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COMUNIDADE TERAPÊUTICA: COMO ACOLHER EGRESSOS DE
INSTITUIÇÕES DE RECUPERAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS? UM
EXEMPLO DA IECLB EM FLORIANÓPOLIS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
por
Rolf Roberto Krüger
em cumprimento parcial às exigências
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
para obtenção de
grau de Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
São Leopoldo, RS, Brasil
Dezembro de 2005
Livros Grátis
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2
BANCA EXAMINADORA
1 º Examinador: ___________________________________________________________
Prof. Dr. Rodolfo Gaede Neto (Presidente)
2 º Examinador: ___________________________________________________________
Prof. Dr ª. Sissi Georg (EST- IEPG)
3 º Examinador: __________________________________________________________
Prof. Dr. Claus Schwambach (FLT)
3
DEDICATÓRIA
Vera
Rafael
Mônica
Que me incentivaram e acompanharam
nesse processo de readaptação ao labor acadêmico.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Dr. Rodolfo Gaede Neto
pela sua constante disposição no processo de orientação.
Agradeço as instituições,
e as pessoas que a elas representam,
por terem viabilizado esta pesquisa:
CERENE (Centro de Recuperação Nova Esperança)
GBM (Gnadauer Brasilien-Mission)
MEUC (Missão Evangélica União Cristã)
CRUZ AZUL no Brasil (com sede em Blumenau, SC)
FLT (Faculdade Luterana de Teologia, São Bento do Sul, SC)
IECLB – (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Paróquia Luterana
da Sobriedade, Florianópolis, SC)
EST - IEPG (Escola Superior de Teologia - Instituto Ecumênico de Pós-Graduação)
PROSUP (Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares
CAPES/MEC)
Agradeço aos amigos que me incentivaram e apoiaram nesse processo:
Eberhard Russ,
Oziel e Cheryl de Oliveira,
Hans Fischer,
Luis Carlos e Roseli Ávila,
Simony Westphal.
5
In memoriam
Pablo ( homicídio)
Periquito ( suicídio)
Maurão ( overdose)
Nivaldo ( doença oportunista)
Apelidos de pessoas reais que me legaram a pergunta:
O que fazer para que outros tenham melhor sorte?
e
Verner Walter Krüger,
meu pai,
ex-cliente da Souza Cruz,
vítima do tabagismo.
Que Saudade!
6
KRÜGER, Rolf Roberto. Comunidade Terapêutica: Como Acolher Egressos de
Instituições de Recuperação de Dependentes Químicos? Um Exemplo da IECLB em
Florianópolis. São Leopoldo : Escola Superior de Teologia, 2005.
SINOPSE
A presente dissertação apresenta as atividades terapêuticas da instituição de internação de
pessoas com DSPA’s (Dependência de Substâncias Psicoativas) CERENE (Centro de
Recuperação Nova Esperança), unidade de Palhoça, SC, e se ocupa com a questão da
inserção sócio-eclesiástica de seus egressos bem como com a questão do
acompanhamento pastoral aos familiares (co-dependentes) dos mesmos. Parte do
princípio de que é tarefa da Teologia Prática auxiliar com suporte teórico-prático para
que as comunidades cristãs possam desenvolver um acolhimento integrador. A
espiritualidade integradora (conteúdo da fé cristã) e a diaconia acolhedora (práxis da fé
cristã) formam a base para a articulação desse atendimento. Um olhar para a prática foi
possível através da Paróquia Luterana da Sobriedade, formada pelas Comunidades da
IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) na região da Grande
Florianópolis, SC. Pessoas que se dispõem ao serviço são para isso imprescindíveis. Essas
deverão ser desafiadas a serem agentes comunitários em SPA’s (Substâncias Psicoativas),
fazendo uma ponte entre a internação e a pós-internação.
Palavras-chaves: Dependência em Substâncias Psicoativas, comunidade terapêutica, codependência, espiritualidade, diaconia, inserção social.
7
KRÜGER, Rolf Roberto. Therapeutic Community: How to embrace those leaving a
substance abuse treatment center? An experience of the Evangelical Church of the
Lutheran Confession in Brazil (IECLB) in Florianópolis . São Leopoldo : Escola Superior
de Teologia, 2005.
ABSTRACT
This dissertation presents the therapeutic activities employed at CERENE (New Hope
Rehabilitation Center) in Palhoça, SC, for people with psychoactive substance
dependence. It deals with the matter of the social-ecclesiastical integration of those
leaving the treatment center, as well as the pastoral follow-up of their families, who are
considered to be co-dependents. It presumes that it is the task of Practical Theology to
help through theoretical and practical support, so that the Christian congregations are able
to develop a cordial and integrating reception. The integrating spirituality (the content of
the Christian faith) and the cordial diaconal service (norms of the Christian faith) form the
basis to articulate this service. A practical look was possible through the work of the
Lutheran Parish for Sobriety, created by the congregations of the IECLB (The Evangelical
Church of Lutheran Confession in Brazil) in the greater Florianópolis area in Santa
Catarina. Having people that dedicate themselves to this service is vital. They should be
challenged to be community agents in the area of substance abuse, creating a bridge
between the period of internment and post-internment.
Keywords: Psychoactive substance dependence, therapeutic community, co-dependence,
spirituality, diaconal service, social integration.
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LISTA DE SIGLAS
A.A. – Alcoólicos Anônimos
A.E. – Amor Exigente
CERENE – Centro de Recuperação Nova Esperança
CT – Comunidade Terapêutica
CODA – Co-dependentes Anônimos
DSPA – Dependente de Substância Psicoativa ou Dependência da Substância Psicoativa
EST – Escola Superior de Teologia
FLT – Faculdade Luterana de Teologia
FETEB – Federação da Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil
GAP – Grupo de Apoio aos Pais
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
IEPG – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
N.A. – Narcóticos Anônimos
SEJA – Secretaria de Educação de Jovens e Adultos
SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas
SPA – Substância Psicoativa
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01 - Balanço com a Corda Arrebentada ______________________________________ 45
Figura 02 - Triângulo de Dramas de Karmann ______________________________________ 59
Figura 03 - Anseios Humanos ___________________________________________________ 75
Figura 04 - Anseios Humanos e a Auto-estima ______________________________________ 76
Figura 05 - Escada Farisaica ____________________________________________________ 98
Figura 06 - Círculo Vicioso da Moral ____________________________________________ 112
Figura 07 - Macro e Micro Sociedade ____________________________________________ 144
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 13
I - AS PESSOAS DEPENDENTES E CO-DEPENDENTES DE SPA: O TRATAMENTO
COM VISTAS À REINSERÇÃO SOCIAL ________________________________________ 19
1.1 - Questões introdutórias .......................................................................................................... 19
1.2 - CERENE, unidade de Palhoça, SC ...................................................................................... 22
1.2.1 - Programa terapêutico do CERENE ............................................................................. 23
1.2.2 - Um dia típico na unidade do CERENE de Palhoça .................................................... 29
1.2.3 - O parecer de quem vive e ajuda a viver o programa terapêutico ................................ 30
1.3 - As etapas de um tratamento ................................................................................................. 37
1.4 - Co-dependência .................................................................................................................... 44
1.4.1 - Questões introdutórias .............................................................................................. 44
1.4.2 - “Soltando as pontas” ................................................................................................... 45
1.4.3 - Definindo a co-dependência ........................................................................................ 47
1.4.4 - Ausência paterna e simbiose materna: comum da DSPA e da co-dependência .......... 48
1.4.4.1 - Inversão de papéis ........................................................................................... 53
1.4.4.2 - O poder de escolha perdido ............................................................................. 54
1.4.5 - A co-dependência em evidência .................................................................................. 56
1.4.6 - Objetivos para um programa de tratamento da co-dependência ................................. 61
1.4.7 - Relutâncias ao tratamento ........................................................................................... 62
1.5 - Quem ajudará? ...................................................................................................................... 64
11
II – ESPIRITUALIDADE E DIACONIA: DOIS CONCEITOS TEOLÓGICOS E SUAS
POTENCIALIDADES PRÁTICAS PARA FORJAR COMUNIDADES TERAPÊUTICAS __ 66
2.1 - Questões introdutórias .......................................................................................................... 66
2.2 - A importância da espiritualidade no tratamento .................................................................. 67
2.2.1 - Angústia humana ......................................................................................................... 72
2.2.2 - Medo gerador da angústia ........................................................................................... 72
2.2.3 - Medo da morte ............................................................................................................ 73
2.2.4 - Resposta para o medo .................................................................................................. 74
2.2.5 - Moralidade e religião ................................................................................................. 78
2.2.6 - Integração das pessoas sofredoras e marginalizadas ................................................... 81
2.2.7 - Meditação bíblica e seus métodos hermenêuticos ....................................................... 83
2.2.8 - Valor do indivíduo e o valor da comunidade .............................................................. 87
2.2.9 - A função da igreja ....................................................................................................... 88
2.2.10 - Conclusão sobre a espiritualidade no tratamento ...................................................... 89
2.3 - Considerações sobre a diaconia ............................................................................................ 90
2.3.1 - Aspectos bíblico-teológicos da diaconia ..................................................................... 91
2.3.1.1 - Textos bíblicos clássicos da diaconia .............................................................. 93
2.3.1.2 - A comensalidade de Jesus em Marcos 2.15-17 ............................................... 95
2.3.1.3 - Diaconia como tolhimento extremo ................................................................ 99
2.3.2 - Conclusão sobre a diaconia acolhedora .................................................................... 102
2.4 - Por uma práxis acolhedora ................................................................................................. 103
III - PARÓQUIA DA SOBRIEDADE: O DESAFIO DO ACOLHIMENTO DOS EGRESSOS
DE INSTITUIÇÕES DE INTERNAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS ___________ 105
3.1 - Considerações preliminares ............................................................................................... 105
3.2 - Em busca da aceitação social ............................................................................................. 105
3.2.1 - Espiritualidade integradora ....................................................................................... 107
3.2.1.1 - Do medo à confiança .................................................................................... 107
3.2.1.2 - Da moralidade excludente à espiritualidade integradora .............................. 110
3.2.1.3 - Meditação bíblica .......................................................................................... 113
3.2.2 - Acolhimento diaconal ............................................................................................... 115
3.2.2.1 - A necessidade de pessoas que se envolvam .................................................. 115
12
3.2.2.2 - Suprindo o vazio relacional ........................................................................... 117
3.2.2.3 - Comensalidade como ação concreta .............................................................. 118
3.2.2.4 - Existir em favor dos outros ........................................................................... 120
3.2.2.5 - O resgatado resgata ....................................................................................... 122
3.2.3 - Para que uma instituição não se volte para si mesma ............................................... 123
3.3 - União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade ........................................................ 131
3.3.1 - O que é a Paroquial Luterana da Sobriedade ............................................................ 132
3.3.2 - O parecer de quem participa da Paróquia Luterana da Sobriedade ........................... 133
3.3.3 - O parecer do pároco da União Paroquial da Sobriedade ........................................... 138
3.4 - Pontuações para uma práxis acolhedora ............................................................................. 142
3.4.1 - Iniciativas nas e das comunidades cristãs ................................................................. 145
3.4.2 - Iniciativa das instituições de tratamento ................................................................... 150
3.4.3 - Casa de apoio ............................................................................................................ 152
3.5 - Considerações finais ........................................................................................................... 154
CONCLUSÃO ______________________________________________________________ 156
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________ 159
ANEXOS __________________________________________________________________ 163
13
Introdução
O problema da Dependência das Substâncias Psicoativas – DSPA (álcool e demais
drogas) tem tomado proporções assustadoras.
A repreensão – tarefa exclusiva do Estado – parece não estar dando conta da sua tarefa, o
que ocasiona o aumento da oferta das substâncias ilegais (maconha, cocaína, crack, ecstase, entre
outras). Por outro lado, a bebida alcoólica, considerada legal, tem seu consumo incentivado na
mídia através de propagandas enganosas, que prometem a felicidade ao ingerir, por exemplo,
determinada marca de cerveja.
A cultura do alcoolismo parece estar fortemente impregnada em nossa sociedade, tendo
na normalidade do consumo de bebidas alcoólicas a sua bandeira. Isso faz com que os e as
adolescentes ingiram bebidas alcoólicas, começando assim o uso precoce, causando com mais
rapidez o desenvolvimento da doença/compulsão alcoólica.
Temos assim um quadro social que não pode passar despercebido pela Comunidade
Cristã: a precocidade do consumo e as famílias destruídas pelo abuso das DSPAs ou o abuso das
DSPAs como conseqüência da destruição das famílias.
Ou seja, toda a problemática tem a ver diretamente com a pergunta pelas disfunções
familiares: separações matrimoniais que fazem com que muitas vezes a figura materna carregue
sozinha os filhos e, para tanto, tem a dupla função de mãe e pai, sendo a mantenedora dos
14
mesmos. Os filhos, por sua vez, ficam à mercê de uma rotina de rua, da ociosidade, o que
ocasiona o contato com usuários, etc.
Esse mega-problema da DSPA não pode continuar sendo ignorado e/ou pouco
considerado pelo meio eclesiástico. Partimos do pressuposto de que é tarefa da Teologia Prática
auxiliar com suporte teórico-prático para o atendimento dessa demanda.
Diante dos diferentes modelos de atendimento ao DSPA optamos por direcionar nossa
pesquisa para o modelo de internação e de grupos de apoio, visto serem estes os que mais estão
emergindo a partir das iniciativas das comunidades cristãs. Em nossa caminhada empírica
constatamos uma das maiores dificuldades no atendimento: o pós-internamento. O que pode ser
feito, pela comunidade cristã, para melhor acompanhar a pós-alta? Essa é a nossa pergunta.
Dividimos a pesquisa em três grandes momentos: Primeiramente observamos o que
acontece numa instituição de internação para obtermos uma noção aproximada das intenções e
realizações do programa terapêutico que o residente vive enquanto interno na instituição.
Importou-nos saber como ele é preparado para enfrentar as intempéries corriqueiras da vida
humana e, especificamente, como ele é preparado para as relações eclesiásticas.
Para essa sondagem empírica optamos pela Comunidade Terapêutica (CT) CERENE,
unidade de Palhoça, visto ser ela uma instituição que tem como fundamento o Evangelho de
Jesus Cristo e objetiva a recuperação integral do indivíduo em seu aspecto biológico, psicológico,
sociológico/familiar e, não por último, espiritual. Apresentamos assim, a visão terapêutica e o
respectivo programa terapêutico que desenvolve atividades que contemplam a formação do
indivíduo em seus aspectos individuais e relacionais, preparando-o para o convívio social que
inicia num ambiente protegido e promove uma volta gradativa à sociedade. Todas as atividades
interagem entre si, proporcionando a contemplação do todo: o aspecto físico/biológico, o aspecto
psíquico/emocional, o aspecto social/relacional e o aspecto espiritual/educativo.
Fundamentamo-nos em documentos da entidade e no parecer concedido através de
entrevistas feitas com quem vive (seis residentes) e com quem ajuda a viver (cinco membros da
equipe terapêutica) o programa terapêutico. O aporte teórico obtivemos na apresentação que
15
Fischer faz das dez etapas do processo de recuperação, que podem ser agrupadas em préinternamento, internamento e pós-internamento.
Diante da visão sistêmica refletida na unidade do CERENE de Palhoça foi incluído, ainda
na primeira parte da pesquisa, a temática da co-dependência, relacionada aos familiares dos
DSPA’s, que têm na atitude de ‘facilitação e salvação’ a sua fraqueza. A ausência paterna e a
simbiose materna geram pequenos adultos que se tornam adultos pequenos, etiologia comum na
formação da maioria dos DSPA’s e de co-dependentes. Abordamos as fases da co-dependência,
(negação, depressão, negociação, raiva e aceitação), comum às todas as doenças, e apontamos
objetivos para um programa de atendimento aos co-dependentes que se resume em levar os
mesmos a resgatar um projeto de vida próprio porque, via de regra, eles tem vivido a vida do
DSPA. Relutâncias ao tratamento – também por parte dos co-dependentes - são comuns porque
mexem com o núcleo familiar, trazendo à tona situações desconfortáveis para todos e mostrando
que o DSPA não é o único problema/problemático da família. O co-dependente precisa de
tratamento, não para garantir a recuperação do DSPA, e sim porque é um indivíduo que sofre e
precisa de ajuda.
Assim, definimos e apresentamos os dois públicos alvos que a comunidade cristã deverá
ter em mente ao exercer seu papel de acolhimento: Os DSPA’s e os Co-dependentes.
Na segunda parte desta pesquisa buscamos um aporte teórico nas temáticas da
espiritualidade (conteúdo da fé) e a diaconia (práxis da fé). Para a articulação da espiritualidade e
sua relação com o processo terapêutico ouvimos Eugen Drewermann, articulador de uma
espiritualidade integradora fundamentada na graça de Deus. Ele critica fortemente a articulação
de uma moral que exclua o indivíduo da vida eclesiástica e social. Entendemos que a abordagem
de Drewermann sobre a relação ‘ser humano – Deus’ é um dos princípios fundamentais para a
articulação da espiritualidade na recuperação de DSPA’s. O medo gerador de angústia existencial
deve ser respondido através de programações específicas. A necessidade de uma hermenêutica
que atenda as perguntas existenciais é fundamental no manuseio da Bíblia para que esta responda
às mesmas.
16
Para a articulação de uma diaconia acolhedora, ancoramo-nos nas contribuições de Gaede
Neto e Schweizer que fundamentam exegeticamente, a partir de perícopes bíblicas, alguns
aspectos básicos da diaconia neotestamentária. A comensalidade de Jesus e o tolhimento extremo
do serviço ao próximo fazem com que a diaconia se torne acolhedora.
Para Gaede Neto, o texto bíblico de Marcos 10.35-45 é a porta de entrada para a leitura da
diaconia nos ensinos e nas ações de Jesus, porque inverte os valores da sociedade da época e, por
extensão, da sociedade atual. Os discípulos disputam o primeiro lugar, porém, Jesus inverte os
valores, afirmando: “entre vós não é assim” e “quem quer ser o primeiro seja diácono/servo de
todos”. O texto de Mateus 25.31-46 (julgamento final) enfatiza que a organização do trabalho
diaconal parte da necessidade que as outras pessoas têm e não da bondade dos que servem. O
texto de Lucas 10.25-37 pergunta sobre o que devemos fazer para que o outro, cuja vida está
ameaçada, tenha vida. O texto de João 13.1-35 aponta a radicalidade de Jesus em seu gesto de
servir, mesmo sendo o Senhor, dando assim o exemplo a ser seguido. E o texto de Marcos 2.1517 nos traz a narrativa sobre Jesus sentado à mesa com pecadores, sendo que esse gesto sinaliza a
radicalidade da comunhão, da inclusão social, da inclusão eclesiástica.
Schweizer aponta para a diaconia como tolhimento extremo, parte do exemplo de Jesus
que se esvazia (Filipenses 2.5) do seu ser Deus e existe a favor dos outros. Jesus vive agora (cf.
Mateus) nos sedentos, fugitivos, enfermos e presos (incluímos DSPAs e co-dependentes na
categoria ‘enfermos’). A comunidade cristã é vista (cf. Paulo) como um corpo em que um
membro ferido atinge todo o corpo. E em João o amor fraternal passa a ser a base para a
convivência social.
A partir do que vimos sobre diaconia, concluímos que não é uma questão de escolha
acolher as pessoas ou não. É sim uma questão de obediência. Obediência ao ensino e a práxis do
Senhor da Igreja.
No terceiro momento da pesquisa procuramos aplicar à comunidade cristã a práxis
integradora da espiritualidade e diaconia em relação ao público específico desta pesquisa:
DSPA’s e seus familiares. A busca pela aceitação social poderá ser respondida pela
17
espiritualidade que integra, vencendo assim o medo e respondendo aos anseios existenciais. A
diaconia conclama aos cristãos a se envolverem através de ações concretas que levam a existir a
favor dos outros. A diaconia passa a ser também um ferramental terapêutico que traz razão para a
existência do resgatado: esse passa a resgatar outros e conseqüentemente mantêm sua sobriedade.
A instituição, por sua vez, deve cuidar para que não se torne ‘um fim em si mesma’, perdendo o
objetivo central de sua existência: ser voltada para as pessoas que sofrem.
Apontamos – a partir das entrevistas que fizemos – expectativas que os DSPAs, os
familiares e a equipe terapêutica nutre em relação ao acolhimento na igreja. Para termos um
referencial empírico, olhamos a Paróquia Luterana da Sobriedade, na região da grande
Florianópolis, que procura promover a continuidade do tratamento oferecido pelas instituições de
internação, especialmente pelo CERENE.
A partir da aplicabilidade que fizemos das pontuações teóricas do segundo capítulo,
elaboramos algumas pontuações que consideramos importantes para que a práxis seja organizada
e promova a integração: iniciativas que as comunidades cristãs deveriam promover no e a partir
do seu meio e as iniciativas que as instituições de internação deveriam aperfeiçoar para que o
pós-internamento possa ser realizado com mais eficácia. A conscientização das comunidades, a
organização das informações, a disponibilização de material didático e o incentivo e preparo de
pessoas (agentes comunitários), constitui a base destas iniciativas.
Assim, pode-se criar uma ‘rede de apoio’. O residente, durante o programa de internação
e na fase final do mesmo, receberia informações sobre o que a instituição possui ao alcance dele,
na área geográfica específica à qual retornará ou na qual irá dar continuidade ao seu tratamento:
pessoas, comunidades cristãs, grupos de apoio, etc.
Com essas iniciativas concretas, a comunidade cristã seria uma continuidade da
comunidade terapêutica e ao mesmo tempo promovedora desta.
Sugerimos também, para atender a demanda daqueles que não têm mais uma estrutura
social básica, a criação de casas de apoio, iniciativas que deveriam partir de uma parceria entre as
comunidades cristãs e as instituições de internação.
18
Assim, a pesquisa parte da necessidade concreta que os DSPA’s e os co-dependentes têm
de acolhimento e integração social, mostra que a comunidade cristã tem intrínseco ao seu ensino
(espiritualidade) e à sua práxis (diaconia) o potencial de contribuir no atendimento dessa
demanda.
19
I – AS PESSOAS DEPENDENTES E CO-DEPENDENTES DE SPA: O TRATAMENTO COM
VISTAS À REINSERÇÃO SOCIAL
1.1 - Questões introdutórias
O limite entre o uso e o abuso de SPA (álcool e as demais drogas) é algo de contínuo
debate. O usuário é visto como aquele que faz uso da SPA de forma controlada e sem maiores
conseqüências. O “abusário” é o compulsivo, dependente (física e/ou psicologicamente) da SPA.
Alcoolistas, alcoólatras, adictos (escravos), drogadictos, dependentes químicos, toxicomaníacos,
quimiodependente, farmacodependente, etc. são alguns dos termos usados na referência ao que
abusa do uso ou tem em si instalada a dependência de SPA’s.
A dificuldade de uma terminologia própria se deve ao fato de as designações citadas
acima, essencialmente com conotações negativas, “rotularem/estigmatizarem” o indivíduo que
sofre dessa doença, supervalorizando os aspectos negativos da sua personalidade, sendo que a
valorização dos aspectos saudáveis/positivos é o passo inicial para tratá-lo1.
Porém, a
terminologia é necessária. Estaremos usando a sigla “DSPA” ao nos referirmos à problemática da
Dependência da Substância Psicoativa ou ao Dependente de Substância Psicoativa de forma
generalizada; “participante” ao indivíduo que está no contínuo processo de reestruturação de sua
1
Cf. Augusto CURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 94.
20
vida através do grupo de apoio; “residente”, ao que está internado na instituição de tratamento e
“co-dependente”, ao familiar do residente.
Os modelos de tratamento são diversificados. Estes podem ser essencialmente
classificados
em:
a)
ambulatorial,
caracterizado
pelo
acompanhamento
através
de
momentos/horários específicos de atendimento psicológico/psiquiátrico/pastoral; b) internação,
residência institucional intensiva (clínicas, hospitais e CT's) e c) grupos de auto-ajuda /de apoio
(a exemplo de A.A./N.A.; A.E.; Cruz azul; Paróquia Luterana da Sobriedade, etc.). Há modelos
em que as diferentes formas interagem entre si, como é o caso do hospital dia/turno que mescla
ambulatório/hospital – o indivíduo passa um período do dia na instituição e o outro em sua casa
ou emprego. As instituições de internação, via de regra, proporcionam o acompanhamento
psicológico/psiquiátrico/pastoral e reuniões de grupos de auto-ajuda, etc2.
Nosso foco de pesquisa concentra-se sobre o modelo de internação e de grupos de apoio.
Visto ser nossa pesquisa na área da Teologia Prática, direcionamos nossa pergunta central sobre
o papel que ocupa, ou deveria ocupar, a comunidade religiosa frente à problemática da DSPA.
Dos 21 serviços que responderam a uma pesquisa do Departamento de Psicologia da UFSC, 43%
desenvolvem a assistência espiritual como instrumento terapêutico, destes, sete são CT's3. Devido
ao uso (e, por vezes, abuso) desse ferramental terapêutico, compete à Teologia Prática articular a
importância da espiritualidade num programa terapêutico para a recuperação de DSPA’s – o que
faremos adiante, destacando a ênfase integradora da espiritualidade e diaconia cristã.
Como referencial empírico, buscamos ver o que é feito em duas instituições de
tratamento, sendo uma com ênfase na internação e a outra com ênfase em grupos de apoio. As
duas atuam numa parceria que integra suas especificidades: O CERENE (Centro de Recuperação
Nova Esperança), que segue o modelo psicossocial das CT’s e a Paróquia Luterana da
Sobriedade, que enfatiza o acolhimento social dos egressos da internação. A escolha das duas se
2
Numa recente pesquisa do Departamento de Psicologia da UFSC, feita no contexto da região da Grande
Florianópolis, foram identificados 28 serviços de “Atenção à Dependência Química” distribuídos em duas clínicas,
cinco ambulatórios, três hospitais, doze CT’s, três coordenações gerais de grupos de ajuda mútua e três programas de
redução de danos. Dessas instituições, 21 responderam à pesquisa, dentre elas 8 CT’s. Cf. Daniele Ribeiro
SCHNEIDER, Relatório Final (Avaliação dos Serviços...), p. 14. Os programas de redução de danos não têm por
meta a abstinência, mas, como já indica o nome, reduzir os danos decorrentes do uso e abuso das SPA’s.
3
Cf. Daniele Ribeiro SCHNEIDER, Relatório Final (Avaliação dos Serviços...), p.57.
21
deve à nossa caminhada ministerial junto às mesmas, como articuladores no processo de
formação e aperfeiçoamento do atendimento proposto e pelo aspecto teológico que envolve a
ambas, visto estarem inseridas no contexto das comunidades cristãs, especificamente, nas
paróquias da IECLB da região da Grande Florianópolis.
A pergunta que perseguimos em nossa pesquisa surgiu durante nossa práxis4. A
constatação empírica/subjetiva de um porcentual assustador de recaídas levou-nos a perguntar
pelo pós-internamento/alta (aftercare). O que pode ser feito para melhorar o acompanhamento
pós-internação?
A Paróquia Luterana da Sobriedade tem basicamente dois públicos-alvos: os egressos da
internação (a grande maioria do CERENE) e os familiares destes, os co-dependentes. Por isso
percebemos, durante a pesquisa, que o assunto da co-dependência não poderia ser ignorado, visto
a ênfase que ambas as instituições dão, cada vez mais, ao tratamento sistêmico.
Assim, na primeira parte deste primeiro capítulo, queremos apresentar o que é feito na
instituição de tratamento e o parecer de quem vive e de quem ajuda a viver o programa oferecido.
Uma análise minuciosa caberia a uma outra pesquisa. A nós interessa focar o que é feito dentro
da instituição de internação. Qual é a bagagem terapêutica e de ensino que o residente recebe? A
partir disso, podemos perguntar pela continuidade, ou seja, do que é necessário no pósinternamento. Assim apresentaremos uma noção de como o egresso foi ‘preparado’ durante a
internação. Contemplaremos assim o primeiro público-alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade.
Na continuidade, abordaremos o assunto da co-dependência, público-alvo que acompanha o
primeiro.
A necessidade de atender a esses dois públicos, e como fazê-lo – durante e após a
internação – é a mola propulsora desta pesquisa.
4
Estamos conscientes de que a nossa práxis ministerial (ao todo são nove anos de envolvimento direto no tratamento
de DSPA’s) influencia nossa pesquisa, levando-nos, por um lado, a uma tendência de leitura romântica das
instituições pesquisadas e, por outro lado, protegendo-nos de uma leitura estritamente racional/fria, leitura essa,
muitas vezes, feita por pesquisadores que adotam a metodologia da suspeita, que geralmente parte de um olhar
superficial para o que está sendo feito e obtém conclusões precipitadas, determinadas essencialmente pelos
pressupostos pretensiosamente científicos.
22
1.2 - CERENE, unidade de Palhoça, SC
Lá no Cambirela, bem pertinho do céu
Existe um lugar que você está com Deus, com Deus.
Todos os dias a gente ora trabalha e canta ao Senhor, ao Senhor.
Lá as tristezas vão embora só por causa do Amor, do Amor.5
Quem chega à unidade do CERENE de Palhoça, fica impactado pela beleza do lugar,
privilegiado pela sua exuberante paisagem. À frente se vê o mar e a bela ilha de Florianópolis.
Aos fundos, o monte Cambirela, com toda a sua majestade. Como dizia este co-obreiro6: “Se só
essa beleza toda ajudasse, o tratamento estaria garantido”. Não garante, mas ajuda. Ajuda na
motivação pela permanência na internação. Ajuda, acima de tudo, a mostrar que a vida é bela e
vale ser vivida em sobriedade. “É preciso re-aprender a viver, re-aprender as linhas básicas da
contemplação do belo”7. Uma das características visíveis do CERENE, em todas as suas
unidades, é o esforço empreendido para melhorar as instalações e a estética do espaço físico, por
entender o seu valor terapêutico para aqueles que já há muito perderam o olhar para a beleza da
vida. Também nessa postura se reflete algo que nem sempre é tão óbvio: a preciosidade e a
dignidade do público alvo que é digno de um ambiente adequado para o seu tratamento. Os
aspectos filantrópicos da entidade também ressaltam esse aspecto8. Todos – independente da
classe social – são tratados com o mesmo respeito, amor e dedicação. Essa característica impacta
a sociedade, acostumada a ver a distinção entre as classes sociais nos meios de atendimento à
saúde.
5
A letra e melodia desse hino foram compostas por dois residentes do CERENE da unidade de Palhoça no ano de
1998. Na encosta do moro Cambirela, conhecido na região pela sua presença majestosa, encontram-se as instalações
do CERENE.
6
Nossa caminhada no aprendizado sobre a dependência em SPA’s iniciou, após encerrados os estudos na FLT
(Faculdade Luterana de Teologia, na época CETEOL – Centro de Ensino Teológico), no CERVIN (Centro de
Recuperação Vida Nova – Rolândia, PR) seguindo na Cruz Azul de Panambi, RS. Após um período de ministério em
comunidade eclesiástica, ingressamos na unidade do CERENE de Palhoça em 1997, até 2003, inicialmente como
terapeuta pastoral e na seqüência como diretor da unidade. Optamos pela expressão “co-obreiro” - uma analogia
com o dependente e co-dependente - como meio de uma auto-referência a nós e a este período que muito contribuiu
para a aquisição de conhecimento do tema pesquisado. Não estamos mais diretamente envolvidos no modelo de
internação, porém, sentimo-nos co-parceiros deste ministério.
7
Augusto CURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 54.
8
A gratuidade nas internações alcançou o índice de 64% no ano de 2004. Isso significa que apenas 36% das despesas
foram pagas com contribuições dos beneficiários (possibilitadas pelos familiares, auxílio-doença, conhecidos, , etc).
Cf. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p. 28-29,
23
A beleza do CERENE não se limita ao espaço físico. Reflete-se na convivência dos seus
obreiros9 com os residentes em tratamento. O ambiente é familiar. As crianças, filhos de obreiros,
correm pelo arraial como se fosse território próprio. Brincam e “brigam” com os residentes.
Trazem à tona uma série de sentimentos – ora bons, ora ruins – que se refletem na terapia
individual. Aos que são pais, a saudade que teima em mostrar o quando seus filhos são preciosos
e precisam de pai. Aos que são filhos, a tristeza por não terem tido a possibilidade de brincar com
seus pais, assim como vêem os obreiros brincando com seus filhos. Tristeza que tem a
possibilidade de ser tratada. A presença feminina, das esposas dos obreiros, lembra a figura
materna.
O apelido de “Mama” já foi atribuído a algumas senhoras nesse contexto. O
relacionamento marido-esposa do casal obreiro pode trazer luz e esperança para o residente – a
maioria deles – que está em vias de separação matrimonial.
Assim “o Céu, Deus e o Senhor” são grandezas refletidas pelo “Amor” que vai tomando o
lugar da tristeza. Este hino foi composto em 1998 e é cantado hoje com a mesma convicção e
empolgação da época.
Com esse pano de fundo – aspectos da estrutura física e estrutura de convivência –
queremos verificar os ingredientes do programa terapêutico que são oferecidos no decorrer da
internação.
1.2.1 - Programa terapêutico do CERENE
Atuar na prevenção da dependência de álcool e outras drogas e no tratamento do
dependente e seus familiares, a partir de uma visão cristã de ser humano integral,
buscando a reinserção social e uma melhor qualidade de vida.10
9
“Obreiros” é a designação para todos os membros da equipe terapêutica de uma unidade do CERENE,
independente da função exercida. Essa designação é comum na maioria das Comunidades Terapêuticas. Em algumas
delas “monitores” é o termo equivalente. A designação comum mostra a importância de todos e incentiva a
mentalidade de equipe.
10
Missão do CERENE. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p. 5.
24
Conforme a Introdução ao Programa Terapêutico do CERENE11, o programa entende que
a “dependência química é um estilo de vida e não somente o uso exagerado de determinada
substância psicoativa”12. Parte da premissa de que é necessário criar um novo estilo de vida e não
somente reformar o atual. Para isso, adota a modalidade de tratamento psicossocial de
Comunidade Terapêutica. O objetivo geral do programa de tratamento é “oferecer um ambiente
protegido, técnica e eticamente orientado, bem como suporte e tratamento para dependentes de
substâncias psicoativas – SPA, do gênero masculino, com idade mínima de 12 anos”13. O
ambiente protegido é necessário para o início da abstinência porque, por maior que seja a força de
vontade do indivíduo em se abster da SPA, a pressão externa (ambiente de convívio com colegas
usuários e a oferta da substância, bem como o ambiente que instiga constantemente através das
lembranças que proporciona) e a pressão interna (fissura gerada pela dependência física e/ou
psicológica) somadas geralmente com situações emocionais desestruturadas (conflito familiar,
social) dificultam o início e a manutenção da abstinência no local de origem do DSPA14.
Contudo, apenas um ambiente protegido não é suficiente para (co)responder à mudança de perfil
de vida necessária. “Técnica e eticamente orientado com suporte e tratamento”, acompanhamento
este que acontece através das programações da instituição, de cunho psicológico, laborativo e
espiritual, mencionadas a seguir15.
a) Aconselhamento individual. É indicado um conselheiro16, que acompanhará de forma
individual (e pessoal) ao residente, através de diálogos periódicos/ordinários e, quando
necessário, extraordinários. Diálogos que incluem, na medida da necessidade, os familiares ou
11
Documento elaborado em outubro de 2004.
CERENE® . Programa Terapêutico do CERENE, p. 1.
13
Id.,Ibid., p. 3. As quatro unidades do CERENE, Blumenau, Lapa, Palhoça e São Bento do Sul (a ordem da citação
lembra e respeita a ordem do surgimento de cada uma) atendem apenas ao gênero masculino. Quando ocorre a
procura de alguém do gênero feminino, é praxe direcionar para outras Comunidades Terapêuticas estruturadas para
esse fim, a exemplo do RENASCER, em Ituporanga, SC.
14
Há casos em que o indivíduo pára sozinho, em seu ambiente cotidiano. É possível constatar que a maioria desses
casos ocorre como que através de uma terapia de choque, após um susto provocado, por exemplo, pelo alerta médico
em relação à precariedade da saúde física, um acidente de trânsito, perda do cônjuge, um conflito ameaçador com o
traficante, etc. Pelo conceito de recuperação apresentado na filosofia do CERENE, podemos perceber que a
abstinência não significa necessariamente recuperação. Ela faz parte, porém não a define. Entre os DSPA’s
encontramos gírias do tipo “apenas fechou a garrafa” ou “alcoólatra seco”, etc, que refletem essa realidade.
15
Cf. CERENE® . Programa terapêutico do CERENE, p. 6-8.
16
Na unidade de Palhoça, os conselheiros de tempo integral são formados em diversas áreas do saber humano: 1 em
psicologia, 1 em teologia, 1 em contabilidade e arquitetura, 1 em engenharia civil. Também em caráter de meio
turno: 1 agrimensor. O critério de contratação dos mesmos, refletido nas entrevistas, parece ser a postura de fé cristã
e a disposição pessoal para esse ministério de recuperação.
12
25
responsáveis. O residente também tem acesso a outros profissionais do CERENE. Essa forma de
aconselhamento lembra a figura de um monitor/tutor. É uma figura fundamental para que o
residente tenha a quem recorrer quando enfrenta dificuldades emocionais ou relacionais. Esse
acompanhamento personalizado gera uma atmosfera de cunho mais pessoal. Assim, o indivíduo
não se esconde na multidão e não passa despercebido.
b) Reuniões de grupo. Encontros periódicos que oportunizam o aprendizado do “ouvir”,
através de recomendações mútuas e críticas construtivas. O compartilhar de sentimentos, a troca
de experiências e a administração de tensões possibilitam a edificação pessoal bem como o
aperfeiçoamento das relações. As reuniões também oferecem informações através do estudo dos
Doze Passos e da Prevenção da Recaída17.
c) Palestras Informativas. Nestas são repassadas informações a respeito da DSPA, das
SPA’s, riscos à saúde física e emocional, espiritualidade, aprofundamento sobre o programa de
internação, qualidade de vida etc. Os terapeutas entrevistados na unidade de Palhoça, referem-se
a essas palestras como sendo “psicoeducativas”.
d) Feedback. Este poderá acontecer através dos colegas de tratamento, nas reuniões de
grupo (item b) ou pela equipe terapêutica que, em reuniões periódicas, avalia a evolução do
processo de recuperação18.
e) Regimento Interno. É parte integrante do programa de tratamento da internação
porque (re)ensina a viver sob normas comunitárias, deixa claro os direitos e deveres do residente,
17
Doze passos do A.A., com adaptações bíblicas feitas pelo terapeuta Luis Carlos Kuchembecker. Cf. CRUZ AZUL.
Comunidade Terapêutica & Dependência Química em pauta. Ano I, n. 3, p. 7-12. O programa de prevenção da
recaída é inspirado em G.. Alan MARLATT, Judith R. GORDON, Prevenção de Recaídas: estratégias de
manutenção no tratamento de comportamento adictos,1993.
18
Há instituições que chamam essa ferramenta de “confronto”, muitas vezes adquirindo a tônica, como a própria
palavra diz, de confrontar a pessoa com a realidade de sua auto-manipulação e/ou manipulação das pessoas ao seu
redor. Por vezes, esse confronto é feito pelos próprios residentes, ocasionando situações pejorativas e adversas,
deixando de ser terapêutico. O feedback no CERENE procura dar apenas o que a própria palavra diz, um retorno das
impressões, positivas e negativas, que o residente está causando para a equipe terapêutica e para os seus colegas de
internação. Essa reunião de feedback é acompanhada pelo conselheiro individual, que procura conversar
posteriormente com o residente sobre as impressões do grupo.
26
promove o respeito mútuo e reeduca o ritmo biológico de cada um (alimentação, descanso,
atividades físicas, etc)19.
f) Assembléia Geral. Reunião periódica em que se trata do andamento da Comunidade
Terapêutica, oportunizando contribuições para o aperfeiçoamento do atendimento da entidade.
Há algum tempo era conhecido por “lava-roupas”, por causa da possibilidade de também tratar de
descontentamentos nos relacionamentos.
g) Atividades esportivas e recreativas. O brincar, o lazer, dinâmicas, jogos (futebol e
vôlei), torneios, gincanas etc, estimulam o exercício físico dentro dos limites individuais de cada
residente. Esse aspecto lúdico é algo a ser constantemente estimulado porque ensina que é
possível a satisfação através da sobriedade.
h) Atividades pedagógicas de ensino. Parceria com entidades promotoras de
alfabetização e ensino fundamental e médio (na unidade de Palhoça através do supletivo do SEJA
– Secretaria Ensino Jovens Adultos, do Estado de Santa Catarina) possibilita alcançar o objetivo
terapêutico de: ampliar o conhecimento, motivar à conclusão20 de cursos regulares após o
internamento e elevar a auto-estima, entre outros.
i) Cursos de caráter profissionalizante. Participação opcional, antes de optar, e
obrigatória após a opção feita, por parte do residente, em iniciar o curso. Esses cursos são
disponibilizados a partir de entidades promotoras, preferencialmente de curta duração. Exemplos
de cursos: padaria, confeitaria, marcenaria, horta e floricultura, piscicultura, informática, etc.
