histórias recontadas: imigrantes judias empresárias em são paulo

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histórias recontadas: imigrantes judias empresárias em são paulo
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
ÁREA DE LÍNGUA HEBRAICA,
LITERATURA E CULTURAS JUDAICAS
HISTÓRIAS RECONTADAS:
IMIGRANTES JUDIAS EMPRESÁRIAS EM SÃO PAULO
(1945-1956)
Marie Felice Weinberg
São Paulo
2004
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
ÁREA DE LÍNGUA HEBRAICA,
LITERATURA E CULTURAS JUDAICAS
HISTÓRIAS RECONTADAS:
IMIGRANTES JUDIAS EMPRESÁRIAS EM SÃO PAULO
(1945-1956)
Marie Felice Weinberg
Dissertação apresentada à área de Língua
Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre.
Orientadora: Profª Dra. Berta Waldman
São Paulo
2004
Weinberg, M. F. Histórias Recontadas: Imigrantes Judias, Empresárias em São Paulo.
(1945-1956) Dissertação (Mestrado) São Paulo,2004. Língua Hebraica, Literatura e
Culturas Judaicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
RESUMO
O Objetivo da dissertação é o de analisar as diferenças entre as realidades
vivenciadas e os discursos construídos de 22 mulheres imigrantes judias na cidade de
São Paulo, no período de 1945 a 1956 - que se tornaram empresárias. Diante das
circunstâncias favoráveis encontradas no cenário político, econômico e social do
período, essas mulheres, partícipes do grupo étnico, teceram condições diferenciadas
por intermédio das iniciativas “invisíveis”, buscando soluções econômicas para garantir
as necessidades familiares. Analisar suas histórias confirma que as características
específicas do grupo estudado consolidaram a identidade ao compor soluções em
segmentos profissionais determinados, assim como na formação de bairros étnicos. A
rede de entrevistadas estendeu-se pelo universo cultural judaico imigrante: 17
mulheres ashkenazitas, três sefarditas e duas orientais, sob uma abordagem
multicultural a respeito de suas ações. A História Oral foi a metodologia escolhida para
formar a amostra e interpretar as histórias dessas mulheres. Neste sentido, o desafio
está em contradizer os discursos normativos, encarados como naturais, talvez, por
corresponderem às narrativas mesmo quando as imagens teimam em revelar outras
verdades. Desse modo, este trabalho poderá ser utilizado para questionar, ainda que
só no plano discursivo, as relações de poder na estrutura familiar judaica e nos demais
grupos culturais que imigraram para São Paulo. Diante da construção desse universo,
percebe-se que tornar visíveis as iniciativas das mulheres significa recontar os
discursos, antes entesourados na intimidade da memória.
Palavras-chave: Imigração, Judeus, Empreendedorismo, Gênero, História Oral
Weinberg, M. F. Re - telling life histories: Jewish women immigrant entrepreneurs in
Sao Paulo (1945-1956). USP. São Paulo, 2004.
SUMMARY
The dissertation sought to analyze the differences found between experienced reality
and constructed speech produced by 22 Jewish women who immigrated to the city of
Sao Paulo from 1945 to 1956 and have shown entrepreneurial initiative. In face of the
favorable circumstances found in the political, economic and social scenery over that
time span, these women, who are part of a distinct ethnic group, have woven distinct life
conditions by undertaking “ invisible” initiatives, in their search for economic solutions
that would supply the needs of their families. The analysis of their life histories confirms
that the specific characteristics of this study group led them to consolidate their
identities by setting up solutions inside certain occupational segments, and in ethnical
neighborhoods. The net of women interviewed expanded throughout the cultural
universe of Jewish immigrants, with 17 Ashkenazim, 3 sepharadim and 2 oriental
women, under a multi-cultural approach on their actions. Oral history was the
methodology of choice to assemble and interpret these women’s histories. The
challenge here consists in contradicting the normative discourses considered as natural,
perhaps because these correspond to the narratives even when images insist on
shedding light upon different types of truth. Therefore, this study may be used to
question, if only in the discursive plane, the power relations embedded in the familial
structure of the Jewish and other cultural groups who have immigrated to Sao Paulo. It
becomes clear that the act of bringing visibility to these women’s initiatives consists in
re-telling their discourse, which was previously enshrined inside the intimacy of
memory.
Key words: immigration, Jews, entrepreneurial skills, gender, oral history.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, dirijo meus agradecimentos às mulheres que participaram da
construção do universo pesquisado e tornaram possível este trabalho que contou com
o apoio da CAPES.
Não foram pouco relevantes os olhares cuidadosos da banca de qualificação,
Profª Dra. Eni de Mesquita Samara e a Profª Dra. Nancy Rozenchan, às quais, pela
primeira vez, apresentei meu trabalho para uma análise crítica, quando recebi
comentários que em muito colaboraram para a efetiva consolidação desta pesquisa. No
período, também, conquistei o entusiasmo da Profª Dra. Eni de Mesquita Samara que
acreditou em meu potencial e neste projeto, ajudando a finalizá-lo desta maneira...
