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Beatbrasilis Nº 9 #dez/2012 UMA AVENTURA SENSUAL NOS CORDÕES DAS CALÇADAS DE FIDEL ALDOUS HUXLEY, O VELHO QUE VIAJAVA NO LSD ON THE ROAD EM FAMÍLIA BODEGAS E CITRÖENS NA ARGENTINA DOLORES, A MARETRIZ QUE ATRACOU NO BRASIL SOLIDÃO E O SONHO DO FUSCA VERDE Edy star: A LENDA ABRE O CORAÇÃO em ENTREVISTA EXCLUSIVA PARA BEATBRASILIS REVISTA 1 BEATBRASILIS REVISTA 2 BEATBRASILIS EDITORIAL O vento quente se deve ao calor que levanta do asfalto que até a pouco queimava sob um sol amarelo. Mas meu bem, teremos a chuva muito em breve! Aguente! E nem mesmo o cinza que tomou conta do céu ameniza essa temperatura que nos faz suar. Força no teu polegar erguido lânguido, cansado, erótico — um pequenino santo que é parte de teu O Vagabundo Iluminado, o Herói do Imaginário Coletivo, cutuca algumas pedras com suas botas corpo — um santo pedindo ajuda às margens dessas rodovias! enquanto espera alguma próxima carona. Pindabat de piche! Assim como nós, ele não sabe ao certo o que virá depois se o depois chegar. Mendicância pelo mínimo de asfalto necessário! Como nós ele recolhe sua vontade do acostamento e a carrega em suas costas suadas. Nossos joelhos são fortes e farão a diferença, eu bem sei. As árvores balançam com o sopro úmido do Universo que nos ensina a dançar. E nem preciso lhes lembrar da chuva que lavará nossos problemas, caindo sobre a estrada e beijando o Um calor dos infernos! É isso o que faz agora, quase nos fazendo desistir da estrada. chão como letras no papel virgem. Um calor dos infernos que aumenta com os anos, que desgasta, que desbota, que agrada apenas aos diabos. REVISTA 3 BEATBRASILIS Fabrício Busnello Beatbrasilis #Número 9 (Dezembro de 2012) Colaboraram nesta Edição: Cícero Bezerra; Daniel Caldas; Fabrício Busnello; Gabriel Megracko; Guilherme Rocha; Jim Duran; Julieta Puy; Keila Costa; Leandro Durazzo; Marcus Vinicius Marcelini; Mateus Marcelini; Mauro Cass; Sânzio Barreto; Véio China; Vitor Souza Conselho Editorial: Fabrício Busnello; Gerald Iensen; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Durazzo; Mauro Cass; Vitor Souza Diagramação: Taly Procópio e Vitor Souza Sobre: Beatbrasilis é um coletivo cultural. Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e quase sazonal. Contato: beatbrasil@gmail.com http://beatbrasilis.wordpress.com Reprodução: Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima. REVISTA 4 BEATBRASILIS ENTREVISTA EDY STAR Por JIM DURAN Edy Star é mesmo uma figura incrível. Um dínamo divertido que possui uma verborragia contagiante e um propósito claro: continuar. Eu o assisti em cena na Virada Cultural Paulista de 2010, ele com o show “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão Das Dez” e participação especial de Sylvio Passos encarnando Jorginho Maneiro e Rodrigo Titarelli dando vida a Dr. Paxeco. No show ao lado de meu amigo/irmão Wander Killer revivi a nossa adolescência curtindo um Raul arretado numa vitrolinha. Edy pulava, cantava e mexia com a massa raulseixista em pleno Anhangabaú, as músicas do disco do início de carreira de Raul, Sérgio Sampaio, Mirian Batucada e Edy “Bofélia” Star. Reencontrei Edy em 22 de agosto de 2011 na loja “Baratos Afins”, do Luiz Calanca, lá na Galeria do Rock. Iria fazer uma entrevista especial com Sylvio Passos, com o Calanca e, é claro, com o próprio Edy, que arrancou risos da equipe e contou sua história de caminhada, brilho, música e muita personalidade. Revemo-nos por acaso em março deste ano na mesma loja da galeria de onde trouxe uma das poucas cópias que ainda estavam disponíveis do cd “Sweet Edy”, reedição do LP lançado pelo cantor em 1974, que conta com letras e músicas especialmente feitas para ele por um time composto por Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Leno, Galvão e Moraes Moreira, Jorge Mautner, Renato Piauí e Sergio Natureza, além dele próprio. Depois de muitos anos morando na Espanha, Edy retornou ao Brasil e segue com agenda lotada em diversos shows e projetos. Edivaldo Souza nasceu em Juazeiro, Bahia, em 1938. É um cantor, ator, dançarino, produtor teatral e artista plástico brasileiro. Em 1975 estrelou a primeira montagem brasileira da peça Rocky Horror Show, produzida por Guilherme Araújo. Ele não para e me disse uma vez: “eu já vivi mais do que irei viver, o que vier é lucro”. Isso pode caber para o Edivaldo, mas para o Edy não, afinal ele é Star. REVISTA 5 BEATBRASILIS Beatbrasilis: Desde o seu retorno ao Brasil você não tem parado, né? EDY STAR: Bem, tenho que me virar, pois tenho contas a pagar y presentes a dar... y não tenho empresário, luto sozinho, né? Beatbrasilis: São quantos projetos em andamento? EDY STAR: Depois do show do lançamento do meu CD Sweet Edy, no Theatro Municipal, durante a Virada Cultural 2012, me dediquei ao atual ‘O Último Kavernista Canta Raul!’, que é o que venho apresentando atualmente. Mas estou prenho de projetos: musicalmente quero fazer algo sobre os anos 60: ‘Rocks, Boleros y Cha-cha-chas...’, gostaria de trabalhar a obra de Zé Rodrix, y tenho mais um outro. Mas também tenho que realizar alguma coisa em teatro y voltar a pintar... y arranjar um companheiro. Beatbrasilis: Como surgiu o convite para a Virada Cultural Paulista de 2010 (Edy foi um dos convidados do palco RAUL SEIXAS)? EDY STAR: Você quer dizer de 2009, né? O pessoal da Séc de Cultura ligou pra minha casa em Madrid para me convidar. Cheguei a pensar que era trote! Mas vim até São Paulo y acertamos tudo, eu já tinha aquele show na cabeça, y era para um teatro, com os efeitos de luz, marcações, etc... Ali não deu pra fazer, era muito precário. Mas foi o rebu naquele palco, y assim me chamaram a repetir O MESMO SHOW no ano seguinte... Num palco bem melhor localizado, mas entrei as 5 horas da manhã y mesmo assim tive o maior publico!, y num palco onde também estiveram Flora Purim, Ayrton Moreira... REVISTA 6 BEATBRASILIS Beatbrasilis: Como foi ser recebido pelos fãs de Raul Seixas? Como foi esse contato? A amizade surgiu fácil? EDY STAR: Estive aqui em 2008, foi quando fiz contato com o movimento raulseixista y todo povo que eu só conhecia de papo pelo orkut. Marcamos um encontro numa barraca de bebidas, frente a Estação da Barra Funda. Foi fantástico! Muita gente, muito carinho, muita risada... como velhos amigos! Estive em casa de alguns deles... Uma festa! Sou muito grato a toda essa gente, aliás a TODOS os raulseixistas de todo o Brasil... Y retribuo tudo isso, visitando sempre o túmulo do de Raul em Salvador. Mister Bofelia... mas nunca tomei por pejorativo, era mais de carinho, de amizade mesmo. Beatbrasilis: Você curte literatura? EDY STAR: SIM! Cresci lendo muito, não havia TV nem internet... aos 18 anos já havia lido toda a literatura de Dickens, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José de Alencar, Alexandre Dumas, Victor Hugo y principalmente Monteiro Lobato (infantil y adulta), y muita poesia. Aprendíamos cultura nos livros y todos queriam mostrar conhecimento. Beatbrasilis: Te surpreendeu o fato de seu cd Sweet Edy ter se esgotado pouco tempo depois de ter sido relançado? EDY STAR: MUITISSIMO! Eu sempre quis lançar em CD, y quando o Zé Pedro y o Thiago Marques Luiz se prontificaram a isso, fiquei muito contente y confiante. Mas só vi o produto depois de pronto: com aquele livreto, etc. Y sabe que foi o CD que a (gravadora) Jóia Moderna vendeu mais rapidamente y o que mais deu retorno publicitário? Coisas de Star (risos). No mercado livre da internet já se encontra com preços bem altos! Beatbrasilis: De onde veio o apelido “Bofélia”? Beatbrasilis: Tem previsão de lançamento de algum cd de inéditas? EDY STAR: ‘Bofe’, na Salvador antiga, significava ‘macho’, ‘homem’, y como eu era uma bicha maluca porradeira, brigava, etc, me colocaram esse apelido dizendo que eu era a ‘bicha mais macho’ dali. Y creio que o Raul, por intermédio de Waldir Serrão, soube disso, porque perto da casa de Waldir, na Av. Luiz Tarquínio, tinha um garotão que ganhou esse apelido porque dei porrada nele. Então, na CBS, Raul y Sergio me chamavam assim: EDY STAR: Por mim, já teria entrado em estúdio y gravado algo novo. EU PRECISO! Tem gente ainda escrevendo musicas pra mim, tenho umas coisinhas minhas, y umas outras que gostaria de dar a minha versão, inclusive algumas espanholas. Nesse disco novo, deverei ter quatro cantores amigos como convidados, y já poderei ir descansar na Ilha de Itaparica, olhando o mar. REVISTA 7 BEATBRASILIS Beatbrasilis: Como foi o começo de tudo no mundo da música? EDY STAR: Desde pequeno fui envolvido pelo ambiente musical das Rádios. Aos 14 anos ingressei num programa infanto-juvenil na Radio Sociedade da Bahia y não parei mais... a dizer tenho 60 anos de carreira, né? Beatbrasilis: O que você anda ouvindo de bom? EDY STAR: Continuo ouvindo muitos clássicos, muita ópera y muita salsa caribeña. Muita MPB velha, pois pouca coisa contemporânea me atrai, ando numa fase de fastio y desencanto com tanta besteira, tanta coisa ruim, em todos os segmentos, mas ainda consigo descobrir jóias como o grupo Sambô ou o Zeca Baleiro. Beatbrasilis: Como foi assumir a homossexualidade em uma época em que tudo era reprimido ou muito bem escondido? EDY STAR: A mim foi muito natural y nada proposital. Lidava y vivia num meio artístico, onde praticamente esse ‘problema’ não existe tão acintosamente. Afora minha fase colegial de bulling, nunca sofri restrições por ser gay... a grande repressão vinha mesmo da polícia com seus abusos machistas, não era bem da ditadura. Mas sempre se driblava o cerco, y todo mundo fazia suas bacanais, concursos de misses, festinhas de embalo... Bons tempos, pois apesar de tudo, não havia AIDS nem o execrável ‘politicamente correto’, y uma maior liberdade y liberalidade quanto aos costumes sexuais. Beatbrasilis: Como foi a sua ida pra Espanha? 2011 — EdyREVISTA Star, Jim8 Duran e Silvio Passos na Galeria do Rock BEATBRASILIS REVISTA 9 BEATBRASILIS EDY STAR: A situação de trabalho estava muito ruim... eu que sempre trabalhei nos cabarés, onde já não havia conjuntos nem musica ao vivo, y antes que morresse de fome, resolvi ir conhecer o país que mais admirava y depois me suicidaria. Mas três dias depois de chegar em Madrid já estava trabalhando num cabaré... y fui ficando, ficando... 19 anos! Beatbrasilis: Você trabalhou muitos anos em cabarés. Como era a vida nessa época? EDY STAR: No Rio, sempre trabalhei na noite, em cabarés... Durante minha juventude conheci y me preparei para trabalhar em teatro musical brasileiro, o famoso teatro de revistas, mas aquilo estava acabando, y peguei os últimos resquícios nos cabarés da Praça Mauá y tomei gosto. Fiz também teatros, mas gosto mesmo é de cabaré: trabalhar com as putas y todo aquele mundo: é algo fantástico. Elas são mães dedicadas, amigas incríveis, y todas tem uma historia de vida sofrida y desigual. Era para mim um trabalho como outro qualquer, cheguei a fazer 6 shows por noite, correndo com meu fusca entre a Praça Mauá, Lapa y Copacabana... Ao chegar na Espanha calhou de também trabalhar no mais famoso cabaré do centro de Madrid: ‘Chelsea II’, y ali fiquei por 18 anos... Dirigindo 36 mulheres internacionais, devo ser bom, né? Beatbrasilis: Sente falta da Espanha?? EDY STAR: Não tanto quanto eu gostaria... sou muito camaleônico: me adapto com muita facilidade aos lugares ou situações. Mas, me faz falta a organização, a cultura y principalmente a educação, não só da Espanha, mas da Europa, pois conheço outros países... Tive que me ‘deseducar’ para me 1989 — Edy entre Raul Seixas e Marcelo Nova REVISTA 10 BEATBRASILIS readaptar ao BraZil. Sinto falta do meu apartamento quase em frente ao Palacio Real, das ‘niñas’ do Chelsea, da música flamenca, dos museus, das tardes de toros (touradas), y da facilidade para encontrar coisas de países vizinhos... Sinto falta de uma certa segurança y da maneira como administram a corrupção: lá não se faz pizza politica! Beatbrasilis: E o artista plástico Edy Star? Pensa em expor seus trabalhos? EDY STAR: Precisa ser reativado urgentemente. Agora que tenho lugar y luz, tenho que voltar a pintar, y naturalmente mostrar o que sei y posso fazer... Em parte é também uma necessidade de realização pessoal. Nem só de música vive o homem... ou não? REVISTA 11 BEATBRASILIS O VELHO E ADMIRÁVEL ALDOUS Fabrício Busnello “O medo elimina a inteligência, elimina a bondade, elimina todo pensamento de beleza e verdade. Só persiste o desespero mudo ou forçadamente jovial de quem pressente a obscena presença no canto do quarto e sabe que a porta está trancada, que não há janelas.” - Aldous Huxley (1894-1963), em O Macaco e a Essência. REVISTA 12 BEATBRASILIS S e você, em alguma conversa num grupo de convivas, disser que curte Aldous Huxley, existe uma grande probabilidade de algum gaiato, exultante e faceiramente, lhe contar o quanto ele gostou d'As Portas da Percepção (1954), complementando, quase mijando nas calças de êxtase a essa altura, que foi o livro que deu origem à banda de rock norte-americana The Doors. Se não isso, alguma outra figura lhe lembrará, de forma mais intelectual e comedida – talvez acendendo um cachimbo - que Huxley é muito mais autor em Admirável Mundo Novo (1932) que no livro anteriormente citado. E ele não estará, de forma alguma, equivocado. Equivocado mesmo, penso eu, é o fato da maioria das pessoas começar e terminar suas experiências huxleianas nestes dois livros, quando o universo literário deste recatado autor inglês é muito mais rico do que nos permitem imaginar estas duas obras – ou bem permitem sim, o que torna mais difícil de entender o porquê do limite ser normalmente restrito a estes parcos títulos. ‘Mas o cara é chato pra caralho, Fabrício!’. Não... não é, velho! Tal e qual alguns outros grandes escritores como Joyce, Pound ou Saramago, é preciso, com Huxley, sacar qual é a dele, ter paciência. E a dele, babe, é se tocar que atrás de todos aqueles bons modos, toda aquela distinção e fidalguia, está um gênio que reclama abertamente a cruzada de cada Homem em busca do ápice de sua consciência, e também um crítico ácido da humanidade e de suas escolhas pelo caminho que ela trilhou; e ele te contará isso em voz baixa, com calma pausada, tomando um chá num jardim de inverno. É assim em Contraponto (1928), um romance absurdo em que cheguei a cogitar do velho Huxley ser esquizofrênico, tamanha a profundidade das suas personagens, cada uma com uma personalidade dife- REVISTA 13 BEATBRASILIS Úteros artificiais no “Admirável Mundo Novo" de Huxley REVISTA 14 BEATBRASILIS rente da outra, e todas sólidas, completas, influentes! Ou então nas bizarras situações contidas em Também o Cisne Morre (1939), onde um doutor maluco se presta a pagar caro pela busca da imortalidade. Falarei então de um outro exemplo que mostra um Aldous mais explícito e desesperançado, colocando a crítica à nossa raça no limite em O Macaco e a Essência (1949): um romance pós-apocalíptico escrito em forma de roteiro de cinema que nos mostra um mundo destruído pela bomba atômica e uma nova Califórnia habitada por babuínos que levam cientistas pra passear presos em coleiras (e que devem juntar seus cocôs em saquinhos, por certo). aquele dia, às 17 horas dum 22 de novembro de 1963. Mesclou a morte com uma viagem colorida, e deve ser mesmo isso o que nos aguarda depois do último piscar de nossos olhos abestalhados! Huxley não é chato, viu? Era isso que eu queria te mostrar! Posso mais um? Ok. Então espera só até eu te contar um pouquinho d’A Ilha (1962), seu canto do cisne, seu livro-testamento, a sua obra-prima em que ele nos fala de uma sociedade idealizada que se contrapõe ao sinistro futuro sombrio que lemos em Admirável Mundo Novo, escrito 30 anos antes: a civilização da Ilha de Huxley busca com calma e equilíbrio uma existência plena e feliz – e consegue. (destaque para as viagens de cogumelo das personagens em determinado momento... de verter lágrimas, lhes juro). E já que tocamos em cogumelos e como uma coisa liga a outra e também por que esse texto tem que terminar como tudo nessa vida, vou contar, pra quem ainda não sabe, quais foram as últimas palavras que escreveu o velho Aldous, já fatalmente doente em um leito de hospital: impossibilitado de falar, escreveu ele à sua mulher num pedacinho de papel: “100 microgramas de LSD, aplicação intramuscular”. Depois de 69 anos e 47 lindos livros cerebrais, era assim que se despedia o nobre bretão. Duas doses lisérgicas e algumas horas depois de atendido seu desejo, ele morreria quase junto com REVISTA 15 BEATBRASILIS REVISTA 16 BEATBRASILIS SEM FIM: UM POUCO SOBRE ON THE ROAD Keila Costa Em que lugar vai dar aquela estrada sem fim, de curvas pouco sinuosas, declives e aclives suaves a penetrar a vegetação árida, por vezes nevada sem deixar nunca a aridez? Seria na verdade a secura da alma a verter toda sorte de encontros imprevistos, de digestivas indigestas substâncias alucinógenas? De amizades e amores parcos e loucos por anunciarem sempre o fim, ainda que houvesse sempre um trago a mais que sorver, o final do fluido ou o início quem sabe, na dúvida permanente do copo pela metade; prestes a acabar ou a ser preenchido? Um novo encontro, embora sempre velho. O livro On The Road, de Jack Kerouac, pareceu-me assim, mas diferentemente do filme recentemente visto ao lado da minha mãe, traz uma compulsividade infinitamente mais frenética, uma loucura imanente e iminente, enquanto o filme resumiu-se a retratar crises, pequenos clímax do REVISTA 17 BEATBRASILIS livro diante da estrada sem fim, quando, é claro, a imagem pudesse render algum tipo de assombro ou exotismo, sem exageros, devo admitir. Asseguro que minha mãe manteve-se aparentemente com o olhar fixo na tela; penso que queria perscrutar a próxima curva, onde ia dar, para depois me dizer se alguma chegada valeu. O manuscrito é como uma montanha russa; uma monotonia sórdida, natural da vida de qualquer um, e uma súbita busca indeterminada, do incompreendido apenas para alguns, os mais ousados ou porque não dizer alucinados categóricos, ilegais. Curioso é como os lugares retornam e são sempre obrigatórias passagens ou chegadas triunfais, repletas de expectativas. Os lugares tem vida, os personagens querem viver ainda que custe a morte. Esqueçamos da alucinação alienada, legal, mas sem esquecê-la totalmente. O mundo ‘paralelo’ do ‘autor’ e seus ‘comparsas’ nem mesmo hoje soa como natural, pelo menos para os conservadores, para não dizer a maioria que nos rondam. E aonde fica a sobriedade que resguarda a sobrevivência digna, ainda que indignamente tristonha? Como encontrar em meio à realidade de dentro e de fora essa alucinação legal, saudável e asséptica? São essas perguntas que KerouaC fez nas entrelinhas. O diretor Walter Salles deu seu recado, dada as limitações da adaptação para uma obra tão repleta de movimento; ou ficava na estrada ou ficava nos lugares ou ficava nas pessoas. Precisou fazer os três e perdeu a profundidade até mesmo da superficialidade em alguns momentos. O tempo exíguo deixou o manuscrito sem grande expressão na tela, mas digestivo. Bonita fotografia, jazz, bop, blues; negros fabulosos, virtuosos na voz, no toque instrumental, na dança. Menos que no livro, é claro. Não deu tempo para tanto sexo, drogas e rock n’roll. Mamãe não teceu grandes comentários. Adolescente nos anos 70, nem de longe soube o que significava beat, hippie. Foi apenas uma moça interiorana com rebeldia escondida. Acho que continua rebelde latente. Penso que ela não acharia mal ir pela estrada sem fim. REVISTA 18 BEATBRASILIS UM TURISMO SEM PRESSA PELAS BODEGAS ARGENTINAS Mauro Cassane REVISTA 19 BEATBRASILIS carro é só o barulho do vento, do motorzinho ronc ronc e toma bate papo. Lá fomos nós num "on the road" etílico. Primeiro vamos conhecer este antológico automóvel. Não é bonito mas é simpático, equipado com um motor pequeno, tímido, bicilíndrico, refrigerado a ar e com pouco mais que 30 cavalos de potência. Muitos já o viram por aí, particularmente quem já passeou pelas ruas de Paris ou, mais perto de nossa realidade, por Buenos Aires, na capital argentina, muitas vezes em estado deplorável. O carrinho, para os argentinos bem mais clássico e tradicional que o Fusca é para nós, brasileiros, é o Citroën 3CV. Lançado nos tempos das vacas magras do Pós-Guerra, na França, em 1948, o carro, de concepção muito simples, e forte apelo popular, rapidamente conquistou o gosto, e o bolso, dos trabalhadores que começavam a flertar, e a sonhar, em ingressar na classe média da maneira que todos, ainda hoje, sonham: motorizados. Eu sei que dirigir não combina com bebida alcoólica, mas para tocar um Citröen 3CV, vá lá, abra-se uma exceção. E além do mais é vinho! O carrinho, como um calhambeque, não passa de 60 km por hora. E lá em Mendoza, na terra do Malbec, eles alugam este carro pra gente passear pelas bodegas instaladas ao pé da Cordilheira dos Andes. Fui com meu amigo Marça, que é jornalista de turismo. Nos convidaram para mostrar este novo serviço em Mendoza, que é o aluguel de carros antigos impecavelmente recuperados. Na verdade, não há opção, só tem mesmo o Citröen 3CV. E a estrutura É roots mesmo. Você pega o carrinho no aeroporto e se vira. Vai curtir o mundo dos vinhos. Não tem som: no Se não dava para comprar aqueles carrões dos endinheirados como Aston Martin, Oldsmobile 88, Cadillac, Jaguar ou o desejado Studebaker Champion, com o lançamento do Citröen 3CV o povão ao menos vislumbrou ser possível, feito os magnatas, também desfilar pelas ruas dirigindo um legítimo automóvel. Ok, não era exatamente um carrão de luxo, muito pelo contrário, era pequeno e ordinariamente simples, também não tinha no design seu ponto mais forte, muitos o apelidaram de "patinho feio", mas, enfim, era um automóvel e não uma carroça puxada por jumentos. REVISTA 20 BEATBRASILIS O Citröen 3CV foi fabricado por 42 anos. O último modelo saiu de linha de montagem, em Portugal, em 1990. Assim como seu conterrâneo Fusca, manteve heroicamente sua carinha simples e pouco simétrica, com formas arredondadas e nem sempre harmoniosas. Ainda é possível encontrar alguns pela Europa e, na América do Sul, se vê aos montes na Argentina, muitas vezes judiado pelos anos. Mas um empresário de Mendoza, terra dos grandes vinhos Malbec argentinos, com misto de visão empreendedora e poética, resolveu ousar e alçar o Citöen 3CV, outrora carro de proletário, a uma categoria muito mais nobre: o símbolo de um estilo de vida onde o importante não é a pressa ou a ostentação, mas sim a calma e a contemplação. Ramiro Marquesini criou a empresa SlowKar com uma proposta ao mesmo tempo criativa e inusitada. A ideia é oferecer aos turistas que visitam a região de Mendoza a experiência de conhecer as diversas vinícolas e excepcionais restaurantes a bordo de um Citröen 3CV, impecavelmente reformado, com todos os detalhes de como foi originalmente concebido recuperados. O aluguel da diária do carro não fica muito diferente do que se paga em um automóvel mediano nas locadoras convencionais. O valor da diária gira em torno de cem dólares e pode cair caso se aumente o número de dias com o veículo. O único equipamento de alta tecnologia embarcado no Citröen 3CV da SlowKar é o GPS, indispensável, que te ajuda a chegar REVISTA 21 BEATBRASILIS às principais atrações turísticas de Mendoza: bodegas, restaurantes, museus e monumentos. Os melhores roteiros ficam inseridos na memória do GPS. DICAS O carro, com muito esforço, chega a 60 km/h. O som é de calhambeque. O que falta de conforto e potência, sobra em charme e elegância. Com o Citröen 3CV você, sem dúvida, protagoniza um jeito descolado de fazer turismo. Diferente das grandes cidades brasileiras, onde os motoristas parecem ter pouca paciência com carros menos favorecidos em potência, em Mendoza o pequeno e lento francês não só é respeitado como admirado por todos os motoristas. Os carros dão farol, motociclistas acenam e caminhoneiros buzinam cumprimentando. Todos vão te passar, fique certo disto. Mas o fazem com todo cuidado e muito respeito. O fato é que, com o carro, você tem a prazerosa sensação de, além de estar fazendo turismo ser, você mesmo, uma atração turística. • Para curtir o clima de inverno e a Cordilheira dos Andes com boa cobertura de neve prefira os meses de abril, maio, junho, julho e agosto. E se os entendidos na arte de apreciar o bom vinho sabem harmonizar a nobre bebida dos deuses com os mais diversificados pratos da alta culinária, agora também é possível conjugar vinho à graça de um clássico dos carros populares, um Citröen 3CV, safra 1980. A SlowKar, atualmente, tem seis unidades para locação e os interessados podem fazer a reserva no site da empresa: http://www.slowkar.com. • Faça passeios de, no máximo, 120 quilômetros, mais do que isso a viagem se torna cansativa e você pode ter que, no retorno, trafegar a noite pelas autoestradas. • Caso opte por ver as uvas nos pés, bem como a colheita, o melhor é ir entre novembro e fevereiro (neste caso esqueça a neve). • Prefira fazer os passeios das 8h às 18h no inverno (pois amanhece tarde e anoitece cedo) ou das 7h às 20h no verão (dias mais longos). A noite opte pelos serviços de táxi para ir aos restaurantes mais distantes ou faça uma caminhada por Mendoza que é sempre muito agradável. O Citröen 3CV oferecido pela SlowKar é excelente, tudo funciona perfeitamente bem, mas o carro, por ser lento e por ter pouca iluminação, não oferece muita segurança a noite. • Visite o restaurante Urban O.Fornier para jantar e a Bodega Fornier, do mesmo proprietário, para conhecer o processo de fabricação de vinho e apreciar um almoço com um incrível visual para as Cordilheiras dos Andes. Ambos restaurantes foram considerados como "O melhor da Argentina " e o vinho que leva a mesma marca é de primorosa qualidade. Mas fique atento ao GPS, restaurante e bodega ficam em lugares distintos. • Se você realmente aprecia bons vinhos coloque em seu roteiro uma visita à Bodega AVE, do italiano Lacopo di Bugno, que produz um vinho com identidade de Mendonza, mas com personalidade de Toscana. REVISTA 22 BEATBRASILIS ( CAPA ) A BOMBA SEXUAL Guilherme Rocha REVISTA 23 BEATBRASILIS Ato I Após uma perambulação etílica pela ilha revolucionária de Cuba, com direito a encontros e desencontros com representantes da mais voluptuosa casta de mulheres cubanas, estou em casa, relembrando as nebulosas experiências e determinado a chegar a uma conclusão sobre o que vem a ser a “vida e formação” destas que virei a chamar, para efeitos pseudo-sociológicos, de “a bomba sexual cubana”. Permita-me apontar minha sofisticada hipótese — não é fácil ser uma bomba sexual! Especialmente uma bomba sexual que caminha confiantemente pelas preguiçosas ruelas de Havana com uma bunda grande e saltitante. Não é fácil. Machos se achegam às fêmeas proferindo dizeres como “safada”, “cachorra” ou “vou encher-te de leite”. Não é fácil ser o foco de todos os olhares da rua quando, inconscientemente, o vestido que já é curto vai subindo e, de repente, a bolsa cai no chão e não resta opção senão se agachar para recolhê-la. Não, não é nada fácil. Os homens se alteram. Param tudo, urram, martelam os peitos. Não posso afirmar que é uma realidade exclusiva de Cuba. Pode até ser que o mesmo ocorra na Finlândia, na Tailândia ou na Polinésia Francesa, mas duvido muito. Duvido muito que em Moscou haja bairros como o da Yéssica, em que homens ociosos se sentam em muretas, entrando em transes ejaculatórios quando vêem uma bomba sexual passar. REVISTA 24 BEATBRASILIS Conheci Yéssica com as melhores das más intenções. A idéia era simplesmente convencê-la a sair comigo para que eu pudesse conquistá-la e levá-la ao meu quarto de hotel. Entretanto, meu encontro com ela se tornou premissa para investigação sociológica quando durante a conversa ela disse: “não consigo imaginar uma vida em que eu não chame a atenção dos homens, mas, vou te falar a verdade—se é difícil ser uma bomba sexual, mais difícil ainda deve ser ter que se conter perto de uma”. Ao comentar a frase com amigos (e mostrar a eles uma foto de Yéssica), estes foram unânimes em dizer que eu tinha que aprender a reconhecer os momentos certos para bancar o intelectual. "Ela estava apenas te dando carta branca para martelar o peito e partir para o ataque". Provavelmente, mas não tive como resistir ao estímulo. A partir daquele momento iria explorar o que ela acabara de dizer. Que ordem social é essa em que bombas sexuais são elevadas a níveis de semi-deusas? Yéssica é graduada com honras pela Universidade de Havana, mas me explica que prefere sair com tipos vulgares, que passam a mão na sua bunda em público e que a abordam sem pudor. Fascinante. “Porque tipos vulgares quando, claramente, você tem amplas possibilidades de escolha? Por que não sai com doutores, empresários, velhos ricos, europeus?”. “Já tentei, REVISTA 25 BEATBRASILIS mas não adianta. Gente sofisticada simplesmente não me faz gozar. Prefiro o trato rude, as obscenidades no pé do ouvido. Gosto de mordidas, puxões de cabelo. Quero coisas apegadas ao solo, coisas que me asseguram que estou viva. Estou pouco me fudendo para vinhos importados e caviar russo, casas decoradas com originais de Picasso, esculturas no estilo Botero; esses ambientes doces e perfumados, quartos com cama d’água e incensos de mirra ao lado do televisor LED. Foda-se tudo, nada disso me serve. Gosto de coisas que me fazem sentir viva, tipo quando cortam a eletricidade e os mosquitos começam a picar e azucrinar meu sono, ou, sei lá, quando chove tanto que a casa inunda. Esse tipo de coisa.” “O primeiro que uma bomba sexual deseja é ser empurrada contra uma parede descascada, seguido de uma mordida bem dada. Não quer concessões ou tratamento especial. Prefere sua transa em um quarto sujo, cheio de mofo, numa cama roída por cupins e com buracos nas paredes para que os vizinhos assistam. Gosta de mostrar tudo de maneira obscena, vulgar. Quer abrir as pernas e tragar o mundo. Quer ser penetradas em camas que se desfazem durante o orgasmo; quer insultos; quer sangue.” Desde pequena, Yéssica sai para a rua sentindo uma enxurrada de olhares sedentos. Jovens que querem brincar de marido ciumento e que se tocam, golpeiam, dizendo coisas como “veja que linda, quando crescer vai ser cachorra”. Ou a mãe que lhe cobria de roupas REVISTA 26 BEATBRASILIS tentando esconder suas protuberâncias, porque “sua filha não vai ser qualquer uma”. Ou então o pai que pertencia ao Partido Comunista e ainda acredita que o socialismo é uma percepção estática de uma utopia onde indivíduos são rígidos e perfeitos (quando se supõe que um socialista, ou ao menos um revolucionário, deveria ser uma pessoa que crê firmemente em uma mudança integral no mundo, que vê mais além dos dogmas e que, por isso, crê no respeito e na diversidade do ser humano). Meu ponto é, caros leitores, que ser uma bomba sexual é um chamado, é um estilo de vida. Não se escolhe ser assim. É o resultado de um conjunto de fórmulas e predisposições unidas a uma equação de caráter e hábitos. E quando se percebe o que aconteceu, já não há mais volta. A formação de bombas sexuais é distinta nos bairros nobres de Havana (ou em qualquer outro lugar do mundo onde não se falta água e não se cozinha a luz de velas). A bomba sexual deve ser crua e orgânica, um produto de seu meio. Algumas mulheres optam por essa vida adotando uma ficção. Usam bolsas D&G, peitos de silicone, vestidos desenhados em Paris e têm conversas tipo “ohh, meu Fusca 21078 ontem fez um brum brum brum estranho e agora não tenho opção senão comprar um carro moderno, um Audi ou talvez um Nissan.” Essas mulheres são fraudes. Usam saias curtas, blusas transparentes, mas não buscam uma REVISTA 27 BEATBRASILIS profunda penetração anal, senão estratosféricas pelas butiques de Havana, Miami, café da manhã em restaurantes cinco unhas falsas, Chihuauas trazidos do México sei lá o quê com o rabinho e blá blá blá, a tem fim. compras férias em estrelas, que fazem lista não Ato II Às 8h15 em ponto Yéssica está no lugar combinado, apetitosa, esperando por mim. Caminho confiante. Nada de camisa passada, calças sofisticadas, sapatos finos, nada disso. Apenas uma calça rasgada, um boné velho e um pulôver apertado definindo os peitorais. Ela está vestindo uma blusa decotada e uma saia curta, mas nos meus olhos ela sabe que eu já estou a vendo nua. “Estás linda, mamita” e ela sabe que quero dizer que “não vejo a hora de te comer gostoso”. Enquanto avançamos pela rua, desconhecidos aparecem do nada e me felicitam. “Aê, mano, tás arrasando, hein?”; “boa, bróder, se garantiu bonito!”, ou “se liga maluco, essa mulher vai fazer uma macumba nos teus culhões!” Pois bem, não estou tirando isso do nada, mas em que outro país do mundo se pode contemplar uma cena dessas? Estou convencido que no Vietnã isso aconteceria de uma outra maneira. Passamos por uma rua onde jovens sem camisa jogam fute- REVISTA 28 BEATBRASILIS bol. Quando vêem Yéssica passar, tocam os testículos, mordem os lábios, gesticulam, falam besteiras. Ela não parece se espantar. Eu finjo que já vi coisas piores. O importante é me concentrar no papel que decidi interpretar, o do destruidor de tanques de guerra, o do bárbaro mastigador de granadas antiaéreas. Chegamos a uma casa em um beco sem saída. Está cheia de gente inquieta, suada. A música é irreconhecível. Não tem melodia. É puro ritmo. Invita movimentos da pélvis e pegadas por trás. É disso que ela gosta. Sirvo a ela um gole de meu rum. Dançamos. Ela está em ebulição, começa a dançar sensualmente, como toda bomba sexual que se preza. Rebola como se possuída. Bunda pra lá, bunda pra cá. Homens e mulheres desviam seus olhares. Copos são virados, cigarros se ascendem. A saia vai subindo deixando a calcinha a mostra. Sua blusa adere aos peitos duros. Mulheres olham com ódio a seus machos, põem as mãos na cintura. Opto por menor exposição e, como o bom reptiliano que decidi ser, eu a agarro pelo braço e a tiro da pista de dança. A massa protesta. “Deixa ela dançar, mano. Ela está se divertindo”. Mas não quero saber. Ajeito sua saia e mando todos à merda. “Não seja um babaca”, diz um deles ao me empurrar levemente. Tudo vai de mal a pior. O grupo que implicou comigo REVISTA 29 BEATBRASILIS continua protestando efusivamente, mas outros me defendem e, em pouco tempo, pessoas de todos os tipos se metem na confusão. Vejo Yéssica de relance. Ela parece hipnotizada, presa na cena como se sentindo um perverso êxtase. Afinal, ela havia inspirado toda a selvageria. De repente ouço o cair de uma garrafa de vidro e sinto um forte empurrão. Revido com outro empurrão e pouco depois sou socado por um troglodita que estava atrás de mim. Giro e acerto uma direita bem no seu olho. Ele põe as mãos à cara e eu o empurro pra longe. Esbarra em quem deve ser a namorada de um mulatão com cara de mau. Agora é ele que se envolve, socando geral. Mulheres gritam. Cachaça voa. Já ninguém sabe como tudo começou. O reggaetón toca enquanto os mais despreocupados continuam dançando. Desvio agressões enquanto busco uma saída do rebuliço. Encontro Yéssica. Ela está com uma cara de fascínio, como se pensando: “esse encontro está saindo melhor que imaginava”. Vou até ela. Ela me encara com olhar de predadora. Me puxa pelo braço e para fora da festa. Não sei para onde está me levando. Atravessamos a rua e entramos em um quartinho cuja propriedade não me interessa. Tem um colchão velho no piso sujo. Na parede uma reprodução do girassol de Van Gogh. Sobre a mesa um rádio velho e oxidado. No teto um ventilador barulhento. Olho para Yéssica. Sei bem o que ela quer. Arranco meu pulôver rasgado. Beijo seus lábios. REVISTA 30 BEATBRASILIS Sinto sangue na minha boca, sinto meu olho inchado, mas é assim mesmo que ela gosta. Ela me empurra contra o colchão e me desnuda por completo. Pega meu membro e enfia na boca. Deleita-se. Revido. Pego ela pela cintura e forço seu corpo contra o meu. Mordo seu pescoço, arranco sua roupa de qualquer maneira. Ponho seus peitos em minha boca, engasgo, tusso, ponho de volta. Lambo-a de cima a baixo, deixando-a em um nível de expectativa e total entrega. Pede pra meter e eu a penetro feito bicho, como se temendo pelo fim de um sonho imprevisto. Bato. Aperto. Aumento a velocidade. Sinto fúria. “Goza, cachorra”. Ao princípio tento me conter, evitar o catastrófico fim, mas depois o instinto é de deixar ser levado. Logo vem a inevitável explosão e o caos de sangue, órgãos e ossos disseminados por todo o quarto. Minha cabeça cai em frente à velha televisora, meus braços debaixo da cama, minhas pernas na entrada do banheiro, junto aos restos do que em vida foi Yéssica. E com este fim me lembro do que ela havia me dito enquanto contemplávamos o mar. “A vida bem vivida deve ser atroz, porém harmônica. Deve ser um deleite pitoresco. Nada dá um sentido de vida mais intenso do que, depois de nos estraçalharmos todos, termos que recolher a desordem e começar tudo de novo”. E assim seguimos, munidos de nada mais que sonhos e bravura, despertando todos os dias para eternos recomeços. REVISTA 31 BEATBRASILIS REVISTA 32 BEATBRASILIS I - A Espanhola Cumbica. Antes, porém, é necessário procurar o fio nesse novelo emaranhado. Vem aqui cabron! Quiero cincuenta reales entre los pechos de su Dolores, ahora! Ela ordena. Gosto disso. Gosto desse seu jeito de cobra e da hora imprevista do bote. Portanto, sabendo que vai me pegar de um momento para outro, é que coloco a nota entre seus seios e adentro o seu pequeno quarto, sua caverna que fede à perfume e cigarro barato. Sim, meus senhores! Apresento-lhes Dolores, a “Espanhola”. É uma história tanto complicada. Dela só sei que veio da Espanha, região basca propriamente dita e está há pelo menos dois anos aportada no Brasil. Não, não! Não chegou ao nosso país atrás das folclóricas festas dos bois amazonenses ou dos badalados desfiles das escolas de samba na Marques de Sapucaí. Ela pisou o nosso território à custa dum casamento prometido numa louca história de Internet. Confidências suas e que apesar do pouco tempo de nossa convivência fez questão que eu soubesse. Não, Dolores não é mulher de chorar o leite derramado apesar dos seus momentos de fragilidade. E sei disso, pois certamente sou um dos seus melhores e privilegiados clientes. Enfim, é uma melancólica e arrebatadora história de uma mulher que se apaixonou e que acalantou durante um tempo o grande sonho da felicidade. Felicidade que virou pesadelo a partir do dia que pisou o par de calçado 39 no Aeroporto Internacional de REVISTA 33 BEATBRASILIS Bingo! Daí para frente foi fácil. O canalha a convenceu de que fizesse em seu nome uma ordem de pagamento. O dinheiro veio dar numa agência dum banco na Avenida da Liberdade. Óbvio, tudo frio, nome, conta, documentos, menos o banco e o dinheiro sacado, claro. II - O Golpe Vagabundo (O Brasil envolvido) Dodô! Sussurrou com voz adocicada (era assim que o vagabundo chamava a Dolores) Depois de pequena pausa continuou: Sabe amor, de nada vai adiantar você trazer esse tanto de dinheiro ao Brasil já que é quase certo que a Federal vai confiscar a sua grana assim que pisar no aeroporto... Dolores a tudo ouvia. Ela estava prestes a embarcar para o Brasil e o seu coração estava apertado e as dúvidas corroendo suas certezas. Contudo o que ela jamais poderia imaginar era que estava diante dum sujeito que, além de boa pinta, era frio, calculista, um verdadeiro artista na arte de atuar e ludibriar. E outra, amor! Aqui os federais são uns ratos! Esses caras da lei vasculham tudo, inclusive a genitália para ver se abriga drogas nas entranhas. É um terror! O malandro dramatizou naquela última conversa diante de webcams. O homem percebia que causara a aflição da mulher. Agora quase não havia mais dúvida; O ardil seguia em bom caminho: Sí, mi amor. Entonces, qué podemos hacer? Puede usted decirme? REVISTA 34 BEATBRASILIS III - A Espanha invade a Coréia não poderia ser outro, afinal, até o telefone para o qual esporadicamente ligava estava impresso na placa indicativa da atividade comercial. Dónde está el descarado Eustógio? Quiero hablar com ese hijo de puta! Ela irrompeu o local em altos brados enquanto que batia os pés e balançava as duas mãos nos quadris. Finalmente, depois de muito olhar para o letreiro, ela entrou e sabemos agora o desenrolar da parte inicial da história. Porém, somando-se todos os infortúnios, ainda mantinha-se distante da compreensão da espanhola o fato de ali ninguém conhecê-lo, saber do seu paradeiro, ou de qualquer detalhe que a levasse à presença do indivíduo. Depois de algum tempo o perplexo coreano pateticamente protestou. A senhola só pode tá lôca, dona! Aqui tem Istógio nenhum! Aqui é loja de internet, lugar de ganha pão de Dong Hwan! Vá ploculá a sua tulma, vá! Sim, Dong Hwan fora pego de bermudas justas, literalmente, diante da intempestividade da mulher de corpo farto e encapetado como o próprio demônio. Claro que não houvera nada no aeroporto conforme o combinado: o amado juntamente dum buquê de flores para festejar o seu desembarque. E isso ela só foi dar conta após duas cansativas horas de espera no saguão sem que algum sujeito com cara de apaixonado desse as caras e dissesse: Meu amor, é você? Que felicidade!” Por fim, acabou desistindo de permanecer ali. Depois disso só restou a esperança de algum contratempo além das malas e um endereço num pedaço de papel no qual foi deixada pelo taxi. Com o trio de malas na calçada ainda conferiu por duas ou três vezes o endereço e confirmou ser aquele o local que certa vez o homem mencionando ao acaso a aflorada premonição mandou guardar. E o lugar REVISTA 35 BEATBRASILIS A pendenga perdurava e o coreano tentava convencê-la. E ela por mais que se esforçasse não o entendia e muito menos se fazia entender. De certo só a persistente afirmação do coreano que dizia desconhecer o tal "Eustógio". apenas que o cliente fornecesse para ele o número de quem faria a ligação e ele a transferiria para a cabine assim que fosse identificado no aparelho. Ta pecebendo minha senhola? E era esse o motivo que a deixava incontrolável. Mi San Antonio, usted no entiende, hombre de Dios! Pero este fue el número de telefono e o local que Eustógio me dice! Está a cá! Gesticulava ela mostrando o pedaço de papel. Somente com a ajuda de um moço que acabara de adentrar a loja e que mantinha parco conhecimento da língua espanhola é que o coreano tomou ciência do que pretendia a mulher. IV - A Coréia contra-ataca e a Espanha bate a retirada Ah, sim! Agora entende, mas Dong Hwan tem nada a ver com isso! E esse telefone é de lanhouse e não desse pessoa. Hwang às vezes emplesta telefone pra fleguês! Só isso! Foi então que a seu modo tentou explicar para a espanhola que era um serviço a mais que prestava aos seus clientes. E para isso era necessário REVISTA 36 BEATBRASILIS Ele tentava mostrar como as coisas funcionavam apontando para um caderninho onde fazia as anotações dos números e depois para o moderno aparelho telefônico com o identificador de chamadas e transferência de ramais. Para que não houvesse margem de dúvida ainda a levou para uma das cabines e lá mostrou o interfone que só se prestava para receber as chamadas. Ela, por sua vez, insistia na leitura dos lábios do coreano e às explicações do recém chegado, porém compreendia porcamente o que dizia um e o outro. Por fim, extenuada, desistiu de tudo e também daquele coreano maluco que dera de mostrar aparelhos e sistemas que ela jamais conhecera. Trágica, apenas persistia olhando o ambiente e pras máquinas diabólicas manejadas por garotos que jogavam game em rede e que berravam tão medonhos quanto furiosos gorilas. E se não bastasse, os seus gritos se juntavam aos ensurdecedores tiros de metralhadoras, às explosões de bombas e minas terrestres, estrondos tão dilacerantes que mais davam a sensação de que seria ali o próprio inferno. Foi então que suas lágrimas rolaram pelas faces; Agora ela compreendia tudo; jamais encontraria o patife. V - A Meretriz da Espanha em terras brasileiras Que gran desgraciado fueste usted, Eustógio! Bradou ferida de morte ao abandonar a Lan House sem ao menos se despedir do coreano. E foi desta forma, naquela fria e melancólica segunda feira, que Dolores descobriu que havia sido mais uma vítima dos golpes virtuais. REVISTA 37 BEATBRASILIS Cómo pude ser tan ingenua e estúpida? Por coincidência foram aquelas as recordações que fizeram-na interromper num sofrível portunhol a nossa "espanhola" de 50 pratas que estava em pleno andamento. O movimento brusco e irritadiço do seu tórax fez escapulir o meu pau do meio dos seus peitos. Sua rameira catalã! Não é meu pau que é pequeno, e sim os teus peitos que são descomunais! Devolvi furioso. Antes de tudo teria que saber que eu não era flor que se cheirasse. Ah mi encantador Pujol... como soy tonta e abestada! Ela me olha e se desarvora no lamento. Óbvio, irrito-me; tinha que haver maior profissionalismo. Sim, confesso; era o amor próprio atingido. Porém eu tive que atacar aquele indescritível par de seios, dono de um sutiã cujo número nem mesmo sabia como calcular. Todavia a mera insinuação que os seus peitos pudessem se assemelhar aos da vaca leiteira, foi demais. Dolores ainda não acabara comigo. Ei, ei, Manolita! Que merda que é essa? Não tenho nada a ver com esse teu lance. Eu paguei 50 pratas antecipadas pra ter o meu bibelô no meio das tuas tetas! Portanto... faça o serviço bem feito! No, no! No puedes quejarte jamás, Oscar! O que me pagas és unicamente la miesma proporción de tamaño de su “pingulim”: Ou seja, nada! Usted me recuerda a un toro... Un toro capado, Oscar! Não foi um bom momento de esfregar-lhe nas fuças o quanto fora imbecil. Senti isso em seu olhar rude, estranho, daqueles que não gostam de levar desaforos para casa. Oscar, yo sempre me pregunto; cuando su pequeño “pipi” se convierte en uno de un hombre de verdad? Ela diz com pouco caso. Claro, era chacota com o tamanho do meu pênis. Era sua forma de se vingar. Mas, quem era ela pra ferir o orgulho de um homem? O que a espanhola pretendia provar com a galhofa fora de hora? Pretendia que eu broxasse? Pois bem, espere! REVISTA 38 BEATBRASILIS VI - O Brasil rendidO a “Fúria” Espanhola Furiosa como o touro estocado de morte ela se levanta e recoloca a calcinha de rendas amarelas com pequeno furo numa das nádegas. Continuo olhando enquanto Dolores abotoa o sutiã lilás. Fixo-me na região do colo e sou capaz de apostar a vida que naqueles bojos caberiam tranquilamente duas ótimas bolas de boliche. Depois a vejo dirigir-se à penteadeira, uma peça antiga que abriga um espelho com algumas ranhuras e marcas do tempo. E lá ela senta e chora. No início um choro contido, calmo como as mansas ondas depois do vento sul. Insisto o olhar no espelho e no reflexo da sua imagem percebo que nela ainda se emoldura algo da nobreza de outrora. Fidalguia da qual ela se desfaz a cada visita dos nossos hermanos brazilianos. Visitas que pagam seus favores sexuais, que permitem a sua subsistência e o pagamento do aluguel dum obscuro quarto de pensão onde se esconde. E ela apenas persiste chorando baixinho, sem estardalhaço, e isso me faz supor as tantas ilusões e mentiras que se fartam nesse meio virtual. E as coisas tomam formas e cores tão dramáticas que me fazem crer que neste mesmo momento outras pessoas estão sendo enganadas, lesadas, passando por situações parecidas ou bem piores que a dela. Ainda penso nisso quando me levanto da cama e visto a calça, abotôo a camisa e ajeito os cabelos com os dedos. A noite para nós está irremediavelmente perdida. Agora o momento era outro; o da necessária solidão para chorar feridas e o pavor de sair deportada do Brasil. Mais que ninguém, Dolores sabia da necessidade de voltar para casa. Mas ela é altiva, orgulhosa, não é bandida, portanto não pretende sair daqui algemada e muito menos pela ação da sua embaixada "Prefiro ter essa vida de cão a sujeitar-me aos olhares de desdém dos meus compatriotas" Ela disse ao sair de lá quando lá esteve numa vez pedindo ajuda para retornar. Óbvio, tinham percebido que ela se prostituía. E isso a preocupa; eles são orgulhosos, preferem dedurar à migração brasileira os próprios compatriotas que estejam nessa situação. Antes que eu saia Dolores já está em pé e veste um robe de cetim rosa onde notamos visíveis manchas de gordura. Eu insisto com os olhos na sua figura e percebo que ainda há beleza em seus olhos negros, olhos que provavelmente já reluziram mais que hoje. Assim que me coloco à saída ela vem em minha direção com a nota de 50, e enfiando a mão em meu bolso se livra dela. Faço menção de protestar, de dizer que não quero o dinheiro, porém ela refuta. E quando Dolores refuta nada a faz retornar. Ao sair ela beija a minha boca e eu sinto um gosto acre como se ela tivesse degustado uma salada de alho misturada ao atum. Momentaneamente sinto-me nauseado e engulo a saliva e fabrico outra na esperança que o gosto se dissipe ou que amenize. Ouço o bater da porta e a sua sombra desaparece pela fresta da soleira. Agora sozinho aguardo alguns segundos e retiro do mesmo bolso duas notas de 50 e as coloco juntas e as empurro pelo mesmo vão. REVISTA 39 BEATBRASILIS La dentro as luzes já estão apagadas, o que me faz crer que Dolores deságua a dor da saudade com a mesma dolorida frieza dum oceano contaminado pelo vazamento das petroleiras. Hasta la vista, baby! Digo ao lançar um beijo na direção da casa Juro que não sei o porquê, mas gosto de você! Sussurro ao sair pelo portão e dirigir-me ao ponto de ônibus mais próximo. Assim que o coletivo estaciona, subo os degraus encapados por uma grossa borracha negra e acomodo-me no banco ao fundo. O ônibus está completamente vazio e ainda há em mim um resquício do gosto do alho e do atum. Abro e olho pela janela e as ruas se desfazem das luzes das casas. Já é noite quase alta e as pessoas se preparam para descansar no aguardo da ferocidade do leão diário. No primeiro semáforo vermelho o veículo faz a parada obrigatória e eu me esforço para fabricar mais uma pequena porção de saliva. Ainda continuava nauseado. REVISTA 40 BEATBRASILIS Sânzio Barreto REVISTA 41 BEATBRASILIS De noite eu ainda a ouvi arrastando os chinelos até o banheiro. Eu ia me aninhando na sua intimidade a fim de dar aquela tradicional trepada matinal, quando notei que estava morta. A mulher da minha vida, personagem principal dos meus sonhos, capítulos inteiros da minha biografia, desviveu nos meus braços antes mesmo que pudéssemos dizer que tivemos alguma coisa. Deixou para trás dois filhos, um carro velho, meia dúzia de carnês e um rastro de sofrimento em todo mundo que tentou ser inquilino do seu coração. A gente começou a se ver poucos dias antes. Duas cervejas e uma carona inocente acabaram em dias inteiros de cama e isolamento do mundo. Não ousei questionar se não ia voltar para a família, para o trabalho ou mesmo para suas roupas limpas. Veio com uma malinha simples e se instalou no apartamento como se a ele pertencesse. Não reclamo. Adorava suas risadas entremeadas por crises de choro e ataques enfurecidos a geladeira. Resolvia tudo por telefone. Administrou com quem as crianças ficariam, revezandose com seus respectivos pais, avós paternos, maternos e quem quer que pudesse se responsabilizar por eles. Em duas ligações, extinguiu duas relações afetivas que mantinha a época. Trouxe também uma bolsa cheia de comprimidos, destino inevitável de quem faz escolhas erradas na vida. Não perguntei nada. Só agora, buscando explicar o fato, percebo que trazia consigo doses de desenstristecedor suficiente para matar uma nação. Também havia muito do que a levou desse mundo. Misturando tudo, acidentalmente teve uma longa overdose de remédios para dor. Deixou para mim o encargo de explicar tudo para o mundo. Legou-me a dura tarefa de dissipar as suspeitas que recairiam sobre mim. Ninguém diria que não tive culpa nisso tudo. Seria mais fácil pensar que eu a teria matado por tê-la forçado a assumir meu estilo de vida. Enquanto vasculho seus pertences, vou imaginando para quem devo ligar primeiro. Não vou esconder que segurei sua cabeça no meu colo e passei as mãos em seus cabelos e chorei muito. Chorei por mim. Chorei por ela, tão delicada e linda naquele momento. Cada dia da sua vida contribuindo para o acontecido. Acho que nunca encontrou satisfação embora essa fosse sua busca desenfreada. Foi a única pessoa que amei. Fui o único que ela não destruiu a vida. As 3x4 na sua carteira contam um pouco dessa trajetória curta e dolorida. Se bem me lembro, este moço é aquele namorado que se matou pouco depois que ela o deixou para ficar com aquele gringo, de quem ela engravidou da primeira vez. Foi numa época em que ela tinha percebido que só se daria bem na vida dando para alguém endinheirado. Aos poucos, o príncipe encantado virou um cobrador de postura e fidelidade. Na confusão de uma excursão para a praia, ela deixou o empresário bem-sucedido e foi amanhecer no muquifo do riponga francês. Sentiu o golpe, sentiu a desaprovação geral quando teve que voltar para casa, grávida, cheia de tatuagens e sem um centavo no bolso. Aí já era tarde. O moço da fotografia deixou uma carta declarando que o motivo era ela antes de jogar o carro contra a mureta do viaduto. Ainda muito nova, atraente e misteriosa o suficiente para não ter passado, achou logo alguém para ser pai do primeiro filho. É esse cara da outra REVISTA 42 BEATBRASILIS fotografia, barbudão. É dele que também recebia pensão. O documento de acordo extrajudicial confirma. Esse eu conheci de porres pela noite da cidade. Muito antes de ela cruzar seu caminho, era divertido, músico talentoso e absoluto senhor de si e de sua vida amorosa. Foi um conquistador de fãs, sempre compositor de doces canções para as namoradas. Os poucos anos que viveram juntos, pareceram uma família transbordando felicidade. Parecia que ela ia se redimir da desgraceira que provocava, parecia que ele não precisava de mais nada na vida exceto a companhia dela. Foi aí que veio o golpe sob a forma de um “cansei” em plena noite de natal. Pegou o filho, os trapos e sumiu mais uma vez. Aqueles que o acompanham de perto, que tiveram coragem de visitá-lo nas diversas internações de desintoxicação, sabem que seu alcoolismo é oitenta por cento oriundo desse rompimento. A mim ela alegava que ele não era mais o mesmo, que ela não aguentava mais a bebida. Conhecendo os dois, sei que a bebida, dentre outras coisas, era o que os uniu. De repente ele não servia mais porque bebia. Virou um verme. Hoje sei que precisa de ajuda até para ir ao banheiro. Nunca mais pisou num palco, seu ganha-pão. Daí em diante, foram tantos desacertos que nem vale a pena contar. Sei de um golpe da barriga, de outros golpes e uma migração cansativa por camas e carteiras risonhas, relacionamentos vazios e lucrativos. Viveu anos com a convicção de que nascera com um passaporte universal entre as pernas. Sem pudor me contou essas coisas me abraçando, dormindo de conchinha, me beijando, parecendo um ser humano. Queria que tivesse sido diferente. Queria que ela pudesse ao menos ter remorso, mas ela aceitava sua vida e as decisões que tomou como naturais. Às vezes ela fingia que sofria para me agradar. Aquilo era só na casca. Por dentro não sentia nada. Dois dias antes, um telefonema do então namorado, me deu uma medida do que ela era. Tratava-se de um recado longo deixado na secretária do celular. Ela foi até o corredor para ouvir. Do quarto pude escutar meia hora de desespero, de pranto, de arrancar pena em qualquer um. A luz tinha acabado por causa da tempestade e, entre um clarão e outro dos relâmpagos, ouvia-se porquês um atrás do outro. Ela desligou, voltou para os lençóis com um único comentário: É um frango mesmo. Vasculhando sua agenda, não me decido para quem dar a notícia. Pensando bem, vou deixar ela ai. Vou assistir e gravar ela apodrecendo. Escrota. REVISTA 43 BEATBRASILIS UMA Qualquer* MERDINHA VITOR SOUZA “Porra, é o João Napoleão Victor?” “Sei lá, é uma merdinha dessas aí, uma merdinha qualquer...” “Caralho, essa merdinha é filho de rico, cacete!” “Mas é uma porrinha de sete anos... olha aí, nem sangra direito...” “Não sangra, mas é gente importante, porra!” “Importante só porque é filho de rico?” “Claro que é só porque é filho de rico! Tu é muito burro mesmo!” “Tá, tudo bem, vacilei... mas foda-se! O que a gente faz agora?” “Agora? Pensa você, porra, não fui eu quem matou o moleque!” “Tá, vou limpar tudo então, me ajuda aí, pega pelas pernas...” “Pega sozinho, seu mané!” “Eu vou me sujar pra caralho!” “E daí? Tu tá fodido mesmo!” “Fodido é o cacete! Pega logo pelas pernas aí, vai...” “Tá, peguei, vamos carregar pra onde?” “Pra trás da moita. Mais tarde eu jogo no rio.” “E você acha que até lá ninguém vai dar falta do moleque? Que isso aqui não vai estar cheio de polícia revirando o sítio todo?” REVISTA 44 BEATBRASILIS “Olha só... o pai é viado, tá lá no barracão chupando o pau do caseiro. A mãe tá na seca, eu vi um garotão arrastando ela pro canil. E tá cheio de outros merdinhas que nem esse por aqui, correndo, berrando... Não vão dar falta dele tão cedo!” “É... até que agora você usou a cabeça, porque é isso mesmo que rola: os pais ficam trancados lá na casa do patrão e a gurizada largada aqui fora... E se você ficar parado ali no canteiro, dá pra ouvir as mulheres gemendo e os maridos se punhetando, dando ordens pros gogo-boys que eles contrataram enrabarem com bastante força as suas esposinhas...” “São uns babacas mesmo! Se eu tivesse o dinheiro que esses caras têm, estaria fazendo programa com a Bruna Surfistinha ou com a Valeska Popozuda, e não contratando musculoso pra comer minha mulher, não fode!” “É, esses ricos são uns depravados mesmo, gente sem moral!” “Totalmente degenerados, pecadores do caralho!” “Pode crer...” “Tá. Agora chega de papo e vamos levar o corpo desse merdinha daqui. Quero dar mais uma enrabada no cuzinho dele antes de me lavar.” REVISTA 45 BEATBRASILIS * Antes que alguém resolva encher a paciência do autor pelo tom politicamente incorreto do texto, é necessário esclarecer que “Uma merdinha qualquer” é um miniconto que se propõe apenas a denunciar a HIPOCRISIA, mostrando dois degenerados fazendo juízo de valor dos outros, cujas práticas sexuais não estão de acordo com o conceito de “moral” deles. Ou seja, é a velha história do “sujo” falando do “mal-lavado”. Apenas isso! new beats on the block LEANDRO DURAZZO Os tempos são novos, os trampos são árduos, a grana é curta. Com sorte, hoje, a roda se monta em torno de um vidro, de uns tubos, de um fumo. Amassam-se as baganas e se acende o narguile – narguíle, narguilê, narguilé, qual seja. Flower Power é passado, não transa mais nada. A onda agora é Flavor Power, aquele gosto artificial que finge ser um aroma, mas na verdade não é merda nenhuma. Dedão na estrada não pega carona, mais. Na estrada, os carros pegam os dedões, e decepam. O mundo é uma selva de pedra. O mundo é uma bola de pedra voando pelo espaço, e ninguém acha isso estranho. Ê, volta do mundo, camará. Abaixo as estéticas clássicas, abaixo as mágicas, abaixo os cimos, as rimas, os metros. Abaixo os tetos, e que todos andem engatinhando. Abaixo Dadá, Dodô e Didi. Abaixo Mussum e Zacarias, mas deixemos uma oferenda a eles, no jardim. REVISTA 46 BEATBRASILIS Fora daqui, já, todos os que se pretendem cult, beats ou intelectuais. Inclusive eu. Fora aos que sonham, que gritam, que dormem, que morrem; aos que escrevem merda e aos que escrevem muito. Fora aos que escrevem muita merda. O que passou, passou, não volta mais. O que não veio não vai vir, também, e deixemos de esperanças. O aqui e agora não é nada, só Gil Gomes num canal de subnível. Perucas, plumas e paetês. Patês de olhos de garça, garças de canal, de esgoto, urubus de ratos mortos e cachorros dos com sarna. Presunto de Parma. Coloquem as velhas imagens num caixão, e as enterrem. Coloquem o enterro num cartão, de crédito, em 7 vezes sem juros. Eu juro. Mas a mão na Bíblia não significa mais nada. Fora aos futuristas, aos cubistas, aos impressionistas e aos impressionáveis. Fora às energias não-renováveis, e à falta de energia. Viagra de cu é rola. De rola é cu. Ou uma buceta. Viva o verde, a Vale e a vulva. Por uma energia verde e pornográfica. Por uma pornografia nacional. Abaixo aos políticos, mas não muito para que não mostrem os ânus gordos e senhumanidade. Fora, já, os que estão dentro. E dentro, agora, os que estão fora. Pela perda de noção, de bom-senso e de eleição. Fora daqui, porra! Diretos já, pra casa das mães. Ou pra zona. Tanto faz, que eu não vou junto. Pelo aborto melancólico da melancolia saudosista. Pela morte da melancolia mal-nascida. Não há nada aqui, nem haverá. Que se matem as fortunas críticas. Que se peçam tesouros críticos. Que se tenham tesouras críticas. E que o poder supremo do mundo todo seja afiado feito foice. E que os fetos nasçam com mais sorte. REVISTA 47 BEATBRASILIS Fabrício Busnello havia sido uma daquelas trepadas inesperadas e enriquecedoras como devem ser as melhores trepadas. estávamos então fumando um pós coitum: — (...) e veio um cheiro de café na madrugada - disse ela - e era ele incrivelmente surreal, por estarem ali dispostos sobre a mesa tantos outros meios pra se manter insone. — um mais delicioso do que o outro? — sim. um mais delicioso do que o outro. e eram muitos. e eu tinha muito tempo. suguei da alma um catarro preto inflacionado. me levantei e me vesti e acendi outro cigarro. — vou cagar, eu disse. e nunca mais voltei pr'aquela cama. REVISTA 48 BEATBRASILIS Fabrício Busnello de vidro os disponho de forma errada. essa letra torta derrama sobre a minha essa é a sina do vencido!: vida uma conotação estranha de realidade. saber de coração que não existe vencedor! sou eu aquele que me confronta! é minha essa idade fora do tempo que (seca teus olhos lindos, minha vida: me inquieta e machuca! eis a manga da camisa mais bonita! sei pra quem veio esse passado confuso mancha o cetim com tua tristeza! que há de embriagar ainda me corta o pulso com esta fina alegria!). quatro gerações de loucos e sei onde esta meu filho querido e assassinado dentro do teu corpo, pois embalo cansado em meu colo uma canção de vida que não dorme nunca. em minha rede repousa uma meia-lua inquieta de inverno que se recusa a encher e sobre a minha cama a própria noite abre as pernas e me mostra a umidade do amor; e entao eu escorrego lânguido e frouxo e olhos semicerrados. sou um cárcere estúpido de mim mesmo e ali eu permaneço num escuro adocicado. embaralho sonhos com mãos suadas e sobre a mesa REVISTA 49 BEATBRASILIS Daniel Caldas mi barrio a cavallo. me vuelvo a Lanús. aunque a mi me falte un diente. El dolor uno no lo siente. Yo lo hablo en fiestas con chicas y mesas puestas. Jodido. Callado. no le doy un pedo. Ellos solo me lo dan una yapa. Y incluso! Hay una Feria. Donde las monjas se encuentran. Las dos son abogadas. De una crises injusta. Pero sus polleras me hacen ver cosas lindas. Lo que sienten ustedes? Los vagos que mienten. La Lentidón que a mi me alcanza trás una de las suyas. Acá te veo cargándome. Sobrevivirte. No, me duele a la panza. !Que tema de mierda! À las siete te espero. Sé que Ustedes hablan el inglés. En una Londres pobrezita! Y igual ahora los diários son vários. Eso es Lanús el de la Recoleta. Cartoneàndome estoy... al parador nocturno me voy! REVISTA 50 BEATBRASILIS O NORDESTE DA MINHA VIDA Cícero Bezerra Aqui nesta manhã cinzenta e chuvosa Feliz contemplando os trovões e relâmpagos Dessa nossa natureza maravilhosa Do meu quarto solitário ouço emocionado O som da chuva batendo e escorrendo Por todo o telhado até cair no chão O cheiro da terra molhada invadindo Por completo a mim e toda a vastidão Aqui estou de volta ao nordeste da minha vida As lembranças prazerosas da minha infância linda E aos meus velhos amigos cultos, bêbados e chapados Aos meus velhos amigos loucos, vagabundos iluminados E as inúmeras recordações felizes e tristes preenchidas Por nossas histórias cheias de sorrisos e gargalhadas E a saudade eterna que fica de quem jamais voltou Mas dentro de cada um de nós o que sentimos nunca mudou REVISTA 51 BEATBRASILIS JEFFERSON AIRPLANE Marcus Vinícius Marcelini I found her in the alley the desolation road. Ela é formada em letras e dá aula em cursinhos de inglês, o mundo manda um rugido a todo momento e não sei como a vida me fez, esse moleque diz que já viu tudo no auge dos seus treze anos cospe com um cachimbo na mão. Ela dá aulas de inglês e guarda a cerveja preta que lhe dei, ouço seus passos ainda na chuva pernas pelo bar, esse moleque que viu tudo diz que a viu passar, tenho três palavras que não me saem da cabeça e uma intangibilidade em pronunciá-las quero essa cerveja preta essa minha preta preta beijando um hash ao luar. REVISTA 52 BEATBRASILIS SOLIDÃO Mateus Marcelini cinco da matina. chego em casa sozinho, sento no sofá, acendo um cigarro. as luzes apagadas. as pernas dela ainda estão marcadas no fundo dos meus olhos, e pra onde quer que eu olhe lá elas estão, a se cruzar, chegando à divisão da bunda coberta pelo short jeans, do tamanho da mão. eu sei que ela é como eu, como você, e nesse momento deve estar em sua cama, sozinha, agarrada ao cobertor, ou abraçada ao travesseiro, sonhando com alguma coisa. eu só precisava saber com o que. eu só precisava dizer alguma coisa. eu só precisava me aproximar lentamente de sua boca. a mão puxando pelo braço. a outra no rosto, talvez. e meus amigos com suas namoradas, seus casos de alguns dias, suas putas, ou suas garrafas na mão. o cachorro do estacionamento atrás do prédio não pára de latir, ele não tem culpa, todas as noites latindo sem fim, é só o que se ouve na rua deserta, seu latido sem fim, até que alguém jogue pelo portão sua última refeição, e na noite seguinte não se ouça mais o latido solitário do cachorro sem fim. os homens querem silêncio em seu sono descanso merecido. pois que tenham seu silêncio, e que façam sua refeição pela manhã, enxaguem o rosto, coloquem aquela roupa de trabalho, e façam o que tiverem de fazer, sejam senhor sejam escravo, sejam patrão ou funcionário. as pernas dela eram brancas quase rosadas, e minha fome cresce a cada dia. minha vida some a cada instante, nos pêlos que crescem no meu rosto e em tudo o que eu planejo um dia fazer. incluindo todas as pernas que já estiveram deitadas em minha cama, pelas quais meus dedos corriam de madrugada. eu nunca consegui dormir ao lado de uma mulher. você pode imaginar os motivos. eu nunca fiz psicanálise. mas como sonham essas mulheres. como respiram fundo, com seus peitos de variados tamanhos se expandindo e retrocedendo, seus narizes de formatos diversos soltando e puxando ar, assoviando em tons agudos. os olhos fechados. como são belas as mulheres quando dormem. e até no momento em que acordam, serenas e calmas, complacentes, a beleza do sono ainda resta em seus olhos semi-abertos e em seus movimentos lentos. depois do sexo, parecem esquecer suas angústias de mulher e simplesmente respirar. mas a solidão nos chama de volta como a mulher mais fiel e a primeira, mítica companheira. tão sutil, tão rasteira, ela não bate na porta, não liga nem manda mensagens. quando você menos espera, ela está deitada ao seu lado, com as pernas cruzadas, e você não consegue parar de olhar para elas. as pernas brancas no fundo dos olhos. as pernas brancas que já foram morenas, que já foram bundas, cabelos, bocetas, bocas e olhos, já foram pés delicados. cinturas e vozes. pescoço quente com cheiro de criança. e ela estava me esperando aquela noite, numa encruzilhada, eu vi, mas não foi dessa vez. ela até se vestiu com a roupa que eu gosto, aquele vestido preto curto, mas não foi dessa vez. ela espera o dia que eu seja só dela, mas não foi dessa vez. eu ainda resisto, respirando, e ela deitada com a cabeça sobre as minhas pernas, me olhando nos olhos, as pernas brancas cruzadas ao longo do sofá, mas ela sabe que amanhã eu posso me dar bem, e posso não voltar. ela sabe, e deve ter colocado alguma coisa no meu copo, pra me fazer dormir, me puxando pelo colarinho, me beijando no rosto, eu me deito sem medo, e sei que ela não vai me deixar ir pro trabalho... que se dane. hoje a noite é dela. REVISTA 53 BEATBRASILIS Ela passou e sorriu. Poxa vida, que sorriso maravilhoso. Que sorriso maravilhoso, escreveu. Não, não era isso. Ela passou voltando e ele escreveu então: Nunca ansiei uma mulher muito bonita Ou farta de talentos corporais (nádegas, peitos ou coxas) Mas aquela mulher era demais. Seria isso ou o que se escondia nas entrelinhas? O não dito? E assim pegou seu copo e entrou em casa, encheu-o de um suco de saudades, denso como um pirão mal cozido. Era assim que se sentia, um pirão mal cozido. O que significaria isso? Então escreveu a ficção, a ficção que não era nada além do real: Marcus Vinícius Marcelini “Mulher que máquina és que só me tens desesperado” (Vinícius de Moraes) Tem um poema que não se declama, só com o pensamento fica-se atordoado por certo tempo, como um cão uivando pra lua. Era uma dessas que ele estava procurando, sentado na varanda de uma casa alugada no calçadão de Caraguatatuba ao lado de um bar boa pinta. Tentando desmistificar a poesia, ou melhor, o fazer poético, que se tornara tão banalizado em livros comerciais e blogs de lirismo comedido. Não, não tinha nenhum interesse nisso. Os passos se arrastavam pelo chão no soar das velhas botinas caminhando, frias, até o balcão. - Uma dose, por favor. Dois copos são enchidos até a boca, ele me empurra o meu e vira o dele. - Dia duro? – me pergunta. - Mulheres. – respondo e viro minha dose. Quem sabe a ordem dos fatos não tenha sido bem essa ou a folha branca nunca tenha estado sem palavras. Quem sabe ela nem tenha passado novamente, mas passou. REVISTA 54 BEATBRASILIS Ei, garota! Isso é seu, de qualquer maneira. Ela sorriu. Que sorriso maravilhoso. Era tão maravilhoso que só foi reconhecer as demais formas do rosto dela três dias depois. Tão maravilhoso que não achava mais o sorriso algo supervalorizado. Mas tampouco sorria. Ela o conduziu para um lugar estranho, o vento balançava tudo, uma fumaça característica não deixava a cabeça no lugar, talvez depois disso ele nunca mais conseguisse colocar a cabeça de volta no lugar. Beijou-a de leve. Depois com furor. Depois pediu sua calcinha. Era linda. Mas seu sorriso era mais lindo ainda. Ele preferiu o sorriso. sorrisos. Sorrisos despretensiosos. Foi tudo assim. Dois ou três sorrisos. Quinze poemas de amor manchados de café. Ele com cabeça estourando num sol qualquer que nunca desejou permanecer, sempre tentando fugir de casa sem realmente fugir de casa. Existiram outros sorrisos, assim como outros poemas. Nada muito interessante. Afinal, quase nada é. Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e disca para algo chamado amor. Tem pensamentos que dissolvem conexões neuronais e todo o sentido é perdido pelo caminho, toda a gênese de patologias não orgânicas. Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e disca pra ela. Ninguém atende. Veja bem, a vida é pra valer. Por que os abraços são a deixa da separação? Os abraços apertados, o coração disparando contra os peitos fartos. Realmente a cabeça dele nunca voltaria ao mesmo lugar, a poesia, de tão atormentada, se misturaria à prosa e seria para ele já tão indistinguível qualquer tipo de escrita que nenhum sentido o interessaria. Apenas o sem sentido. Ei, garota. Que sorriso lindo. Deixe-me vê-lo novamente. Não. Não há mais sorrisos. Tampouco há poesia. Quinze folhas em branco estão crescendo sobre a escrivaninha. Ninguém mais sabe escrever poesia. Poesia do corpo. Ninguém mais sabe dar REVISTA 55 BEATBRASILIS ELA PEQUEI Julieta Puy REVISTA 56 BEATBRASILIS Afinal de contas, pra que conjugar o personagem em terceira pessoa se o personagem sou eu mesma? Eu, que acreditava na verdade da monogamia. Que acreditava que a conquista do autocontrole brilhava mais do que ouro, eu acreditava no pecado contido na maçã. De repente, como um rio tranqüilo que não espera a tempestade, a tempestade acontece. O rio acontece. (não posso deixar de notar como tenho sempre a previsível necessidade de usar metáforas meteorológicas para fazer certas associações). Mas enfim, eu estava falando do que mesmo? Ah, do quanto eu gosto de ouvi-lo cantar. E de como a voz dele é como um mês de junho na selva tropical, então eu me chovo toda. Tempestades são involuntárias, naturais e, portanto, maravilhosas. Sucede que minha vida quase se converte numa versão tupiniquim de Jules et Jim, maravilhosa película de François Truffaut. Algumas coisas ditas naquele filme não me saem da cabeça. Aliás, coisas perturbadoras, assim como aqueles fios de cabelo de fogo, não têm me saído da cabeça ultimamente. A personagem Catherine, bastante chegada num frisson, se apaixona por dois amigos. Adoram-se, os amigos. A adoram, os amigos. Ela adora os amigos. Mas toda metamorfose é dolorosa, se não fosse assim a palavra metamorfose não teria tantas letras, nem um r antes do f, é mesmo estranha. E processo? Processo é uma palavra dessas que chegam a ter um cê e dois esses, tal a complicação do sentido, tal a profundidade do mar do autoconhecimento. Querer mudar sem risco é em vão, mas eu diria que mais em vão ainda é tentar mudar sem ter a certeza da incerteza e reconhecer em si e nos dois amados almas que se querem, que querem estar vivas. Começando por aí talvez se chegue mais fácil a uma visão mais justa (ou mais conveniente - me esforçarei para não ser muito hipócrita). Trata-se do famoso trio amoroso, um verdadeiro power trio. A culpa não existe se entendemos que o egoísmo é o que move o mundo. Enquanto eu não tiver meus girassóis floridos, de nada me servirá um dedo REVISTA 57 BEATBRASILIS Como pode, a posse? E por causa da société, chego a considerar que, ao pensar no "outro", o affair (franceses são poligâmicos), estou tendo que tirar tempo da conta do meu marido pra depositar na conta do amante. Tempo, cabeça, coração, camisinha, telefonemas inapropriados; tudo acaba indo pra mesma panela, aquela que cozinha amor com a chama alta. É uma linda situação de merda esta Linda, porque abunda em paixão e dúvida e seria um roteiro quente pra qualquer arte E de merda, porque é um campo minado Há que se ter cuidado ao pisar, e pensar se à hora é mesmo a de pisar ou de levitar pra longe. Ou se a hora é de não pensar. Mas como não dar importância ao coração, que é quem decide o que tem importância? verde, pois eu não conseguiria fazer florescer os girassóis de mais ninguém se não soubesse amar a minha própria botânica. Mas existe uma coisa, coisa essa que eu prefiro dizer em francês: la société. E desde que me entendo por gente, la société me diz que o coração deve ser de um por vez, tal qual catraca de metrô. E que deve ser de alguém, a posse. Talvez por ser tantas, eu não consiga amar um só. Se tantas Evas mal cabem em mim, preciso levá-las pra passear, pra modo de eu arejar as janelas de minh'alma Não é que procure sarna pra me coçar É que eu tenho muito amor pra dar Mcdonalds ama muito tudo isso, pois eu amo muito todos eles E detesto tudo isso Tudo isso que reprime, que não come com casca, todas as seringas de moral que me injetaram a vida toda, você que fuma e não traga. E a société me abandona agora nessa rua sem saída REVISTA 58 BEATBRASILIS Eles se completam, eles me completam. E nessa completição toda, existe o medo de ferir, o medo do fim de algo, o medo de não saber bem o que é amor. Este texto não é a necessidade de contar nada a vocês É a necessidade de explicar algo pra mim mesma Artaud disse que viver é arder em perguntas Logo, posso afirmar que estou vivendo muitíssimo, Meu suspiro deve estar vagando pela cidade agora Vou tentar não pensar em não ter que pensar no que me tenta Fica a vontade, ficamos na vontade Pra que tanto falar sobre Melhor beijar sobre Mas isso implica em dementes jogos da mente Nem a mentira se atreve mais. Porque penso que agora mesmo, ao invés de estar aqui, a teorizar sobre algo que contém todo o teor da anti-teoria, Eu poderia estar vendo espetáculos de luz enquanto esse sol de fim de inverno queima os cabelos daquele Ou poderia estar catando esperança na cesta dos negros e infinitos olhos do outro O fato é que nenhum dos dois está aqui E é nessa hora que os amo mais Ainda; Quando os vejo com certa distância E se é bem verdade que a distância dá casa, comida roupa lavada às idealizações, Também é verdade que ela define, ao separar dois corpos e duas consciências: longe, sabemos que cada um é um, é algo que não se questiona, pois se vê. Ou não. E juntos nem sempre temos esta certeza Os corpos se confundem, se fundem, se unem. Um. Esta mulher aqui não quer mais ter que fingir que está lembrando que amanha tem que pagar o aluguel quando estiver pensando no entrefechar dos olhos do amante quando lhe agarrou as bochechas da bunda, na REVISTA 59 BEATBRASILIS Que fica úmido e metafórico Querendo entender comigo esse labirinto (é muito brega usar labirinto para se referir a questões amorosas?) Esse triangulo pode ser visto de vários ângulos Por se tratar de um triângulo mais amoroso, já que tem amor em todas as direções Mas com algumas fronteiras burocráticas, isso sim Lampejo de felicidade: é fantástico saber que se é a fantasia de alguém Mexo com ele, mexo com meu ego Será porque que estamos no mês de Egosto? sacanagem sacramentada numa cama que não é a minha, que não preciso chamar de minha. Como raulzito Que queria tocar fogo no inferno A agonia egolescente De querer saber quando de novo - E de novo, quando hein? Mas tudo fica muito tranqüilo do ponto de vista deste Chopin, um pianito sempre embala qualquer quarta-feira E assim tomo meu café melancólico Lampejo de tesão: é assim, somos hormônios e outras coisas invisivelmente inexplicáveis Queremos, queremos e queremos agora Queremos tudo, o marido, o amante, o feijão com arroz e a lagosta de cada dia Se não fosse por essa cãibra de euforia entre as pernas Por rir sozinha no meio da farmácia Os olhos e as covinhas denunciam que algo de extraordinário andou acontecendo E me golpeia essa saudade de algo tão sem sentido Tão descolocado Que concluo que é justamente essa falta de propósito REVISTA 60 BEATBRASILIS O que faz com que amantes tenham uma relação natural, orgânica mesmo Amantes se amam Se encantam Não se burocratizam E se separam sempre querendo não ter que voltar pra casa Querendo andar loucamente na garupa do outro e se derramar cerveja no banheiro. Mas Eva é desapegada e ainda culpas os astros, que a fizeram nascer neste interminável aquário de amor E a fazem incompreendida por só querer saber de blues, velas e banhos masturbados E fuma como nunca, a pobre Eva E pensa em como a física separa as pessoas Maldita física, Eva sempre a detestou E já está a culpar alguém de novo, nem a pobre e digna física se salvou Foi a própria société que criou os moralismos E códigos ávidos por obediência Ora, se sou parte da sociedade, então cabe a mim mudar tais códigos Pelo menos dentro de mim Beatniks querendo me levar por algum caminho On the road, any road Se é bom ou mau, é tudo uma questão de ponto de vista e de espelho retrovisor Os livros me confundem mais Ou me inspiram tanto que saio decidindo coisas A arte a serviço do impulso Raul Seixas me diz cada coisa Tudo é interpretável, associável e identificável Pois interpreto, associo e identifico Não tem Pepsi - Cola que sacie, não tem Truffaut me diz coisas Todo mundo me diz coisas Meu coração então, não cala mais a boca Simone de Beauvoir nasceu em 1908 E fez confissões que clitóris nenhum da época sonhava em tremer sobre Cento e quatro anos depois, cá estou, cá estamos, na mesma repressão Falo por mim, não posso falar por outras, Não estou a levantar bandeira de nada Não sou feminista Sou serista Só quero ser E como quero tanto, Me pergunto se não haverá mais gente nesta situação medonha De se estranhar por não entender como cabe tanto sonho REVISTA 61 BEATBRASILIS A BORBOLETA TRANSPARENTE Gabriel Megracko REVISTA 62 BEATBRASILIS Certo dia, no meio da tarde, havia saído da casa da minha namorada, na rua Frederico Abranches, e estava entrando nas dependências da estação Santa Cecília, do metrô. Quando me aproximava da catraca, em meio a uma aglomeração densa mas fluida de pessoas, avistei algo voando. Passou na minha frente, perto do chão e desviou das pessoas habilidosamente, o que provava que tinha uma direção independente do ar. Curioso foi que logo que a avistei me acometeu a sensação de que, apesar de eu nunca ter visto aquilo antes e nem ouvido falar, estava vendo exatamente o que imaginava. Saí, meio como ela, mas à moda humana, desviando das pessoas, que desviavam de nós dois com gestos parecidos, salvo as proporções dos dois corpos. Desvencilhei-me das pessoas e a segui. Ela havia pousado em um lugar onde não passavam pessoas, próximo de uma parede que perto fazia vértice com outra, formando meio cubo retangular, fazendo-se obsoleto na disposição da coisa toda; o palco perfeito para o meu público alumbramento. Me agachei perto dela, mas não muito para não espantá-la, murmurei alto "Cara, é uma borboleta transparente mesmo!" e sorri. Tinha um contorno preto arredondado em torno das asas, tão transparentes que dava pra reconhecer as sistemáticas saliências arredondadas do chão preto emborrachado. As linhas eram grossas e duas delas saíam de onde suas asas se ligavam ao corpo e iam em curvas suaves terminar nas costas das asas. Observei seu desenho por coisa de um minuto ou menos, porque um sujeito estava vindo na minha direção, e falava comigo. Tentei ignorá-lo por medo de que viesse e espantasse a borboleta, mas ele continuou vindo. Quando chegou mais perto entendi o que estava me dizendo. Me perguntava se eu estava passando mal. Disse pra ele que estava olhando uma borboleta transparente. Ele pareceu não ter ouvido e chegou à minha frente. Eu dizia pra ele tomar cuidado com a borboleta, mas ele sequer olhou para onde eu apontava. Seu pé parou a uns dez centímetros da borboleta, que para ele era idêntica ao chão onde estava pisando. Tudo não tinha demorado mais de dois minutos, e eu estava já muito afetado pela situação. Enquanto ainda agachado apontava para a borboleta e falava com o sujeito, que ignorava o que eu estava dizendo como se estivesse vendo uma alucinação, um velho também se aproximava. Entendi rápido o que dizia. — Olha a borboleta aí, você vai pisar nela! Aí no seu pé - disse o velho pro outro. Aí me levantei. Como se duas pessoas dizendo a mesma coisa tornasse a coisa real de repente, o imbecil finalmente olhou para a borboleta. — Olha, é verdade! Olha a borboleta aqui! — disse — Eu achei que você estava doido, cara, ou passando mal, não tinha visto a borboleta --, abaixou, pegou a borboleta pelas asas e levantou. Eu sentia uma aflição aguda pela dissolução tão rápida de evento tão inédito pra mim. — Cara, cuidado com a borboleta! Olha o que você tá fazendo — eu disse. Não lembro o que aconteceu com o velho. Não lembro o que me respondeu o sujeito, na hora. Sei que ele soltou a borboleta, ela saiu voando e foi embora. Entre o meu desejo de ver cada milésimo da vida daquele ser e o impulso de assassinar o mentecapto, ele disse que a borboleta estava transparente porque estava mudando de pigmentação. Pela primeira vez prestei atenção no homem. Percebi que ele me olhava como eu olho pra uma mulher e entendi então a cena toda. Ainda dizia alguma coisa sobre a pigmentação da borboleta enquanto se distanciava. Como a borboleta não estava mais lá, eu estava atrasado para o trabalho e com vontade de cometer um homicídio, me dirigi para a catraca, encostei o cartão no negócio de encostar o cartão e girei a roleta. REVISTA 63 BEATBRASILIS A VIDA DE CARLOS Vitor Souza REVISTA 64 BEATBRASILIS Quando o despertador toca, ainda está escuro. Carlos levanta sem muita dificuldade e caminha até a janela noroeste do pequeno chalé de madeira. Há poucas nuvens ao alcance da vista e uma brisa suave impõe movimento aos cumes das árvores mais altas. Mas o que lhe chama a atenção mesmo é a imponência da mesma lua cheia que na noite anterior ele admirou por trinta minutos antes de ir dormir, acompanhado de um cigarro de palha e uma cerveja quente. Ver o astro radiante “morrendo” por trás da serra e iluminando todo o vale é uma ótima forma de começar o dia. Dia que encerra mais uma semana de trabalho na reserva florestal que Carlos ajuda a monitorar. É sexta-feira e só para não perder o hábito, ele murmura um “vamos lá” antes de dar as costas à paisagem e sair para sua higiene matinal. Toma seu café da manhã ouvindo um som maneiro, do velho Raul, na vitrola carcomida pelos cupins. Ele até possui computador portátil conectado a um moderno e compacto sistema de amplificação, mas o som chiado e estalado de radinho de pilha que vem do aparelhinho marrom possui charme e mil quinhentos e trinta e seis significados para Carlos. Ao sair do chalé com sua mochila e caderno de campo, o dia já está mais que ofuscante. Carlos abre as portas laterais da van e confere todo o material de análise de que vai precisar. Também verifica o estado dos equipamentos de proteção individual que irão cobri-lo ao longo do dia. Depois dirige por uma estrada de terra por meia hora e entra sorrateiro no escritório de administração da reserva. Os demais funcionários ainda não chegaram. Ele deixa um farnel frio ao lado do vigia que dorme profundamente, bate seu ponto e sai. Durante parte da manhã, Carlos coleta e faz análises de amostras de solo e água. Um riacho e um pequeno lago são os corpos hídricos que ele monitora. O lago é o mais crítico, pois está situado em uma das extremidades do parque e já sofre as consequências da especulação imobiliária que sem fiscalização instalou-se ao redor daquela Unidade de Conservação. O riacho tem sua nascente na área onde A outra metade da manhã ele dedica ao levantamento de fauna que pretende citar no relatório anual a ser encaminhado ao Instituto. Para isso confere as memórias das armadilhas fotográficas que instalou em pontos aleatórios da mata. Descarregar aquelas imagens no tablet virou momento ultra expectativa para Carlos, pois ele nunca sabe o que elas irão mostrar... Às treze horas, Carlos está de volta ao seu abrigo. Devora feijão com soja enquanto assiste o telejornal do almoço, bebericando uma dose de conhaque. Depois liga o barulhento ventilador de teto e se esparrama na cama rústica a fim de fazer sua cesta. O despertador o levanta às quinze horas. Hora de redigir relatórios e enviá-los à administração da reserva via conexão weireless. Hora também de responder e-mails, navegar pelas redes sociais das quais participa, atualizar seu blog e estudar as coisas sacais que seu ofício exige que ele estude. Quando termina, a noite já está alta. Ele coloca um traje riponga e caminha por trinta minutos em meio ao breu a fim de ter com os amigos do Coletivo Pataxó. Carlos proseia animado, toma cachacinha com garapa em simpáticos copos de bambu, batuca num bongô, expele fumaças ilícitas e troca olhares com uma inglesinha que está ali fazendo intercâmbio e não fala vinte palavras em português, sendo que ele não fala dez em inglês. À meia-noite, Carlos está novamente sozinho no pequeno chalé de madeira onde tem vivido os últimos vinte anos da sua vida. Dos parentes não tem mais notícias e apesar dos seus quarenta de idade, não constituiu família. Uma pessoa sensata diria que Carlos deve ser um sujeito muito solitário e infeliz, mas ela estaria por certo enganada. Na verdade Carlos é um homem quase realizado, pois sente que está fazendo exatamente o que deveria fazer. Só falta agora comprar o seu “fusca verde”, colocá-lo pra funcionar com algum biocombustível feito em casa e compartilhar em seu blog, sob licença livre, a solução química que encontrou. Esse com certeza será um grande dia para ele. Enfim, essa é a vida de Carlos. a mata atlântica apresenta-se em sua forma mais preservada, ou seja, no alto da serra. Então não há o que se falar em grande influência antropogênica. REVISTA 65 BEATBRASILIS REVISTA 66 BEATBRASILIS REVISTA 67 BEATBRASILIS Clique nos ícones e acesse os espaços virtuais do Coletivo Beatbrasilis REVISTA 68 BEATBRASILIS