19
A administração do regulamento nem sempre é fácil. O princípio do “sábado criado por causa do homem e não o
homem por causa do sábado” (Marcos 2.27) é o que deve nortear as diversas situações que surgem e que muitas
vezes não estão previstas no regulamento. Na primeira semana de internação, o residente toma conhecimento do
regulamento. Por ocasião da entrevista preparatória para a internação, são-lhe passadas as informações centrais do
regulamento, mostrando, acima de tudo, a necessidade de se viver com regras. Após lido o regulamento, o residente
assina um termo de compromisso em que concorda viver sob essas regras e que está ciente das conseqüências do não
cumprimento das mesmas. Essa metodologia é importante para que não haja surpresas do tipo “eu não sabia”. Um
sistema que tem sido adotado é o da pontuação negativa ou cartão amarelo, que sinaliza advertência por pequenas
infrações. A soma de pequenas infrações poderá levar a conseqüências maiores, inclusive à interrupção temporária
do internamento, através da “alta administrativa”.
20
Cursos incompletos são uma forte característica dos DSPA’s, como analisa Fischer, citando gráficos e autores que
apontam para essa realidade. Cf. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 66-69.
27
Objetiva-se fortalecer a relação com o trabalho, ampliar e despertar conhecimentos
profissionais21.
j) Oficinas. A prática artística/artesanal estimula a criatividade e proporciona uma
ocupação saudável nos horários livres do programa diário e de fins de semana. Somado com o
item anterior, residentes com conhecimentos na área artesanal ensinam outros residentes, de
forma livre e espontânea, possibilitando, em alguns casos, um meio de sustentabilidade futura.
k) Acompanhamento médico e medicamentoso. O CERENE disponibiliza consultas
periódicas para que o bem-estar físico e os sintomas de abstinência sejam amenizados. A
medicação é administrada pela entidade, com prescrição médica. Casos de emergência são
encaminhados para rede pública de saúde. Em casos de complexidades médias e altas,
encaminha-se para instituições e/ou profissionais competentes, sob a responsabilidade da família
ou responsável do residente.
l) Promoção da Cidadania. Atividades que proporcionam (re)construir os meios de
acesso e reconhecimento da cidadania do indivíduo (documentos, tratamento de saúde e
odontológico, educação, lazer etc).
O programa de tratamento é previsto em quatro fases, que iniciam com a ênfase na
desintoxicação e abstinência, caminhando em direção a um retorno gradativo e intensivo ao meio
sócio-familiar: a) Fase 1 – Adesão (até o 30 º dia). Não visita e não recebe visita, não se
comunica diretamente com pessoas de fora da instituição (exceto eventual psicólogo, pastor,
assistente social que tenha encaminhado à internação e pretende acompanhá-lo). Recebe e passa
informações preferencialmente na presença e através do seu conselheiro individual.
Correspondências são liberadas após o 20º dia. b) Fase 2 – Reencontros sócio-familiares (entre o
31º e o 75º dia). Os familiares e/ou responsáveis podem e devem fazer visitas ao residente, e a
21
É um ideal bastante apreciado o fato de promover essa possibilidade de formação. Porém, entre o ideal e o real,
sempre ocorrem algumas dificuldades, entre elas, conseguir as parcerias promovedoras de tais cursos e a
permanência dos residentes no curso, visto que a interrupção do internamento interrompe também a participação no
curso. Mais do que formar profissionais em determinadas áreas, todo o programa de laborterapia, dos cursos
oferecidos, relacionamentos pessoais, etc, somam para formar a pessoa do profissional, gerando assim um perfil que
possibilita o constante aperfeiçoamento pessoal e profissional. Conforme a “programação semanal” do CERENE
unidade de Palhoça [Cf. Anexo III] são cerca de cinco horas/dia direcionadas para o programa de laborterapia
(terapia de labor) que envolvem atividades diversas: cuidado de animais (gado, porcos, frangos), horta, marcenaria,
oficina, construções, manutenção, cozinha, limpeza, almoxarifado, jardinagem, etc.
28
eles são oportunizadas palestras orientadoras sobre o programa de tratamento, a DSPA e a codependência. Objetiva-se à reconstrução e fortalecimento dos vínculos familiares. c) Fase 3 –
Saídas com Acompanhantes (entre o 76º e o 120º dia). A finalidade é proporcionar um retorno
gradativo ao ambiente sócio-familiar. Para isso, o residente é motivado a fazer, a cada 14 dias,
visitas domiciliares acompanhado por um responsável, permanecendo fora do CERENE dois dias
e uma noite. e) Fase 4 – Saídas sem Acompanhantes (entre o 121º e o 180º dia). Intensifica-se o
processo de reinserção ao ambiente sócio-familiar, com visitas domiciliares até três vezes ao mês.
Depois do 150º dia, a permanência fora do CERENE aumenta para três dias e duas noites em
cada visita, podendo ser em dias úteis para facilitar a procura de emprego e/ou providenciar
documentos, bem como cuidar da saúde dentária. Assim, o tempo previsto é de 180 dias,
podendo ser prorrogado por mais 120 dias no programa de reinserção social, em um sítio anexo
ao CERENE.
Essa metodologia responde à crítica que aponta, como ponto sensível da internação, uma
anormalidade social, tirando o indivíduo da sociedade de origem22. A reinserção social começa
com o ato da internação, possibilitando o aprendizado de convivência, e prossegue durante a
internação e precisa de acompanhamento após a mesma.
22
“As comunidades terapêuticas para tratamento de dependentes químicos, por melhor que sejam, como hospitais e
clínicas especializadas, constituem uma anormalidade social”. Wilson Kraemer PAULA, A Universidade como
espaço alternativo de tratamento..., p. 115. O autor do referido artigo tem o nobre e louvável objetivo de mostrar que
a universidade pode ser um espaço alternativo para a inserção do DSPA, através de um programa para tal. Porém, faz
isso inicialmente criticando – forte e pejorativamente – o trabalho das CT’s para daí lançar a sua proposta. A
incoerência do artigo está no fato de a sua proposta ter basicamente ingredientes psicoeducativos semelhantes aos
das comunidades terapêuticas como, por exemplo, grupos de estudos (com metodologia das reuniões coordenadas
por um facilitador), grupo de ajuda mútua, (metodologia que identifica o campus da universidade “um ambiente onde
a maioria da população não é usuária de drogas, pode ser compreendida como a ampliação do contexto sadio do qual
o recuperando necessita”, p.123), a utilização de regras claras (que fornecem “fichas para transporte urbano”,
“almoço no restaurante”), participação em duplas nos programas e no Campus da Universidade, horários préestabelecidos e a obrigatoriedade da participação nos programas [p.124/5]. Uma proposta não exclui a outra.
Somam-se! Infelizmente Paula não percebeu isso.
29
1.2.2 - Um dia típico na unidade do CERENE de Palhoça23
Às 6:30 horas acontece a alvorada, proporcionada pelo ruído estridente do sino tocado
pelo obreiro que será o responsável do dia, fiscalizando arrumação do quarto, organizando as
refeições, tocando o sino para os diversos horários a serem seguidos. Cama arrumada e higiene
pessoal fazem parte desse início rotineiro. Uma leitura meditativa da Bíblia ou de algum
devocionário já faz parte na vida de alguns. Vai-se para o desjejum proporcionado por um
gostoso café feito por uma equipe escalada semanalmente para esse fim. O obreiro inicia com
uma palavra meditativa e oração de agradecimento, o que, por vezes, também é feito por
residentes24, para, na seqüência, cada um se servir, seguindo uma escala organizada pela
numeração das mesas. Às 7:30 horas, o sino volta a tocar chamando para o programa matinal que
é, conforme o dia, uma palestra bíblica, grupos de sentimento, culto ou grupos de estudo. Ás 9:00
horas começa a laborterapia, levando cada um para o seu setor de atividades. Um certo
aglomerado se forma em frente ao almoxarifado, na busca por ferramentas de trabalho: foice,
facão, machado, botas etc. Às 11:30 horas acontece a tão esperada pausa para descanso, higiene e
um cigarrinho para os dependentes do tabaco25. A placa que sinaliza o local para “abastecer os
pulmões” é significativa: do lado de fora consta “fumódromo” e, do lado de dentro,
“canceródromo”, na tentativa permanente de conscientizar da necessidade de se abster também
do tabaco. Ao meio-dia, o sino chama para o almoço, novamente dirigido pelo obreiro, iniciado
com oração ou um cântico de mesa. O almoço é preparado pelo cozinheiro da casa, auxiliado por
uma equipe de residentes. Repouso e/ou silêncio até às 13:30 horas e a volta à laborterapia, às
14:00 horas, com pausa de 15 minutos (às 15:30 horas) e término às 17:00 horas. Segue-se um
momento livre que oportuniza o lazer. Às 18:30 é servido o jantar, às 19:00 assiste-se ao Jornal
na TV e às 20:00 horas acontece um programa da casa, com palestra psicoeducativa, estudo
23
Passamos 5 dias na unidade com o objetivo de observar e de efetuar entrevistas com residentes e obreiros, o que
possibilitou a descrição de um dia típico na unidade.
24
Oração muitas vezes encerrada com um responsório: “Ó vem Senhor Jesus sê Tu o nosso convidado e tudo o que
nos dás nos seja abençoado”.
25
A unidade do CERENE de Palhoça não exige/impõe a abstinência do tabaco. Porém a incentiva através de
palestras de conscientização dos malefícios que o mesmo causa ao organismo. São rigorosos, não permitindo que
alguém inicie essa dependência durante a internação.
30
bíblico ou um filme facultativo (nas quartas-feiras). Às 22:30 horas é o momento de recolher-se
para o repouso.
Na condição de observador, é interessante perceber o movimento no decorrer do dia. É o
trator sendo conduzido por um residente e outros “fazendo festa” na carroceria (mais parecendo
um trenzinho da alegria). É um grupinho aqui outro acolá com suas ferramentas. É um residente
ao lado de seu terapeuta, caminhando em direção do escritório para a terapia individual. É uma
família em frente à ala administrativa, aguardando o momento da entrevista. É o veículo da
unidade indo e vindo, ora para fazer compras, ora para levar alguém ao médico. No intervalo, é o
grupo se organizando para mais um jogo de futebol, outros indo ao açude para dar uns
mergulhos, outros conversando, lendo, fazendo exercícios na academia e ainda outros jogando o
seu dominó, pacau (pebolim) ou tomando chimarrão. Esse movimento todo lembra uma
verdadeira comunidade.
1.2.3 - O parecer de quem vive e ajuda a viver o programa terapêutico.
Além da convivência in loco na unidade do CERENE de Palhoça – objetivando uma
pesquisa participativa, fizemos algumas entrevistas com residentes que vivem o programa
terapêutico26. São eles:
Osmar27, 47 anos de idade, casado, um filho e dois enteados, quatro meses e meio de
internação, 2º grau completo, balconista de farmácia. Ultimamente a SPA predominante era a
cocaína. Iniciou aos 15 anos usando maconha, motivado pela curiosidade. Chegou ao CERENE
através do projeto Siloé28, após ter sido enviado por um Padre da cidade de Maringá, PR.
26
Esclarecemos a cada entrevistado a possibilidade de se apresentarem com um pseudônimo. Significativo é o fato
de todos terem se apresentado com o nome legítimo. Mesmo assim, usaremos pseudônimos para evitar siglas e
numerações ao nos referirmos a eles, bem como para manter o anonimato. Visto que o objetivo não é uma pesquisa
quantitativa e, sim, qualitativa, optamos em entrevistar seis residentes, seguindo o critério de maior tempo e/ou
adesão ao tratamento, devido à tônica que damos à reinserção social.
27
Informações sobre Osmar (pseudônimo) no anexo I p. 12-13.
28
“O Projeto Siloé é uma entidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de caráter filantrópico e
assistencial, criada por pessoas preocupadas com o crescente número de dependentes de drogas, álcool e congêneres,
31
Gerson, 49 anos de idade, separado, dois filhos, quatro meses de internação, 1º grau
incompleto, eletricista. Dependente da bebida alcoólica, especialmente a destilada, iniciou aos 18
anos de idade, motivado pelas “companhias assim, para a gente se enturmar mais, dava mais
segurança para se apresentar com os amigos ou ir para algum lugar, isso me fazia bem, me
deixava mais tranqüilo”29. Procurou uma proposta de tratamento mais longo (pois já fizera três
curtos de no máximo 28 dias) e assim, através de um amigo, chegou ao CERENE.
Egon30, 28 anos de idade, união instável, dois meses e meio de internação, 1º grau
incompleto, garçom. Dependente do crack e cocaína injetável, iniciou o uso de SPA aos 13 anos
de idade, motivado pela curiosidade e busca por status. Sua primeira internação no CERENE foi
em 2001, através de uma missionária da igreja Batista.
Romeu31, 30 anos, solteiro, um filho, quatro meses e dez dias de internação, 2º grau
incompleto, motorista. Cocaína é a SPA predominante. Iniciou o uso aos 15 anos, motivado pela
curiosidade. Conheceu um voluntário do CERENE que atua em campanha de arrecadação de
recursos32, pediu ajuda e assim conseguiu a sua vaga.
Rogério, 29 anos de idade, casado, dois filhos, um mês e meio de internação, 1º grau
incompleto, cenógrafo. Ultimamente “eu tava tomando cachaça e fumando mais era a pedra
[crack)”33. Iniciou aos 14 anos usando maconha, motivado pela curiosidade e induzido por um
amigo. Através de um diálogo com a família, auxiliado por um tio que também passara por
internação, chegou ao CERENE.
Ivo, 27 anos, solteiro (foi amasiado), uma filha, três meses de internação, 3º grau
incompleto, vendedor. As SPA’s predominantes são o crack e a cocaína, sendo que usou vários
objetivando de maneira concreta a recuperação das pessoas afetadas. Bem como, objetiva o apoio a pacientes
portadores do vírus HIV, indicando-lhes uma vida com Jesus”. Cf. ‘www.siloe.org.br’ (11/07/2005). O Projeto Siloé
mantém atendimento ambulatorial de aconselhamento psicológico e pastoral, encaminha DSPA’s para Instituições de
Internamento, acompanha durante e após o mesmo. Mantém um vínculo bastante próximo com o CERENE.
29
Informações sobre Gerson (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no
anexo I, p. 05.
30
Informações sobre Egon (pseudônimo) no anexo I p. 02-03.
31
Informações sobre Romeu (pseudônimo) no anexo I p. 20-21.
32
Trata-se de uma campanha em que o consumidor pode fazer uma doação mensal em sua fatura de energia elétrica,
através da CELESC (Central Elétrica de Santa Catarina). Essa campanha tem sido feita de casa em casa, muitas
vezes oportunizando esse contato direto com quem precisa do tratamento.
33
Informações sobre Rogério (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no
anexo I, p. 17.
32
tipos de substâncias. Iniciou motivado pela “curiosidade, eu queria me enturmar com a rapaziada
né, queria ver qual o lance da droga e deu nisso”. Através de uma amiga de sua ex-mulher “Deus
colocou o CERENE no meu caminho, e eu estou lutando até hoje e sei que Deus vai me livrar
dessa doença”34.
Ao perguntarmos: Como você avalia as atividades feitas aqui no CERENE? As respostas
foram unânimes em afirmar a importância destas. Ivo destaca que elas ajudam a desenvolver
responsabilidade quanto a horários, adaptação a um ciclo de responsabilidade, ocupar o tempo e
assim lidar com a ansiedade; elas geram crescimento e perseverança, levam a “acreditar que
aquilo pode mudar e pra mim tá dando certo”35. Para Gerson, a mente ocupada evita dar margem
“aos pensamentos destrutivos” como depressão, ansiedade, que proporcionam “a vontade de ir
embora, de abandonar o tratamento, de talvez sair e resolver as coisas de sua própria maneira (...)
o que é feito aqui dentro eu acho muito importante”36. Para Osmar, as atividades ajudam a
esquecer um pouco os problemas lá de fora, as atividades são boas, porém, dependendo do local
em que são realizadas, podem se tornar estressantes37. Rogério destaca que as atividades que
realiza é para si próprio, que é bom para ele38. Romeu avalia: “tu trabalha, tu ocupa sua cabeça,
ocupa mente, ocupa corpo, muito bom, para mim são muito boas as atividades em geral”39. Egon
não vê dificuldades em realizar as atividades e vê a intencionalidade das mesmas “são pessoas
que acolhem a gente, que amam a gente, se dão trabalho pesado é pra ajudar, se dão um trabalho
leve é para ajudar, então os cultos também (...) a programação da casa é boa”40.
É a equipe terapêutica que ajuda a viver o programa terapêutico. Falamos em “viver”, por
causa da ênfase no (re)aprender um novo perfil de vida. O programa terapêutico não é feito para
ser seguido, e, sim, vivido, pois deverá seguir por toda a vida.
34
Informações sobre Ivo (pseudônimo) e o trecho da entrevista concedida por ele se encontram, na íntegra, no anexo
I, p. 08-10.
35
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 10.
36
Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 7.
37
Conforme trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 15.
38
Conforme trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 18.
39
Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 21.
40
Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo) que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 04. As falas em
relação à espiritualidade e respectivos programas serão citadas adiante sobre a temática da espiritualidade no
tratamento.
33
Perguntamos também a cinco membros da equipe terapêutica da unidade a opinião sobre
o programa terapêutico do CERENE:
Luis, 43 anos, formado em arquitetura e urbanismo pela UFSC, está trabalhando no
CERENE desde 2001, reside no CERENE com sua esposa e duas filhas. Sua esposa é professora
do curso de Supletivo em parceria com o SEJA. Já desde o início da unidade, em 1996, fez parte
do comitê de voluntários que ajudavam a administrar a mesma. Ajudava com palestras e
conversas informais, sendo convidado e desafiado a integrar a equipe em tempo integral como
terapeuta pastoral. Sua longa resposta destaca a abrangência do programa que vê a integralidade
do ser humano:
Eu penso que é um programa bem abrangente, que entende realmente a necessidade
de tratar o ser humano na sua totalidade, nas suas necessidades físicas, emocionais,
espirituais, sociais, como um ser que precisa de vínculos familiares e a realidade de
mercado, profissão, essas coisas todas.
Destaca também a visão cristã:
A gente tem, (...) palestras psicoeducativas e especialmente com enfoque, com uma
visão cristã da vida e de recuperação a partir da graça de Deus, que oferece perdão,
oferece uma nova esperança, oferece a libertação de vícios e pecados e capacita
também a restauração de vínculos com a família e restauração também do bem-estar
pessoal, enfim, uma reformulação de todos os níveis de relacionamento que o ser
humano tem, com Deus, consigo mesmo e com o próximo (...)
A importância da laborterapia:
A laborterapia, que é um diferencial nesse modelo de comunidade terapêutica em
relação a outras abordagens de tratamento (...) onde o residente pode perceber que ele
é útil à sociedade, que ele pode produzir, o que via de regra não tava acontecendo
antes de ele buscar o tratamento, então ali a gente pode conhecer quem ele
verdadeiramente é, as dificuldades de relacionamento que ele tem, as dificuldades de
problemas de caráter, as dificuldades de enfrentar desafios novos, lidar com
frustrações, o tipo de conversas que ele aborda, e isso tudo é material terapêutico para
ser trabalhado depois, em outros momentos, ou mesmo ali.
O acompanhamento individual:
Também damos ênfase ao acompanhamento individual, no qual um terapeuta vai
acompanhá-lo desde o início do tratamento até o final, conhecendo a sua história de
34
vida, a sua situação familiar, a sua história da drogadição e da busca pela recuperação
e ali, no aconselhamento, então se trava um vínculo mais íntimo entre terapeuta e
aconselhado e isso eu vejo que é muito importante no processo de reestruturação da
vida, a pessoa se sente valorizada, amada, respeitada, (...) é ouvida com carinho e
mais do que informações, ali então recebe esse tratamento humano que eu acho que
faz um grande diferencial para a recuperação.
O lazer:
Somado a todas essas atividades, também incluímos o momento de lazer né, o
momento da educação física, do esporte, tem o horário livre né, é importante a gente
observar como o residente aproveita o horário livre, também para organizar as suas
coisas pessoais, para estabelecer amizades novas, e buscar opções saudáveis de lazer
né.41
Ricardo, 30 anos, formado em Psicologia pela UFSC, reside e trabalha no CERENE há
sete meses, seu filho de quatro anos passa fins de semana com ele na unidade, sentiu-se motivado
por essa área de atuação pelo fato de já ter sido usuário de maconha. Percebeu que muitos em sua
igreja já tinham sido usuários. Sentindo a necessidade de aprender na práxis e contribuir com sua
formação, aceitou o desafio de auxiliar junto ao CERENE. Seu objetivo é um dia organizar um
ministério específico de acolhimento a DSPA’s em sua igreja. Sua resposta chama a atenção
sobre o aspecto da convivência:
Olha, além das palestras dos grupos de sentimento, relacionamentos humanos né,
acho que funciona quase que como que uma terapia em grupo mesmo, e dos
aconselhamentos individuais, eu acho que o grande, o grande elemento que muda
mesmo a vida das pessoas, ali onde elas podem praticar a fé cristã que é ensinada e as
competências que são ensinadas, nas palestras, nos aconselhamentos, é a convivência,
essa convivência intensa entre eles né, convivência de ficar o dia inteiro, de dormir
junto, trabalhar, comer e essa convivência então ali no meio, de resolver os conflitos
com a ajuda dos terapeutas, ali sim eles podem praticar as mudanças e levar essa
mudança mais pra frente na vida deles.42
Reni, 39 anos, formado em Teologia pela FLT (Faculdade Luterana de Teologia, antigo
CETEOL, em São Bento do Sul, SC), há dez meses reside e trabalha no CERENE, junto com sua
esposa e filho. Sua esposa trabalha na secretaria da unidade. Quando atuou como obreiro em
comunidade, deparou-se com situações de alcoolismo crônico, vendo a necessidade de ajudá-los.
41
42
Trechos da entrevista concedida por Luis Carlos Kuchenbecker, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p.55-56.
Trecho da entrevista concedida por Ricardo Liberato Macedo dos Santos, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 53.
35
Respondeu positivamente ao convite de integrar esta equipe. Afirma que é pouco o seu tempo de
atuação nesta área, porém:
(...) é um bom programa terapêutico (...) ele não é perfeito e tem muitas coisas a
serem ajustadas e melhoradas, no decorrer dos anos, mas se a pessoa se dispõe a
cumprir e viver aquilo que é ensinado e é passado às pessoas que residem aqui no
tratamento eles têm, e muitos já conseguiram com essas ferramentas sair dessa
dependência química, para viver uma vida sóbria.43
Viktor, 30 anos, há 11 meses mora no CERENE, juntamente com sua esposa. Veio da
Alemanha e é formado na área de laborterapia. Foi motivado a trabalhar na recuperação de
DSPA’s a partir de uma prestação de serviço civil, aqui no Brasil (na unidade do CERENE de
Palhoça) em 1997/9844. Gostou e voltou! Inclusive, ao voltar para a Alemanha, foi determinado a
se formar nessa área, para melhor auxiliar. Juntamente com mais dois obreiros, coordena a
laborterapia. Destaca a importância de fortalecer a comunicação entre a área laborterapêutica e
aconselhamento para que o residente tenha um feedback mais realista:
(...) é porque a visão do CERENE (...) é que a laborterapia é bem importante, mas
isso poderia ainda ser aprofundado né, trazer mais informações da laborterapia para
ajudar mais pessoas né (...) no aconselhamento, também dá para uma reflexão para a
pessoa mesmo, como acontece junto com o conselheiro (...) porque muitas vezes
perde muitas informações sobre a pessoa e a pessoa também não recebe essas
informações né, já aconteceu, por exemplo, a pessoa falou ‘não, mas ninguém falou,
eu não sabia’, porque às vezes a pessoa não percebe que tem dificuldade com os
horários, sempre vem cinco minutos atrasado, ou vai [sai] antes, só cinco minutos, e
ninguém falou nada e pra ela é normal e através disso também falar, a pessoa pode
tratar esse lado se tem dificuldades.45
Edenilson, 38 anos, está estudando num curso de gestão de empresas e serviço, está no
CERENE há aproximadamente 8 anos, reside na unidade com sua esposa e três filhas. Sua esposa
atua na secretaria. É o diretor da unidade. Ao ser perguntado pela sua motivação, relata do seu
tratamento, há 10 anos, no CERENE unidade de Blumenau. Após sua internação, tornou-se uma
referência que despertou o interesse em outros, encaminhando-os para a internação. Daí veio o
43
Trecho da entrevista concedida por Reni Schmith, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 58-59.
O jovem, na Alemanha, tem a opção de prestar serviço social no lugar de serviço militar e, quando feito em outro
país, deve servir o dobro do tempo, cerca de 18 meses.
45
Trecho da entrevista concedida por Viktor Berglissof, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 50.
44
36
desejo de atuar de tempo integral dentro de uma unidade. Como diretor, considera-se suspeito
para esta reposta, porém vê:
(...) o programa do CERENE como um programa que ele é eficaz, na essência, ele
trata de aspectos que são pertinentes assim pra a vida de qualquer pessoa,
principalmente o aspecto espiritual, o aspecto do relacionamento do homem com
Deus e também as questões psicológicas e emocionais que envolvem a questão toda
de um tratamento de uma pessoa que tem problemas de distúrbio com dependência
(...) o envolvimento da pessoa com atividades dentro da casa, laborterapia, os
programas que são feitos a nível de espiritualidade, e também o envolvimento não só
com o trabalho em si, mas o envolvimento com outras pessoas, esse envolvimento
com a equipe, é uma questão que eu vejo que é muito importante (...) eu vejo que o
CERENE como instituição falta muito pouco para alcançar assim... melhores
objetivos na situação do tratamento da dependência química.46
Assim, é possível ter uma noção geral da programação de uma unidade do CERENE. O
resultado positivo destas atividades depende, em certa medida, da conscientização que o residente
tem da necessidade de mudar o perfil de vida. Ao CERENE – através da equipe terapêutica –
compete motivar constantemente para que essas mudanças ocorram. A avaliação positiva
expressa, na fala dos residentes, talvez seja reflexo das convicções da equipe terapêutica em
incentivar e aprimorar o programa continuadamente.
Essa simulação de uma “micro-sociedade”, que (re)ensina a viver em abstinência e
sobriedade através de programações e treinos, é vista com uma certa empolgação positiva pelos
residentes e pela equipe terapêutica. Criam-se sonhos e expectativas. Tomam-se propósitos.
A partir do que é oferecido e feito, poder-se-ia constatar que o problema da DSPA está
resolvido. Se assim fosse, a implantação de CT's resolveria a problemática. Com alguns meses de
internação a vida voltaria ao normal.
As constantes recaídas trazem um alerta significativo: não é tão simples como
gostaríamos que fosse. O tratamento deve continuar. Para situarmos a continuidade do
tratamento, queremos entender o processo de recuperação. Para isso, as etapas de um tratamento,
apresentadas por Fischer (apud De Leon), são significativas.
46
Trecho da entrevista concedida por Edenilson João de Boris, que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 46-47.
37
1.3 - As etapas de um tratamento
A partir de De Leon, Fischer sintetiza as etapas de um tratamento, dividindo-as em prétratamento e tratamento. Do primeiro bloco, fazem parte a Negação, a Ambivalência, a
Motivação extrínseca, a Motivação intrínseca, a Prontidão para mudanças e a Prontidão para o
tratamento. Do segundo bloco, fazem parte a Desintoxicação, a Abstinência, a Continuidade e a
Mudança de Identidade e Integridade. Essas fases se desenvolvem de forma bastante particular,
sendo assim, o tempo de cada uma varia de indivíduo para indivíduo.
A fase de negação parece ser a mais longa, por causa da negação da problemática, pelo
indivíduo, apesar das evidências serem claras (especialmente em alcoolistas)47. A mentira “nessa
etapa passa a ser o ‘pecado’ predileto, ela é a principal arma de defesa e é aperfeiçoada de forma
assombrosamente rápida. Tanto para negar que usa alguma SPA como para negar que o seu
consumo é problema para si e/ou para os outros”48.
A fase da ambivalência mostra-se pela evidência de algum reconhecimento do problema,
especialmente em horas críticas (ressaca), porém retrocede quando a situação melhora. O
“reconhecimento categórico do problema somente ocorre a partir do momento em que a gangorra
dos benefícios versus custos estiver contra o consumo da substância”49.
A fase da Motivação extrínseca traz algum reconhecimento, porém coloca a culpa em
fatores externos. Muitos chegam à internação quando estão colhendo as conseqüências dessa
fase. Essa precária motivação se caracteriza essencialmente pelo fato de o residente não estar no
tratamento por vontade própria, muitas vezes expressa verbalmente com “(alguém) me internou”.
Quando ocorre uma internação nessa fase é necessário que os terapeutas conduzam a motivação
para a fase seguinte.
47
Fase essa também vivida, muitas vezes, pelos co-dependentes, como veremos adiante.
Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 96.
49
Id., Ibid., p. 100.
48
38
A fase da Motivação Intrínseca é marcada pela “aceitação do uso de drogas e seus
problemas associados, e um desejo expressado de mudança baseado em razões internas positivas
e negativas”50. Positivas se refletem em termos de auto-eficácia: possibilidades e desejos por um
estilo novo de vida, alcançar coisas boas, vontade de crescer pessoalmente e melhorar os
relacionamentos familiares e sociais. Negativas se refletem em termos de auto-reprovação: desejo
de eliminar sentimentos de culpa, ódio próprio e desespero pessoal. Isso, devido às suas feridas e
fracassos, que podem estar relacionados com outros e/ou consigo mesmo.
A fase da Prontidão para mudanças é a ação pró-ativa. É caracterizada por tentativas
menores para alcançar a abstinência, entre elas, as mudanças (geográfica, religião, emprego,
relacionamentos) e curtas inserções em internações/tratamentos. Nessa fase, ainda não aceita o
tratamento como sendo necessário51.
A fase da Prontidão para o tratamento vê neste a única opção. Reconhece a necessidade
de mudança e que sozinho não consegue parar. Ainda assim é possível a busca por um certo
alívio e não pelo tratamento propriamente dito. Por isso, De Leon sugere que se faça um certo
teste na entrevista preparatória, mostrando as dificuldades que o candidato à internação irá passar,
para sentir a sua disposição.
A motivação para a internação influencia significativamente o envolvimento no programa.
A motivação extrínseca e a intrínseca têm um grau de subjetividade. Por isso, a sensibilidade do
terapeuta será fundamental.
Perguntamos aos residentes entrevistados: O que fez você reconhecer que precisava de
ajuda?
Osmar lembra e detalha o enredo de sua primeira internação, aos 19 anos de idade,
causado por falsificação de documento e a chance que o delegado deu em fazer uma internação
50
Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 103.
Fischer, através de uma tabela adaptada de Miller e Rollnick, aponta os sinais da prontidão para a mudança: 1.
Menos resistência, 2. Menos perguntas sobre o problema, 3. Resolução, 4. Afirmações automotivacionais, 5. Mais
perguntas sobre a mudança, 6. Prefiguração, 7. Experimentação. Cf. Id., Ibid., p. 105.
51
39
ao invés de ser preso. Sua motivação era extrínseca. Sua vida seguiu esse ritmo de tentativas.
Atualmente, parece ser intrínseca, concluí: “Olha eu pintei e bordei”52.
Gerson reflete a passagem da fase de “prontidão para mudanças” para a fase de “prontidão
para o tratamento”, por constatar que não conseguia parar sozinho:
O que fez reconhecer foi que eu não conseguia parar sozinho, eu já tinha tentado
muitas vezes sozinho e eu não consegui, então eu vi que eu sozinho era muito fraco,
eu era impotente para conseguir uma vitória sozinho então eu tive que buscar essa
ajuda e eu achei que nessa internação (...) fosse uma maneira mais fácil de eu
conseguir. A correta, no caso, de conseguir essa abstinência53.
Egon é taxativo:
28 anos, alguns cabelos brancos, já, uma cicatriz na testa, é, um futuro incerto, uma
mulher grávida de três meses, que posteriormente depois perdeu a criança, então tudo
isso me fez pensar e chegar aqui no CERENE.54
Romeu destaca seu estado precário de um uso muito intenso da substância, o que o levou
a pedir ajuda55. Rogério sentia que estava perdendo a família:
Que uma noite que eu tava fumando crack, tava tomando cachaça já né, pura, e
quando eu fui dormir, eu sonhei com dois anjos né, na realidade não era dois anjos, eu
vi dois anjos, mas só que na hora que eles viraram eram meus dois filhos, me pediam
para parar né. Então eu vim mais por causa disso. Minha mulher também, um dia
antes desse sonho eu briguei com ela né, quase que a gente se separou porque ela
disse que eu nunca mais ia ter uma vitória na vida né, então eu comecei a pensar isso,
então meu tio foi internado também, aí eu telefonei para ele né, e aí juntei meu tio,
minha mãe, minha esposa, conversei com os três junto né, então ele que me ajudou a
fazer essa internação aí.56
Ivo, além da família e dos bens materiais, percebe que estava perdendo a vida:
Olha, perdi muita coisa né, já não era uma pessoa feliz, tava totalmente escravo da
droga né, eu tava vivendo pra droga, eu tinha uma família bonita, tenho uma filha
linda uma, (...) minha ex-mulher também é uma pessoa muito bacana assim, (...) eu
52
Informações e trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 14.
Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 6.
54
Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 3.
55
Informação na entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 20.
56
Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 18.
53
40
tava perdendo respeito, meu caráter mesmo já, eu era uma pessoa que nem me
conhecia mais, sabe? Mentia muito, não era vida aquilo, entendeu? A partir do
momento que eu comecei a perder muitas coisas, a vender as coisas de dentro de casa,
a ‘faltá’ coisa mesmo né, em termos de comida, dinheiro, eu vi que eu tava
precisando de ajuda porque eu não conseguia parar, eu queria parar, mas eu não tava
conseguindo, entendeu? (...) tava jogando minha vida dentro de uma lata de lixo, ou
seja, dentro de um cachimbo, dentro de um canudo, não tava mais vivendo, tava
totalmente escravo da droga.57
O impulso para pedir e efetuar a internação, refletida fortemente nas falas citadas,
normalmente parte de uma situação caótica, insustentável58. Daí a necessidade de articular uma
motivação correta para o tratamento. Dos conseqüentes sentimentos surgidos das reais situações
de perda, a conscientização deve voltar-se para o real valor da vida e desenvolver a
(re)descoberta do valor próprio de cada um, resgatando a auto-estima. Se a motivação para o
tratamento se limitar ao medo da perda (pessoas, saúde, bens) será mais difícil lidar com as
futuras frustrações. Se durante o tratamento o residente crescer em auto-estima, valorizando a si
próprio, e aprender a olhar para o outro como um igual, aumentará a probabilidade de lidar
satisfatoriamente com as decepções/frustrações59.
A fase da Desintoxicação corresponde, basicamente, à primeira fase da internação do
programa do CERENE60. É no decorrer dessa fase que a motivação verdadeira virá à tona. Ela é
marcada pela síndrome de abstinência da SPA, provocadora de uma forte ansiedade61, pelo
processo de adaptação às instalações e ao convívio com o grupo, pela saudade dos familiares62 e,
57
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 10.
Isso também ficou evidente numa entrevista piloto que fizemos em 2004, na CT “Pra-Vida”, localizada na cidade
de Nova Petrópolis, RS, com seis residentes. A situação caótica em que se encontravam foi o fator motivador para
que buscassem ou aceitassem ajuda.
59
O co-obreiro costumava brincar com o grupo de residentes dizendo: “Por favor, não ouçam o segundo
mandamento de Jesus. Não me amem do jeito que vocês se amam. Vão aprender a se amar primeiro para depois
seguir o mandamento de Jesus: amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
60
Em casos mais crônicos, pede-se uma desintoxicação hospitalar como pré-requisito de internação.
58
41
depois da desintoxicação primária, a sensação de estar bem e pensar que não necessita mais da
internação, refletida na conhecida crise do “já tô bom”63, muitas vezes leva à desistência da
internação.
A fase da abstinência lida com a direta e imediata ameaça de sustentar a abstinência. Faz
parte dessa fase reconhecer os “avisos externos”, quando ameaçado para uma provável recaída e
um auto-exame dos contribuintes psicológicos e internos, reorganizando o plano de vida bem
como a conexão a uma rede social que visa viver livre do uso da SPA. Todo o programa da
“Prevenção da Recaída” (Marllat e Gordon, 1993) enfatiza especialmente esses aspectos. No
programa do CERENE, o início dessa fase coincide geralmente com o início da desintoxicação,
porém, acentua-se na segunda fase da internação, tendo um foco significativo no final do
internamento, sendo uma necessidade de atenção especial para depois da internação.
A fase da Continuidade é caracterizada por uma determinação pessoal de adquirir e
manter o comportamento, atitudes e valores com o estilo de vida na sobriedade. A ênfase recai
mais sobre o gerenciamento da vida, assumindo um modelo de conduta preventivo que identifica
circunstâncias e situações que podem levar a uma recaída. Estas podem ser internas (afetivas e
cognitivas) e/ou externas (estresse, oferta da substância). Esse novo gerenciamento da vida
estabelece os objetivos sociais, melhorando as circunstâncias da vida, trabalho, relacionamentos
(compostos por pessoas que dão suporte ao processo de recuperação), saúde, obrigações e
61
Podendo inclusive ter manifestações físicas como o Delirium-tremens. O acompanhamento médico tem amenizado
situações dramáticas de abstinência, devido à intervenção medicamentosa nos primeiros dias de internação. No início
da história do CERENE, e de tantas outras CT’s, a necessidade desse acompanhamento foi uma descoberta gradativa,
como bem expressa, em sua fala, Hans George Fischer, um dos pioneiros dessa obra: “Na época nós tínhamos
poucos conhecimentos médicos. Uma vez um dos nossos pacientes, (...nome), queria desesperadamente “salvar” a
sogra dele que estava se afogando na Lagoa que tinha no CERENE. As tentativas de detê-lo eram em vão, o Alair
levou ele para o médico, o Dr. Strasburger em Vila Itoupava. Num primeiro momento o médico testou quem dos dois
era o doente (risos) porque no consultório o (...nome) falava novamente normal. Mas não tardou e o médico
identificou a doença e receitou remédio apropriado. Assim, aprendemos passo a passo”. Alexander FISCHER,
Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 49.
62
O afastamento familiar temporário pode provocar uma certa estranheza, inclusive para a família. Em virtude da
síndrome de abstinência e sua conseqüente ansiedade, bem como a falsa sensação de bem-estar, seguidas de
promessas momentâneas, é muito difícil o residente receber uma visita nos primeiros dias e despedir-se sem que
esses aspectos se agravem. Ou seja, o sofrimento causado por uma visita, nos primeiros dias, é maior do que o não
recebimento dela. Para alguns, esse tempo poderia ser menor do que para outros, porém a padronização do tempo
sem visitas (30 dias) é uma necessidade da organização do convívio interno (a questão dos direitos e deveres) e a
dificuldade de estipular um período individual sem o risco de erros. A saudade em si não é um sentimento negativo
para o tratamento, pelo contrário, mostra a importância dos familiares.
63
Expressão conhecida e usada ironicamente pelos residentes quando algum colega está desistindo da internação.
42
responsabilidades. A SPA já não é mais vista como uma opção para lidar com os problemas e sim
como fator causador de mais problemas64.
A fase da Mudança de Identidade e Integridade é a etapa em que “a sobriedade está
internalizada, isto é, o indivíduo não mais se preocupa conscientemente em manter a sobriedade,
mas aceita o fato como sendo pré-requisito da nova opção de viver pela qual se decidiu”65. A
participação em um grupo de auto-ajuda é fundamental no pós-internamento, fortalecendo a
internalização da sobriedade e a possibilidade de ajudar outros, cumprindo assim o 12º passo do
A.A.66. Fischer reafirma um comentário de Häegerbäumer (ex-secretário da Cruz Azul na
Alemanha) que, dos ex-residentes de CT's que após o internamento freqüentam regularmente um
grupo de auto-ajuda, estima-se que 80% permanecem abstinentes. Já dos ex-residentes que não
optam por nenhum grupo, somente 20% evitam uma recaída. Isso mostra e fundamenta a
necessidade de um acompanhamento significativo pós-internamento. Todo esforço –
investimentos, equipe – corre o risco de ser pouco eficaz se for caracterizada uma ruptura entre o
internamento e o pós-internamento, no sentido de acompanhar o indivíduo67.
Hunter68, através do seu protagonista Simeão, diz que a aprendizagem de novas
habilidades acontece através de quatro estágios:
a) Estágio um: Inconsciente e sem habilidade.
b) Estágio dois: Consciente e sem habilidade.
c) Estágio três: Consciente e habilidoso.
64
Fischer discute o tempo da internação colocando duas posição correntes entre as CT’s. As que adotam um tempo
reduzido (inferior a três meses) alegam que “a maçã que fica demais tempo no pé apodrece”, em contrapartida, os
que defendem um tempo mais longo (acima de doze meses) alegam que “a maçã colhida muito cedo não serve”. Cf.
Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p.116-7. Essa analogia com um único tipo de
fruta tem seu ponto fraco na padronização dos indivíduos. O tempo vai depender da realidade de cada um. O
CERENE adota 180 dias como básicos para todos, sendo que a continuidade posterior vai variar de caso para caso. O
co-obreiro costumava dizer que ‘nem todo o que passa seis meses no CERENE, de fato quer mudar de vida. Mas
todo o que quer mudar de vida, notará que precisa de tempo para isso’.
65
Id.,Ibid., p. 118.
66
“Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos
alcoólicos e praticar esses princípios em todas as nossas atividades” (grifo nosso). Mary Y. NILSEN, Um tempo para a
paz, p.7.
67
68
Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 118.
Cf. James C. HUNTER, O Monge e o Executivo ..., p. 123-125.
43
d) Estágio quatro: Inconsciente e habilidoso.