Importante agradecer os cuidados e zelos que obtive da Profª Dra. Berta
Waldman, em momentos cruciais, sem os quais não teria chegado a finalizar este
estudo. Não pouco significativas foram as participações e colaborações de Ada
Waldman Dimantas, Noêmia Cutin e Cecília Simis Schwarz. No Arquivo Histórico
Judaico Brasileiro, a dedicação de Mirella Barki, também, não pode deixar de ser
citada, bem como o interesse de cada parágrafo das versões dos vários capítulos
delicadamente analisados pela Profª. Dra. Beatriz Kushnir. À equipe de trabalho do
CEDHAL, especialmente, Ismênia Tupy e Vanessa dos Santos Bodstein Bivar, bem
como Vilma Laurentino Paes, meu suspiro grato pela acolhida calorosa e interferências
que muito acrescentaram na ampliação de meus limites.
Deixar de mencionar o apoio inesgotável da Profª. Dra. Rachel Mizrahi, com
seus comentários, interjeições, indicações, correções e suporte emocional seria
desconsiderar seu papel essencial na construção deste percurso, que eu espero ter
realizado satisfatoriamente.
A meus filhos, Dany e Ronnie Chvaicer, pelo apoio em mais de um momento,
fazendo ou deixando de pedir. Às amigas, que compõem minha família escolhida
Deborah Karin Telesio, Simone Leifert, Elizabeth Camargo Fonseca, Cristina Mozer,
Marlene Szpigel, Maria Penha do Nascimento, Heidi Baur, Cristiana Serrano, Gabriela
Mariano e Márcia Dancini, pois cada uma em sua habilidade facilitou o processo de
execução desta dissertação. Aos amigos Orlando Marques, Luiz Alberto Sanches de
Oliveira, Alberto Kremnitzer, João Chakian, Abrão S. Feferman, que deram o respaldo
e estimularam essa aventura. Ainda, Moradia Associação Civil (ONG) que, através de
seus dirigentes flexibilizaram o horário de trabalho, permitindo a minha freqüência às
aulas e em grupo de estudos.
Faço ainda um reconhecimento especial a todos os professores que percorreram
vários parágrafos dos corredores e bibliotecas que fazem parte da Faculdade de
História, Sociologia, Economia e Psicologia Social, corrigindo e dando rumo a seguir,
em momentos em que a luz parecia querer apagar-se.
Finalmente e, não menos importante, agradeço àqueles que despertam em mim
uma pessoa melhor (Você) e retribuo com meu aperfeiçoamento constante.
SUMÁRIO
Lista de Tabelas
Lista de Gráficos
Lista de Fotos
Lista de Figuras
Abreviaturas
Resumo/ Abstract
Introdução .........................................................................................................
01
Capítulo I - MULHERES EM MOVIMENTO .....................................................
11
1.1
1.2
1.3
Papéis ao longo da história .................................................................... 12
Cenário brasileiro nas décadas de 1940 -1955 ...................................... 17
Mulheres na cidade de São Paulo ......................................................... 37
Capítulo II– SÃO PAULO: BRAÇOS ABERTOS AOS IMIGRANTES JUDEUS
2.1
2.2
2.3
42
Imigrantes judeus em São Paulo ............................................................ 43
Diferentes grupos culturais judaicos ....................................................... 55
Contornos de Identidade .......................................................................... 71
Capítulo III – EMPREENDEDORAS INVISÍVEIS .............................................. 84
3.1
3.2
3.3
Oportunidade e circunstâncias: imigrantes judias em questão ..............
Empresária Myetta Garon, uma história assumida ................................
Histórias Recontadas .............................................................................
85
100
109
Considerações finais ......................................................................................... 131
Fontes e Bibliografia..................................................................................
Anexos
Anexo 01 – Outras tabelas referentes às entrevistas
Anexo 02 – Roteiro de Entrevista
Anexo 03 – Breviário das entrevistas
152
Lista de Tabelas
TABELA 01 - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo feminino ..........
32
TABELA 02 – Distribuição entre sexos nos diversos ramos de atividades .....
34
TABELA 03 – Distribuição entre os sexos de brasileiros e estrangeiros
39
TABELA 04 – Participantes do empreendimento ...........................................
48
TABELA 05 – Apoio de entidade para a imigração .........................................
66
TABELA 06 – Bairro de Instalação à chegada das entrevistadas ..................
75
TABELA 07 – Matrimônio Endogâmico .........................................................
77
TABELA 08 – Contribuições Sociais ...............................................................
79
TABELA 09 – Participação em clubes sociorrecreativos ................................
79
TABELA 10 - Tipos de casamento entre os filhos ..........................................
80
TABELA 11 - Religião que a filha mantém em casa .......................................
80
TABELA 12 – Religião na origem ...................................................................
86
TABELA 13 – Prática religiosa hoje ................................................................
87
TABELA 14 – Fatores que imputam a iniciativa empreendedora ...................
88
TABELA 15 –Data do início do empreendimento ...........................................
88
TABELA 16 – Duração e número de funcionários no empreendimento .........
89
TABELA 17 – Contatos para a imigração .......................................................
89
TABELA 18 – Profissão do pai na origem .......................................................
90
TABELA 19 – Formação profissional da entrevistada ....................................
91
TABELA 20 – Privilégios entre irmãos / filhos sobre a educação na origem
92
TABELA 21 – Escolaridade das filhas.............................................................
93
TABELA 22 – Contribuição das filhas na economia familiar ...........................
94
TABELA 23 – Participação familiar no empreendimento ................................
96
TABELA 24 – Grupo Cultural Judaico .............................................................
110
TABELA 25 – Mulher no trabalho na origem ..................................................
111
TABELA 26 – Condições financeiras na imigração ........................................
112
TABELA 27 – Participantes do empreendimento ............................................
114
TABELA 28 – Coabitação na Imigração..........................................................
115
TABELA 29 – Tipo de trabalho de acordo com gênero ..................................
116
TABELA 30 – Segmento do Negócio ..............................................................
116
TABELA 31 – Estado Civil na Imigração .........................................................
117
Lista de Gráficos
GRÁFICO 01 – Distribuição em porcentagem dos participantes dos
negócios das entrevistadas .............................................................................
48
GRÁFICO 02 – Distribuição por porcentagem dos bairros de instalação na
chegada das entrevistada ...............................................................................
76
GRÁFICO 03 - Distribuição em Porcentagem por tipo de contribuição a
entidades entre as entrevistadas ....................................................................
78
GRÁFICO 04 – Distribuição em porcentagem da participação em clubes
entre as entrevistadas .....................................................................................
79
GRÁFICO 05 – Distribuição em porcentagem da religião que as filhas das
entrevistadas mantêm em casa ......................................................................
81
GRÁFICO 06 – Distribuição em porcentagem dos privilégios concedidos
entre os gêneros na origem ............................................................................
92
GRÁFICO 07 – Distribuição em porcentagem quanto ao nível de formação
das filhas das entrevistadas ............................................................................
93
GRÁFICO 08 – Distribuição em porcentagem da contribuição das filhas das
entrevistadas na economia familiar .................................................................
94
GRÁFICO 09 – Distribuição em porcentagem das entrevistadas quanto ao
trabalho na origem ..........................................................................................
111
GRÁFICO 10 – Distribuição em porcentagem das condições financeiras das
entrevistadas na imigração ............................................................................
112
GRÁFICO 11 – Distribuição em porcentagem de participantes no
empreendimento .............................................................................................
114
GRÁFICO 12 – Distribuição em porcentagem sobre o segmento de
empreendimento das entrevistadas ................................................................
116
GRÁFICO 13 – Distribuição em porcentagem da opinião sobre os homens
que deixam ou precisam que a mulher trabalhe .............................................
119
GRÁFICO 14 – Distribuição em porcentagem da opinião a respeito das
mulheres que trabalham .................................................................................
119
GRÁFICO 15 – Distribuição em porcentagem do exercício da autoridade na
origem das entrevistadas ................................................................................
121
GRÁFICO 16 – Distribuição em porcentagem da rede de relacionamentos ..
125
Lista de Fotos
FOTO 01 - Mulher sozinha em via pública ......................................................
11
FOTO 02 – Mulheres e o Homem ...................................................................
16
FOTO 03 – Cora Coralina ...............................................................................
24
FOTO 04 – Obelisco no Parque do Ibirapuera ...............................................
25
FOTO 05 – Esquina e a garoa paulistana .......................................................
27
FOTO 06 – Parque do Trianon .......................................................................
33
FOTO 07 – Lina Bo Bardi ...............................................................................
35
FOTO 08 – Vista aérea do Parque do Ibirapuera ...........................................
36
FOTO 09 – Perdas e Ausências .....................................................................
40
FOTO 10 – Trilhos de bonde desembocam pelo Bom Retiro .........................
42
FOTO 11 – Famílias de “Irmãos de travessia” – Schifsbrider ........................
49
FOTO 12 – Atividades sociais femininas ........................................................
53
FOTO 13 – Agrupamento de ashkenazitas em meados do século XIX ..........
57
FOTO 14 – Livro Sagrado - Torah...................................................................
58
FOTO 15 – Mesa para comemoração de Shabat ...........................................
62
FOTO 16 – Durante o Mandato Britânico .......................................................
67
FOTO 17 – Amuleto – Chamsa .......................................................................
70
FOTO 18 – Vista do Muro das Lamentações no setor feminino .....................
81
FOTO 19 – Mulheres Empreendedoras em atividade ....................................
84
FOTO 20 - Myetta Garon na preparação de um desfile da coleção de
inverno em 1992 .............................................................................................
106
FOTO 21 – Reencontro Familiar .....................................................................
115
FOTO 22 – Conquista de Tia Barki .................................................................
122
Lista de Figuras
FIGURA 01 – Anúncio do Atelier de Costura Ariela ........................................
98
FIGURA 02 – Anúncio do Grand Prix em Revista ..........................................
98
FIGURA 03 – Página de jornal dos eventos e anúncios .................................
99
FIGURA 04 - Anúncio em alemão de Modas Margarida ...............................
99
FIGURA 05 – Anúncio de Ester Gorovitz ........................................................
100
FIGURA 06 – Matéria de revista sobre a empresária Myetta Garon ..............
109
Lista de Mapas
MAPA 01 – Distribuição da população judaica no início do século XX nas
comunidades de origem ..................................................................................
Abreviaturas
MFW – Marie Felice Weinberg
56
INTRODUÇÃO
Os estudos realizados sobre a imigração de judeus em nosso país concentramse em núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, como único partícipe
de empreendimentos econômicos e manutenção (sustento) da estrutura familiar.
Recentes estudos sociológicos vêm mostrando a importância das mulheres no
mercado de trabalho, mas nenhuma pesquisa acadêmica abordou as mulheres judias
que, inseridas no contexto familiar, ousaram empreender ações em busca de soluções
econômicas, visando ao lucro para garantir as suas necessidades e de seus familiares.
Assim, este estudo caracteriza-se pelo ineditismo ao pesquisar essa temática.
Nas últimas décadas, as investigações sobre a imigração judaica ampliaram-se, e
sociólogos e historiadores, quando fundamentam suas pesquisas, ainda situam a
participação masculina, como representante.
Como chefes de família ou como
profissionais são responsabilizados, inclusive, pela inserção do grupo no meio social,
restando às mulheres o papel de figurantes e elementos passivos no enredo familiar.
O tema abrange o período que se estende do final da Segunda Guerra Mundial
até 1956, quando o General Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder do Egito,
rompendo o regime monárquico do rei Faruk. Ao criar a Liga Árabe, o presidente e as
demais autoridades dos países árabes do Oriente Médio partiram para investidas
bélicas contra Israel, estado fundado em 1948, passando a ocupar o referencial de
identificação de todo judeu.
Os líderes das nações árabes mobilizaram-se e apoiados pela União das
Repúblicas Socialistas Soviética adotaram uma política antiisraelense, levando ao
rompimento das antigas e amistosas relações entre muçulmanos e judeus.
Os judeus, em sua maioria, viviam nessas regiões e proibidos de emigrar para
Israel transferiram-se para países da Europa e América, entre os quais o Brasil.
Embora ainda vigorassem restrições à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras
receberam, terminada a Segunda Grande Guerra, os sobreviventes do Holocausto e os
refugiados das antigas comunidades ashkenazitas e sefarditas dos países da Europa
Ocidental e Oriental e os banhados pelo Mediterrâneo.
No período, a cidade de São Paulo já apontava os números de 2.198.096
habitantes no censo de 1950, que demonstram a multiplicação de sua população em
relação a 1,32 milhão de habitantes em 19401, fruto de movimentos migratórios que, ao
final de 1959 já somava mais 700.0002 novos imigrantes em busca de cenário pacífico
e da economia em crescimento.
Desse modo, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde
vivenciaram circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, ao
imigrarem encontraram no sudeste brasileiro, um período de crescimento demográfico
e econômico, circunstâncias favoráveis às iniciativas profissionais.
A História Oral foi a metodologia escolhida para compor e interpretar as histórias
de vida de mulheres que imigraram a São Paulo, entre 1945 e 1956 que trabalharam,
visando ao lucro apoiadas em seu próprio capital.
Ao discutir a documentação “viva”, a História Oral como ainda não aprisionada
pela linguagem escrita, abre espaço para um recontar da história. Neste trabalho,
apresentamos a história compartilhada3, considerando os múltiplos e particulares
relatos das entrevistadas, sujeitos à interpretação captada pela entrevistadora e à
memória coletiva (as histórias ouvidas e absorvidas como sendo da própria vivência).
Na busca dessa unidade, ao escrever e ao serem lidas essas histórias tornaram-se
frutos de ambas, colaboradoras e autora.
A partir da década de 80 do século XX com o esfacelamento da URSS e o
surgimento de novas lideranças de grupos minoritários, ficou evidente a necessidade
de contar e recontar histórias de indivíduos. A História Oral fez seu papel e vem
resgatando aquela que é a “ história vista de baixo, dos excluídos e não só uma história
politizada, contaminada pelo viés do discurso tradicional”4 dominante.
Assim, a História incluiu as minorias, tornando-se um instrumento metodológico
fecundo para compreender o universo do estudo escolhido. A pesquisa qualitativa foi a
técnica utilizada, visando a criação de espaço dentro da História desse grupo étnico
“valendo como revisão de situações estabelecidas, pois, quase sempre, ela propõe
alterações interpretativas que contrastam com a ordem vigente”5
1 CARIGNATO, T.;ROSA,M. D; PACHECO Fº, Raul A.(Org.). Psicanálise, Cultura e Migração, pp. 94-95
2
LESSER,Jeffrey. A negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no
Brasil, p. 26.
3 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente, pp. 37-39
4 BURKE, Peter (Org.) A escrita da História: Novas perspectivas, pp. 8 -13
5 MEIHY, J. C. Sebe Bom. Manual de História Oral, p. 15.
Na década de 90 do século XX, a História Oral é inserida no currículo dos cursos
universitários brasileiros, conseqüência de novas reflexões a respeito da História
Tradicional.
Vários foram os discursos que participaram deste trabalho e que integraram e
recontaram a realidade. A reconstrução dos fatos e a colagem das informações
ganharam diversas formas, frutos da técnica escolhida que valoriza também o olhar do
observador, quando ao descrever a história de vida coloriu os efeitos do momento em
que a história foi narrada.
O diálogo entre observador e sujeito efetivado na entrevista (“entre-vistas” ou
”olho no olho”) ganhou vários significados. As histórias vão frutificar-se e, apoiadas na
integração entre discurso, fatos e capacidade interpretativa da pesquisadora, assim,
uma outra história foi literariamente recontada.
Em uma abordagem quantitativa, definida a população, busca-se um critério de
representatividade numérica que possibilite a generalização dos conceitos teóricos.
Neste trabalho, esta barreira não foi vencida. Os números do universo constante nas
diversas tabelas são discutíveis, se considerarmos o período da imigração e as
barreiras impostas ao grupo étnico em questão.
Com base na dificuldade para encontrar o valor numérico na definição da
amostra, o trabalho iniciou-se com a busca das empresárias e seus relatos. Novo
obstáculo surgiu. As mulheres casadas até estes dias, não aceitam assumir seus
papéis de empreendedoras, colocando suas ações na dimensão de “ajuda”. Desta
maneira, o quase ausente objeto da pesquisa ficou reduzido.
Para isso, foi necessária uma abordagem mais abrangente a respeito das
nomenclaturas utilizadas nas ações de cunho econômico e apoiadas no “próprio”
capital, para a composição da amostra. Além da investigação qualitativa, o fenômeno
pode ser estudado e, alcançada a compreensão da interação6 de dados, do grupo
social ou da representação.7
6 RODRIGUES, Maria L.; NEVES, Noemia P. (Org.) Cultivando a pesquisa: reflexões sobre a investigação
em ciências sociais e humanas, pp. 56-57
7 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde, p. 102
O universo selecionado exigia como pré-requisito: ser mulher, judia, imigrante na
cidade de São Paulo no período e de ter exercido o papel de empresária8
Assim, o foco primordial do trabalho foi a iniciativa prática das mulheres, a
identificação do capital inicial próprio, independente do sucesso do empreendimento.
Embora os “economistas e sociólogos façam distinção entre os diversos tamanhos das
empresas”9: micro, pequena, média e grande, estas medidas ajustadas à capacidade
produtiva, quantitativa, incorporações tecnológicas, hierarquização e sistematização,
em geral, pontuadas pelas entrevistadas, não foram objetos de análise, pois o
relevante para a pesquisa foi a iniciativa empreendedora.
Documentos em arquivos (públicos e particulares), jornais da época, revistas
culturais e impressos comunitários permitiram ampliar e corrigir eventuais distorções da
construção da realidade, resultantes de memórias emocionais.
Os discursos que participaram, integraram e reconstruíram essa realidade são
vários. A colagem dos fatos e das informações em suas diversas formas documentais,
inclusive, teses e dissertações sobre outras etnias abriram espaço para reflexões sobre
o significado da participação dessas mulheres na luta pela sobrevivência, como
empreendedoras na cidade de São Paulo, até agora invisível, ao olhar da história
“tradicional” sobre a comunidade judaica.
É
razoável
admitir
que
o
tema
das
mulheres
judias,
imigrantes
e
empreendedoras é um grupo inexistente, de acordo com o discurso patriarcal. Ainda
que reconheçam os eventos, somente os consideram como únicos e sem significado. O
número de acontecimentos que compuseram este estudo é pequeno, mas impele a
certos questionamentos, como a falta de espaço social ao empreendedorismo feminino
ou a perpetuação do modelo conservador da sociedade patriarcal judaica? Ao
aprofundar as análises, podemos colocar os olhos sobre estudos acadêmicos e
constatar que as mulheres, como sujeitos históricos são a conquista de um movimento
iniciado, em 1960, por ativistas femininas.
8 “Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade
por seu funcionamento e eficiência. Encarrega-se de reunir e coordenar os fatores de produção no
processo produtivo, avaliar os mecanismos de oferta e demanda e assumir os riscos inerentes ao
empreendimento. É quem cuida do suprimento de capital, compra e combina os insumos e decide o nível
da produção...O administrador, por seu lado, só é considerado empresário na medida que assume os
riscos do empreendimento (por participação no capital e nos lucros, por exemplo.” SANDRONI, Paulo.
Dicionário de economia , p. 138-139.
9 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 13.
Na apresentação de um seminário com Derrida, em março de 1984, a
Professora de Princenton sintetizou:
Finalmente, o desvio para o gênero (aqui como
divisão natural dos sexos) na década de 80 foi um rompimento
definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu
próprio espaço, pois gênero é um termo aparentemente neutro,
desprovido de propósito ideológico imediato.10
No caso das mulheres judias, a História Oral aplica-se de maneira mais
pertinente, pois até muito recentemente sua história era só escrita pelas letras e
olhares masculinos. As mulheres, objeto desta pesquisa, ousaram ações diferenciadas,
sempre descritas na condição de objeto da estrutura familiar patriarcal aqui e no resto
do mundo, onde as comunidades judaicas puderam instalar-se.
Este estudo poderá ser utilizado para questionar as relações de poder, ainda
que só no plano discursivo, assim, há o desafio em divulgar as 22 histórias que
poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais,
talvez, por corresponderem a uma narrativa patriarcal que até aqui permanece
preservada pelas próprias mulheres.
Neste trabalho, marcou presença uma norma de conduta tácita, que preserva o
poder masculino nos atos e conquistas econômicas. As mulheres, ao exigirem a
omissão das identidades, fato que ao longo do trabalho será analisado, confirmaram
sua subordinação.
Endossamos, então, o parecer de Hatanaka (1993), historiadora da Pontifícia
Universidade Católica (PUC-SP), que em seus estudos sobre a imigração japonesa
pondera o seguinte:
(....) ainda que a natureza sustentada do fenômeno
migratório precise de um nexo econômico fundamental, devemos
manter uma grande abertura para a possibilidade de, ao mesmo
tempo
em
que
resolviam
problemas
econômicos,
muitos
imigrantes estavam ao mesmo passo resolvendo conflitos e
problemas de outra ordem, nomeadamente de ordem pessoal e
familiar. Essa dimensão extra-econômica pode contribuir para
acentuar a enorme força e significado da migração”.11
Os arquivos: Histórico Judaico Brasileiro de São Paulo, da Federação Israelita
de São Paulo, das sinagogas (o Beit-El, CIP) e da Associação Brasileira ”A Hebraica”
ajudaram na composição dos nomes da rede inicial do conjunto feminino analisado.
Histórias de vida adicionais foram incorporadas ao trabalho, graças às indicações
fornecidas pelas próprias entrevistadas que compuseram o universo das entrevistas.
Para definir o grupo de mulheres judias, imigrantes e empreendedoras, a “autoidentificação”12 serviu como referencial, abrangendo um universo desde as laicas ou
não religiosas até as ortodoxas. A discussão sempre atual sobre o significado de
identidade judaica converge para a questão dos valores que geram diferentes
processos identificatórios.
As mulheres judias carregam dentro de si uma dubiedade maior, definida como
responsável pela hereditariedade étnica, que é cobrada sobre a educação religiosa e
as
tradições
culturais
dos
filhos.
Como
mães,
espera-se
a
repetição
de
comportamentos que se perpetuem na continuidade que permeia a literatura, em geral:
(....)em inércia, a sabedoria de seu grupo e sem voz
própria, sorrir levemente, preparar a especial toalha branca, os
castiçais polidos e acender as velas que anunciam o dia santo e
prenunciam um jantar com gosto de séculos”13
As entrevistas foram individuais, na residência da família ou no escritório, e o
tempo de duração não foi previamente limitado, mas estendeu-se em média por três
horas. Diante da presença inesperada do marido ou filho, no momento da entrevista
10 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE,Peter (Org). A escrita da História.Novas perspectivas.
p. 13
11 HATANAKA, M. L. E. O processo judicial da "Shindo Remmei", um fragmento da História dos Imigrantes
Japoneses no Brasil.
12 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.132
13 RAWET, Samuel. Contos do Imigrante, p.25
percebemos que o discurso alterava-se. Neste caso, marcávamos novos encontros
para elucidação da história.
O “grupo de trabalho” foi sendo descoberto e melhor compreendido com base no
roteiro semi-estruturado14 com perguntas elaboradas no intuito de balizar as conversas,
combinando perguntas abertas e fechadas. Conforme ilustram as palavras de
Bernardo:
A coleta de dados sobre a memória não segue uma
linearidade, revelando os seus próprios mecanismos. É um ir e vir
constante. Os caminhos são
de
profunda
complexidade,
demonstrando aspectos multifacetados das potencialidades
do
lembrar. 15
Na tabulação dos dados e na transcrição do discurso, previamente anotado,
surgiram dúvidas que, não raro, exigiram novos contatos, alguns por telefone.
Posteriormente, as frases captadas ajudaram a tecer essa dissertação e os dados
foram transformados em tabelas e gráficos a serem apresentados no decorrer no
trabalho.
A metodologia foi escolhida por valorizar o olhar da observadora, pois ao
descrever a história de vida pondera sobre as causas e os efeitos do momento em que
é contada. Desse modo, o tema do livro “Luvas Brancas”16 ilustra essa integração por
meio do diálogo entre observador e sujeito, efetivado na entrevista (“entre-vistas” ou
”olho no olho”), de modo a ampliar o discurso em vários significados, integrando as
falas, os fatos e a capacidade interpretativa do pesquisador de recontar a história,
desvendando as entrelinhas17 e permitindo-se apresentar uma nova versão a partir da
experiência.
Para Meihy, só é possível em uma democracia, na qual as entrelinhas são os
próprios segredos e não as questões políticas:
14 MARCONI, M. Andrade; LAKATOS, Eva Maria.Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de
pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados, p. 84
15 BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro:olhares sobre São Paulo, p.190
16 KOTRE, John. Luvas Brancas: Como Criamos a Nós Mesmos Através da Memória.
17 FENELON ,Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa, p. 77
Uma questão fundamental da qualificação da história
oral no Brasil é sua função social. Estando o seu advento
intimamente ligado ao surgimento da democracia, se questiona
se seus eventuais progressos a manteriam na mesma orientação
de origem. (…) caberia questionar: história oral por que, de quem
e para quem?18
Assim, os relatos colhidos pela pesquisadora foram anotados, pois as
entrevistadas, identificadas por pseudônimos, não autorizaram a gravação de suas
histórias, utilizando justificativas a serem analisadas em capítulo posterior de maneira
mais específica. Para retratar esse universo, a entrevistadora valorizou sua experiência
como empresária e judia, conquistando maior espontaneidade e fluidez dos discursos
ao minimizar a preocupação com expressões idiomáticas.
No entanto, foi dada atenção às armadilhas interpretativas e procuramos manter
certo distanciamento a fim de minimizar as distorções provocadas por “identificações
projetivas”19, como Bourdieu salienta e sugere, fazer interrupções lacônicas e
interrogativas por parte da entrevistadora, objetivando uma reinterpretação do
significado específico dado pela entrevistada.
Ao visar uma reserva a respeito dos eventuais atos de bravura ou vitimização
das mulheres, que passaram por perseguições, guerra ou deportação, foi previamente
estipulada a exclusão do período do Holocausto, o que facilitou a receptividade
tornando-se, na maioria dos casos, motivacional para a participação no estudo. Este
ponto será aprofundado na análise a respeito de cada grupo específico e suas
diferenças culturais que promoveram distintas versões sobre as possibilidades e
atividades no contexto social, tanto público como privado.
Diante desse panorama inquietante, que se traduziu no silêncio sobre as
iniciativas, mulheres envolvidas na comunidade judaica foram contatadas e fizeram
indicações, permitindo a construção de rede de informações para compor o universo
das personagens que iremos descobrir neste trabalho.
18 MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino americana: o caso do Brasil. In: FERREIRA, M.;
FERNANDES, T.; ALBERTI, V. (Org.) História oral: desafios para o século XXI.
19 BOURDIEU,Pierre et alli. A miséria do mundo, p. 691
O estudo foi estruturado em três capítulos, no Capítulo I – “Mulheres em
Movimento”, objetivando detalhar a historiografia dos estudos de gênero e as
transformações conquistadas pelas mulheres ao longo da história, chegando ao
cotidiano na cidade de São Paulo nas décadas de 1940-1950, pólo de atração dos
imigrantes.
Outro ponto foi a diversidade das camadas sociais, tanto da origem como as
alcançadas pelas mulheres selecionadas para descrever o cenário histórico, no qual
estiveram envolvidas,revelando diferentes visões e oportunidades que contribuirão em
sua economia familiar.
No Capítulo II –“São Paulo: braços abertos aos imigrantes judeus”, que pretende
alinhavar os distintos significados da identidade judaica, os grupos culturais diversos,
frutos das diásporas e suas características familiares, darão tons à identidade feminina
no grupo e afetarão a visibilidade das ações na inserção ao imigrarem à cidade de São
Paulo.
De acordo com Bresser Pereira, no início do século XX, foram, principalmente,
os imigrantes vindos a São Paulo que criaram a classe empresarial. A cidade iniciou
seu processo de desenvolvimento a partir da Revolução de 1932, foi favorecida por
contingências internas e externas que consolidaram seu espaço central no cenário
econômico-financeiro-comercial-brasileiro.
Os imigrantes judeus que se instalaram em São Paulo, vieram de várias regiões
da Europa, Oriente Médio e África do Norte. Os originários da Europa Central e Oriental
são os ashkenazitas; os de origem Ibérica, sefarditas de países da Europa Ocidental e
Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo e o terceiro grupo, o oriental, oriundo dos
países árabes, entre os quais, Líbano, Síria, Egito e Iraque.
A maior parte do grupo é de origem ashkenazita e isto se refletiu neste estudo,
que buscou incluir participantes dos três grupos culturais e cada um teve sua
representação balizada em, pelo menos, 10,0% do universo pesquisado, garantindo
sua significância.
Paul Thompson afirma sobre a necessária coragem para enfrentar críticas aos
estudos pautados “...na história da emoção e do sentimento.”20. Para este trabalho,
20 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral, p. 24
foram necessárias ainda a ousadia e a delicadeza, qualidades que ajudaram a construir
o ambiente adequado para o acolhimento dos discursos, garantindo entender o raro.
No
Capítulo
III
–
“Empreendedoras
Invisíveis”,
apresentam-se,
mais
especificamente, os dados coletados nas entrevistas sobre o empreendedorismo e
discutimos o exercício dos papéis femininos em conflito com o âmbito público,
mostrando-se um novo som, em meio ao silêncio sobre as iniciativas das mulheres que
parecem ousar e criar o avesso do homem.
Em caráter conclusivo, a personagem imaginária “Isha Mehagueret“ que, em
hebraico significa:
Mulher Imigrante, apresenta a história das 22 mulheres
entrevistadas, baseada na metodologia do discurso-síntese21, assim denominado por
Fernando Lèfevre. Essa colcha de retalhos foi construída apoiada nas entrevistas
individuais que tornaram o relato de todas o discurso de uma. Desse modo, quem
participou com seu discurso, permanece viva e pode identificar-se nos parágrafos mais
contundentes e não raros, em expressões, diferentemente de tabelas, gráficos ou
porcentagens, frias e inanimadas.
Logo, a personagem ficcionada “Isha Mehagueret” é a condensação das
conversas e frases marcantes e representativas da individualidade costurada na
“história transcriada”. Esta releitura discursiva das tabelas, gráficos e dados estatísticos
vem recheada das emoções demonstradas pelas mulheres ao explicitar as
dificuldades, barreiras, ousadias e conservadorismo, as dores, vitórias e mudanças que
estas mulheres geraram, permeando a realidade histórica do objeto estudado.
21 LÈFEVRE, Fernando; LÈFEVRE, Ana Maria Cavalcanti; TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira, (Org.), O discurso do
sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa, p.19.
CAPÍTULO I
MULHERES EM MOVIMENTO
FOTO 01 - Mulher sozinha em via pública
Olga Ferd na Rua José Paulino – 1948
Fonte: Acervo AHJB
“A palavra política é usada atualmente em
vários sentidos (...) aplicada ainda mais
amplamente a práticas que reproduzem ou
desafiam o que é às vezes rotulado de ideologia”,
aqueles sistemas de convicção e prática que
estabelecem as identidades individuais e coletivas
que formam as relações entre indivíduos e
coletividades e seu mundo, e que são encaradas
como naturais e normativas ou auto-evidente.”
Joan Scott
1.1 - Papéis ao longo da história
Apesar dos avisos de perigo sinalizados por Matos a respeito dos estudos sobre as
mulheres, não podemos desistir de recontar os que incluem as ações das mulheres,
“....campo minado, repleto de controvérsias e de ambigüidades, caminho inóspito onde não
há marcos teóricos fixos ou muito definidos.” 22
Nem considerar as pesquisas sobre as atividades profissionais das mulheres
somente como uma questão de redefinição profissional. Os estudos de gênero colocam
novos significados sobre a multiplicidade de papéis desempenhados pelos partícipes da
sociedade que implicam transformações na relação entre homens e mulheres, inclusive, em
relação à concretização do exercício empreendedor. Encaremos o exercício de re-olhar.
A partir da década de 1970, estudos específicos sobre as mulheres desembocaram
em uma série de revisões. Assim, achamos importante definir mulher, como gênero, não só
pela categoria biológica (diferença entre macho e fêmea) e, sim, no sentido cultural. