, pelos co-dependentes, como veremos adiante. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 96. 49 Id., Ibid., p. 100. 48 38 A fase da Motivação Intrínseca é marcada pela “aceitação do uso de drogas e seus problemas associados, e um desejo expressado de mudança baseado em razões internas positivas e negativas”50. Positivas se refletem em termos de auto-eficácia: possibilidades e desejos por um estilo novo de vida, alcançar coisas boas, vontade de crescer pessoalmente e melhorar os relacionamentos familiares e sociais. Negativas se refletem em termos de auto-reprovação: desejo de eliminar sentimentos de culpa, ódio próprio e desespero pessoal. Isso, devido às suas feridas e fracassos, que podem estar relacionados com outros e/ou consigo mesmo. A fase da Prontidão para mudanças é a ação pró-ativa. É caracterizada por tentativas menores para alcançar a abstinência, entre elas, as mudanças (geográfica, religião, emprego, relacionamentos) e curtas inserções em internações/tratamentos. Nessa fase, ainda não aceita o tratamento como sendo necessário51. A fase da Prontidão para o tratamento vê neste a única opção. Reconhece a necessidade de mudança e que sozinho não consegue parar. Ainda assim é possível a busca por um certo alívio e não pelo tratamento propriamente dito. Por isso, De Leon sugere que se faça um certo teste na entrevista preparatória, mostrando as dificuldades que o candidato à internação irá passar, para sentir a sua disposição. A motivação para a internação influencia significativamente o envolvimento no programa. A motivação extrínseca e a intrínseca têm um grau de subjetividade. Por isso, a sensibilidade do terapeuta será fundamental. Perguntamos aos residentes entrevistados: O que fez você reconhecer que precisava de ajuda? Osmar lembra e detalha o enredo de sua primeira internação, aos 19 anos de idade, causado por falsificação de documento e a chance que o delegado deu em fazer uma internação 50 Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 103. Fischer, através de uma tabela adaptada de Miller e Rollnick, aponta os sinais da prontidão para a mudança: 1. Menos resistência, 2. Menos perguntas sobre o problema, 3. Resolução, 4. Afirmações automotivacionais, 5. Mais perguntas sobre a mudança, 6. Prefiguração, 7. Experimentação. Cf. Id., Ibid., p. 105. 51 39 ao invés de ser preso. Sua motivação era extrínseca. Sua vida seguiu esse ritmo de tentativas. Atualmente, parece ser intrínseca, concluí: “Olha eu pintei e bordei”52. Gerson reflete a passagem da fase de “prontidão para mudanças” para a fase de “prontidão para o tratamento”, por constatar que não conseguia parar sozinho: O que fez reconhecer foi que eu não conseguia parar sozinho, eu já tinha tentado muitas vezes sozinho e eu não consegui, então eu vi que eu sozinho era muito fraco, eu era impotente para conseguir uma vitória sozinho então eu tive que buscar essa ajuda e eu achei que nessa internação (...) fosse uma maneira mais fácil de eu conseguir. A correta, no caso, de conseguir essa abstinência53. Egon é taxativo: 28 anos, alguns cabelos brancos, já, uma cicatriz na testa, é, um futuro incerto, uma mulher grávida de três meses, que posteriormente depois perdeu a criança, então tudo isso me fez pensar e chegar aqui no CERENE.54 Romeu destaca seu estado precário de um uso muito intenso da substância, o que o levou a pedir ajuda55. Rogério sentia que estava perdendo a família: Que uma noite que eu tava fumando crack, tava tomando cachaça já né, pura, e quando eu fui dormir, eu sonhei com dois anjos né, na realidade não era dois anjos, eu vi dois anjos, mas só que na hora que eles viraram eram meus dois filhos, me pediam para parar né. Então eu vim mais por causa disso. Minha mulher também, um dia antes desse sonho eu briguei com ela né, quase que a gente se separou porque ela disse que eu nunca mais ia ter uma vitória na vida né, então eu comecei a pensar isso, então meu tio foi internado também, aí eu telefonei para ele né, e aí juntei meu tio, minha mãe, minha esposa, conversei com os três junto né, então ele que me ajudou a fazer essa internação aí.56 Ivo, além da família e dos bens materiais, percebe que estava perdendo a vida: Olha, perdi muita coisa né, já não era uma pessoa feliz, tava totalmente escravo da droga né, eu tava vivendo pra droga, eu tinha uma família bonita, tenho uma filha linda uma, (...) minha ex-mulher também é uma pessoa muito bacana assim, (...) eu 52 Informações e trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 14. Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 6. 54 Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 3. 55 Informação na entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 20. 56 Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 18. 53 40 tava perdendo respeito, meu caráter mesmo já, eu era uma pessoa que nem me conhecia mais, sabe? Mentia muito, não era vida aquilo, entendeu? A partir do momento que eu comecei a perder muitas coisas, a vender as coisas de dentro de casa, a ‘faltá’ coisa mesmo né, em termos de comida, dinheiro, eu vi que eu tava precisando de ajuda porque eu não conseguia parar, eu queria parar, mas eu não tava conseguindo, entendeu? (...) tava jogando minha vida dentro de uma lata de lixo, ou seja, dentro de um cachimbo, dentro de um canudo, não tava mais vivendo, tava totalmente escravo da droga.57 O impulso para pedir e efetuar a internação, refletida fortemente nas falas citadas, normalmente parte de uma situação caótica, insustentável58. Daí a necessidade de articular uma motivação correta para o tratamento. Dos conseqüentes sentimentos surgidos das reais situações de perda, a conscientização deve voltar-se para o real valor da vida e desenvolver a (re)descoberta do valor próprio de cada um, resgatando a auto-estima. Se a motivação para o tratamento se limitar ao medo da perda (pessoas, saúde, bens) será mais difícil lidar com as futuras frustrações. Se durante o tratamento o residente crescer em auto-estima, valorizando a si próprio, e aprender a olhar para o outro como um igual, aumentará a probabilidade de lidar satisfatoriamente com as decepções/frustrações59. A fase da Desintoxicação corresponde, basicamente, à primeira fase da internação do programa do CERENE60. É no decorrer dessa fase que a motivação verdadeira virá à tona. Ela é marcada pela síndrome de abstinência da SPA, provocadora de uma forte ansiedade61, pelo processo de adaptação às instalações e ao convívio com o grupo, pela saudade dos familiares62 e, 57 Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 10. Isso também ficou evidente numa entrevista piloto que fizemos em 2004, na CT “Pra-Vida”, localizada na cidade de Nova Petrópolis, RS, com seis residentes. A situação caótica em que se encontravam foi o fator motivador para que buscassem ou aceitassem ajuda. 59 O co-obreiro costumava brincar com o grupo de residentes dizendo: “Por favor, não ouçam o segundo mandamento de Jesus. Não me amem do jeito que vocês se amam. Vão aprender a se amar primeiro para depois seguir o mandamento de Jesus: amarás o teu próximo como a ti mesmo”. 60 Em casos mais crônicos, pede-se uma desintoxicação hospitalar como pré-requisito de internação. 58 41 depois da desintoxicação primária, a sensação de estar bem e pensar que não necessita mais da internação, refletida na conhecida crise do “já tô bom”63, muitas vezes leva à desistência da internação. A fase da abstinência lida com a direta e imediata ameaça de sustentar a abstinência. Faz parte dessa fase reconhecer os “avisos externos”, quando ameaçado para uma provável recaída e um auto-exame dos contribuintes psicológicos e internos, reorganizando o plano de vida bem como a conexão a uma rede social que visa viver livre do uso da SPA. Todo o programa da “Prevenção da Recaída” (Marllat e Gordon, 1993) enfatiza especialmente esses aspectos. No programa do CERENE, o início dessa fase coincide geralmente com o início da desintoxicação, porém, acentua-se na segunda fase da internação, tendo um foco significativo no final do internamento, sendo uma necessidade de atenção especial para depois da internação. A fase da Continuidade é caracterizada por uma determinação pessoal de adquirir e manter o comportamento, atitudes e valores com o estilo de vida na sobriedade. A ênfase recai mais sobre o gerenciamento da vida, assumindo um modelo de conduta preventivo que identifica circunstâncias e situações que podem levar a uma recaída. Estas podem ser internas (afetivas e cognitivas) e/ou externas (estresse, oferta da substância). Esse novo gerenciamento da vida estabelece os objetivos sociais, melhorando as circunstâncias da vida, trabalho, relacionamentos (compostos por pessoas que dão suporte ao processo de recuperação), saúde, obrigações e 61 Podendo inclusive ter manifestações físicas como o Delirium-tremens. O acompanhamento médico tem amenizado situações dramáticas de abstinência, devido à intervenção medicamentosa nos primeiros dias de internação. No início da história do CERENE, e de tantas outras CT’s, a necessidade desse acompanhamento foi uma descoberta gradativa, como bem expressa, em sua fala, Hans George Fischer, um dos pioneiros dessa obra: “Na época nós tínhamos poucos conhecimentos médicos. Uma vez um dos nossos pacientes, (...nome), queria desesperadamente “salvar” a sogra dele que estava se afogando na Lagoa que tinha no CERENE. As tentativas de detê-lo eram em vão, o Alair levou ele para o médico, o Dr. Strasburger em Vila Itoupava. Num primeiro momento o médico testou quem dos dois era o doente (risos) porque no consultório o (...nome) falava novamente normal. Mas não tardou e o médico identificou a doença e receitou remédio apropriado. Assim, aprendemos passo a passo”. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 49. 62 O afastamento familiar temporário pode provocar uma certa estranheza, inclusive para a família. Em virtude da síndrome de abstinência e sua conseqüente ansiedade, bem como a falsa sensação de bem-estar, seguidas de promessas momentâneas, é muito difícil o residente receber uma visita nos primeiros dias e despedir-se sem que esses aspectos se agravem. Ou seja, o sofrimento causado por uma visita, nos primeiros dias, é maior do que o não recebimento dela. Para alguns, esse tempo poderia ser menor do que para outros, porém a padronização do tempo sem visitas (30 dias) é uma necessidade da organização do convívio interno (a questão dos direitos e deveres) e a dificuldade de estipular um período individual sem o risco de erros. A saudade em si não é um sentimento negativo para o tratamento, pelo contrário, mostra a importância dos familiares. 63 Expressão conhecida e usada ironicamente pelos residentes quando algum colega está desistindo da internação. 42 responsabilidades. A SPA já não é mais vista como uma opção para lidar com os problemas e sim como fator causador de mais problemas64. A fase da Mudança de Identidade e Integridade é a etapa em que “a sobriedade está internalizada, isto é, o indivíduo não mais se preocupa conscientemente em manter a sobriedade, mas aceita o fato como sendo pré-requisito da nova opção de viver pela qual se decidiu”65. A participação em um grupo de auto-ajuda é fundamental no pós-internamento, fortalecendo a internalização da sobriedade e a possibilidade de ajudar outros, cumprindo assim o 12º passo do A.A.66. Fischer reafirma um comentário de Häegerbäumer (ex-secretário da Cruz Azul na Alemanha) que, dos ex-residentes de CT's que após o internamento freqüentam regularmente um grupo de auto-ajuda, estima-se que 80% permanecem abstinentes. Já dos ex-residentes que não optam por nenhum grupo, somente 20% evitam uma recaída. Isso mostra e fundamenta a necessidade de um acompanhamento significativo pós-internamento. Todo esforço – investimentos, equipe – corre o risco de ser pouco eficaz se for caracterizada uma ruptura entre o internamento e o pós-internamento, no sentido de acompanhar o indivíduo67. Hunter68, através do seu protagonista Simeão, diz que a aprendizagem de novas habilidades acontece através de quatro estágios: a) Estágio um: Inconsciente e sem habilidade. b) Estágio dois: Consciente e sem habilidade. c) Estágio três: Consciente e habilidoso. 64 Fischer discute o tempo da internação colocando duas posição correntes entre as CT’s. As que adotam um tempo reduzido (inferior a três meses) alegam que “a maçã que fica demais tempo no pé apodrece”, em contrapartida, os que defendem um tempo mais longo (acima de doze meses) alegam que “a maçã colhida muito cedo não serve”. Cf. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p.116-7. Essa analogia com um único tipo de fruta tem seu ponto fraco na padronização dos indivíduos. O tempo vai depender da realidade de cada um. O CERENE adota 180 dias como básicos para todos, sendo que a continuidade posterior vai variar de caso para caso. O co-obreiro costumava dizer que ‘nem todo o que passa seis meses no CERENE, de fato quer mudar de vida. Mas todo o que quer mudar de vida, notará que precisa de tempo para isso’. 65 Id.,Ibid., p. 118. 66 “Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar esses princípios em todas as nossas atividades” (grifo nosso). Mary Y. NILSEN, Um tempo para a paz, p.7. 67 68 Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 118. Cf. James C. HUNTER, O Monge e o Executivo ..., p. 123-125. 43 d) Estágio quatro: Inconsciente e habilidoso. As fases do tratamento harmonizam-se com estes estágios: do primeiro, inconsciente da problemática, portanto sem atitude concreta para mudanças, fazem parte a Negação e a Ambivalência; do segundo, consciente da problemática, porém ainda sem habilidade para a mudança, fazem parte a Motivação extrínseca, a Motivação intrínseca, a Prontidão para mudanças e a Prontidão para o tratamento; do terceiro, consciente da problemática e já com uma certa habilidade, fazem parte a Desintoxicação e a Abstinência; do quarto, caracterizado pelo enraizamento da habilidade, fazem parte a Continuidade e a Mudança de Identidade e Integridade. “É o estágio final para o alcoólico e o fumante, quando estão praticamente esquecidos do seu hábito compulsório”69. Usando uma analogia com o futebol, constatamos que a fase da Continuidade e a fase da Mudança de Identidade e Integridade fazem o “meio de campo” entre a internação e a pósinternação, iniciam fortemente durante a primeira e devem continuar na segunda. A inexistência destas últimas fases na pós-internação é o que explica a grande maioria das recaídas. Ou seja, é possível que o DSPA obtenha a alta da sua internação apenas por cumprimento do calendário pré-estipulado, sem que tenha alcançado, intrinsecamente, estas fases. O todo da internação pode ter sido determinado pela obtenção forçada da abstinência, em virtude das diversas circunstâncias que levaram a esta, sem que uma convicção interior, pró-ativa, tenha sido tomada. Constatamos assim que o período de internação é fundamental para aquilo que virá depois. É nesse período que se define a posição interna do residente. Pela estrutura do programa terapêutico do CERENE, unidade de Palhoça, percebe-se que vários elementos somam para isso. Programações de grupo (estudo, terapia), acompanhamento individualizado, ambiente familiar, local agradável etc, somam e não subtraem para esse aprendizado. 69 James C. HUNTER, O Monge e o Executivo ..., p. 124. 44 Talvez o ponto sensível que deva ser sublinhado é a criação de uma certa “idealização” da macro-sociedade. Esta não muda enquanto o residente está no tratamento. É o indivíduo que precisa de mudanças para a sua ação e reação frente às intempéries sociais. Apesar de o programa prever as “idas e vindas” no final da internação, parece-nos que esse preparo ainda é limitado, ou que a ruptura no pós-internamento seja altamente seqüestradora dos propósitos obtidos durante a internação. Após contemplar este primeiro público alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade e perceber a complexidade do processo de tratamento, bem como da necessidade de sua continuidade, queremos na seqüência considerar o público coadjuvante deste primeiro, os codependentes. A macro-sociedade não muda. Porém, perguntamos pela micro-sociedade, a família do DSPA. O que é necessário fazer para que esta se reestruture? 1.4 - Co-dependência 1.4.1 - Questões introdutórias Quem se propõe a perscrutar o assunto da DSPA, seja pela ênfase preventiva, seja pela de tratamento ou pela de reinserção social, depara-se com o assunto da co-dependência. A co-dependência é tão sintomática quanto a DSPA o é de uma família disfuncional. Precisa de tratamento! Um tratamento de DSPA que ignora o tratamento da co-dependência poderá estar fadado a índices menores de recuperação. Queremos, num primeiro momento, trazer à tona a problemática da co-dependência, sua definição e questões da sua etiologia. Na família de origem do DSPA e/ou do co-dependente, que reflete fortemente a ausência paterna e a simbiose materna, os papéis se invertem, as crianças se tornam adultas e os adultos agem como crianças, tirando a possibilidade de escolha satisfatória para a vida adulta. 45 Na seqüência, as fases70 da co-dependência refletirão o conflito existente, o sofrimento e a angústia que passam aqueles e aquelas que convivem diariamente com um DSPA. Conhecer essas fases é fundamental para uma proposta terapêutica. 1.4.2 - “Soltando as pontas” Pensando em toda a problemática da DSPA, apresentamos a seguinte ‘leitura’ da gravura que segue: Fig. 1 a) O problema se encontra no fato de a corda estar arrebentada. 70 A sistematização das fases do sofrimento tem, em seus primórdios, a publicação do livro On Death and Dying, de Elisabeth Kubler-Ross, que trata a questão do luto (cf. Gary R. Collins, O Aconselhamento Cristão, p. 342). A categoria da psicologia que transparece nos autores pesquisados é a psicoterapia, que enfatiza a possibilidade de desaprender hábitos neuróticos e aprender hábitos não-neuróticos (cf. Calvin S. Hall, Gardner Lindzey, John B. Campbell, Teorias da Personalidade, p. 443, citando Dollard e Miller). 46 b) Alguém pesado, “folgado”, que está diretamente envolvido no problema, não está preocupado com a situação. Está “curtindo”71 o balanço. Provavelmente por ignorar o que está acontecendo. c) Outro alguém, menor, mais fraco, está segurando “as pontas” e está olhando para a direção oposta do maior, com o olhar fixo no problema. Para a situação de DSPA na família, quando o indivíduo não admite a sua DSPA, aplicamos essa leitura da seguinte maneira: o problema está aí, a corda arrebentou, a DSPA está instalada na família (talvez como sintoma de um problema maior), o DSPA está sentado no balanço e os familiares estão “segurando as pontas”. Mais tardar, quando a família não agüentar mais a situação, o indivíduo vai se “esborrachar no chão”, sentirá as conseqüências e, provavelmente, procurará ajuda. A experiência tem demonstrado que os que procuram ajuda são os que estão assustados com as conseqüências da inconseqüência do uso e abuso de SPA’s. Isso também ficou evidente na fala dos DSPA’s entrevistados, conforme vimos acima, a respeito da fase da “Prontidão para o Tratamento”, que é marcada fortemente pelas conseqüências do abuso da SPA. Diante da assertiva de que o DSPA reconhece sua dependência geralmente frente ao reconhecimento das respectivas conseqüências, a recomendação, então, seria de a família soltar a corda, permitindo que as conseqüências naturais do uso e abuso das SPA’s fiquem em evidência, para que possa haver uma busca efetiva pela recuperação. Antes de soltar a corda, deve-se olhar para o DSPA e alertá-lo do que está acontecendo. Esse, se reconhecer o problema, poderá saltar fora do balanço, o que acarretará em menos prejuízo para si e para seus familiares. Assim terá a chance de aprender pelo amor e não somente pela dor. Essa recomendação encontrará respaldo nas articulações do Amor Exigente, especialmente no 12º princípio, que reza: “O amor com respeito, sem egoísmo, sem comodismo, deve ser também um amor que exige, orienta e educa”72. 71 72 ‘Folgado’ e ‘curtindo’ são gírias comuns entre os DSPA’s que significa obter vantagens de uma situação. Mara Silvia C. de MENEZES, O que é o Amor-Exigente?, p. 217. 47 Na pesquisa sobre co-dependência, surgiu-nos uma questão relacionada com a leitura feita acima: por que a família segura as pontas? Por que parecem gostar de segurar a situação do dependente? Ou, como formula Ferreira (2000): Permanecem, desta forma as perguntas, sobre o que teria influência nas “escolhas” tão impróprias dos codependentes e como conseguem conviver com as severas disfunções que envolvem a vida do dependente de substâncias como a vergonha, as privações, as críticas constantes, e tantos outros abusos.73 Forward enfatiza: Por sua aceitação, os co-dependentes dão a entender que sempre estarão por perto para lidar com os danos do comportamento destrutivo de seus parceiros. Mesmo que se chateiem, lamentem, implorem, reclamem, ameacem e dêem ultimatos, raramente tomam uma posição dura para forçar qualquer mudança significativa [grifo nosso].74 1.4.3 - Definindo a co-dependência Para uma definição do que é e/ou o que significa a co-dependência, partiremos da que Ferreira (2000) faz de coadição, citando de Kaplan, Sadock e Grebb: A coadição ocorreria quando mais de uma pessoa, geralmente um casal tem um relacionamento primariamente responsável pela manutenção do comportamento adictivo que ajuda a perpetuar a situação, e a negação da situação é um pré-requisito para o desenvolvimento desse relacionamento diático [grifo nosso].75 O grupo familiar passa a criar um sistema adaptativo que parece oferecer condições para que o DSPA continue como tal. O grupo familiar absorve o impacto dos abusos cometidos pelo DSPA e parece depender deste relacionamento disfuncional. Ou, nas palavras do Sanda (2001), médico oftalmologista, pai de um DSPA, fundador do GAP (Grupo de Apoio aos Pais), em São Paulo: 73 Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 21. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 98. 75 Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 15. 74 48 Co-dependência é um quadro caracterizado por um distúrbio mental acompanhado de ansiedade, angústia e uma compulssividade obsessiva em relação a tudo o que envolve a vida do dependente. O co-dependente deixa de viver sua própria vida e passa a viver na dependência dos acontecimentos que ocorrem na vida do dependente químico (...). Nos enganamos com manobras de “facilitação”, minimizando, controlando, protegendo, assumindo responsabilidades e compactuando com nosso filho (...) É muito difícil, saber quando ajudar e quando deixar de ajudar (...) Nos tornamos escravos do dependente, tudo o que ele faz de errado nos afeta e seus efeitos são potencializados em nós. Estamos constantemente ansiosos e angustiados, com sentimentos de culpa e de raiva. Somos aqueles que sofrem juntamente com o dependente, mas não temos o prazer efêmero da droga. Enquanto o dependente é viciado na “droga”, o co-dependente é viciado nos problemas do dependente [grifo nosso].76 Forward expande o conceito de co-dependência para além da família dos DSPA’s: Originalmente, o termo co-dependente era usado para descrever o parceiro de um alcoólatra ou de um viciado em drogas, com o mesmo sentido de facilitador – alguém que não tinha controle sobre a sua própria vida porque tomava sobre si a responsabilidade de “salvar” uma pessoa dependente de drogas químicas. Mas hoje em dia, a definição de co-dependência expandiu-se e inclui todos aqueles que se tornam vítimas no processo de libertar e ser responsável por qualquer pessoa compulsiva, viciada, agressiva ou excessivamente dependente.77 1.4.4 - Ausência paterna e simbiose materna: comum da DSPA e da co-dependência Uma vez definida a co-dependência, perguntamos pela origem desta, de onde vem a predisposição para ser o “facilitador” e “salvador”, sem, contudo, conseguir de fato “salvar” o DSPA a partir dessa postura de vida. É característica comum na maioria das famílias dos DSPA’s e dos co-dependentes a existência da ausência paterna (separação matrimonial, morte ou presença “fraca”) e conseqüentemente um apego exagerado (simbiose) à figura materna. A ausência da figura paterna pode desembocar numa simbiose materna. Por outro lado, a simbiose materna pode ser a promotora do enfraquecimento da figura paterna ou provocadora da inexistência da mesma. 76 77 Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 246. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 46. 49 A fragilidade da origem do ser humano e do seu desenvolvimento aponta para a necessidade de cuidadores, conforme afirma Walz, A existência do ser humano inicia sob a marca do desamparo. A sua constituição é frágil, limitada. Marcada pelo tempo, constrói-se ao longo dos anos sob a dinâmica das perdas e ganhos, tanto os afetivos e emocionais como os concretos. Lidar satisfatoriamente com essa dinâmica constitui um critério importante para a saúde mental e, simultaneamente, um elemento essencial para que possamos lidar melhor com os nossos medos. Poder lidar quer dizer: não ficar demasiadamente preso às perdas nem viver ilusoriamente dos ganhos, ou seja, que o sujeito possa sentir e elaborar psiquicamente, por meio de palavras e ações verdadeiras, esse processo constituinte e constante da vida de cada ser humano.78 Quando isso não acontece, teremos a chamada “família disfuncional” que poderá ser geradora de DSPA’s e/ou co-dependentes. Kalina e Kovadlof (1976), falando sobre a família de origem do DSPA, referem-se a dois tipos de famílias: as simbióticas e as cismáticas. Os integrantes do sistema simbiótico estão agrupados uns na vida dos outros, agem sem discriminação de limites entre homens e mulheres, adultos e crianças, jovens e velhos, mundo externo e mundo interno, fantasia e realidade. Levar a família a tratar e tomar consciência dessa “doença grupal”, se possível antes da internação do DSPA, deve ser o esforço do (psico)terapeuta. No sistema cismático, os membros estão separados e nenhum deles pode se relacionar bem com o grupo todo. “Dispersos sobrevivemos; juntos nos aniquilamos”, parece ser o preceito desse sistema. Uma das constantes desse sistema, independente da classe social, ...é a ausência de um pai forte que cumpra o seu papel específico com decisão e firmeza (...) e as observações que fizemos a partir da abordagem clínica dessas famílias: a) ausência de um pai com autoridade que proponha (e mantenha) valores precisos e consistentes; b) regras do jogo peculiares, em famílias que aparentam não contar com elas e; c) sérias perturbações no emprego dos símbolos.79 Esses autores chamam a atenção para o fato de existir por trás de um DSPA (toxicômano) uma família que tem alguma conduta drogaditiva manifesta ou latente. Pela dupla-mensagem do “Faça o que eu digo, mas não o que eu faço” (no caso do pai que bebe, fuma, ingere sedativos e 78 Julio WALZ, Aprendendo a lidar com os medos, p. 38. Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 66-67. Também o assunto é retomado em Eduardo KALINA, Drogadição II p. 26-34. 79 50 ao mesmo tempo aconselha o filho a não fumar maconha) e pela manipulação e/ou mentira que são fenômenos comunicacionais. A falta de limites elásticos (firme sem ser rígido) leva a uma oscilação que vai da rigidez até a liberação total80. Essas colocações podem ajudar na estruturação de um modelo preventivo81 – tanto de estruturação familiar quanto da sociedade em geral – e podem também facilitar a pesquisa etiológica da dependência. Porém, poder definir a família que está por trás do DSPA, trará uma contribuição significativa para o tratamento sistêmico no qual o mesmo está inserido. A ausência paterna82 é expressa também na fala dos residentes entrevistados no CERENE. Osmar, ao ser perguntado sobre a sua infância, conta com tristeza das brigas e da separação de seus pais quando tinha cerca de sete anos: [A minha infância] não foi das melhores não, meu pai se separou da minha mãe, com, eu acho que deveria ter em torno de seis, sete anos de idade, meu pai nunca bebeu, fumava muito, mas era muito mulherengo, chegava de madrugada e a gente se acordava com a briga do casal, ou seja, do pai e da mãe, até um certo dia que ele ameaçou ela com revólver (...) onde eles vieram a se separar, meu pai ficou em Itajaí e nós viemos com a mãe para Curitiba.83 Egon perdeu seu pai quando ainda era bebê: [A minha infância] teve altos e baixos, por eu ter perdido o meu pai muito cedo, eu tinha apenas seis meses de idade, minha mãe foi como pai e mãe, teve as suas falhas de mãe, teve as suas falhas de pai, mas foi uma infância, até onde eu me lembro que a droga não me tirou, foi boa.84 Rogério perdeu seu pai com seis anos: O meu pai separou da minha mãe quando eu tinha seis anos, então eu não tinha intimidade direito com ele né, (...) conheci ele de novo com dezesseis anos, (...), foi 80 Cf. Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 69. Lourenço anexa uma lista de ações que a família poderia ter feito para prevenir as drogas. Cf. Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 176/77. 82 A ausência paterna na vida de um DSPA ficou também evidente nas entrevistas que fizemos na CT “Prá-Vida” (2004). Significativo foi o fato de que, quando perguntados: “Como foi sua vida familiar na infância?”, todos citaram a figura do pai, mesmo não sendo diretamente perguntados (com exceção de um). A falta de diálogo e de brincar com o pai; a falta de elogio, a agressão e o alcoolismo paterno, a ausência paterna pelo falecimento e a ausência em função da profissão, constituiu-se na causa de muita tristeza para estes entrevistados. 83 Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 13. 84 Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 2. 81 51 minha mãe que me criou né, foi minha mãe e meu pai né, meu irmão mais velho também, respeitava muito ele.85 Ivo descreve seu pai com atitude mais liberal, porém como alguém que o orientava, apesar de o diálogo não ser muito transparente: (...) ele era um cara que não pegava tanto no meu pé que nem a minha mãe né, mais sempre dando bons conselhos, até em relação às drogas, quando eu já tava assim entrando na fase do ginásio, na escola, ele sempre me alertou a respeito das drogas, o mal que fazia né, mas eu não soube aproveitar aquilo que ele me passou né, e nunca tivemos assim um diálogo mesmo aberto, agora é que a gente tá se relacionamento bem através do diálogo, que eu acho que é tudo, é fundamental.86 Romeu, com respostas curtas, afirma que sua infância foi ótima e a relação com os pais muito boa87. Gerson fala das dificuldades financeiras vividas pela sua família na infância o que fez com que morasse na casa de diferentes parentes para ter a oportunidade de estudar. Fala com saudades da figura paterna e das dificuldades com a figura materna: Eu tinha um pouco de dificuldades de relacionamento com a minha mãe, com meu pai não, com meu pai eu tinha um relacionamento muito bom, eu tinha um pai assim que eu poderia considerar ele como um amigo e quase como um irmão, um 88 relacionamento muito bom, muito legal, mas a minha mãe era mais dura (...). Kirsch89, em seu artigo sobre a crise do masculino, cita Cuschnir e Mardegan que afirmam “é fundamental para a formação dos filhos uma relação paterna mais participativa, com uma presença forte, com mais brincadeiras, mais abraços e mais amor”. Outra fonte muito significativa para a sua insegurança e conseqüente angústia é, sem dúvida alguma, a figura paterna. Aqui adentramos um campo com prognósticos dos mais desalentadores. Luigi Zoja considera que o colapso da figura paterna está por trás da situação de declínio sem precedentes da civilização ocidental (...) A partir daí vão crescer delinqüência juvenil e criminalidade, devendo se estabilizar num nível muito elevado (grifo do autor).90 85 Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p.18 . Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 9. 87 Informação na entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 20. 88 Informações na entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) e trecho que se encontra na íntegra no anexo I, p. 05-06. 89 Cf. Dieter KIRSCH, A Crise do Masculino: Análise e Perspectivas de Solução, p. 70. 90 Id., Ibid., p. 61. 86 52 Percebemos como a figura paterna é importante, deixando profundas marcas no desenvolvimento da vida infantil. E a ausência é uma queixa constante dos DSPA’s. Muitas vezes, ao tratar o assunto em preleções, o co-obreiro assim formulou: “Se você quer apanhar de um DSPA, fale mal de sua mãe. Se você quer fazê-lo chorar, pergunte a respeito de seu pai”. Esta formulação é bastante genérica, querendo apenas chamar a atenção para o fenômeno da ausência paterna e da relação simbiótica com a mãe. O primeiro passo para os pais se aproximarem de seus filhos, sinaliza Kury, é deixar a crítica, o medo e as acusações de lado e começarem a fazer de sua família uma festa, um canteiro de prazer. É categórico: O pai que se comporta como um “palhaço” para envolver e encantar seu filho tem muito mais possibilidades de ajudar o filho do que aquele pai que se comporta como um “policial” tentando puni-lo.91 Na ausência paterna – causada pela separação matrimonial, morte ou pela indiferença – a responsabilidade da criação e educação dos filhos recai sobre a figura materna, situação em que a mãe se torna também o “pai” (linguagem de Egon e Rogério), caracterizando-se, muitas vezes, uma forte simbiose materna. Nas palavras de Ivo: (...) minha mãe me mimou muito né, eu era o xodó dela assim, então ela me protegia muito, e me dava muita liberdade assim, pra sair na rua, eu vivia muito dentro de casa, entendeu? Então o que aconteceu, na hora que ela me soltou acho que eu não soube aproveitar a liberdade, não sei te explicar mais. A minha infância em relação a minha família foi assim muito boa, sempre tive de tudo, colégios bons, roupas boas, sempre tive do bom e do melhor (...).92 Mesmo nas dificuldades de relacionamento entre mãe e filho, parece-nos que salvar a relação simbiótica com a mãe é uma constante na vida da maioria dos DSPA’s, permanecendo uma dependência intensa do filho para com a mãe e – o que reflete a co-dependência materna – da mãe em relação ao filho93. Isso pode ser reflexo das profundas marcas deixadas pela separação 91 Augusto KURY, Superando o cárcere das emoções, p. 149. Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 9. 93 Cf. Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 64. 92 53 prematura no processo de ruptura mãe-filho, de um lado94, ou de “incestos emocionais” – a criança como amparo emocional para um dos pais – por outro lado95. Isso talvez venha a explicar, em parte, o alto índice de separação matrimonial, ou da dificuldade de formar e/ou manter família, encontrado entre os DSPA’s. O princípio bíblico para o matrimônio “deixar pai e mãe”96 é posto em cheque, principalmente quando se trata de deixar a mãe e esta deixar o filho. O pai, muitas vezes, nem existe para ser deixado. Porém, a referência paterna, a falta de modelo paterno, ficará em déficit para a formação desta nova família. Dos entrevistados, cinco são separados [dois estão tentando reconstruir o relacionamento, sendo que um deles com a segunda esposa] e um está casado. Estatisticamente, dos que casaram ou amasiaram, 80% estão separados. Os filhos menores de 12 anos são quatro e três maiores de 18 anos, envolvidos nessas histórias de rupturas matrimoniais, candidatos a repetirem – como que num ciclo vicioso – o sofrimento da ausência paterna e da simbiose materna. 1.4.4.1 - Inversão de papéis Esses entraves no desenvolvimento infantil podem desembocar no desenvolvimento da DSPA ou da co-dependência. As causas etiológicas de ambas ficam muito próximas. Para Pia Mellody, citada por Ferreira, as origens da co-dependência são encontradas nos abusos sofridos na infância com repercussões na vida adulta, sinalizadas pelos relacionamentos co-dependentes. Ela vê no indivíduo co-dependente complicadores que seriam anteriores à convivência com o dependente: problemas com estima, limites, paradigmas distorcidos na espiritualidade, relacionamentos difíceis, e repertório emocional insuficiente para lidar com os desafios da vida97. Abusos (de ordem intelectual, espiritual ou física) acabam por tornar a infância literalmente perdida, assim entende Ferreira, usando a expressão “infância perdida” de Hemfelt. 94 Cf. Dieter KIRSCH, A Crise do Masculino: Análise e Perspectivas de Solução, p. 58-59. Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 26. 96 Cf. Gênesis 2.24; Mateus 19.5; Marcos 10.7,8; 1 Coríntios 6.16; Efésios 5.31. 97 Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p.17. 95 54 Destaca 5 características, naturais das crianças, que empresta de Pia Mellody: preciosas (valor por terem nascido), vulneráveis (precisam de proteção), imperfeitas (cometem erros no aprendizado), dependentes (precisam dos pais para satisfazer seus desejos e necessidades) e imaturas (viver a faixa etária em que se encontram e não uma inferior ou superior). Egocentrismo, energia e adaptabilidade são qualidades que promovem a maturidade. Numa família disfuncional, ocorre abuso quando não se valoriza, quando se superprotege ou desampara, quando a imperfeição vira “anormalidade”, quando a criança não pode exprimir seus desejos ou elas são ignoradas e quando se espera maturidade acima da faixa etária que a criança está vivendo ou se permite um comportamento imaturo de uma faixa etária inferior98. Forward encontra na palavra tóxicos a melhor definição para descrever os pais que possuem padrões negativos de comportamento, que são sistemáticos e dominantes na vida de uma criança. Daí também a origem da co-dependência: quando uma criança se vê obrigada a cuidar de um dos pais, assumindo responsabilidade de um adulto, levando essa característica para a vida adulta, ou seja, a de ser ‘salvador’ de outros99. A inversão de papéis ocorre em quase todas as famílias de pais tóxicos. Na família de alcoólatras, o pai ou a mãe que bebe toma o papel de filho, com seu comportamento patético, carente, irracional. Ele é de tal maneira infantil que não deixa espaço para qualquer outra criança na família [negrito nosso].100 1.4.4.2 - O poder de escolha perdido O relato de Melaine mostra a dificuldade de fazer escolhas satisfatórias, devido a uma infância marcada por dissabores com o pai: Eu tinha uma família realmente estranha. Meu pai era um arquiteto bem sucedido, mas controlava todo mundo com seu terrível mau humor. Ficava aborrecido com qualquer coisinha, como, por exemplo, quando alguém estacionava o carro em sua 98 Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 51-56. Cf. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p.14 e 45-50. 100 Id., Ibid., p. 85. 99 55 vaga, ou eu brigava com meu irmão. Ele ia para o quarto, fechava a porta, se atirava na cama e chorava. Igualzinho a um bebê! Aí minha mãe ficava desmontada; ia para a banheira e ficava lá, mergulhada na água. Eu era a única pessoa que tinha que interferir e lidar com o meu pai. Ficava sentada, ouvindo-o soluçar, tentando imaginar o que poderia fazer para que melhorasse. Mas nada adiantava; o jeito era esperar.101 Esse relato da infância de Melaine, citado por Forward, esclarece porque ela, na vida adulta, sentia-se atraída por homens mais problemáticos, pois acreditava que através de sua bondade – dar-se, amar, preocupar-se, ajudar, proteger – poderia fazer com que o homem visse o seu erro e correspondesse a ela com amor. “Sempre arranjo vagabundos que não querem nada ou verdadeiros canalhas. Aí, é claro que tenho que colocá-los na linha. Sempre acho que posso endireitá-los”102. Quem se envolve diretamente no tratamento de DSPA’s perceberá que é grande o número de cônjuges que são oriundos de lares onde o alcoolismo e/ou drogadição estavam presentes desde a infância, na figura paterna e/ou materna. Daí surge a pergunta do porquê dessa escolha “mal feita”. Parece que o ditado popular “gato escaldado tem medo de água fria” não se encaixa nesses casos. A prisão ao passado é o que provavelmente tira o poder de escolha. Mecanismos de defesa que distorcem o sistema de pensamento e as vivências de uma educação disfuncional afetam a capacidade de análise de um indivíduo103. A situação chamada de ‘negócio inacabado’ impõe à criança a necessidade de viver uma vida que não é sua. Aquilo que o pai ou a mãe não chegaram a concluir torna-se em uma obsessão que precisa ser perseguida pelo filho(a). As reverberações podem mesmo se estender à escolha do companheiro.104 Nas palavras de Forward: Filhos adultos de alcoólatras freqüentemente se casam com alcoólatras. (...) Mas a tendência de repetir os padrões de sentimentos conhecidos é comum a todas as pessoas (...) O conhecimento nos dá uma sensação de conforto para nossas vidas. 101 Id., Ibid., p. 47. Assim como vimos acima, a influência da ausência paterna na vida de dependentes químicos, podemos perceber no relato de Melaine as marcas deixadas pelo pai, levando-a à co-dependência. 102 Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 46. 103 Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 20-21. 104 Id., Ibid., p. 26. 56 Conhecemos as regras e sabemos o que podemos esperar. Mais importante, revivemos os conflitos do passado porque desta vez temos a esperança de fazer com que tudo dê certo – vamos ganhar a batalha.105 Em suma, a atitude de facilitação tem origens semelhantes a DSPA. Ambas oriundas basicamente de famílias disfuncionais, marcadas fortemente pela ausência paterna e simbiose materna, fazendo das crianças pequenos adultos, criando fortes dificuldades para escolhas futuras a serem feitas, inclusive a decisão de tratar a co-dependência. 1.4.5 - A co-dependência em evidência Num típico casal, no qual ele é DSPA e ela não, ele passa a ser rapidamente o “paciente identificado” e ela corre o risco de ser negligenciada em sua co-dependência. Afinal, nas palavras de Henfelt, citado por Ferreira, “o vício dele é desprezado socialmente, o dela é louvado. O dele é errado, o dela é certo. O dele vem da debilidade de caráter, o dela vem da força”106. Para que a co-dependência não seja “alimentada” num atendimento eclesial, é importante uma noção básica da dinâmica co-dependente. Sanda é conhecedor da co-dependência a partir de duas realidades: a empírica (tem um filho DSPA e atende a co-dependentes através de grupo de apoio) e a teórica (pesquisa, palestra). Classifica a co-dependência em 5 fases: negação, depressão, negociação ou barganha, raiva e aceitação. Testemunha ter vivenciado todas as fases por aproximadamente seis anos, estando (em 2001) na fase de aceitação. As quatro primeiras fases podem ser vividas todas ao mesmo tempo: Em um mesmo dia você pode estar ‘rodando’ e sua cabeça ‘girando’, passando da depressão para a raiva. É uma verdadeira paranóia. Quantas vezes tentei negociar com Deus. Eu prometia que se Ele tirasse meu filho das drogas, eu seria melhor, me envolveria ainda mais com as coisas da igreja, seria mais fiel no dízimo, seria um pai mais presente etc. Tudo isso parece muito infantil, mas é assim que somos.107 105 Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 86. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p.90. 107 Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 249. 106 57 A negação é uma fase caracterizada por minimizar a gravidade dos fatos, pela proteção e pela responsabilidade que o co-dependente toma para si diante de um fato inconseqüente do DSPA. A figura do dinossauro na sala de estar, usada por Forward, exemplifica perfeitamente essa fase: A negação adquire proporções gigantescas para todos os que vivem na casa de um alcoólatra. O alcoolismo é como um dinossauro na sala de estar. Para quem está de fora, é impossível ignorá-lo, mas para os que vivem na casa, a falta de esperança de conseguir expulsar a fera obriga-os a fingir que ela não está lá. É a única forma de poderem coexistir. Mentiras, desculpas e segredos são comuns como o ar que se respira nesses lares, criando um tremendo caos emocional para os filhos.108 A autora ainda fala do “Grande Segredo” que as crianças de pais alcoólicos devem manter, com três elementos básicos: 1. a negação do alcoólatra quanto ao seu vício, apesar das evidências contrárias; 2. a negação do problema pelo companheiro do alcoólatra e demais membros da família (co-dependentes); 3. a farsa da “família normal”, uma fachada que a família apresenta para si mesma e para a sociedade ao seu redor. Essa farsa exige muito da criança, pois ela tem que constantemente estar atenta para não expor a família, o que a leva a não ter amizades, ficando solitária. Assim surge uma lealdade cega em relação à família de origem que continuará sendo um elemento destrutivo e controlador na vida adulta109 – podendo inclusive influenciar na escolha matrimonial, como vimos acima. Ferreira cita uma metáfora criada por Kellermann, o “carrossel da negação”, composto: a) Pelo DSPA; b) Pelo facilitador, a pessoa que “salva” ou “alivia” o DSPA de sua situação, tirando-lhe a oportunidade de aprender a corrigir os próprios erros; c) Pela vítima, a pessoa que está sempre realizando as tarefas no lugar do DSPA; 108 Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 80. Cf. Id., Ibid., p. 81-82. Segundo a autora, os pais tóxicos reagem às ameaças ao seu equilíbrio por meio de manifestação dos seus temores e frustrações, sem pensar muito nas conseqüências para os filhos. Os mecanismos mais comuns são: 1. negação (esconde o problema atrás de eufemismos); 2. projeção (projeta problemas pessoais nos filhos); 3. sabotagem (sabota terapias quando a melhora ameaça o ‘equilíbrio’ familiar); 4. formação de triângulo (A criança tem que escolher de que lado fica em relação aos seus progenitores); 5. guardando segredos (para proteger o ‘clube privado da família’ de interferências externas). Id., Ibid., p.183-5. 109 58 d) Pelo provocador, a pessoa com quem o DSPA vive, e que mantém, apesar das mágoas e perturbações, a família unida. Assim gira o carrossel: o DSPA diz que “não vai mais beber”, o facilitador diz que “não vai mais resgatá-lo”, a vítima diz que “não permitirá mais um fracasso”, o provocador diz que “não poderão mais viver juntos se a situação persistir”. O dito não é cumprido e o DSPA volta a beber e todos desempenham novamente o seu papel110. A depressão é uma companheira muito presente em todo esse processo conforme depõe Sanda: Depois que deixei o meu filho nesse hospital, comecei a sentir um sentimento de tristeza terrível, uma vontade de chorar, de gritar, uma sensação que o chão estava cedendo, um sentimento de fracasso, de culpa. A cabeça girava, pensamentos e sentimentos negativos vinham à minha mente. Um sentimento de impotência tomava conta. Oh! Meu Deus, o que está acontecendo com a minha família. Não dá para descrever a dor. Machuca a alma. Entristece o nosso ser. Estava deprimido. A alegria de viver havia acabado. Tudo era triste. Não havia razão para continuar essa vida. Fiquei com o semblante caído por muitos dias.111 A negociação é uma fase determinada com muitas promessas feitas a Deus, a outros e a si próprio. É carregada de sentimento de culpa – onde foi que errei?- e o propósito de compensar ou não cometer mais os mesmos erros. Negocia-se, nessa fase, a recuperação: Se você aceitar um tratamento e ficar internado, papai vai te dar um carro importado, zero km. Foi isto que um conhecido industrial ofereceu a seu filho, que cumpriu o trato e quando saiu da comunidade terapêutica, o pai não pôde cumprir a promessa e depois de 15 dias o rapaz tinha recaído nas drogas.112 Mesmo que este industrial pudesse ter cumprido a promessa, estava alimentando uma falsa motivação para o tratamento. Segundo Sanda, o acordo deve ser: “O dependente químico precisa se submeter ao tratamento porque ele precisa se curar, e esta é a finalidade (...), o objetivo final é a sua vida”113. 110 Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 80-81. Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 248. 112 Id., O Tratamento da Co-dependência, p. 15. 113 Id., Ibid., p. 16. 111 59 A raiva está presente nas fases, porém pode constituir-se em uma fase em determinado período. É um sentimento ruim que atrapalha a vida, dificulta o bom senso e a habilidade de resolver as situações que aparecem durante todo o processo de tratamento. A raiva, bem como a depressão, é uma maneira de externar o sentimento de culpa. Como o mundo nos culpa, também culpamos todos pela nossa situação. Culpamos nosso cônjuge, culpamos na igreja, culpamos a escola, culpamos os amigos de nosso filho. É difícil saber ‘lidar’ com a culpa, e toda atitude que o co-dependente toma, acompanhada com sentimento de culpa, com certeza será uma atitude de facilitação.114 Sanda cita o triângulo de dramas de Karpmann, como “triângulo de ódio”, semelhante ao “carrossel da negação” acima visto: Salvador Perseguidor Vítima Fig. 2 Como co-dependentes, passamos muito de nosso tempo salvando. Tomar conta não ajuda, mas causa problemas. Sempre damos muito mais do que recebemos e depois nos sentimos explorados. Com o passar do tempo mudamos de salvador para perseguidor, e depois assumimos o papel de vítima.115 Conforme Sanda, geralmente cada família escolhe o seu “salvador da pátria”. Conta que nos últimos 30 anos foi assumindo esse papel na sua família, na qual é o caçula de sete irmãos. “Agora estou ‘saindo’ da minha co-dependência e tentando deixar de ser ‘salvador da pátria’”116. É o que Forward chama de “a criança de ouro” – o herói da família – que lança-se num esforço enorme para atingir metas impossíveis de perfeição, tanto na infância como na idade adulta117. 114 Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 249. Id., Ibid., p. 253. 116 Id., Ibid., p. 250. 117 Cf. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 95. “Enquanto alguns são obrigados a ser o bode expiatório, outros viram o herói da família – ‘a criança de ouro’” (p. 95). Normalmente o ‘bode expiatório’ é o papel assumido ou imposto ao DSPA e a ‘criança de ouro’ desemboca na co-dependência. 115 60 As fases da co-dependência ocorrem de maneiras alternadas e de diferentes formas entre os membros de uma mesma família. Enquanto um está com raiva, por exemplo, o irmão que vê a mãe sofrer, o outro, por exemplo, a mãe, pode estar depressiva. Talvez o pai ainda esteja na fase da negação e um outro irmão negociando a recuperação. Cada um pode oscilar de uma fase para a outra em um mesmo dia, conforme a situação do momento. Para se chegar à fase da aceitação, que é a predisposição para reverter o quadro, recuperar-se e estruturar um novo estilo de vida, é necessário identificar a co-dependência e para isso Forward propõe um teste. A autora não informa quantas respostas deveriam ser positivas para a constatação da co-dependência. Porém, podemos pressupor que o co-dependente irá responder afirmativamente à maioria das questões: 1. Resolver os problemas dele ou aliviar sua dor é a coisa mais importante da minha vida, não importa o que isto vai me custar emocionalmente. 2. Meus sentimentos bons dependem da sua aprovação. 3. Protejo-o das conseqüências do seu comportamento. Minto por ele, protejo-o e nunca permito que alguém fale mal dele. 4. Esforço-me ao máximo para que ele faça as coisas do meu jeito. 5. Não me preocupo com o que estou sentindo ou com o que quero. Só me interessa o que ele sente ou quer. 6. Faço qualquer coisa para evitar rejeição por parte dele. 7. Faço tudo para evitar que ele se zangue comigo. 8. Sinto muito mais emoção numa relação turbulenta e cheia de drama. 9. Sou perfeccionista e me culpo por tudo que dá errado. 10. Fico aborrecida e me sinto desvalorizada e usada a maior parte do tempo. 11. Finjo que está tudo bem, quando na verdade não está. 12. A luta para fazer com que ele me ame é o ponto central da minha vida.118 É significativo observar que os verbos, contidos neste teste, têm a ver com as ações: resolver (1), proteger e mentir (3), manipular (4), fazer (6 e 7), fingir (11), lutar (12) e com as emoções: sentir (2,5,8,10), ser (9). Significa que a vida toda – do sentir ao agir – está envolta na relação co-dependente. O DSPA ocupa o centro das atenções práticas e emocionais do seu parceiro/pai/mãe/irmãos co-dependentes. As questões do teste acima ajudam o indivíduo codependente a perceber-se como tal. Ajuda a mostrar a assertiva de Sanda, acima citada, de que o co-dependente deixa de cuidar de si próprio – deixa de ter um projeto de vida próprio – para viver a vida do outro. Ou, nas palavras de Melody Beattie, citada por Ferreira, a carga extra de 118 Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 48. A autora esclarece que usa o pronome universal ‘ele’ para se referir a uma pessoa problemática, seja homem ou mulher. 61 responsabilidade faz com que algumas pessoas “super funcionem”, deixando de lado seus próprios desejos e necessidades para atender ao alcoólico119. Reconhecer isso é o primeiro passo do tratamento do co-dependente, segundo os grupos de auto-ajuda CODA (Co-dependentes Anônimos): “Admitimos que éramos impotentes perante os outros; que nossas vidas haviam se tornado ingovernáveis”120. 1.4.6 - Objetivos para um programa de tratamento da co-dependência Pelo relato de sua experiência, Sanda deixa transparecer que, chegar na fase da aceitação, constitui-se num processo severo e longo, em média de três a cinco anos – seis, no seu caso. Isso tem a ver com o acesso e busca de informações, possíveis em programas de ajuda a codependentes, onde a troca de experiências e de informações dará suporte para a mudança de pensamento e de atitude, bem como alimentam a prevenção necessária para não recair nas atitudes de facilitação. O tratamento de um DSPA oportuniza o tratamento do co-dependente. Os objetivos do programa de tratamento da co-dependência devem ser: 1. terminar com as atitudes de facilitação (para tanto é preciso reconhecê-las e coragem para abandoná-las); 2. fornecer conhecimento sobre DSPA (pressupor que os familiares “dominam” o assunto é um erro, sendo que a falta de informação leva a atitudes que comprometem a abstinência); 3. prevenir recaídas à facilitação (pois a facilitação é um caminho que aumenta a probabilidade da recaída de um DSPA). Não significa que não haverá mais ajuda. Porém, o limite saudável para ajudar está no fato de que a ajuda (i) não será levada a extremo, de maneira compulsiva e de modo a piorar o problema, (ii) não perpetuará a dependência e (iii) não manterá a irresponsabilidade do DSPA. 119 120 Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 22. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 125. 62 Seguindo esses critérios, a ajuda será de fato ajuda. Do contrário, alerta Sanda, os efeitos serão devastadores, como: a morte por overdose, o homicídio, o suicídio, os acidentes automobilísticos etc121. Conclui Lourenço: Independentemente do modelo terapêutico ao qual o indivíduo e a família sejam submetidos, é importante trabalhar as características individuais do dependente, as características da relação familiar, a relação indivíduo/família, enfocando sempre a necessidade da abstinência total, das mudanças no estilo de vida, assim como os hábitos de ambos, e assim prevenir o fenômeno da recaída.122 1.4.7 - Relutâncias ao tratamento É fundamental para qualquer programa terapêutico estar atento e consciente para enxergar não somente o DSPA, mas também aqueles que estão ao redor deste, numa convivência diária, tendo seus sonhos, seus sentimentos, seu paradigma de vida afetado e/ou afetando reciprocamente esse cenário. “Se as pessoas que estão se recuperando da dependência química não tiverem consciência da influência da codependência em suas vidas, bem como da necessidade de se recuperarem delas, dificilmente poderão encontrar os caminhos da recuperação”123. Essa assertiva deve servir de alerta na elaboração de um programa terapêutico, pois, para que o DSPA possa tomar consciência disso, ele precisa de orientação e acompanhamento necessário. O mesmo programa deverá prever a recuperação de ambos: do DSPA e de seu(s) co-dependente(s). Segundo Olievenstein, citado por Lourenço, todos querem uma resposta rápida para o desafio das drogas. “Quando procuram um tratamento, a idéia predominante é internar o usuário por algum tempo e só buscá-lo quando esteja bom”124. Ou como ouvimos em uma palestra proferida por Edmundo M. Chaves (2002), Administrador e membro da Diretoria da FETEB (Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil. Bauru, SP): “A família, 121 Cf. Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 251. Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 174. 123 Id., Ibid., p. 50. 124 Id., Ibid., p. 172 122 63 quando interna o DSPA, não está ‘comprando’ recuperação/tratamento, antes está comprando sossego”. Ele alerta para o forte perigo de a família “jogar” o DSPA na internação e não participar ativamente do processo. Nesse sentido, Sanda lamenta: É muito comum encontrar pais que dizem: Meu filho está voltando para casa na próxima semana e eu gostaria de saber o que devo fazer. Só que ele nunca apareceu nas reuniões do grupo de apoio. Que resposta dar? Ele não sabe nada de codependência; não foi tratado; e agora com o retorno do filho à casa tudo vai voltar. As atitudes de facilitação (minimizar, controlar, proteger, assumir responsabilidade e compactuar) e as defesas da co-dependência (negação, depressão, negociação, raiva e aceitação) estarão presentes de maneira não saudável.125 A DSPA não se instala de repente e não existe uma cura mágica. Não só o indivíduo, mas toda a família precisa de tratamento, pois o grupo familiar encontra-se incluído no complexo problema, sendo que ela é o contexto social mais próximo do indivíduo. Lourenço diz que é comum – a experiência o mostra – o indivíduo ser trazido (muitas vezes sob pressão) para o tratamento e que a família apresente uma certa resistência quando solicitada a participar, ou aceita apenas por causa do adicto (do doente) como se ela não precisasse refletir sobre as qualidades da relação familiar. É necessário conscientizar o indivíduo e a família de que o tratamento é um processo, assim como foi um processo a instalação da doença, e é uma oportunidade para trabalhar as situações disfuncionais presentes no núcleo familiar. A família deve ser levada a entender que o tratamento não é só deixar as drogas e, sim, tratar tudo o que leva a pessoa a valer-se das drogas, que a desintoxicação física é possível, mas que o cuidado psicológico é mais demorado e requer muito empenho. Enfim, deve-se trabalhar o nível de ansiedade da família e o conceito de cura, que normalmente é tido como “mágica”. A autora alerta ser comum a família abandonar o tratamento quando começam a emergir as dificuldades de cada membro da família126. Podem ocorrer: • • • 125 126 Adições sociais entre familiares (fumo, uso de bebida alcoólica, compulsão para comer e compras, intoxicação com trabalho etc.). Automedicação (consumo de medicamentos, inserido no sistema de comunicação familiar, o uso de pílula para dormir, para emagrecer etc.). Sintomatologias neuróticas graves, freqüência de estados depressivos, às vezes com tentativas de suicídio etc. Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 253. Cf. Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 172-174. 64 • • • Alcoolismo e toxicomania (estudos transgeracionais). Falta de limites. Cegueira familiar (tempo de latência entre o início do uso e a descoberta pela família). • Os mitos familiares (filhos adotivos, ilegítimos, suicídios, etc.). • Relações incestuosas, homossexualismo, prostituição. • Transgressões (da lei e da Justiça, atos fraudulentos, violentos, cometidos por membros da família). • Mensagens duplas (os pais contraditórios). • Impedimento ao crescimento do indivíduo, desrespeito à sua individuação. • Valores rígidos e resistência em modificá-los. • Tendência permissiva por parte de um dos pais ou de ambos. • Agressividade que pode levar os pais a serem temidos pelos filhos. • Falta de diálogo. • Crise sócio-econômica, desemprego, dívidas. • Falta de informação sobre as drogas. Obs: Não se trata de culpar os pais, na realidade, todos os membros da família podem ser vítimas de um jogo infindo, que perdura durante anos ou mesmo por muitas gerações.127 A partir dessa lista, podemos entender porque a evasão de familiares do tratamento é tão comum. É preciso muita coragem para enfrentar os possíveis problemas que virão à tona durante o processo terapêutico. 1.5 - Quem ajudará? Existe a necessidade legítima de uma continuidade pós-internamento. Todo aprendizado adquirido durante a internação corre o risco de sucumbir frentes às intempéries sociais que inevitavelmente ocorrerão. A fuga para o uso de SPA’s se apresenta como “meio mais fácil” de enfrentar essas dificuldades. Por outro lado, a família do DSPA que não procura ajuda significativa e não passa por um tratamento estará apenas postergando e aumentando situações conflituosas que dificultarão a manutenção do tratamento do DSPA. Não que os membros desta devem se tratar por amor àquele 127 Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 175. 65 em primeiro lugar. Pelo contrário, precisam buscar a recuperação por auto-estima. Conseqüentemente, contribuirão na recuperação sócio-relacional do DSPA. Atribuir toda a responsabilidade pela continuidade do tratamento ao indivíduo e/ou à sua família é um gesto semelhante ao de Pilatos – lavar as mãos - no relato bíblico da crucificação de Jesus Cristo (cf. Mateus 27.24). Indivíduo e família precisam ser assistidos na caminhada de reabilitação pessoal e sócio-familiar. Como analogia, poderíamos usar a situação de alguém em afogamento. Gritar para que ele se salve, além de não ajudar concretamente, poderá aumentar o seu desespero, o que agilizará o seu afogamento. É necessário jogar a bóia salva-vidas e ajudar a puxar para fora d’água. A quem cabe esse papel de salva-vidas? A partir da Teologia Prática, queremos chamar a atenção da comunidade cristã para o desempenho dessa tarefa, que não é exclusiva dela, porém, ela tem em seu conteúdo (espiritualidade) e vivência de fé (diaconia) o chamado para uma atuação significativa nesse processo de salvação do indivíduo DSPA e de seus familiares. Abordamos, a partir de uma sondagem empírica e de uma consulta bibliográfica, nesta primeira parte da pesquisa, o público alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade que é formado pelos DSPA’s (atendidos em uma Instituição de Internação) e os seus familiares (codependentes). Veremos, na terceira parte desta pesquisa, como este público está sendo atendido pela respectiva paróquia. Antes, enriqueceremos a argumentação teórica no que tange ao potencial intrínseco que a comunidade cristã tem para acolher, através de sua espiritualidade e sua práxis, a todos aqueles e aquelas que estão no processo de tratamento. 66 II – ESPIRITUALIDADE E DIACONIA: DOIS CONCEITOS TEOLÓGICOS E SUAS POTENCIALIDADES PRÁTICAS PARA FORJAR COMUNIDADES TERAPÊUTICAS 2.1 - Questões introdutórias Constatamos, no capítulo anterior, a necessidade que o DSPA e seus familiares têm de um acompanhamento significativo durante o processo de internação e pós-internação. A comunidade cristã tem, intrínseco nela, a possibilidade de contribuir significativamente neste processo. É função da Teologia Prática chamar atenção para que as comunidades insiram em seus meios essa atividade acolhedora. Dois aspectos são para isso imprescindíveis: o aspecto pastoral, com destaque especial para a espiritualidade, e o aspecto diaconal, com destaque ao serviço de amor ao próximo. O foco da espiritualidade será articulado a partir da relevância atribuída a ela nas falas dos DSPA’s e das mães participantes dos grupos de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade, que nos concederam entrevistas, e a partir de um teólogo e psicanalista alemão com reconhecimento internacional na teologia contemporânea, Eugen Drewermann128. 128 É considerado o teólogo mais lido na Alemanha, com mais de 70 obras publicadas, proibido, pela Igreja Católica Apostólica Romana, de dar aulas e de exercer o sacerdócio. Cf. http://deutschewelle.de/dw/article/0,1564,778496,00.html. 67 A problemática da DSPA é de caráter profundamente existencial. Por isso as contribuições de Drewermann que destacam a importância de uma espiritualidade integradora e não excludente pela ditadura moral irão conduzir-nos na pesquisa teórica deste primeiro aspecto. Limitamo-nos conscientemente a este autor devido à abrangência da temática espiritualidade e o risco desta tomar a tônica da pesquisa. Diante de várias hermenêuticas existencialistas optamos por uma, sem tirar o mérito das demais. A hermenêutica deste teólogo e psicanalista alemão nos foi oportunizada conhecer através de seminários no IEPG, no primeiro semestre letivo de 2004, e em palestras proferidas pelo mesmo no III Simpósio de Aconselhamento e Psicologia Pastoral promovido pela EST (Escola Superior de Teologia), em São Leopoldo, RS129. No que tange à diaconia, destacaremos as contribuições de Gaede Neto e Schweizer que fundamentam exegeticamente os aspectos básicos da diaconia neotestamentária. 2.2 - A importância da espiritualidade no tratamento Prim chama a atenção para a importância e necessidade de mais pesquisas que analisem o assunto espiritualidade e o uso de SPA’s, pois “a correlação entre envolvimento espiritual/religioso e risco do problema de uso compulsivo de drogas é uma das constantes no campo da adicção”130. Segundo ele, a organização Mundial de Saúde – OMS, preconiza que o tratamento de DSPA’s deve priorizar o resgate de valores espirituais, independentemente da 129 Na língua portuguesa tivemos acesso ao seu livro, traduzido por Walter Schlupp, “Religião para quê?”, São Leopoldo : Sinodal, 2004. Outros acessos à teologia desse autor tivemos através: a) da tese de doutorado de Bootz e b) da dissertação de mestrado de Linn, que fundamentaram suas pesquisas em Drewermann e c) das anotações que fizemos durante o III Simpósio de Aconselhamento e Psicologia Pastoral. [traduzido também se encontra o livro: Funcionários de Deus. Cf. http://www.somlivre.pt/loja/viewItem.asp?idProduct=199956]. Entendemos que a abordagem de Drewermann sobre a relação ‘ser humano – Deus’ é suficiente para a fundamentação da importância da espiritualidade na recuperação de DSPA’s. A instituição de tratamento apresentada no primeiro capítulo (CERENE) e a Paróquia Luterana da Sobriedade, que apresentaremos no terceiro capítulo, seguem, essencialmente, uma hermenêutica de cunho evangelical-pietista, com ênfase cristocêntrica. A despeito das diferenças é enriquecedor o diálogo com um teólogo contemporâneo que trata dos conflitos existenciais de forma mais antropocêntrica e que também aponta para a graça de Deus. 130 Luiz PRIM, Dependência Química e Espiritualidade, p. 89. 68 metodologia usada. Importa que a espiritualidade seja contemplada no procedimento de recuperação 131. Quando se propõe perscrutar um assunto como espiritualidade, percebe-se que se está diante de várias alternativas. Para darmos uma direção a essa tarefa nos deteremos na fala de Drewermann sobre a relação “ser humano – Deus”. Inicialmente trataremos a temática central do autor pesquisado, que é a angústia humana gerada pelo medo. Contemplaremos respostas ao medo, em suas variadas formas de manifestação. Perceberemos que a moralidade tem impedido a religião de executar seu papel terapêutico, aumentando a angústia humana. Focalizando a pessoa de Jesus Cristo, veremos o quanto o Deus dele – conforme expressa Drewermann - promove uma espiritualidade integradora, terapêutica, trazendo as pessoas sofredoras e marginalizadas para a comunhão comunitária. Muitas vezes a Igreja Cristã, enquanto instituição, não tem promovido o seu ser terapêutico. O Método Exegético Histórico-crítico (MHC) é muito limitado para responder perguntas de origem existencial. Drewermann vai buscar respostas no viés da psicanálise, que muito pode contribuir para que alcancemos alguns princípios para que um programa de tratamento possa promover essa espiritualidade integradora. Iniciaremos tomando conhecimento do que os residentes entrevistados expuseram quanto a uma possível participação ativa na Igreja, antes ou durante o envolvimento com as SPA’s, quando perguntados pela importância da religião (espiritualidade) no tratamento. Egon não considera que era um praticante do cristianismo, mesmo que acompanhava sua mãe quando ela ia à Igreja. Ele vê na espiritualidade condições para uma libertação: É, eu acho que isso aí é tudo, envolve, porque, eu vejo assim, a gente não veio aqui pra parar de usar droga, a gente veio aqui para encontrar a Cristo né, uma libertação assim total.132 Gerson depois de afirmar ter sido freqüentador da Igreja, porém não com um compromisso sério, destaca a importância da palavra de Deus no seu tratamento: 131 132 Cf. Id., Ibid., p. 86. Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 4. 69 Olha, no meu tratamento eu vejo hoje que a palavra de Deus ela é fundamental para mim, eu não consigo me vê sóbrio hoje sem a palavra de Deus, se eu não conseguir uma comunhão total com Deus uma entrega total com Deus eu não consigo viver sóbrio (...) não tem outro caminho sem essa comunhão com Deus.133 Ivo, que não considera ter sido um participante ativo da Igreja, aponta para a mudança em seu coração: É fundamental né, Deus pra mim, eu creio que Ele é meu Senhor e Salvador e eu tô aqui graças a Ele, Ele me chamou de novo, estendeu a mão, e eu creio que Deus transforma vida né, tem transformado a minha, porque desta última vez quando eu cheguei, eu falei: ‘não vou agüentar não’, ‘não vou agüentar mais um tratamento’. Entreguei tudo na mão dele e hoje estou aqui, eu tô, a cada dia mais eu sinto que tô melhorando, sinto que a cada manhã Ele renova, Ele dá forças assim pra vencer o dia, e sem Ele não dá, então a mudança que Ele tá fazendo aqui dentro do meu coração é muito grande, e enquanto eu tiver com Ele eu vou tá de pé, e se deixar Ele de lado a recaída vem, e foi o que aconteceu né, deixei Deus de lado, mas Ele é tão bom que estendeu a mão de novo para mim.134 Rogério afirma ter participado semanalmente de sua Igreja, interrompendo a participação após ter iniciado o uso de SPA’s; demonstra convicção de que precisa procurar: Muito importante né, acho que assim que eu sair daqui eu tenho que me empenhar bem nisso né, sempre estar escutando a palavra de Deus, estar sempre procurando né, acho que isso aí vai ser para mim fundamental.135 Osmar cita a sua Igreja de origem e que conheceu outros aspectos do cristianismo a partir do CERENE. Para ele, religião: É fundamental, (...) eu acho que sem Jesus, sem Deus na nossa vida a gente não encontra aquele caminho como Ele diz, o caminho é estreito, mas é só com Ele mesmo, sem Ele, nós não chegamos ao Pai, através de sua morte nós podemos, perdoar todos os nossos pecados, como ele nos perdoou, e eu vejo assim na minha adicção, sóbrio a quase cinco meses novamente, (...) e vendo que se eu não seguir a palavra de Jesus, não seguir a Bíblia e não seguir aquilo que tá determinado eu acho que não tem solução pro meu caso, eu digo assim.136 Romeu dificilmente ia à Igreja, porém, atualmente vê a importância da espiritualidade: 133 Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 7. Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 10-11. 135 Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 18-19. 136 Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 15-16. 134 70 Importância? Fundamental né, sem Deus a gente não é nada, agora é que eu estou aprendendo a vê isso com clareza, que uma pessoa sem Deus no tratamento até mesmo lá fora na vida não vai para lugar nenhum.137 Também perguntamos a respeito da espiritualidade aos familiares entrevistados. Matilde, após descrever a participação superficial de seus filhos que não tinham definição religiosa, afirma que: (...) eles passaram a encarar a coisa de uma forma diferente, então eles começaram a ver né, que adorar somente a Deus, que Jesus Cristo veio para ajudar, para ensinar e que as pessoas devem seguir os ensinamentos que Jesus deixou, então eles estão começando a entender o verdadeiro conteúdo da religiosidade (...). Ela não dá muito crédito a tratamentos que não contemplem a espiritualidade: (...) eu vejo casos de pessoas que vão se internam numa clínica onde o cunho religioso não faz muita diferença, é mais laborterapia, é entrevista, psicólogo, mais na parte material (...). As pessoas que eu conheço que ficaram trabalhando só a parte material, física, em clínicas, amanhã ou depois se elas recaem, elas recaem muito pior. No seu entender, quando ocorre recaída de quem contemplou a espiritualidade, o pedido de ajuda ocorrerá rapidamente. Porque a recaída do [nome do filho] não é uma coisa boa, mas (...) que ele recai ele pede ajuda, ele quer se tratar novamente, ele quer procurar ajuda, ele não quer ficar naquela vidinha que ele se encontra quando ele começa a se drogar. Conclui: Então por isso a importância da espiritualidade eu acho que é fundamental, é fundamental, não interessa se é na igreja Batista, na igreja Luterana, na igreja Católica, mas tem que ter, eles tem que procurar a ajuda de um ser superior que eles recebem através de um pastor, através de um orientador espiritual, eu acho que é fundamental.138 Marta, vê a espiritualidade como algo muito importante, porque antes não sentia a presença de Deus: 137 138 Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 21. Trechos da entrevista concedida por Matilde (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 26-27. 71 (...). E hoje não, hoje a gente sente mais amor, mais carinho das pessoas, então a gente sente Deus mais perto da gente, eu me sinto, todas as noites quando eu dobro meus joelhos eu sinto Deus bem perto de mim, depois que eu virei a participar mesmo, meu Deus, eu digo pra ti, a minha vida mudou em tudo. Como conseqüência dessa mudança: Eu e o meu marido chegamos a se separar, com essa luta que a gente passou com meu filho a gente teve quatro ano separado, e hoje tá tudo bem, pela graça de Deus, por que motivo? Igreja e reunião. Onde a gente foi procurar o apoio, foi nisso.139 Daniele está envolvida mais anos no assunto da recuperação, pela experiência com o exmarido DSPA e atualmente com o filho nessas condições, e também profissionalmente, com famílias que sofrem as conseqüências da problemática, atendidas no hospital: Bom, também já li que na época o A.A. é que dava maior tempo de, fora as terapias psiquiátricas, medicação, maior tempo de sobriedade. Depois com o avanço da, do derramamento do Espírito Santo, vamos dizer assim, a gente tem visto e lido que os movimentos, as igrejas evangélicas é que tem conseguido um número de abstinência maior e aí a gente sabe que é todo, eu creio nisso, que é o poder de Jesus, poder transformador, que esse tem, pode ter mil e outras alternativas mas que pode sustentar algum tempo mas são lentas, eu vejo vital.140 Percebemos nas falas citadas que a espiritualidade é tida como sendo de ‘fundamental importância’ no processo terapêutico. É caracterizada como uma fonte de forças para efetuar as mudanças bem como para despertar a motivação necessária para o tratamento. No mundo empírico dos DSPA’s e familiares em recuperação a espiritualidade tem se mostrado relevante. Na fala destes, temas como ‘angústia’, ‘medo’, ‘tristeza’, ‘depressão’, ‘ansiedade’ etc, refletem o sofrimento pelo qual têm passado e passam todos os envolvidos no processo terapêutico. Sofrimento esse que precisa ser compreendido - das causas às soluções pelos que se envolvem, no intuito de ajudar no processo de restabelecimento individual e sóciofamiliar dos atingidos pela problemática das SPA’s. Para subsídios teóricos, voltaremos, nesse momento, o nosso olhar para Drewermann, com o intuito de aprofundar a pesquisa destes aspectos. 139 140 Trechos da entrevista concedida por Marta (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 29. Trecho da entrevista concedida por Daniele (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 24. 72 2.2.1 - Angústia humana A angústia humana - sentimento de profunda crise existencial – culmina em situações trágicas para o indivíduo, no que se refere ao seu contexto bio-psico-social-espiritual141. Entre elas prefigura a problemática do uso e abuso de SPA’s e da co-dependência. Drewermann, o palestrante convidado para o III Simpósio de Aconselhamento e Psicologia Pastoral142, perguntado se o específico da busca por drogas, especialmente por jovens, não seria um meio de buscar libertação dos conflitos, confirmou a questão afirmando também que a dependência química é a patologia mais difícil de tratar. A perda da felicidade individual e o desejo por entusiasmo desencadeiam essa busca. A industrialização tem levado as pessoas a uma vida sem sentido. Para descrever essa vida, ele fez uma analogia com um carro em ponto-morto, que não ‘sai do lugar’. O sentimento que se tem é de ser apenas uma máquina que pode ser descartada a qualquer momento. Essa situação promove o medo, gerador da angústia existencial. 2.2.2 - Medo gerador da angústia A causa principal da angústia, segundo Drewermann, é o medo. Através da categoria medo, consegue-se compreender o ser humano em sua angústia e desespero. O mal tem origem no medo: “Na origem desse mal estaria a percepção da contingência e finitude humana que instala um sentimento de inferioridade e repugnância pela própria existência”143. 141 Tomamos esta formulação de Noé, que aponta para a necessidade de ver o ser humano integral e não esfacelado em enésimas porções. Cf. Sidnei V. NOÉ, Comunidade Terapêutica (Cuidando do ser...), p. 10-11. 142 Realizado na EST (Escola Superior de Teologia), organizado pelo IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação), em São Leopoldo, RS, nos dias 05-07 de julho 2004. 143 Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 36. 73 O medo emperra o processo de individuação, do tornar-se self144. O ser humano é, ou comete o mal, conforme permite se identificar com o medo. Caso perca Deus de vista, verá como única saída (do círculo de constante derrota), a possibilidade de se tornar o próprio Deus. Caso reprima o medo – projetando-se nos outros (“ser social”) – colherá ilusão e desespero. O medo não pode ser vencido com ações de fuga (entre elas o uso e/ou abuso de SPA’s), pois aumentará a escalada da violência, que poderá ser voltada para si próprio, num processo de auto-destruição, ou aos outros, causando prejuízos materiais e relacionais à sua volta. 2.2.3 - Medo da morte Para os animais, segundo Drewermann, a morte não se constitui num problema porque a visão do mundo consiste em transmitir os genes da melhor forma possível. Porém, para o ser humano – indivíduo que tem consciência de si – a morte escandaliza. A pessoa quer saber qual é o seu papel. Por que existo, eu pessoalmente, com aquilo que penso e sinto? O que represento? Neste questionamento a morte passa a ser um problema central, que nenhuma biologia consegue responder145. De acordo com o raciocínio acima, o animal não tem medo, ele é medo. Está predisposto a responder com fuga ou ataque em situação de perigo. O ser humano também experimenta medo desta forma, porém com a diferença de que pode antecipar situações de medo, simulando-as na imaginação com o intuito de encontrar respostas adequadas. Diferentemente dos animais, a nossa razão nos diz como lidar com as situações de perigo e, considerando o todo, nos alerta para o fato 144 Centro onde ocorre uma unidade do consciente e do inconsciente. “Neste âmbito, a pessoa não é mais assombrada pelos conteúdos do inconsciente pessoal (sombra), nem por aqueles do inconsciente coletivo (anima). Estes se tornam conscientes sem, contudo, haver uma inflação doentia do consciente. Na verdade a própria consciência também desaparece. Dos dois mundos (consciente e inconsciente) nasce um novo, o self. O desenvolvimento ulterior deste estado de união é ordenado pelo mundo onírico e espelhado nos mitos, através de formas de narrativas expressivas deste processo psíquico chamado individuação”. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 86. 145 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 28-29. 74 de que não temos escapatória: nenhum poder do mundo nos protegerá contra o medo de perder o grupo, da solidão, da doença e da velhice146. O medo ameaça deturpar toda a humanidade contida nas pessoas. Cria razões para um comportamento diferente do que se quer. Ele lança as pessoas no atoleiro de sangue das guerras, de defesa, de necessidade de segurança e justiça. Esse medo deixa o ser humano cruel: O maior medo que as pessoas têm provavelmente é o de morrer, e mesmo que não tenham medo da morte, têm pelo menos medo da falta de amor com a qual se pode mandar pessoas para a morte e para a total indiferença, como se não tivessem importância alguma: elas que se danem, e ninguém sentirá falta delas. Quando esse sentimento toma conta, provoca o maior pavor, e as pessoas farão de tudo para refutar essa impressão. Vão matar, lutar, realizar conquistas às custas dos outros, com a idéia fixa de alcançar sucesso na vida.147 Ou – acrescentaríamos - fugirão para situações ilusórias, promovidas pelo uso de SPA’s. 2.2.4 - Resposta para o medo A confiança despertada pelo aconchego protetor de outra pessoa é a única resposta para o medo que surge da consciência do ser humano. O problema é que as pessoas com medo também fracassarão no amor recíproco148, não correspondendo assim às expectativas de proteção. Por isso a religião, o falar de Deus, é uma base necessária para responder questões absolutamente humanas que não são respondidas pela natureza. A fé em Deus, como ela se mostra na história da religião e também é articulada ainda na Bíblia, não parte da pergunta pelo mundo, mas da questão onde se podem localizar para o ser humano lugares de abrigo, de amor, confiança e esperança frente à morte [grifo nosso].149 146 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 77. Id., Ibid., p.57. 148 Cf. Id., Ibid., p. 94. 149 Id., Ibid., p. 28. 147 75 O medo é vencido na confiança em Deus (fé), pela não violência. “O paraíso não é um lugar, mas um tipo de vida sem medo, o qual é acessível a qualquer um, mediante a graça”150. Para as antigas civilizações, os poderes da natureza eram encarados como forças personificadas – deuses. A Bíblia introduziu algo radicalmente novo: a fé criacional, que não identifica Deus com as forças da natureza, mas o coloca como pano de fundo da mesma. A pergunta deixou de ser ‘por que existe o mundo?’ E passou a ser ‘por que existo?’. O diálogo entre Deus e o ser humano passou a ser o teor, cenário e a temática de toda espiritualidade bíblica. Assim, as questões religiosas atendem à busca de sentido do ser humano em meio à sua vida: “Somente quando se forma certa confiança de que é possível e lícito viver, com motivos de gratidão para tal, também o mundo em volta passa a ser integrado cada vez mais objetivamente neste sentimento”151. Nessa direção também segue a argumentação de Crabb, que ilustra as necessidades humanas através de três círculos (figura 03), sendo que o círculo central representa a sede de Deus (Anseios Cruciais), o círculo do meio a necessidade humana de relacionamentos com o próximo (Anseios Críticos) e o círculo periférico representa as necessidades materiais (Anseios Casuais). Segundo Crabb, se a sede de Deus for suprida, os demais anseios também o serão, havendo assim uma transformação ‘de dentro para fora’152. Anseios Casuais Anseios Críticos Anseios Cruciais Fig. 03 Ampliaremos o raciocínio acrescentando mais um círculo que representará a relação do ser humano consigo mesmo, pontuando também o valor da auto-estima (figura 04). 150 Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.113. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 31. 152 Cf. Larry CRABB, De dentro para fora (Sua vida pode mudar...), p.92-97. 151 76 Anseios Casuais (Material) Anseios Críticos (Próximo) Auto-estima (Eu) Anseio Crucial (Deus) Fig. 04 Assim, do aconchego acolhedor de Deus se pode adquirir auto-estima que por sua vez permite um relacionamento equilibrado com o outro e leva a uma administração satisfatória dos bens materiais. Destas afirmativas, deduzimos que onde há medo, não há vida. Onde não há vida, não há gratidão. Onde não há gratidão, não há integração com o mundo, ou seja, com a natureza (ecologia, material), com o social (relacionamentos), consigo próprio (auto-estima) e com o espiritual (Deus). Onde há ambiente de confiança, aconchego, haverá gratidão. Esse ambiente é proporcionado por Deus, leva a auto-estima satisfatória, possibilita relacionamentos saudáveis e um lidar com a natureza com o coração agradecido. Drewermann destaca a maneira como Jesus se sentia ligado a Deus: ele inspirava uma confiança que tocava de forma elementar as pessoas em seu medo. “Quando esse homem estava perto, não era preciso ter tanto medo”153. Os milagres de Jesus consistiam no fato de fazer com que as pessoas encontrassem a si próprias. O encontro de si e o encontro de Deus são, para Drewermann, a mesma coisa. É o poder de uma confiança que nasce de um amor puro154. Assim “O que podemos aprender de Jesus é algo totalmente diferente, é adquirir uma confiança que nos carrega por sobre o abismo, uma confiança que nos ajuda a enfrentar todos os contratempos”155. 153 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 149. Cf. Id., Ibid., p. 150. Esta afirmação é extremamente antropocêntrica, dando a entender que a divindade é imanente ao ser humano, intra-nós. Neste aspecto diferimos de Drewermann. Consideramos Deus como transcendente, extra-nós, o Outro, que se revela a nós pela sua graça e bondade. A partir do encontro com o transcendente é possível encarar a realidade humana tal qual ela se apresenta, podendo, a partir daí, ocorrer um encontro de si mesmo. 155 Id., Ibid., p. 55. 154 77 O medo se apresenta em quatro formas básicas: a) Esquizoidia, promovedora de uma constituição mental com tendência à solidão, autismo, devaneio e má adaptação às realidades exteriores; b) Depressão, marcada por sentimento do medo culposo, decorrente do processo da fase oral; c) Neurose obsessiva, fruto deste mundo de concorrência e rivalidade, exigindo da pessoa constante perfeição e êxito; d) Histeria, caracterizada pela dificuldade de se desvencilhar dos pais156. Em resposta às quatro formas de medo, Bootz157 descreve quatro sacramentos, apresentados por Drewermann, que respondem diretamente à problemática de cada um dos medos. Não nos aprofundaremos em cada um, porém, uma noção panorâmica dos mesmos será importante para nossa temática: a) À esquizoidia corresponde o rito do Batismo, existente já antes do cristianismo, preservado por este, como sentido de morte e renascimento: nova vida, cura e experiência mística. Para isso, duas condições apresentadas por Drewermann: a necessidade de um ambiente de proteção quente e acolhedor e um outro ser humano com força capaz de batizar (com sua presença) uma pessoa. b) À depressão corresponde o rito da Santa Ceia. Partindo da figura de segurança da árvore (para os primatas) chega-se à cruz – simbolizada na Santa Ceia: resulta em força consciente para enfrentar qualquer sentimento de culpa. É importante o encontro com o ‘outro’, a semelhança de Jesus. c) À natureza obsessiva corresponde o rito da confirmação, crisma: jogo e iniciação. Jogo é o aprendizado sem a pressão de exigências, apenas ação de aprendizado. Jogo é a fase de dependência dos pais objetivando a independência. Ao contrário da compulsão neurótica – que cobra a perfeição – o jogo (lúdico) surge como um espaço no qual não é exigido nada a não ser o prazer da descoberta de si mesmo. Esta é a vontade de Jesus: que nos tornemos crianças ao redor de Deus. 156 157 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.95-96. Cf. Id., Ibid., p. 104-5. 78 d) À histeria corresponde ao rito de casamento. O amor é a energia que transforma qualquer pessoa em um ser humano maduro existencialmente. O histérico se fecha para o amor. A solução é encontrada no simbolismo do casamento sagrado. A sexualidade cumpre a função de preservação da família. Procriação e preservação são duas funções importantes da sexualidade que em si não é amor. Amor é doação ao outro. Sexualidade é sobrevivência da espécie. “O histérico vai encontrar saída, não na moralidade, que apenas reforça sua ansiedade, mas no encontro com Deus, com o próximo, cuja aceitação incondicional dilui o medo”158. O amor espelha a relação entre Deus e o ser humano. Proporcionar esse encontro é da responsabilidade da Igreja. A individuação é o resultado de tal encontro, é filha desse “casamento sagrado”. Assim vemos o quanto o rito cumpre um papel importante, eliminando o medo e permitindo o encontro entre o ser humano e Deus. Diferentes formas de medo – cenas simbólicas desenvolvidas pela psique humana – creditadas como verdades, controlam e aterrorizam a pessoa. O símbolo religioso evoca experiência transcendente gerando segurança ao invés de ansiedade. Adiante pautaremos atividades importantes, que correspondem a esses sacramentos, a serem observadas e estimuladas num programa terapêutico de tratamento de DSPA’s e familiares. 2.2.5 - Moralidade e religião Seria uma reformulação da ética (da moral) de um DSPA a solução para os seus conflitos? Drewermann responderia que não: “Nenhum único dos problemas com que as pessoas chegam pode ser resolvido com orientações éticas, ainda que tenham implicações éticas”159. Jesus não queria curar as pessoas com preceitos morais, mas oferecer uma bondade que primeiro permite a pessoa erguer-se, respirar e sentir-se aceita. A ovelha perdida não foi trazida de volta a chicotadas e sim nos braços do pastor. 158 159 Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.105. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.120. 79 Essa bondade é o fundamento essencial da vida: “As pessoas só conseguem ser boas por se depararem com uma bondade que se interessa por elas, que as carrega, que lhes ajuda a viver”160. O ser humano precisa experimentar a possibilidade de poder ser, existir. No campo religioso deve haver uma suspensão do ético. Ao processo terapêutico, para que haja cura, se impõe a necessidade da suspensão de exigências morais. O ser humano precisa saber que é absolutamente desejado e reconhecido por Deus. Assim Drewermann reivindica a primazia da fé sobre a ética161. A religião não deve ter como primeira função proclamar a moral e sim ajudar a pessoa a viver. Assim criará a premissa existencial que permite cumprir a moral. Não é possível organizar a vontade de tal forma que ela se torne correta, se não houver espaço para decisões próprias no lugar de controle do superego, do medo da autoridade, da dependência e direção de fora. “Para termos capacidade ética precisamos primeiro ser pessoas humanas”162. A tragédia existencial consiste na impossibilidade do indivíduo satisfazer a lei moral, causando-lhe grande pressão que resulta em sofrimento e em personalidade dividida – processo neurótico no qual o “eu” se vê às voltas com duas poderosas demandas: o inconsciente que quer a individuação e o “superego” que não pode ser satisfeito, causando sentimento de culpa. A neurose ocorre porque o “eu” encontra-se em situação de fragilidade não conseguindo enfrentar a demanda social, estando maduro isso não ocorreria. Para o desenvolvimento e uma maturidade sadia, porém, é preciso o envolvimento com a dimensão do inconsciente, e esta é negada em primeira instância pela moralidade.163 O “eu” perde mais e mais a sua energia de decisão, sua vontade – levando a pessoa a se tornar inibida, introvertida. Toma posse o seu “eu social” que não proporciona felicidade, levando a pessoa a culpar o outro e a sociedade pelo seu fracasso. 160 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 121. Cf. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 42. 162 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 121. 163 Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.108. 161 80 Para Drewermann a teologia (javista) ensina que o medo é fruto da percepção humana da separação de Deus. O cristianismo é a reposta porque em Jesus Cristo encontra-se o caminho de volta. Porém, a igreja em vez de acentuar a “graça” tem acentuado a idéia da expiação: ato humano como participação da redenção. Isso resultou na ênfase da moral para nortear os passos da igreja. Como superar essa tragédia cristã? Drewermann defende a necessidade da suspensão da moral na religião. Seguindo Freud, que coloca a necessidade de um “espaço para respirar” sem a demanda da moral no processo saudável da recuperação de um paciente, ele realça o valor da justificação pela fé, onde é possível abrir mão de se justificar perante a sociedade com méritos próprios, encontrando em si o seu “eu” justificado pela graça – relação madura com Deus. A obediência a Deus não se dá por pressão (como na moralidade) e sim em humildade164. Linn cita Drewermann afirmando: Na escolha entre julgar ou entender essas pessoas, eu optei por entendê-las (...) Pelos próprios seres humanos que não acertaram com sua vida, eu me propus a trabalhar uma síntese a partir da exegese bíblica, psicanálise e dogmática, que permitisse usar o conceito pecado para compreensão do desespero e falta da alternativa do ser humano, ao invés de ver nele apenas uma alavanca de acusação de culpa e disciplina eclesiástica.165 Para Drewermann, os fracassos morais e éticos seriam decorrentes do conflito entre a condição individual e as exigências coletivas. Por isso enfatiza que para além da necessária ordem no campo das relações sociais, a relação com Deus é decisiva166. Conclui: A teologia deve ensinar a fé, não a moral, e a psicologia deve reconhecer que a justificação do indivíduo se dá mediante uma confiança transcendente à esfera humana (diferente do ateísmo). A moral de Deus é perdão para aquele que confessa a sua fé perante ele167. Drewermann se dedicou à psicanálise porque queria conhecer todas as dimensões do inconsciente, o trágico emaranhado de compulsões à repetição, re-encenações de traumas de infância. Segundo ele, para entendermos por que as pessoas sofrem, não se pode tomar como 164 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.110. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 42. 166 Cf. Id., Ibid., p. 43. 167 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.111. 165 81 base a antropologia reduzida, que consiste de psicologia racional e decisões volitivas moralmente treinadas – esta é a antropologia defendida pela teologia moral da igreja. Por isso, recusa-se a falar de pecado. Prefere falar de desamparo, desespero, de estar num beco sem saída, de cara com o abismo168. Ou, quando fala de pecado, Drewermann define-o em termos teológicos, compreendido como distanciamento de Deus, situação em que o ser humano não pode “arruinar-se mais do que quando procura revestir seu supérfluo, desamparado e injustificado ‘Ser-aí’ sem Deus a partir de seu próprio esforço, com brilho de uma razão justificada”169. Na perspectiva psicanalítica, doença neurótica é transtorno causado pelo medo e do esforço de ser igual a Deus. No sentido teológico, neuroses diante de Deus acontecem pelo domínio do medo que é a conseqüência do pecado do distanciamento de Deus. Drewermann, na aproximação entre essas duas áreas, procura mostrar que a categoria teológica ‘pecado’ pode ser relevante para a compreensão de fenômenos psicológicos e, simultaneamente, o conhecimento da dinâmica psicológica pode proporcionar o entendimento da mecânica da auto-destruição posta em movimento pelo pecado170. 2.2.6 - Integração das pessoas sofredoras e marginalizadas Quando Jesus diz que as pessoas que sofrem, as pessoas que choram, os indefesos, os impotentes e doentes, todos eles e elas deveriam ter uma chance, e que ele teria vindo para fundar um mundo no qual a bondade seria a base do novo tratamento recíproco, pensei que teria que ser assim, só assim valeria a pena viver [grifo nosso].171 O mundo atual não merece continuar existindo, porém o mundo como Jesus quer e viabiliza, merece todo tipo de engajamento e esperança. É um horizonte de possibilidades sob novas perspectivas: o Novo Ser Humano, com o olhar voltado para o homem de Nazaré. 168 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.63-64. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 37. 170 Cf. Id., Ibid., p. 37. 171 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 46. 169 82 Drewermann testemunha que creu no Deus de Jesus. Pois não pode entender como Jesus considera possível sua bondade a não ser que ele realmente a pressuponha naquele que ele chama de seu Pai. Por causa desta fé ele realiza coisas paradoxais e inacreditáveis: Vai atrás dos mais perdidos, marginalizados, dos quais todos dizem que deveriam ser castigados, que de qualquer forma nada conseguiriam na vida, que podemos deixar de fora e esquecer, que não fariam parte de nosso grupo religioso, de nosso grupo social nem econômico – “vamos acabar com eles, então!(...) Justamente a eles Jesus se dirige, convidando-os, solidarizando-se com eles e declarando que afinal de contas nós todos nem conseguiríamos viver sem essa solidarização absoluta”172. Jesus torna Deus presente na evidência de seu comportamento humano. Na minha experiência, fato é que eu nem acreditaria em Deus se eu não olhasse para Jesus. O homem de Nazaré para mim é um motivo para crer em Deus, para crer no Deus dele, mantendo assim um fundamento paternal, maternal, bondoso do mundo.173 Isso porque em Jesus perde-se o medo que ameaça deturpar a humanidade contida nas pessoas. A partir do que Jesus oferece, começamos a nos entender e as pessoas ao nosso lado, obtendo-se assim uma leve noção do que Deus poderia significar. Precisamos conhecer Deus a partir da viabilização de uma postura humana que claramente portamos em nós como anseio, porém com falta de coragem para pôr essa postura em prática. Alcançada esta confiança, transcendendo o medo, podemos nos dirigir à realidade do mundo em nossa volta com sentimento de gratidão, de reverência, de respeito e sabedoria174. O homem de Nazaré é a chave para a questão de Deus, e para viver sem medo neste mundo brutal e inexplicável. Drewermann coloca que para ele é algo tremendo o fato de Lucas citar o pronunciamento do Salmo 31 por Jesus na cruz: “Em tuas mãos entrego o meu espírito”, isto é, a mim mesmo. Isso implica em que o que uma pessoa é, depende exclusivamente de Deus. Assim Jesus entendeu Deus: existe um poder em cujas mãos nos entregamos. Não é a história, nem a historiografia contemporânea, nem os arquivos documentais de determinados lugares e períodos que ditam o que somos. “Isto está absolutamente em Deus”. Essa confiança é necessária 172 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 47. Id., Ibid., p.53-54. 174 Cf. Id., Ibid., p. 55. 173 83 para que vivamos e morramos adequadamente como seres humanos. Caso contrário sempre voltaremos a ser dependentes: faremos coisas para que pessoas falem melhor de nós175, ou seja, a busca por um conceito social (fama) razoável. A motivação para o tratamento de um DSPA inúmeras vezes parte da questão de sua “fama”. A família muitas vezes envergonhada pelo impacto negativo que a problemática está trazendo para o seu meio social, impõe o tratamento como condição de continuidade familiar. Isso é compreensível, é humano. Porém, se não houver esse ‘entregar-se’ às mãos de Deus, encontrar-se a si mesmo, essa fraca motivação inicial não surtirá uma terapia adequada, podendo levar todos os envolvidos a frustrações. 2.2.7 - Meditação bíblica e métodos hermenêuticos Segundo Linn, Drewermann se empenha para articular uma teologia que tenha em vista as condições e estruturas da existência humana, recuperando assim uma qualidade teológica que ele não reconhece no que considera a teologia acadêmica e eclesial da tradição cristã ocidental176. O problema da teologia ocidental é pensar a partir de Deus quando deveria pensar em direção à Deus. Os teólogos projetaram os problemas humanos para dentro de Deus, só para descobrir que então eles não podem mais ser resolvidos. Drewermann toma como exemplo uma trepadeira (auto-interpretação da existência humana) em uma árvore (Deus). Os teólogos ficam pensando na árvore em vez de ajudarem a trepadeira a crescer177. “Os teólogos entenderam que fé é levar as pessoas pela mão e, partindo de uma imagem pronta de Deus, apresentar-lhes a realidade, dizendo-lhes já de antemão: ‘o mundo é assim porque é de Deus’”178. A partir disso surgem conflitos diante do fato de que o mundo não é regido pelo amor e sabedoria e sim pela luta de vida, morte e sobrevivência. 175 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.58. Cf. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p.33-34. 177 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.88. 178 Id., Ibid., p.91. 176 84 A meditação bíblica é um dos mais importantes recursos espirituais. Dela podemos encontrar alento nos momentos de aflição. aprofundamento da aflição 179 A interpretação pode levar à libertação ou ao , conforme os pressupostos hermenêuticos adotados. O Método Histórico Crítico (MHC) deve ser superado porque coloca o exegeta apenas no passado, não auxiliando para o presente, tornando-o num excelente dogmático, porém sem que a mensagem do Evangelho seja realmente concluída. Se o texto não falar existencialmente, não será escritura sagrada180. Bootz coloca três bases Kantianas fortemente presentes na estrutura do MHC: lei da restrição histórica, lei da redução causal (seqüência lógico-causal) e a lei da racionalidade e da objetividade (eliminando a subjetividade do estudioso)181. Para corrigir o MHC (que não deve ser totalmente descartado), Drewermann apresenta a psicologia como parceira a ser acrescentada na pesquisa bíblica. Esse forte ataque ao MHC se deve ao fato deste ter se tornado muito “seco” nas questões existenciais da vida. O teólogo se torna alguém com muito conhecimento acadêmico (o que não é essencialmente negativo), porém com um conhecimento alheio à vida do dia-a-dia das pessoas que sofrem. Em busca de uma alternativa que contemplasse mais a existência humana, que fosse mais terapêutica, Drewermann encontra na psicanálise a sua ‘chave hermenêutica’ para a leitura bíblica. Através da estrutura dos arquétipos do inconsciente, Drewermann traça a linha em comum do texto bíblico com as questões vivenciais de quem lê o texto hoje. Esta é a ponte encontrada entre o horizonte do escritor com o horizonte do intérprete. Não despreza de todo o MHC, porém continua ali onde este não tem mais nada a dizer existencialmente. Brakemeier assim expressa: A pesquisa histórica, no entender de Drewermann, aumenta essa distância e dificulta a comunicação. Enquanto isso, a interpretação psicológica da Bíblia cria, conforme ele, ‘isocronia’, isto é uma simultaneidade temporal, transpondo o referido fosso 179 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 87. Cf. Id., Ibid., p. 88. 181 Cf. Id., Ibid., p. 88. 180 85 histórico. Exegese, então, conduz as pessoas aos porões da alma, despertando experiências religiosas comuns e abrindo exatamente assim as portas aos tesouros bíblicos. Os textos comunicam seus conteúdos não como mera informação. Transmitem verdades em forma de experiência religiosa, relevante em todos os tempos.182 Drewermann não é o primeiro (e não será o último) a querer superar ou complementar o MHC. A Hermenêutica Negra183, Feminista184, Evangelical185, Bibliodrama186, entre outras, são exemplos dessa tentativa de enxergar o horizonte daquele que lê (ouve) o texto sagrado. Algumas, com enfoque mais sociológico, outras, com enfoque mais existencial, todas, porém, querendo trazer o texto sagrado para a realidade atual. Postura essa relevante para as reflexões bíblico-teológicas no tratamento. Frisamos o cuidado que se deve ter com hermenêuticas que desrespeitam o texto sagrado, tirando-lhe a autoridade que lhe é devida para a compreensão e aplicação do mesmo. O uso das Sagradas Escrituras tem sido uma ferramenta útil no tratamento de muitos DSPA’s. Na leitura bíblica com e para DSPA’s, a chave adotada por Drewermann também é relevante por responder perguntas existenciais que podem ter sido a causa que levou à, ou, que mantêm a dependência. Assim, toda a articulação pastoral e psicológica é bem vinda para o auxílio terapêutico. Uma articulação não exclui a outra; complementam-se. Por importância essencial, Drewermann entende o substrato humano no qual podem ser encontradas imagens típicas, uma “constante antropológica” de sentimentos e imagens inerentes a 182 Gottfried BRAKEMEIER, A Autoridade da Bíblia (...), p. 63. Conforme Frisotti afirma, consciente do mau uso histórico da bíblia para legitimar o sofrimento do povo negro, que a bíblia é um prato cheio para lutar pela vida e contra a injustiça. Cf. Heitor FRISOTTI, Povo negro e Bíblia – retomada histórica, p. 43-44. Padilha enfatiza a vida como chave hermenêutica: “Nesse sentido, a Bíblia, para a gente negra, deve ser um instrumento que protege, mantém e promove a vida. Sendo assim, a vida é critério central para a interpretação dos textos bíblicos [grifo nosso]”. Günter PADILHA, Hermenêutica Bíblica Negra, p.115. 184 A hermenêutica da suspeita, dentro do método de desconstrução e reconstrução somados ao instrumental analítico das relações de gênero, a teologia feminista tenta responder às necessidades do seu contexto e do seu tempo. Tem como ponto de partida as experiências das mulheres. Cf. Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia feminista, p. 178. 185 Mueller traz um breve panorâmico histórico do desenvolvimento da hermenêutica bíblica, partindo de meados do séc II chegando ao MHC (que nasceu no contexto racionalista/iluminista). Apresenta o método em si, uma avaliação do mesmo e sugere um método que valorize os dois horizontes (do escritor e do intérprete) sugerindo uma fusão dos dois. A chave hermenêutica do reino de Deus perpassa todo o método proposto por ele. Na avaliação que faz do MHC chega a conclusão semelhante a de Drewermann: o mesmo não permite falar existencialmente para o intérprete. Cf. Ênio R. MUELLER, O Método Histórico-Crítico – Uma Avaliação, p. 237-318. 186 Também citado por Brakemeier, no item ‘leitura psicológica da bíblia’. Cf. Gottfried BRAKEMEIER, A Autoridade da Bíblia (...), p. 62. 183 86 cada ser humano187. Significa: para entender a história humana é preciso entender antes a si mesmo como ser humano e descobrir, no passado, identidades semelhantes. “Não são as circunstâncias sociais que determinam o indivíduo e a sociedade, e sim o inverso: é a necessidade de responder à demanda do medo (segurança) que orienta a construção religiosa e social”188. Concluindo: em todo o ser humano há um conhecimento inconsciente acerca do absoluto, e somente neste nível dos arquétipos é que pode ser cogitada e aceita uma conexão hermenêutica sobre a distância temporal dos séculos. É no nível dos arquétipos que se manifesta o ponto comum de todos os fortes sentimentos de alegria e de tristeza, da experiência de nascimento e de morte, de jovialidade e de senilidade, de doença e de cura, de vergonha e de asco, de amor e de carinho, a tendência de demonstração de valor e de territorialidade, as várias reações preestabelecidas em situações de necessidade, etc. É este nível dos arquétipos que explica a eterna validade dos ritos e dos símbolos religiosos.189 O centro do cristianismo deve ser definido em termos terapêuticos. Infelizmente a espiritualidade da igreja perdeu esse poder terapêutico porque os “cura d`alma” deixaram de lidar com as doenças da alma, isolando-se em seus gabinetes, longe das pessoas que deles precisam. Já na formação teológica dos estudantes e do corpo docente, essa situação precisa ser revista, pois só se consegue ajudar alguém até aquele ponto ao qual a gente mesmo chegou190. Bootz compara pensamentos de alguns autores com o pensamento de Drewermann, onde o assunto “recursos espirituais” versus “recursos racionais” no aconselhamento são confrontados. Conclui que o déficit está na área de recursos espirituais (com algumas exceções)191. “O valor dos recursos espirituais precisam ser equiparados ao dos recursos científicos se quisermos que haja uma parceria saudável entre teologia e as outras ciências humanas (...) Mas podem ser complementares”192. Segundo Drewermann, os recursos espirituais mantêm uma estreita vinculação com o universo simbólico, inconsciente. Porém, com a ascensão do racionalismo/cientificismo (séc. 19 e 20), as ciências humanas que mantiveram sua base no mundo dos símbolos foram sendo desqualificadas a exemplo da ciência da “cura d’alma” (ciência teológica com símbolos religiosos: cruz, ceia, oração, bíblia). Surge a psicologia que inunda a 187 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 90. Id., Ibid., p. 91. 189 Id., Ibid., p.92. 190 Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 150. 191 Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 113-119. 192 Id., Ibid., p. 114. 188 87 ciência “cura d’alma” com atmosfera cientificista como exclusiva para resolver problemas existenciais. Essa exclusão dos recursos espirituais é o problema do cientificismo para Drewermann. 2.2.8 - Valor do indivíduo e o valor da comunidade Uma das críticas feitas a Drewermann é que ele coloca sobre o indivíduo a ênfase para crescer espiritualmente, em vez de na comunidade de fé. Essa crítica se resume na pergunta pelo lugar onde ocorre a revelação de Deus. A voz da crítica é assim resumida por Bootz: “o processo da individuação é um programa de espiritualidade que descarta o lugar e o sentido do ser da comunidade cristã, enquanto espaço de celebração pela revelação do Evangelho”193. O pensamento de Drewermann responde: “a comunidade de Jesus Cristo é composta por indivíduos que se comportam segundo o exemplo do próprio Cristo, e não segundo preceitos desta ou daquela comunidade”194. A relação primeira ocorre entre indivíduo e Deus. A comunidade é conseqüência deste ato primeiro. Este ato leva a superar os medos, porém essa superação precisa de companhia, de alguém que consiga ser total para o outro, sem imposições. A comunidade precisa cumprir o seu papel de apoio, de norteamento, sem, contudo, ser diretiva (...) Há uma reciprocidade entre o valor do indivíduo e o valor da comunidade para o amadurecimento da fé, que pode ser quebrada quando um é elevado em detrimento do outro.195 A comunidade torna-se Comunidade Terapêutica quando respeita o indivíduo que tem consciência de sua caminhada própria dentro da caminhada maior do corpo de Cristo. O valor do indivíduo é destacado no Aconselhamento Pastoral – momento em que se isola da comunidade – para que possa se abrir de uma forma que seria impossível em meio ao povo, sendo que: 193 Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 123-4. Id., Ibid., p. 125. 195 Id., Ibid., p. 127. 194 88 O processo de recuperação, contudo, não se limita apenas ao espaço do diálogo pastoral. Ele extrapola. Ele ocorre principalmente depois que o aconselhador se ausenta (...). O diálogo pastoral, quando muito, capacita a pessoa a caminhar de maneira mais autônoma, mais confiante, mas nem por isso menos sofrida.196 2.2.9 - A função da Igreja Sobre a instituição (igreja, firma, partido), Drewermann afirma: Se primeiro preciso pertencer a uma organização para me tornar pessoa humana, continuarei muito longe de ser pessoa humana. Não duvido de que organizações sirvam para concentrar e canalizar atividades de certos interesses; admito que deveria haver muitas dessas organizações e que os alvos perseguidos por elas fazem realmente uma diferença, mas com uma condição: os objetivos não devem estar em função das próprias instituições, mas estas devem ser determinadas pelas evidências humanas. Neste sentido as igrejas efetivamente poderiam ser corporações úteis, caso atuassem em prol de objetivos meritórios,(...), buscando atender à situação miserável de pessoas e animais,(...), na verdade seriam indispensáveis.[grifo nosso].197 Essas observações são suficientes, desafiadoras e de fundamental importância. É preciso reconhecer que como igreja, muitas vezes, cai-se no perigo de se viver em função da instituição. Também as instituições de tratamento de DSPA’s correm esse risco. Drewermann enxerga as igrejas no contexto europeu. Para ele, o MHC é o principal causador dessa igreja voltada a si própria. Devemos perguntar até que ponto as igrejas históricas, tradicionais, que historicamente adotaram o MHC em seus centros de formação pastoral, também não tem os mesmos deslizes da igreja tradicional européia. Sejam elas protestantes ou católicas. Em nosso contexto social brasileiro, as igrejas tradicionais dão pouca atenção em termos de apoio aos dependentes químicos e seus familiares. A igreja precisa concentrar-se mais nas necessidades humanas do que voltadas a si próprias. 196 197 Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 128. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.61-62. 89 Adiante veremos que há indícios de mudança e a importância de uma hermenêutica que fale ao contexto existencial das pessoas, tornando-se corporações úteis. Essa ‘tensão’ entre o valor do indivíduo e o valor da comunidade (instituição de tratamento, igreja, grupo de apoio) enquanto existir será saudável, pois manterá o equilíbrio necessário. Onde há a pergunta, haverão olhos abertos que enxergarão ora uma tendência, ora outra, trazendo de volta para o central: o terapêutico. 2.2.10 - Conclusão sobre a espiritualidade no tratamento A solução para a angústia humana – causada pelo medo, manifesto das mais variadas formas – seria uma confiança despertada pelo aconchego de outra pessoa. Pela impossibilidade de encontrar esse aconchego em pessoas humanas (imperfeitas), a solução passa a ser a fé em Deus (perfeito). A solidarização absoluta de Jesus Cristo para com os mais perdidos e marginalizados deverá servir de referencial para a sua comunidade, que não deve perder esse aspecto terapêutico. Assim, a fé em Deus proporciona ambiente de aconchego humano na comunidade que expressa essa fé. A espiritualidade bíblica é baseada no diálogo entre Deus e o ser humano por isso é espiritualidade integradora e não moralista (excludente). A justificação pela fé (graça) é a porta de entrada, o despertar, dessa espiritualidade. Uma moral condizente com a vida será sempre conseqüência e nunca condição para tal espiritualidade. Para Drewermann, a exclusão dos recursos espirituais é o principal problema do cientificismo que acompanha o MHC, que tem tornado a igreja estéril. O ‘cura d`alma’ tem ficado trancafiado no gabinete, deixando de ir ao encontro das pessoas, atitude contrária à de Jesus Cristo. Por outro lado, a psicologia cientificista tem ignorado a necessidade da justificação do indivíduo na esfera transcendente. Constatamos que o conteúdo dos recursos espirituais 90 encontrados nas Sagradas Escrituras, auxiliados pelo ferramental da Psicologia - numa troca recíproca de conhecimento teológico e humano -, é fundamental para um programa terapêutico consistente. A igreja cristã – quando não voltada para si mesma – tem esse potencial terapêutico intrínseco: o de ser acolhedora. Não desenvolvê-lo a serviço de todo ser humano marginalizado, e aqui queremos destacar os DSPA’s e seus familiares (que vivem sob o peso da angústia), é uma crueldade que angustia o coração do Pai e do próprio Jesus Cristo. É a demonstração clara de que a voz do Espírito Santo não está sendo ouvida por aqueles que dizem ser seguidores do Triúno Deus. 2.3 - Considerações sobre a diaconia O aspecto da espiritualidade integradora aponta para o atendimento pastoral. Além da necessidade legítima que os envolvidos na DSPA’s tem do acolhimento pastoral – que trata questões existenciais da vida – há também necessidades na área pragmática do dia a dia, o atendimento às necessidades básicas da vida no âmbito material. O serviço prestado pela comunidade cristã deve ser o mais integral possível. Diante da pergunta pelo potencial intrínseco que a comunidade cristã tem para ser acolhedora em relação aos egressos/as de instituições de tratamento de DSPA’s e aos familiares dos mesmos, o aspecto diaconal não pode passar desapercebido. “Nenhuma comunidade sem diaconia – Nenhuma diaconia sem comunidade”198. É significativo que Kirchheim, na época (2000) como pastor presidente da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil), proferiu esse lema – como que uma bandeira – para a diaconia na igreja, por ocasião da investidura do conselho e do secretário executivo da Fundação Luterana de Diaconia. Em outra preleção ele afirma: “É este o santo serviço: Deus nos 198 Humberto KIRCHHEIM, Novo jeito de ser igreja, p. 88. 91 serve para que nós lhe respondamos com nosso louvor e adoração e com nosso serviço a ele no mundo em que vivemos”199. Digno de nota é a iniciativa que Gisela Beulke teve em organizar reflexões a partir de experiências concretas na área da diaconia. Louvável é o fato da DSPA não ter ficado ignorada! Um dos capítulos trata do “Trabalho com Alcoolistas”200. Talvez seja listado como sendo uma das primeiras obras literárias brasileiras que insere o tratamento de alcoolistas como sendo um trabalho diaconal. Para a nossa pesquisa, queremos ver a importância da diaconia no processo terapêutico de um DSPA. Partiremos de uma noção bíblico-teológica da diaconia. 2.3.1 - Aspectos bíblico-teológicos da diaconia É da exegese de Gaede Neto201 e de Schweizer202 que queremos importar alguns aspectos básicos da articulação da diaconia pelos escritores neotestamentários. Gaede Neto adota Marcos 10.35-45 como ‘porta de entrada’ para a leitura da diaconia nos ensinos e ações de Jesus, pois é a proposta de “uma regra de convivência comunitária, baseada no princípio da inversão dos valores vigentes na sociedade da época”203. Conforme alguns autores por ele citados, é a tradição mais antiga do tronco terminológico diakonia, o que explicita o maior número de dados para a compreensão de diaconia, conecta o significado de diaconia diretamente 199 Humberto KIRCHHEIM, Novo jeito de ser igreja, p. 23. Cf.Gisela BEULKE, Diaconia: um chamado para servir, p. 33-43. Abordado a partir de experiência prática por Alexandre Ari Monich, Alair Scheidt e Samuel Sobottka. 201 De seu livro ‘A diaconia de Jesus (Contribuições para a fundamentação teológica da diaconia na América Latina)’. São Leopoldo : Sinodal : Centro de Estudos Bíblicos : São Paulo : Paulus Editora, 2001. 202 Especificamente seu artigo sobre ‘A estrutura diaconal da comunidade no Novo Testamento’. In: Kjell NORDSTOKKE (Org.), A diaconia em perspectiva bíblica e histórica. São Leopoldo : EST/Sinodal. 2003. p. 53-83. 203 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 50. 200 92 ao ministério de Jesus e traz o conceito diaconia no contexto das instruções de Jesus para o discipulado204. As conclusões apontadas por ele: a) O texto de Marcos 10.35-45 está no contexto da caminhada de Jesus, junto com as pessoas que o seguiam, rumo a Jerusalém. Dado importante, porque situa a diaconia no contexto do discipulado que se dá na perspectiva da cruz. A disposição de renúncia ao caminho de poder, da glória, da autopromoção, em favor da auto-entrega, passa a ser a perspectiva de identidade de quem segue a Jesus. Assim, a comunidade que aceita esse desafio é a comunidade que serve. Ela entende que o caminho da cruz é o caminho que Deus anda para encontrar as pessoas colocadas nos últimos lugares deste mundo; a comunidade da via crucis é a que se converteu ao princípio da constante inversão da sede pelo poder na opção pelo serviço. Converteu-se ao projeto de Deus de auto-entrega e serviço em favor de quem é vitimado pela busca de poder de outros [grifo nosso].205 b) Jesus reage, no contexto de Marcos 10.35-45, a situações em que o poder da opressão está sendo exercido sobre outras pessoas. A maneira de Jesus reagir chama a atenção: não espiritualiza os problemas, antes aponta para soluções práticas206. c) O texto de Marcos 10.35-45 apresenta os próprios discípulos com ambição de poder, como é exercido pelos governadores dos povos. A proposta de Jesus é uma inversão radical de valores: “Entre vós não é assim; pelo contrário”. Isso é um contra-modelo à sociedade que vitima a maioria dos seus membros. Isso significa uma denúncia profética dos valores e da realidade vigentes. Assim, o serviço recíproco na comunidade é colocado como alternativa à estrutura do poder vigente. d) A opção de Jesus é por todas as pessoas que o modelo vigente exclui. Essa é a opção pela obediência a Deus, que não fica preso ao templo, mas vai até a cruz, que é o lugar comum para as pessoas destituídas de qualquer poder. Essa opção de Jesus se reflete no termo que ele 204 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p 45. Id., Ibid., p. 82. 206 Por exemplo: o exorcista excluído, as crianças excluídas, a mulher vitimada, desafio para que um representante do poder econômico distribua seus tesouros. Cf. Id., Ibid., p. 83. 205 93 escolheu para designar o sentido do seu envio por parte de Deus ao mundo: diakoneîn, o serviço mais humilde e humilhante 207. e) Por fim, a comunidade só pode assumir essa nova regra de convivência quando ela mesma se sabe resgatada por Deus, através da doação da vida de Jesus na cruz. Só quem aceita, de mãos vazias (passivamente), ser resgatado qual escravo e escrava, qual presa impotente nas mãos do poder do pecado de querer ser igual a Deus (de querer ter poder sobre as outras pessoas), essa pessoa está verdadeiramente liberta para se colocar a serviço do resgate de outras pessoas escravizadas [grifo nosso].208 2.3.1.1 - Textos bíblicos clássicos da diaconia Gaede Neto também pormenoriza alguns textos clássicos da diaconia, significativos na aplicabilidade, que adiante queremos fazer, para a dependência química: a) O texto do “Julgamento Final” que se encontra em Mateus 25.31-46 tem recebido basicamente três interpretações: Universal (o critério do julgamento final será as boas obras feitas aos marginalizados/pobres/sofredores – Esse critério será para todos), Clássica (define os pequeninos irmãos/ãs como membros da comunidade cristã, especialmente os missionários que passam necessidades na divulgação do evangelho) e Exclusiva (interpreta o julgamento como sendo para os gentios e não para os cristãos/ãs). Após enumerar os argumentos Gaede Neto opta pela interpretação clássica: Jesus apresenta suas seguidoras e seus seguidores (enviadas e enviados ao mundo) como sendo pobres e dependentes da ajuda alheia. Essas pessoas sofrem a diaconia de outros. Isso necessariamente evita que elas se auto-compreendam como vocacionadas para assistirem os pobres, assumindo uma postura acima dos e alheia aos pobres deste mundo, que dependem da caridade cristã (...). Há aqui uma compreensão de 207 208 Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84. Id., Ibid., p. 84. 94 comunidade, livre da concentração de poder e de posses. Ela não faz assistencialismo paternalista.209 Sinaliza enfaticamente o ponto de partida para o agir diaconal: (...) Isso indica a organização do trabalho diaconal a partir das necessidades de outras pessoas e não a partir da bondade e do poder de ajuda das pessoas cristãs” [grifo do autor].210 b) O texto do “Bom Samaritano” encontrado em Lucas 10.25-37 é a pergunta pela vida. Inicia com a pergunta de como herdar a vida eterna, feita pelo intérprete da lei, que é invertida por Jesus para “que devo fazer para que a outra pessoa (cuja vida está ameaçada) tenha vida?”. Assim, Na parábola do bom samaritano, Jesus nos mostra a partir de onde devemos articular a diaconia: a partir da outra pessoa, daquela pessoa que mais necessita de ajuda para viver, que está mais distante da vida plena, duradoura, perene.211 c) O texto do “Lava-pés” que traz o “Novo Mandamento” em João 13.1-35 aponta para um dos serviços mais humilde, geralmente feito por escravos/as, crianças e mulheres. Esse ato leva Jesus a se identificar com as pessoas que se encontram no último lugar na escala de valores sociais da época. Porém, Jesus o faz como Senhor, o que mostra a radicalidade do gesto. Esse gesto de Jesus está em conexão com Marcos 10.44-45212. A resistência de Pedro213 em ser lavado pelo Senhor, sinaliza a arrogância, auto-afirmação e autonomia em relação a Deus e ao próximo. A ordem de Jesus “como eu vos fiz, façais vós também” (v. 15) está em consonância com a ordem clara expressa na formulação: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (v. 34). Esta ordem tem a ver com o tipo de convivência entre os discípulos, marca esta que distingue 209 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84. Id., Ibid., p. 110. 211 Id., Ibid., p. 97. 212 “44 e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. 45 Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10.44-45). Tradução em Português por João Ferreira de Almeida, versão revista e atualizada no Brasil, 2 ª ed., 1993. 213 Schweizer ressalta que aquele que serve também se deixa servir, assim como Jesus que foi servido à mesa (Lucas 8.3), evitando-se o equívoco de Pedro que não quis ser servido por Jesus no lava pés (João13.7s). O ‘deixar-se servir’ se torna errado quando é exigência de merecimentos ou elevação do status, reforçando as diferenças de em cima e em baixo, conforme os ‘dominadores’ em Mateus 20.25, podendo levar a um consumismo religioso. Cf. Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 58-60. 210 95 a comunidade de Jesus da comunidade do mundo: “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns com os outros” (v. 35)214. Conforme Schweizer, em João 13.6-8, no lava-pés, pós ou durante a ceia, Jesus confere aos seus uma participação em sua própria existência. Esse ‘lugar vivencial de Jesus’ foi preservado pela comunidade. Ela não conhece lugares sagrados nem pessoas santas, ou melhor: todos os que seguem a Jesus são ‘santos’, e toda a terra pertence ao Senhor (...). Ela conhece, porém, uma mesa posta em torno da qual se reúne, como o ‘mesmo lugar’ no qual ela se congrega.215 Essa mesa posta aponta para uma característica central da prática e do discurso de Jesus: a sua comensalidade. 2.3.1.2 - A comensalidade de Jesus em Marcos 2.15-17 15 Achando-se Jesus à mesa na casa de Levi, estavam juntamente com ele e com seus discípulos muitos publicanos e pecadores; porque estes eram em grande número e também o seguiam. 16 Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos pecadores e publicanos, perguntavam aos discípulos dele: Por que come [e bebe] ele com os publicanos e pecadores? 17 Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os são não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores.216 Gaede Neto desdobra o texto de Marcos 2.15-17 em três partes: a) o verso 15 descreve o cenário, b) o verso 16 destaca a ação dos escribas e dos fariseus e c) o verso 17 aponta para a reação de Jesus. Toda a narrativa está a serviço de um dito de Jesus, expresso em duas frases, no verso 17: “Os sãos não precisam de médico” e “não vim chamar justos, e sim pecadores”. O fato 214 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p.113-4. Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 61. 216 Marcos 2.15-17. Tradução em Português por João Ferreira de Almeida, versão revista e atualizada no Brasil, 2 ª ed., 1993. 215 96 de Jesus cear com ‘publicanos e pecadores’ provoca a pergunta feita pelos escribas e proporciona a resposta dada por Jesus217. A partir de Jürgen Becker, Gaede Neto trata do assunto da comensalidade de Jesus no contexto da ceia salvífica de Deus, e conclui: A comensalidade de Jesus com as pessoas pobres das vilas da Galiléia, como vivência da mensagem do irrompimento do Reino de Deus, caracteriza-se pela partilha do pão (para socorrer a necessidade das pessoas famintas) e pela comunhão e comunitariedade (para atender à necessidade da aceitação, da inclusão). Num só tempo, a comensalidade aponta para a importância das dimensões prática e comunitária da diaconia em Jesus. Acresce-se que as duas dimensões juntas significam, ao mesmo tempo, denúncia da realidade vigente de miséria e exclusão e anúncio de uma forma alternativa de vida comunitária, construída sobre o princípio da partilha[grifo nosso].218 Quem são os ‘publicanos e pecadores’ e quem são os ‘escribas dos fariseus’? Publicanos eram os cobradores de impostos. Entre eles encontramos os architelômnai que eram os arrendatários do sistema e arrecadadores chefes que faziam contratos arriscados, buscando tirar o investimento feito e o lucro almejado e encontramos os telônai que eram as pessoas comuns, contratadas para o serviço de cobrança nas coletorias, muitas vezes por não terem trabalho mais digno. Estes eram marcados por grande instabilidade devido à flutuação no mercado de trabalho e pela rejeição social. Por isso eram facilmente corrompidos, fazendo da trapaça a ordem do dia219. A reputação negativa que tinham vinha, basicamente, da carga opressiva que os tributos representava para o povo e comerciantes e da desonestidade na profissão. 217 Cf. Gaede Neto que cita outras passagens dos evangelhos que também denotam essa temática. Cita a conclusão de Uwe Wegner: “o episódio narrado em Marcos 2.15-17 não foi um acontecimento isolado na atividade de Jesus, mas era, por assim dizer, um traço original de sua ação, que se repetia também em outras ocasiões”. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 118. Aprofunda o estudo dando atenção ao estudo de John Dominic Crossan que conclui “A comensalidade, na verdade, era uma estratégia para reconstruir a comunidade camponesa sobre princípios radicalmente diferentes daqueles ditados pelo sistema. Ela estava baseada no ato de compartilhar de forma igualitária o poder espiritual e material, no nível mais popular”. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 118. 218 Cf. Id., Ibid., p. 123. 219 “O coletor de impostos constava, por tudo isso, na lista das profissões desprezadas, juntamente com cuidadores de porcos, curtidores de couro, vendedores de alho, banqueiros, carreteiros, servidores de mesa, servente, , etc., todos trabalhos mal remunerados, executados por pessoas pobres”. Id., Ibid., p. 127. 97 Somava-se a isso a desclassificação religiosa: suas posses injustas, a sonegação de impostos e o desleixo com o dízimo tornavam suas receitas impuras e os estigmatizavam também como infiéis em relação à Torá. Essa situação coloca os publicanos no nível dos pecadores.220 A designação de pecadores engloba os publicanos, porém nem todos os pecadores eram publicanos. Reflete mais um grupo de pessoas com desqualificação religiosa. Uwe Wegner, citado por Gaede Neto, garante que não se trata do conceito de pecadores num sentido generalizado como na concepção paulina (cf. Romanos 3.23), porque Jesus, em seu discurso, admite que há pecadores num sentido contraposto às pessoas que buscam ser retas. Diferenciação essa feita no livro dos Salmos (Salmo 1, entre outros). Os fariseus eram piedosos ativos da época de Jesus, que assumiram fortemente a distinção entre justos e pecadores. Os escribas dos fariseus interpretavam e atualizavam a lei divina para o povo judeu. O interesse deles, em seguir os preceitos da lei de Deus à risca, faziam com que se distanciassem de todos aqueles que não queriam ou não podiam observar com o mesmo rigor a legislação religiosa existente. Manter de um lado a ‘congregação dos justos’ e, de outro, a ‘roda dos escarnecedores’ (expressa no Salmo 1) era a pretensão dos escribas dos fariseus. “A fusão desses dois mundos só pode resultar em confusão: Jesus confunde a ‘boa ordem’ moral e religiosa de sua época”221. Jesus justifica sua atitude com o dito do verso 17 de Marcos 2: “os sãos não precisam de médico...”. Com o objetivo de visualizar, em preleções públicas, essa diferenciação entre justos e pecadores, muitas vezes o co-obreiro usava a figura de uma escada: 220 221 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 128. Id., Ibid., p. 131. 98 Fariseus e seus Escribas Publicanos e Pecadores Fig 05 O primeiro degrau é feito propositalmente mais alto para destacar que as circunstâncias (geralmente de pobreza, das profissões menos dignas da época) dificultavam ‘subir a escada’ dando o primeiro passo. Essa escada também fica evidente na oração feita pelo fariseu, na parábola que Jesus conta em Lucas 18. 9-14. Gaede Neto conclui que a comensalidade para o povo judeu era comunhão de vida. Jesus estava exercitando comunhão de vida com pessoas de profissões inferiores, muitas vezes desonestos e ligados a trapaças. Sabendo que no texto de Lucas 2.15-17 os inquiridores eram os escribas dos fariseus e que estes agiam a partir do critério da discriminação entre as pessoas que observavam e as que deixavam de observar a lei religiosa estabelecida, podemos deduzir: na comensalidade de Jesus, além de coletores de impostos, participavam pessoas cuja imagem, na avaliação dos entendidos da lei divina, estavam manchadas pelo pecado, merecendo a (des)classificação como pecadoras222. Jesus não nega a condição pecadora de seus comensais. Vê o quanto elas precisam de ajuda. O problema é o afastamento consciente dos fariseus, que agem de modo contrário ao médico. O ‘remédio’ para o mal do afastamento só pode ser a proximidade. Agindo como ‘médico’, Jesus age identificado com Deus.(...) Deus que cura, a exemplo do que diz o Salmo 103.3: (...). A comensalidade é, por isso, uma ação terapêutica de Jesus, em que se revela, em toda a sua profundidade, a face 222 Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 129. 99 acolhedora de Deus, que é decididamente inclusiva. Por isso, ao agir em nome de Deus, ‘o tipo de vida que se cria ao redor de Jesus não admite excluídos (...) O perdão de Jesus é o poder de derrubar aquilo que exclui pessoas [itálico do autor, negrito nosso].223 2.3.1.3 - Diaconia como tolhimento extremo Schweizer, apresentando a diaconia como tolhimento extremo, parte do texto exclusivo de Lucas, em Lucas 22.27c, onde Jesus declara: “Estou no meio de vós como diácono”. Ser diácono denota a atividade de Jesus e não seu status. Jesus não serve fazendo algo (como servir à mesa) e sim através do seu tolhimento extremo: “Jesus presta o maior serviço a seus discípulos justamente pelo fato de só poder ainda sofrer o que Deus lhe impôs”224. Em seu ser diaconal ele não é ‘o maior’, conforme discutiam os discípulos entre si por volta da última ceia, que fora o provável contexto da auto-afirmação de Jesus como diácono. A auto-humilhação de Jesus, ao se tornar ser humano, descrita em Filipenses 2.5, passa a ser referencial a ser seguido por todos os discípulos (sympsychoi: pensar e sentir em conjunto), e não apenas por alguns. Na consciência da própria fraqueza, a disputa pelo poder ouve o indicativo ‘entre vós não é assim’ e obedece ao imperativo ‘será o que vos sirva’. Assim, servir como Jesus, denota a existência de um novo comportamento, que ‘em Cristo’ já é realidade a ser seguida: “Nesse seguir, a pessoa vai atrás de Jesus, deixando que ele a conduza e presenteie sem cessar”225. A diaconia é de todos os fiéis. ‘Existir em favor dos outros’ passa a ser realidade na vida daqueles e daquelas que seguem a Jesus. A forma como isso acontece (se é proclamar, exorcizar ou curar, conforme Marcos 6.7, 12s) permanece em aberto. Segundo Schweizer, as listas de Paulo da multiplicidade dos serviços em Romanos 12.6-8 e 1 Coríntios 12.8-10, 28-30, requerem algumas observações: a) O critério não é o ‘extraordinário’ e sim se Cristo é ou não anunciado 223 Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 133. Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 54. 225 Id., Ibid., p. 62. 224 100 como Senhor e se a comunidade é ou não constituída, b) o ‘extraordinário’ não faz parte, necessariamente, da vida da comunidade, c) não existem categorias hierárquicas na comunidade e d) serviços naturais se tornam sobrenaturais quando o Espírito de Deus atua neles. Todo serviço – feito para e a partir de Deus – deixa de ser profano. Todo serviço na igreja é diaconia. Assim, a diaconia como vida cristã passa a ser paradigmática. Também chama a atenção para o fato de que nas listas de serviços a serem prestados, encontram-se aqueles que estão relacionados mais com a proclamação da palavra (vistos como mais espirituais) e aqueles relacionados com o bem estar das pessoas (relacionados mais com o corpo). Em Filipenses 1.1 aparece pela primeira vez a citação de bispos e diáconos lado a lado. Atos 6.1ss faz a diferença entre servir a mesa (eleitos 7 pessoas para tal) e proclamar a palavra de Deus (serviço dos apóstolos). Nas listas de serviços de Paulo, se encontram no começo sempre um ou mais serviços à palavra. Assim surge a pergunta: Existe um serviço mais elevado à palavra e um menos importante às mesas? Como resposta formulamos: A igreja vive fundamentalmente da palavra e esta deve ser autenticada pelo agir diaconal que é regido pelo amor (1 Coríntios 13), caminho que supera tudo e sem o qual, tudo se torna vão. Estevão (um dos sete eleitos para o serviço à mesa) se tornou poderoso anunciador da palavra (Atos 6.8-10), as mulheres que serviam a Jesus foram incumbidas de anunciar a ressurreição (Mateus 28.9s). Por via de regra, portanto, a proclamação como prédica missionária ou dirigida à comunidade, ou como carta apostólica, constitui a primeira tarefa da comunidade (...). Em contrapartida, a diaconia é a incumbência de cada fiel. Sem ela, não é possível ser membro da Igreja, ao passo que sem o dom da palavra isso é possível. A diaconia determina a estrutura e, por decorrência, a natureza da Igreja propriamente.226 Schweizer articula o modelo de Mateus (destacando Pedro), o modelo de Paulo e o modelo de João, colocando a diaconia como fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo. a) Em Mateus destaca a afirmação chocante e exclusiva de que o Cristo exaltado vive agora nos sedentos, fugitivos, enfermos e presos e vem ao encontro das pessoas por meio deles227. A comunidade é claramente concebida como a comunhão de irmãos e irmãs que exclui 226 Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, 71. Cf. Stott que cita, adotando uma interpretação universalista, as palavras de Madre Teresa: “Que cada irmã veja Jesus Cristo na pessoa do pobre. Quanto mais repugnante o trabalho ou a pessoa, maior deve ser a sua fé e o seu amor para servir a nosso Senhor em seu angustiante disfarce”. John STOTT, Os desafios da liderança cristã, p. 46. 227 101 todos os títulos que diferenciem entre superiores e inferiores e faz de todos diáconos (Mateus 23.8-11). Pedro é apresentado como escriba/professor que tem o serviço de ‘ligar e desligar’, cuidando dos mandamentos compromissivos para determinadas situações (éticas). A diaconia missionária consiste em continuar a ensinar os mandamentos que Jesus ensinou, sendo o mandamento do amor ao próximo (regra de ouro em Mateus 7.12) tão importante quando o amor a Deus. b) O modelo Paulino parte da figura do corpo de Cristo como modelo para a Igreja (1 Coríntios 12.12s). É nesse corpo que o próprio Cristo se configura no mundo. Existem os membros que se sentem inferiores (ouvidos) e superiores (olhos), sendo que Deus dá honra aos inferiores. A alegria ou o sofrimento de um único membro atinge o corpo todo. Na expressão ‘Corpo de Cristo’ converge o nascimento de um novo povo de Deus, através do novo Jacó-Israel Jesus, e a nova criação em dimensões cósmicas, através do Cristo exaltado. Assim, a diaconia missionária é centrífuga, ou seja, para fora, alcançando todos os povos. Nas cartas pastorais aparece a questão da organização dos serviços da Igreja. Só que a pergunta é se a ordem testemunha que os valores da Igreja são radicalmente inversos aos que vigoram no mundo (...), e se ela protege a liberdade de Deus para chamar as pessoas que ele quer, mesmo quando contradizem a todas as expectativas costumeiras.228 c) O modelo Joanino (João 15.1-5) usa a figura da videira e ramos, o novo Israel, usando a designação de Israel no Antigo Testamento como videira (Salmo 108.9-16). Juntamente com a figura do pastor-ovelha e da espiga–grãos (João 10.1-30, 12.24), não denota a ajuda mútua entre os membros (como na figura do corpo em Paulo) e sim a ligação direta com Cristo, sem o qual, não há frutos. Assim, chega-se ao extremo, de um modo quase chocante, de confiar que o Espírito Santo é capaz de realizar tudo, desejando-se submissão integral à direção dele, em contra ponto de uma autoridade ministerial (1 João 2.20,27). Não dispensa a autoridade de um dirigente (a exemplo do ‘presbítero’ na 2 ª e na 3a carta Joanina), porém essa não é oficialmente instituída, a exemplo de Pedro em Mateus, e das pessoas ordenadas nas pastorais. O agir do Espírito Santo 228 Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 79. 102 está intimamente ligado à proclamação apostólica ‘desde o princípio’, para que não haja domínio abusivo de líderes. A diaconia missionária em João é centrípeta. Baseada no amor fraternal ela cria o modelo de uma nova sociedade para mostrar ao mundo como deve ser a convivência social a partir de Jesus. Isso faz lembrar mais uma vez que, às vezes, são justamente os extremamente tolhidos que podem ser as melhores testemunhas desse amor e, em decorrência, os missionários mais importantes (...). Se não esquecermos que isso também é ‘cristianismo de ação’, então fica claro que precisamente João atribui maior importância à diaconia ´não de palavra nem de língua, mas de fato e de verdade´(1 Jo 3.18), como é atestado de forma física e concreta pelo lava-pés realizado por Jesus (...).229 2.3.2 - Conclusão sobre a diaconia acolhedora As comunidades cristãs têm – intrínseco aos seus princípios evangélicos – o potencial de promover o acolhimento. A dimensão diaconal é para isso fundamental. O referencial maior, Cristo Diácono – que na sua comensalidade ia ao encontro das pessoas marginalizadas de seu tempo - caso estivesse fisicamente entre nós hoje, com certeza, não passaria de largo do desafio diaconal de acolhimento do DSPA e de seus familiares. Ele é o Bom Samaritano. O texto clássico do julgamento final ‘a mim o fizestes’, sugere que ele vem ao nosso encontro de forma visível, não como o bom samaritano, e sim como o ‘caído na sarjeta’. A pesquisa revelou que não é uma questão de escolha, acolher ou não as pessoas. É questão de obediência, porque parte da necessidade. 229 Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 83. 103 Essa obediência trará tolhimentos saudáveis para todos. Questionará a forma como está sendo feita a comensalidade em nossos dias, seja na igreja, seja em nossos lares. Proporcionará um ambiente onde o ‘sentir-se útil’ será uma ferramenta terapêutica para aqueles e aquelas que vêm de uma caminhada de auto-destruição. Poder existir em favor de outros, passará a ser um estilo de vida saudável. 2.4 - Por uma práxis acolhedora Na primeira parte desta pesquisa constatamos que há uma necessidade de acolhimento aos egressos de instituição de tratamento de DSPA’s e aos seus familiares. As instituições, especialmente o CERENE, estão num processo contínuo de aperfeiçoamento no que tange ao seu específico de tratar os indivíduos através do modelo de internação. O limite se encontra na pergunta do pós-internamento que, se não for adequadamente assistido, põe em risco todo o esforço dispensado durante a internação. As instituições, especialmente a equipe terapêutica, já tem muito a fazer durante a internação. O acompanhamento pós exige uma ‘energia’ extra que, se for conferido pela equipe terapêutica, poderá levar ao estresse, prejudicando o atendimento interno. Há a necessidade do envolvimento de mais pessoas. A partir da temática da espiritualidade, como vimos, necessária para o ser humano que é essencialmente um ser angustiado, podemos perceber que a comunidade cristã tem o conteúdo espiritual que possa vir ao encontro dos DSPA’s e seus familiares, espiritualidade essa que é essencialmente integradora. A Diaconia, essencialmente acolhedora, mostra que é uma ordem do Cristo Diácono para os seus seguidores, e não uma questão de escolha, servir ao próximo. Os DSPA’s e seus familiares são o próximo da comunidade cristã. Seguiremos no próximo capítulo pontuando algumas aplicações da espiritualidade integradora e da diaconia acolhedora que consideramos necessárias para o atendimento aos DSPA’s e seus familiares. Observaremos também a práxis das comunidades da IECLB da Região 104 da Grande Florianópolis, SC, para, na seqüência, indicarmos algumas ações práticas – e possíveis – que as comunidades cristãs poderiam estar executando em obediência ao seu Mestre. 105 III – PARÓQUIA DA SOBRIEDADE: O DESAFIO DO ACOLHIMENTO DOS EGRESSOS DE INSTITUIÇÕES DE INTERNAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS 3.1 - Considerações preliminares Definido o público formado pelos DSPA’s e seus co-dependentes, apresentado o potencial terapêutico intrínseco à Comunidade Cristã, pelo seu conteúdo de ensino (espiritualidade) e pela sua práxis (diaconia), ambos essencialmente integradores e acolhedores, passaremos, nesta terceira parte da pesquisa, a buscar pela aplicabilidade deste potencial, tendo na Paróquia Luterana da Sobriedade um referencial empírico. Para que o acolhimento de egressos e seus familiares ocorra satisfatoriamente, pontuaremos algumas iniciativas que deveriam surgir nas e a partir das comunidades cristãs e iniciativas que deveriam surgir a partir das instituições de internação. 3.2 – Em busca da aceitação social Cury simplifica a complexidade da etiologia da dependência psicológica das SPA’s: 1. reforço psicológico positivo que é a busca pelo prazer/curiosidade e influência de amigos; 2. reforço psicossocial que é uma maneira de suportar as aflições; 3. reforço psicológico negativo 106 que é a fuga do desprazer criado pela síndrome de abstinência, quando então a dependência psicológica fica evidente. Somado a isso, a dependência física de algumas delas, que se desenvolve através de uma tolerância que o organismo vai adquirindo pela insistência do uso até que a SPA passa a fazer parte do metabolismo230. Arnold Schleier231 informou que são basicamente quatro as causas da DSPA: predisposições hereditárias, traumas da infância, traumas do momento e influência de grupo. É a soma de duas ou mais dessas tendências que poderão desembocar na DSPA. O medo de não ser aceito/amado pelo grupo, as dificuldades de relacionamento com a família (gerando insegurança) e a curiosidade, têm levado muitos adolescentes a experimentar entorpecentes, resultando na futura provável dependência destas substâncias. Como vimos, a angústia como conseqüência do medo de não ser amado (perder o grupo, solidão) ou de morrer (doença), é a principal causa que leva à desumanização do ser humano, gerando males de todo tipo. Assim, podemos constatar: é a causa primária, somada ou não aos fatores hereditários, traumas e influências, que pode levar ao uso e abuso de SPA’s. A ‘busca pela turma’ – um dos fatores expressos também pela maioria dos entrevistados como uma das causas que levaram a usar a SPA232 - reflete o medo da ‘perda da vida social’, que é uma forma de ‘morte social’. Na necessidade de ser alguém (sucesso na vida), ser reconhecido, ter sentimento de pertença, a busca pelo efeito de uma SPA poderá se tornar um paliativo, anestésico, que levará à ilusão de superar esse medo e a dor de ser visto com indiferença, bem como as frustrações daí derivadas. Visto que o fator social está fortemente envolvido na etiologia podemos deduzir que estará da mesma forma determinando o processo terapêutico. 230 Cf. Augusto KURY, Superando o Cárcere das Emoções, p 94-101. Psiquiatra e Psicoterapeuta da Alemanha, aposentado, na época residente na cidade de Ijuí, RS. Informações repassadas no Curso realizado pela Cruz Azul no Brasil para Obreiros das CT`s Filiadas em 1998, na cidade de Ijuí, RS. Arnold Schleier era o palestrante principal. 232 Pergunta: O que o levou a usar essa substância? Respostas no anexo I, p. 2, 5, 9, 13, 17, 20, 30, 35, 38. 231 107 Sem descartar a importância de todas as ‘frentes’ de convívio social, é foco de nossa pesquisa, a partir da Teologia Prática, a sociabilidade no convívio eclesiástico. Importa-nos responder como deveria ser essa inserção. A abordagem da temática da espiritualidade e da diaconia nos dão subsídios para que possamos aplicá-los no que tange à inclusão eclesiástica. 3.2.1 - Espiritualidade integradora Iniciaremos com algumas aplicações a partir da espiritualidade para integrar DSPA’s e co-dependentes nas comunidades cristãs locais. 3.2.1.1 - Do medo à confiança Como vimos, o medo não pode ser vencido por atitudes de fuga, entre elas a busca pelos efeitos das SPA`s. As quatro formas de medo - esquizoidia, depressão, natureza obsessiva e histeria - estão presentes na vida de um DSPA e/ou co-dependente. Cada qual com sua tendência predominante. O programa terapêutico deverá deslumbrar tratamento específico para cada caso. Porém, em atividades de grupo, dentro da perspectiva de uma espiritualidade terapêutica, poderíamos sinalizar a importância de levar em consideração atividades que venham ao encontro dessas formas de medo, seguindo os princípios dos sacramentos propostos por Drewermann: a) Em relação à esquizoidia é necessário proporcionar o tempo individual do terapeuta, pessoas que se dispõem ‘andar com’ no processo de abstinência. Exemplos disso são os terapeutas (psicólogos, pastores, funcionários em geral) que atuam dentro de uma instituição de 108 internação para tratamento (conforme vimos o CERENE), o ‘padrinho’ encontrado no sistema de acompanhamento dos Alcoólicos Anônimos (A.A.) ou outros grupos de apoio. A experiência tem mostrado o quanto é importante que o indivíduo em recuperação possa ter uma ou mais pessoas como referência para contatar na hora de uma crise. Todo programa seja de internação ou de grupo de apoio, deve estar atento para este acompanhamento individual e organizado. Também o chamado à fé, o despertar da experiência mística, será importante neste processo, para incentivar a relação individual com Deus, satisfazendo assim essa necessidade crucial de sentir-se amado e acolhido pela graça divina. É significativo que o programa de tratamento do CERENE, como visto acima, tem como primeiro item o acompanhamento individual, mostrando com isso um dos pilares fundamentais do mesmo. De igual forma a Paróquia Luterana da Sobriedade, como veremos adiante, proporciona esse acompanhamento, feito pelo pastor, já durante a internação do indivíduo, acompanhando no pós-internamento. Adiante queremos propor a figura do ‘Agente Comunitário em DSPA’ que fará a ponte entre a instituição de internamento e a comunidade religiosa. b) Em relação à depressão, é necessário proporcionar momentos de Santa Ceia, que convida à comunhão e visualiza a realidade do perdão, que deve ser pronunciado por pessoas que vivem da mesma graça. As refeições de mesa – que oportunizam convivência - também são significativas nesse processo. O DSPA geralmente carrega muita mágoa, tristeza, bem como muito remorso em relação a atitudes passadas. A temática do perdão – dar, pedir e receber – é fundamental e deve ser ensinada através de palestras e colóquios individuais, bem como promovida em encontros que visam resgatar ou acertar os relacionamentos. Não com enfoque moralista, mas com ênfase na graça oferecida por Deus e que pode ser repassada adiante. A Santa Ceia poderá ser um ‘instrumento visualizador’ dessa graça, marcando assim momentos especiais, como se fosse um “divisor de águas” (entre o antes e o depois). Pois nela está inserida a comunhão vertical (com Deus) e horizontal (com o próximo). O co-obreiro teve a iniciativa de incluir no programa terapêutico do CERENE, unidade de Palhoça, a realização da Santa Ceia, objetivando visualizar a graça estendida de Deus – que é 109 incondicional e é para todos. O momento é realizado pelo pastor da Paróquia Luterana da Sobriedade e participam do mesmo os terapeutas da instituição e residentes que solicitarem essa oportunidade. É um momento que marca inclusive emocionalmente aos participantes. A aplicabilidade da comensalidade, veremos adiante, pergunta sobre como está sendo essa abertura nas comunidades cristãs. c) Em relação à natureza obsessiva, é necessário proporcionar momentos de ludoterapia, tão pouco praticada nas reuniões de apoio para DSPA’s e co-dependentes. Poder rir, expressar talentos através de esquetes, dinâmicas recreativas de grupo – programas que aliviam o stress, a ansiedade mostram o quanto a vida é bonita e divertida – de ‘cara limpa’233. Esse lazer saudável, que promove a vida, poderá ser incentivado também através de dias recreativos. Muitos foram privados de uma infância saudável. Isso pode ter ocorrido pelo sistema educacional dos adultos responsáveis ou pela precocidade, exigindo-se atitudes adultas já na infância. Por exemplo, através da ludoterapia é possível descobrir-se, vencer barreiras de relacionamento, superar a timidez. Maurício, participante da Paróquia Luterana da Sobriedade, no final da entrevista sugere que haja dias comemorativos dentro da Instituição de Tratamento, proporcionando momentos agradáveis. Está completando um ano de sobriedade (depois de onze anos de DSPA): “e isto tá me dando uma grande auto-estima”. Para ele, a comemoração junto aos residentes poderia estimular a estes, mostrando que se “tá dando certo comigo, então pode dar certo para alguém”234. d) Em relação à histeria, é necessário proporcionar orientação sexual saudável235. Articular, em terapia de grupos e em palestras, assuntos do relacionamento com o sexo oposto. 233 Gíria que denota a ausência de uso da SPA, ou seja, a abstinência. Trecho da entrevista concedida por Maurício (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 37. 235 LEON, tratando da abordagem da sexualidade dentro de uma CT: “Empregam-se grupos terapêuticos e o aconselhamento individual para facilitar a revelação de históricos sexuais traumáticos e abusivos, bem como de vulnerabilidade relativas à imagem física, ao desempenho sexual, à beleza e à força; outro objetivo disso é estimular expressões de medos, ansiedades e expectativas concernente ao comportamento sexual do indivíduo. Ajudam-se os residentes a compreender de que maneira seu comportamento e suas atitudes sexuais são usados para a sobrevivência social, a aceitação pessoal, o lidar com as coisas e a manipulação das coisas, bem como as formas pelas quais o uso de drogas mascara sentimentos não relacionados com as drogas (com freqüência, a culpa, a raiva dos outros, o ódio de si mesmo, o tédio, a insegurança , etc.), ou, inversamente, eleva (aumenta) sinteticamente sentimentos de potência ou de desejo”. George De LEON, A Comunidade Terapêutica (Teoria, Modelo e Método), p. 202. 234 110 Na terapia individual, tratar o relacionamento que houve (e há) com a mãe e pai, ajudando o indivíduo a caminhar em direção a uma vida madura. Percebe-se, com facilidade, que a ‘fuga’ na DSPA traz, entre tantos outros problemas, um certo bloqueio no desenvolvimento da maturidade do indivíduo. A grande maioria dos DSPA’s, quando em processo de recuperação, demonstram um comportamento adolescente236. Independência saudável dos pais deve ser fortemente incentivada. O “deixar pai e mãe”237 é um processo que deve ser retomado. Também é comum o cônjuge ser substituto materno ou paterno. Incentivar um relacionamento maduro – de pessoas adultas – é fundamental para aprimorar o casamento. Em reuniões familiares, os pais e os cônjuges devem ser orientados a proporcionar essa maturidade aos filhos/as e cônjuges. Um dos sintomas da co-dependência é a superproteção. Sem que esta seja questionada dificilmente haverá o desenvolvimento da maturidade, dificultando a sobriedade. Assim, com uma programação criativa que contemple o acompanhamento individual, a graça (audível na proclamação da Palavra e visível na Santa Ceia), o lazer recreativo e o amadurecimento da sexualidade, torna-se possível colaborar para a superação do medo da solidão e do desamparo. 3.2.1.2 - Da moralidade excludente à espiritualidade integradora Vemos que a espiritualidade bíblica é integradora. Em contrapartida a DSPA é excludente. A espiritualidade bem articulada aumenta o potencial terapêutico de um programa de tratamento. Em um ambiente onde se fala do perdão, da inclusão, do aconchego a Deus e à irmandade, da auto-estima, é possível adquirir novamente o gosto pela vida. 236 Kury explica que o DSPA desenvolve uma velhice precoce devido as fortes emoções produzidas pelas SPA. Cf. Augusto KURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 52-53. Isso talvez explica porque quando em processo de recuperação parece ocorrer um resgate da adolescência e/ou da infância, expressa, entre outros, pela dificuldade de viver sob regras. 237 Este é um dos princípios básicos para o desenvolvimento de uma maturidade saudável e a constituição de um relacionamento maduro com alguém do sexo oposto. 111 Porém, também percebemos que a espiritualidade mal articulada, moralista, poderá ser excludente. Alimentará e promoverá a exclusão já instalada na sociedade e na ‘alma’ do DSPA que se auto-exclui. Através de um discurso moral, aumenta-se a pressão sobre o indivíduo que já está saturado de complexos e remorsos, levando-o a constatação de ser um fracassado e inútil. Esse sentimento tem levado ao uso e abuso de SPA’s. Aumentando esse sentimento negativo, através de discurso moralista, empurra-se o indivíduo ao aumento do uso da substância, gerando assim o abuso. Essa é a metodologia da exclusão piedosa que, além de livrar-se do indivíduo, joga sobre ele toda a culpa. Somente quem se esvazia de sua pretensa situação de ser melhor (moralmente), reconhecendo sua pequenez, possuidor do germe da corrupção, é que terá condições de lidar com pessoas já esvaziadas de si mesmas, de Deus e dos outros. Só quem conhece a graça, pela graça poderá acolher o que se sente fracassado. Esses argumentos justificam a necessidade e importância da espiritualidade (não moralista) no tratamento de DSPA’s. Estes têm uma vantagem em relação aos moralistas, pois não têm mais “moral” a perder, sendo livres para um relacionamento sincero com Deus, amadurecendo para uma vida baseada no amor. Talvez seja essa a principal razão que faz com que um DSPA em abstinência consiga ajudar, com maior facilidade, um outro a entrar em abstinência. Este fato faz com que os grupos de apoio sejam transparentes, impressionando aos que participam pela primeira vez238. Muitos DSPA’s adquiriram um conceito negativo de Deus na mesma medida que carregam uma experiência negativa com o pai: ausência ou rigidez excessiva. Deus assim concebido passa a ser aquele que ‘não está nem aí’ ou ‘com o chicote’ na mão cobrando os erros feitos. Se a igreja acentuar esses conceitos – apregoando moralidade – aumentará o conflito já existente no indivíduo. Na articulação de uma espiritualidade bíblica, a pessoa de Jesus Cristo – pelo ensino e pela prática – poderá nortear o ensinamento da graça e da justificação pela fé. A experiência tem mostrado o quanto um DSPA se vê acolhido na pessoa de Jesus Cristo. Assim se adquire uma 238 Ficamos impressionados por esse aspecto ao participar em três reuniões de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade. 112 nova visão sobre Deus: perdoador e acolhedor. A partir dessa nova realidade, encontra-se o caminho, por exemplo, para perdoar o pai e assumir o papel de pai (quando já há filhos). Assim, a nova ética é conseqüência desse lugar de abrigo, de amor, confiança e esperança, que é Deus. Não é fácil articular o assunto da ética para pessoas moralmente esfaceladas. Duas situações se destacam: os que possuem e os que não possuem referencial adequado, ambos trazidos do contexto familiar. Por mais que se acentue a graça e a justificação pela fé, é necessário orientar para uma nova conduta – a exemplo da abstinência – que facilmente poderá ser interpretada por moralismo. Enfatizamos por isso essa ordem: a partir da graça, do ser aceito, amado, é possível reestruturar princípios de uma conduta moralmente satisfatória. Assim a nova conduta moral será (re)aprendida como conseqüência e não como meio para chegar à Deus. A moral será vista não como meio para ser aceito e amado por Deus e pela sociedade e sim como meio de preservar e promover a vida. O círculo vicioso (fig 06) – de uma moral mal orientada – gerador de constante sentimento de culpa: Rigorosidade moral (para ser aceito) química para aliviar vergonha/remorso atos de compensação moral Rigorosidade ....239 ajuda a explicar as constantes recaídas no processo de tratamento de DSPA’s. Rigorosidade Moral (não é permitido o menor desvio) Moral Atos de Compensação(moral) mal-orientada Substâncias psicoativas (para aliviar) Vergonha/Remorso Sentimento de Culpa Fig 06 239 “Tomemos por exemplo um alcoólatra, que tende ao abuso e se sente atormentado porque no fundo só pode ficar com um constante sentimento de culpa. Seu superego é tão rigoroso, tão sádico, que não permite o menor desvio. No fundo ele abusa do álcool para criar um estado de embotamento mental que atenua em parte o rigor constante, a permanente observação do superego. Em seguida vem o sentimento de vergonha e remorso sobre as conseqüências do abuso alcoólico, vem os atos de compensação, recomeça a moralidade com rigor total, formando-se um círculo vicioso sem escapatória. Seria possível mostrar que a maioria dos chamados vícios ficam girando nesses círculos viciosos de uma moral mal-orientada [grifo nosso]”. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.122. 113 Esse círculo pode refletir o processo de uma dependência psicológica da DSPA. Somado a esse círculo vicioso, teríamos que acrescentar que o mesmo pode desembocar, conforme a SPA usada, na dependência de ordem física/orgânica. Nesses casos a fissura não é conseqüência somente do estado psico-emocional, mas também da necessidade que o organismo passa a ter da SPA a qual está acostumado a receber240. Porém fica evidente que tratar o aspecto da dependência física (desintoxicação), sem tratar esse círculo vicioso, será um tratamento ilusório com resultados apenas temporários. Tratar o círculo vicioso levará o indivíduo a ter maior probabilidade de controlar-se diante de fissuras. Não para ter uma moral melhor, mas por passar a gostar de viver. Nas palavras de Drewermann, referindo-se ao apóstolo Paulo no capítulo 7 de Romanos: Ele descobre que na realidade ele vive por graça, transcendendo a lei. E isto é o que se poderia desejar a uma pessoa desse tipo: uma libertação e um livramento moral por meio de uma confirmação mais profunda, por uma dedicação mais crível. Então ela fará espontaneamente tudo que a moral dizia antes.241 O relacionamento entre teologia e psicologia é importante neste aspecto: a teologia ensinará a fé integradora e a psicologia, que não desprezará esse ensino porque verá o valor do transcendente242. Assim, ambos os terapeutas (pastor/a e psicólogo/a) andarão juntos. 240 Kury trata da temática da dependência psicológica e física. “Nem todas as drogas causam dependência física, mas todas são capazes de provocar, em diversos graus, a dependência psíquica”. Cf. Augusto KURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 93-101 (citação p. 95). 241 Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 122-123. 242 Só será possível um diálogo interdisciplinar entre teologia e psicologia quando ambas valorizarem o específico de cada uma: a importância da espiritualidade que integra o ser humano com Deus e com o próximo e a importância da estrutura psicológica do ser humano, respondendo aos seus medos. A tendência atéia da psicologia tem impedido esta de dar respostas às angústias humanas e a tendência racionalista da teologia tem trancafiado o sacerdote nos escritórios, deixando de atender aos desesperados. Assim, se a psicologia considerar também o transcendente e a teologia aprender com o ferramental da psicologia – ambas, de mãos dadas – atenderão à demanda humana. Marcou ao co-obreiro uma fala de um residente, um senhor da terceira idade, que por muitos anos estava no processo de busca por recuperação de sua DSPA, que afirmava o seguinte conteúdo: ‘Fazem apenas dois meses que estou aqui no CERENE ouvindo o Evangelho de Jesus Cristo, e já estou me encontrando. Eu tenho que avisar a minha filha que está se formando em psicologia que se ela não ‘trabalhar’ com o Evangelho de Jesus ela não vai conseguir ajudar as pessoas’ [citação livre – de memória]. 114 3.2.1.3 - Meditação bíblica A meditação bíblica é uma ferramenta terapêutica imprescindível. Isso bem o mostra a fala dos entrevistados em relação à espiritualidade e à palavra de Deus243. Queremos apontar para a necessidade de a chave hermenêutica ser existencial. Visto que o DSPA em recuperação e o co-dependente estão envolvidos em questões profundamente existenciais, ao ouvirem uma reflexão e/ou lerem um texto bíblico, a pergunta imediata é: o que isso tem a ver com o meu atual estado? É muito forte a tendência de se fazer uma leitura alegorizada, devendo-se evitar os abusos, especialmente de ordem moralista. Informações básicas sobre os costumes da época bíblica ajudam a evitar abusos de interpretação. A Bíblia que o DSPA e o co-dependente buscam é aquela que fala para o seu dia a dia. Visto que o residente passa um bom tempo no processo de internação, é mister que o mesmo seja ensinado a ‘ler’ a Bíblia, caso assim o queira, para que essa não se transforme numa ‘fuga’ da realidade. Eberhard Russ244, ex-diretor da unidade do CERENE de Palhoça, costumava dizer que o residente pode se ‘esconder’ em dois lugares: na laborterapia ou na Bíblia. Na laborterapia quando, através de uma dedicação admirável, tenta mostrar que afinal ‘é gente boa’, uma tentativa desesperada de mostrar que tem valor. Na Bíblia, através de uma linguagem espiritualizada, tenta mostrar e convencer a todos que agora ‘se tornou confiável’ porque agora Deus é levado a sério. 243 Esta é uma das constatações à qual também HILDERBRANDT chega, através das falas de seus entrevistados, residentes do CERENE, bem como de familiares, que estavam no processo de reinserção social. Viu-se obrigado a incluir a temática da espiritualidade pelo fato desta estar muito evidente nas falas dos entrevistados. Cf. Mário HILDERBRANDT, A Reinserção Social do Dependente Químico após o Tratamento em Comunidades terapêuticas: O caso do CERENE de Blumenau/SC, p. 87-91. Nas entrevistas que fizemos aos residentes, perguntamos: Qual a importância da religião, da palavra de Deus, no seu tratamento no CERENE? As respostas se encontram no anexo I, p. 4, 7, 10, 15, 19, 21. As mães entrevistadas perguntamos pela importância da espiritualidade. As respostas se encontram no anexo I, p. 24, 26, 29. 244 Russ veio enviado ao Brasil com a missão de iniciar a unidade do CERENE de Palhoça. O co-obreiro teve a oportunidade de aprender muito com ele, numa convivência de cinco anos. Atualmente Russ reside na Alemanha, onde trabalha também numa Instituição de Tratamento de DSPA’s. 115 A presença do ensino bíblico responsável é fundamental numa instituição que conta basicamente com a motivação do indivíduo para que o tratamento venha a ser consistente. Como costumava dizer Alair Scheidt, ex-diretor da unidade do CERENE de Blumenau: Tirem a Bíblia do CERENE e nem com cinqüenta homens armados se conseguirá o ambiente terapêutico e seguro que temos. Conscientes do perigo do abuso (ou mau-uso) da Bíblia, pode-se buscar pelo uso correto. O abuso, também nesta questão, não justifica o desuso. O uso correto aponta para a graça e traz subsídio para a reestruturação da vida. Esse uso é significativo e perceptível na unidade do CERENE de Palhoça que tem obreiros com formação acadêmica suficiente para tal. Inclusive a figura do teólogo, que muito contribui para isto245. 3.2.2 - Acolhimento diaconal Queremos fazer aplicações para o acolhimento diaconal de DSPA’s e de co-dependentes nas comunidades cristãs locais. 3.2.2.1 - A necessidade de pessoas que se envolvam Num primeiro momento, o DSPA precisa de um ‘novo ambiente’ que lhe ajude no início e continuidade do tratamento. Esse início acontece, no caso dos egressos, quando enviados ao internamento. Alguém lhe deu atenção para que pudesse iniciar o processo de tratamento. Dos residentes, Osmar chegou à 245 Como vimos anteriormente, a hermenêutica bíblica que mais contribuições traz para um programa terapêutico é aquela que responde às questões existenciais. Drewermann aponta para uma hermenêutica com o viés da psicanálise. As entidades CERENE e Paróquia Luterana da Sobriedade apontam para uma hermenêutica com característica mais evangelical, que mostra a realidade humana do ser pecaminoso e enfatizam a graça de Deus. Aliás, parece-nos que é a “graça de Deus” a chave hermenêutica – o ponto comum - para as articulações existencialistas. 116 atual internação através da irmã; Rogério pela esposa, mãe e tio; Ivo, pela ex-esposa; Romeu, através de um agente da campanha CELESC246; Egon, por já conhecer o CERENE, veio por conta própria; Gerson foi ajudado por um amigo. Percebemos que sempre há pessoas envolvidas num processo de internação. Mesmo os que procuram sozinhos por uma internação, envolvem nesses casos, a assistência social, um líder da igreja, a brigada militar, um político etc., ou vão direto na instituição e recebem uma boa acolhida necessária para ‘estarem aí’. Não há tratamento sem que alguém se envolva diretamente com a questão. A obviedade desta constatação não nos exime de perguntar: quem são os que se envolvem? Como vimos, geralmente os familiares, muitas vezes já cansados de tantos reveses. E quando esses não ‘estão mais nem aí’, pessoas envolvidas com instituições cumprem o seu papel. O que não parece tão óbvio para compreender é o pós-internamento. Aí também são necessárias pessoas que se envolvam, como bem afirmaram os entrevistados. E a comunidade cristã tem um potencial peculiar a ela de realizar essa função de acolhimento. Essa função só será realidade se forem praticadas as conclusões exegéticas que vimos a partir de Gaede Neto: A cruz é o caminho que Deus anda para encontrar as pessoas colocadas nos últimos lugares deste mundo (a), a opção de Jesus é pelos excluídos do modelo vigente de sociedade (d), propondo um contra-modelo à sociedade que vitima seus membros: ‘entre vós não é assim’(c). Quem sabe ter sido resgatado por Deus, há de resgatar a outros (e) e isso será feito com soluções práticas e não espiritualizantes (b). Ou seja, envolver-se nos coloca no e ao mesmo tempo promove o caminho da cruz, impõe-nos a opção pelos excluídos, proporciona um novo modelo social que resgata o outro com ações práticas e não apenas espiritualizantes. Em relação a essas ações, elencamos algumas sugestões adiante. 246 Central Elétrica de Santa Catarina – trata-se de uma campanha em que o consumidor pode fazer uma doação mensal através da fatura de energia elétrica. Essa campanha tem sido feita de casa em casa, muitas vezes oportunizando esse contato direto com quem precisa da internação. 117 3.2.2.2 - Suprindo o vazio relacional O DSPA carrega, muito semelhante aos ‘publicanos e pecadores’, o estigma do preconceito e da exclusão. Isso porque ainda é forte o conceito moral sobre o problema da dependência química, em detrimento do conceito de doença. Somado a isso, sob o efeito da química, o DSPA faz coisas que causam repulsas e ‘má fama’ diante da sociedade em que vive. O rompimento da relação com a SPA leva também ao rompimento de relacionamentos com pessoas usuárias da substância, sendo que atinge quase que a totalidade de relacionamentos da maioria dos DSPA’s. Surge assim um vazio relacional. A construção de novas relações se dá de forma gradativa. Ela inicia na instituição de tratamento, porém é interrompida com o término do mesmo. Essas relações construídas durante a internação servem basicamente de ‘treinamento’ para as habilidades relacionais. Assim, a ansiedade pós-internamento é gerada basicamente pela falta da SPA e pela falta de ‘amigos’. Para que a ansiedade não fique acima de um limite satisfatório, é importante que pessoas venham ao encontro do DSPA em abstinência. Pessoas que entendam as lutas enfrentadas nesse processo e que colaborem positivamente com atenção, convívio, apoio etc, inclusive em casos de precariedade material que o DSPA e sua família passam (pois estão num novo começo) – tornando-se ação diaconal bem concreta. A organização de programas específicos que dão suporte para o DSPA – a exemplo de grupos de apoio – será fundamental nesse acolhimento. Nas palavras de Lorenz, que define diaconia como o amor ao próximo organizado e praticado pela comunidade, levando uma vida tão digna quanto possível às pessoas, da relação curada com Deus à superação de toda a necessidade247, decisivo é: “ver onde há necessidade ou aflição na comunidade, onde se pode auxiliar razoavelmente através da mobilização de algumas pessoas ou de toda a comunidade eclesial (...) Onde estão as pessoas solitárias, desempregadas, desnorteadas pela idade, as famílias com alcoolistas, os pais/mães solteiros/as? Talvez também só 247 Cf. Heinz LORENZ, Comunidade Diaconal?, p. 292. 118 precise ser disponibilizado um espaço para um grupo de auto-ajuda de pessoas operadas de câncer![grifo do autor].248 Dos textos clássicos sobre diaconia, apontados por Gaede Neto, do texto sobre o julgamento final (Mateus 25.31-46) e do lava-pés (João 13.1-35), queremos salientar que a diaconia em relação aos egressos de instituição de tratamento de DSPA’s, não é uma questão de escolha da comunidade, ou fruto da bondade da mesma. É questão de necessidade! Essa questão fica claramente enfatizada no artigo de Morais, quando afirma: Ora, se as drogas tornaram-se onipresente, passaram a ser um problema de toda a sociedade. Todas as frentes educacionais e todas as frentes terapêuticas, bem como todas as atividades religiosas têm que dimensionar adequadamente o megaproblema que ameaça as gerações e pôr mãos à obra [itálico do autor, negrito nosso].249 A parábola do bom samaritano (Lucas 10.25-37) levanta a pergunta: de quem sou eu o próximo? Brakemeier responde: A resposta depende do grau de necessidade da outra pessoa. O samaritano descobriuse a si mesmo como próximo do homem assaltado, ferido, jogado na sarjeta. A causa são os olhos que lhe foram abertos pelo amor. Sem amor não se enxerga sofrimento e culpam-se os outros. (...) Próxima é a pessoa que precisa de mim.250 Os DSPA’s e seus familiares precisam das comunidades cristãs. 3.2.2.3 - Comensalidade como ação concreta É na comensalidade de Jesus que encontramos um paradigma de ação concreta. O aspecto da inclusão na comensalidade faz com que ela seja terapêutica. Por exemplo, numa instituição de internação, quando os obreiros fazem sua alimentação junto com os residentes, eles estão comunicando o valor dos mesmos. Sentar-se junto à mesma mesa, 248 Id., Ibid., p. 293. J. F. Regis de MORAIS, Drogadicção: um mega-problema atual, p. 25. 250 Gottfried BRAKEMEIER, Por que ser cristão? p. 95. 249 119 compartilhar do mesmo suco, do mesmo alimento, da mesma fala, oportuniza uma clara comunicação de amor ao próximo. Quando o contrário acontece, ou seja, uma mesa ‘especial’ para os obreiros, então está dividida a instituição em duas classes de pessoas. O mesmo acontece na comunidade cristã, quando se celebra a Ceia do Senhor. A experiência tem mostrado que um grande número de DSPA’s, ao ingerir uma pequena dose de bebida alcoólica (seja destilada ou fermentada), desperta uma fissura muito grande. Assim sendo, a presença do vinho na Ceia é uma ameaça à abstinência do DSPA251. Devido a isso, muitas comunidades – solidárias – aderiram ao uso de suco de uva. Neste aspecto se encontra uma expressão concreta de amor. Previne-se à recaída. Propõe-se a abstinência. Por outro lado há comunidades que ainda não se conscientizaram de tal necessidade. Outras menos dispostas a ‘abrirem mão’ do direito ao vinho, fazem no final ‘uma rodada’ com suco de uva. Talvez não haja maneira melhor de excluir alguém da comunhão. E o que falar das igrejas (tradicionais?) que ainda vendem bebidas alcoólicas em seus eventos festivos e confraternizações? Onde a ‘comunhão de mesa’ (almoços e jantares) é regada a bebida alcoólica. Talvez desconheçam a problemática do alcoolismo. Especialmente o quanto está atingindo os adolescentes. O rito da confirmação/crisma serve como que uma autorização para a ingestão alcoólica. Assim, a igreja que deveria prevenir, acima de tudo pelo seu exemplo, e/ou ajudar os já atingidos pela problemática, além de omissa, patrocina a cultura do alcoolismo, que tem na normalidade da ingestão de bebida alcoólica sua bandeira. Indícios de mudança – graças a Deus – já estão ocorrendo. Exemplo disso são, como veremos adiante - as paróquias da IECLB da grande Florianópolis que formaram a Paróquia Luterana da Sobriedade que além de ações concretas de ajuda a DSPA’s, leva às suas comunidades a consciência de promoverem a abstinência, especialmente em seus eventos. Também a Igreja Católica Romana na região de Jaraguá do Sul, SC, através do trabalho da Pastoral da Sobriedade, organizada por uma comissão clerical e apoiada pelo Bispo Dom Orlando 251 Essa foi a observação de Luis Lucien Rochat, fundador do movimento Cruz Azul, na Suíça, em 1887, quando ele começou a promover a abstinência na igreja (inclusive substituindo o vinho da Santa Ceia por suco de uva) – 27 pessoas decidiram assinar esse compromisso. Informação concedida pela secretaria da Cruz Azul no Brasil, e-mail cruzazul@cruzazul.org.br. 120 Brandes, determinou que a partir de 2005, não serão mais comercializadas bebidas alcoólicas em seus eventos252. Com isso percebemos que incluir significa também (re)questionar práticas e modelos de vida, bem como modelos de vivência comunitária. Também, como voz profética – dimensão relevante da diaconia253 - promoverá um movimento contra a ‘cultura do alcoolismo’, tornando, em primeiro lugar, ‘novo modelo’ e na seqüência prevenindo e ajudando os feridos por essa cultura. Constatamos que a comunidade que tem (ou procura ter) a ‘dimensão diaconal’254 bem clara em sua estrutura e visão perceberá a importância de acolher aos que são atingidos pelas SPA’s . Ou seja, perceberá a importância de acolher aos DSPA’s e seus familiares, buscando proporcionar uma relação curada com Deus (Espiritualidade), preencher a necessidade básica de relacionamentos saudáveis, gerando sentimento de pertença para aqueles e aquelas que vem de uma situação de rejeição social muito grande e proporcionar o básico de uma vida digna também nas questões corporais/materiais. Noé, ao tratar algumas idéias introdutórias ao conceito de comunidade terapêutica (pensando fundamentalmente na comunidade cristã), sugere algumas teses importantes para essa definição. Entre elas – a tese “d” - destaca a importância da diaconia: A comunidade é terapêutica, na medida em que possui um caráter diaconal, ou seja, de serviço. Esse caráter é vivido dentro do contexto da própria comunidade, onde um auxilia e cuida do outro. Ele também é vivido para além dos contornos da comunidade, em relação a pessoas e grupos à sua margem[grifo nosso].255 252 A diferença básica das duas estruturas eclesiásticas está no fato de que a primeira constitui-se de uma democracia em que a conscientização deve ser articulada e não imposta, como no caso da segunda. Porém isso não diminui o mérito de promover a conscientização em ambas. 253 Apontada por Gaede Neto, juntamente com a dimensão prática e comunitária. Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 43. 254 Expressão usada por Lorenz em uma de suas teses. Cf. Heinz LORENZ, Comunidade Diaconal?, p. 289. 255 Sidnei Vilmar NOÉ, Idéias Introdutórias ao Conceito Comunidade Terapêutica, p. 11. 121 3.2.2.4 - Existir em favor dos outros O tolhimento de Jesus, conforme aponta Schweizer, é paradigma da diaconia da comunidade cristã. Quem se envolve na ajuda aos DSPA’s ou aos seus familiares (codependentes), perceberá o quanto esse envolvimento tolhe a pessoa em seu tempo e em suas prioridades. É necessária, acima de tudo, dedicação: ‘existir em favor dos outros’. O tolhimento fica maior quanto menos pessoas se envolvem nessa área. Talvez a recíproca também seja verdadeira: quanto mais pessoas se envolverem, o tolhimento será menor. Ou, se não for menor, mais pessoas serão ajudadas. Talvez a conscientização apontada por Schweizer de que a diaconia é incumbência de cada fiel256, ou, nas palavras de Nordstokke, “diaconia geral de todos os crentes”, fará com que mais pessoas se envolvam concretamente neste ministério. Segundo Nordstokke, a diaconia geral não dispensa a organização “da diaconia no sentido específico, designando aquilo que a comunidade ou a Igreja organiza para realizar o seu mandato diaconal”257. Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo de Mateus, que destaca o ensino dos mandamentos em Pedro, sendo o mandamento do amor ao próximo tão importante quanto o amor a Deus, temos aqui um aspecto terapêutico importantíssimo no acolhimento de egressos da internação. O DSPA sabe se é amado/valorizado. O ensino que cuida de uma ética que conserva a vida, promovida pelo amor, é fundamental em todo o processo terapêutico. Trata-se de novo aprendizado para a vida. Esse aprendizado começa na internação, através da simulação de uma sociedade menor, e continua após. A diaconia missionária leva o DSPA a ser amado e a amar o seu próximo. As instituições de internação constituem-se assim em um braço diaconal da igreja. Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo Joanino, na figura da videira e ramos, enfatiza-se o aspecto da espiritualidade, ou seja, da relação curada com Deus que é a ‘seiva’ que mantêm a vida. A comunidade passa a ser um novo modelo de sociedade a ser seguido por aqueles e aquelas que estão desprovidos e desprovidas de uma vida social, da qual 256 257 Cf. Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p.71. Kjell NORDSTOKKE, Diaconia, p. 281. 122 abriram mão ao aderirem a SPA. Ao mesmo tempo em que passa a ser esse novo modelo, oferece a nova sociedade, ou seja, a si mesma, baseada no amor fraternal. Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo Paulino, saber-se parte integrante de um corpo, de um grupo, promovendo o sentimento de pertença, fica evidente a caracterização de uma inclusão significativa para o restabelecimento da dignidade humana. A diaconia missionária cria espaço para todos, não excluindo e sim inserindo no corpo de Cristo. Alivia-se, dessa maneira, o vazio relacional na vida de um egresso da internação. As palavras de Monich, sobre o papel do corpo de Cristo no tratamento de alcoolismo (lemos: DSPA), são conclusivas: O tratamento do alcoolismo não é o resultado de uma comiseração dos sãos pelos doentes, do forte pelo fraco, do apto pelo sem condições. Antes, é a atitude humilde de um povo conscientizado por Deus de sua responsabilidade social e diaconal. Aqui, mais uma vez, a figura do corpo como o ser Igreja é significativa. Não é o alcoolista quem está doente, mas o corpo está doente. Não é admissível um tratamento mecanicista, fragmentado e unilateral, o corpo precisa de ajuda para voltar a equilibrar seu estado de saúde. Deus, mais do que um pai condoído com a situação do alcoolista, é o Deus da salvação que, em Cristo Jesus, nos chamou para uma vida comunitária que assume seus erros sociais e os corrige por amor ao seu Deus e por amor ao Corpo de Cristo, do qual todos fazemos parte.258 3.2.2.5 - O resgatado resgata Queremos retomar um aspecto que achamos ser fundamental nas conclusões de Gaede Neto: Só quem aceita, de mãos vazias (passivamente), ser resgatado qual escravo e escrava, qual presa impotente nas mãos do poder do pecado de querer ser igual a Deus (de querer ter poder sobre as outras pessoas), essa pessoa está verdadeiramente liberta para se colocar a serviço do resgate de outras pessoas escravizadas.259 258 259 Alexandre Ari MONICH, Considerações teológicas, p. 39. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84. 123 Encontramos aqui um aspecto terapêutico fundamental para o acolhimento de egressos da internação: A diaconia não só no aspecto da comunidade que serve, mas como aspecto terapêutico do indivíduo que assume esta postura de vida. Retomando a figura da escada, somente quem sabe estar na base da escada, vivendo pela graça de Deus, é que pode resgatar a outros em condições semelhantes. A experiência tem mostrado que a grande maioria do DSPA’s que se mantêm abstinentes são os que se envolvem concretamente nas atividades terapêuticas, seja em grupos de apoio, seja em instituições de tratamento, seja na igreja. Encontramos na diaconia não só uma dimensão para o ser Igreja – acolhedora - mas também um princípio terapêutico para o indivíduo que serve: o sentir-se útil. No processo de ‘servir’ proporciona-se construir novos relacionamentos, a ocupação saudável do tempo e do pensamento que ficará voltado aos afazeres, a oração passa a ser estimulada e o olhar volta-se para o próximo. Assim tem-se um efeito bumerangue: o servir ao próximo é retornado com a bênção de viver sobriamente260. Esse aspecto fica refletido fortemente na entrevista261 feita com Otto, participante da Paróquia Luterana da Sobriedade, que demonstra muita alegria e disposição em ajudar outros, encaminhando para internação, providenciando cestas básicas para famílias necessitadas etc. Com 57 anos de idade, iniciou com maconha por volta dos 8 anos e antes de sua atual abstinência usava simultaneamente álcool (2 litros/dia de vodka) e cocaína. Conta atualmente com 10 anos de abstinência, possível, segundo ele, pela participação no grupo de apoio e na igreja. Talvez ele próprio não perceba que a sua disposição em servir ao próximo o mantêm ativo e participativo nestas atividades, promovendo-lhe e mantendo a sua sobriedade. 260 261 Conforme rodapé 66, o já citado 12 º passo do A.A. Conforme anexo I, p. 38-39. 124 3.2.3 - Para que uma instituição não se volte para si mesma Todo serviço, ao ser organizado rotineiramente, passa a ser institucionalizado, correndo o risco de se tornar um fim em si mesmo. Conscientizar-se desse perigo é o primeiro passo para não ceder ao mesmo. O alvo de todo serviço prestado deveria ser a pessoa, o indivíduo. Esse alerta, como vimos a partir de Drewermann, é necessário devido a tendência, visto por exemplo na história da igreja, da supervalorização de instituições em detrimento das pessoas. As instituições de internamento parecem, num primeiro momento, não correrem tanto esse risco de voltarem-se a si mesmas. Porém uma análise mais detalhada poderá alertar para o perigo de, por exemplo, questões administrativas (importantes e cada vez mais exigidas pelo poder público)262 tornarem-se mais relevantes do que o terapêutico; questões financeiras (a necessidade de subsistência da instituição) causarem um stress no grupo de atendimento a ponto dos residentes ficarem em segundo plano; o regulamento de internação poderá valer mais que um residente (o sábado mais que o homem)263 etc. A instituição igreja, em sua longa caminhada histórica tem, muitas vezes, esquecido de socorrer aos que sofrem. Tornou-se como um clube de associados que parecem serem inatingíveis pelos problemas dos seres humanos. Isso explica porque é dado tão pouco apoio na recuperação de DSPA’s. Felizmente esse cenário parece estar mudando gradativamente, a exemplo de espaços cedidos para grupos de Alcoólicos Anônimos, Al-anon, Narcóticos Anônimos, Cruz Azul, entre outros. Porém são apenas espaços cedidos. Ideal seria que a comunidade estivesse envolvida nesse apoio, a exemplo do Amor Exigente (com presença mais 262 A partir da Resolução – RDC n º 101, de 30 de maio de 2001 D.O de 31/5/2001 da ANVISA questões administrativas importantes e necessárias são impostas pelo setor público. A própria resolução previne o risco, de se perder de vista o aspecto terapêutico, impondo o quadro mínimo de terapeutas e funcionários na instituição. Cf. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Exigências mínimas para funcionamento de serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas. Brasília : SENAD/ANVISA, p. 87. 263 Cf. Mateus 2.27. 125 forte na igreja Católica Romana), Cruz Azul (em muitas igrejas Evangélicas), e iniciativas locais de algumas comunidades264. O acolhimento na comunidade cristã é necessário porque a participação no grupo de apoio tem se mostrada temporária. O DSPA e o co-dependente devem ser incentivados à participação eclesiástica, e acolhidos para tal, porque chegará o dia em que deixarão o grupo de apoio e, caso não desenvolverem a integração comunitária eclesiástica, ficarão sozinhos novamente. Essa solidão poderá ser o princípio de uma recaída. Os princípios espirituais vistos acima - que atendem à demanda por uma espiritualidade integradora, promotora da superação das angústias existenciais, através da meditação bíblica com a ótica da graça de Deus, quebrando o círculo vicioso de uma moral mal fundamentada, integrando as pessoas marginalizadas – mantêm o serviço, mesmo que institucionalizado, voltado para as pessoas. Os princípios diaconais – que clamam pelo envolvimento de pessoas dispostas a servirem e envolverem-se através da comensalidade concreta – faz com que o existir através dos outros se torne um princípio terapêutico para o indivíduo que sofre e terapêutico para a instituição quando essa estagna em si mesma. A institucionalização dos serviços é uma necessidade por questões organizacionais para atender à demanda da problemática da DSPA. Isso mostra, por exemplo, a entidade CERENE que vimos na primeira parte desta pesquisa: organizada e atuante. O CERENE desenvolveu estruturas físicas necessárias para a realização do internamento, bem como o programa terapêutico, suas atividades diárias e seu regulamento, necessários para se ter um modelo de caminhada de desintoxicação e aprendizado de um novo estilo de vida. Perguntamos pela necessidade de institucionalizar a demanda pelo acolhimento/acompanhamento pós-internação. Ou, dentro da instituição igreja, organizar esse acolhimento. 264 A exemplo do GAMA – Grupo mãos Amigas, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana de Jaraguá do Sul, SC. Promovem e mantêm um fórum virtual para comunicação e informações diversas sobre a DSPA (forumbrasilantidroga@grupos.com.br). 126 Essa pergunta surge através da expectativa demonstrada pelos residentes e terapeutas entrevistados no CERENE e pelos participantes da Paróquia Luterana da Sobriedade e seu respectivo Pároco. a) A expectativa dos residentes é expressa com diferentes ênfases. Egon, parte do princípio da necessidade de mudar sua vida social e espera ser acolhido: Bom, eu vou entrar numa sociedade diferente agora do meu estilo de vida né, eu vou procurar (...) outros caminhos, porque o caminho que eu tava seguindo não dava certo né, então eu espero que eles me acolham, que saibam me entender.265 Gerson, que já se sentiu excluído devido ao seu envolvimento com as SPA’s, sugere que a comunidade deveria buscar mais as pessoas: Buscando (...) ou abrindo um espaço pra participação da pessoa nos grupos (...) nos estudos bíblicos e participar mais ativamente da igreja, porque praticamente eu me sinto assim, hoje não tanto, mas já me sentia muito excluído por causa da minha adicção, por causa do meu problema (...) ou talvez até buscar mais as pessoas, porque a gente fica inibido de buscar, porque em parte a gente se sente rejeitado, (...) fazendo alguma coisa para se manter ocupado, eu acho que dessa maneira ela poderia contribuir bastante.266 Ivo, compartilha a experiência de não ter levado a sua participação muito a sério, porém atualmente enfatiza sua importância descrevendo-a como um lugar para ser acolhido: (...) eu antes ia na igreja porque, para mostrar pros outros que eu estava indo sabe, eu acho que se eu tivesse feito diferente eu taria em pé até hoje. Deus, igreja, é muito importante (...). O pastor, ele tá aí para compartilhar os problema com você né, eu acho que se você se torna membro duma igreja aí você vai ter um suporte muito forte né, um amparo né, na hora de uma dificuldade, na hora de desespero ou até mesmo alguma palavra né, carinho, eu vejo a igreja assim, a pessoa tem que freqüentar a igreja (...) é o melhor lugar pra se freqüentar, estar se abrindo, expondo os seus problemas né, é fundamental, pra pessoa que tá aqui hoje ela tem que ter em mente que tem que ir na igreja, tem que buscar a Deus em todos os momentos, senão não adianta.267 265 Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 4. Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 7. 267 Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 11. 266 127 Rogério chama para si a responsabilidade: “acho que vai mais é de mim isso aí”268 e Osmar, demonstra-se otimista quando às ‘descobertas’ com a nova igreja, “Eu creio que na [nome da Igreja] eu não vou adquirir nada, mas se eu partir para uma igreja como a (...), eu creio que eu vou absorver coisas muito mais importantes do que na [...]”269. Romeu espera ser ajudado sem bajulações, “Eu espero ser ajudado né, não ficar passando a mão na cabeça, mas apoiar, apoiar os meus planos, apoiar a minha vida, a minha espiritualidade tá cada dia crescendo mais, acho que é isso”270. b) As expectativas dos participantes271 da Paróquia da Sobriedade. Pedro aprendeu a lidar com as frustrações conseqüentes de uma expectativa que esperava a perfeição das pessoas na igreja: Olha a igreja pode me ajudar 100%, quase 100%,(...) não que seja perfeito lá, eu tinha essa idéia sabe,(...), hoje eu me frustro muito com a igreja assim, não de uma coisa eu não vou mais porque é isso, isso e aquilo, não, mas hoje eu tento entrar mais na realidade de que eu vou na igreja as vezes lá tem um gurizão que trocou de namorada fazem três meses (...), o pessoal aperta na tua mão (...) e logo em seguida (...) vai lá pegar um instrumento e tal e tu fica meio que assim [posição de introvertido/estático].272 Maurício destaca a importância dos grupos de jovens, sua realidade, desejando mais diálogo: Eu vejo que a igreja pode me ajudar (...) o grupo de jovens estar sendo mais acolhedores e de repente eles tarem se comunicando com a gente né, e a gente desenvolvendo o hábito de estar se comunicando com eles né, algo desse tipo.273 Otto se empenha muito para incentivar – inclusive proporcionando caronas – a participação de todos aqueles e aquelas que ele tenta ajudar: 268 Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 19. Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 16. 270 Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 21. 271 Adiante apresentaremos os participantes entrevistados e veremos mais sobre a situação que levou as mães a freqüentarem os grupos de apoio. 272 Trecho da entrevista concedida por Pedro (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 33. 273 Trecho da entrevista concedida por Maurício (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 36. 269 128 Olha (...) eu levo, tento trazer aqui para o grupo, a família, tá vindo, eu mesmo com meu carro levo em casa e trago elas, (...) quando é jovem eu tento passar para o grupo de jovens de sábado, (...) tem dado cesta básica aí a gente tem, uma cesta básica que os irmãos tem dado todo final de semana, mês, cada um traz um pouquinho, para incentivar tenho tentado arrumar serviço, peço na igreja, peço para o P. Sérgio, para o P. Nelson, então é assim. Aponta para a importância da participação e do perigo de não participar: [após citar um exemplo de alguém que não quer participar] porque quando a pessoa diz que saiu de um internamento e ‘tô seguro não preciso a igreja’, amigo, o cupim vai cair na cabeça (...) a minha bateria é essa daqui, (...) porque se não se agarrar com isso aqui na reunião quinta-feira de apoio, não tem esse não tem aquele, volta todos eles [referência à recaída].274 Também as três mães entrevistadas demonstraram suas opiniões: Daniele demonstra uma saudável consciência da imperfeição das pessoas na comunidade cristã: Primeiramente a gente iria dizer tem tudo, é com ela que a gente pode contar. Mas, considerando que as pessoas que fazem parte da igreja também são pessoas que, podem não ter dependência de uma química mas tem suas condições que tá precisando ser tratadas também. Então nem todo mundo nos acolhe, nem todo mundo compreende isso. Sobre seu filho, teme pelo estigma: (...) meu filho (...) fez a paz com Deus, espontaneamente, então ele tem dito que quando sair quer ir no grupo de apoio e quer voltar para a igreja, e eu tô numa outra igreja que ele não conhece ainda então fica difícil, tô pensando assim: que bom é uma igreja que tem um atendimento legal pra jovens, mas ao mesmo tempo eu tenho um certo receio de como ele vai, vai ser aceito, se não tem uma estigmatização ou coisa assim, então por isso eu não tenho aberto muito, que ele tá lá etc e tal (...).275 Matilde – empolgada com o atendimento recebido pela Paróquia Luterana da Sobriedade – vê que a falha está naqueles que precisam e não buscam: Olha (...). Eu tenho a impressão que não é a igreja que tá falhando, quem tá falhando é quem precisa, eu, na minha opinião, porque a única coisa que tá faltando na igreja fazer é o pastor ir todo domingo almoçar na minha casa e ficar conversando, dando colinho pro meu filho e passando a mão na cabeça dele, e essa coisa toda, porque a 274 275 Trechos da entrevista concedida por Otto (pseudônimo) que se encontram na íntegra no anexo I, p. 39-40. Trechos da entrevista concedida por Daniele (pseudônimo) que se encontram na íntegra no anexo I, p. 23. 129 igreja participa muito através da comunidade, dos participantes, dos luteranos, que são as pessoas que são da religião há anos, né, das pessoas que fazem esse tipo de trabalho de auxílio, essa coisa toda, (...).276 Marta destaca a programação regular da comunidade e o carinho acolhedor: Eu acho que a igreja ajuda com a palavra, tu entende? Com os cultos que a gente vem, eles dão muita força, eles dão muito apoio para a pessoa, aquele carinho que eles tem de quando termina o culto esperar a gente na porta, aquele abraço de carinho, então isso ajuda muito.277 c) Os terapeutas do CERENE destacaram a importância do envolvimento da comunidade cristã. Edenilson, diretor da unidade de Palhoça, destaca a recuperação da auto-estima através da oportunidade de servir278. Viktor, responsável pela Laborterapia na instituição, destaca que o envolvimento deveria começar com a presença/participação da comunidade na instituição, bem como apoio concreto na solução de pequenos problemas279. Para Ricardo, psicólogo, todos os que vão à igreja estão em busca de melhoramentos. Ele procura conscientizar aos residentes que as pessoas da igreja não são perfeitas e sobre as ‘panelinhas’ na comunidade, conclama a uma maior abertura para os novos participantes da comunidade280. Luis enfatiza a necessidade de relacionamentos e ambientes saudáveis para evitar a recaída281. Reni destaca o amor: [a melhor forma de ajudar] é amando essa pessoa, mostrando interesse por ela e quem sabe, visitando e em parte também cobrando uma participação em atividades em uma comunidade cristã ou dentro de um grupo de apoio, mas mostrar interesse e amor é a palavra chave para ajudar alguém.282 d) O pároco Oziel destaca que algumas comunidades já estão fazendo sua parte através de pessoas que participam e ajudam no grupo de apoio, porém alerta: (...) as paróquias que não conseguem mandar pessoas [das comunidades] para o grupo de apoio, também não conseguem fazer essa ponte entre dependentes participando do grupo de apoio e membros da igreja, então eu creio que a igreja pode ajudar se aproximando, escutando, abraçando, convidando. É mais uma atitude passiva de amor 276 Trecho da entrevista concedida por Matilde (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 26. Trecho da entrevista concedida por Marta (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 29. 278 Entrevista concedida por Edenilson João de Boris que se encontra na íntegra no anexo I, p. 48. 279 Entrevista concedida por Viktor Berglissof que se encontra na íntegra no anexo I, p. 51, 280 Entrevista concedida por Ricardo Liberato Macedo dos Santos que se encontram na íntegra no anexo I, p. 54. 281 Entrevista concedida por Luis Carlos Kuchenbecker que se encontra na íntegra no anexo I, p. 57. 282 Trecho da entrevista concedida por Reni Schmidt que se encontra na íntegra no anexo I, p. 59. 277 130 do que uma questão teórica do quê fazer, e quando isso acontece então há essa aproximação.283 Todos refletem uma grande expectativa sobre a participação em uma igreja como continuidade do tratamento. Isso se deve, em boa parte, pelo fato da instituição enfatizar a espiritualidade no programa terapêutico, inclusive convidando os residentes a participarem em cultos no fim de semana. A instituição ‘prepara’ o residente para as comunidades cristãs. Nesse preparo, corre-se o risco dos residentes ‘criarem’ uma idealização da igreja. Esse aspecto precisa ser dialogado objetivando equilíbrio para que a frustração decorrente daí não venha a prejudicar o propósito e a necessidade da busca pelo convívio eclesiástico. Será que a comunidade cristã tem condições reais de corresponder a essas expectativas? Será que ela está ‘preparada’ para receber aos egressos? Na temática da comensalidade de Jesus, vista anteriormente, encontramos fortemente o aspecto da inclusão. Inclusão a partir do amor e graça de Cristo Jesus – Diácono, por excelência e que leva a existir em favor dos outros. Podemos perceber que a comunidade cristã - quando portadora de uma espiritualidade integradora que se torna evidente na ação pastoral e diaconal - seguindo o exemplo e ensino de Jesus, bem como da comunidade neotestamentária - poderá corresponder às expectativas dos entrevistados, importantes para a continuidade/manutenção da abstinência e sobriedade, que podem ser resumidas: a) Promoção de um novo ambiente social que acolhe e inclui sem bajulações; b) Incentivo para que cada um cumpra com sua responsabilidade de participar nos programas de apoio; c) A conscientização do perigo de não participar; d) O incentivo para a participação nas programações regulares da comunidade. 283 Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43. 131 e) O saber lidar com as frustrações oriundas de uma expectativa por perfeição; f) A necessidade de maior diálogo; g) O carinho acolhedor, expresso em gestos; E, na visão dos que atuam diretamente no tratamento: a) A recuperação da auto-estima através da oportunidade de servir; b) A ajuda necessária para resolver pequenos problemas; c) A necessidade de terminar com os grupinhos exclusivistas na comunidade; d) A necessidade de relacionamentos saudáveis; e) O amor como base de ajuda; f) Participação de pessoas da comunidade nas programações específicas da Paróquia da Sobriedade (bem como no CERENE). As expectativas dos entrevistados não são meras expectativas. São necessidades reais para a vida de um ser humano: afastar-se das relações sociais que induziram ou mantiveram a DSPA, um novo grupo de relações sociais, sentir-se útil, receber assistência, ser visto, recebido e aceito como uma pessoa normal. Assim, avaliamos que a experiência que apresentaremos a seguir, pode ser indicada como ação que corresponde às reflexões feitas até aqui. A Paróquia Luterana da Sobriedade será apresentada como uma proposta prática que se coaduna com o estudo feito até aqui: ser comunidade terapêutica para os DSPA’s egressos da internação e seus familiares. 132 3.3 - União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade A unidade do CERENE de Palhoça foi, desde sua origem, apoiada e assistida pelas comunidades e respectivos pastores da IECLB, da Grande Florianópolis284, através da abertura das mesmas para a participação efetiva em seus cultos, da disponibilidade de espaço para grupo de apoio e palestras trazidas pelos pastores ou líderes das comunidades no CERENE. Nos primórdios da instituição, o esforço recaiu na elaboração e aperfeiçoamento de um programa terapêutico consistente, bem como na estruturação da infraestrutura e das equipes que atuam nas unidades. Nos últimos anos a pergunta do ‘pós-internamento’285 tem tido um espaço cada vez maior. Providências consistentes foram e estão sendo tomadas. Inicialmente a unidade de Palhoça iniciou um grupo de apoio Cruz Azul em sala cedida pela IECLB no centro de Florianópolis. Também para atender aos egressos que não tem estrutura familiar e profissional, a unidade alugou um sítio e elaborou um programa chamado ‘reinserção social’286. O diálogo costumeiro possibilitou que as comunidades da IECLB não ficassem sem perceber a importância do acolhimento durante e após a internação. Assim foi articulado e efetivado uma ‘união paroquial’ com o objetivo de oferecer acompanhamento pastoral aos egressos das instituições de tratamento. 284 Paróquias de Florianópolis, São José, Palhoça, Santo Amaro da Imperatriz. “aftercare (cuidado pós-alta), talvez o maior desafio terapêutico no Brasil”. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p.127. Usaremos a expressão ‘pós-internamento’ para destacar o fato de que o tratamento não termina com a alta, continua no aperfeiçoamento das fases de continuidade e da Mudança de Identidade e Integridade de cada um. Esse cuidado ‘pós-alta’ precisa ser enfatizado em especial no meio eclesiástico que é tônica da nossa pesquisa. 286 É objetivo geral do Programa de Reinserção Social “Proporcionar ao público alvo, apoio técnico e de moradia que viabilizem a Reinserção Social/Familiar, bem como profissional”. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p 15. No segundo semestre de 2005 vence o contrato de locação do imóvel, que não mais será renovado pelo proprietário. A unidade está estudando a possibilidade de continuar o programa em instalações próprias. 285 133 3.3.1 - O que é a União Paroquial Luterana da Sobriedade Segundo o ‘Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade’, a mesma é uma associação religiosa, sem fins lucrativos287, constituída por Paróquias e Comunidades associadas, filiada à IECLB, da área de abrangência do Sínodo Sul Catarinense288. Conhecida mais como ‘Paróquia da Sobriedade’289, tem por finalidade: I – acompanhamento pastoral aos dependentes químicos/alcoolistas, internados ou egressos de instituição de tratamento, bem como seus familiares e pessoas de seu convívio; II – fomentar a criação de grupos de apoio no processo de recuperação aos dependentes e recuperados de dependência química/alcoolista; III – envolvimento dos familiares dos dependentes no processo de recuperação, mediante parcerias com entidades religiosas, pessoas físicas e jurídicas, órgãos públicos e organizações não governamentais.290 O inciso I dá ênfase no acompanhamento pastoral, porém a possibilidade de acompanhamento diaconal está previsto no Artigo 5o “A União Paroquial poderá apoiar, criar e manter instituições caritativas, assistenciais, educacionais e de trabalhos diaconais”291. Isso tem ocorrido de forma espontânea quando, diante de uma situação de intensa precariedade material, surge o esforço para suprir ou amenizar tal situação. 287 Sobre a manutenção financeira, o pároco Oziel explica: “Essas quatro paróquias (...) de Florianópolis (...) formaram a paróquia da sobriedade, primeiramente recebendo auxílio da IECLB, e já estamos no segundo ano, então estamos recebendo 40% a menos e a medida em que a gente vai recebendo menos da IECLB, que é subsidiado da Alemanha, as paróquias vão cobrindo a cada ano 20%”. Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 44. A unidade do CERENE assumiu as despesas do aluguel da residência da casa pastoral. 288 Cf. Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade. Artigo 1o e 7o. 289 Assim expressa o pároco: “Essas quatro paróquias dizem que eu sou um pastor a mais em cada paróquia, (...) tenho pregado em todas elas e a idéia é que dentro de cinco anos o meu salário e toda a programação continue sendo apoiado pelas quatro paróquias. (...) Então é uma paróquia interparoquial, não existem membros fixos mas essas quatro paróquias se sentem responsáveis e eu preciso prestar contas para elas. Tem, muita gente envolvida”. Na fala dos entrevistados a paróquia é citada como ‘Paróquia da Sobriedade’, status esse que queremos manter ao nos referirmos a mesma, chamando-a de ‘Paróquia Luterana da Sobriedade’. Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 44. 290 Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade. Artigo 2o. 291 Ibid., Artigo 5o. 134 3.3.2 - O parecer de quem participa da Paróquia Luterana da Sobriedade Entrevistamos seis participantes assíduos da Paróquia Luterana da Sobriedade e o respectivo pároco. Dos participantes, três são DSPA’s que estão dando continuidade ao tratamento através das reuniões dos grupos de apoio e três são mães que expressaram o desespero de verem os filhos num ritmo de auto-destruição. Os pseudônimos Marta, Matilde e Daniele são mães reais que expressaram com muita emoção as suas lutas, suas ansiedades e suas convicções pela importância do que tem recebido através das reuniões e do atendimento pastoral da Paróquia Luterana da Sobriedade. Todas responderam que a razão da participação nas reuniões foi, inicialmente, o fato de seus filhos DSPA’s terem encontrado ajuda a partir da internação no CERENE. Marta descreve a situação desesperadora em que seu filho se encontrava, caído, literalmente na rua, após ter perdido (através da separação conjugal) esposa e filho, vendido os móveis da casa, restando somente ‘as paredes da casa’, andando como mendigo à beira da BR101. Seu filho já tinha feito uma internação no CERENE, ficara um ano ‘liberto’, e, nessa situação caótica, em seu desespero, pediu que a mãe conseguisse uma nova internação. Conforme ela descreve – o que revela o alto grau de desespero de uma mãe em busca de ajuda – ao ser noticiada que não havia vaga para internação imediata no CERENE, ela clamou a Deus. Pensando que estava fazendo esse clamor em pensamento, sem perceber, clamou em alta voz, sendo ouvida por diversas pessoas. Essa situação constrangedora ‘criou’292 a vaga: Aí graças a Deus eu vim participar da reunião, no começo eu não entendia nada (...) eles falavam pra mim que eu tinha que ajudar o meu filho, mas de outro jeito, não dando as coisas pra ele, nem nada, mas eu achava não, que tava errado, que eu podia dar força, que eu tinha que dar força para o meu filho, tinha que dar dinheiro, tinha que estar do lado dele, mas não, agora eu compreendo, eu entendo como é importante, portanto meu filho já saiu dali, de lá, meu filho está bem, já está seis meses fora de lá, tá trabalhando, graças a Deus, a esposa está grávida de novo, tá com 292 Conforme a experiência do co-obreiro, a ‘demanda reprimida’ (fila de espera para obter a internação) é uma constante. Este carrega a tristeza da morte de um jovem de 21 anos que não agüentou a espera pela vaga e atentou contra a própria vida. Por vezes uma vaga é ‘criada’, colocando-se um colchão no chão de um quarto, especialmente diante de situações de extrema urgência. 135 o filhinho, com a esposa, e hoje eu entendo assim para mim essa reunião é tão boa, que foi tão boa, eu me sinto tão bem que eu não consigo faltar uma sexta-feira. Para ela as reuniões do grupo de apoio são muito importantes: Hoje eu sou outra pessoa, não sou mais aquela [Marta] de antigamente. Hoje eu sou completamente diferente, pra mim me ajudou muito, na minha cabeça, no meu viver dentro da minha casa, saber compreender os outros, (...) eu não tinha mais paciência com o meu marido, (...) com meus filhos, (...) com mais ninguém, com todo mundo eu estourava, hoje graças a Deus, a partir dessa reunião, a partir dessas palestras que eu tenho escutado, mudou muito a minha vida até para ajudar as outras pessoas (...) que estão nesse vício, que tão passando por esse tratamento eu tento dar força e ajudar.293 Matilde, mãe de dois filhos DSPA’s, Antônio e Ernesto (pseudônimos). Ambos foram internos do CERENE, sendo que Antônio foi o primeiro e desde então, dois anos, está em abstinência. Ernesto, quatro vezes internado, faz 25 dias que saiu da última internação. Matilde conheceu o grupo de apoio quando internou o primeiro filho: Na primeira vez não vim com gosto, eu vim braba, porque eu achei que não tinha nada a ver com isso, quem tinha, quem fazia coisa errada era eles. Por que eu tinha que vir à reunião, ficar escutando as pessoas a falarem? (...) depois que a Elisa [na época uma coordenadora do grupo] conversou comigo (...) fui aceitando e aí a partir da segunda em diante eu já vim com mais gosto né, e comecei a participar ativamente. A importância das reuniões está no fato destas terem trazido uma nova atitude diante da situação dos filhos: Eu comecei a agir de outra forma até com relação a eles, porque eu agredia o [Antônio e ele] me agredia, tá, e o [Ernesto] eu podia agredir à vontade porque ele nunca revidava a agressão e eu achava que toda vez que o [Ernesto] entrava bêbado e drogado pra dentro de casa o fato de eu esbofetear o [Ernesto] fazia com que eu botasse toda aquela raiva toda para fora, a coisa é bem ao contrário, óbvio né, aí a partir das reuniões, das conversas que eu comecei a ter com o pastor, o pastor começou a freqüentar a minha casa também (...) o que aconteceu, eu comecei a mudar a minha atitude, tanto que da última vez que o [Ernesto] (...) voltou a se drogar eu não bati mais nele (...) ele não terminou esse último tratamento dele, (...) eu disse: pode vir, a vontade é tua, só que as coisas vão funcionar de um forma bem diferente. E 293 Informações sobre Marta (pseudônimo) no anexo I p. 27. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram na íntegra no anexo I, p. 28. 136 hoje eu não cuido mais do [Ernesto] (...) chega do trabalho, se ele toma banho e bota uma roupa melhor e sai eu não pergunto onde ele vai, com quem vai, o que vai fazer, porque ele sabe que a hora que ele sair e voltar com os olhinhos brilhando eu vou só abrir a porta e fechar de volta. Vai ser diferente.294 Daniele, enfermeira e professora no departamento de enfermagem da UFSC, em Florianópolis, já havia tido a experiência com o ex-marido, dependente da bebida alcoólica, e por isso a dependência de seu filho não lhe causou surpresa. Na época conheceu grupos do A.A, leu muito sobre o assunto e desenvolveu projetos para o atendimento de familiares, pois na sua atividade profissional contatava com muitas famílias que sofriam da mesma situação crônica: Então é uma condição crônica que as pessoas tem que aprender a conviver com isso e na minha experiência, assim tanto pessoal como de vida que tenho visto, a família onde tem uma pessoa com dependência, de alguma coisa, ela funciona como se fosse em volta [de] uma membrana em princípio, e em geral (...) o dependente é que dá o tom do movimento, e essa membrana só se rompe quando alguém se levanta e sai buscando ajuda e é às vezes nos grupos de apoio que a gente consegue ajuda para essa família. O conforto recebido sinaliza a importância das reuniões: Olha, como eu falei, no A.A. era um pouco assustador porque ainda não tinha o AlAnon, né, não tinha a vivência do amor de Jesus, o suporte da igreja e tal. Aqui têm sido assim,(...) bastante confortante porque agora eu passei (...) da fase de não poder visitar, mas quando eu chegava aqui eu vinha com sede de ter um certo contato através das pessoas que vinham de lá [do CERENE], de ter notícias dele, e quando falavam que ele tava bem isso me reconfortava, me animava, ele foi pra ficar uma semana, passou lá um mês, dois meses, agora passou, fim de semana foi o primeiro que saiu, ele mesmo pediu pra voltar. Então um lugar em que a gente pode diluir as ansiedades da gente, isso eu li num livro do A.A que falava da importância dos grupos de ajuda mútua, e que a gente tem visto isso se espalhar para outras situações de cronicidade de vida das pessoas né, que é uma das coisas que mais tá dando suporte para o convívio dele.295 A relutância de Marta e de Matilde no início de suas participações no grupo de apoio vem ao encontro da relutância que os co-dependentes têm em buscar ajuda para si, como já vimos anteriormente. Todas as três mães expressaram o seu crescimento pessoal em relação ao assunto 294 Informações sobre Matilde (pseudônimo) no anexo I p. 24. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram na íntegra no anexo I, p. 24-25. 295 Informações sobre Daniele (pseudônimo) no anexo I p. 22. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram na íntegra no anexo I, p. 23. 137 da co-dependência e da mudança da atitude super-protetora para uma atitude mais firme em relação aos filhos que foram a razão inicial da participação no grupo de apoio. A importância das reuniões também ficou manifesta na fala dos três participantes da paróquia, egressos da internação: Pedro, 21 anos de idade, solteiro, sem filhos, primeiro grau completo, sem profissão definida (“faço bicos”), participante dos três grupos de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade, duas vezes residente do CERENE (entre elas, duas vezes internado em outras instituições), está há quase um mês no programa de reinserção social do CERENE296, começou sua dependência com bebida alcoólica que o seu pai deixava na geladeira, seguindo pela maconha, cocaína e pedra (crack), sendo a cocaína que mais lhe causou dano, devido ao intenso uso. No começo achava estranho participar das reuniões: Porque eu nunca conheci uma roda onde as pessoas ficavam assim olhando um para a cara do outro, sabe. E falando de coisa interior, (...) um grande passo é que eu não tenho vergonha de dizer, eu cresci (...) com muito complexo de inferioridade, sabe? Problema com depressão que faz ser muito revoltado,(...) os primeiros grupos de apoio eu sentava naquela cadeira, e gelava cara, porque eu lembro de reunião que a gente fazia mas era de noite escuro, a gente perguntava ‘aí, beleza?’ E o normal todo mundo dizer ‘beleza’ né e fumava droga e fazia a roda aí. De repente tu fica num grupo de apoio, o pessoal tudo em volta de ti assim, sabe? Um escutando o outro e falando o que sentia, (...) no outro dia eu conversava: o pastor! Só de entrar naquela sala me dá até arrepio, não tem? Encontrou a figura materna em uma das mães entrevistadas e também novos amigos: (...) ela é como uma mãe para mim, sabe? Mais que a minha mãe, porque seria até um erro, mas, ela é como uma mãe para mim, ela diz coisa, (...) para mim aqui que a minha mãe nunca diz (...) E fora os amigos que faço lá, sabe? (...) Não há outro lugar, eu não conheci outro lugar onde tu pára e cada um fala de si mesmo sem (...) estar se preocupando com o que o outro vai pensar, simplesmente falar o que tá sentindo (...).297 Maurício, 27 anos de idade, solteiro, pai de uma menina de 7 anos, 2º ano do 2º grau, profissão de laminador, usuário de álcool, cocaína e crack, começou muito cedo com o uso da 296 Cf. nota de rodapé 284. Informações sobre Pedro (pseudônimo) no anexo I p. 29-30. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram na íntegra no anexo I, p. 31-32. 297 138 bebida alcoólica (“uns doze anos”) e as demais substâncias foram conseqüência desta. Expressa a razão de sua motivação: Uma porque os meus amigos da Palhoça que tão aqui, e outra porque eu me sinto bem, as vezes quando eu estou precisando, que nem no caso há duas semanas atrás, estava precisando desabafar porque eu tava desempregado e isso estava me sufocando, eu vim aqui e desabafei com o pessoal e tive um retorno bom, de certas pessoas, e eu sei que eu posso encontrar ajuda aqui.298 Otto, 57 anos, quatro internações, casado, três filhos, quarta série primária, vigilante, descreve o uso de várias SPA’s, inaladas e injetadas, sendo que ultimamente fazia o uso ‘cruzado’ de álcool (vodka, dois litros/dia) e cocaína. Com 9 meses de idade perdeu seus pais, foi criado por uma tia, porém muito cedo “fugi e fiquei morando na rua”. Com 8 anos de idade conheceu a maconha através de marinheiros que aportavam em Florianópolis e faziam “aquela cachaçada” e na farmácia adquiria medicamentos “que dava de injetar”. Fazem dez anos que está abstinente e tem uma atitude ativa para ajudar outros que precisam ser encaminhados para uma internação. Sua participação na Paróquia Luterana da Sobriedade e na IECLB de São José é bem ativa, com freqüência diária nas programações, porém vê no grupo de apoio a reunião mais importante da semana: Esse grupo de apoio para mim é importante porque é aqui que eu recarrego as minhas baterias, sem o grupo de apoio eu acho que eu ficaria nas drogas de novo, eu tenho que ir em grupo de apoio, (...) essa reunião é pra mim a mais importante de todas, me anima, me fortalece porque aí eu me abro, digo o que sinto do tempo da droga. Eu acho que fortalece muito os irmãos que estão aí apavorados (...) porque o grupo de apoio é um grupo que fala da gente mesmo, dos drogados, dos alcoólatras (...) e também tem que participar das reuniões da igreja, (...) eu tenho que ter esse grupo de apoio na quinta-feira para poder me agarrar, porque senão eu não posso fraquejar (...).299 A partir das falas das mães e dos DSPA’s participantes vemos o que significa a oportunidade da participação em grupo de apoio e do acompanhamento individual, possibilitado pelos constantes diálogos com o pastor Oziel. A gratidão expressa na fala dos entrevistados 298 Informações sobre Maurício (pseudônimo) no anexo I p. 35. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram na íntegra no anexo I, p. 36. 299 Informações sobre Otto (pseudônimo) no anexo I p. 37-38. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram na íntegra no anexo I, p. 38. 139 reflete a gratidão dos demais participantes que sentimos empiricamente quando participamos de uma reunião em cada grupo de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade. 3.3.3 - O parecer do pároco da União Paroquial da Sobriedade O pároco é o Pastor Oziel Campos de Oliveira Junior, pastor da IECLB desde 1973, 58 anos de idade, casado, quatro filhos. Atua dois anos e meio na Paróquia Luterana da Sobriedade. Perguntamos sobre o que o motivou a trabalhar na recuperação de DSPA’s, ele destaca o desafio feito pelo Pastor Sinodal Edson Saes Ferreira, um dos idealizadores desta Paróquia, e a necessidade que havia de ter alguém disposto para esse desafio: O que me motivou, em primeiro lugar foi a necessidade que havia e um convite que me foi feito através do Pastor Sinodal dizendo que havia um trabalho assim, assim, assado. Eu disse que nunca tinha trabalhado nessa área (...) mas ele me disse na ocasião que eles precisavam de uma pessoa que tivesse duas coisas, a primeira, que gostasse de pessoas que estão com problemas, problemas graves, problemas difíceis, pessoas assim meio abandonadas, e segundo, uma pessoa que estivesse disposta a aprender. Eu disse que essas duas coisas eu tinha e que ia conversar com minha esposa, orar, pensar e um tempo depois em vim até o CERENE para dar uma olhada e daí o que me motivou então foi a necessidade e o entendimento que talvez eu poderia ajudar nessa causa.300 Sobre o programa de atendimento o Pastor Oziel responde que são quatro grupos de apoio durante a semana301, que ele passa cerca de dois dias por semana no CERENE planejando com a equipe da unidade, aconselhando residentes, nos fins de semana leva residentes junto ao culto que está sob sua responsabilidade, possibilitando testemunho (depoimentos voluntários) e apresentação de hinos. Nestes cultos aproveita a pregação para assuntos relacionados com a DSPA. Atividades estas, que mantêm ‘viva’ a presença da Paróquia Luterana da Sobriedade nas comunidades, conscientizando e promovendo prevenção. Também visita as famílias “porque eles 300 Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 41. Terças-feiras no centro de Florianópolis, quintas em Campinas, São José, sextas no Aririú (bairro de Palhoça) e no centro de Palhoça. Todos em instalações da IECLB. 301 140 [familiares] também ficam doentes, são co-dependentes, precisam ter um entendimento da dependência química para ter uma capacidade melhor de ajudar o dependente quando ele sair”302. Perguntado sobre as dificuldades percebidas por ele, visto que a proposta da Paróquia é inovadora, relacionou-as em blocos específicos. O primeiro foi em relação aos familiares: (...) a família entende que quem está doente é o dependente e que ele que vá se tratar e que volte bem, daí ele vai ser bem aceito, então muitas vezes a família não entende que ela também desenvolveu padrões doentios durante todos esses anos, e que ela é parte da causa e que ela precisa se tratar pra não achar que o doente é apenas um semvergonha que não quer nada, mas que é uma pessoa que está doente e que precisa de ajuda. O segundo em relação às comunidades, pastores e programações: (...) muitas vezes as comunidades, as paróquias, muitas vezes os pastores não entendem bem essa questão da dependência, eles não participam dos grupos de apoio e tem sua teoria sobre a dependência química e muitas vezes essa teoria não corresponde, não se aproxima da realidade. Fui pastor durante trinta anos também tinha minhas idéias, minhas teorias sobre essa questão que ao trabalhar a gente nota que tem que modificar rapidamente, precisa aprender muito (...) tenho seis pontos de referência que eu tenho que manobrar. São as quatro paróquias (...) o CERENE e tem o Sínodo, então às vezes não é tão fácil achar, por exemplo uma data para fazer um curso em Blumenau303 ou coisas assim, então são muitos fatores que a gente tem que encaixar . Perguntamos: Você falou que nesses trinta anos de experiência pastoral tinha certos conceitos sobre dependência química e teve de repensar ao lidar na prática com o dependente químico. Você conseguiria expressar um pouco essa diferença de conceitos? Coisas que eu pensava é o que a maioria pensa, se a pessoa já fez um tratamento e não deixou de usar química depois disso é porque ela não quer, porque ela não é esforçada, porque ela é preguiçosa ou vagabunda, alguma coisa nesse sentido. Então já que ela não quer, porque a gente ficar martelando? Quando a gente passa a trabalhar com eles a gente nota que a coisa que eles mais querem, de todo o coração e de toda a alma é deixar a dependência química. A pergunta é como fazer, como conseguir, então a gente vê que não é uma questão de querer ou não querer, é uma questão que essa questão química abraçou a personalidade, o pensamento e os sentimentos. É muito difícil dizer ‘não’ mesmo que queiram dizer não. E também 302 Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 41. Referência ao Curso promovido pela Cruz Azul : “Curso de Capacitação para Agentes Comunitários em Substâncias Psicoativas”. Cf. www.cruzazul.org.br (03/09/2005). 303 141 essa questão da dinâmica de grupo onde as pessoas precisam sempre ouvir as histórias e contar suas histórias, repetir suas histórias, isso é um fator que mantêm eles longe das drogas, isso é uma coisa que a gente aprende quando começa a trabalhar [grifo nosso].304 As metas do trabalho da Paróquia da Sobriedade, sob o ponto de vista do seu pároco305 são: a) Ajudar o DSPA a ter coragem para se aproximar de uma comunidade cristã ao sair do tratamento (internamento) e já durante o mesmo. Por isso são motivados a irem aos cultos, aos estudos, congressos e coisas semelhantes. b) Ajudar a família do DSPA a entender que ela precisa se aproximar dele e ambos precisam procurar uma igreja, uma igreja cristã, não necessariamente a igreja Luterana, mas uma igreja cristocêntrica, que prega o evangelho. c) Ajudar a igreja, comunidades locais e paróquias, a saber dar boas vindas, aproximarse sem desconfiança, abraçar, comemorar, compartilhar as suas vidas e deixar que a pessoa compartilhe. d) A prevenção também é meta, “a gente se encontrar com pessoas que não são dependentes, com pessoas na igreja, fora da igreja, escolas e grupos assim, grupos da universidade, do hospital, que a gente tem compartilhado a questão da prevenção”306. e) Ajudar as pessoas não DSPA’s a entenderem o que está acontecendo, o que acontece na alma, no coração, na vida de um dependente. f) Formação das lideranças “que possam nos ajudar (...) algumas pessoas tem participado durante muito tempo com a gente e essas pessoas, de vez em quando assumem uma 304 Trechos da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 41-42. 305 Encontram-se na entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, anexo I, p. 42-43. 306 As Paróquias envolvidas com a União Paroquial não vendem mais bebidas alcoólicas nas suas confraternizações. Oziel cita o exemplo de duas bodas (uma de ouro e outra de prata) em que os noivos optaram em não servir bebidas alcoólicas. Fomos convidados para uma destas festas e de fato, anexo ao convite um bilhete com os dizeres “Por amor aos dependentes químicos não serviremos bebida alcoólica, esperamos a sua compreensão e a sua presença”. A Santa Ceia é realizada com suco de uva, devido ao entendimento que um pouco de vinho é um problema para o DSPA. 142 reunião e outra”. Inclusive de maneira integral como está acontecendo em Palhoça, todas às sextas-feiras307. A formação de liderança é necessária “para que possamos pensar em abrir outros grupos e nos aproximar de outras igrejas, de outros grupos de jovens etc”. Perguntado sobre a reinserção social dos egressos da internação, Oziel vê a importância e a necessidade de aprendizado: (...) ela é o meio campo entre o internamento e a reintegração total na sociedade. Ela é problemática, a gente vê que as pessoas se sentem inseguras e muitas vezes recaem, isso nos deixa meio inquietos e muitas perguntas, porque muitas vezes os rapazes que terminam o tratamento eles têm muitos grilos que foram formados durante os seus anos de dependência, coisas que vem da família e é uma agonia porque muitos não conseguem colocar em prática aquilo que eles aprendem do CERENE, isso é um dos motivos da recaída (...), eu diria que é um processo que nós estamos em aprendizado (...) nós teríamos que formar pontos fora da casa de reinserção social [sítio alugado pelo CERENE], onde eles passam cerca de três meses depois do tratamento, entrar em contato assim com fábricas, com igrejas e mesmo quando nós temos feito algumas vezes existe uma timidez, uma desculpa por parte do atendente que não está sendo aceito, ele tem medo, ele hesita, a igreja também hesita, então é realmente um aprendizado muito grande, mas uma coisa essencial que temos que aprender.308 Perguntamos: Como é que a comunidade cristã poderia ajudar mais nesse processo de reinserção social? A tônica recai sobre o envolvimento de membros das comunidades que se envolvem nas programações da Paróquia, formando elos de ligação: Eu creio que as comunidades cristã, algumas já estão fazendo isso, em duas das paróquias (...) existem pessoas das paróquias, das comunidades que participam no grupo de apoio, conseqüentemente algumas pessoas dessas comunidades entraram e entram na comunidade como membros e isso faz com que haja uma reação por parte da comunidade, um melhor entendimento, um maior acolhimento (...) a gente nota que as paróquias que não conseguem mandar pessoa para o grupo de apoio também não conseguem fazer essa ponte entre dependentes participando do grupo de apoio e membros da igreja, então eu creio que a igreja pode ajudar se aproximando, escutando, abraçando, convidando. É mais uma atitude passiva de amor do que uma questão teórica do que fazer e quando isso acontece então há essa aproximação .309 307 Este grupo é conduzido por um obreiro do CERENE, membro da Comunidade da IECLB de Palhoça, que atua na equipe de coordenação da Laborterapia, Sr. José Bastos dos Santos. 308 Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43. 309 Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43. 143 A importância do atendimento promovido pela Paróquia Luterana da Sobriedade fica evidente nas falas dos entrevistados que dela participam – DSPA’s e seus familiares – bem como no entusiasmo amoroso refletido na fala do seu pároco. 3.4 - Pontuações para uma práxis acolhedora Para este momento queremos fazer uma síntese do que vimos até aqui, pontuando alguns princípios norteadores para um programa de acolhimento, especificamente na comunidade cristã, aos egressos de instituições de internamento e seus familiares. Não foi nosso objetivo analisar a unidade do CERENE de Palhoça. Isso implicaria numa pesquisa específica para esse fim. Contudo, uma noção do que acontece durante uma internação – intenções e ações terapêuticas – foi necessária para conectar o vivido na internação com a vida na pós-internação. Uma ruptura radical entre essas duas grandezas é causadora de muitas ansiedades advindas da abstinência, do vazio relacional e de inseguranças comuns ao enfrentamento do ‘mundo novo’. Parece-nos que uma forte característica do modelo de tratamento por internação é, além de proporcionar um ambiente livre e protegido das SPA’s, possibilitar que haja um ‘treino’ de um novo paradigma de vida. Além do ensino teórico, que articula o que deve ser feito, há a práxis que se caracteriza pelo acompanhamento nos pormenores do dia-a-dia para que mudanças sejam efetivadas. Os ingredientes terapêuticos refletidos nas programações da instituição simulam a macrosociedade. Poderíamos assim fazer uma relação do que é feito na instituição com o que há ou deveria haver na sociedade e/ou na comunidade cristã: a) Aconselhamento individual corresponde ao acompanhamento pastoral e/ou psicológico. b) Reuniões de grupo correspondem ao grupo de apoio e/ou grupos semelhantes. c) Palestras informativas correspondem aos cultos/eventos com palestras etc. d) Regimento interno corresponde às leis da sociedade. e) Atividades recreativas correspondem às oportunidades esportivas e/ou similares que se 144 desenvolvem em ambientes saudáveis. f) Estudo e atividades profissionalizantes, bem como as atividades de laborterapia correspondem à vida profissional. Assim, podemos perceber que a reinserção social não começa após o término da internação. Ela começa no ato da internação por promover/simular o convívio social. É o que expressa a figura 07. R SE EIN RÇ ÃO CI SO AL Sociedade Menor (Comunidade Terapêutica) I RE ER NS O Çà CI SO Sociedade Maior AL Fig. 07 Das fases de recuperação pontuadas por Fischer, a partir de De Leon, vemos que a Negação e a Ambivalência antecedem ao internamento, a Motivação Extrínseca é uma fase intermediária que ocorre antes e pode levar ao internamento, a Motivação intrínseca, a Prontidão para mudanças, a Prontidão para o Tratamento, a Desintoxicação, e a Abstinência tem seu ponto forte durante a internação sendo que a Continuidade e a Mudança de Identidade e Integridade pertencem mais efetivamente na pós-internação. Para acompanhar essa Continuidade destacamos a importância de uma espiritualidade e diaconia integradoras. Vimos que não é questão de escolha da comunidade atender ou não, mas é questão de obediência. “Se for comunidade de Jesus Cristo, ela necessariamente precisa ser terapêutica” 310, sintetiza Noé. Prestigiamos a Paróquia Luterana da Sobriedade como ação concreta que atende a essa demanda. A fala dos participantes demonstra a importância das reuniões e do atendimento 310 Sidnei Vilmar NOÉ, Idéias Introdutórias ao Conceito Comunidade Terapêutica, p. 10. 145 pastoral. A realização desta paróquia mostra a necessidade de pessoas de tempo integral para atender e organizar esse atendimento. A partir da necessidade comprovada , queremos ‘arriscar’ algumas sugestões para que aumente o atendimento das comunidades cristãs. Primeiramente queremos sugerir iniciativas que poderão partir da comunidade cristã e na seqüência, iniciativas das instituições de internamento. 3.4.1 - Iniciativas nas e das comunidades cristãs O início da Paróquia Luterana da Sobriedade foi um passo significativo. Porém, corre-se o risco de ‘isolar’ o atendimento ao âmbito da paróquia específica, isentando as demais de sua responsabilidade de acolhimento. Ou seja, o isolamento paroquial poderá constituir-se em uma ‘atitude piedosa’ de afastamento. A consciência que chama à responsabilidade poderá ficar tranqüila porque algo está sendo feito, porém com a mesma distância de sempre. Um dos ‘pontos fracos’ da Paróquia Luterana da Sobriedade - conforme já expressou o seu pároco - é o pouco envolvimento de pessoas líderes para aumentar a oferta de reuniões de apoio bem como para a execução das existentes e, principalmente, para o acolhimento dos egressos e seus familiares. Esse ‘ponto fraco’ não ocorre por falta de visão do seu pároco, visto ser a primeira meta citada acima pelo mesmo. Ocorre pela necessidade legítima de atendimento que faz com que o obreiro de tempo integral se envolva de tal forma que impossibilite maior investimento de tempo para incentivar e preparar esses líderes. Ocorre também pela ausência dos pastores das paróquias que formam a união paroquial que, nem mesmo esporadicamente, aparecem para assistir reuniões de apoio. A ‘responsabilidade’ foi repassada à Paróquia Luterana da Sobriedade. Porém essa, sem o envolvimento das paróquias fundadoras, fica limitada a um processo lento de formação de líderes que surgem em seu próprio meio e, pior, o processo de reinserção social fica comprometido nas comunidades. 146 a) O treinamento de pessoas é fundamental. Porém, precisamos ter o cuidado para não fomentar um mito muito comum nessa área de atuação da comunidade: que somente os ‘especialistas’ podem ajudar. Parece-nos que esse mito faz com que pessoas se sintam inibidas e/ou impróprias para o envolvimento efetivo: ‘é coisa para os psicólogos, psiquiatras e pastores’ – parece refletir o censo comum. Como vimos, a necessidade primordial dos DSPA’s e dos Co-dependentes é sentirem-se acolhidos/amados. Isso ocorre essencialmente através do ouvir, do importar-se e do abraço acolhedor. Esse agir é possível para cada um(a) que decide envolver-se. Assim, todos podem fazer algo. O que os grupos de apoio precisam é de pessoas com essas características de acolhimento. A formação técnica que aumenta o conhecimento sobre as SPA’s, sobre o jeito de ‘lidar’ (tato), sobre as temáticas inerentes à co-dependência, etc, é necessária e pode ser adquirida no ‘andar da carruagem’. Para que isso ocorra é possível verificar cursos já existentes como o da Cruz Azul no Brasil311 ou organizar cursos trazendo pessoas com maior conhecimento na área da DSPA. Fato é: As pessoas vêm, qualitativamente falando, antes do respectivo e necessário preparo. b) Um obreiro de tempo integral – pastor, diácono 312 – é necessário para a organização destes aspectos. É um ideal possível, conforme constatamos na Paróquia Luterana da Sobriedade. Porém, a realidade exige um número maior de grupos e de atendimentos. Para isso a iniciativa leiga continua sendo um aspecto importante que pode e deve ser incentivada. Leigos que serão acompanhados por pessoas preparadas. Nem todas as comunidades estão aptas para sustentar um obreiro de tempo integral exclusivo para a área da recuperação de DSPA’s. A união de comunidades e/ou paróquias se torna em uma possibilidade real. 311 Cf. rodapé 301. Poderíamos incluir o ministério missionário e o catequético. Parece-nos que, na questão de estar devidamente preparado para agir na área da DSPA, todos os ministérios se encontram na mesma perspectiva: é necessário humildade para aprender, assim como vimos na fala de Oziel que, mesmo com trinta anos de experiência pastoral, demonstrou esta postura. 312 147 Na estrutura sinodal da IECLB, poder-se-ia pensar em um ‘obreiro sinodal’ para incentivar, apoiar e acompanhar iniciativas locais. Alguém que está aí para ‘fomentar’ significativamente essa área de atuação para as quais as comunidades parecem estar adormecidas. Soma-se a isso o fato de que, além de ajudar concretamente aos atingidos, é possível desenvolver programa na área da prevenção. c) Essa visão só será possível quando obreiros locais – os que atuam de tempo integral – tiverem o coração voltado para essa necessidade. Constata-se que a grande maioria que se envolve na área da recuperação de DSPA’s são pessoas que tem ou tiveram na sua caminhada o problema dentro de sua estrutura familiar. Esse quadro pode ser mudado quando obreiros se vêem na necessidade de atender pessoas DSPA’s e/ou co-dependentes. Como o co-obreiro ouviu Hermann Hägerbäumer313, então secretário da Cruz Azul na Alemanha, responder a pergunta: “Como incentivar o pastor da minha igreja a começar um grupo de apoio?” A resposta foi extremamente prática: Mande cinco DSPA’s para ele aconselhar! A temática deveria ser abordada nos encontros dos atuais obreiros para que iniciativas concretas pudessem ser tomadas. Para isso são necessárias propostas concretas. A abordagem teórica é importante para a conscientização. Porém serão as propostas para uma práxis atuante que trarão resultados concretos. d) Os centros de formação para os ministérios ordenados deveriam incluir nos Projetos Pedagógicos o preparo para essa temática. Isso traria resultados de longo prazo, visto que as novas gerações de obreiros entrariam nos ministérios mais conscientes e preparados para este aspecto. Os aspectos vistos até aqui, têm a ver fundamentalmente com as pessoas que irão se engajar nesta proposta, queremos resumi-los: a) Obreiro de tempo integral como agente fomentador e preparador de liderança. 313 Seminário “Experiências Práticas numa Comunidade Terapêutica”, realizado pela Cruz Azul no Brasil, em Blumenau, SC, 26 a 28 de julho de 2000. 148 b) Líderes-Agentes Comunitários em DSPA’s. Descobrir lideranças nas comunidades locais e incentivá-las para esse serviço específico. É impreterível que as mesmas sejam preparadas através de cursos. c) Encontros dos atuais obreiros. Oportunidade para articular o debate desta temática para o aumento da conscientização e orientações pragmáticas. d) Centros de formação ministerial. Estes centros deveriam incluir em seus Projetos Pedagógicos uma disciplina que se ocupasse exclusivamente com a temática DSPA e Codependentes. E acrescentar os seguintes aspectos para que a práxis daqueles e daquelas que irão atuar seja significativa: e) Material didático. Material didático pedagógico para as reuniões de grupo314: Devocionais315 direcionadas para a temática, estudo de princípios para o tratamento316, aprofundamentos sobre a DSPA e a co-dependência etc. f) Modelo de reunião. Encontramos basicamente os seguintes modelos de reuniões: (i) reuniões que separam os DSPA’s dos familiares, a exemplo de A.A./Al-Anon e do Amor Exigente; (ii) reuniões conjuntas entre DSPA’s e familiares, a exemplo da maioria dos grupos da Cruz Azul no Brasil317, (iii) reuniões estritamente dialogais, e (iv) reuniões apenas com palestras informativas (ou, em alguns casos, estudo bíblico ‘camuflado’ de grupo de apoio). Todas, a nosso ver, têm vantagens e desvantagens. As que separam os DSPA’s dos familiares permitem uma maior abertura dos conflitos pessoais, visto que não há coação despertada pela simples presença ‘do outro lado’. As que fazem em conjunto ampliam o horizonte do conhecimento recíproco, ocorrendo o ‘colocar-se no lugar de’, vendo o sofrimento 314 A exemplo do movimento “Amor Exigente” que possibilita, a partir dos seus doze princípios, material aos líderes, através de apostila própria. Cf. www.amorexigente.org.br. 315 A exemplo de: Mary Ylvisaker NILSEN, Um Tempo para a Paz (Meditações para a recuperação espiritual). São Leopoldo : Sinodal, 2004. Este devocionário foi escrito pensando nos DSPA’s. É louvável a iniciativa e a luta de Donald Earl Nelson para que a tradução fosse realizada. 316 A Cruz Azul no Brasil dispõe de materiais para esse fim. Cf. www.cruzazul.org.br . 317 Parece-nos que a Cruz Azul no Brasil, como movimento organizado, é um dos que mais dá liberdade de atuação no que tange à forma de se realizar as reuniões. 149 vivido do ‘outro lado’. A promoção dos diálogos cria uma cultura de transparência e possibilita o desabafar das ansiedades. A proposta de palestras possibilita informações adequadas sobre os temas da DSPA. Uma proposta deveria contemplar as vantagens dos modelos. Quanto maior a flexibilidade da organização das reuniões, assim parece-nos, maior a possibilidade de reter as vantagens. Assim, sugerimos que no decorrer do mês fossem realizadas duas reuniões conjuntas e duas em separado, sendo que das conjuntas uma seria de enfoque dialogal e uma com palestra orientadora. Assim, as reuniões poderiam seguir a seguinte ordem: (1a) conjunta com palestra, (2ª) grupos separados, (3a) conjunta/dialogal e (4a) grupos separados. Deve-se ter o cuidado para que uma ordem pré-estabelecida não se torne rígida, substituindo o bom senso do momento. Significa que se a reunião era prevista para uma palestra e alguém demonstra uma necessidade inadiável de desabafo, esse espaço deveria ser oportunizado. Esta proposta também tem suas desvantagens: (i) o distanciamento entre as reuniões de diálogo poderia inibir maior abertura nos diálogos e (ii) a necessidade de um número maior de líderes para realizarem as reuniões em separado. Porém são desvantagens possíveis de serem contornadas, uma vez que se tenha pessoas dispostas a ajudar. g) Contato com instituições de internação. Quanto maior for o contato durante a internação, maior será o interesse do residente em manter esse contato posterior. Grupos das comunidades que se fazem presentes, através de programações específicas – teatro, louvor, esporte, etc - ‘mostram’ o seu jeito de ser e conviver, o que será significativo para o despertar do desejo por essa forma de convivência. Indivíduos da comunidade que se fazem presentes, oportunizando diálogos informais, criam laços relacionais que facilitarão a inserção na comunidade. Assim, as ‘pontes relacionais’ feitas durante a internação terão uma grande probabilidade de continuidade. h) Residente enviado será residente acompanhado. As atividades de apoio da comunidade cristã em geral não se destinam somente aos egressos das instituições e aos seus familiares. Estes se tornam a demanda mais significativa da atuação. Porém, essas atividades estarão ligadas também aos que estão procurando ajuda, ainda nas fases iniciais da recuperação. 150 O atendimento através do grupo de apoio também tem dado resultados satisfatórios, como mostra a história dos A.As, A.Es, Cruz Azul e tantos outros que assistem aos envolvidos. Assim, o grupo de apoio pode se tornar uma ‘porta de entrada’ para a internação quando o indivíduo não consegue abster-se somente através das reuniões semanais. Quando o residente é enviado para a internação, via de regra, é acompanhado pelos que o enviaram. Aumenta assim a probabilidade de um acompanhamento significativo no pósinternamento, sendo menor a ruptura entre a internação e a pós. 3.4.2 - Iniciativa das instituições de tratamento Para corresponder às ou incentivar as iniciativas das comunidades cristãs locais, a instituição de internação deveria vir ao encontro das mesmas. Para isso, algumas iniciativas serão fundamentais: a) Banco de dados. As instituições de tratamento poderiam ter um ‘banco de dados’318 disponível para encaminhar pessoas aos agentes comunitários. Esse banco de dados teria o cadastro dos residentes e também de agentes comunitários, pessoas preparadas para contatar com o residente durante e após a sua internação. c) Obreiro específico para o pós-internamento. Para isso é necessário alguém que se ocupe com o pós-internamento, mantendo o banco de dados atualizado, contatando pessoas que poderão dar o acompanhamento necessário, ajudando a reorganizar a documentação, encontrar emprego e/ou moradia etc319. Na instituição deveria atuar uma pessoa prioritariamente com esse aspecto: o que será do residente após seu internamento? Para onde irá? Que apoio receberá? A equipe terapêutica se 318 Fischer propõe uma “Central Aftercare”. Cf. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 120. Atualmente o CERENE proporciona este aspecto através da pessoa do terapeuta pastoral que mantêm vínculo também com os familiares. Isso faz com que as iniciativas sejam isoladas e limitadas devido ao grande número de residentes atendidos pelo respectivo terapeuta. 319 151 ocupa basicamente com o andamento atual do residente: aquilo que é necessário para crescer e se aperfeiçoar. São tantas as questões a serem tratadas que a importante pergunta do pósinternamento aparece naturalmente no final do período da internação, porém sendo necessária a sua articulação já desde o início. d) Assim, pode-se criar uma ‘rede de apoio’. O residente, durante o programa de internação e na fase final do mesmo, receberia informações do que a instituição possuem ‘ao alcance dele’, na área geográfica específica em que retornará ou irá dar continuidade ao seu tratamento: pessoas, comunidades cristãs, grupos de apoio etc. Com a autorização do residente e seu responsável direto, informações básicas – telefone, endereço – seriam repassadas ao agente comunitário mais próximo para que este faça os devidos contatos acolhedores. Devido ao princípio da privacidade e do anonimato, deve-se ter o cuidado para que a autorização seja feita por escrito e devidamente assinada320. d) O Agente Comunitário. Esse poderia ter um vínculo de voluntariado na instituição de tratamento, devidamente documentado, caracterizando-se assim que o seu acompanhamento no pós-internamento é um acompanhamento proporcionado pela instituição, em parceria com a comunidade cristã local, correspondendo assim às normas previstas na AMVISA de acompanhamento pós-alta de pelo menos um ano321. A figura do Agente Comunitário aparece na proposta de iniciativa na e da Comunidade Cristã, como também na iniciativa das instituições de internamento. Trata-se basicamente das mesmas pessoas. Elas formam o vínculo entre as duas grandezas: Instituição e Igreja ou Internação e Pós-internação. Uma vez feito o contato inicial do agente comunitário com o egresso, este deveria: a) demonstrar sua alegria pelo empenho que o egresso teve durante o seu internamento, ouvindo 320 Este aspecto ainda carece de um estudo na questão da legalidade. Porém, é provável que se esse modelo de encaminhamentos for acordado entre os envolvidos – instituição e residente – não poderá ser caracterizado como quebra de privacidade e/ou anonimato. 321 “As instituições devem indicar (por escrito) seus critérios quanto a: (...) Procedimentos a serem utilizados para acompanhamento da evolução dos residentes ao longo de um ano depois da alta”. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Exigências mínimas para funcionamento de serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas, p. 44. 152 atentamente sobre a sua caminhada até ali; b) informar sobre o que está disponível para a continuidade da caminhada, como as programações de apoio e da comunidade em geral; c) dispor de meios de contatos rápidos (telefone, e-mail, etc.) para eventuais necessidades que poderão ocorrer ao egresso; d) em caso de ausências do egresso, ir ao encontro procurando descobrir o que está servindo de embaraço para o mesmo. Assim, o agente comunitário faria o ‘meio de campo’ entre a instituição e a comunidade cristã. Sua formação/preparo poderia ocorrer partindo dos dois pólos, hora patrocinado por um, hora por outro, porém sempre em parceria. A instituição de internamento talvez seja a que mais tenha condições de proporcionar momentos de treinamento a esses voluntários o que poderia ser feito em parceria com cursos já existentes ou oportunizando na própria comunidade local. Com essas iniciativas concretas, a comunidade cristã seria uma continuidade da comunidade terapêutica e ao mesmo tempo promovedora desta322. 3.4.3 - Casa de apoio Até aqui temos pressuposto o indivíduo que, apesar de tantas perdas vividas em sua DSPA, ainda tem um aparato social, especialmente familiar e profissional. Enfatizamos a necessidade de um aparato sócio-eclesial. Porém há situações mais precárias em que o indivíduo não conta mais com a família e com emprego. Muitas vezes ainda sua saúde física é debilitada. Também para essa situação, que requer uma ajuda diaconal extremamente concreta, trazemos uma proposta. A proposta que segue é imprescindível. E para que essa seja possível, faz-se necessária a iniciativa dos ‘dois lados’, da igreja e da instituição de internação: 322 Cf. Rolf Roberto KRÜGER, Comunidade Terapêutica versus Comunidade Terapêutica, p. 7-13. 153 Conforme prevê o projeto de reinserção social do CERENE é significativo o número de residentes que não têm opções concretas para o pós-internamento, necessitando assim de um acompanhamento prolongado. Essa situação é caracterizada pela perda da família, da saúde e do mercado de trabalho. São necessárias ações concretas e efetivas para possibilitar um ‘trampolim’ de acesso à sociedade. As CT’s, que sentem o drama na ‘própria pele’, quando concretizam um projeto de reinserção social, fazem-no com os recursos materiais e humanos já existentes, o que configura um déficit para o seu específico que é a internação. Nesta questão enfatizamos a necessidade de que este trabalho seja realizado fundamentalmente pela comunidade cristã. Como sugestão registramos a possibilidade de casas de apoio, no modelo de pensionato, especialmente em cidades industriais. Para a funcionalidade de uma casa de apoio, seriam necessários: a) Uma diretoria com estatutos próprios de funcionamento. b) Presença de membros da diretoria e/ou voluntários em horários específicos, principalmente na ‘calada’ da noite, seguindo um sistema de revezamento. c) Uma casa alugada com cômodos para abrigar o número de vagas desejadas. O aluguel, água e luz, seriam pagos pelos residentes que, conforme o item seguinte, teriam uma fonte de renda. d) Convênio com firmas para a prestação de serviços gerais. A criação de uma ‘cooperativa prestadora de serviço’323 talvez seja indicado para que o empresário não fique lesado em caso de recaídas. Ou seja, a contratação não seria individual e sim através da cooperativa que se responsabiliza pela manutenção das responsabilidades assumidas. O co-obreiro presenciou muitas vezes a situação de um ex-residente, causada por uma recaída, bloquear novas oportunidades de contratação pelo empresário lesado. Esse item depende de muita articulação 323 Seria necessário para esse aspecto um assessoramento jurídico para a viabilidade legal. Talvez haja outra modalidade legal para executar esse princípio, resguardando à casa de apoio complicações com processos trabalhistas. 154 com o empresário que, mesmo correndo riscos de desconforto, compreenderá o aspecto social do projeto. e) Regras claras de convivência e conseqüências pré-determinadas. Desta, a obrigatoriedade de participar de grupos religiosos e de apoio, conforme a escolha própria, e o respeito na convivência. f) Assembléias ordinárias mensais ou extraordinárias para que se crie um ‘gerenciamento participativo’ dos residentes em harmonia com os responsáveis pelo projeto. g) A entrada na casa de apoio seria através de uma parceria com instituições de internação, cabendo a esta última o dever de acolher imediatamente, em seu programa de internação, aqueles que vierem a recair. h) A residência na casa de apoio seria conforme a necessidade de cada um. Para que a situação não fique crônica, faz-se necessário um incentivo constante para que cada um cresça na sua vida social, no que tange ao aspecto profissional e relacional. Pelos itens acima sugeridos podemos perceber a viabilidade de tal projeto que depende basicamente de um fator: pessoas dispostas ao tolhimento extremo, conforme vimos sobre a diaconia. Estrutura física e organizacional serão conseqüência. Como vimos em diaconia como tolhimento extremo, o DSPA e o co-dependente vivem um momento de necessidade em termos de tempo e material que causa uma certa ‘dependência’ inicial de quem procura ajudá-los. Somente quem está disposto à esse tolhimento extremo é que de fato poderá concretizar iniciativas de atendimento. O ideal, portanto, é um grupo de pessoas com essa disposição. 155 3.5 - Considerações Finais A responsabilidade da comunidade cristã em relação à problemática da DSPA fundamenta-se, basicamente, sobre dois aspectos. O primeiro é a ordem de Jesus Cristo, seu Senhor, que não somente ordenou o acolhimento e a inclusão, como também a praticou. O segundo é a necessidade premente. Não é possível fechar os olhos e fazer de conta que não há nada a ser feito. O potencial terapêutico da espiritualidade cristã (integradora) vivida em comunidade (acolhedora) não pode ficar escondido ou adormecido. Os residentes das instituições de tratamento e seus familiares são oriundos em sua maioria de situações caóticas e precisam achar uma situação que corresponda com as novas expectativas adquiridas na internação. Isso não significa uma situação perfeita, porém onde se encontra o mínimo necessário para que se possa gostar de viver: o amor que se manifesta em atitudes concretas para o bem do outro. Esse lugar de aconchego e valorização é possível aí onde o Evangelho de Jesus Cristo foi entendido e está sendo vivido. Esse aconchego é perceptível na Paróquia Luterana da Sobriedade. Oziel324 faz questão de esclarecer as três regras básicas das reuniões, cada vez que há um novo participante da mesma: a) O que é dito e ouvido na reunião deve ficar ali. É o princípio da confiança. b) Falar de si mesmo e não dos outros. É o princípio da transparência. c) Não dar conselhos. É o princípio do ouvir. É agradável participar de um lugar assim. Não é complicado promover esse clima nas reuniões. Se o mito da ‘especialidade’ for vencido será possível o aumento de pessoas que se envolvam na assistência aos atingidos pela problemática da DSPA em nossa sociedade. Assim, iniciativas locais promovidas pela comunidade cristã e pelas instituições de tratamento, trarão alívio para muitas pessoas. E mais, estará aberta a porta para atender outras situações de sofrimento humano. 324 Esses princípios são refletidos na entrevista de Oziel Campos de Oliveira Júnior, anexo I, p. 45-46. 156 CONCLUSÃO A caminhada que o CERENE tem feito como instituição demonstra um processo contínuo de aperfeiçoamento terapêutico. O programa de internação compreende as diferentes áreas da vida humana no que tange aos aspectos físicos, emocionais, sociais e espirituais. O modelo de internação tem desenvolvido uma simulação da macro-sociedade para que o indivíduo possa ‘treinar’ aspectos de convivência social. Inicialmente caracterizado por uma proteção maior, proporcionada por um ambiente não provocativo em relação às SPA’s, e, gradativamente, inserindo o indivíduo novamente na sociedade. A ruptura entre a internação e a pós-internação é, entre outros fatores, a mola propulsora de muitas recaídas no uso e abuso das SPA’s. O despreparo da família em receber e proporcionar o retorno do seu ente querido DSPA também poderá dificultar uma adaptação saudável no meio social em que o egresso da internação irá viver. O co-dependente sofre. É preciso ser tratado para que recupere um projeto de vida próprio e abra mão dessa dependência doentia do DSPA. Só assim poderá ajudar efetivamente. O tratamento da co-dependência não deverá ter como motivação a recuperação e/ou a manutenção da sobriedade do DSPA e sim a dignidade e necessidade de uma vida saudável do co-dependente. Feito isso, conseqüentemente, soma-se para a manutenção daquele. A espiritualidade integradora e a diaconia acolhedora formam assim o conteúdo e a ação que dá suporte para que a inserção eclesiástica possa ocorrer de forma salutar. Não é questão de 157 escolha e sim de obediência ao Senhor da Igreja integrar e acolher aqueles e aquelas que vivem sob a angústia da exclusão social. A comunidade cristã poderá assim desenvolver atividade que organizam esse acolhimento integrador dos DSPA’s e familiares em seu seio. Para que isso ocorra é imprescindível que pessoas se disponham a atuar como servos e servas dispostas ao tolhimento que o serviço traz. Sem essa disposição, tudo o que for articulado não passará de demagogia piedosa. Para que pessoas se disponham é necessário que o desafio seja feito. Cabe à liderança eclesiástica a incumbência de desafiar e proporcionar que pessoas venham a se tornar agentes comunitários em SPA, criando assim uma ponte entre a internação e a pós-internação, possibilitando a continuidade do tratamento até que se atinja a fase da Mudança de Identidade e Integridade. A comunidade que se dispõe a tal empreendimento, além de obedecer ao seu Mestre, salvando da desgraça os atingidos pelo mega-problema da DSPA, estará mantendo vivo o princípio da prevenção, aumentando a probabilidade de seus filhos e filhas não adentrarem pelos caminhos destrutivos e ilusórios das SPA’s. Famílias disfuncionais fazem parte da etiologia comum da DSPA e dos co-dependentes. Sendo assim, é mister que a comunidade cristã tenha um olhar próprio para as famílias inseridas em seu meio e para além dos limites eclesiástico, um olhar atencioso para aquelas que sofrem de carência orientativa. Assim, as atividades que visam atingir as crianças e os jovens deveriam receber a atenção necessária para que, a criança e o jovem, oriundos de uma família disfuncional possam receber, na comunidade cristã, um amparo que as possibilite viver com dignidade e, na medida do possível, apoio de atendimento para a reestruturação familiar. Tem-se assim a prevenção, a ajuda e o acompanhamento. O lema da Cruz Azul ‘Prevenir – Capacitar – Ajudar – Acompanhar’ resume as atividades que estão ao alcance da comunidade cristã, que, se realizadas, faz dela uma Comunidade Terapêutica por excelência, promovedora e continuidade das Instituições de Recuperação de dependentes químicos, através do acolhimento aos egressos e familiares que caminham rumo à sobriedade. 158 ‘Previnir – Capacitar – Ajudar – Acompanhar’ também resume as atividades das instituições de internação que, se realizadas, fará jus à nomenclatura que receberam, tornando-as verdadeiras Comunidades Terapêuticas que precisam do apoio das comunidades religiosas. 159 BIBLIOGRAFIA BEULKE, Gisela (Org.). Diaconia: um chamado para servir. São Leopoldo : Sinodal, 1997. BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Atualizada no Brasil. São Paulo : Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. BRAKEMEIER, Gottfried. A Autoridade da Bíblia: Controvérsias – Significados – Fundamento. 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