As fases do tratamento harmonizam-se com estes estágios: do primeiro, inconsciente da
problemática, portanto sem atitude concreta para mudanças, fazem parte a Negação e a
Ambivalência; do segundo, consciente da problemática, porém ainda sem habilidade para a
mudança, fazem parte a Motivação extrínseca, a Motivação intrínseca, a Prontidão para
mudanças e a Prontidão para o tratamento; do terceiro, consciente da problemática e já com uma
certa habilidade, fazem parte a Desintoxicação e a Abstinência; do quarto, caracterizado pelo
enraizamento da habilidade, fazem parte a Continuidade e a Mudança de Identidade e
Integridade. “É o estágio final para o alcoólico e o fumante, quando estão praticamente
esquecidos do seu hábito compulsório”69.
Usando uma analogia com o futebol, constatamos que a fase da Continuidade e a fase da
Mudança de Identidade e Integridade fazem o “meio de campo” entre a internação e a pósinternação, iniciam fortemente durante a primeira e devem continuar na segunda.
A inexistência destas últimas fases na pós-internação é o que explica a grande maioria das
recaídas. Ou seja, é possível que o DSPA obtenha a alta da sua internação apenas por
cumprimento do calendário pré-estipulado, sem que tenha alcançado, intrinsecamente, estas
fases. O todo da internação pode ter sido determinado pela obtenção forçada da abstinência, em
virtude das diversas circunstâncias que levaram a esta, sem que uma convicção interior, pró-ativa,
tenha sido tomada.
Constatamos assim que o período de internação é fundamental para aquilo que virá
depois. É nesse período que se define a posição interna do residente.
Pela estrutura do programa terapêutico do CERENE, unidade de Palhoça, percebe-se que
vários elementos somam para isso. Programações de grupo (estudo, terapia), acompanhamento
individualizado, ambiente familiar, local agradável etc, somam e não subtraem para esse
aprendizado.
69
James C. HUNTER, O Monge e o Executivo ..., p. 124.
44
Talvez o ponto sensível que deva ser sublinhado é a criação de uma certa “idealização” da
macro-sociedade. Esta não muda enquanto o residente está no tratamento. É o indivíduo que
precisa de mudanças para a sua ação e reação frente às intempéries sociais. Apesar de o programa
prever as “idas e vindas” no final da internação, parece-nos que esse preparo ainda é limitado, ou
que a ruptura no pós-internamento seja altamente seqüestradora dos propósitos obtidos durante a
internação.
Após contemplar este primeiro público alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade e
perceber a complexidade do processo de tratamento, bem como da necessidade de sua
continuidade, queremos na seqüência considerar o público coadjuvante deste primeiro, os codependentes. A macro-sociedade não muda. Porém, perguntamos pela micro-sociedade, a família
do DSPA. O que é necessário fazer para que esta se reestruture?
1.4 - Co-dependência
1.4.1 - Questões introdutórias
Quem se propõe a perscrutar o assunto da DSPA, seja pela ênfase preventiva, seja pela de
tratamento ou pela de reinserção social, depara-se com o assunto da co-dependência.
A co-dependência é tão sintomática quanto a DSPA o é de uma família disfuncional.
Precisa de tratamento! Um tratamento de DSPA que ignora o tratamento da co-dependência
poderá estar fadado a índices menores de recuperação.
Queremos, num primeiro momento, trazer à tona a problemática da co-dependência, sua
definição e questões da sua etiologia. Na família de origem do DSPA e/ou do co-dependente, que
reflete fortemente a ausência paterna e a simbiose materna, os papéis se invertem, as crianças se
tornam adultas e os adultos agem como crianças, tirando a possibilidade de escolha satisfatória
para a vida adulta.
45
Na seqüência, as fases70 da co-dependência refletirão o conflito existente, o sofrimento e a
angústia que passam aqueles e aquelas que convivem diariamente com um DSPA. Conhecer
essas fases é fundamental para uma proposta terapêutica.
1.4.2 - “Soltando as pontas”
Pensando em toda a problemática da DSPA, apresentamos a seguinte ‘leitura’ da gravura
que segue:
Fig. 1
a) O problema se encontra no fato de a corda estar arrebentada.
70
A sistematização das fases do sofrimento tem, em seus primórdios, a publicação do livro On Death and Dying, de
Elisabeth Kubler-Ross, que trata a questão do luto (cf. Gary R. Collins, O Aconselhamento Cristão, p. 342). A
categoria da psicologia que transparece nos autores pesquisados é a psicoterapia, que enfatiza a possibilidade de
desaprender hábitos neuróticos e aprender hábitos não-neuróticos (cf. Calvin S. Hall, Gardner Lindzey, John B.
Campbell, Teorias da Personalidade, p. 443, citando Dollard e Miller).
46
b) Alguém pesado, “folgado”, que está diretamente envolvido no problema, não está
preocupado com a situação. Está “curtindo”71 o balanço. Provavelmente por ignorar o que está
acontecendo.
c) Outro alguém, menor, mais fraco, está segurando “as pontas” e está olhando para a
direção oposta do maior, com o olhar fixo no problema.
Para a situação de DSPA na família, quando o indivíduo não admite a sua DSPA,
aplicamos essa leitura da seguinte maneira: o problema está aí, a corda arrebentou, a DSPA está
instalada na família (talvez como sintoma de um problema maior), o DSPA está sentado no
balanço e os familiares estão “segurando as pontas”. Mais tardar, quando a família não agüentar
mais a situação, o indivíduo vai se “esborrachar no chão”, sentirá as conseqüências e,
provavelmente, procurará ajuda.
A experiência tem demonstrado que os que procuram ajuda são os que estão assustados
com as conseqüências da inconseqüência do uso e abuso de SPA’s. Isso também ficou evidente
na fala dos DSPA’s entrevistados, conforme vimos acima, a respeito da fase da “Prontidão para o
Tratamento”, que é marcada fortemente pelas conseqüências do abuso da SPA.
Diante da assertiva de que o DSPA reconhece sua dependência geralmente frente ao
reconhecimento das respectivas conseqüências, a recomendação, então, seria de a família soltar a
corda, permitindo que as conseqüências naturais do uso e abuso das SPA’s fiquem em evidência,
para que possa haver uma busca efetiva pela recuperação. Antes de soltar a corda, deve-se olhar
para o DSPA e alertá-lo do que está acontecendo. Esse, se reconhecer o problema, poderá saltar
fora do balanço, o que acarretará em menos prejuízo para si e para seus familiares. Assim terá a
chance de aprender pelo amor e não somente pela dor. Essa recomendação encontrará respaldo
nas articulações do Amor Exigente, especialmente no 12º princípio, que reza: “O amor com
respeito, sem egoísmo, sem comodismo, deve ser também um amor que exige, orienta e educa”72.
71
72
‘Folgado’ e ‘curtindo’ são gírias comuns entre os DSPA’s que significa obter vantagens de uma situação.
Mara Silvia C. de MENEZES, O que é o Amor-Exigente?, p. 217.
47
Na pesquisa sobre co-dependência, surgiu-nos uma questão relacionada com a leitura feita
acima: por que a família segura as pontas? Por que parecem gostar de segurar a situação do
dependente? Ou, como formula Ferreira (2000):
Permanecem, desta forma as perguntas, sobre o que teria influência nas “escolhas”
tão impróprias dos codependentes e como conseguem conviver com as severas
disfunções que envolvem a vida do dependente de substâncias como a vergonha, as
privações, as críticas constantes, e tantos outros abusos.73
Forward enfatiza:
Por sua aceitação, os co-dependentes dão a entender que sempre estarão por perto
para lidar com os danos do comportamento destrutivo de seus parceiros. Mesmo que
se chateiem, lamentem, implorem, reclamem, ameacem e dêem ultimatos, raramente
tomam uma posição dura para forçar qualquer mudança significativa [grifo nosso].74
1.4.3 - Definindo a co-dependência
Para uma definição do que é e/ou o que significa a co-dependência, partiremos da que
Ferreira (2000) faz de coadição, citando de Kaplan, Sadock e Grebb:
A coadição ocorreria quando mais de uma pessoa, geralmente um casal tem um
relacionamento primariamente responsável pela manutenção do comportamento
adictivo que ajuda a perpetuar a situação, e a negação da situação é um pré-requisito
para o desenvolvimento desse relacionamento diático [grifo nosso].75
O grupo familiar passa a criar um sistema adaptativo que parece oferecer condições para
que o DSPA continue como tal. O grupo familiar absorve o impacto dos abusos cometidos pelo
DSPA e parece depender deste relacionamento disfuncional. Ou, nas palavras do Sanda (2001),
médico oftalmologista, pai de um DSPA, fundador do GAP (Grupo de Apoio aos Pais), em São
Paulo:
73
Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 21.
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 98.
75
Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 15.
74
48
Co-dependência é um quadro caracterizado por um distúrbio mental acompanhado de
ansiedade, angústia e uma compulssividade obsessiva em relação a tudo o que
envolve a vida do dependente. O co-dependente deixa de viver sua própria vida e
passa a viver na dependência dos acontecimentos que ocorrem na vida do dependente
químico (...). Nos enganamos com manobras de “facilitação”, minimizando,
controlando, protegendo, assumindo responsabilidades e compactuando com nosso
filho (...) É muito difícil, saber quando ajudar e quando deixar de ajudar (...) Nos
tornamos escravos do dependente, tudo o que ele faz de errado nos afeta e seus
efeitos são potencializados em nós. Estamos constantemente ansiosos e angustiados,
com sentimentos de culpa e de raiva. Somos aqueles que sofrem juntamente com o
dependente, mas não temos o prazer efêmero da droga. Enquanto o dependente é
viciado na “droga”, o co-dependente é viciado nos problemas do dependente [grifo
nosso].76
Forward expande o conceito de co-dependência para além da família dos DSPA’s:
Originalmente, o termo co-dependente era usado para descrever o parceiro de um
alcoólatra ou de um viciado em drogas, com o mesmo sentido de facilitador –
alguém que não tinha controle sobre a sua própria vida porque tomava sobre si a
responsabilidade de “salvar” uma pessoa dependente de drogas químicas. Mas hoje
em dia, a definição de co-dependência expandiu-se e inclui todos aqueles que se
tornam vítimas no processo de libertar e ser responsável por qualquer pessoa
compulsiva, viciada, agressiva ou excessivamente dependente.77
1.4.4 - Ausência paterna e simbiose materna: comum da DSPA e da co-dependência
Uma vez definida a co-dependência, perguntamos pela origem desta, de onde vem a
predisposição para ser o “facilitador” e “salvador”, sem, contudo, conseguir de fato “salvar” o
DSPA a partir dessa postura de vida. É característica comum na maioria das famílias dos DSPA’s
e dos co-dependentes a existência da ausência paterna (separação matrimonial, morte ou presença
“fraca”) e conseqüentemente um apego exagerado (simbiose) à figura materna. A ausência da
figura paterna pode desembocar numa simbiose materna. Por outro lado, a simbiose materna pode
ser a promotora do enfraquecimento da figura paterna ou provocadora da inexistência da mesma.
76
77
Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 246.
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 46.
49
A fragilidade da origem do ser humano e do seu desenvolvimento aponta para a
necessidade de cuidadores, conforme afirma Walz,
A existência do ser humano inicia sob a marca do desamparo. A sua constituição é
frágil, limitada. Marcada pelo tempo, constrói-se ao longo dos anos sob a dinâmica
das perdas e ganhos, tanto os afetivos e emocionais como os concretos. Lidar
satisfatoriamente com essa dinâmica constitui um critério importante para a saúde
mental e, simultaneamente, um elemento essencial para que possamos lidar melhor
com os nossos medos. Poder lidar quer dizer: não ficar demasiadamente preso às
perdas nem viver ilusoriamente dos ganhos, ou seja, que o sujeito possa sentir e
elaborar psiquicamente, por meio de palavras e ações verdadeiras, esse processo
constituinte e constante da vida de cada ser humano.78
Quando isso não acontece, teremos a chamada “família disfuncional” que poderá ser
geradora de DSPA’s e/ou co-dependentes.
Kalina e Kovadlof (1976), falando sobre a família de origem do DSPA, referem-se a dois
tipos de famílias: as simbióticas e as cismáticas. Os integrantes do sistema simbiótico estão
agrupados uns na vida dos outros, agem sem discriminação de limites entre homens e mulheres,
adultos e crianças, jovens e velhos, mundo externo e mundo interno, fantasia e realidade. Levar a
família a tratar e tomar consciência dessa “doença grupal”, se possível antes da internação do
DSPA, deve ser o esforço do (psico)terapeuta. No sistema cismático, os membros estão separados
e nenhum deles pode se relacionar bem com o grupo todo. “Dispersos sobrevivemos; juntos nos
aniquilamos”, parece ser o preceito desse sistema. Uma das constantes desse sistema,
independente da classe social,
...é a ausência de um pai forte que cumpra o seu papel específico com decisão e
firmeza (...) e as observações que fizemos a partir da abordagem clínica dessas
famílias: a) ausência de um pai com autoridade que proponha (e mantenha) valores
precisos e consistentes; b) regras do jogo peculiares, em famílias que aparentam não
contar com elas e; c) sérias perturbações no emprego dos símbolos.79
Esses autores chamam a atenção para o fato de existir por trás de um DSPA (toxicômano)
uma família que tem alguma conduta drogaditiva manifesta ou latente. Pela dupla-mensagem do
“Faça o que eu digo, mas não o que eu faço” (no caso do pai que bebe, fuma, ingere sedativos e
78
Julio WALZ, Aprendendo a lidar com os medos, p. 38.
Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 66-67. Também o
assunto é retomado em Eduardo KALINA, Drogadição II p. 26-34.
79
50
ao mesmo tempo aconselha o filho a não fumar maconha) e pela manipulação e/ou mentira que
são fenômenos comunicacionais. A falta de limites elásticos (firme sem ser rígido) leva a uma
oscilação que vai da rigidez até a liberação total80.
Essas colocações podem ajudar na estruturação de um modelo preventivo81 – tanto de
estruturação familiar quanto da sociedade em geral – e podem também facilitar a pesquisa
etiológica da dependência. Porém, poder definir a família que está por trás do DSPA, trará uma
contribuição significativa para o tratamento sistêmico no qual o mesmo está inserido.
A ausência paterna82 é expressa também na fala dos residentes entrevistados no CERENE.
Osmar, ao ser perguntado sobre a sua infância, conta com tristeza das brigas e da separação de
seus pais quando tinha cerca de sete anos:
[A minha infância] não foi das melhores não, meu pai se separou da minha mãe, com,
eu acho que deveria ter em torno de seis, sete anos de idade, meu pai nunca bebeu,
fumava muito, mas era muito mulherengo, chegava de madrugada e a gente se
acordava com a briga do casal, ou seja, do pai e da mãe, até um certo dia que ele
ameaçou ela com revólver (...) onde eles vieram a se separar, meu pai ficou em Itajaí
e nós viemos com a mãe para Curitiba.83
Egon perdeu seu pai quando ainda era bebê:
[A minha infância] teve altos e baixos, por eu ter perdido o meu pai muito cedo, eu
tinha apenas seis meses de idade, minha mãe foi como pai e mãe, teve as suas falhas
de mãe, teve as suas falhas de pai, mas foi uma infância, até onde eu me lembro que a
droga não me tirou, foi boa.84
Rogério perdeu seu pai com seis anos:
O meu pai separou da minha mãe quando eu tinha seis anos, então eu não tinha
intimidade direito com ele né, (...) conheci ele de novo com dezesseis anos, (...), foi
80
Cf. Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 69.
Lourenço anexa uma lista de ações que a família poderia ter feito para prevenir as drogas. Cf. Rozinez Aparecida
LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 176/77.
82
A ausência paterna na vida de um DSPA ficou também evidente nas entrevistas que fizemos na CT “Prá-Vida”
(2004). Significativo foi o fato de que, quando perguntados: “Como foi sua vida familiar na infância?”, todos citaram
a figura do pai, mesmo não sendo diretamente perguntados (com exceção de um). A falta de diálogo e de brincar
com o pai; a falta de elogio, a agressão e o alcoolismo paterno, a ausência paterna pelo falecimento e a ausência em
função da profissão, constituiu-se na causa de muita tristeza para estes entrevistados.
83
Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 13.
84
Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 2.
81
51
minha mãe que me criou né, foi minha mãe e meu pai né, meu irmão mais velho
também, respeitava muito ele.85
Ivo descreve seu pai com atitude mais liberal, porém como alguém que o orientava, apesar
de o diálogo não ser muito transparente:
(...) ele era um cara que não pegava tanto no meu pé que nem a minha mãe né, mais
sempre dando bons conselhos, até em relação às drogas, quando eu já tava assim
entrando na fase do ginásio, na escola, ele sempre me alertou a respeito das drogas, o
mal que fazia né, mas eu não soube aproveitar aquilo que ele me passou né, e nunca
tivemos assim um diálogo mesmo aberto, agora é que a gente tá se relacionamento
bem através do diálogo, que eu acho que é tudo, é fundamental.86
Romeu, com respostas curtas, afirma que sua infância foi ótima e a relação com os pais
muito boa87. Gerson fala das dificuldades financeiras vividas pela sua família na infância o que
fez com que morasse na casa de diferentes parentes para ter a oportunidade de estudar. Fala com
saudades da figura paterna e das dificuldades com a figura materna:
Eu tinha um pouco de dificuldades de relacionamento com a minha mãe, com meu
pai não, com meu pai eu tinha um relacionamento muito bom, eu tinha um pai assim
que eu poderia considerar ele como um amigo e quase como um irmão, um
88
relacionamento muito bom, muito legal, mas a minha mãe era mais dura (...).
Kirsch89, em seu artigo sobre a crise do masculino, cita Cuschnir e Mardegan que
afirmam “é fundamental para a formação dos filhos uma relação paterna mais participativa, com
uma presença forte, com mais brincadeiras, mais abraços e mais amor”.
Outra fonte muito significativa para a sua insegurança e conseqüente angústia é, sem
dúvida alguma, a figura paterna. Aqui adentramos um campo com prognósticos dos
mais desalentadores. Luigi Zoja considera que o colapso da figura paterna está por
trás da situação de declínio sem precedentes da civilização ocidental (...) A partir daí
vão crescer delinqüência juvenil e criminalidade, devendo se estabilizar num nível
muito elevado (grifo do autor).90
85
Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p.18 .
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 9.
87
Informação na entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 20.
88
Informações na entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) e trecho que se encontra na íntegra no anexo I, p.
05-06.
89
Cf. Dieter KIRSCH, A Crise do Masculino: Análise e Perspectivas de Solução, p. 70.
90
Id., Ibid., p. 61.
86
52
Percebemos como a figura paterna é importante, deixando profundas marcas no
desenvolvimento da vida infantil. E a ausência é uma queixa constante dos DSPA’s. Muitas
vezes, ao tratar o assunto em preleções, o co-obreiro assim formulou: “Se você quer apanhar de
um DSPA, fale mal de sua mãe. Se você quer fazê-lo chorar, pergunte a respeito de seu pai”. Esta
formulação é bastante genérica, querendo apenas chamar a atenção para o fenômeno da ausência
paterna e da relação simbiótica com a mãe.
O primeiro passo para os pais se aproximarem de seus filhos, sinaliza Kury, é deixar a
crítica, o medo e as acusações de lado e começarem a fazer de sua família uma festa, um canteiro
de prazer. É categórico:
O pai que se comporta como um “palhaço” para envolver e encantar seu filho tem
muito mais possibilidades de ajudar o filho do que aquele pai que se comporta como
um “policial” tentando puni-lo.91
Na ausência paterna – causada pela separação matrimonial, morte ou pela indiferença – a
responsabilidade da criação e educação dos filhos recai sobre a figura materna, situação em que a
mãe se torna também o “pai” (linguagem de Egon e Rogério), caracterizando-se, muitas vezes,
uma forte simbiose materna. Nas palavras de Ivo:
(...) minha mãe me mimou muito né, eu era o xodó dela assim, então ela me protegia
muito, e me dava muita liberdade assim, pra sair na rua, eu vivia muito dentro de
casa, entendeu? Então o que aconteceu, na hora que ela me soltou acho que eu não
soube aproveitar a liberdade, não sei te explicar mais. A minha infância em relação a
minha família foi assim muito boa, sempre tive de tudo, colégios bons, roupas boas,
sempre tive do bom e do melhor (...).92
Mesmo nas dificuldades de relacionamento entre mãe e filho, parece-nos que salvar a
relação simbiótica com a mãe é uma constante na vida da maioria dos DSPA’s, permanecendo
uma dependência intensa do filho para com a mãe e – o que reflete a co-dependência materna –
da mãe em relação ao filho93. Isso pode ser reflexo das profundas marcas deixadas pela separação
91
Augusto KURY, Superando o cárcere das emoções, p. 149.
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra, na íntegra, no anexo I, p. 9.
93
Cf. Eduardo KALINA. Santiago KOVADLOF, Drogadicção (Indivíduo, Família e Sociedade), p. 64.
92
53
prematura no processo de ruptura mãe-filho, de um lado94, ou de “incestos emocionais” – a
criança como amparo emocional para um dos pais – por outro lado95.
Isso talvez venha a explicar, em parte, o alto índice de separação matrimonial, ou da
dificuldade de formar e/ou manter família, encontrado entre os DSPA’s. O princípio bíblico para
o matrimônio “deixar pai e mãe”96 é posto em cheque, principalmente quando se trata de deixar a
mãe e esta deixar o filho. O pai, muitas vezes, nem existe para ser deixado. Porém, a referência
paterna, a falta de modelo paterno, ficará em déficit para a formação desta nova família. Dos
entrevistados, cinco são separados [dois estão tentando reconstruir o relacionamento, sendo que
um deles com a segunda esposa] e um está casado. Estatisticamente, dos que casaram ou
amasiaram, 80% estão separados. Os filhos menores de 12 anos são quatro e três maiores de 18
anos, envolvidos nessas histórias de rupturas matrimoniais, candidatos a repetirem – como que
num ciclo vicioso – o sofrimento da ausência paterna e da simbiose materna.
1.4.4.1 - Inversão de papéis
Esses entraves no desenvolvimento infantil podem desembocar no desenvolvimento da
DSPA ou da co-dependência. As causas etiológicas de ambas ficam muito próximas. Para Pia
Mellody, citada por Ferreira, as origens da co-dependência são encontradas nos abusos sofridos
na infância com repercussões na vida adulta, sinalizadas pelos relacionamentos co-dependentes.
Ela vê no indivíduo co-dependente complicadores que seriam anteriores à convivência com o
dependente: problemas com estima, limites, paradigmas distorcidos na espiritualidade,
relacionamentos difíceis, e repertório emocional insuficiente para lidar com os desafios da vida97.
Abusos (de ordem intelectual, espiritual ou física) acabam por tornar a infância
literalmente perdida, assim entende Ferreira, usando a expressão “infância perdida” de Hemfelt.
94
Cf. Dieter KIRSCH, A Crise do Masculino: Análise e Perspectivas de Solução, p. 58-59.
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 26.
96
Cf. Gênesis 2.24; Mateus 19.5; Marcos 10.7,8; 1 Coríntios 6.16; Efésios 5.31.
97
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p.17.
95
54
Destaca 5 características, naturais das crianças, que empresta de Pia Mellody: preciosas (valor
por terem nascido), vulneráveis (precisam de proteção), imperfeitas (cometem erros no
aprendizado), dependentes (precisam dos pais para satisfazer seus desejos e necessidades) e
imaturas (viver a faixa etária em que se encontram e não uma inferior ou superior).
Egocentrismo, energia e adaptabilidade são qualidades que promovem a maturidade. Numa
família disfuncional, ocorre abuso quando não se valoriza, quando se superprotege ou desampara,
quando a imperfeição vira “anormalidade”, quando a criança não pode exprimir seus desejos ou
elas são ignoradas e quando se espera maturidade acima da faixa etária que a criança está vivendo
ou se permite um comportamento imaturo de uma faixa etária inferior98.
Forward encontra na palavra tóxicos a melhor definição para descrever os pais que
possuem padrões negativos de comportamento, que são sistemáticos e dominantes na vida de
uma criança. Daí também a origem da co-dependência: quando uma criança se vê obrigada a
cuidar de um dos pais, assumindo responsabilidade de um adulto, levando essa característica
para a vida adulta, ou seja, a de ser ‘salvador’ de outros99.
A inversão de papéis ocorre em quase todas as famílias de pais tóxicos. Na família de
alcoólatras, o pai ou a mãe que bebe toma o papel de filho, com seu comportamento
patético, carente, irracional. Ele é de tal maneira infantil que não deixa espaço
para qualquer outra criança na família [negrito nosso].100
1.4.4.2 - O poder de escolha perdido
O relato de Melaine mostra a dificuldade de fazer escolhas satisfatórias, devido a uma
infância marcada por dissabores com o pai:
Eu tinha uma família realmente estranha. Meu pai era um arquiteto bem sucedido,
mas controlava todo mundo com seu terrível mau humor. Ficava aborrecido com
qualquer coisinha, como, por exemplo, quando alguém estacionava o carro em sua
98
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 51-56.
Cf. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p.14 e 45-50.
100
Id., Ibid., p. 85.
99
55
vaga, ou eu brigava com meu irmão. Ele ia para o quarto, fechava a porta, se atirava
na cama e chorava. Igualzinho a um bebê! Aí minha mãe ficava desmontada; ia para a
banheira e ficava lá, mergulhada na água. Eu era a única pessoa que tinha que
interferir e lidar com o meu pai. Ficava sentada, ouvindo-o soluçar, tentando imaginar
o que poderia fazer para que melhorasse. Mas nada adiantava; o jeito era esperar.101
Esse relato da infância de Melaine, citado por Forward, esclarece porque ela, na vida
adulta, sentia-se atraída por homens mais problemáticos, pois acreditava que através de sua
bondade – dar-se, amar, preocupar-se, ajudar, proteger – poderia fazer com que o homem visse o
seu erro e correspondesse a ela com amor. “Sempre arranjo vagabundos que não querem nada ou
verdadeiros canalhas. Aí, é claro que tenho que colocá-los na linha. Sempre acho que posso
endireitá-los”102.
Quem se envolve diretamente no tratamento de DSPA’s perceberá que é grande o número
de cônjuges que são oriundos de lares onde o alcoolismo e/ou drogadição estavam presentes
desde a infância, na figura paterna e/ou materna. Daí surge a pergunta do porquê dessa escolha
“mal feita”. Parece que o ditado popular “gato escaldado tem medo de água fria” não se encaixa
nesses casos.
A prisão ao passado é o que provavelmente tira o poder de escolha. Mecanismos de defesa
que distorcem o sistema de pensamento e as vivências de uma educação disfuncional afetam a
capacidade de análise de um indivíduo103.
A situação chamada de ‘negócio inacabado’ impõe à criança a necessidade de viver
uma vida que não é sua. Aquilo que o pai ou a mãe não chegaram a concluir torna-se
em uma obsessão que precisa ser perseguida pelo filho(a). As reverberações podem
mesmo se estender à escolha do companheiro.104
Nas palavras de Forward:
Filhos adultos de alcoólatras freqüentemente se casam com alcoólatras. (...) Mas a
tendência de repetir os padrões de sentimentos conhecidos é comum a todas as
pessoas (...) O conhecimento nos dá uma sensação de conforto para nossas vidas.
101
Id., Ibid., p. 47. Assim como vimos acima, a influência da ausência paterna na vida de dependentes químicos,
podemos perceber no relato de Melaine as marcas deixadas pelo pai, levando-a à co-dependência.
102
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 46.
103
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 20-21.
104
Id., Ibid., p. 26.
56
Conhecemos as regras e sabemos o que podemos esperar. Mais importante,
revivemos os conflitos do passado porque desta vez temos a esperança de fazer com
que tudo dê certo – vamos ganhar a batalha.105
Em suma, a atitude de facilitação tem origens semelhantes a DSPA. Ambas oriundas
basicamente de famílias disfuncionais, marcadas fortemente pela ausência paterna e simbiose
materna, fazendo das crianças pequenos adultos, criando fortes dificuldades para escolhas futuras
a serem feitas, inclusive a decisão de tratar a co-dependência.
1.4.5 - A co-dependência em evidência
Num típico casal, no qual ele é DSPA e ela não, ele passa a ser rapidamente o “paciente
identificado” e ela corre o risco de ser negligenciada em sua co-dependência. Afinal, nas palavras
de Henfelt, citado por Ferreira, “o vício dele é desprezado socialmente, o dela é louvado. O dele é
errado, o dela é certo. O dele vem da debilidade de caráter, o dela vem da força”106. Para que a
co-dependência não seja “alimentada” num atendimento eclesial, é importante uma noção básica
da dinâmica co-dependente.
Sanda é conhecedor da co-dependência a partir de duas realidades: a empírica (tem um
filho DSPA e atende a co-dependentes através de grupo de apoio) e a teórica (pesquisa, palestra).
Classifica a co-dependência em 5 fases: negação, depressão, negociação ou barganha, raiva e
aceitação. Testemunha ter vivenciado todas as fases por aproximadamente seis anos, estando (em
2001) na fase de aceitação. As quatro primeiras fases podem ser vividas todas ao mesmo tempo:
Em um mesmo dia você pode estar ‘rodando’ e sua cabeça ‘girando’, passando da
depressão para a raiva. É uma verdadeira paranóia. Quantas vezes tentei negociar
com Deus. Eu prometia que se Ele tirasse meu filho das drogas, eu seria melhor, me
envolveria ainda mais com as coisas da igreja, seria mais fiel no dízimo, seria um pai
mais presente etc. Tudo isso parece muito infantil, mas é assim que somos.107
105
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 86.
Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p.90.
107
Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 249.
106
57
A negação é uma fase caracterizada por minimizar a gravidade dos fatos, pela proteção e
pela responsabilidade que o co-dependente toma para si diante de um fato inconseqüente do
DSPA. A figura do dinossauro na sala de estar, usada por Forward, exemplifica perfeitamente
essa fase:
A negação adquire proporções gigantescas para todos os que vivem na casa de um
alcoólatra. O alcoolismo é como um dinossauro na sala de estar. Para quem está de
fora, é impossível ignorá-lo, mas para os que vivem na casa, a falta de esperança de
conseguir expulsar a fera obriga-os a fingir que ela não está lá. É a única forma de
poderem coexistir. Mentiras, desculpas e segredos são comuns como o ar que se
respira nesses lares, criando um tremendo caos emocional para os filhos.108
A autora ainda fala do “Grande Segredo” que as crianças de pais alcoólicos devem
manter, com três elementos básicos: 1. a negação do alcoólatra quanto ao seu vício, apesar das
evidências contrárias; 2. a negação do problema pelo companheiro do alcoólatra e demais
membros da família (co-dependentes); 3. a farsa da “família normal”, uma fachada que a família
apresenta para si mesma e para a sociedade ao seu redor. Essa farsa exige muito da criança, pois
ela tem que constantemente estar atenta para não expor a família, o que a leva a não ter amizades,
ficando solitária. Assim surge uma lealdade cega em relação à família de origem que continuará
sendo um elemento destrutivo e controlador na vida adulta109 – podendo inclusive influenciar na
escolha matrimonial, como vimos acima.
Ferreira cita uma metáfora criada por Kellermann, o “carrossel da negação”, composto:
a) Pelo DSPA;
b) Pelo facilitador, a pessoa que “salva” ou “alivia” o DSPA de sua situação, tirando-lhe
a oportunidade de aprender a corrigir os próprios erros;
c) Pela vítima, a pessoa que está sempre realizando as tarefas no lugar do DSPA;
108
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 80.
Cf. Id., Ibid., p. 81-82. Segundo a autora, os pais tóxicos reagem às ameaças ao seu equilíbrio por meio de
manifestação dos seus temores e frustrações, sem pensar muito nas conseqüências para os filhos. Os mecanismos
mais comuns são: 1. negação (esconde o problema atrás de eufemismos); 2. projeção (projeta problemas pessoais nos
filhos); 3. sabotagem (sabota terapias quando a melhora ameaça o ‘equilíbrio’ familiar); 4. formação de triângulo (A
criança tem que escolher de que lado fica em relação aos seus progenitores); 5. guardando segredos (para proteger o
‘clube privado da família’ de interferências externas). Id., Ibid., p.183-5.
109
58
d) Pelo provocador, a pessoa com quem o DSPA vive, e que mantém, apesar das mágoas
e perturbações, a família unida.
Assim gira o carrossel: o DSPA diz que “não vai mais beber”, o facilitador diz que “não
vai mais resgatá-lo”, a vítima diz que “não permitirá mais um fracasso”, o provocador diz que
“não poderão mais viver juntos se a situação persistir”. O dito não é cumprido e o DSPA volta a
beber e todos desempenham novamente o seu papel110.
A depressão é uma companheira muito presente em todo esse processo conforme depõe
Sanda:
Depois que deixei o meu filho nesse hospital, comecei a sentir um sentimento de
tristeza terrível, uma vontade de chorar, de gritar, uma sensação que o chão estava
cedendo, um sentimento de fracasso, de culpa. A cabeça girava, pensamentos e
sentimentos negativos vinham à minha mente. Um sentimento de impotência tomava
conta. Oh! Meu Deus, o que está acontecendo com a minha família. Não dá para
descrever a dor. Machuca a alma. Entristece o nosso ser. Estava deprimido. A alegria
de viver havia acabado. Tudo era triste. Não havia razão para continuar essa vida.
Fiquei com o semblante caído por muitos dias.111
A negociação é uma fase determinada com muitas promessas feitas a Deus, a outros e a si
próprio. É carregada de sentimento de culpa – onde foi que errei?- e o propósito de compensar ou
não cometer mais os mesmos erros. Negocia-se, nessa fase, a recuperação:
Se você aceitar um tratamento e ficar internado, papai vai te dar um carro importado,
zero km. Foi isto que um conhecido industrial ofereceu a seu filho, que cumpriu o
trato e quando saiu da comunidade terapêutica, o pai não pôde cumprir a promessa e
depois de 15 dias o rapaz tinha recaído nas drogas.112
Mesmo que este industrial pudesse ter cumprido a promessa, estava alimentando uma
falsa motivação para o tratamento. Segundo Sanda, o acordo deve ser: “O dependente químico
precisa se submeter ao tratamento porque ele precisa se curar, e esta é a finalidade (...), o objetivo
final é a sua vida”113.
110
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 80-81.
Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 248.
112
Id., O Tratamento da Co-dependência, p. 15.
113
Id., Ibid., p. 16.
111
59
A raiva está presente nas fases, porém pode constituir-se em uma fase em determinado
período. É um sentimento ruim que atrapalha a vida, dificulta o bom senso e a habilidade de
resolver as situações que aparecem durante todo o processo de tratamento. A raiva, bem como a
depressão, é uma maneira de externar o sentimento de culpa.
Como o mundo nos culpa, também culpamos todos pela nossa situação. Culpamos
nosso cônjuge, culpamos na igreja, culpamos a escola, culpamos os amigos de nosso
filho. É difícil saber ‘lidar’ com a culpa, e toda atitude que o co-dependente toma,
acompanhada com sentimento de culpa, com certeza será uma atitude de
facilitação.114
Sanda cita o triângulo de dramas de Karpmann, como “triângulo de ódio”, semelhante ao
“carrossel da negação” acima visto:
Salvador
Perseguidor
Vítima
Fig. 2
Como co-dependentes, passamos muito de nosso tempo salvando. Tomar conta não
ajuda, mas causa problemas. Sempre damos muito mais do que recebemos e depois
nos sentimos explorados. Com o passar do tempo mudamos de salvador para
perseguidor, e depois assumimos o papel de vítima.115
Conforme Sanda, geralmente cada família escolhe o seu “salvador da pátria”. Conta que
nos últimos 30 anos foi assumindo esse papel na sua família, na qual é o caçula de sete irmãos.
“Agora estou ‘saindo’ da minha co-dependência e tentando deixar de ser ‘salvador da pátria’”116.
É o que Forward chama de “a criança de ouro” – o herói da família – que lança-se num esforço
enorme para atingir metas impossíveis de perfeição, tanto na infância como na idade adulta117.
114
Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 249.
Id., Ibid., p. 253.
116
Id., Ibid., p. 250.
117
Cf. Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 95. “Enquanto alguns são obrigados a ser o bode
expiatório, outros viram o herói da família – ‘a criança de ouro’” (p. 95). Normalmente o ‘bode expiatório’ é o papel
assumido ou imposto ao DSPA e a ‘criança de ouro’ desemboca na co-dependência.
115
60
As fases da co-dependência ocorrem de maneiras alternadas e de diferentes formas entre
os membros de uma mesma família. Enquanto um está com raiva, por exemplo, o irmão que vê a
mãe sofrer, o outro, por exemplo, a mãe, pode estar depressiva. Talvez o pai ainda esteja na fase
da negação e um outro irmão negociando a recuperação. Cada um pode oscilar de uma fase para a
outra em um mesmo dia, conforme a situação do momento.
Para se chegar à fase da aceitação, que é a predisposição para reverter o quadro,
recuperar-se e estruturar um novo estilo de vida, é necessário identificar a co-dependência e para
isso Forward propõe um teste. A autora não informa quantas respostas deveriam ser positivas
para a constatação da co-dependência. Porém, podemos pressupor que o co-dependente irá
responder afirmativamente à maioria das questões:
1. Resolver os problemas dele ou aliviar sua dor é a coisa mais importante da
minha vida, não importa o que isto vai me custar emocionalmente.
2. Meus sentimentos bons dependem da sua aprovação.
3. Protejo-o das conseqüências do seu comportamento. Minto por ele, protejo-o e
nunca permito que alguém fale mal dele.
4. Esforço-me ao máximo para que ele faça as coisas do meu jeito.
5. Não me preocupo com o que estou sentindo ou com o que quero. Só me
interessa o que ele sente ou quer.
6. Faço qualquer coisa para evitar rejeição por parte dele.
7. Faço tudo para evitar que ele se zangue comigo.
8. Sinto muito mais emoção numa relação turbulenta e cheia de drama.
9. Sou perfeccionista e me culpo por tudo que dá errado.
10. Fico aborrecida e me sinto desvalorizada e usada a maior parte do tempo.
11. Finjo que está tudo bem, quando na verdade não está.
12. A luta para fazer com que ele me ame é o ponto central da minha vida.118
É significativo observar que os verbos, contidos neste teste, têm a ver com as ações:
resolver (1), proteger e mentir (3), manipular (4), fazer (6 e 7), fingir (11), lutar (12) e com as
emoções: sentir (2,5,8,10), ser (9). Significa que a vida toda – do sentir ao agir – está envolta na
relação co-dependente. O DSPA ocupa o centro das atenções práticas e emocionais do seu
parceiro/pai/mãe/irmãos co-dependentes. As questões do teste acima ajudam o indivíduo codependente a perceber-se como tal. Ajuda a mostrar a assertiva de Sanda, acima citada, de que o
co-dependente deixa de cuidar de si próprio – deixa de ter um projeto de vida próprio – para viver
a vida do outro. Ou, nas palavras de Melody Beattie, citada por Ferreira, a carga extra de
118
Susan FORWARD. Graig BUCK, Pais Tóxicos, p. 48. A autora esclarece que usa o pronome universal ‘ele’ para
se referir a uma pessoa problemática, seja homem ou mulher.
61
responsabilidade faz com que algumas pessoas “super funcionem”, deixando de lado seus
próprios desejos e necessidades para atender ao alcoólico119.
Reconhecer isso é o primeiro passo do tratamento do co-dependente, segundo os grupos
de auto-ajuda CODA (Co-dependentes Anônimos): “Admitimos que éramos impotentes perante
os outros; que nossas vidas haviam se tornado ingovernáveis”120.
1.4.6 - Objetivos para um programa de tratamento da co-dependência
Pelo relato de sua experiência, Sanda deixa transparecer que, chegar na fase da aceitação,
constitui-se num processo severo e longo, em média de três a cinco anos – seis, no seu caso. Isso
tem a ver com o acesso e busca de informações, possíveis em programas de ajuda a codependentes, onde a troca de experiências e de informações dará suporte para a mudança de
pensamento e de atitude, bem como alimentam a prevenção necessária para não recair nas
atitudes de facilitação. O tratamento de um DSPA oportuniza o tratamento do co-dependente. Os
objetivos do programa de tratamento da co-dependência devem ser:
1. terminar com as atitudes de facilitação (para tanto é preciso reconhecê-las e coragem
para abandoná-las);
2. fornecer conhecimento sobre DSPA (pressupor que os familiares “dominam” o assunto
é um erro, sendo que a falta de informação leva a atitudes que comprometem a abstinência);
3. prevenir recaídas à facilitação (pois a facilitação é um caminho que aumenta a
probabilidade da recaída de um DSPA).
Não significa que não haverá mais ajuda. Porém, o limite saudável para ajudar está no
fato de que a ajuda (i) não será levada a extremo, de maneira compulsiva e de modo a piorar o
problema, (ii) não perpetuará a dependência e (iii) não manterá a irresponsabilidade do DSPA.
119
120
Cf. Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 22.
Sônia Maria Cintra Guimarães FERREIRA, Um Olhar Pastoral Através da Codependência, p. 125.
62
Seguindo esses critérios, a ajuda será de fato ajuda. Do contrário, alerta Sanda, os efeitos serão
devastadores, como: a morte por overdose, o homicídio, o suicídio, os acidentes automobilísticos
etc121. Conclui Lourenço:
Independentemente do modelo terapêutico ao qual o indivíduo e a família sejam
submetidos, é importante trabalhar as características individuais do dependente, as
características da relação familiar, a relação indivíduo/família, enfocando sempre a
necessidade da abstinência total, das mudanças no estilo de vida, assim como os
hábitos de ambos, e assim prevenir o fenômeno da recaída.122
1.4.7 - Relutâncias ao tratamento
É fundamental para qualquer programa terapêutico estar atento e consciente para enxergar
não somente o DSPA, mas também aqueles que estão ao redor deste, numa convivência diária,
tendo seus sonhos, seus sentimentos, seu paradigma de vida afetado e/ou afetando
reciprocamente esse cenário. “Se as pessoas que estão se recuperando da dependência química
não tiverem consciência da influência da codependência em suas vidas, bem como da
necessidade de se recuperarem delas, dificilmente poderão encontrar os caminhos da
recuperação”123. Essa assertiva deve servir de alerta na elaboração de um programa terapêutico,
pois, para que o DSPA possa tomar consciência disso, ele precisa de orientação e
acompanhamento necessário. O mesmo programa deverá prever a recuperação de ambos: do
DSPA e de seu(s) co-dependente(s).
Segundo Olievenstein, citado por Lourenço, todos querem uma resposta rápida para o
desafio das drogas. “Quando procuram um tratamento, a idéia predominante é internar o usuário
por algum tempo e só buscá-lo quando esteja bom”124.
Ou como ouvimos em uma palestra
proferida por Edmundo M. Chaves (2002), Administrador e membro da Diretoria da FETEB
(Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil. Bauru, SP): “A família,
121
Cf. Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 251.
Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 174.
123
Id., Ibid., p. 50.
124
Id., Ibid., p. 172
122
63
quando interna o DSPA, não está ‘comprando’ recuperação/tratamento, antes está comprando
sossego”. Ele alerta para o forte perigo de a família “jogar” o DSPA na internação e não
participar ativamente do processo. Nesse sentido, Sanda lamenta:
É muito comum encontrar pais que dizem: Meu filho está voltando para casa na
próxima semana e eu gostaria de saber o que devo fazer. Só que ele nunca apareceu
nas reuniões do grupo de apoio. Que resposta dar? Ele não sabe nada de codependência; não foi tratado; e agora com o retorno do filho à casa tudo vai voltar. As
atitudes de facilitação (minimizar, controlar, proteger, assumir responsabilidade e
compactuar) e as defesas da co-dependência (negação, depressão, negociação, raiva e
aceitação) estarão presentes de maneira não saudável.125
A DSPA não se instala de repente e não existe uma cura mágica. Não só o indivíduo, mas
toda a família precisa de tratamento, pois o grupo familiar encontra-se incluído no complexo
problema, sendo que ela é o contexto social mais próximo do indivíduo.
Lourenço diz que é comum – a experiência o mostra – o indivíduo ser trazido (muitas
vezes sob pressão) para o tratamento e que a família apresente uma certa resistência quando
solicitada a participar, ou aceita apenas por causa do adicto (do doente) como se ela não
precisasse refletir sobre as qualidades da relação familiar. É necessário conscientizar o indivíduo
e a família de que o tratamento é um processo, assim como foi um processo a instalação da
doença, e é uma oportunidade para trabalhar as situações disfuncionais presentes no núcleo
familiar. A família deve ser levada a entender que o tratamento não é só deixar as drogas e, sim,
tratar tudo o que leva a pessoa a valer-se das drogas, que a desintoxicação física é possível, mas
que o cuidado psicológico é mais demorado e requer muito empenho. Enfim, deve-se trabalhar o
nível de ansiedade da família e o conceito de cura, que normalmente é tido como “mágica”. A
autora alerta ser comum a família abandonar o tratamento quando começam a emergir as
dificuldades de cada membro da família126. Podem ocorrer:
•
•
•
125
126
Adições sociais entre familiares (fumo, uso de bebida alcoólica, compulsão para
comer e compras, intoxicação com trabalho etc.).
Automedicação (consumo de medicamentos, inserido no sistema de comunicação
familiar, o uso de pílula para dormir, para emagrecer etc.).
Sintomatologias neuróticas graves, freqüência de estados depressivos, às vezes
com tentativas de suicídio etc.
Luiz Ossamu SANDA, A Co-dependência, p. 253.
Cf. Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 172-174.
64
•
•
•
Alcoolismo e toxicomania (estudos transgeracionais).
Falta de limites.
Cegueira familiar (tempo de latência entre o início do uso e a descoberta pela
família).
• Os mitos familiares (filhos adotivos, ilegítimos, suicídios, etc.).
• Relações incestuosas, homossexualismo, prostituição.
• Transgressões (da lei e da Justiça, atos fraudulentos, violentos, cometidos por
membros da família).
• Mensagens duplas (os pais contraditórios).
• Impedimento ao crescimento do indivíduo, desrespeito à sua individuação.
• Valores rígidos e resistência em modificá-los.
• Tendência permissiva por parte de um dos pais ou de ambos.
• Agressividade que pode levar os pais a serem temidos pelos filhos.
• Falta de diálogo.
• Crise sócio-econômica, desemprego, dívidas.
• Falta de informação sobre as drogas.
Obs: Não se trata de culpar os pais, na realidade, todos os membros da família podem
ser vítimas de um jogo infindo, que perdura durante anos ou mesmo por muitas
gerações.127
A partir dessa lista, podemos entender porque a evasão de familiares do tratamento é tão
comum. É preciso muita coragem para enfrentar os possíveis problemas que virão à tona durante
o processo terapêutico.
1.5 - Quem ajudará?
Existe a necessidade legítima de uma continuidade pós-internamento. Todo aprendizado
adquirido durante a internação corre o risco de sucumbir frentes às intempéries sociais que
inevitavelmente ocorrerão. A fuga para o uso de SPA’s se apresenta como “meio mais fácil” de
enfrentar essas dificuldades.
Por outro lado, a família do DSPA que não procura ajuda significativa e não passa por um
tratamento estará apenas postergando e aumentando situações conflituosas que dificultarão a
manutenção do tratamento do DSPA. Não que os membros desta devem se tratar por amor àquele
127
Rozinez Aparecida LOURENÇO, A Família do Dependente Químico, p. 175.
65
em primeiro lugar. Pelo contrário, precisam buscar a recuperação por auto-estima.
Conseqüentemente, contribuirão na recuperação sócio-relacional do DSPA.
Atribuir toda a responsabilidade pela continuidade do tratamento ao indivíduo e/ou à sua
família é um gesto semelhante ao de Pilatos – lavar as mãos - no relato bíblico da crucificação de
Jesus Cristo (cf. Mateus 27.24). Indivíduo e família precisam ser assistidos na caminhada de
reabilitação pessoal e sócio-familiar.
Como analogia, poderíamos usar a situação de alguém em afogamento. Gritar para que ele
se salve, além de não ajudar concretamente, poderá aumentar o seu desespero, o que agilizará o
seu afogamento. É necessário jogar a bóia salva-vidas e ajudar a puxar para fora d’água.
A quem cabe esse papel de salva-vidas?
A partir da Teologia Prática, queremos chamar a atenção da comunidade cristã para o
desempenho dessa tarefa, que não é exclusiva dela, porém, ela tem em seu conteúdo
(espiritualidade) e vivência de fé (diaconia) o chamado para uma atuação significativa nesse
processo de salvação do indivíduo DSPA e de seus familiares.
Abordamos, a partir de uma sondagem empírica e de uma consulta bibliográfica, nesta
primeira parte da pesquisa, o público alvo da Paróquia Luterana da Sobriedade que é formado
pelos DSPA’s (atendidos em uma Instituição de Internação) e os seus familiares (codependentes). Veremos, na terceira parte desta pesquisa, como este público está sendo atendido
pela respectiva paróquia. Antes, enriqueceremos a argumentação teórica no que tange ao
potencial intrínseco que a comunidade cristã tem para acolher, através de sua espiritualidade e
sua práxis, a todos aqueles e aquelas que estão no processo de tratamento.
66
II – ESPIRITUALIDADE E DIACONIA: DOIS CONCEITOS TEOLÓGICOS E SUAS
POTENCIALIDADES PRÁTICAS PARA FORJAR COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
2.1 - Questões introdutórias
Constatamos, no capítulo anterior, a necessidade que o DSPA e seus familiares têm de um
acompanhamento significativo durante o processo de internação e pós-internação.
A comunidade cristã tem, intrínseco nela, a possibilidade de contribuir significativamente
neste processo. É função da Teologia Prática chamar atenção para que as comunidades insiram
em seus meios essa atividade acolhedora. Dois aspectos são para isso imprescindíveis: o aspecto
pastoral, com destaque especial para a espiritualidade, e o aspecto diaconal, com destaque ao
serviço de amor ao próximo.
O foco da espiritualidade será articulado a partir da relevância atribuída a ela nas falas dos
DSPA’s e das mães participantes dos grupos de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade, que
nos concederam entrevistas, e a partir de um teólogo e psicanalista alemão com reconhecimento
internacional na teologia contemporânea, Eugen Drewermann128.
128
É considerado o teólogo mais lido na Alemanha, com mais de 70 obras publicadas, proibido, pela Igreja Católica
Apostólica
Romana,
de
dar
aulas
e
de
exercer
o
sacerdócio.
Cf.
http://deutschewelle.de/dw/article/0,1564,778496,00.html.
67
A problemática da DSPA é de caráter profundamente existencial. Por isso as
contribuições de Drewermann que destacam a importância de uma espiritualidade integradora e
não excludente pela ditadura moral irão conduzir-nos na pesquisa teórica deste primeiro aspecto.
Limitamo-nos conscientemente a este autor devido à abrangência da temática
espiritualidade e o risco desta tomar a tônica da pesquisa. Diante de várias hermenêuticas
existencialistas optamos por uma, sem tirar o mérito das demais. A hermenêutica deste teólogo e
psicanalista alemão nos foi oportunizada conhecer através de seminários no IEPG, no primeiro
semestre letivo de 2004, e em palestras proferidas pelo mesmo no III Simpósio de
Aconselhamento e Psicologia Pastoral promovido pela EST (Escola Superior de Teologia), em
São Leopoldo, RS129.
No que tange à diaconia, destacaremos as contribuições de Gaede Neto e Schweizer que
fundamentam exegeticamente os aspectos básicos da diaconia neotestamentária.
2.2 - A importância da espiritualidade no tratamento
Prim chama a atenção para a importância e necessidade de mais pesquisas que analisem o
assunto espiritualidade e o uso de SPA’s, pois “a correlação entre envolvimento
espiritual/religioso e risco do problema de uso compulsivo de drogas é uma das constantes no
campo da adicção”130. Segundo ele, a organização Mundial de Saúde – OMS, preconiza que o
tratamento de DSPA’s deve priorizar o resgate de valores espirituais, independentemente da
129
Na língua portuguesa tivemos acesso ao seu livro, traduzido por Walter Schlupp, “Religião para quê?”, São
Leopoldo : Sinodal, 2004. Outros acessos à teologia desse autor tivemos através: a) da tese de doutorado de Bootz e
b) da dissertação de mestrado de Linn, que fundamentaram suas pesquisas em Drewermann e c) das anotações que
fizemos durante o III Simpósio de Aconselhamento e Psicologia Pastoral. [traduzido também se encontra o livro:
Funcionários de Deus. Cf. http://www.somlivre.pt/loja/viewItem.asp?idProduct=199956]. Entendemos que a
abordagem de Drewermann sobre a relação ‘ser humano – Deus’ é suficiente para a fundamentação da importância
da espiritualidade na recuperação de DSPA’s. A instituição de tratamento apresentada no primeiro capítulo
(CERENE) e a Paróquia Luterana da Sobriedade, que apresentaremos no terceiro capítulo, seguem, essencialmente,
uma hermenêutica de cunho evangelical-pietista, com ênfase cristocêntrica. A despeito das diferenças é enriquecedor
o diálogo com um teólogo contemporâneo que trata dos conflitos existenciais de forma mais antropocêntrica e que
também aponta para a graça de Deus.
130
Luiz PRIM, Dependência Química e Espiritualidade, p. 89.
68
metodologia usada. Importa que a espiritualidade seja contemplada no procedimento de
recuperação 131.
Quando se propõe perscrutar um assunto como espiritualidade, percebe-se que se está
diante de várias alternativas. Para darmos uma direção a essa tarefa nos deteremos na fala de
Drewermann sobre a relação “ser humano – Deus”. Inicialmente trataremos a temática central do
autor pesquisado, que é a angústia humana gerada pelo medo. Contemplaremos respostas ao
medo, em suas variadas formas de manifestação. Perceberemos que a moralidade tem impedido a
religião de executar seu papel terapêutico, aumentando a angústia humana.
Focalizando a pessoa de Jesus Cristo, veremos o quanto o Deus dele – conforme expressa
Drewermann - promove uma espiritualidade integradora, terapêutica, trazendo as pessoas
sofredoras e marginalizadas para a comunhão comunitária. Muitas vezes a Igreja Cristã, enquanto
instituição, não tem promovido o seu ser terapêutico. O Método Exegético Histórico-crítico
(MHC) é muito limitado para responder perguntas de origem existencial. Drewermann vai buscar
respostas no viés da psicanálise, que muito pode contribuir para que alcancemos alguns
princípios para que um programa de tratamento possa promover essa espiritualidade integradora.
Iniciaremos tomando conhecimento do que os residentes entrevistados expuseram quanto
a uma possível participação ativa na Igreja, antes ou durante o envolvimento com as SPA’s,
quando perguntados pela importância da religião (espiritualidade) no tratamento.
Egon não considera que era um praticante do cristianismo, mesmo que acompanhava sua
mãe quando ela ia à Igreja. Ele vê na espiritualidade condições para uma libertação:
É, eu acho que isso aí é tudo, envolve, porque, eu vejo assim, a gente não veio aqui
pra parar de usar droga, a gente veio aqui para encontrar a Cristo né, uma libertação
assim total.132
Gerson depois de afirmar ter sido freqüentador da Igreja, porém não com um
compromisso sério, destaca a importância da palavra de Deus no seu tratamento:
131
132
Cf. Id., Ibid., p. 86.
Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 4.
69
Olha, no meu tratamento eu vejo hoje que a palavra de Deus ela é fundamental para
mim, eu não consigo me vê sóbrio hoje sem a palavra de Deus, se eu não conseguir
uma comunhão total com Deus uma entrega total com Deus eu não consigo viver
sóbrio (...) não tem outro caminho sem essa comunhão com Deus.133
Ivo, que não considera ter sido um participante ativo da Igreja, aponta para a mudança em
seu coração:
É fundamental né, Deus pra mim, eu creio que Ele é meu Senhor e Salvador e eu tô
aqui graças a Ele, Ele me chamou de novo, estendeu a mão, e eu creio que Deus
transforma vida né, tem transformado a minha, porque desta última vez quando eu
cheguei, eu falei: ‘não vou agüentar não’, ‘não vou agüentar mais um tratamento’.
Entreguei tudo na mão dele e hoje estou aqui, eu tô, a cada dia mais eu sinto que tô
melhorando, sinto que a cada manhã Ele renova, Ele dá forças assim pra vencer o dia,
e sem Ele não dá, então a mudança que Ele tá fazendo aqui dentro do meu coração é
muito grande, e enquanto eu tiver com Ele eu vou tá de pé, e se deixar Ele de lado a
recaída vem, e foi o que aconteceu né, deixei Deus de lado, mas Ele é tão bom que
estendeu a mão de novo para mim.134
Rogério afirma ter participado semanalmente de sua Igreja, interrompendo a participação
após ter iniciado o uso de SPA’s; demonstra convicção de que precisa procurar:
Muito importante né, acho que assim que eu sair daqui eu tenho que me empenhar
bem nisso né, sempre estar escutando a palavra de Deus, estar sempre procurando né,
acho que isso aí vai ser para mim fundamental.135
Osmar cita a sua Igreja de origem e que conheceu outros aspectos do cristianismo a partir
do CERENE. Para ele, religião:
É fundamental, (...) eu acho que sem Jesus, sem Deus na nossa vida a gente não
encontra aquele caminho como Ele diz, o caminho é estreito, mas é só com Ele
mesmo, sem Ele, nós não chegamos ao Pai, através de sua morte nós podemos,
perdoar todos os nossos pecados, como ele nos perdoou, e eu vejo assim na minha
adicção, sóbrio a quase cinco meses novamente, (...) e vendo que se eu não seguir a
palavra de Jesus, não seguir a Bíblia e não seguir aquilo que tá determinado eu acho
que não tem solução pro meu caso, eu digo assim.136
Romeu dificilmente ia à Igreja, porém, atualmente vê a importância da espiritualidade:
133
Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 7.
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 10-11.
135
Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 18-19.
136
Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 15-16.
134
70
Importância? Fundamental né, sem Deus a gente não é nada, agora é que eu estou
aprendendo a vê isso com clareza, que uma pessoa sem Deus no tratamento até
mesmo lá fora na vida não vai para lugar nenhum.137
Também perguntamos a respeito da espiritualidade aos familiares entrevistados. Matilde,
após descrever a participação superficial de seus filhos que não tinham definição religiosa, afirma
que:
(...) eles passaram a encarar a coisa de uma forma diferente, então eles começaram a
ver né, que adorar somente a Deus, que Jesus Cristo veio para ajudar, para ensinar e
que as pessoas devem seguir os ensinamentos que Jesus deixou, então eles estão
começando a entender o verdadeiro conteúdo da religiosidade (...).
Ela não dá muito crédito a tratamentos que não contemplem a espiritualidade:
(...) eu vejo casos de pessoas que vão se internam numa clínica onde o cunho
religioso não faz muita diferença, é mais laborterapia, é entrevista, psicólogo, mais na
parte material (...). As pessoas que eu conheço que ficaram trabalhando só a parte
material, física, em clínicas, amanhã ou depois se elas recaem, elas recaem muito
pior.
No seu entender, quando ocorre recaída de quem contemplou a espiritualidade, o pedido
de ajuda ocorrerá rapidamente.
Porque a recaída do [nome do filho] não é uma coisa boa, mas (...) que ele recai ele
pede ajuda, ele quer se tratar novamente, ele quer procurar ajuda, ele não quer ficar
naquela vidinha que ele se encontra quando ele começa a se drogar.
Conclui:
Então por isso a importância da espiritualidade eu acho que é fundamental, é
fundamental, não interessa se é na igreja Batista, na igreja Luterana, na igreja
Católica, mas tem que ter, eles tem que procurar a ajuda de um ser superior que eles
recebem através de um pastor, através de um orientador espiritual, eu acho que é
fundamental.138
Marta, vê a espiritualidade como algo muito importante, porque antes não sentia a
presença de Deus:
137
138
Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 21.
Trechos da entrevista concedida por Matilde (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 26-27.
71
(...). E hoje não, hoje a gente sente mais amor, mais carinho das pessoas, então a
gente sente Deus mais perto da gente, eu me sinto, todas as noites quando eu dobro
meus joelhos eu sinto Deus bem perto de mim, depois que eu virei a participar
mesmo, meu Deus, eu digo pra ti, a minha vida mudou em tudo.
Como conseqüência dessa mudança:
Eu e o meu marido chegamos a se separar, com essa luta que a gente passou com meu
filho a gente teve quatro ano separado, e hoje tá tudo bem, pela graça de Deus, por
que motivo? Igreja e reunião. Onde a gente foi procurar o apoio, foi nisso.139
Daniele está envolvida mais anos no assunto da recuperação, pela experiência com o exmarido DSPA e atualmente com o filho nessas condições, e também profissionalmente, com
famílias que sofrem as conseqüências da problemática, atendidas no hospital:
Bom, também já li que na época o A.A. é que dava maior tempo de, fora as terapias
psiquiátricas, medicação, maior tempo de sobriedade. Depois com o avanço da, do
derramamento do Espírito Santo, vamos dizer assim, a gente tem visto e lido que os
movimentos, as igrejas evangélicas é que tem conseguido um número de abstinência
maior e aí a gente sabe que é todo, eu creio nisso, que é o poder de Jesus, poder
transformador, que esse tem, pode ter mil e outras alternativas mas que pode sustentar
algum tempo mas são lentas, eu vejo vital.140
Percebemos nas falas citadas que a espiritualidade é tida como sendo de ‘fundamental
importância’ no processo terapêutico. É caracterizada como uma fonte de forças para efetuar as
mudanças bem como para despertar a motivação necessária para o tratamento.
No mundo empírico dos DSPA’s e familiares em recuperação a espiritualidade tem se
mostrado relevante. Na fala destes, temas como ‘angústia’, ‘medo’, ‘tristeza’, ‘depressão’,
‘ansiedade’ etc, refletem o sofrimento pelo qual têm passado e passam todos os envolvidos no
processo terapêutico. Sofrimento esse que precisa ser compreendido - das causas às soluções pelos que se envolvem, no intuito de ajudar no processo de restabelecimento individual e sóciofamiliar dos atingidos pela problemática das SPA’s.
Para subsídios teóricos, voltaremos, nesse momento, o nosso olhar para Drewermann,
com o intuito de aprofundar a pesquisa destes aspectos.
139
140
Trechos da entrevista concedida por Marta (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 29.
Trecho da entrevista concedida por Daniele (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 24.
72
2.2.1 - Angústia humana
A angústia humana - sentimento de profunda crise existencial – culmina em situações
trágicas para o indivíduo, no que se refere ao seu contexto bio-psico-social-espiritual141. Entre
elas prefigura a problemática do uso e abuso de SPA’s e da co-dependência.
Drewermann, o palestrante convidado para o III Simpósio de Aconselhamento e
Psicologia Pastoral142, perguntado se o específico da busca por drogas, especialmente por jovens,
não seria um meio de buscar libertação dos conflitos, confirmou a questão afirmando também que
a dependência química é a patologia mais difícil de tratar. A perda da felicidade individual e o
desejo por entusiasmo desencadeiam essa busca. A industrialização tem levado as pessoas a uma
vida sem sentido. Para descrever essa vida, ele fez uma analogia com um carro em ponto-morto,
que não ‘sai do lugar’. O sentimento que se tem é de ser apenas uma máquina que pode ser
descartada a qualquer momento. Essa situação promove o medo, gerador da angústia existencial.
2.2.2 - Medo gerador da angústia
A causa principal da angústia, segundo Drewermann, é o medo. Através da categoria
medo, consegue-se compreender o ser humano em sua angústia e desespero. O mal tem origem
no medo: “Na origem desse mal estaria a percepção da contingência e finitude humana que
instala um sentimento de inferioridade e repugnância pela própria existência”143.
141
Tomamos esta formulação de Noé, que aponta para a necessidade de ver o ser humano integral e não esfacelado
em enésimas porções. Cf. Sidnei V. NOÉ, Comunidade Terapêutica (Cuidando do ser...), p. 10-11.
142
Realizado na EST (Escola Superior de Teologia), organizado pelo IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação),
em São Leopoldo, RS, nos dias 05-07 de julho 2004.
143
Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 36.
73
O medo emperra o processo de individuação, do tornar-se self144. O ser humano é, ou
comete o mal, conforme permite se identificar com o medo. Caso perca Deus de vista, verá como
única saída (do círculo de constante derrota), a possibilidade de se tornar o próprio Deus. Caso
reprima o medo – projetando-se nos outros (“ser social”) – colherá ilusão e desespero. O medo
não pode ser vencido com ações de fuga (entre elas o uso e/ou abuso de SPA’s), pois aumentará a
escalada da violência, que poderá ser voltada para si próprio, num processo de auto-destruição,
ou aos outros, causando prejuízos materiais e relacionais à sua volta.
2.2.3 - Medo da morte
Para os animais, segundo Drewermann, a morte não se constitui num problema porque a
visão do mundo consiste em transmitir os genes da melhor forma possível. Porém, para o ser
humano – indivíduo que tem consciência de si – a morte escandaliza. A pessoa quer saber qual é
o seu papel. Por que existo, eu pessoalmente, com aquilo que penso e sinto? O que represento?
Neste questionamento a morte passa a ser um problema central, que nenhuma biologia consegue
responder145.
De acordo com o raciocínio acima, o animal não tem medo, ele é medo. Está predisposto
a responder com fuga ou ataque em situação de perigo. O ser humano também experimenta medo
desta forma, porém com a diferença de que pode antecipar situações de medo, simulando-as na
imaginação com o intuito de encontrar respostas adequadas. Diferentemente dos animais, a nossa
razão nos diz como lidar com as situações de perigo e, considerando o todo, nos alerta para o fato
144
Centro onde ocorre uma unidade do consciente e do inconsciente. “Neste âmbito, a pessoa não é mais assombrada
pelos conteúdos do inconsciente pessoal (sombra), nem por aqueles do inconsciente coletivo (anima). Estes se
tornam conscientes sem, contudo, haver uma inflação doentia do consciente. Na verdade a própria consciência
também desaparece. Dos dois mundos (consciente e inconsciente) nasce um novo, o self. O desenvolvimento ulterior
deste estado de união é ordenado pelo mundo onírico e espelhado nos mitos, através de formas de narrativas
expressivas deste processo psíquico chamado individuação”. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 86.
145
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 28-29.
74
de que não temos escapatória: nenhum poder do mundo nos protegerá contra o medo de perder o
grupo, da solidão, da doença e da velhice146.
O medo ameaça deturpar toda a humanidade contida nas pessoas. Cria razões para um
comportamento diferente do que se quer. Ele lança as pessoas no atoleiro de sangue das guerras,
de defesa, de necessidade de segurança e justiça. Esse medo deixa o ser humano cruel:
O maior medo que as pessoas têm provavelmente é o de morrer, e mesmo que não
tenham medo da morte, têm pelo menos medo da falta de amor com a qual se pode
mandar pessoas para a morte e para a total indiferença, como se não tivessem
importância alguma: elas que se danem, e ninguém sentirá falta delas. Quando esse
sentimento toma conta, provoca o maior pavor, e as pessoas farão de tudo para refutar
essa impressão. Vão matar, lutar, realizar conquistas às custas dos outros, com a idéia
fixa de alcançar sucesso na vida.147
Ou – acrescentaríamos - fugirão para situações ilusórias, promovidas pelo uso de SPA’s.
2.2.4 - Resposta para o medo
A confiança despertada pelo aconchego protetor de outra pessoa é a única resposta para o
medo que surge da consciência do ser humano. O problema é que as pessoas com medo também
fracassarão no amor recíproco148, não correspondendo assim às expectativas de proteção.
Por isso a religião, o falar de Deus, é uma base necessária para responder questões
absolutamente humanas que não são respondidas pela natureza.
A fé em Deus, como ela se mostra na história da religião e também é articulada ainda
na Bíblia, não parte da pergunta pelo mundo, mas da questão onde se podem localizar
para o ser humano lugares de abrigo, de amor, confiança e esperança frente à
morte [grifo nosso].149
146
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 77.
Id., Ibid., p.57.
148
Cf. Id., Ibid., p. 94.
149
Id., Ibid., p. 28.
147
75
O medo é vencido na confiança em Deus (fé), pela não violência. “O paraíso não é um
lugar, mas um tipo de vida sem medo, o qual é acessível a qualquer um, mediante a graça”150.
Para as antigas civilizações, os poderes da natureza eram encarados como forças
personificadas – deuses. A Bíblia introduziu algo radicalmente novo: a fé criacional, que não
identifica Deus com as forças da natureza, mas o coloca como pano de fundo da mesma. A
pergunta deixou de ser ‘por que existe o mundo?’ E passou a ser ‘por que existo?’. O diálogo
entre Deus e o ser humano passou a ser o teor, cenário e a temática de toda espiritualidade
bíblica. Assim, as questões religiosas atendem à busca de sentido do ser humano em meio à sua
vida: “Somente quando se forma certa confiança de que é possível e lícito viver, com motivos de
gratidão para tal, também o mundo em volta passa a ser integrado cada vez mais objetivamente
neste sentimento”151.
Nessa direção também segue a argumentação de Crabb, que ilustra as necessidades
humanas através de três círculos (figura 03), sendo que o círculo central representa a sede de
Deus (Anseios Cruciais), o círculo do meio a necessidade humana de relacionamentos com o
próximo (Anseios Críticos) e o círculo periférico representa as necessidades materiais (Anseios
Casuais). Segundo Crabb, se a sede de Deus for suprida, os demais anseios também o serão,
havendo assim uma transformação ‘de dentro para fora’152.
Anseios Casuais
Anseios Críticos
Anseios Cruciais
Fig. 03
Ampliaremos o raciocínio acrescentando mais um círculo que representará a relação do
ser humano consigo mesmo, pontuando também o valor da auto-estima (figura 04).
150
Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.113.
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 31.
152
Cf. Larry CRABB, De dentro para fora (Sua vida pode mudar...), p.92-97.
151
76
Anseios Casuais (Material)
Anseios Críticos (Próximo)
Auto-estima (Eu)
Anseio Crucial (Deus)
Fig. 04
Assim, do aconchego acolhedor de Deus se pode adquirir auto-estima que por sua vez
permite um relacionamento equilibrado com o outro e leva a uma administração satisfatória dos
bens materiais.
Destas afirmativas, deduzimos que onde há medo, não há vida. Onde não há vida, não há
gratidão. Onde não há gratidão, não há integração com o mundo, ou seja, com a natureza
(ecologia, material), com o social (relacionamentos), consigo próprio (auto-estima) e com o
espiritual (Deus). Onde há ambiente de confiança, aconchego, haverá gratidão. Esse ambiente é
proporcionado por Deus, leva a auto-estima satisfatória, possibilita relacionamentos saudáveis e
um lidar com a natureza com o coração agradecido.
Drewermann destaca a maneira como Jesus se sentia ligado a Deus: ele inspirava uma
confiança que tocava de forma elementar as pessoas em seu medo. “Quando esse homem estava
perto, não era preciso ter tanto medo”153. Os milagres de Jesus consistiam no fato de fazer com
que as pessoas encontrassem a si próprias. O encontro de si e o encontro de Deus são, para
Drewermann, a mesma coisa. É o poder de uma confiança que nasce de um amor puro154. Assim
“O que podemos aprender de Jesus é algo totalmente diferente, é adquirir uma confiança que nos
carrega por sobre o abismo, uma confiança que nos ajuda a enfrentar todos os contratempos”155.
153
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 149.
Cf. Id., Ibid., p. 150. Esta afirmação é extremamente antropocêntrica, dando a entender que a divindade é
imanente ao ser humano, intra-nós. Neste aspecto diferimos de Drewermann. Consideramos Deus como
transcendente, extra-nós, o Outro, que se revela a nós pela sua graça e bondade. A partir do encontro com o
transcendente é possível encarar a realidade humana tal qual ela se apresenta, podendo, a partir daí, ocorrer um
encontro de si mesmo.
155
Id., Ibid., p. 55.
154
77
O medo se apresenta em quatro formas básicas: a) Esquizoidia, promovedora de uma
constituição mental com tendência à solidão, autismo, devaneio e má adaptação às realidades
exteriores; b) Depressão, marcada por sentimento do medo culposo, decorrente do processo da
fase oral; c) Neurose obsessiva, fruto deste mundo de concorrência e rivalidade, exigindo da
pessoa constante perfeição e êxito; d) Histeria, caracterizada pela dificuldade de se desvencilhar
dos pais156.
Em resposta às quatro formas de medo, Bootz157 descreve quatro sacramentos,
apresentados por Drewermann, que respondem diretamente à problemática de cada um dos
medos. Não nos aprofundaremos em cada um, porém, uma noção panorâmica dos mesmos será
importante para nossa temática:
a) À esquizoidia corresponde o rito do Batismo, existente já antes do cristianismo,
preservado por este, como sentido de morte e renascimento: nova vida, cura e experiência
mística. Para isso, duas condições apresentadas por Drewermann: a necessidade de um ambiente
de proteção quente e acolhedor e um outro ser humano com força capaz de batizar (com sua
presença) uma pessoa.
b) À depressão corresponde o rito da Santa Ceia. Partindo da figura de segurança da
árvore (para os primatas) chega-se à cruz – simbolizada na Santa Ceia: resulta em força
consciente para enfrentar qualquer sentimento de culpa. É importante o encontro com o ‘outro’,
a semelhança de Jesus.
c) À natureza obsessiva corresponde o rito da confirmação, crisma: jogo e iniciação.
Jogo é o aprendizado sem a pressão de exigências, apenas ação de aprendizado. Jogo é a fase de
dependência dos pais objetivando a independência. Ao contrário da compulsão neurótica – que
cobra a perfeição – o jogo (lúdico) surge como um espaço no qual não é exigido nada a não ser o
prazer da descoberta de si mesmo. Esta é a vontade de Jesus: que nos tornemos crianças ao
redor de Deus.
156
157
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.95-96.
Cf. Id., Ibid., p. 104-5.
78
d) À histeria corresponde ao rito de casamento. O amor é a energia que transforma
qualquer pessoa em um ser humano maduro existencialmente. O histérico se fecha para o amor.
A solução é encontrada no simbolismo do casamento sagrado. A sexualidade cumpre a função de
preservação da família. Procriação e preservação são duas funções importantes da sexualidade
que em si não é amor. Amor é doação ao outro. Sexualidade é sobrevivência da espécie. “O
histérico vai encontrar saída, não na moralidade, que apenas reforça sua ansiedade, mas no
encontro com Deus, com o próximo, cuja aceitação incondicional dilui o medo”158. O amor
espelha a relação entre Deus e o ser humano. Proporcionar esse encontro é da responsabilidade da
Igreja. A individuação é o resultado de tal encontro, é filha desse “casamento sagrado”.
Assim vemos o quanto o rito cumpre um papel importante, eliminando o medo e
permitindo o encontro entre o ser humano e Deus. Diferentes formas de medo – cenas simbólicas
desenvolvidas pela psique humana – creditadas como verdades, controlam e aterrorizam a pessoa.
O símbolo religioso evoca experiência transcendente gerando segurança ao invés de ansiedade.
Adiante pautaremos atividades importantes, que correspondem a esses sacramentos, a
serem observadas e estimuladas num programa terapêutico de tratamento de DSPA’s e
familiares.
2.2.5 - Moralidade e religião
Seria uma reformulação da ética (da moral) de um DSPA a solução para os seus conflitos?
Drewermann responderia que não: “Nenhum único dos problemas com que as pessoas
chegam pode ser resolvido com orientações éticas, ainda que tenham implicações éticas”159. Jesus
não queria curar as pessoas com preceitos morais, mas oferecer uma bondade que primeiro
permite a pessoa erguer-se, respirar e sentir-se aceita. A ovelha perdida não foi trazida de volta a
chicotadas e sim nos braços do pastor.
158
159
Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.105.
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.120.
79
Essa bondade é o fundamento essencial da vida: “As pessoas só conseguem ser boas por
se depararem com uma bondade que se interessa por elas, que as carrega, que lhes ajuda a
viver”160.
O ser humano precisa experimentar a possibilidade de poder ser, existir. No campo
religioso deve haver uma suspensão do ético. Ao processo terapêutico, para que haja cura, se
impõe a necessidade da suspensão de exigências morais. O ser humano precisa saber que é
absolutamente desejado e reconhecido por Deus. Assim Drewermann reivindica a primazia da fé
sobre a ética161.
A religião não deve ter como primeira função proclamar a moral e sim ajudar a pessoa a
viver. Assim criará a premissa existencial que permite cumprir a moral. Não é possível organizar
a vontade de tal forma que ela se torne correta, se não houver espaço para decisões próprias no
lugar de controle do superego, do medo da autoridade, da dependência e direção de fora. “Para
termos capacidade ética precisamos primeiro ser pessoas humanas”162.
A tragédia existencial consiste na impossibilidade do indivíduo satisfazer a lei moral,
causando-lhe grande pressão que resulta em sofrimento e em personalidade dividida – processo
neurótico no qual o “eu” se vê às voltas com duas poderosas demandas: o inconsciente que quer a
individuação e o “superego” que não pode ser satisfeito, causando sentimento de culpa.
A neurose ocorre porque o “eu” encontra-se em situação de fragilidade não
conseguindo enfrentar a demanda social, estando maduro isso não ocorreria. Para o
desenvolvimento e uma maturidade sadia, porém, é preciso o envolvimento com a
dimensão do inconsciente, e esta é negada em primeira instância pela moralidade.163
O “eu” perde mais e mais a sua energia de decisão, sua vontade – levando a pessoa a se
tornar inibida, introvertida. Toma posse o seu “eu social” que não proporciona felicidade,
levando a pessoa a culpar o outro e a sociedade pelo seu fracasso.
160
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 121.
Cf. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 42.
162
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 121.
163
Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.108.
161
80
Para Drewermann a teologia (javista) ensina que o medo é fruto da percepção humana da
separação de Deus. O cristianismo é a reposta porque em Jesus Cristo encontra-se o caminho de
volta. Porém, a igreja em vez de acentuar a “graça” tem acentuado a idéia da expiação: ato
humano como participação da redenção. Isso resultou na ênfase da moral para nortear os passos
da igreja.
Como superar essa tragédia cristã? Drewermann defende a necessidade da suspensão da
moral na religião. Seguindo Freud, que coloca a necessidade de um “espaço para respirar” sem a
demanda da moral no processo saudável da recuperação de um paciente, ele realça o valor da
justificação pela fé, onde é possível abrir mão de se justificar perante a sociedade com méritos
próprios, encontrando em si o seu “eu” justificado pela graça – relação madura com Deus. A
obediência a Deus não se dá por pressão (como na moralidade) e sim em humildade164. Linn cita
Drewermann afirmando:
Na escolha entre julgar ou entender essas pessoas, eu optei por entendê-las (...) Pelos
próprios seres humanos que não acertaram com sua vida, eu me propus a trabalhar
uma síntese a partir da exegese bíblica, psicanálise e dogmática, que permitisse usar o
conceito pecado para compreensão do desespero e falta da alternativa do ser humano,
ao invés de ver nele apenas uma alavanca de acusação de culpa e disciplina
eclesiástica.165
Para Drewermann, os fracassos morais e éticos seriam decorrentes do conflito entre a
condição individual e as exigências coletivas. Por isso enfatiza que para além da necessária
ordem no campo das relações sociais, a relação com Deus é decisiva166. Conclui: A teologia deve
ensinar a fé, não a moral, e a psicologia deve reconhecer que a justificação do indivíduo se dá
mediante uma confiança transcendente à esfera humana (diferente do ateísmo). A moral de Deus
é perdão para aquele que confessa a sua fé perante ele167.
Drewermann se dedicou à psicanálise porque queria conhecer todas as dimensões do
inconsciente, o trágico emaranhado de compulsões à repetição, re-encenações de traumas de
infância. Segundo ele, para entendermos por que as pessoas sofrem, não se pode tomar como
164
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.110.
Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 42.
166
Cf. Id., Ibid., p. 43.
167
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p.111.
165
81
base a antropologia reduzida, que consiste de psicologia racional e decisões volitivas moralmente
treinadas – esta é a antropologia defendida pela teologia moral da igreja. Por isso, recusa-se a
falar de pecado. Prefere falar de desamparo, desespero, de estar num beco sem saída, de cara com
o abismo168.
Ou, quando fala de pecado, Drewermann define-o em termos teológicos, compreendido
como distanciamento de Deus, situação em que o ser humano não pode “arruinar-se mais do que
quando procura revestir seu supérfluo, desamparado e injustificado ‘Ser-aí’ sem Deus a partir de
seu próprio esforço, com brilho de uma razão justificada”169.
Na perspectiva psicanalítica, doença neurótica é transtorno causado pelo medo e do
esforço de ser igual a Deus. No sentido teológico, neuroses diante de Deus acontecem pelo
domínio do medo que é a conseqüência do pecado do distanciamento de Deus. Drewermann, na
aproximação entre essas duas áreas, procura mostrar que a categoria teológica ‘pecado’ pode ser
relevante para a compreensão de fenômenos psicológicos e, simultaneamente, o conhecimento da
dinâmica psicológica pode proporcionar o entendimento da mecânica da auto-destruição posta em
movimento pelo pecado170.
2.2.6 - Integração das pessoas sofredoras e marginalizadas
Quando Jesus diz que as pessoas que sofrem, as pessoas que choram, os indefesos, os
impotentes e doentes, todos eles e elas deveriam ter uma chance, e que ele teria vindo
para fundar um mundo no qual a bondade seria a base do novo tratamento recíproco,
pensei que teria que ser assim, só assim valeria a pena viver [grifo nosso].171
O mundo atual não merece continuar existindo, porém o mundo como Jesus quer e
viabiliza, merece todo tipo de engajamento e esperança. É um horizonte de possibilidades sob
novas perspectivas: o Novo Ser Humano, com o olhar voltado para o homem de Nazaré.
168
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.63-64.
Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p. 37.
170
Cf. Id., Ibid., p. 37.
171
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 46.
169
82
Drewermann testemunha que creu no Deus de Jesus. Pois não pode entender como Jesus
considera possível sua bondade a não ser que ele realmente a pressuponha naquele que ele chama
de seu Pai. Por causa desta fé ele realiza coisas paradoxais e inacreditáveis: Vai atrás dos mais
perdidos, marginalizados, dos quais todos dizem que deveriam ser castigados, que de qualquer
forma nada conseguiriam na vida, que podemos deixar de fora e esquecer, que não fariam parte
de nosso grupo religioso, de nosso grupo social nem econômico – “vamos acabar com eles,
então!(...) Justamente a eles Jesus se dirige, convidando-os, solidarizando-se com eles e
declarando que afinal de contas nós todos nem conseguiríamos viver sem essa solidarização
absoluta”172.
Jesus torna Deus presente na evidência de seu comportamento humano.
Na minha experiência, fato é que eu nem acreditaria em Deus se eu não olhasse para
Jesus. O homem de Nazaré para mim é um motivo para crer em Deus, para crer no
Deus dele, mantendo assim um fundamento paternal, maternal, bondoso do mundo.173
Isso porque em Jesus perde-se o medo que ameaça deturpar a humanidade contida nas
pessoas. A partir do que Jesus oferece, começamos a nos entender e as pessoas ao nosso lado,
obtendo-se assim uma leve noção do que Deus poderia significar. Precisamos conhecer Deus a
partir da viabilização de uma postura humana que claramente portamos em nós como anseio,
porém com falta de coragem para pôr essa postura em prática.
Alcançada esta confiança,
transcendendo o medo, podemos nos dirigir à realidade do mundo em nossa volta com sentimento
de gratidão, de reverência, de respeito e sabedoria174.
O homem de Nazaré é a chave para a questão de Deus, e para viver sem medo neste
mundo brutal e inexplicável. Drewermann coloca que para ele é algo tremendo o fato de Lucas
citar o pronunciamento do Salmo 31 por Jesus na cruz: “Em tuas mãos entrego o meu espírito”,
isto é, a mim mesmo. Isso implica em que o que uma pessoa é, depende exclusivamente de Deus.
Assim Jesus entendeu Deus: existe um poder em cujas mãos nos entregamos. Não é a história,
nem a historiografia contemporânea, nem os arquivos documentais de determinados lugares e
períodos que ditam o que somos. “Isto está absolutamente em Deus”. Essa confiança é necessária
172
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 47.
Id., Ibid., p.53-54.
174
Cf. Id., Ibid., p. 55.
173
83
para que vivamos e morramos adequadamente como seres humanos. Caso contrário sempre
voltaremos a ser dependentes: faremos coisas para que pessoas falem melhor de nós175, ou seja, a
busca por um conceito social (fama) razoável.
A motivação para o tratamento de um DSPA inúmeras vezes parte da questão de sua
“fama”. A família muitas vezes envergonhada pelo impacto negativo que a problemática está
trazendo para o seu meio social, impõe o tratamento como condição de continuidade familiar.
Isso é compreensível, é humano. Porém, se não houver esse ‘entregar-se’ às mãos de Deus,
encontrar-se a si mesmo, essa fraca motivação inicial não surtirá uma terapia adequada, podendo
levar todos os envolvidos a frustrações.
2.2.7 - Meditação bíblica e métodos hermenêuticos
Segundo Linn, Drewermann se empenha para articular uma teologia que tenha em vista as
condições e estruturas da existência humana, recuperando assim uma qualidade teológica que ele
não reconhece no que considera a teologia acadêmica e eclesial da tradição cristã ocidental176.
O problema da teologia ocidental é pensar a partir de Deus quando deveria pensar em
direção à Deus. Os teólogos projetaram os problemas humanos para dentro de Deus, só para
descobrir que então eles não podem mais ser resolvidos. Drewermann toma como exemplo uma
trepadeira (auto-interpretação da existência humana) em uma árvore (Deus). Os teólogos ficam
pensando na árvore em vez de ajudarem a trepadeira a crescer177. “Os teólogos entenderam que fé
é levar as pessoas pela mão e, partindo de uma imagem pronta de Deus, apresentar-lhes a
realidade, dizendo-lhes já de antemão: ‘o mundo é assim porque é de Deus’”178. A partir disso
surgem conflitos diante do fato de que o mundo não é regido pelo amor e sabedoria e sim pela
luta de vida, morte e sobrevivência.
175
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.58.
Cf. Victor Waldir LINN, Entre o Sonho e a Palavra..., p.33-34.
177
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.88.
178
Id., Ibid., p.91.
176
84
A meditação bíblica é um dos mais importantes recursos espirituais. Dela podemos
encontrar alento nos momentos de aflição.
aprofundamento da aflição
179
A interpretação pode levar à libertação ou ao
, conforme os pressupostos hermenêuticos adotados.
O Método Histórico Crítico (MHC) deve ser superado porque coloca o exegeta apenas no
passado, não auxiliando para o presente, tornando-o num excelente dogmático, porém sem que a
mensagem do Evangelho seja realmente concluída. Se o texto não falar existencialmente, não
será escritura sagrada180.
Bootz coloca três bases Kantianas fortemente presentes na estrutura do MHC: lei da
restrição histórica, lei da redução causal (seqüência lógico-causal) e a lei da racionalidade e da
objetividade (eliminando a subjetividade do estudioso)181.
Para corrigir o MHC (que não deve ser totalmente descartado), Drewermann apresenta a
psicologia como parceira a ser acrescentada na pesquisa bíblica.
Esse forte ataque ao MHC se deve ao fato deste ter se tornado muito “seco” nas questões
existenciais da vida. O teólogo se torna alguém com muito conhecimento acadêmico (o que não
é essencialmente negativo), porém com um conhecimento alheio à vida do dia-a-dia das pessoas
que sofrem.
Em busca de uma alternativa que contemplasse mais a existência humana, que fosse mais
terapêutica, Drewermann encontra na psicanálise a sua ‘chave hermenêutica’ para a leitura
bíblica. Através da estrutura dos arquétipos do inconsciente, Drewermann traça a linha em
comum do texto bíblico com as questões vivenciais de quem lê o texto hoje. Esta é a ponte
encontrada entre o horizonte do escritor com o horizonte do intérprete. Não despreza de todo o
MHC, porém continua ali onde este não tem mais nada a dizer existencialmente. Brakemeier
assim expressa:
A pesquisa histórica, no entender de Drewermann, aumenta essa distância e dificulta
a comunicação. Enquanto isso, a interpretação psicológica da Bíblia cria, conforme
ele, ‘isocronia’, isto é uma simultaneidade temporal, transpondo o referido fosso
179
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 87.
Cf. Id., Ibid., p. 88.
181
Cf. Id., Ibid., p. 88.
180
85
histórico. Exegese, então, conduz as pessoas aos porões da alma, despertando
experiências religiosas comuns e abrindo exatamente assim as portas aos tesouros
bíblicos. Os textos comunicam seus conteúdos não como mera informação.
Transmitem verdades em forma de experiência religiosa, relevante em todos os
tempos.182
Drewermann não é o primeiro (e não será o último) a querer superar ou complementar o
MHC. A Hermenêutica Negra183, Feminista184, Evangelical185, Bibliodrama186, entre outras, são
exemplos dessa tentativa de enxergar o horizonte daquele que lê (ouve) o texto sagrado.
Algumas, com enfoque mais sociológico, outras, com enfoque mais existencial, todas, porém,
querendo trazer o texto sagrado para a realidade atual. Postura essa relevante para as reflexões
bíblico-teológicas no tratamento. Frisamos o cuidado que se deve ter com hermenêuticas que
desrespeitam o texto sagrado, tirando-lhe a autoridade que lhe é devida para a compreensão e
aplicação do mesmo.
O uso das Sagradas Escrituras tem sido uma ferramenta útil no tratamento de muitos
DSPA’s. Na leitura bíblica com e para DSPA’s, a chave adotada por Drewermann também é
relevante por responder perguntas existenciais que podem ter sido a causa que levou à, ou, que
mantêm a dependência. Assim, toda a articulação pastoral e psicológica é bem vinda para o
auxílio terapêutico. Uma articulação não exclui a outra; complementam-se.
Por importância essencial, Drewermann entende o substrato humano no qual podem ser
encontradas imagens típicas, uma “constante antropológica” de sentimentos e imagens inerentes a
182
Gottfried BRAKEMEIER, A Autoridade da Bíblia (...), p. 63.
Conforme Frisotti afirma, consciente do mau uso histórico da bíblia para legitimar o sofrimento do povo negro,
que a bíblia é um prato cheio para lutar pela vida e contra a injustiça. Cf. Heitor FRISOTTI, Povo negro e Bíblia –
retomada histórica, p. 43-44. Padilha enfatiza a vida como chave hermenêutica: “Nesse sentido, a Bíblia, para a
gente negra, deve ser um instrumento que protege, mantém e promove a vida. Sendo assim, a vida é critério central
para a interpretação dos textos bíblicos [grifo nosso]”. Günter PADILHA, Hermenêutica Bíblica Negra, p.115.
184
A hermenêutica da suspeita, dentro do método de desconstrução e reconstrução somados ao instrumental analítico
das relações de gênero, a teologia feminista tenta responder às necessidades do seu contexto e do seu tempo. Tem
como ponto de partida as experiências das mulheres. Cf. Wanda DEIFELT, Temas e metodologias da teologia
feminista, p. 178.
185
Mueller traz um breve panorâmico histórico do desenvolvimento da hermenêutica bíblica, partindo de meados do
séc II chegando ao MHC (que nasceu no contexto racionalista/iluminista). Apresenta o método em si, uma avaliação
do mesmo e sugere um método que valorize os dois horizontes (do escritor e do intérprete) sugerindo uma fusão dos
dois. A chave hermenêutica do reino de Deus perpassa todo o método proposto por ele. Na avaliação que faz do
MHC chega a conclusão semelhante a de Drewermann: o mesmo não permite falar existencialmente para o
intérprete. Cf. Ênio R. MUELLER, O Método Histórico-Crítico – Uma Avaliação, p. 237-318.
186
Também citado por Brakemeier, no item ‘leitura psicológica da bíblia’. Cf. Gottfried BRAKEMEIER, A
Autoridade da Bíblia (...), p. 62.
183
86
cada ser humano187. Significa: para entender a história humana é preciso entender antes a si
mesmo como ser humano e descobrir, no passado, identidades semelhantes. “Não são as
circunstâncias sociais que determinam o indivíduo e a sociedade, e sim o inverso: é a necessidade
de responder à demanda do medo (segurança) que orienta a construção religiosa e social”188.
Concluindo: em todo o ser humano há um conhecimento inconsciente acerca do
absoluto, e somente neste nível dos arquétipos é que pode ser cogitada e aceita uma
conexão hermenêutica sobre a distância temporal dos séculos. É no nível dos
arquétipos que se manifesta o ponto comum de todos os fortes sentimentos de alegria
e de tristeza, da experiência de nascimento e de morte, de jovialidade e de senilidade,
de doença e de cura, de vergonha e de asco, de amor e de carinho, a tendência de
demonstração de valor e de territorialidade, as várias reações preestabelecidas em
situações de necessidade, etc. É este nível dos arquétipos que explica a eterna
validade dos ritos e dos símbolos religiosos.189
O centro do cristianismo deve ser definido em termos terapêuticos. Infelizmente a
espiritualidade da igreja perdeu esse poder terapêutico porque os “cura d`alma” deixaram de
lidar com as doenças da alma, isolando-se em seus gabinetes, longe das pessoas que deles
precisam. Já na formação teológica dos estudantes e do corpo docente, essa situação precisa ser
revista, pois só se consegue ajudar alguém até aquele ponto ao qual a gente mesmo chegou190.
Bootz compara pensamentos de alguns autores com o pensamento de Drewermann, onde
o assunto “recursos espirituais” versus “recursos racionais” no aconselhamento são confrontados.
Conclui que o déficit está na área de recursos espirituais (com algumas exceções)191. “O valor dos
recursos espirituais precisam ser equiparados ao dos recursos científicos se quisermos que haja
uma parceria saudável entre teologia e as outras ciências humanas (...) Mas podem ser
complementares”192. Segundo Drewermann, os recursos espirituais mantêm uma estreita
vinculação
com
o
universo
simbólico,
inconsciente.
Porém,
com
a
ascensão
do
racionalismo/cientificismo (séc. 19 e 20), as ciências humanas que mantiveram sua base no
mundo dos símbolos foram sendo desqualificadas a exemplo da ciência da “cura d’alma” (ciência
teológica com símbolos religiosos: cruz, ceia, oração, bíblia). Surge a psicologia que inunda a
187
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 90.
Id., Ibid., p. 91.
189
Id., Ibid., p.92.
190
Cf. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 150.
191
Cf. Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 113-119.
192
Id., Ibid., p. 114.
188
87
ciência “cura d’alma” com atmosfera cientificista como exclusiva para resolver problemas
existenciais. Essa exclusão dos recursos espirituais é o problema do cientificismo para
Drewermann.
2.2.8 - Valor do indivíduo e o valor da comunidade
Uma das críticas feitas a Drewermann é que ele coloca sobre o indivíduo a ênfase para
crescer espiritualmente, em vez de na comunidade de fé. Essa crítica se resume na pergunta pelo
lugar onde ocorre a revelação de Deus. A voz da crítica é assim resumida por Bootz: “o processo
da individuação é um programa de espiritualidade que descarta o lugar e o sentido do ser da
comunidade cristã, enquanto espaço de celebração pela revelação do Evangelho”193.
O pensamento de Drewermann responde: “a comunidade de Jesus Cristo é composta por
indivíduos que se comportam segundo o exemplo do próprio Cristo, e não segundo preceitos
desta ou daquela comunidade”194. A relação primeira ocorre entre indivíduo e Deus. A
comunidade é conseqüência deste ato primeiro. Este ato leva a superar os medos, porém essa
superação precisa de companhia, de alguém que consiga ser total para o outro, sem imposições.
A comunidade precisa cumprir o seu papel de apoio, de norteamento, sem, contudo,
ser diretiva (...) Há uma reciprocidade entre o valor do indivíduo e o valor da
comunidade para o amadurecimento da fé, que pode ser quebrada quando um é
elevado em detrimento do outro.195
A comunidade torna-se Comunidade Terapêutica quando respeita o indivíduo que tem
consciência de sua caminhada própria dentro da caminhada maior do corpo de Cristo.
O valor do indivíduo é destacado no Aconselhamento Pastoral – momento em que se isola
da comunidade – para que possa se abrir de uma forma que seria impossível em meio ao povo,
sendo que:
193
Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 123-4.
Id., Ibid., p. 125.
195
Id., Ibid., p. 127.
194
88
O processo de recuperação, contudo, não se limita apenas ao espaço do diálogo
pastoral. Ele extrapola. Ele ocorre principalmente depois que o aconselhador se
ausenta (...). O diálogo pastoral, quando muito, capacita a pessoa a caminhar de
maneira mais autônoma, mais confiante, mas nem por isso menos sofrida.196
2.2.9 - A função da Igreja
Sobre a instituição (igreja, firma, partido), Drewermann afirma:
Se primeiro preciso pertencer a uma organização para me tornar pessoa humana,
continuarei muito longe de ser pessoa humana. Não duvido de que organizações
sirvam para concentrar e canalizar atividades de certos interesses; admito que deveria
haver muitas dessas organizações e que os alvos perseguidos por elas fazem
realmente uma diferença, mas com uma condição: os objetivos não devem estar em
função das próprias instituições, mas estas devem ser determinadas pelas evidências
humanas. Neste sentido as igrejas efetivamente poderiam ser corporações úteis, caso
atuassem em prol de objetivos meritórios,(...), buscando atender à situação miserável
de pessoas e animais,(...), na verdade seriam indispensáveis.[grifo nosso].197
Essas observações são suficientes, desafiadoras e de fundamental importância. É preciso
reconhecer que como igreja, muitas vezes, cai-se no perigo de se viver em função da instituição.
Também as instituições de tratamento de DSPA’s correm esse risco.
Drewermann enxerga as igrejas no contexto europeu. Para ele, o MHC é o principal
causador dessa igreja voltada a si própria. Devemos perguntar até que ponto as igrejas históricas,
tradicionais, que historicamente adotaram o MHC em seus centros de formação pastoral, também
não tem os mesmos deslizes da igreja tradicional européia. Sejam elas protestantes ou católicas.
Em nosso contexto social brasileiro, as igrejas tradicionais dão pouca atenção em termos
de apoio aos dependentes químicos e seus familiares. A igreja precisa concentrar-se mais nas
necessidades humanas do que voltadas a si próprias.
196
197
Everton Ricardo BOOTZ, Consultei a Deus..., p. 128.
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.61-62.
89
Adiante veremos que há indícios de mudança e a importância de uma hermenêutica que
fale ao contexto existencial das pessoas, tornando-se corporações úteis.
Essa ‘tensão’ entre o valor do indivíduo e o valor da comunidade (instituição de
tratamento, igreja, grupo de apoio) enquanto existir será saudável, pois manterá o equilíbrio
necessário. Onde há a pergunta, haverão olhos abertos que enxergarão ora uma tendência, ora
outra, trazendo de volta para o central: o terapêutico.
2.2.10 - Conclusão sobre a espiritualidade no tratamento
A solução para a angústia humana – causada pelo medo, manifesto das mais variadas
formas – seria uma confiança despertada pelo aconchego de outra pessoa. Pela impossibilidade
de encontrar esse aconchego em pessoas humanas (imperfeitas), a solução passa a ser a fé em
Deus (perfeito).
A solidarização absoluta de Jesus Cristo para com os mais perdidos e marginalizados
deverá servir de referencial para a sua comunidade, que não deve perder esse aspecto terapêutico.
Assim, a fé em Deus proporciona ambiente de aconchego humano na comunidade que expressa
essa fé.
A espiritualidade bíblica é baseada no diálogo entre Deus e o ser humano por isso é
espiritualidade integradora e não moralista (excludente). A justificação pela fé (graça) é a porta
de entrada, o despertar, dessa espiritualidade. Uma moral condizente com a vida será sempre
conseqüência e nunca condição para tal espiritualidade.
Para Drewermann, a exclusão dos recursos espirituais é o principal problema do
cientificismo que acompanha o MHC, que tem tornado a igreja estéril. O ‘cura d`alma’ tem
ficado trancafiado no gabinete, deixando de ir ao encontro das pessoas, atitude contrária à de
Jesus Cristo. Por outro lado, a psicologia cientificista tem ignorado a necessidade da justificação
do indivíduo na esfera transcendente. Constatamos que o conteúdo dos recursos espirituais
90
encontrados nas Sagradas Escrituras, auxiliados pelo ferramental da Psicologia - numa troca
recíproca de conhecimento teológico e humano -, é fundamental para um programa terapêutico
consistente.
A igreja cristã – quando não voltada para si mesma – tem esse potencial terapêutico
intrínseco: o de ser acolhedora. Não desenvolvê-lo a serviço de todo ser humano marginalizado, e
aqui queremos destacar os DSPA’s e seus familiares (que vivem sob o peso da angústia), é uma
crueldade que angustia o coração do Pai e do próprio Jesus Cristo. É a demonstração clara de que
a voz do Espírito Santo não está sendo ouvida por aqueles que dizem ser seguidores do Triúno
Deus.
2.3 - Considerações sobre a diaconia
O aspecto da espiritualidade integradora aponta para o atendimento pastoral. Além da
necessidade legítima que os envolvidos na DSPA’s tem do acolhimento pastoral – que trata
questões existenciais da vida – há também necessidades na área pragmática do dia a dia, o
atendimento às necessidades básicas da vida no âmbito material.
O serviço prestado pela comunidade cristã deve ser o mais integral possível. Diante da
pergunta pelo potencial intrínseco que a comunidade cristã tem para ser acolhedora em relação
aos egressos/as de instituições de tratamento de DSPA’s e aos familiares dos mesmos, o aspecto
diaconal não pode passar desapercebido.
“Nenhuma comunidade sem diaconia – Nenhuma diaconia sem comunidade”198. É
significativo que Kirchheim, na época (2000) como pastor presidente da IECLB (Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil), proferiu esse lema – como que uma bandeira – para
a diaconia na igreja, por ocasião da investidura do conselho e do secretário executivo da
Fundação Luterana de Diaconia. Em outra preleção ele afirma: “É este o santo serviço: Deus nos
198
Humberto KIRCHHEIM, Novo jeito de ser igreja, p. 88.
91
serve para que nós lhe respondamos com nosso louvor e adoração e com nosso serviço a ele no
mundo em que vivemos”199.
Digno de nota é a iniciativa que Gisela Beulke teve em organizar reflexões a partir de
experiências concretas na área da diaconia. Louvável é o fato da DSPA não ter ficado ignorada!
Um dos capítulos trata do “Trabalho com Alcoolistas”200. Talvez seja listado como sendo uma
das primeiras obras literárias brasileiras que insere o tratamento de alcoolistas como sendo um
trabalho diaconal.
Para a nossa pesquisa, queremos ver a importância da diaconia no processo terapêutico de
um DSPA. Partiremos de uma noção bíblico-teológica da diaconia.
2.3.1 - Aspectos bíblico-teológicos da diaconia
É da exegese de Gaede Neto201 e de Schweizer202 que queremos importar alguns aspectos
básicos da articulação da diaconia pelos escritores neotestamentários.
Gaede Neto adota Marcos 10.35-45 como ‘porta de entrada’ para a leitura da diaconia nos
ensinos e ações de Jesus, pois é a proposta de “uma regra de convivência comunitária, baseada no
princípio da inversão dos valores vigentes na sociedade da época”203. Conforme alguns autores
por ele citados, é a tradição mais antiga do tronco terminológico diakonia, o que explicita o maior
número de dados para a compreensão de diaconia, conecta o significado de diaconia diretamente
199
Humberto KIRCHHEIM, Novo jeito de ser igreja, p. 23.
Cf.Gisela BEULKE, Diaconia: um chamado para servir, p. 33-43. Abordado a partir de experiência prática por
Alexandre Ari Monich, Alair Scheidt e Samuel Sobottka.
201
De seu livro ‘A diaconia de Jesus (Contribuições para a fundamentação teológica da diaconia na América
Latina)’. São Leopoldo : Sinodal : Centro de Estudos Bíblicos : São Paulo : Paulus Editora, 2001.
202
Especificamente seu artigo sobre ‘A estrutura diaconal da comunidade no Novo Testamento’. In: Kjell
NORDSTOKKE (Org.), A diaconia em perspectiva bíblica e histórica. São Leopoldo : EST/Sinodal. 2003. p. 53-83.
203
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 50.
200
92
ao ministério de Jesus e traz o conceito diaconia no contexto das instruções de Jesus para o
discipulado204. As conclusões apontadas por ele:
a) O texto de Marcos 10.35-45 está no contexto da caminhada de Jesus, junto com as
pessoas que o seguiam, rumo a Jerusalém. Dado importante, porque situa a diaconia no contexto
do discipulado que se dá na perspectiva da cruz. A disposição de renúncia ao caminho de poder,
da glória, da autopromoção, em favor da auto-entrega, passa a ser a perspectiva de identidade de
quem segue a Jesus. Assim, a comunidade que aceita esse desafio é a comunidade que serve.
Ela entende que o caminho da cruz é o caminho que Deus anda para encontrar as
pessoas colocadas nos últimos lugares deste mundo; a comunidade da via crucis é a
que se converteu ao princípio da constante inversão da sede pelo poder na opção pelo
serviço. Converteu-se ao projeto de Deus de auto-entrega e serviço em favor de quem
é vitimado pela busca de poder de outros [grifo nosso].205
b) Jesus reage, no contexto de Marcos 10.35-45, a situações em que o poder da opressão
está sendo exercido sobre outras pessoas. A maneira de Jesus reagir chama a atenção: não
espiritualiza os problemas, antes aponta para soluções práticas206.
c) O texto de Marcos 10.35-45 apresenta os próprios discípulos com ambição de poder,
como é exercido pelos governadores dos povos. A proposta de Jesus é uma inversão radical de
valores: “Entre vós não é assim; pelo contrário”. Isso é um contra-modelo à sociedade que vitima
a maioria dos seus membros. Isso significa uma denúncia profética dos valores e da realidade
vigentes. Assim, o serviço recíproco na comunidade é colocado como alternativa à estrutura do
poder vigente.
d) A opção de Jesus é por todas as pessoas que o modelo vigente exclui. Essa é a opção
pela obediência a Deus, que não fica preso ao templo, mas vai até a cruz, que é o lugar comum
para as pessoas destituídas de qualquer poder. Essa opção de Jesus se reflete no termo que ele
204
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p 45.
Id., Ibid., p. 82.
206
Por exemplo: o exorcista excluído, as crianças excluídas, a mulher vitimada, desafio para que um representante do
poder econômico distribua seus tesouros. Cf. Id., Ibid., p. 83.
205
93
escolheu para designar o sentido do seu envio por parte de Deus ao mundo: diakoneîn, o serviço
mais humilde e humilhante 207.
e) Por fim, a comunidade só pode assumir essa nova regra de convivência quando ela
mesma se sabe resgatada por Deus, através da doação da vida de Jesus na cruz.
Só quem aceita, de mãos vazias (passivamente), ser resgatado qual escravo e escrava,
qual presa impotente nas mãos do poder do pecado de querer ser igual a Deus (de
querer ter poder sobre as outras pessoas), essa pessoa está verdadeiramente liberta
para se colocar a serviço do resgate de outras pessoas escravizadas [grifo nosso].208
2.3.1.1 - Textos bíblicos clássicos da diaconia
Gaede Neto também pormenoriza alguns textos clássicos da diaconia, significativos na
aplicabilidade, que adiante queremos fazer, para a dependência química:
a) O texto do “Julgamento Final” que se encontra em Mateus 25.31-46 tem recebido
basicamente três interpretações: Universal (o critério do julgamento final será as boas obras feitas
aos marginalizados/pobres/sofredores – Esse critério será para todos), Clássica (define os
pequeninos irmãos/ãs como membros da comunidade cristã, especialmente os missionários que
passam necessidades na divulgação do evangelho) e Exclusiva (interpreta o julgamento como
sendo para os gentios e não para os cristãos/ãs). Após enumerar os argumentos Gaede Neto opta
pela interpretação clássica:
Jesus apresenta suas seguidoras e seus seguidores (enviadas e enviados ao mundo)
como sendo pobres e dependentes da ajuda alheia. Essas pessoas sofrem a diaconia de
outros. Isso necessariamente evita que elas se auto-compreendam como vocacionadas
para assistirem os pobres, assumindo uma postura acima dos e alheia aos pobres deste
mundo, que dependem da caridade cristã (...). Há aqui uma compreensão de
207
208
Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84.
Id., Ibid., p. 84.
94
comunidade, livre da concentração de poder e de posses. Ela não faz assistencialismo
paternalista.209
Sinaliza enfaticamente o ponto de partida para o agir diaconal:
(...) Isso indica a organização do trabalho diaconal a partir das necessidades de outras
pessoas e não a partir da bondade e do poder de ajuda das pessoas cristãs” [grifo do
autor].210
b) O texto do “Bom Samaritano” encontrado em Lucas 10.25-37 é a pergunta pela vida.
Inicia com a pergunta de como herdar a vida eterna, feita pelo intérprete da lei, que é invertida
por Jesus para “que devo fazer para que a outra pessoa (cuja vida está ameaçada) tenha vida?”.
Assim,
Na parábola do bom samaritano, Jesus nos mostra a partir de onde devemos articular
a diaconia: a partir da outra pessoa, daquela pessoa que mais necessita de ajuda para
viver, que está mais distante da vida plena, duradoura, perene.211
c) O texto do “Lava-pés” que traz o “Novo Mandamento” em João 13.1-35 aponta para
um dos serviços mais humilde, geralmente feito por escravos/as, crianças e mulheres. Esse ato
leva Jesus a se identificar com as pessoas que se encontram no último lugar na escala de valores
sociais da época. Porém, Jesus o faz como Senhor, o que mostra a radicalidade do gesto. Esse
gesto de Jesus está em conexão com Marcos 10.44-45212. A resistência de Pedro213 em ser lavado
pelo Senhor, sinaliza a arrogância, auto-afirmação e autonomia em relação a Deus e ao próximo.
A ordem de Jesus “como eu vos fiz, façais vós também” (v. 15) está em consonância com a
ordem clara expressa na formulação: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (v.
34). Esta ordem tem a ver com o tipo de convivência entre os discípulos, marca esta que distingue
209
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84.
Id., Ibid., p. 110.
211
Id., Ibid., p. 97.
212
“44 e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. 45 Pois o próprio Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10.44-45). Tradução em Português por
João Ferreira de Almeida, versão revista e atualizada no Brasil, 2 ª ed., 1993.
213
Schweizer ressalta que aquele que serve também se deixa servir, assim como Jesus que foi servido à mesa (Lucas
8.3), evitando-se o equívoco de Pedro que não quis ser servido por Jesus no lava pés (João13.7s). O ‘deixar-se servir’
se torna errado quando é exigência de merecimentos ou elevação do status, reforçando as diferenças de em cima e
em baixo, conforme os ‘dominadores’ em Mateus 20.25, podendo levar a um consumismo religioso. Cf. Eduard
SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 58-60.
210
95
a comunidade de Jesus da comunidade do mundo: “nisto conhecerão todos que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns com os outros” (v. 35)214.
Conforme Schweizer, em João 13.6-8, no lava-pés, pós ou durante a ceia, Jesus confere
aos seus uma participação em sua própria existência.
Esse ‘lugar vivencial de Jesus’ foi preservado pela comunidade. Ela não conhece
lugares sagrados nem pessoas santas, ou melhor: todos os que seguem a Jesus são
‘santos’, e toda a terra pertence ao Senhor (...). Ela conhece, porém, uma mesa posta
em torno da qual se reúne, como o ‘mesmo lugar’ no qual ela se congrega.215
Essa mesa posta aponta para uma característica central da prática e do discurso de Jesus: a
sua comensalidade.
2.3.1.2 - A comensalidade de Jesus em Marcos 2.15-17
15 Achando-se Jesus à mesa na casa de Levi, estavam juntamente com ele e com seus
discípulos muitos publicanos e pecadores; porque estes eram em grande número e
também o seguiam.
16 Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos pecadores e
publicanos, perguntavam aos discípulos dele: Por que come [e bebe] ele com os
publicanos e pecadores?
17 Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os são não precisam de médico, e sim os
doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores.216
Gaede Neto desdobra o texto de Marcos 2.15-17 em três partes: a) o verso 15 descreve o
cenário, b) o verso 16 destaca a ação dos escribas e dos fariseus e c) o verso 17 aponta para a
reação de Jesus. Toda a narrativa está a serviço de um dito de Jesus, expresso em duas frases, no
verso 17: “Os sãos não precisam de médico” e “não vim chamar justos, e sim pecadores”. O fato
214
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p.113-4.
Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 61.
216
Marcos 2.15-17. Tradução em Português por João Ferreira de Almeida, versão revista e atualizada no Brasil, 2 ª
ed., 1993.
215
96
de Jesus cear com ‘publicanos e pecadores’ provoca a pergunta feita pelos escribas e proporciona
a resposta dada por Jesus217.
A partir de Jürgen Becker, Gaede Neto trata do assunto da comensalidade de Jesus no
contexto da ceia salvífica de Deus, e conclui:
A comensalidade de Jesus com as pessoas pobres das vilas da Galiléia, como vivência
da mensagem do irrompimento do Reino de Deus, caracteriza-se pela partilha do pão
(para socorrer a necessidade das pessoas famintas) e pela comunhão e
comunitariedade (para atender à necessidade da aceitação, da inclusão). Num só
tempo, a comensalidade aponta para a importância das dimensões prática e
comunitária da diaconia em Jesus. Acresce-se que as duas dimensões juntas
significam, ao mesmo tempo, denúncia da realidade vigente de miséria e exclusão e
anúncio de uma forma alternativa de vida comunitária, construída sobre o princípio
da partilha[grifo nosso].218
Quem são os ‘publicanos e pecadores’ e quem são os ‘escribas dos fariseus’?
Publicanos eram os cobradores de impostos. Entre eles encontramos os architelômnai
que eram os arrendatários do sistema e arrecadadores chefes que faziam contratos arriscados,
buscando tirar o investimento feito e o lucro almejado e encontramos os telônai que eram as
pessoas comuns, contratadas para o serviço de cobrança nas coletorias, muitas vezes por não
terem trabalho mais digno. Estes eram marcados por grande instabilidade devido à flutuação no
mercado de trabalho e pela rejeição social. Por isso eram facilmente corrompidos, fazendo da
trapaça a ordem do dia219. A reputação negativa que tinham vinha, basicamente, da carga
opressiva que os tributos representava para o povo e comerciantes e da desonestidade na
profissão.
217
Cf. Gaede Neto que cita outras passagens dos evangelhos que também denotam essa temática. Cita a conclusão de
Uwe Wegner: “o episódio narrado em Marcos 2.15-17 não foi um acontecimento isolado na atividade de Jesus, mas
era, por assim dizer, um traço original de sua ação, que se repetia também em outras ocasiões”. Rodolfo GAEDE
NETO, A diaconia de Jesus, p. 118. Aprofunda o estudo dando atenção ao estudo de John Dominic Crossan que
conclui “A comensalidade, na verdade, era uma estratégia para reconstruir a comunidade camponesa sobre princípios
radicalmente diferentes daqueles ditados pelo sistema. Ela estava baseada no ato de compartilhar de forma igualitária
o poder espiritual e material, no nível mais popular”. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 118.
218
Cf. Id., Ibid., p. 123.
219
“O coletor de impostos constava, por tudo isso, na lista das profissões desprezadas, juntamente com cuidadores de
porcos, curtidores de couro, vendedores de alho, banqueiros, carreteiros, servidores de mesa, servente, , etc., todos
trabalhos mal remunerados, executados por pessoas pobres”. Id., Ibid., p. 127.
97
Somava-se a isso a desclassificação religiosa: suas posses injustas, a sonegação de
impostos e o desleixo com o dízimo tornavam suas receitas impuras e os
estigmatizavam também como infiéis em relação à Torá. Essa situação coloca os
publicanos no nível dos pecadores.220
A designação de pecadores engloba os publicanos, porém nem todos os pecadores eram
publicanos. Reflete mais um grupo de pessoas com desqualificação religiosa. Uwe Wegner,
citado por Gaede Neto, garante que não se trata do conceito de pecadores num sentido
generalizado como na concepção paulina (cf. Romanos 3.23), porque Jesus, em seu discurso,
admite que há pecadores num sentido contraposto às pessoas que buscam ser retas. Diferenciação
essa feita no livro dos Salmos (Salmo 1, entre outros).
Os fariseus eram piedosos ativos da época de Jesus, que assumiram fortemente a distinção
entre justos e pecadores. Os escribas dos fariseus interpretavam e atualizavam a lei divina para o
povo judeu. O interesse deles, em seguir os preceitos da lei de Deus à risca, faziam com que se
distanciassem de todos aqueles que não queriam ou não podiam observar com o mesmo rigor a
legislação religiosa existente.
Manter de um lado a ‘congregação dos justos’ e, de outro, a ‘roda dos escarnecedores’
(expressa no Salmo 1) era a pretensão dos escribas dos fariseus. “A fusão desses dois mundos só
pode resultar em confusão: Jesus confunde a ‘boa ordem’ moral e religiosa de sua época”221.
Jesus justifica sua atitude com o dito do verso 17 de Marcos 2: “os sãos não precisam de
médico...”.
Com o objetivo de visualizar, em preleções públicas, essa diferenciação entre justos e
pecadores, muitas vezes o co-obreiro usava a figura de uma escada:
220
221
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 128.
Id., Ibid., p. 131.
98
Fariseus e seus Escribas
Publicanos e Pecadores
Fig 05
O primeiro degrau é feito propositalmente mais alto para destacar que as circunstâncias
(geralmente de pobreza, das profissões menos dignas da época) dificultavam ‘subir a escada’
dando o primeiro passo. Essa escada também fica evidente na oração feita pelo fariseu, na
parábola que Jesus conta em Lucas 18. 9-14.
Gaede Neto conclui que a comensalidade para o povo judeu era comunhão de vida. Jesus
estava exercitando comunhão de vida com pessoas de profissões inferiores, muitas vezes
desonestos e ligados a trapaças.
Sabendo que no texto de Lucas 2.15-17 os inquiridores eram os escribas dos fariseus e
que estes agiam a partir do critério da discriminação entre as pessoas que observavam e as que
deixavam de observar a lei religiosa estabelecida, podemos deduzir: na comensalidade de Jesus,
além de coletores de impostos, participavam pessoas cuja imagem, na avaliação dos entendidos
da lei divina, estavam manchadas pelo pecado, merecendo a (des)classificação como
pecadoras222.
Jesus não nega a condição pecadora de seus comensais. Vê o quanto elas precisam de
ajuda. O problema é o afastamento consciente dos fariseus, que agem de modo contrário ao
médico. O ‘remédio’ para o mal do afastamento só pode ser a proximidade.
Agindo como ‘médico’, Jesus age identificado com Deus.(...) Deus que cura, a
exemplo do que diz o Salmo 103.3: (...). A comensalidade é, por isso, uma ação
terapêutica de Jesus, em que se revela, em toda a sua profundidade, a face
222
Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 129.
99
acolhedora de Deus, que é decididamente inclusiva. Por isso, ao agir em nome de
Deus, ‘o tipo de vida que se cria ao redor de Jesus não admite excluídos (...) O perdão
de Jesus é o poder de derrubar aquilo que exclui pessoas [itálico do autor, negrito
nosso].223
2.3.1.3 - Diaconia como tolhimento extremo
Schweizer, apresentando a diaconia como tolhimento extremo, parte do texto exclusivo de
Lucas, em Lucas 22.27c, onde Jesus declara: “Estou no meio de vós como diácono”. Ser diácono
denota a atividade de Jesus e não seu status. Jesus não serve fazendo algo (como servir à mesa) e
sim através do seu tolhimento extremo: “Jesus presta o maior serviço a seus discípulos
justamente pelo fato de só poder ainda sofrer o que Deus lhe impôs”224. Em seu ser diaconal ele
não é ‘o maior’, conforme discutiam os discípulos entre si por volta da última ceia, que fora o
provável contexto da auto-afirmação de Jesus como diácono.
A auto-humilhação de Jesus, ao se tornar ser humano, descrita em Filipenses 2.5, passa a
ser referencial a ser seguido por todos os discípulos (sympsychoi: pensar e sentir em conjunto), e
não apenas por alguns. Na consciência da própria fraqueza, a disputa pelo poder ouve o
indicativo ‘entre vós não é assim’ e obedece ao imperativo ‘será o que vos sirva’. Assim, servir
como Jesus, denota a existência de um novo comportamento, que ‘em Cristo’ já é realidade a ser
seguida: “Nesse seguir, a pessoa vai atrás de Jesus, deixando que ele a conduza e presenteie sem
cessar”225.
A diaconia é de todos os fiéis. ‘Existir em favor dos outros’ passa a ser realidade na vida
daqueles e daquelas que seguem a Jesus. A forma como isso acontece (se é proclamar, exorcizar
ou curar, conforme Marcos 6.7, 12s) permanece em aberto. Segundo Schweizer, as listas de
Paulo da multiplicidade dos serviços em Romanos 12.6-8 e 1 Coríntios 12.8-10, 28-30, requerem
algumas observações: a) O critério não é o ‘extraordinário’ e sim se Cristo é ou não anunciado
223
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 133.
Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 54.
225
Id., Ibid., p. 62.
224
100
como Senhor e se a comunidade é ou não constituída, b) o ‘extraordinário’ não faz parte,
necessariamente, da vida da comunidade, c) não existem categorias hierárquicas na comunidade e
d) serviços naturais se tornam sobrenaturais quando o Espírito de Deus atua neles. Todo serviço
– feito para e a partir de Deus – deixa de ser profano. Todo serviço na igreja é diaconia. Assim, a
diaconia como vida cristã passa a ser paradigmática.
Também chama a atenção para o fato de que nas listas de serviços a serem prestados,
encontram-se aqueles que estão relacionados mais com a proclamação da palavra (vistos como
mais espirituais) e aqueles relacionados com o bem estar das pessoas (relacionados mais com o
corpo). Em Filipenses 1.1 aparece pela primeira vez a citação de bispos e diáconos lado a lado.
Atos 6.1ss faz a diferença entre servir a mesa (eleitos 7 pessoas para tal) e proclamar a palavra de
Deus (serviço dos apóstolos). Nas listas de serviços de Paulo, se encontram no começo sempre
um ou mais serviços à palavra. Assim surge a pergunta: Existe um serviço mais elevado à palavra
e um menos importante às mesas? Como resposta formulamos: A igreja vive fundamentalmente
da palavra e esta deve ser autenticada pelo agir diaconal que é regido pelo amor (1 Coríntios 13),
caminho que supera tudo e sem o qual, tudo se torna vão. Estevão (um dos sete eleitos para o
serviço à mesa) se tornou poderoso anunciador da palavra (Atos 6.8-10), as mulheres que serviam
a Jesus foram incumbidas de anunciar a ressurreição (Mateus 28.9s).
Por via de regra, portanto, a proclamação como prédica missionária ou dirigida à
comunidade, ou como carta apostólica, constitui a primeira tarefa da comunidade (...).
Em contrapartida, a diaconia é a incumbência de cada fiel. Sem ela, não é possível ser
membro da Igreja, ao passo que sem o dom da palavra isso é possível. A diaconia
determina a estrutura e, por decorrência, a natureza da Igreja propriamente.226
Schweizer articula o modelo de Mateus (destacando Pedro), o modelo de Paulo e o
modelo de João, colocando a diaconia como fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo.
a) Em Mateus destaca a afirmação chocante e exclusiva de que o Cristo exaltado vive
agora nos sedentos, fugitivos, enfermos e presos e vem ao encontro das pessoas por meio
deles227. A comunidade é claramente concebida como a comunhão de irmãos e irmãs que exclui
226
Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, 71.
Cf. Stott que cita, adotando uma interpretação universalista, as palavras de Madre Teresa: “Que cada irmã veja
Jesus Cristo na pessoa do pobre. Quanto mais repugnante o trabalho ou a pessoa, maior deve ser a sua fé e o seu
amor para servir a nosso Senhor em seu angustiante disfarce”. John STOTT, Os desafios da liderança cristã, p. 46.
227
101
todos os títulos que diferenciem entre superiores e inferiores e faz de todos diáconos (Mateus
23.8-11). Pedro é apresentado como escriba/professor que tem o serviço de ‘ligar e desligar’,
cuidando dos mandamentos compromissivos para determinadas situações (éticas). A diaconia
missionária consiste em continuar a ensinar os mandamentos que Jesus ensinou, sendo o
mandamento do amor ao próximo (regra de ouro em Mateus 7.12) tão importante quando o amor
a Deus.
b) O modelo Paulino parte da figura do corpo de Cristo como modelo para a Igreja (1
Coríntios 12.12s). É nesse corpo que o próprio Cristo se configura no mundo. Existem os
membros que se sentem inferiores (ouvidos) e superiores (olhos), sendo que Deus dá honra aos
inferiores. A alegria ou o sofrimento de um único membro atinge o corpo todo.
Na expressão ‘Corpo de Cristo’ converge o nascimento de um novo povo de Deus, através
do novo Jacó-Israel Jesus, e a nova criação em dimensões cósmicas, através do Cristo exaltado.
Assim, a diaconia missionária é centrífuga, ou seja, para fora, alcançando todos os povos. Nas
cartas pastorais aparece a questão da organização dos serviços da Igreja.
Só que a pergunta é se a ordem testemunha que os valores da Igreja são radicalmente
inversos aos que vigoram no mundo (...), e se ela protege a liberdade de Deus para
chamar as pessoas que ele quer, mesmo quando contradizem a todas as expectativas
costumeiras.228
c) O modelo Joanino (João 15.1-5) usa a figura da videira e ramos, o novo Israel, usando
a designação de Israel no Antigo Testamento como videira (Salmo 108.9-16). Juntamente com a
figura do pastor-ovelha e da espiga–grãos (João 10.1-30, 12.24), não denota a ajuda mútua entre
os membros (como na figura do corpo em Paulo) e sim a ligação direta com Cristo, sem o qual,
não há frutos. Assim, chega-se ao extremo, de um modo quase chocante, de confiar que o
Espírito Santo é capaz de realizar tudo, desejando-se submissão integral à direção dele, em contra
ponto de uma autoridade ministerial (1 João 2.20,27). Não dispensa a autoridade de um dirigente
(a exemplo do ‘presbítero’ na 2 ª e na 3a carta Joanina), porém essa não é oficialmente instituída,
a exemplo de Pedro em Mateus, e das pessoas ordenadas nas pastorais. O agir do Espírito Santo
228
Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 79.
102
está intimamente ligado à proclamação apostólica ‘desde o princípio’, para que não haja domínio
abusivo de líderes.
A diaconia missionária em João é centrípeta. Baseada no amor fraternal ela cria o modelo
de uma nova sociedade para mostrar ao mundo como deve ser a convivência social a partir de
Jesus.
Isso faz lembrar mais uma vez que, às vezes, são justamente os extremamente
tolhidos que podem ser as melhores testemunhas desse amor e, em decorrência, os
missionários mais importantes (...). Se não esquecermos que isso também é
‘cristianismo de ação’, então fica claro que precisamente João atribui maior
importância à diaconia ´não de palavra nem de língua, mas de fato e de verdade´(1 Jo
3.18), como é atestado de forma física e concreta pelo lava-pés realizado por Jesus
(...).229
2.3.2 - Conclusão sobre a diaconia acolhedora
As comunidades cristãs têm – intrínseco aos seus princípios evangélicos – o potencial de
promover o acolhimento. A dimensão diaconal é para isso fundamental.
O referencial maior, Cristo Diácono – que na sua comensalidade ia ao encontro das
pessoas marginalizadas de seu tempo - caso estivesse fisicamente entre nós hoje, com certeza,
não passaria de largo do desafio diaconal de acolhimento do DSPA e de seus familiares. Ele é o
Bom Samaritano.
O texto clássico do julgamento final ‘a mim o fizestes’, sugere que ele vem ao nosso
encontro de forma visível, não como o bom samaritano, e sim como o ‘caído na sarjeta’.
A pesquisa revelou que não é uma questão de escolha, acolher ou não as pessoas. É
questão de obediência, porque parte da necessidade.
229
Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p. 83.
103
Essa obediência trará tolhimentos saudáveis para todos. Questionará a forma como está
sendo feita a comensalidade em nossos dias, seja na igreja, seja em nossos lares. Proporcionará
um ambiente onde o ‘sentir-se útil’ será uma ferramenta terapêutica para aqueles e aquelas que
vêm de uma caminhada de auto-destruição. Poder existir em favor de outros, passará a ser um
estilo de vida saudável.
2.4 - Por uma práxis acolhedora
Na primeira parte desta pesquisa constatamos que há uma necessidade de acolhimento
aos egressos de instituição de tratamento de DSPA’s e aos seus familiares. As instituições,
especialmente o CERENE, estão num processo contínuo de aperfeiçoamento no que tange ao seu
específico de tratar os indivíduos através do modelo de internação. O limite se encontra na
pergunta do pós-internamento que, se não for adequadamente assistido, põe em risco todo o
esforço dispensado durante a internação. As instituições, especialmente a equipe terapêutica, já
tem muito a fazer durante a internação. O acompanhamento pós exige uma ‘energia’ extra que, se
for conferido pela equipe terapêutica, poderá levar ao estresse, prejudicando o atendimento
interno. Há a necessidade do envolvimento de mais pessoas.
A partir da temática da espiritualidade, como vimos, necessária para o ser humano que é
essencialmente um ser angustiado, podemos perceber que a comunidade cristã tem o conteúdo
espiritual que possa vir ao encontro dos DSPA’s e seus familiares, espiritualidade essa que é
essencialmente integradora. A Diaconia, essencialmente acolhedora, mostra que é uma ordem do
Cristo Diácono para os seus seguidores, e não uma questão de escolha, servir ao próximo.
Os DSPA’s e seus familiares são o próximo da comunidade cristã.
Seguiremos no próximo capítulo pontuando algumas aplicações da espiritualidade
integradora e da diaconia acolhedora que consideramos necessárias para o atendimento aos
DSPA’s e seus familiares. Observaremos também a práxis das comunidades da IECLB da Região
104
da Grande Florianópolis, SC, para, na seqüência, indicarmos algumas ações práticas – e possíveis
– que as comunidades cristãs poderiam estar executando em obediência ao seu Mestre.
105
III – PARÓQUIA DA SOBRIEDADE: O DESAFIO DO ACOLHIMENTO DOS EGRESSOS
DE INSTITUIÇÕES DE INTERNAÇÃO DE DEPENDENTES QUÍMICOS
3.1 - Considerações preliminares
Definido o público formado pelos DSPA’s e seus co-dependentes, apresentado o potencial
terapêutico intrínseco à Comunidade Cristã, pelo seu conteúdo de ensino (espiritualidade) e pela
sua práxis (diaconia), ambos essencialmente integradores e acolhedores, passaremos, nesta
terceira parte da pesquisa, a buscar pela aplicabilidade deste potencial, tendo na Paróquia
Luterana da Sobriedade um referencial empírico.
Para que o acolhimento de egressos e seus familiares ocorra satisfatoriamente,
pontuaremos algumas iniciativas que deveriam surgir nas e a partir das comunidades cristãs e
iniciativas que deveriam surgir a partir das instituições de internação.
3.2 – Em busca da aceitação social
Cury simplifica a complexidade da etiologia da dependência psicológica das SPA’s: 1.
reforço psicológico positivo que é a busca pelo prazer/curiosidade e influência de amigos; 2.
reforço psicossocial que é uma maneira de suportar as aflições; 3. reforço psicológico negativo
106
que é a fuga do desprazer criado pela síndrome de abstinência, quando então a dependência
psicológica fica evidente. Somado a isso, a dependência física de algumas delas, que se
desenvolve através de uma tolerância que o organismo vai adquirindo pela insistência do uso até
que a SPA passa a fazer parte do metabolismo230.
Arnold Schleier231 informou que são basicamente quatro as causas da DSPA:
predisposições hereditárias, traumas da infância, traumas do momento e influência de grupo. É a
soma de duas ou mais dessas tendências que poderão desembocar na DSPA. O medo de não ser
aceito/amado pelo grupo, as dificuldades de relacionamento com a família (gerando insegurança)
e a curiosidade, têm levado muitos adolescentes a experimentar entorpecentes, resultando na
futura provável dependência destas substâncias.
Como vimos, a angústia como conseqüência do medo de não ser amado (perder o grupo,
solidão) ou de morrer (doença), é a principal causa que leva à desumanização do ser humano,
gerando males de todo tipo. Assim, podemos constatar: é a causa primária, somada ou não aos
fatores hereditários, traumas e influências, que pode levar ao uso e abuso de SPA’s.
A ‘busca pela turma’ – um dos fatores expressos também pela maioria dos entrevistados
como uma das causas que levaram a usar a SPA232 - reflete o medo da ‘perda da vida social’, que
é uma forma de ‘morte social’. Na necessidade de ser alguém (sucesso na vida), ser reconhecido,
ter sentimento de pertença, a busca pelo efeito de uma SPA poderá se tornar um paliativo,
anestésico, que levará à ilusão de superar esse medo e a dor de ser visto com indiferença, bem
como as frustrações daí derivadas.
Visto que o fator social está fortemente envolvido na etiologia podemos deduzir que
estará da mesma forma determinando o processo terapêutico.
230
Cf. Augusto KURY, Superando o Cárcere das Emoções, p 94-101.
Psiquiatra e Psicoterapeuta da Alemanha, aposentado, na época residente na cidade de Ijuí, RS. Informações
repassadas no Curso realizado pela Cruz Azul no Brasil para Obreiros das CT`s Filiadas em 1998, na cidade de Ijuí,
RS. Arnold Schleier era o palestrante principal.
232
Pergunta: O que o levou a usar essa substância? Respostas no anexo I, p. 2, 5, 9, 13, 17, 20, 30, 35, 38.
231
107
Sem descartar a importância de todas as ‘frentes’ de convívio social, é foco de nossa
pesquisa, a partir da Teologia Prática, a sociabilidade no convívio eclesiástico. Importa-nos
responder como deveria ser essa inserção.
A abordagem da temática da espiritualidade e da diaconia nos dão subsídios para que
possamos aplicá-los no que tange à inclusão eclesiástica.
3.2.1 - Espiritualidade integradora
Iniciaremos com algumas aplicações a partir da espiritualidade para integrar DSPA’s e
co-dependentes nas comunidades cristãs locais.
3.2.1.1 - Do medo à confiança
Como vimos, o medo não pode ser vencido por atitudes de fuga, entre elas a busca pelos
efeitos das SPA`s.
As quatro formas de medo - esquizoidia, depressão, natureza obsessiva e histeria - estão
presentes na vida de um DSPA e/ou co-dependente. Cada qual com sua tendência predominante.
O programa terapêutico deverá deslumbrar tratamento específico para cada caso. Porém, em
atividades de grupo, dentro da perspectiva de uma espiritualidade terapêutica, poderíamos
sinalizar a importância de levar em consideração atividades que venham ao encontro dessas
formas de medo, seguindo os princípios dos sacramentos propostos por Drewermann:
a) Em relação à esquizoidia é necessário proporcionar o tempo individual do terapeuta,
pessoas que se dispõem ‘andar com’ no processo de abstinência. Exemplos disso são os
terapeutas (psicólogos, pastores, funcionários em geral) que atuam dentro de uma instituição de
108
internação para tratamento (conforme vimos o CERENE), o ‘padrinho’ encontrado no sistema de
acompanhamento dos Alcoólicos Anônimos (A.A.) ou outros grupos de apoio. A experiência tem
mostrado o quanto é importante que o indivíduo em recuperação possa ter uma ou mais pessoas
como referência para contatar na hora de uma crise. Todo programa seja de internação ou de
grupo de apoio, deve estar atento para este acompanhamento individual e organizado.
Também o chamado à fé, o despertar da experiência mística, será importante neste
processo, para incentivar a relação individual com Deus, satisfazendo assim essa necessidade
crucial de sentir-se amado e acolhido pela graça divina.
É significativo que o programa de tratamento do CERENE, como visto acima, tem como
primeiro item o acompanhamento individual, mostrando com isso um dos pilares fundamentais
do mesmo. De igual forma a Paróquia Luterana da Sobriedade, como veremos adiante,
proporciona esse acompanhamento, feito pelo pastor, já durante a internação do indivíduo,
acompanhando no pós-internamento.
Adiante queremos propor a figura do ‘Agente Comunitário em DSPA’ que fará a ponte
entre a instituição de internamento e a comunidade religiosa.
b) Em relação à depressão, é necessário proporcionar momentos de Santa Ceia, que
convida à comunhão e visualiza a realidade do perdão, que deve ser pronunciado por pessoas que
vivem da mesma graça. As refeições de mesa – que oportunizam convivência - também são
significativas nesse processo. O DSPA geralmente carrega muita mágoa, tristeza, bem como
muito remorso em relação a atitudes passadas. A temática do perdão – dar, pedir e receber – é
fundamental e deve ser ensinada através de palestras e colóquios individuais, bem como
promovida em encontros que visam resgatar ou acertar os relacionamentos. Não com enfoque
moralista, mas com ênfase na graça oferecida por Deus e que pode ser repassada adiante. A Santa
Ceia poderá ser um ‘instrumento visualizador’ dessa graça, marcando assim momentos especiais,
como se fosse um “divisor de águas” (entre o antes e o depois). Pois nela está inserida a
comunhão vertical (com Deus) e horizontal (com o próximo).
O co-obreiro teve a iniciativa de incluir no programa terapêutico do CERENE, unidade
de Palhoça, a realização da Santa Ceia, objetivando visualizar a graça estendida de Deus – que é
109
incondicional e é para todos. O momento é realizado pelo pastor da Paróquia Luterana da
Sobriedade e participam do mesmo os terapeutas da instituição e residentes que solicitarem essa
oportunidade. É um momento que marca inclusive emocionalmente aos participantes.
A aplicabilidade da comensalidade, veremos adiante, pergunta sobre como está sendo essa
abertura nas comunidades cristãs.
c) Em relação à natureza obsessiva, é necessário proporcionar momentos de ludoterapia,
tão pouco praticada nas reuniões de apoio para DSPA’s e co-dependentes. Poder rir, expressar
talentos através de esquetes, dinâmicas recreativas de grupo – programas que aliviam o stress, a
ansiedade mostram o quanto a vida é bonita e divertida – de ‘cara limpa’233. Esse lazer saudável,
que promove a vida, poderá ser incentivado também através de dias recreativos. Muitos foram
privados de uma infância saudável. Isso pode ter ocorrido pelo sistema educacional dos adultos
responsáveis ou pela precocidade, exigindo-se atitudes adultas já na infância. Por exemplo,
através da ludoterapia é possível descobrir-se, vencer barreiras de relacionamento, superar a
timidez.
Maurício, participante da Paróquia Luterana da Sobriedade, no final da entrevista sugere
que haja dias comemorativos dentro da Instituição de Tratamento, proporcionando momentos
agradáveis. Está completando um ano de sobriedade (depois de onze anos de DSPA): “e isto tá
me dando uma grande auto-estima”. Para ele, a comemoração junto aos residentes poderia
estimular a estes, mostrando que se “tá dando certo comigo, então pode dar certo para
alguém”234.
d) Em relação à histeria, é necessário proporcionar orientação sexual saudável235.
Articular, em terapia de grupos e em palestras, assuntos do relacionamento com o sexo oposto.
233
Gíria que denota a ausência de uso da SPA, ou seja, a abstinência.
Trecho da entrevista concedida por Maurício (pseudônimo), que se encontra na íntegra no anexo I, p. 37.
235
LEON, tratando da abordagem da sexualidade dentro de uma CT: “Empregam-se grupos terapêuticos e o
aconselhamento individual para facilitar a revelação de históricos sexuais traumáticos e abusivos, bem como de
vulnerabilidade relativas à imagem física, ao desempenho sexual, à beleza e à força; outro objetivo disso é estimular
expressões de medos, ansiedades e expectativas concernente ao comportamento sexual do indivíduo. Ajudam-se os
residentes a compreender de que maneira seu comportamento e suas atitudes sexuais são usados para a sobrevivência
social, a aceitação pessoal, o lidar com as coisas e a manipulação das coisas, bem como as formas pelas quais o uso
de drogas mascara sentimentos não relacionados com as drogas (com freqüência, a culpa, a raiva dos outros, o ódio
de si mesmo, o tédio, a insegurança , etc.), ou, inversamente, eleva (aumenta) sinteticamente sentimentos de potência
ou de desejo”. George De LEON, A Comunidade Terapêutica (Teoria, Modelo e Método), p. 202.
234
110
Na terapia individual, tratar o relacionamento que houve (e há) com a mãe e pai, ajudando o
indivíduo a caminhar em direção a uma vida madura. Percebe-se, com facilidade, que a ‘fuga’ na
DSPA traz, entre tantos outros problemas, um certo bloqueio no desenvolvimento da maturidade
do indivíduo. A grande maioria dos DSPA’s, quando em processo de recuperação, demonstram
um comportamento adolescente236. Independência saudável dos pais deve ser fortemente
incentivada. O “deixar pai e mãe”237 é um processo que deve ser retomado. Também é comum o
cônjuge ser substituto materno ou paterno. Incentivar um relacionamento maduro – de pessoas
adultas – é fundamental para aprimorar o casamento. Em reuniões familiares, os pais e os
cônjuges devem ser orientados a proporcionar essa maturidade aos filhos/as e cônjuges. Um dos
sintomas da co-dependência é a superproteção. Sem que esta seja questionada dificilmente haverá
o desenvolvimento da maturidade, dificultando a sobriedade.
Assim, com uma programação criativa que contemple o acompanhamento individual, a
graça (audível na proclamação da Palavra e visível na Santa Ceia), o lazer recreativo e o
amadurecimento da sexualidade, torna-se possível colaborar para a superação do medo da solidão
e do desamparo.
3.2.1.2 - Da moralidade excludente à espiritualidade integradora
Vemos que a espiritualidade bíblica é integradora. Em contrapartida a DSPA é
excludente. A espiritualidade bem articulada aumenta o potencial terapêutico de um programa de
tratamento. Em um ambiente onde se fala do perdão, da inclusão, do aconchego a Deus e à
irmandade, da auto-estima, é possível adquirir novamente o gosto pela vida.
236
Kury explica que o DSPA desenvolve uma velhice precoce devido as fortes emoções produzidas pelas SPA. Cf.
Augusto KURY, Superando o Cárcere da Emoção, p. 52-53. Isso talvez explica porque quando em processo de
recuperação parece ocorrer um resgate da adolescência e/ou da infância, expressa, entre outros, pela dificuldade de
viver sob regras.
237
Este é um dos princípios básicos para o desenvolvimento de uma maturidade saudável e a constituição de um
relacionamento maduro com alguém do sexo oposto.
111
Porém, também percebemos que a espiritualidade mal articulada, moralista, poderá ser
excludente. Alimentará e promoverá a exclusão já instalada na sociedade e na ‘alma’ do DSPA
que se auto-exclui. Através de um discurso moral, aumenta-se a pressão sobre o indivíduo que já
está saturado de complexos e remorsos, levando-o a constatação de ser um fracassado e inútil.
Esse sentimento tem levado ao uso e abuso de SPA’s. Aumentando esse sentimento negativo,
através de discurso moralista, empurra-se o indivíduo ao aumento do uso da substância, gerando
assim o abuso. Essa é a metodologia da exclusão piedosa que, além de livrar-se do indivíduo,
joga sobre ele toda a culpa.
Somente quem se esvazia de sua pretensa situação de ser melhor (moralmente),
reconhecendo sua pequenez, possuidor do germe da corrupção, é que terá condições de lidar com
pessoas já esvaziadas de si mesmas, de Deus e dos outros. Só quem conhece a graça, pela graça
poderá acolher o que se sente fracassado.
Esses argumentos justificam a necessidade e importância da espiritualidade (não
moralista) no tratamento de DSPA’s. Estes têm uma vantagem em relação aos moralistas, pois
não têm mais “moral” a perder, sendo livres para um relacionamento sincero com Deus,
amadurecendo para uma vida baseada no amor. Talvez seja essa a principal razão que faz com
que um DSPA em abstinência consiga ajudar, com maior facilidade, um outro a entrar em
abstinência. Este fato faz com que os grupos de apoio sejam transparentes, impressionando aos
que participam pela primeira vez238.
Muitos DSPA’s adquiriram um conceito negativo de Deus na mesma medida que
carregam uma experiência negativa com o pai: ausência ou rigidez excessiva. Deus assim
concebido passa a ser aquele que ‘não está nem aí’ ou ‘com o chicote’ na mão cobrando os erros
feitos. Se a igreja acentuar esses conceitos – apregoando moralidade – aumentará o conflito já
existente no indivíduo.
Na articulação de uma espiritualidade bíblica, a pessoa de Jesus Cristo – pelo ensino e
pela prática – poderá nortear o ensinamento da graça e da justificação pela fé. A experiência tem
mostrado o quanto um DSPA se vê acolhido na pessoa de Jesus Cristo. Assim se adquire uma
238
Ficamos impressionados por esse aspecto ao participar em três reuniões de apoio da Paróquia Luterana da
Sobriedade.
112
nova visão sobre Deus: perdoador e acolhedor. A partir dessa nova realidade, encontra-se o
caminho, por exemplo, para perdoar o pai e assumir o papel de pai (quando já há filhos). Assim, a
nova ética é conseqüência desse lugar de abrigo, de amor, confiança e esperança, que é Deus.
Não é fácil articular o assunto da ética para pessoas moralmente esfaceladas. Duas
situações se destacam: os que possuem e os que não possuem referencial adequado, ambos
trazidos do contexto familiar. Por mais que se acentue a graça e a justificação pela fé, é
necessário orientar para uma nova conduta – a exemplo da abstinência – que facilmente poderá
ser interpretada por moralismo. Enfatizamos por isso essa ordem: a partir da graça, do ser
aceito, amado, é possível reestruturar princípios de uma conduta moralmente satisfatória. Assim
a nova conduta moral será (re)aprendida como conseqüência e não como meio para chegar à
Deus. A moral será vista não como meio para ser aceito e amado por Deus e pela sociedade e
sim como meio de preservar e promover a vida.
O círculo vicioso (fig 06) – de uma moral mal orientada – gerador de constante
sentimento de culpa: Rigorosidade moral (para ser aceito) química para aliviar
vergonha/remorso atos de compensação moral Rigorosidade ....239 ajuda a explicar as
constantes recaídas no processo de tratamento de DSPA’s.
Rigorosidade Moral
(não é permitido o menor desvio)
Moral
Atos de
Compensação(moral)
mal-orientada
Substâncias psicoativas
(para aliviar)
Vergonha/Remorso
Sentimento de Culpa
Fig 06
239
“Tomemos por exemplo um alcoólatra, que tende ao abuso e se sente atormentado porque no fundo só pode ficar
com um constante sentimento de culpa. Seu superego é tão rigoroso, tão sádico, que não permite o menor desvio. No
fundo ele abusa do álcool para criar um estado de embotamento mental que atenua em parte o rigor constante, a
permanente observação do superego. Em seguida vem o sentimento de vergonha e remorso sobre as conseqüências
do abuso alcoólico, vem os atos de compensação, recomeça a moralidade com rigor total, formando-se um círculo
vicioso sem escapatória. Seria possível mostrar que a maioria dos chamados vícios ficam girando nesses círculos
viciosos de uma moral mal-orientada [grifo nosso]”. Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p.122.
113
Esse círculo pode refletir o processo de uma dependência psicológica da DSPA. Somado a
esse círculo vicioso, teríamos que acrescentar que o mesmo pode desembocar, conforme a SPA
usada, na dependência de ordem física/orgânica. Nesses casos a fissura não é conseqüência
somente do estado psico-emocional, mas também da necessidade que o organismo passa a ter da
SPA a qual está acostumado a receber240.
Porém fica evidente que tratar o aspecto da dependência física (desintoxicação), sem tratar
esse círculo vicioso, será um tratamento ilusório com resultados apenas temporários. Tratar o
círculo vicioso levará o indivíduo a ter maior probabilidade de controlar-se diante de fissuras.
Não para ter uma moral melhor, mas por passar a gostar de viver. Nas palavras de Drewermann,
referindo-se ao apóstolo Paulo no capítulo 7 de Romanos:
Ele descobre que na realidade ele vive por graça, transcendendo a lei. E isto é o que
se poderia desejar a uma pessoa desse tipo: uma libertação e um livramento moral por
meio de uma confirmação mais profunda, por uma dedicação mais crível. Então ela
fará espontaneamente tudo que a moral dizia antes.241
O relacionamento entre teologia e psicologia é importante neste aspecto: a teologia
ensinará a fé integradora e a psicologia, que não desprezará esse ensino porque verá o valor do
transcendente242. Assim, ambos os terapeutas (pastor/a e psicólogo/a) andarão juntos.
240
Kury trata da temática da dependência psicológica e física. “Nem todas as drogas causam dependência física, mas
todas são capazes de provocar, em diversos graus, a dependência psíquica”. Cf. Augusto KURY, Superando o
Cárcere da Emoção, p. 93-101 (citação p. 95).
241
Eugen DREWERMANN, Religião para quê?, p. 122-123.
242
Só será possível um diálogo interdisciplinar entre teologia e psicologia quando ambas valorizarem o específico de
cada uma: a importância da espiritualidade que integra o ser humano com Deus e com o próximo e a importância da
estrutura psicológica do ser humano, respondendo aos seus medos. A tendência atéia da psicologia tem impedido
esta de dar respostas às angústias humanas e a tendência racionalista da teologia tem trancafiado o sacerdote nos
escritórios, deixando de atender aos desesperados. Assim, se a psicologia considerar também o transcendente e a
teologia aprender com o ferramental da psicologia – ambas, de mãos dadas – atenderão à demanda humana. Marcou
ao co-obreiro uma fala de um residente, um senhor da terceira idade, que por muitos anos estava no processo de
busca por recuperação de sua DSPA, que afirmava o seguinte conteúdo: ‘Fazem apenas dois meses que estou aqui no
CERENE ouvindo o Evangelho de Jesus Cristo, e já estou me encontrando. Eu tenho que avisar a minha filha que
está se formando em psicologia que se ela não ‘trabalhar’ com o Evangelho de Jesus ela não vai conseguir ajudar as
pessoas’ [citação livre – de memória].
114
3.2.1.3 - Meditação bíblica
A meditação bíblica é uma ferramenta terapêutica imprescindível. Isso bem o mostra a
fala dos entrevistados em relação à espiritualidade e à palavra de Deus243.
Queremos apontar para a necessidade de a chave hermenêutica ser existencial. Visto que o
DSPA em recuperação e o co-dependente estão envolvidos em questões profundamente
existenciais, ao ouvirem uma reflexão e/ou lerem um texto bíblico, a pergunta imediata é: o que
isso tem a ver com o meu atual estado?
É muito forte a tendência de se fazer uma leitura alegorizada, devendo-se evitar os abusos,
especialmente de ordem moralista. Informações básicas sobre os costumes da época bíblica
ajudam a evitar abusos de interpretação. A Bíblia que o DSPA e o co-dependente buscam é
aquela que fala para o seu dia a dia. Visto que o residente passa um bom tempo no processo de
internação, é mister que o mesmo seja ensinado a ‘ler’ a Bíblia, caso assim o queira, para que
essa não se transforme numa ‘fuga’ da realidade.
Eberhard Russ244, ex-diretor da unidade do CERENE de Palhoça, costumava dizer que o
residente pode se ‘esconder’ em dois lugares: na laborterapia ou na Bíblia. Na laborterapia
quando, através de uma dedicação admirável, tenta mostrar que afinal ‘é gente boa’, uma
tentativa desesperada de mostrar que tem valor. Na Bíblia, através de uma linguagem
espiritualizada, tenta mostrar e convencer a todos que agora ‘se tornou confiável’ porque agora
Deus é levado a sério.
243
Esta é uma das constatações à qual também HILDERBRANDT chega, através das falas de seus entrevistados,
residentes do CERENE, bem como de familiares, que estavam no processo de reinserção social. Viu-se obrigado a
incluir a temática da espiritualidade pelo fato desta estar muito evidente nas falas dos entrevistados. Cf. Mário
HILDERBRANDT, A Reinserção Social do Dependente Químico após o Tratamento em Comunidades terapêuticas:
O caso do CERENE de Blumenau/SC, p. 87-91. Nas entrevistas que fizemos aos residentes, perguntamos: Qual a
importância da religião, da palavra de Deus, no seu tratamento no CERENE? As respostas se encontram no anexo I,
p. 4, 7, 10, 15, 19, 21. As mães entrevistadas perguntamos pela importância da espiritualidade. As respostas se
encontram no anexo I, p. 24, 26, 29.
244
Russ veio enviado ao Brasil com a missão de iniciar a unidade do CERENE de Palhoça. O co-obreiro teve a
oportunidade de aprender muito com ele, numa convivência de cinco anos. Atualmente Russ reside na Alemanha,
onde trabalha também numa Instituição de Tratamento de DSPA’s.
115
A presença do ensino bíblico responsável é fundamental numa instituição que conta
basicamente com a motivação do indivíduo para que o tratamento venha a ser consistente. Como
costumava dizer Alair Scheidt, ex-diretor da unidade do CERENE de Blumenau: Tirem a Bíblia
do CERENE e nem com cinqüenta homens armados se conseguirá o ambiente terapêutico e
seguro que temos.
Conscientes do perigo do abuso (ou mau-uso) da Bíblia, pode-se buscar pelo uso correto.
O abuso, também nesta questão, não justifica o desuso. O uso correto aponta para a graça e traz
subsídio para a reestruturação da vida. Esse uso é significativo e perceptível na unidade do
CERENE de Palhoça que tem obreiros com formação acadêmica suficiente para tal. Inclusive a
figura do teólogo, que muito contribui para isto245.
3.2.2 - Acolhimento diaconal
Queremos fazer aplicações para o acolhimento diaconal de DSPA’s e de co-dependentes
nas comunidades cristãs locais.
3.2.2.1 - A necessidade de pessoas que se envolvam
Num primeiro momento, o DSPA precisa de um ‘novo ambiente’ que lhe ajude no início e
continuidade do tratamento.
Esse início acontece, no caso dos egressos, quando enviados ao internamento. Alguém lhe
deu atenção para que pudesse iniciar o processo de tratamento. Dos residentes, Osmar chegou à
245
Como vimos anteriormente, a hermenêutica bíblica que mais contribuições traz para um programa terapêutico é
aquela que responde às questões existenciais. Drewermann aponta para uma hermenêutica com o viés da psicanálise.
As entidades CERENE e Paróquia Luterana da Sobriedade apontam para uma hermenêutica com característica mais
evangelical, que mostra a realidade humana do ser pecaminoso e enfatizam a graça de Deus. Aliás, parece-nos que é
a “graça de Deus” a chave hermenêutica – o ponto comum - para as articulações existencialistas.
116
atual internação através da irmã; Rogério pela esposa, mãe e tio; Ivo, pela ex-esposa; Romeu,
através de um agente da campanha CELESC246; Egon, por já conhecer o CERENE, veio por
conta própria; Gerson foi ajudado por um amigo.
Percebemos que sempre há pessoas envolvidas num processo de internação. Mesmo os
que procuram sozinhos por uma internação, envolvem nesses casos, a assistência social, um líder
da igreja, a brigada militar, um político etc., ou vão direto na instituição e recebem uma boa
acolhida necessária para ‘estarem aí’.
Não há tratamento sem que alguém se envolva diretamente com a questão. A obviedade
desta constatação não nos exime de perguntar: quem são os que se envolvem? Como vimos,
geralmente os familiares, muitas vezes já cansados de tantos reveses. E quando esses não ‘estão
mais nem aí’, pessoas envolvidas com instituições cumprem o seu papel.
O que não parece tão óbvio para compreender é o pós-internamento. Aí também são
necessárias pessoas que se envolvam, como bem afirmaram os entrevistados. E a comunidade
cristã tem um potencial peculiar a ela de realizar essa função de acolhimento.
Essa função só será realidade se forem praticadas as conclusões exegéticas que vimos a
partir de Gaede Neto: A cruz é o caminho que Deus anda para encontrar as pessoas colocadas nos
últimos lugares deste mundo (a), a opção de Jesus é pelos excluídos do modelo vigente de
sociedade (d), propondo um contra-modelo à sociedade que vitima seus membros: ‘entre vós não
é assim’(c). Quem sabe ter sido resgatado por Deus, há de resgatar a outros (e) e isso será feito
com soluções práticas e não espiritualizantes (b).
Ou seja, envolver-se nos coloca no e ao mesmo tempo promove o caminho da cruz,
impõe-nos a opção pelos excluídos, proporciona um novo modelo social que resgata o outro com
ações práticas e não apenas espiritualizantes. Em relação a essas ações, elencamos algumas
sugestões adiante.
246
Central Elétrica de Santa Catarina – trata-se de uma campanha em que o consumidor pode fazer uma doação
mensal através da fatura de energia elétrica. Essa campanha tem sido feita de casa em casa, muitas vezes
oportunizando esse contato direto com quem precisa da internação.
117
3.2.2.2 - Suprindo o vazio relacional
O DSPA carrega, muito semelhante aos ‘publicanos e pecadores’, o estigma do
preconceito e da exclusão. Isso porque ainda é forte o conceito moral sobre o problema da
dependência química, em detrimento do conceito de doença. Somado a isso, sob o efeito da
química, o DSPA faz coisas que causam repulsas e ‘má fama’ diante da sociedade em que vive.
O rompimento da relação com a SPA leva também ao rompimento de relacionamentos
com pessoas usuárias da substância, sendo que atinge quase que a totalidade de relacionamentos
da maioria dos DSPA’s. Surge assim um vazio relacional. A construção de novas relações se dá
de forma gradativa. Ela inicia na instituição de tratamento, porém é interrompida com o término
do mesmo. Essas relações construídas durante a internação servem basicamente de ‘treinamento’
para as habilidades relacionais. Assim, a ansiedade pós-internamento é gerada basicamente pela
falta da SPA e pela falta de ‘amigos’.
Para que a ansiedade não fique acima de um limite satisfatório, é importante que pessoas
venham ao encontro do DSPA em abstinência. Pessoas que entendam as lutas enfrentadas nesse
processo e que colaborem positivamente com atenção, convívio, apoio etc, inclusive em casos de
precariedade material que o DSPA e sua família passam (pois estão num novo começo) –
tornando-se ação diaconal bem concreta.
A organização de programas específicos que dão suporte para o DSPA – a exemplo de
grupos de apoio – será fundamental nesse acolhimento. Nas palavras de Lorenz, que define
diaconia como o amor ao próximo organizado e praticado pela comunidade, levando uma vida
tão digna quanto possível às pessoas, da relação curada com Deus à superação de toda a
necessidade247, decisivo é:
“ver onde há necessidade ou aflição na comunidade, onde se pode auxiliar
razoavelmente através da mobilização de algumas pessoas ou de toda a comunidade
eclesial (...) Onde estão as pessoas solitárias, desempregadas, desnorteadas pela
idade, as famílias com alcoolistas, os pais/mães solteiros/as? Talvez também só
247
Cf. Heinz LORENZ, Comunidade Diaconal?, p. 292.
118
precise ser disponibilizado um espaço para um grupo de auto-ajuda de pessoas
operadas de câncer![grifo do autor].248
Dos textos clássicos sobre diaconia, apontados por Gaede Neto, do texto sobre o
julgamento final (Mateus 25.31-46) e do lava-pés (João 13.1-35), queremos salientar que a
diaconia em relação aos egressos de instituição de tratamento de DSPA’s, não é uma questão de
escolha da comunidade, ou fruto da bondade da mesma. É questão de necessidade! Essa questão
fica claramente enfatizada no artigo de Morais, quando afirma:
Ora, se as drogas tornaram-se onipresente, passaram a ser um problema de toda a
sociedade. Todas as frentes educacionais e todas as frentes terapêuticas, bem como
todas as atividades religiosas têm que dimensionar adequadamente o megaproblema que ameaça as gerações e pôr mãos à obra [itálico do autor, negrito nosso].249
A parábola do bom samaritano (Lucas 10.25-37) levanta a pergunta: de quem sou eu o
próximo? Brakemeier responde:
A resposta depende do grau de necessidade da outra pessoa. O samaritano descobriuse a si mesmo como próximo do homem assaltado, ferido, jogado na sarjeta. A causa
são os olhos que lhe foram abertos pelo amor. Sem amor não se enxerga sofrimento e
culpam-se os outros. (...) Próxima é a pessoa que precisa de mim.250
Os DSPA’s e seus familiares precisam das comunidades cristãs.
3.2.2.3 - Comensalidade como ação concreta
É na comensalidade de Jesus que encontramos um paradigma de ação concreta.
O aspecto da inclusão na comensalidade faz com que ela seja terapêutica. Por exemplo,
numa instituição de internação, quando os obreiros fazem sua alimentação junto com os
residentes, eles estão comunicando o valor dos mesmos. Sentar-se junto à mesma mesa,
248
Id., Ibid., p. 293.
J. F. Regis de MORAIS, Drogadicção: um mega-problema atual, p. 25.
250
Gottfried BRAKEMEIER, Por que ser cristão? p. 95.
249
119
compartilhar do mesmo suco, do mesmo alimento, da mesma fala, oportuniza uma clara
comunicação de amor ao próximo. Quando o contrário acontece, ou seja, uma mesa ‘especial’
para os obreiros, então está dividida a instituição em duas classes de pessoas.
O mesmo acontece na comunidade cristã, quando se celebra a Ceia do Senhor. A
experiência tem mostrado que um grande número de DSPA’s, ao ingerir uma pequena dose de
bebida alcoólica (seja destilada ou fermentada), desperta uma fissura muito grande. Assim sendo,
a presença do vinho na Ceia é uma ameaça à abstinência do DSPA251. Devido a isso, muitas
comunidades – solidárias – aderiram ao uso de suco de uva. Neste aspecto se encontra uma
expressão concreta de amor. Previne-se à recaída. Propõe-se a abstinência.
Por outro lado há comunidades que ainda não se conscientizaram de tal necessidade.
Outras menos dispostas a ‘abrirem mão’ do direito ao vinho, fazem no final ‘uma rodada’ com
suco de uva. Talvez não haja maneira melhor de excluir alguém da comunhão.
E o que falar das igrejas (tradicionais?) que ainda vendem bebidas alcoólicas em seus
eventos festivos e confraternizações? Onde a ‘comunhão de mesa’ (almoços e jantares) é regada
a bebida alcoólica. Talvez desconheçam a problemática do alcoolismo. Especialmente o quanto
está atingindo os adolescentes. O rito da confirmação/crisma serve como que uma autorização
para a ingestão alcoólica. Assim, a igreja que deveria prevenir, acima de tudo pelo seu exemplo,
e/ou ajudar os já atingidos pela problemática, além de omissa, patrocina a cultura do alcoolismo,
que tem na normalidade da ingestão de bebida alcoólica sua bandeira.
Indícios de mudança – graças a Deus – já estão ocorrendo. Exemplo disso são, como
veremos adiante - as paróquias da IECLB da grande Florianópolis que formaram a Paróquia
Luterana da Sobriedade que além de ações concretas de ajuda a DSPA’s, leva às suas
comunidades a consciência de promoverem a abstinência, especialmente em seus eventos.
Também a Igreja Católica Romana na região de Jaraguá do Sul, SC, através do trabalho da
Pastoral da Sobriedade, organizada por uma comissão clerical e apoiada pelo Bispo Dom Orlando
251
Essa foi a observação de Luis Lucien Rochat, fundador do movimento Cruz Azul, na Suíça, em 1887, quando ele
começou a promover a abstinência na igreja (inclusive substituindo o vinho da Santa Ceia por suco de uva) – 27
pessoas decidiram assinar esse compromisso. Informação concedida pela secretaria da Cruz Azul no Brasil, e-mail
cruzazul@cruzazul.org.br.
120
Brandes, determinou que a partir de 2005, não serão mais comercializadas bebidas alcoólicas em
seus eventos252.
Com isso percebemos que incluir significa também (re)questionar práticas e modelos de
vida, bem como modelos de vivência comunitária.
Também, como voz profética – dimensão relevante da diaconia253 - promoverá um
movimento contra a ‘cultura do alcoolismo’, tornando, em primeiro lugar, ‘novo modelo’ e na
seqüência prevenindo e ajudando os feridos por essa cultura.
Constatamos que a comunidade que tem (ou procura ter) a ‘dimensão diaconal’254 bem
clara em sua estrutura e visão perceberá a importância de acolher aos que são atingidos pelas
SPA’s . Ou seja, perceberá a importância de acolher aos DSPA’s e seus familiares, buscando
proporcionar uma relação curada com Deus (Espiritualidade), preencher a necessidade básica de
relacionamentos saudáveis, gerando sentimento de pertença para aqueles e aquelas que vem de
uma situação de rejeição social muito grande e proporcionar o básico de uma vida digna também
nas questões corporais/materiais.
Noé, ao tratar algumas idéias introdutórias ao conceito de comunidade terapêutica
(pensando fundamentalmente na comunidade cristã), sugere algumas teses importantes para essa
definição. Entre elas – a tese “d” - destaca a importância da diaconia:
A comunidade é terapêutica, na medida em que possui um caráter diaconal, ou seja,
de serviço. Esse caráter é vivido dentro do contexto da própria comunidade, onde um
auxilia e cuida do outro. Ele também é vivido para além dos contornos da
comunidade, em relação a pessoas e grupos à sua margem[grifo nosso].255
252
A diferença básica das duas estruturas eclesiásticas está no fato de que a primeira constitui-se de uma democracia
em que a conscientização deve ser articulada e não imposta, como no caso da segunda. Porém isso não diminui o
mérito de promover a conscientização em ambas.
253
Apontada por Gaede Neto, juntamente com a dimensão prática e comunitária. Cf. Rodolfo GAEDE NETO, A
diaconia de Jesus, p. 43.
254
Expressão usada por Lorenz em uma de suas teses. Cf. Heinz LORENZ, Comunidade Diaconal?, p. 289.
255
Sidnei Vilmar NOÉ, Idéias Introdutórias ao Conceito Comunidade Terapêutica, p. 11.
121
3.2.2.4 - Existir em favor dos outros
O tolhimento de Jesus, conforme aponta Schweizer, é paradigma da diaconia da
comunidade cristã. Quem se envolve na ajuda aos DSPA’s ou aos seus familiares (codependentes), perceberá o quanto esse envolvimento tolhe a pessoa em seu tempo e em suas
prioridades. É necessária, acima de tudo, dedicação: ‘existir em favor dos outros’. O tolhimento
fica maior quanto menos pessoas se envolvem nessa área. Talvez a recíproca também seja
verdadeira: quanto mais pessoas se envolverem, o tolhimento será menor. Ou, se não for menor,
mais pessoas serão ajudadas.
Talvez a conscientização apontada por Schweizer de que a
diaconia é incumbência de cada fiel256, ou, nas palavras de Nordstokke, “diaconia geral de todos
os crentes”, fará com que mais pessoas se envolvam concretamente neste ministério. Segundo
Nordstokke, a diaconia geral não dispensa a organização “da diaconia no sentido específico,
designando aquilo que a comunidade ou a Igreja organiza para realizar o seu mandato
diaconal”257.
Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo de Mateus, que
destaca o ensino dos mandamentos em Pedro, sendo o mandamento do amor ao próximo tão
importante quanto o amor a Deus, temos aqui um aspecto terapêutico importantíssimo no
acolhimento de egressos da internação. O DSPA sabe se é amado/valorizado. O ensino que cuida
de uma ética que conserva a vida, promovida pelo amor, é fundamental em todo o processo
terapêutico. Trata-se de novo aprendizado para a vida. Esse aprendizado começa na internação,
através da simulação de uma sociedade menor, e continua após. A diaconia missionária leva o
DSPA a ser amado e a amar o seu próximo. As instituições de internação constituem-se assim em
um braço diaconal da igreja.
Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo Joanino, na figura
da videira e ramos, enfatiza-se o aspecto da espiritualidade, ou seja, da relação curada com Deus
que é a ‘seiva’ que mantêm a vida. A comunidade passa a ser um novo modelo de sociedade a ser
seguido por aqueles e aquelas que estão desprovidos e desprovidas de uma vida social, da qual
256
257
Cf. Eduard SCHWEIZER, A Estrutura Diaconal da Comunidade do Novo Testamento, p.71.
Kjell NORDSTOKKE, Diaconia, p. 281.
122
abriram mão ao aderirem a SPA. Ao mesmo tempo em que passa a ser esse novo modelo, oferece
a nova sociedade, ou seja, a si mesma, baseada no amor fraternal.
Na fraternidade de irmãos e irmãs para o mundo, seguindo o modelo Paulino, saber-se
parte integrante de um corpo, de um grupo, promovendo o sentimento de pertença, fica evidente a
caracterização de uma inclusão significativa para o restabelecimento da dignidade humana. A
diaconia missionária cria espaço para todos, não excluindo e sim inserindo no corpo de Cristo.
Alivia-se, dessa maneira, o vazio relacional na vida de um egresso da internação.
As palavras de Monich, sobre o papel do corpo de Cristo no tratamento de alcoolismo
(lemos: DSPA), são conclusivas:
O tratamento do alcoolismo não é o resultado de uma comiseração dos sãos pelos
doentes, do forte pelo fraco, do apto pelo sem condições. Antes, é a atitude humilde
de um povo conscientizado por Deus de sua responsabilidade social e diaconal. Aqui,
mais uma vez, a figura do corpo como o ser Igreja é significativa. Não é o alcoolista
quem está doente, mas o corpo está doente. Não é admissível um tratamento
mecanicista, fragmentado e unilateral, o corpo precisa de ajuda para voltar a
equilibrar seu estado de saúde. Deus, mais do que um pai condoído com a situação do
alcoolista, é o Deus da salvação que, em Cristo Jesus, nos chamou para uma vida
comunitária que assume seus erros sociais e os corrige por amor ao seu Deus e por
amor ao Corpo de Cristo, do qual todos fazemos parte.258
3.2.2.5 - O resgatado resgata
Queremos retomar um aspecto que achamos ser fundamental nas conclusões de Gaede
Neto:
Só quem aceita, de mãos vazias (passivamente), ser resgatado qual escravo e escrava,
qual presa impotente nas mãos do poder do pecado de querer ser igual a Deus (de
querer ter poder sobre as outras pessoas), essa pessoa está verdadeiramente liberta
para se colocar a serviço do resgate de outras pessoas escravizadas.259
258
259
Alexandre Ari MONICH, Considerações teológicas, p. 39.
Rodolfo GAEDE NETO, A diaconia de Jesus, p. 84.
123
Encontramos aqui um aspecto terapêutico fundamental para o acolhimento de egressos da
internação: A diaconia não só no aspecto da comunidade que serve, mas como aspecto
terapêutico do indivíduo que assume esta postura de vida.
Retomando a figura da escada, somente quem sabe estar na base da escada, vivendo pela
graça de Deus, é que pode resgatar a outros em condições semelhantes.
A experiência tem mostrado que a grande maioria do DSPA’s que se mantêm abstinentes
são os que se envolvem concretamente nas atividades terapêuticas, seja em grupos de apoio, seja
em instituições de tratamento, seja na igreja.
Encontramos na diaconia não só uma dimensão para o ser Igreja – acolhedora - mas
também um princípio terapêutico para o indivíduo que serve: o sentir-se útil.
No processo de ‘servir’ proporciona-se construir novos relacionamentos, a ocupação
saudável do tempo e do pensamento que ficará voltado aos afazeres, a oração passa a ser
estimulada e o olhar volta-se para o próximo. Assim tem-se um efeito bumerangue: o servir ao
próximo é retornado com a bênção de viver sobriamente260.
Esse aspecto fica refletido fortemente na entrevista261 feita com Otto, participante da
Paróquia Luterana da Sobriedade, que demonstra muita alegria e disposição em ajudar outros,
encaminhando para internação, providenciando cestas básicas para famílias necessitadas etc.
Com 57 anos de idade, iniciou com maconha por volta dos 8 anos e antes de sua atual abstinência
usava simultaneamente álcool (2 litros/dia de vodka) e cocaína. Conta atualmente com 10 anos de
abstinência, possível, segundo ele, pela participação no grupo de apoio e na igreja. Talvez ele
próprio não perceba que a sua disposição em servir ao próximo o mantêm ativo e participativo
nestas atividades, promovendo-lhe e mantendo a sua sobriedade.
260
261
Conforme rodapé 66, o já citado 12 º passo do A.A.
Conforme anexo I, p. 38-39.
124
3.2.3 - Para que uma instituição não se volte para si mesma
Todo serviço, ao ser organizado rotineiramente, passa a ser institucionalizado, correndo o
risco de se tornar um fim em si mesmo. Conscientizar-se desse perigo é o primeiro passo para
não ceder ao mesmo. O alvo de todo serviço prestado deveria ser a pessoa, o indivíduo. Esse
alerta, como vimos a partir de Drewermann, é necessário devido a tendência, visto por exemplo
na história da igreja, da supervalorização de instituições em detrimento das pessoas.
As instituições de internamento parecem, num primeiro momento, não correrem tanto
esse risco de voltarem-se a si mesmas. Porém uma análise mais detalhada poderá alertar para o
perigo de, por exemplo, questões administrativas (importantes e cada vez mais exigidas pelo
poder público)262 tornarem-se mais relevantes do que o terapêutico; questões financeiras (a
necessidade de subsistência da instituição) causarem um stress no grupo de atendimento a ponto
dos residentes ficarem em segundo plano; o regulamento de internação poderá valer mais que um
residente (o sábado mais que o homem)263 etc.
A instituição igreja, em sua longa caminhada histórica tem, muitas vezes, esquecido de
socorrer aos que sofrem. Tornou-se como um clube de associados que parecem serem
inatingíveis pelos problemas dos seres humanos. Isso explica porque é dado tão pouco apoio na
recuperação de DSPA’s. Felizmente esse cenário parece estar mudando gradativamente, a
exemplo de espaços cedidos para grupos de Alcoólicos Anônimos, Al-anon, Narcóticos
Anônimos, Cruz Azul, entre outros. Porém são apenas espaços cedidos. Ideal seria que a
comunidade estivesse envolvida nesse apoio, a exemplo do Amor Exigente (com presença mais
262
A partir da Resolução – RDC n º 101, de 30 de maio de 2001 D.O de 31/5/2001 da ANVISA questões
administrativas importantes e necessárias são impostas pelo setor público. A própria resolução previne o risco, de se
perder de vista o aspecto terapêutico, impondo o quadro mínimo de terapeutas e funcionários na instituição. Cf.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD. Ministério da Saúde. Agência
Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Exigências mínimas para funcionamento de serviços de atenção a
pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas. Brasília : SENAD/ANVISA, p.
87.
263
Cf. Mateus 2.27.
125
forte na igreja Católica Romana), Cruz Azul (em muitas igrejas Evangélicas), e iniciativas locais
de algumas comunidades264.
O acolhimento na comunidade cristã é necessário porque a participação no grupo de apoio
tem se mostrada temporária. O DSPA e o co-dependente devem ser incentivados à participação
eclesiástica, e acolhidos para tal, porque chegará o dia em que deixarão o grupo de apoio e, caso
não desenvolverem a integração comunitária eclesiástica, ficarão sozinhos novamente. Essa
solidão poderá ser o princípio de uma recaída.
Os princípios espirituais vistos acima - que atendem à demanda por uma espiritualidade
integradora, promotora da superação das angústias existenciais, através da meditação bíblica com
a ótica da graça de Deus, quebrando o círculo vicioso de uma moral mal fundamentada,
integrando as pessoas marginalizadas – mantêm o serviço, mesmo que institucionalizado, voltado
para as pessoas.
Os princípios diaconais – que clamam pelo envolvimento de pessoas dispostas a servirem
e envolverem-se através da comensalidade concreta – faz com que o existir através dos outros se
torne um princípio terapêutico para o indivíduo que sofre e terapêutico para a instituição quando
essa estagna em si mesma.
A institucionalização dos serviços é uma necessidade por questões organizacionais para
atender à demanda da problemática da DSPA. Isso mostra, por exemplo, a entidade CERENE que
vimos na primeira parte desta pesquisa: organizada e atuante. O CERENE desenvolveu
estruturas físicas necessárias para a realização do internamento, bem como o programa
terapêutico, suas atividades diárias e seu regulamento, necessários para se ter um modelo de
caminhada de desintoxicação e aprendizado de um novo estilo de vida.
Perguntamos
pela
necessidade
de
institucionalizar
a
demanda
pelo
acolhimento/acompanhamento pós-internação. Ou, dentro da instituição igreja, organizar esse
acolhimento.
264
A exemplo do GAMA – Grupo mãos Amigas, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana de Jaraguá do Sul, SC.
Promovem e mantêm um fórum virtual para comunicação e informações diversas sobre a DSPA
(forumbrasilantidroga@grupos.com.br).
126
Essa pergunta surge através da expectativa demonstrada pelos residentes e terapeutas
entrevistados no CERENE e pelos participantes da Paróquia Luterana da Sobriedade e seu
respectivo Pároco.
a) A expectativa dos residentes é expressa com diferentes ênfases. Egon, parte do
princípio da necessidade de mudar sua vida social e espera ser acolhido:
Bom, eu vou entrar numa sociedade diferente agora do meu estilo de vida né, eu vou
procurar (...) outros caminhos, porque o caminho que eu tava seguindo não dava certo
né, então eu espero que eles me acolham, que saibam me entender.265
Gerson, que já se sentiu excluído devido ao seu envolvimento com as SPA’s, sugere que a
comunidade deveria buscar mais as pessoas:
Buscando (...) ou abrindo um espaço pra participação da pessoa nos grupos (...) nos
estudos bíblicos e participar mais ativamente da igreja, porque praticamente eu me
sinto assim, hoje não tanto, mas já me sentia muito excluído por causa da minha
adicção, por causa do meu problema (...) ou talvez até buscar mais as pessoas, porque
a gente fica inibido de buscar, porque em parte a gente se sente rejeitado, (...) fazendo
alguma coisa para se manter ocupado, eu acho que dessa maneira ela poderia
contribuir bastante.266
Ivo, compartilha a experiência de não ter levado a sua participação muito a sério, porém
atualmente enfatiza sua importância descrevendo-a como um lugar para ser acolhido:
(...) eu antes ia na igreja porque, para mostrar pros outros que eu estava indo sabe, eu
acho que se eu tivesse feito diferente eu taria em pé até hoje. Deus, igreja, é muito
importante (...). O pastor, ele tá aí para compartilhar os problema com você né, eu
acho que se você se torna membro duma igreja aí você vai ter um suporte muito forte
né, um amparo né, na hora de uma dificuldade, na hora de desespero ou até mesmo
alguma palavra né, carinho, eu vejo a igreja assim, a pessoa tem que freqüentar a
igreja (...) é o melhor lugar pra se freqüentar, estar se abrindo, expondo os seus
problemas né, é fundamental, pra pessoa que tá aqui hoje ela tem que ter em mente
que tem que ir na igreja, tem que buscar a Deus em todos os momentos, senão não
adianta.267
265
Trecho da entrevista concedida por Egon (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 4.
Trecho da entrevista concedida por Gerson (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 7.
267
Trecho da entrevista concedida por Ivo (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 11.
266
127
Rogério chama para si a responsabilidade: “acho que vai mais é de mim isso aí”268 e
Osmar, demonstra-se otimista quando às ‘descobertas’ com a nova igreja, “Eu creio que na
[nome da Igreja] eu não vou adquirir nada, mas se eu partir para uma igreja como a (...), eu creio
que eu vou absorver coisas muito mais importantes do que na [...]”269.
Romeu espera ser ajudado sem bajulações, “Eu espero ser ajudado né, não ficar passando
a mão na cabeça, mas apoiar, apoiar os meus planos, apoiar a minha vida, a minha espiritualidade
tá cada dia crescendo mais, acho que é isso”270.
b) As expectativas dos participantes271 da Paróquia da Sobriedade. Pedro aprendeu a lidar
com as frustrações conseqüentes de uma expectativa que esperava a perfeição das pessoas na
igreja:
Olha a igreja pode me ajudar 100%, quase 100%,(...) não que seja perfeito lá, eu tinha
essa idéia sabe,(...), hoje eu me frustro muito com a igreja assim, não de uma coisa eu
não vou mais porque é isso, isso e aquilo, não, mas hoje eu tento entrar mais na
realidade de que eu vou na igreja as vezes lá tem um gurizão que trocou de namorada
fazem três meses (...), o pessoal aperta na tua mão (...) e logo em seguida (...) vai lá
pegar um instrumento e tal e tu fica meio que assim [posição de
introvertido/estático].272
Maurício destaca a importância dos grupos de jovens, sua realidade, desejando mais
diálogo:
Eu vejo que a igreja pode me ajudar (...) o grupo de jovens estar sendo mais
acolhedores e de repente eles tarem se comunicando com a gente né, e a gente
desenvolvendo o hábito de estar se comunicando com eles né, algo desse tipo.273
Otto se empenha muito para incentivar – inclusive proporcionando caronas – a
participação de todos aqueles e aquelas que ele tenta ajudar:
268
Trecho da entrevista concedida por Rogério (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 19.
Trecho da entrevista concedida por Osmar (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 16.
270
Trecho da entrevista concedida por Romeu (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 21.
271
Adiante apresentaremos os participantes entrevistados e veremos mais sobre a situação que levou as mães a
freqüentarem os grupos de apoio.
272
Trecho da entrevista concedida por Pedro (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 33.
273
Trecho da entrevista concedida por Maurício (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 36.
269
128
Olha (...) eu levo, tento trazer aqui para o grupo, a família, tá vindo, eu mesmo com
meu carro levo em casa e trago elas, (...) quando é jovem eu tento passar para o grupo
de jovens de sábado, (...) tem dado cesta básica aí a gente tem, uma cesta básica que
os irmãos tem dado todo final de semana, mês, cada um traz um pouquinho, para
incentivar tenho tentado arrumar serviço, peço na igreja, peço para o P. Sérgio, para o
P. Nelson, então é assim.
Aponta para a importância da participação e do perigo de não participar:
[após citar um exemplo de alguém que não quer participar] porque quando a pessoa
diz que saiu de um internamento e ‘tô seguro não preciso a igreja’, amigo, o cupim
vai cair na cabeça (...) a minha bateria é essa daqui, (...) porque se não se agarrar com
isso aqui na reunião quinta-feira de apoio, não tem esse não tem aquele, volta todos
eles [referência à recaída].274
Também as três mães entrevistadas demonstraram suas opiniões: Daniele demonstra uma
saudável consciência da imperfeição das pessoas na comunidade cristã:
Primeiramente a gente iria dizer tem tudo, é com ela que a gente pode contar. Mas,
considerando que as pessoas que fazem parte da igreja também são pessoas que,
podem não ter dependência de uma química mas tem suas condições que tá
precisando ser tratadas também. Então nem todo mundo nos acolhe, nem todo mundo
compreende isso.
Sobre seu filho, teme pelo estigma:
(...) meu filho (...) fez a paz com Deus, espontaneamente, então ele tem dito que
quando sair quer ir no grupo de apoio e quer voltar para a igreja, e eu tô numa outra
igreja que ele não conhece ainda então fica difícil, tô pensando assim: que bom é uma
igreja que tem um atendimento legal pra jovens, mas ao mesmo tempo eu tenho um
certo receio de como ele vai, vai ser aceito, se não tem uma estigmatização ou coisa
assim, então por isso eu não tenho aberto muito, que ele tá lá etc e tal (...).275
Matilde – empolgada com o atendimento recebido pela Paróquia Luterana da Sobriedade
– vê que a falha está naqueles que precisam e não buscam:
Olha (...). Eu tenho a impressão que não é a igreja que tá falhando, quem tá falhando
é quem precisa, eu, na minha opinião, porque a única coisa que tá faltando na igreja
fazer é o pastor ir todo domingo almoçar na minha casa e ficar conversando, dando
colinho pro meu filho e passando a mão na cabeça dele, e essa coisa toda, porque a
274
275
Trechos da entrevista concedida por Otto (pseudônimo) que se encontram na íntegra no anexo I, p. 39-40.
Trechos da entrevista concedida por Daniele (pseudônimo) que se encontram na íntegra no anexo I, p. 23.
129
igreja participa muito através da comunidade, dos participantes, dos luteranos, que
são as pessoas que são da religião há anos, né, das pessoas que fazem esse tipo de
trabalho de auxílio, essa coisa toda, (...).276
Marta destaca a programação regular da comunidade e o carinho acolhedor:
Eu acho que a igreja ajuda com a palavra, tu entende? Com os cultos que a gente
vem, eles dão muita força, eles dão muito apoio para a pessoa, aquele carinho que
eles tem de quando termina o culto esperar a gente na porta, aquele abraço de carinho,
então isso ajuda muito.277
c) Os terapeutas do CERENE destacaram a importância do envolvimento da comunidade
cristã. Edenilson, diretor da unidade de Palhoça, destaca a recuperação da auto-estima através da
oportunidade de servir278. Viktor, responsável pela Laborterapia na instituição, destaca que o
envolvimento deveria começar com a presença/participação da comunidade na instituição, bem
como apoio concreto na solução de pequenos problemas279. Para Ricardo, psicólogo, todos os que
vão à igreja estão em busca de melhoramentos. Ele procura conscientizar aos residentes que as
pessoas da igreja não são perfeitas e sobre as ‘panelinhas’ na comunidade, conclama a uma maior
abertura para os novos participantes da comunidade280. Luis enfatiza a necessidade de
relacionamentos e ambientes saudáveis para evitar a recaída281. Reni destaca o amor:
[a melhor forma de ajudar] é amando essa pessoa, mostrando interesse por ela e quem
sabe, visitando e em parte também cobrando uma participação em atividades em uma
comunidade cristã ou dentro de um grupo de apoio, mas mostrar interesse e amor é a
palavra chave para ajudar alguém.282
d) O pároco Oziel destaca que algumas comunidades já estão fazendo sua parte através de
pessoas que participam e ajudam no grupo de apoio, porém alerta:
(...) as paróquias que não conseguem mandar pessoas [das comunidades] para o grupo
de apoio, também não conseguem fazer essa ponte entre dependentes participando do
grupo de apoio e membros da igreja, então eu creio que a igreja pode ajudar se
aproximando, escutando, abraçando, convidando. É mais uma atitude passiva de amor
276
Trecho da entrevista concedida por Matilde (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 26.
Trecho da entrevista concedida por Marta (pseudônimo) que se encontra na íntegra no anexo I, p. 29.
278
Entrevista concedida por Edenilson João de Boris que se encontra na íntegra no anexo I, p. 48.
279
Entrevista concedida por Viktor Berglissof que se encontra na íntegra no anexo I, p. 51,
280
Entrevista concedida por Ricardo Liberato Macedo dos Santos que se encontram na íntegra no anexo I, p. 54.
281
Entrevista concedida por Luis Carlos Kuchenbecker que se encontra na íntegra no anexo I, p. 57.
282
Trecho da entrevista concedida por Reni Schmidt que se encontra na íntegra no anexo I, p. 59.
277
130
do que uma questão teórica do quê fazer, e quando isso acontece então há essa
aproximação.283
Todos refletem uma grande expectativa sobre a participação em uma igreja como
continuidade do tratamento. Isso se deve, em boa parte, pelo fato da instituição enfatizar a
espiritualidade no programa terapêutico, inclusive convidando os residentes a participarem em
cultos no fim de semana. A instituição ‘prepara’ o residente para as comunidades cristãs.
Nesse preparo, corre-se o risco dos residentes ‘criarem’ uma idealização da igreja. Esse
aspecto precisa ser dialogado objetivando equilíbrio para que a frustração decorrente daí não
venha a prejudicar o propósito e a necessidade da busca pelo convívio eclesiástico.
Será que a comunidade cristã tem condições reais de corresponder a essas expectativas?
Será que ela está ‘preparada’ para receber aos egressos?
Na temática da comensalidade de Jesus, vista anteriormente, encontramos fortemente o
aspecto da inclusão. Inclusão a partir do amor e graça de Cristo Jesus – Diácono, por excelência e que leva a existir em favor dos outros.
Podemos perceber que a comunidade cristã - quando portadora de uma espiritualidade
integradora que se torna evidente na ação pastoral e diaconal - seguindo o exemplo e ensino de
Jesus, bem como da comunidade neotestamentária - poderá corresponder às expectativas dos
entrevistados, importantes para a continuidade/manutenção da abstinência e sobriedade, que
podem ser resumidas:
a) Promoção de um novo ambiente social que acolhe e inclui sem bajulações;
b) Incentivo para que cada um cumpra com sua responsabilidade de participar nos
programas de apoio;
c) A conscientização do perigo de não participar;
d) O incentivo para a participação nas programações regulares da comunidade.
283
Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43.
131
e) O saber lidar com as frustrações oriundas de uma expectativa por perfeição;
f)
A necessidade de maior diálogo;
g) O carinho acolhedor, expresso em gestos;
E, na visão dos que atuam diretamente no tratamento:
a) A recuperação da auto-estima através da oportunidade de servir;
b) A ajuda necessária para resolver pequenos problemas;
c) A necessidade de terminar com os grupinhos exclusivistas na comunidade;
d) A necessidade de relacionamentos saudáveis;
e) O amor como base de ajuda;
f) Participação de pessoas da comunidade nas programações específicas da Paróquia da
Sobriedade (bem como no CERENE).
As expectativas dos entrevistados não são meras expectativas. São necessidades reais para
a vida de um ser humano: afastar-se das relações sociais que induziram ou mantiveram a DSPA,
um novo grupo de relações sociais, sentir-se útil, receber assistência, ser visto, recebido e aceito
como uma pessoa normal.
Assim, avaliamos que a experiência que apresentaremos a seguir, pode ser indicada como
ação que corresponde às reflexões feitas até aqui. A Paróquia Luterana da Sobriedade será
apresentada como uma proposta prática que se coaduna com o estudo feito até aqui: ser
comunidade terapêutica para os DSPA’s egressos da internação e seus familiares.
132
3.3 - União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade
A unidade do CERENE de Palhoça foi, desde sua origem, apoiada e assistida pelas
comunidades e respectivos pastores da IECLB, da Grande Florianópolis284, através da abertura
das mesmas para a participação efetiva em seus cultos, da disponibilidade de espaço para grupo
de apoio e palestras trazidas pelos pastores ou líderes das comunidades no CERENE. Nos
primórdios da instituição, o esforço recaiu na elaboração e aperfeiçoamento de um programa
terapêutico consistente, bem como na estruturação da infraestrutura e das equipes que atuam nas
unidades. Nos últimos anos a pergunta do ‘pós-internamento’285 tem tido um espaço cada vez
maior. Providências consistentes foram e estão sendo tomadas. Inicialmente a unidade de Palhoça
iniciou um grupo de apoio Cruz Azul em sala cedida pela IECLB no centro de Florianópolis.
Também para atender aos egressos que não tem estrutura familiar e profissional, a unidade
alugou um sítio e elaborou um programa chamado ‘reinserção social’286.
O diálogo costumeiro possibilitou que as comunidades da IECLB não ficassem sem
perceber a importância do acolhimento durante e após a internação. Assim foi articulado e
efetivado uma ‘união paroquial’ com o objetivo de oferecer acompanhamento pastoral aos
egressos das instituições de tratamento.
284
Paróquias de Florianópolis, São José, Palhoça, Santo Amaro da Imperatriz.
“aftercare (cuidado pós-alta), talvez o maior desafio terapêutico no Brasil”. Alexander FISCHER, Dependência
em Substâncias Psicoativas:..., p.127. Usaremos a expressão ‘pós-internamento’ para destacar o fato de que o
tratamento não termina com a alta, continua no aperfeiçoamento das fases de continuidade e da Mudança de
Identidade e Integridade de cada um. Esse cuidado ‘pós-alta’ precisa ser enfatizado em especial no meio eclesiástico
que é tônica da nossa pesquisa.
286
É objetivo geral do Programa de Reinserção Social “Proporcionar ao público alvo, apoio técnico e de moradia que
viabilizem a Reinserção Social/Familiar, bem como profissional”. CERENE® - Relatório de Atividades 2004, p 15.
No segundo semestre de 2005 vence o contrato de locação do imóvel, que não mais será renovado pelo proprietário.
A unidade está estudando a possibilidade de continuar o programa em instalações próprias.
285
133
3.3.1 - O que é a União Paroquial Luterana da Sobriedade
Segundo o ‘Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade’, a mesma é
uma associação religiosa, sem fins lucrativos287, constituída por Paróquias e Comunidades
associadas, filiada à IECLB, da área de abrangência do Sínodo Sul Catarinense288. Conhecida
mais como ‘Paróquia da Sobriedade’289, tem por finalidade:
I – acompanhamento pastoral aos dependentes químicos/alcoolistas, internados ou
egressos de instituição de tratamento, bem como seus familiares e pessoas de seu
convívio;
II – fomentar a criação de grupos de apoio no processo de recuperação aos
dependentes e recuperados de dependência química/alcoolista;
III – envolvimento dos familiares dos dependentes no processo de recuperação,
mediante parcerias com entidades religiosas, pessoas físicas e jurídicas, órgãos
públicos e organizações não governamentais.290
O inciso I dá ênfase no acompanhamento pastoral, porém a possibilidade de
acompanhamento diaconal está previsto no Artigo 5o “A União Paroquial poderá apoiar, criar e
manter instituições caritativas, assistenciais, educacionais e de trabalhos diaconais”291. Isso tem
ocorrido de forma espontânea quando, diante de uma situação de intensa precariedade material,
surge o esforço para suprir ou amenizar tal situação.
287
Sobre a manutenção financeira, o pároco Oziel explica: “Essas quatro paróquias (...) de Florianópolis (...)
formaram a paróquia da sobriedade, primeiramente recebendo auxílio da IECLB, e já estamos no segundo ano, então
estamos recebendo 40% a menos e a medida em que a gente vai recebendo menos da IECLB, que é subsidiado da
Alemanha, as paróquias vão cobrindo a cada ano 20%”. Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de
Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 44. A unidade do CERENE assumiu as despesas do aluguel
da residência da casa pastoral.
288
Cf. Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade. Artigo 1o e 7o.
289
Assim expressa o pároco: “Essas quatro paróquias dizem que eu sou um pastor a mais em cada paróquia, (...)
tenho pregado em todas elas e a idéia é que dentro de cinco anos o meu salário e toda a programação continue sendo
apoiado pelas quatro paróquias. (...) Então é uma paróquia interparoquial, não existem membros fixos mas essas
quatro paróquias se sentem responsáveis e eu preciso prestar contas para elas. Tem, muita gente envolvida”. Na fala
dos entrevistados a paróquia é citada como ‘Paróquia da Sobriedade’, status esse que queremos manter ao nos
referirmos a mesma, chamando-a de ‘Paróquia Luterana da Sobriedade’. Trecho da entrevista concedida por Oziel
Campos de Oliveira Júnior, que se encontra na íntegra no anexo I, p. 44.
290
Estatuto da União Paroquial Evangélica Luterana da Sobriedade. Artigo 2o.
291
Ibid., Artigo 5o.
134
3.3.2 - O parecer de quem participa da Paróquia Luterana da Sobriedade
Entrevistamos seis participantes assíduos da Paróquia Luterana da Sobriedade e o
respectivo pároco. Dos participantes, três são DSPA’s que estão dando continuidade ao
tratamento através das reuniões dos grupos de apoio e três são mães que
expressaram o
desespero de verem os filhos num ritmo de auto-destruição. Os pseudônimos Marta, Matilde e
Daniele são mães reais que expressaram com muita emoção as suas lutas, suas ansiedades e suas
convicções pela importância do que tem recebido através das reuniões e do atendimento pastoral
da Paróquia Luterana da Sobriedade. Todas responderam que a razão da participação nas
reuniões foi, inicialmente, o fato de seus filhos DSPA’s terem encontrado ajuda a partir da
internação no CERENE.
Marta descreve a situação desesperadora em que seu filho se encontrava, caído,
literalmente na rua, após ter perdido (através da separação conjugal) esposa e filho, vendido os
móveis da casa, restando somente ‘as paredes da casa’, andando como mendigo à beira da
BR101. Seu filho já tinha feito uma internação no CERENE, ficara um ano ‘liberto’, e, nessa
situação caótica, em seu desespero, pediu que a mãe conseguisse uma nova internação. Conforme
ela descreve – o que revela o alto grau de desespero de uma mãe em busca de ajuda – ao ser
noticiada que não havia vaga para internação imediata no CERENE, ela clamou a Deus.
Pensando que estava fazendo esse clamor em pensamento, sem perceber, clamou em alta voz,
sendo ouvida por diversas pessoas. Essa situação constrangedora ‘criou’292 a vaga:
Aí graças a Deus eu vim participar da reunião, no começo eu não entendia nada (...)
eles falavam pra mim que eu tinha que ajudar o meu filho, mas de outro jeito, não
dando as coisas pra ele, nem nada, mas eu achava não, que tava errado, que eu podia
dar força, que eu tinha que dar força para o meu filho, tinha que dar dinheiro, tinha
que estar do lado dele, mas não, agora eu compreendo, eu entendo como é
importante, portanto meu filho já saiu dali, de lá, meu filho está bem, já está seis
meses fora de lá, tá trabalhando, graças a Deus, a esposa está grávida de novo, tá com
292
Conforme a experiência do co-obreiro, a ‘demanda reprimida’ (fila de espera para obter a internação) é uma
constante. Este carrega a tristeza da morte de um jovem de 21 anos que não agüentou a espera pela vaga e atentou
contra a própria vida. Por vezes uma vaga é ‘criada’, colocando-se um colchão no chão de um quarto, especialmente
diante de situações de extrema urgência.
135
o filhinho, com a esposa, e hoje eu entendo assim para mim essa reunião é tão boa,
que foi tão boa, eu me sinto tão bem que eu não consigo faltar uma sexta-feira.
Para ela as reuniões do grupo de apoio são muito importantes:
Hoje eu sou outra pessoa, não sou mais aquela [Marta] de antigamente. Hoje eu sou
completamente diferente, pra mim me ajudou muito, na minha cabeça, no meu viver
dentro da minha casa, saber compreender os outros, (...) eu não tinha mais paciência
com o meu marido, (...) com meus filhos, (...) com mais ninguém, com todo mundo
eu estourava, hoje graças a Deus, a partir dessa reunião, a partir dessas palestras que
eu tenho escutado, mudou muito a minha vida até para ajudar as outras pessoas (...)
que estão nesse vício, que tão passando por esse tratamento eu tento dar força e
ajudar.293
Matilde, mãe de dois filhos DSPA’s, Antônio e Ernesto (pseudônimos). Ambos foram
internos do CERENE, sendo que Antônio foi o primeiro e desde então, dois anos, está em
abstinência. Ernesto, quatro vezes internado, faz 25 dias que saiu da última internação. Matilde
conheceu o grupo de apoio quando internou o primeiro filho:
Na primeira vez não vim com gosto, eu vim braba, porque eu achei que não tinha
nada a ver com isso, quem tinha, quem fazia coisa errada era eles. Por que eu tinha
que vir à reunião, ficar escutando as pessoas a falarem? (...) depois que a Elisa [na
época uma coordenadora do grupo] conversou comigo (...) fui aceitando e aí a partir
da segunda em diante eu já vim com mais gosto né, e comecei a participar
ativamente.
A importância das reuniões está no fato destas terem trazido uma nova atitude diante da
situação dos filhos:
Eu comecei a agir de outra forma até com relação a eles, porque eu agredia o
[Antônio e ele] me agredia, tá, e o [Ernesto] eu podia agredir à vontade porque ele
nunca revidava a agressão e eu achava que toda vez que o [Ernesto] entrava bêbado e
drogado pra dentro de casa o fato de eu esbofetear o [Ernesto] fazia com que eu
botasse toda aquela raiva toda para fora, a coisa é bem ao contrário, óbvio né, aí a
partir das reuniões, das conversas que eu comecei a ter com o pastor, o pastor
começou a freqüentar a minha casa também (...) o que aconteceu, eu comecei a mudar
a minha atitude, tanto que da última vez que o [Ernesto] (...) voltou a se drogar eu não
bati mais nele (...) ele não terminou esse último tratamento dele, (...) eu disse: pode
vir, a vontade é tua, só que as coisas vão funcionar de um forma bem diferente. E
293
Informações sobre Marta (pseudônimo) no anexo I p. 27. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram na
íntegra no anexo I, p. 28.
136
hoje eu não cuido mais do [Ernesto] (...) chega do trabalho, se ele toma banho e bota
uma roupa melhor e sai eu não pergunto onde ele vai, com quem vai, o que vai fazer,
porque ele sabe que a hora que ele sair e voltar com os olhinhos brilhando eu vou só
abrir a porta e fechar de volta. Vai ser diferente.294
Daniele, enfermeira e professora no departamento de enfermagem da UFSC, em
Florianópolis, já havia tido a experiência com o ex-marido, dependente da bebida alcoólica, e por
isso a dependência de seu filho não lhe causou surpresa. Na época conheceu grupos do A.A, leu
muito sobre o assunto e desenvolveu projetos para o atendimento de familiares, pois na sua
atividade profissional contatava com muitas famílias que sofriam da mesma situação crônica:
Então é uma condição crônica que as pessoas tem que aprender a conviver com isso e
na minha experiência, assim tanto pessoal como de vida que tenho visto, a família
onde tem uma pessoa com dependência, de alguma coisa, ela funciona como se fosse
em volta [de] uma membrana em princípio, e em geral (...) o dependente é que dá o
tom do movimento, e essa membrana só se rompe quando alguém se levanta e sai
buscando ajuda e é às vezes nos grupos de apoio que a gente consegue ajuda para
essa família.
O conforto recebido sinaliza a importância das reuniões:
Olha, como eu falei, no A.A. era um pouco assustador porque ainda não tinha o AlAnon, né, não tinha a vivência do amor de Jesus, o suporte da igreja e tal. Aqui têm
sido assim,(...) bastante confortante porque agora eu passei (...) da fase de não poder
visitar, mas quando eu chegava aqui eu vinha com sede de ter um certo contato
através das pessoas que vinham de lá [do CERENE], de ter notícias dele, e quando
falavam que ele tava bem isso me reconfortava, me animava, ele foi pra ficar uma
semana, passou lá um mês, dois meses, agora passou, fim de semana foi o primeiro
que saiu, ele mesmo pediu pra voltar. Então um lugar em que a gente pode diluir as
ansiedades da gente, isso eu li num livro do A.A que falava da importância dos
grupos de ajuda mútua, e que a gente tem visto isso se espalhar para outras situações
de cronicidade de vida das pessoas né, que é uma das coisas que mais tá dando
suporte para o convívio dele.295
A relutância de Marta e de Matilde no início de suas participações no grupo de apoio vem
ao encontro da relutância que os co-dependentes têm em buscar ajuda para si, como já vimos
anteriormente. Todas as três mães expressaram o seu crescimento pessoal em relação ao assunto
294
Informações sobre Matilde (pseudônimo) no anexo I p. 24. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram
na íntegra no anexo I, p. 24-25.
295
Informações sobre Daniele (pseudônimo) no anexo I p. 22. Trechos da entrevista concedida por ela se encontram
na íntegra no anexo I, p. 23.
137
da co-dependência e da mudança da atitude super-protetora para uma atitude mais firme em
relação aos filhos que foram a razão inicial da participação no grupo de apoio.
A importância das reuniões também ficou manifesta na fala dos três participantes da
paróquia, egressos da internação:
Pedro, 21 anos de idade, solteiro, sem filhos, primeiro grau completo, sem profissão
definida (“faço bicos”), participante dos três grupos de apoio da Paróquia Luterana da
Sobriedade, duas vezes residente do CERENE (entre elas, duas vezes internado em outras
instituições), está há quase um mês no programa de reinserção social do CERENE296, começou
sua dependência com bebida alcoólica que o seu pai deixava na geladeira, seguindo pela
maconha, cocaína e pedra (crack), sendo a cocaína que mais lhe causou dano, devido ao intenso
uso. No começo achava estranho participar das reuniões:
Porque eu nunca conheci uma roda onde as pessoas ficavam assim olhando um para a
cara do outro, sabe. E falando de coisa interior, (...) um grande passo é que eu não
tenho vergonha de dizer, eu cresci (...) com muito complexo de inferioridade, sabe?
Problema com depressão que faz ser muito revoltado,(...) os primeiros grupos de
apoio eu sentava naquela cadeira, e gelava cara, porque eu lembro de reunião que a
gente fazia mas era de noite escuro, a gente perguntava ‘aí, beleza?’ E o normal todo
mundo dizer ‘beleza’ né e fumava droga e fazia a roda aí. De repente tu fica num
grupo de apoio, o pessoal tudo em volta de ti assim, sabe? Um escutando o outro e
falando o que sentia, (...) no outro dia eu conversava: o pastor! Só de entrar naquela
sala me dá até arrepio, não tem?
Encontrou a figura materna em uma das mães entrevistadas e também novos amigos:
(...) ela é como uma mãe para mim, sabe? Mais que a minha mãe, porque seria até um
erro, mas, ela é como uma mãe para mim, ela diz coisa, (...) para mim aqui que a
minha mãe nunca diz (...) E fora os amigos que faço lá, sabe? (...) Não há outro lugar,
eu não conheci outro lugar onde tu pára e cada um fala de si mesmo sem (...) estar se
preocupando com o que o outro vai pensar, simplesmente falar o que tá sentindo
(...).297
Maurício, 27 anos de idade, solteiro, pai de uma menina de 7 anos, 2º ano do 2º grau,
profissão de laminador, usuário de álcool, cocaína e crack, começou muito cedo com o uso da
296
Cf. nota de rodapé 284.
Informações sobre Pedro (pseudônimo) no anexo I p. 29-30. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram
na íntegra no anexo I, p. 31-32.
297
138
bebida alcoólica (“uns doze anos”) e as demais substâncias foram conseqüência desta. Expressa a
razão de sua motivação:
Uma porque os meus amigos da Palhoça que tão aqui, e outra porque eu me sinto
bem, as vezes quando eu estou precisando, que nem no caso há duas semanas atrás,
estava precisando desabafar porque eu tava desempregado e isso estava me
sufocando, eu vim aqui e desabafei com o pessoal e tive um retorno bom, de certas
pessoas, e eu sei que eu posso encontrar ajuda aqui.298
Otto, 57 anos, quatro internações, casado, três filhos, quarta série primária, vigilante,
descreve o uso de várias SPA’s, inaladas e injetadas, sendo que ultimamente fazia o uso
‘cruzado’ de álcool (vodka, dois litros/dia) e cocaína. Com 9 meses de idade perdeu seus pais, foi
criado por uma tia, porém muito cedo “fugi e fiquei morando na rua”. Com 8 anos de idade
conheceu a maconha através de marinheiros que aportavam em Florianópolis e faziam “aquela
cachaçada” e na farmácia adquiria medicamentos “que dava de injetar”. Fazem dez anos que está
abstinente e tem uma atitude ativa para ajudar outros que precisam ser encaminhados para uma
internação. Sua participação na Paróquia Luterana da Sobriedade e na IECLB de São José é bem
ativa, com freqüência diária nas programações, porém vê no grupo de apoio a reunião mais
importante da semana:
Esse grupo de apoio para mim é importante porque é aqui que eu recarrego as minhas
baterias, sem o grupo de apoio eu acho que eu ficaria nas drogas de novo, eu tenho
que ir em grupo de apoio, (...) essa reunião é pra mim a mais importante de todas, me
anima, me fortalece porque aí eu me abro, digo o que sinto do tempo da droga. Eu
acho que fortalece muito os irmãos que estão aí apavorados (...) porque o grupo de
apoio é um grupo que fala da gente mesmo, dos drogados, dos alcoólatras (...) e
também tem que participar das reuniões da igreja, (...) eu tenho que ter esse grupo de
apoio na quinta-feira para poder me agarrar, porque senão eu não posso fraquejar
(...).299
A partir das falas das mães e dos DSPA’s participantes vemos o que significa a
oportunidade da participação em grupo de apoio e do acompanhamento individual, possibilitado
pelos constantes diálogos com o pastor Oziel. A gratidão expressa na fala dos entrevistados
298
Informações sobre Maurício (pseudônimo) no anexo I p. 35. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram
na íntegra no anexo I, p. 36.
299
Informações sobre Otto (pseudônimo) no anexo I p. 37-38. Trechos da entrevista concedida por ele se encontram
na íntegra no anexo I, p. 38.
139
reflete a gratidão dos demais participantes que sentimos empiricamente quando participamos de
uma reunião em cada grupo de apoio da Paróquia Luterana da Sobriedade.
3.3.3 - O parecer do pároco da União Paroquial da Sobriedade
O pároco é o Pastor Oziel Campos de Oliveira Junior, pastor da IECLB desde 1973, 58
anos de idade, casado, quatro filhos. Atua dois anos e meio na Paróquia Luterana da Sobriedade.
Perguntamos sobre o que o motivou a trabalhar na recuperação de DSPA’s, ele destaca o desafio
feito pelo Pastor Sinodal Edson Saes Ferreira, um dos idealizadores desta Paróquia, e a
necessidade que havia de ter alguém disposto para esse desafio:
O que me motivou, em primeiro lugar foi a necessidade que havia e um convite que
me foi feito através do Pastor Sinodal dizendo que havia um trabalho assim, assim,
assado. Eu disse que nunca tinha trabalhado nessa área (...) mas ele me disse na
ocasião que eles precisavam de uma pessoa que tivesse duas coisas, a primeira, que
gostasse de pessoas que estão com problemas, problemas graves, problemas difíceis,
pessoas assim meio abandonadas, e segundo, uma pessoa que estivesse disposta a
aprender. Eu disse que essas duas coisas eu tinha e que ia conversar com minha
esposa, orar, pensar e um tempo depois em vim até o CERENE para dar uma olhada e
daí o que me motivou então foi a necessidade e o entendimento que talvez eu poderia
ajudar nessa causa.300
Sobre o programa de atendimento o Pastor Oziel responde que são quatro grupos de
apoio durante a semana301, que ele passa cerca de dois dias por semana no CERENE planejando
com a equipe da unidade, aconselhando residentes, nos fins de semana leva residentes junto ao
culto que está sob sua responsabilidade, possibilitando testemunho (depoimentos voluntários) e
apresentação de hinos. Nestes cultos aproveita a pregação para assuntos relacionados com a
DSPA. Atividades estas, que mantêm ‘viva’ a presença da Paróquia Luterana da Sobriedade nas
comunidades, conscientizando e promovendo prevenção. Também visita as famílias “porque eles
300
Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 41.
Terças-feiras no centro de Florianópolis, quintas em Campinas, São José, sextas no Aririú (bairro de Palhoça) e
no centro de Palhoça. Todos em instalações da IECLB.
301
140
[familiares] também ficam doentes, são co-dependentes, precisam ter um entendimento da
dependência química para ter uma capacidade melhor de ajudar o dependente quando ele sair”302.
Perguntado sobre as dificuldades percebidas por ele, visto que a proposta da Paróquia é
inovadora, relacionou-as em blocos específicos. O primeiro foi em relação aos familiares:
(...) a família entende que quem está doente é o dependente e que ele que vá se tratar
e que volte bem, daí ele vai ser bem aceito, então muitas vezes a família não entende
que ela também desenvolveu padrões doentios durante todos esses anos, e que ela é
parte da causa e que ela precisa se tratar pra não achar que o doente é apenas um semvergonha que não quer nada, mas que é uma pessoa que está doente e que precisa de
ajuda.
O segundo em relação às comunidades, pastores e programações:
(...) muitas vezes as comunidades, as paróquias, muitas vezes os pastores não
entendem bem essa questão da dependência, eles não participam dos grupos de apoio
e tem sua teoria sobre a dependência química e muitas vezes essa teoria não
corresponde, não se aproxima da realidade. Fui pastor durante trinta anos também
tinha minhas idéias, minhas teorias sobre essa questão que ao trabalhar a gente nota
que tem que modificar rapidamente, precisa aprender muito (...) tenho seis pontos de
referência que eu tenho que manobrar. São as quatro paróquias (...) o CERENE e tem
o Sínodo, então às vezes não é tão fácil achar, por exemplo uma data para fazer um
curso em Blumenau303 ou coisas assim, então são muitos fatores que a gente tem que
encaixar .
Perguntamos: Você falou que nesses trinta anos de experiência pastoral tinha certos
conceitos sobre dependência química e teve de repensar ao lidar na prática com o dependente
químico. Você conseguiria expressar um pouco essa diferença de conceitos?
Coisas que eu pensava é o que a maioria pensa, se a pessoa já fez um tratamento e
não deixou de usar química depois disso é porque ela não quer, porque ela não é
esforçada, porque ela é preguiçosa ou vagabunda, alguma coisa nesse sentido. Então
já que ela não quer, porque a gente ficar martelando? Quando a gente passa a
trabalhar com eles a gente nota que a coisa que eles mais querem, de todo o coração
e de toda a alma é deixar a dependência química. A pergunta é como fazer, como
conseguir, então a gente vê que não é uma questão de querer ou não querer, é uma
questão que essa questão química abraçou a personalidade, o pensamento e os
sentimentos. É muito difícil dizer ‘não’ mesmo que queiram dizer não. E também
302
Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 41.
Referência ao Curso promovido pela Cruz Azul : “Curso de Capacitação para Agentes Comunitários em
Substâncias Psicoativas”. Cf. www.cruzazul.org.br (03/09/2005).
303
141
essa questão da dinâmica de grupo onde as pessoas precisam sempre ouvir as
histórias e contar suas histórias, repetir suas histórias, isso é um fator que mantêm
eles longe das drogas, isso é uma coisa que a gente aprende quando começa a
trabalhar [grifo nosso].304
As metas do trabalho da Paróquia da Sobriedade, sob o ponto de vista do seu pároco305
são:
a) Ajudar o DSPA a ter coragem para se aproximar de uma comunidade cristã ao sair do
tratamento (internamento) e já durante o mesmo. Por isso são motivados a irem aos cultos, aos
estudos, congressos e coisas semelhantes.
b) Ajudar a família do DSPA a entender que ela precisa se aproximar dele e ambos
precisam procurar uma igreja, uma igreja cristã, não necessariamente a igreja Luterana, mas uma
igreja cristocêntrica, que prega o evangelho.
c) Ajudar a igreja, comunidades locais e paróquias, a saber dar boas vindas, aproximarse sem desconfiança, abraçar, comemorar, compartilhar as suas vidas e deixar que a pessoa
compartilhe.
d) A prevenção também é meta, “a gente se encontrar com pessoas que não são
dependentes, com pessoas na igreja, fora da igreja, escolas e grupos assim, grupos da
universidade, do hospital, que a gente tem compartilhado a questão da prevenção”306.
e) Ajudar as pessoas não DSPA’s a entenderem o que está acontecendo, o que acontece
na alma, no coração, na vida de um dependente.
f)
Formação das lideranças “que possam nos ajudar (...) algumas pessoas tem
participado durante muito tempo com a gente e essas pessoas, de vez em quando assumem uma
304
Trechos da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p.
41-42.
305
Encontram-se na entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior, anexo I, p. 42-43.
306
As Paróquias envolvidas com a União Paroquial não vendem mais bebidas alcoólicas nas suas confraternizações.
Oziel cita o exemplo de duas bodas (uma de ouro e outra de prata) em que os noivos optaram em não servir bebidas
alcoólicas. Fomos convidados para uma destas festas e de fato, anexo ao convite um bilhete com os dizeres “Por
amor aos dependentes químicos não serviremos bebida alcoólica, esperamos a sua compreensão e a sua presença”. A
Santa Ceia é realizada com suco de uva, devido ao entendimento que um pouco de vinho é um problema para o
DSPA.
142
reunião e outra”. Inclusive de maneira integral como está acontecendo em Palhoça, todas às
sextas-feiras307. A formação de liderança é necessária “para que possamos pensar em abrir outros
grupos e nos aproximar de outras igrejas, de outros grupos de jovens etc”.
Perguntado sobre a reinserção social dos egressos da internação, Oziel vê a importância e
a necessidade de aprendizado:
(...) ela é o meio campo entre o internamento e a reintegração total na sociedade. Ela
é problemática, a gente vê que as pessoas se sentem inseguras e muitas vezes recaem,
isso nos deixa meio inquietos e muitas perguntas, porque muitas vezes os rapazes que
terminam o tratamento eles têm muitos grilos que foram formados durante os seus
anos de dependência, coisas que vem da família e é uma agonia porque muitos não
conseguem colocar em prática aquilo que eles aprendem do CERENE, isso é um dos
motivos da recaída (...), eu diria que é um processo que nós estamos em aprendizado
(...) nós teríamos que formar pontos fora da casa de reinserção social [sítio alugado
pelo CERENE], onde eles passam cerca de três meses depois do tratamento, entrar
em contato assim com fábricas, com igrejas e mesmo quando nós temos feito algumas
vezes existe uma timidez, uma desculpa por parte do atendente que não está sendo
aceito, ele tem medo, ele hesita, a igreja também hesita, então é realmente um
aprendizado muito grande, mas uma coisa essencial que temos que aprender.308
Perguntamos: Como é que a comunidade cristã poderia ajudar mais nesse processo de
reinserção social? A tônica recai sobre o envolvimento de membros das comunidades que se
envolvem nas programações da Paróquia, formando elos de ligação:
Eu creio que as comunidades cristã, algumas já estão fazendo isso, em duas das
paróquias (...) existem pessoas das paróquias, das comunidades que participam no
grupo de apoio, conseqüentemente algumas pessoas dessas comunidades entraram e
entram na comunidade como membros e isso faz com que haja uma reação por parte
da comunidade, um melhor entendimento, um maior acolhimento (...) a gente nota
que as paróquias que não conseguem mandar pessoa para o grupo de apoio também
não conseguem fazer essa ponte entre dependentes participando do grupo de apoio e
membros da igreja, então eu creio que a igreja pode ajudar se aproximando,
escutando, abraçando, convidando. É mais uma atitude passiva de amor do que uma
questão teórica do que fazer e quando isso acontece então há essa aproximação .309
307
Este grupo é conduzido por um obreiro do CERENE, membro da Comunidade da IECLB de Palhoça, que atua na
equipe de coordenação da Laborterapia, Sr. José Bastos dos Santos.
308
Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43.
309
Trecho da entrevista concedida por Oziel Campos de Oliveira Júnior que se encontra na íntegra no anexo I, p. 43.
143
A importância do atendimento promovido pela Paróquia Luterana da Sobriedade fica
evidente nas falas dos entrevistados que dela participam – DSPA’s e seus familiares – bem como
no entusiasmo amoroso refletido na fala do seu pároco.
3.4 - Pontuações para uma práxis acolhedora
Para este momento queremos fazer uma síntese do que vimos até aqui, pontuando alguns
princípios norteadores para um programa de acolhimento, especificamente na comunidade cristã,
aos egressos de instituições de internamento e seus familiares.
Não foi nosso objetivo analisar a unidade do CERENE de Palhoça. Isso implicaria numa
pesquisa específica para esse fim. Contudo, uma noção do que acontece durante uma internação –
intenções e ações terapêuticas – foi necessária para conectar o vivido na internação com a vida na
pós-internação. Uma ruptura radical entre essas duas grandezas é causadora de muitas ansiedades
advindas da abstinência, do vazio relacional e de inseguranças comuns ao enfrentamento do
‘mundo novo’.
Parece-nos que uma forte característica do modelo de tratamento por internação é, além
de proporcionar um ambiente livre e protegido das SPA’s, possibilitar que haja um ‘treino’ de um
novo paradigma de vida. Além do ensino teórico, que articula o que deve ser feito, há a práxis
que se caracteriza pelo acompanhamento nos pormenores do dia-a-dia para que mudanças sejam
efetivadas.
Os ingredientes terapêuticos refletidos nas programações da instituição simulam a macrosociedade. Poderíamos assim fazer uma relação do que é feito na instituição com o que há ou
deveria haver na sociedade e/ou na comunidade cristã: a) Aconselhamento individual
corresponde ao acompanhamento pastoral e/ou psicológico. b) Reuniões de grupo correspondem
ao grupo de apoio e/ou grupos semelhantes. c) Palestras informativas correspondem aos
cultos/eventos com palestras etc. d) Regimento interno corresponde às leis da sociedade. e)
Atividades recreativas correspondem às oportunidades esportivas e/ou similares que se
144
desenvolvem em ambientes saudáveis. f) Estudo e atividades profissionalizantes, bem como as
atividades de laborterapia correspondem à vida profissional.
Assim, podemos perceber que a reinserção social não começa após o término da
internação. Ela começa no ato da internação por promover/simular o convívio social. É o que
expressa a figura 07.
R
SE
EIN
RÇ
ÃO
CI
SO
AL
Sociedade Menor
(Comunidade Terapêutica)
I
RE
ER
NS
O
ÇÃ
CI
SO
Sociedade Maior
AL
Fig. 07
Das fases de recuperação pontuadas por Fischer, a partir de De Leon, vemos que a
Negação e a Ambivalência antecedem ao internamento, a Motivação Extrínseca é uma fase
intermediária que ocorre antes e pode levar ao internamento, a Motivação intrínseca, a Prontidão
para mudanças, a Prontidão para o Tratamento, a Desintoxicação, e a Abstinência tem seu ponto
forte durante a internação sendo que a Continuidade e a Mudança de Identidade e Integridade
pertencem mais efetivamente na pós-internação.
Para acompanhar essa Continuidade destacamos a importância de uma espiritualidade e
diaconia integradoras. Vimos que não é questão de escolha da comunidade atender ou não, mas é
questão de obediência. “Se for comunidade de Jesus Cristo, ela necessariamente precisa ser
terapêutica” 310, sintetiza Noé.
Prestigiamos a Paróquia Luterana da Sobriedade como ação concreta que atende a essa
demanda. A fala dos participantes demonstra a importância das reuniões e do atendimento
310
Sidnei Vilmar NOÉ, Idéias Introdutórias ao Conceito Comunidade Terapêutica, p. 10.
145
pastoral. A realização desta paróquia mostra a necessidade de pessoas de tempo integral para
atender e organizar esse atendimento.
A partir da necessidade comprovada , queremos ‘arriscar’ algumas sugestões para que
aumente o atendimento das comunidades cristãs.
Primeiramente queremos sugerir iniciativas que poderão partir da comunidade cristã e na
seqüência, iniciativas das instituições de internamento.
3.4.1 - Iniciativas nas e das comunidades cristãs
O início da Paróquia Luterana da Sobriedade foi um passo significativo. Porém, corre-se o
risco de ‘isolar’ o atendimento ao âmbito da paróquia específica, isentando as demais de sua
responsabilidade de acolhimento. Ou seja, o isolamento paroquial poderá constituir-se em uma
‘atitude piedosa’ de afastamento. A consciência que chama à responsabilidade poderá ficar
tranqüila porque algo está sendo feito, porém com a mesma distância de sempre.
Um dos ‘pontos fracos’ da Paróquia Luterana da Sobriedade - conforme já expressou o
seu pároco - é o pouco envolvimento de pessoas líderes para aumentar a oferta de reuniões de
apoio bem como para a execução das existentes e, principalmente, para o acolhimento dos
egressos e seus familiares. Esse ‘ponto fraco’ não ocorre por falta de visão do seu pároco, visto
ser a primeira meta citada acima pelo mesmo. Ocorre pela necessidade legítima de atendimento
que faz com que o obreiro de tempo integral se envolva de tal forma que impossibilite maior
investimento de tempo para incentivar e preparar esses líderes. Ocorre também pela ausência dos
pastores das paróquias que formam a união paroquial que, nem mesmo esporadicamente,
aparecem para assistir reuniões de apoio. A ‘responsabilidade’ foi repassada à Paróquia Luterana
da Sobriedade. Porém essa, sem o envolvimento das paróquias fundadoras, fica limitada a um
processo lento de formação de líderes que surgem em seu próprio meio e, pior, o processo de
reinserção social fica comprometido nas comunidades.
146
a) O treinamento de pessoas é fundamental. Porém, precisamos ter o cuidado para não
fomentar um mito muito comum nessa área de atuação da comunidade: que somente os
‘especialistas’ podem ajudar. Parece-nos que esse mito faz com que pessoas se sintam inibidas
e/ou impróprias para o envolvimento efetivo: ‘é coisa para os psicólogos, psiquiatras e pastores’ –
parece refletir o censo comum.
Como vimos, a necessidade primordial dos DSPA’s e dos Co-dependentes é sentirem-se
acolhidos/amados. Isso ocorre essencialmente através do ouvir, do importar-se e do abraço
acolhedor. Esse agir é possível para cada um(a) que decide envolver-se. Assim, todos podem
fazer algo.
O que os grupos de apoio precisam é de pessoas com essas características de acolhimento.
A formação técnica que aumenta o conhecimento sobre as SPA’s, sobre o jeito de ‘lidar’ (tato),
sobre as temáticas inerentes à co-dependência, etc, é necessária e pode ser adquirida no ‘andar da
carruagem’.
Para que isso ocorra é possível verificar cursos já existentes como o da Cruz Azul no
Brasil311 ou organizar cursos trazendo pessoas com maior conhecimento na área da DSPA. Fato
é: As pessoas vêm, qualitativamente falando, antes do respectivo e necessário preparo.
b) Um obreiro de tempo integral – pastor, diácono
312
– é necessário para a organização
destes aspectos. É um ideal possível, conforme constatamos na Paróquia Luterana da Sobriedade.
Porém, a realidade exige um número maior de grupos e de atendimentos. Para isso a iniciativa
leiga continua sendo um aspecto importante que pode e deve ser incentivada. Leigos que serão
acompanhados por pessoas preparadas. Nem todas as comunidades estão aptas para sustentar um
obreiro de tempo integral exclusivo para a área da recuperação de DSPA’s. A união de
comunidades e/ou paróquias se torna em uma possibilidade real.
311
Cf. rodapé 301.
Poderíamos incluir o ministério missionário e o catequético. Parece-nos que, na questão de estar devidamente
preparado para agir na área da DSPA, todos os ministérios se encontram na mesma perspectiva: é necessário
humildade para aprender, assim como vimos na fala de Oziel que, mesmo com trinta anos de experiência pastoral,
demonstrou esta postura.
312
147
Na estrutura sinodal da IECLB, poder-se-ia pensar em um ‘obreiro sinodal’ para
incentivar, apoiar e acompanhar iniciativas locais. Alguém que está aí para ‘fomentar’
significativamente essa área de atuação para as quais as comunidades parecem estar adormecidas.
Soma-se a isso o fato de que, além de ajudar concretamente aos atingidos, é possível desenvolver
programa na área da prevenção.
c) Essa visão só será possível quando obreiros locais – os que atuam de tempo integral –
tiverem o coração voltado para essa necessidade. Constata-se que a grande maioria que se
envolve na área da recuperação de DSPA’s são pessoas que tem ou tiveram na sua caminhada o
problema dentro de sua estrutura familiar. Esse quadro pode ser mudado quando obreiros se vêem
na necessidade de atender pessoas DSPA’s e/ou co-dependentes. Como o co-obreiro ouviu
Hermann Hägerbäumer313, então secretário da Cruz Azul na Alemanha, responder a pergunta:
“Como incentivar o pastor da minha igreja a começar um grupo de apoio?” A resposta foi
extremamente prática: Mande cinco DSPA’s para ele aconselhar!
A temática deveria ser abordada nos encontros dos atuais obreiros para que iniciativas
concretas pudessem ser tomadas. Para isso são necessárias propostas concretas. A abordagem
teórica é importante para a conscientização. Porém serão as propostas para uma práxis atuante
que trarão resultados concretos.
d) Os centros de formação para os ministérios ordenados deveriam incluir nos Projetos
Pedagógicos o preparo para essa temática. Isso traria resultados de longo prazo, visto que as
novas gerações de obreiros entrariam nos ministérios mais conscientes e preparados para este
aspecto.
Os aspectos vistos até aqui, têm a ver fundamentalmente com as pessoas que irão se
engajar nesta proposta, queremos resumi-los:
a) Obreiro de tempo integral como agente fomentador e preparador de liderança.
313
Seminário “Experiências Práticas numa Comunidade Terapêutica”, realizado pela Cruz Azul no Brasil, em
Blumenau, SC, 26 a 28 de julho de 2000.
148
b) Líderes-Agentes Comunitários em DSPA’s. Descobrir lideranças nas comunidades
locais e incentivá-las para esse serviço específico. É impreterível que as mesmas sejam
preparadas através de cursos.
c) Encontros dos atuais obreiros. Oportunidade para articular o debate desta temática
para o aumento da conscientização e orientações pragmáticas.
d) Centros de formação ministerial. Estes centros deveriam incluir em seus Projetos
Pedagógicos uma disciplina que se ocupasse exclusivamente com a temática DSPA e Codependentes.
E acrescentar os seguintes aspectos para que a práxis daqueles e daquelas que irão atuar
seja significativa:
e) Material didático. Material didático pedagógico para as reuniões de grupo314:
Devocionais315 direcionadas para a temática, estudo de princípios para o tratamento316,
aprofundamentos sobre a DSPA e a co-dependência etc.
f) Modelo de reunião. Encontramos basicamente os seguintes modelos de reuniões: (i)
reuniões que separam os DSPA’s dos familiares, a exemplo de A.A./Al-Anon e do Amor
Exigente; (ii) reuniões conjuntas entre DSPA’s e familiares, a exemplo da maioria dos grupos da
Cruz Azul no Brasil317, (iii) reuniões estritamente dialogais, e (iv) reuniões apenas com palestras
informativas (ou, em alguns casos, estudo bíblico ‘camuflado’ de grupo de apoio).
Todas, a nosso ver, têm vantagens e desvantagens. As que separam os DSPA’s dos
familiares permitem uma maior abertura dos conflitos pessoais, visto que não há coação
despertada pela simples presença ‘do outro lado’. As que fazem em conjunto ampliam o
horizonte do conhecimento recíproco, ocorrendo o ‘colocar-se no lugar de’, vendo o sofrimento
314
A exemplo do movimento “Amor Exigente” que possibilita, a partir dos seus doze princípios, material aos líderes,
através de apostila própria. Cf. www.amorexigente.org.br.
315
A exemplo de: Mary Ylvisaker NILSEN, Um Tempo para a Paz (Meditações para a recuperação espiritual). São
Leopoldo : Sinodal, 2004. Este devocionário foi escrito pensando nos DSPA’s. É louvável a iniciativa e a luta de
Donald Earl Nelson para que a tradução fosse realizada.
316
A Cruz Azul no Brasil dispõe de materiais para esse fim. Cf. www.cruzazul.org.br .
317
Parece-nos que a Cruz Azul no Brasil, como movimento organizado, é um dos que mais dá liberdade de atuação
no que tange à forma de se realizar as reuniões.
149
vivido do ‘outro lado’. A promoção dos diálogos cria uma cultura de transparência e possibilita o
desabafar das ansiedades. A proposta de palestras possibilita informações adequadas sobre os
temas da DSPA.
Uma proposta deveria contemplar as vantagens dos modelos. Quanto maior a flexibilidade
da organização das reuniões, assim parece-nos, maior a possibilidade de reter as vantagens.
Assim, sugerimos que no decorrer do mês fossem realizadas duas reuniões conjuntas e duas em
separado, sendo que das conjuntas uma seria de enfoque dialogal e uma com palestra orientadora.
Assim, as reuniões poderiam seguir a seguinte ordem: (1a) conjunta com palestra, (2ª) grupos
separados, (3a) conjunta/dialogal e (4a) grupos separados. Deve-se ter o cuidado para que uma
ordem pré-estabelecida não se torne rígida, substituindo o bom senso do momento. Significa que
se a reunião era prevista para uma palestra e alguém demonstra uma necessidade inadiável de
desabafo, esse espaço deveria ser oportunizado.
Esta proposta também tem suas desvantagens: (i) o distanciamento entre as reuniões de
diálogo poderia inibir maior abertura nos diálogos e (ii) a necessidade de um número maior de
líderes para realizarem as reuniões em separado. Porém são desvantagens possíveis de serem
contornadas, uma vez que se tenha pessoas dispostas a ajudar.
g) Contato com instituições de internação. Quanto maior for o contato durante a
internação, maior será o interesse do residente em manter esse contato posterior. Grupos das
comunidades que se fazem presentes, através de programações específicas – teatro, louvor,
esporte, etc - ‘mostram’ o seu jeito de ser e conviver, o que será significativo para o despertar do
desejo por essa forma de convivência. Indivíduos da comunidade que se fazem presentes,
oportunizando diálogos informais, criam laços relacionais que facilitarão a inserção na
comunidade. Assim, as ‘pontes relacionais’ feitas durante a internação terão uma grande
probabilidade de continuidade.
h) Residente enviado será residente acompanhado. As atividades de apoio da
comunidade cristã em geral não se destinam somente aos egressos das instituições e aos seus
familiares. Estes se tornam a demanda mais significativa da atuação. Porém, essas atividades
estarão ligadas também aos que estão procurando ajuda, ainda nas fases iniciais da recuperação.
150
O atendimento através do grupo de apoio também tem dado resultados satisfatórios, como mostra
a história dos A.As, A.Es, Cruz Azul e tantos outros que assistem aos envolvidos.
Assim, o grupo de apoio pode se tornar uma ‘porta de entrada’ para a internação quando o
indivíduo não consegue abster-se somente através das reuniões semanais.
Quando o residente é enviado para a internação, via de regra, é acompanhado pelos que o
enviaram. Aumenta assim a probabilidade de um acompanhamento significativo no pósinternamento, sendo menor a ruptura entre a internação e a pós.
3.4.2 - Iniciativa das instituições de tratamento
Para corresponder às ou incentivar as iniciativas das comunidades cristãs locais, a
instituição de internação deveria vir ao encontro das mesmas. Para isso, algumas iniciativas serão
fundamentais:
a) Banco de dados. As instituições de tratamento poderiam ter um ‘banco de dados’318
disponível para encaminhar pessoas aos agentes comunitários. Esse banco de dados teria o
cadastro dos residentes e também de agentes comunitários, pessoas preparadas para contatar com
o residente durante e após a sua internação.
c) Obreiro específico para o pós-internamento. Para isso é necessário alguém que se
ocupe com o pós-internamento, mantendo o banco de dados atualizado, contatando pessoas que
poderão dar o acompanhamento necessário, ajudando a reorganizar a documentação, encontrar
emprego e/ou moradia etc319.
Na instituição deveria atuar uma pessoa prioritariamente com esse aspecto: o que será do
residente após seu internamento? Para onde irá? Que apoio receberá? A equipe terapêutica se
318
Fischer propõe uma “Central Aftercare”. Cf. Alexander FISCHER, Dependência em Substâncias Psicoativas:..., p. 120.
Atualmente o CERENE proporciona este aspecto através da pessoa do terapeuta pastoral que mantêm vínculo
também com os familiares. Isso faz com que as iniciativas sejam isoladas e limitadas devido ao grande número de
residentes atendidos pelo respectivo terapeuta.
319
151
ocupa basicamente com o andamento atual do residente: aquilo que é necessário para crescer e se
aperfeiçoar. São tantas as questões a serem tratadas que a importante pergunta do pósinternamento aparece naturalmente no final do período da internação, porém sendo necessária a
sua articulação já desde o início.
d) Assim, pode-se criar uma ‘rede de apoio’. O residente, durante o programa de
internação e na fase final do mesmo, receberia informações do que a instituição possuem ‘ao
alcance dele’, na área geográfica específica em que retornará ou irá dar continuidade ao seu
tratamento: pessoas, comunidades cristãs, grupos de apoio etc. Com a autorização do residente e
seu responsável direto, informações básicas – telefone, endereço – seriam repassadas ao agente
comunitário mais próximo para que este faça os devidos contatos acolhedores. Devido ao
princípio da privacidade e do anonimato, deve-se ter o cuidado para que a autorização seja feita
por escrito e devidamente assinada320.
d) O Agente Comunitário. Esse poderia ter um vínculo de voluntariado na instituição de
tratamento, devidamente documentado, caracterizando-se assim que o seu acompanhamento no
pós-internamento é um acompanhamento proporcionado pela instituição, em parceria com a
comunidade cristã local, correspondendo assim às normas previstas na AMVISA de
acompanhamento pós-alta de pelo menos um ano321.
A figura do Agente Comunitário aparece na proposta de iniciativa na e da Comunidade
Cristã, como também na iniciativa das instituições de internamento. Trata-se basicamente das
mesmas pessoas. Elas formam o vínculo entre as duas grandezas: Instituição e Igreja ou
Internação e Pós-internação.
Uma vez feito o contato inicial do agente comunitário com o egresso, este deveria: a)
demonstrar sua alegria pelo empenho que o egresso teve durante o seu internamento, ouvindo
320
Este aspecto ainda carece de um estudo na questão da legalidade. Porém, é provável que se esse modelo de
encaminhamentos for acordado entre os envolvidos – instituição e residente – não poderá ser caracterizado como
quebra de privacidade e/ou anonimato.
321
“As instituições devem indicar (por escrito) seus critérios quanto a: (...) Procedimentos a serem utilizados para
acompanhamento da evolução dos residentes ao longo de um ano depois da alta”. BRASIL. Presidência da
República. Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância
Sanitária – ANVISA. Exigências mínimas para funcionamento de serviços de atenção a pessoas com transtornos
decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas, p. 44.
152
atentamente sobre a sua caminhada até ali; b) informar sobre o que está disponível para a
continuidade da caminhada, como as programações de apoio e da comunidade em geral; c) dispor
de meios de contatos rápidos (telefone, e-mail, etc.) para eventuais necessidades que poderão
ocorrer ao egresso; d) em caso de ausências do egresso, ir ao encontro procurando descobrir o
que está servindo de embaraço para o mesmo.
Assim, o agente comunitário faria o ‘meio de campo’ entre a instituição e a comunidade
cristã. Sua formação/preparo poderia ocorrer partindo dos dois pólos, hora patrocinado por um,
hora por outro, porém sempre em parceria. A instituição de internamento talvez seja a que mais
tenha condições de proporcionar momentos de treinamento a esses voluntários o que poderia ser
feito em parceria com cursos já existentes ou oportunizando na própria comunidade local.
Com essas iniciativas concretas, a comunidade cristã seria uma continuidade da
comunidade terapêutica e ao mesmo tempo promovedora desta322.
3.4.3 - Casa de apoio
Até aqui temos pressuposto o indivíduo que, apesar de tantas perdas vividas em sua
DSPA, ainda tem um aparato social, especialmente familiar e profissional. Enfatizamos a
necessidade de um aparato sócio-eclesial.
Porém há situações mais precárias em que o indivíduo não conta mais com a família e
com emprego. Muitas vezes ainda sua saúde física é debilitada. Também para essa situação, que
requer uma ajuda diaconal extremamente concreta, trazemos uma proposta.
A proposta que segue é imprescindível. E para que essa seja possível, faz-se necessária a
iniciativa dos ‘dois lados’, da igreja e da instituição de internação:
322
Cf. Rolf Roberto KRÜGER, Comunidade Terapêutica versus Comunidade Terapêutica, p. 7-13.
153
Conforme prevê o projeto de reinserção social do CERENE é significativo o número de
residentes que não têm opções concretas para o pós-internamento, necessitando assim de um
acompanhamento prolongado. Essa situação é caracterizada pela perda da família, da saúde e do
mercado de trabalho.
São necessárias ações concretas e efetivas para possibilitar um ‘trampolim’ de acesso à
sociedade. As CT’s, que sentem o drama na ‘própria pele’, quando concretizam um projeto de
reinserção social, fazem-no com os recursos materiais e humanos já existentes, o que configura
um déficit para o seu específico que é a internação. Nesta questão enfatizamos a necessidade de
que este trabalho seja realizado fundamentalmente pela comunidade cristã.
Como sugestão registramos a possibilidade de casas de apoio, no modelo de pensionato,
especialmente em cidades industriais.
Para a funcionalidade de uma casa de apoio, seriam necessários:
a) Uma diretoria com estatutos próprios de funcionamento.
b) Presença de membros da diretoria e/ou voluntários em horários específicos,
principalmente na ‘calada’ da noite, seguindo um sistema de revezamento.
c) Uma casa alugada com cômodos para abrigar o número de vagas desejadas. O aluguel,
água e luz, seriam pagos pelos residentes que, conforme o item seguinte, teriam uma fonte de
renda.
d) Convênio com firmas para a prestação de serviços gerais. A criação de uma
‘cooperativa prestadora de serviço’323 talvez seja indicado para que o empresário não fique lesado
em caso de recaídas. Ou seja, a contratação não seria individual e sim através da cooperativa que
se responsabiliza pela manutenção das responsabilidades assumidas. O co-obreiro presenciou
muitas vezes a situação de um ex-residente, causada por uma recaída, bloquear novas
oportunidades de contratação pelo empresário lesado. Esse item depende de muita articulação
323
Seria necessário para esse aspecto um assessoramento jurídico para a viabilidade legal. Talvez haja outra
modalidade legal para executar esse princípio, resguardando à casa de apoio complicações com processos
trabalhistas.
154
com o empresário que, mesmo correndo riscos de desconforto, compreenderá o aspecto social do
projeto.
e) Regras claras de convivência e conseqüências pré-determinadas. Desta, a
obrigatoriedade de participar de grupos religiosos e de apoio, conforme a escolha própria, e o
respeito na convivência.
f) Assembléias ordinárias mensais ou extraordinárias para que se crie um
‘gerenciamento participativo’ dos residentes em harmonia com os responsáveis pelo projeto.
g) A entrada na casa de apoio seria através de uma parceria com instituições de
internação, cabendo a esta última o dever de acolher imediatamente, em seu programa de
internação, aqueles que vierem a recair.
h) A residência na casa de apoio seria conforme a necessidade de cada um. Para que a
situação não fique crônica, faz-se necessário um incentivo constante para que cada um cresça na
sua vida social, no que tange ao aspecto profissional e relacional.
Pelos itens acima sugeridos podemos perceber a viabilidade de tal projeto que depende
basicamente de um fator: pessoas dispostas ao tolhimento extremo, conforme vimos sobre a
diaconia. Estrutura física e organizacional serão conseqüência.
Como vimos em diaconia como tolhimento extremo, o DSPA e o co-dependente vivem
um momento de necessidade em termos de tempo e material que causa uma certa ‘dependência’
inicial de quem procura ajudá-los. Somente quem está disposto à esse tolhimento extremo é que
de fato poderá concretizar iniciativas de atendimento. O ideal, portanto, é um grupo de pessoas
com essa disposição.
155
3.5 - Considerações Finais
A responsabilidade da comunidade cristã em relação à problemática da DSPA
fundamenta-se, basicamente, sobre dois aspectos. O primeiro é a ordem de Jesus Cristo, seu
Senhor, que não somente ordenou o acolhimento e a inclusão, como também a praticou. O
segundo é a necessidade premente. Não é possível fechar os olhos e fazer de conta que não há
nada a ser feito.
O potencial terapêutico da espiritualidade cristã (integradora) vivida em comunidade
(acolhedora) não pode ficar escondido ou adormecido. Os residentes das instituições de
tratamento e seus familiares são oriundos em sua maioria de situações caóticas e precisam achar
uma situação que corresponda com as novas expectativas adquiridas na internação.
Isso não significa uma situação perfeita, porém onde se encontra o mínimo necessário
para que se possa gostar de viver: o amor que se manifesta em atitudes concretas para o bem do
outro. Esse lugar de aconchego e valorização é possível aí onde o Evangelho de Jesus Cristo foi
entendido e está sendo vivido.
Esse aconchego é perceptível na Paróquia Luterana da Sobriedade. Oziel324 faz questão de
esclarecer as três regras básicas das reuniões, cada vez que há um novo participante da mesma: a)
O que é dito e ouvido na reunião deve ficar ali. É o princípio da confiança. b) Falar de si mesmo e
não dos outros. É o princípio da transparência. c) Não dar conselhos. É o princípio do ouvir. É
agradável participar de um lugar assim.
Não é complicado promover esse clima nas reuniões. Se o mito da ‘especialidade’ for
vencido será possível o aumento de pessoas que se envolvam na assistência aos atingidos pela
problemática da DSPA em nossa sociedade.
Assim, iniciativas locais promovidas pela comunidade cristã e pelas instituições de
tratamento, trarão alívio para muitas pessoas. E mais, estará aberta a porta para atender outras
situações de sofrimento humano.
324
Esses princípios são refletidos na entrevista de Oziel Campos de Oliveira Júnior, anexo I, p. 45-46.
156
CONCLUSÃO
A caminhada que o CERENE tem feito como instituição demonstra um processo contínuo
de aperfeiçoamento terapêutico. O programa de internação compreende as diferentes áreas da
vida humana no que tange aos aspectos físicos, emocionais, sociais e espirituais. O modelo de
internação tem desenvolvido uma simulação da macro-sociedade para que o indivíduo possa
‘treinar’ aspectos de convivência social. Inicialmente caracterizado por uma proteção maior,
proporcionada por um ambiente não provocativo em relação às SPA’s, e, gradativamente,
inserindo o indivíduo novamente na sociedade. A ruptura entre a internação e a pós-internação é,
entre outros fatores, a mola propulsora de muitas recaídas no uso e abuso das SPA’s.
O despreparo da família em receber e proporcionar o retorno do seu ente querido DSPA
também poderá dificultar uma adaptação saudável no meio social em que o egresso da internação
irá viver. O co-dependente sofre. É preciso ser tratado para que recupere um projeto de vida
próprio e abra mão dessa dependência doentia do DSPA. Só assim poderá ajudar efetivamente. O
tratamento da co-dependência não deverá ter como motivação a recuperação e/ou a manutenção
da sobriedade do DSPA e sim a dignidade e necessidade de uma vida saudável do co-dependente.
Feito isso, conseqüentemente, soma-se para a manutenção daquele.
A espiritualidade integradora e a diaconia acolhedora formam assim o conteúdo e a ação
que dá suporte para que a inserção eclesiástica possa ocorrer de forma salutar. Não é questão de
157
escolha e sim de obediência ao Senhor da Igreja integrar e acolher aqueles e aquelas que vivem
sob a angústia da exclusão social.
A comunidade cristã poderá assim desenvolver atividade que organizam esse acolhimento
integrador dos DSPA’s e familiares em seu seio. Para que isso ocorra é imprescindível que
pessoas se disponham a atuar como servos e servas dispostas ao tolhimento que o serviço traz.
Sem essa disposição, tudo o que for articulado não passará de demagogia piedosa. Para que
pessoas se disponham é necessário que o desafio seja feito. Cabe à liderança eclesiástica a
incumbência de desafiar e proporcionar que pessoas venham a se tornar agentes comunitários em
SPA, criando assim uma ponte entre a internação e a pós-internação, possibilitando a
continuidade do tratamento até que se atinja a fase da Mudança de Identidade e Integridade.
A comunidade que se dispõe a tal empreendimento, além de obedecer ao seu Mestre,
salvando da desgraça os atingidos pelo mega-problema da DSPA, estará mantendo vivo o
princípio da prevenção, aumentando a probabilidade de seus filhos e filhas não adentrarem pelos
caminhos destrutivos e ilusórios das SPA’s.
Famílias disfuncionais fazem parte da etiologia comum da DSPA e dos co-dependentes.
Sendo assim, é mister que a comunidade cristã tenha um olhar próprio para as famílias inseridas
em seu meio e para além dos limites eclesiástico, um olhar atencioso para aquelas que sofrem de
carência orientativa. Assim, as atividades que visam atingir as crianças e os jovens deveriam
receber a atenção necessária para que, a criança e o jovem, oriundos de uma família disfuncional
possam receber, na comunidade cristã, um amparo que as possibilite viver com dignidade e, na
medida do possível, apoio de atendimento para a reestruturação familiar. Tem-se assim a
prevenção, a ajuda e o acompanhamento.
O lema da Cruz Azul ‘Prevenir – Capacitar – Ajudar – Acompanhar’
resume as
atividades que estão ao alcance da comunidade cristã, que, se realizadas, faz dela uma
Comunidade Terapêutica por excelência, promovedora e continuidade das Instituições de
Recuperação de dependentes químicos, através do acolhimento aos egressos e familiares que
caminham rumo à sobriedade.
158
‘Previnir – Capacitar – Ajudar – Acompanhar’ também resume as atividades das
instituições de internação que, se realizadas, fará jus à nomenclatura que receberam, tornando-as
verdadeiras Comunidades Terapêuticas que precisam do apoio das comunidades religiosas.
159
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163
ANEXOS
Anexo I ______________________________________________________________ 01
Anexo II ______________________________________________________________ 61
Anexo III _____________________________________________________________ 63
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
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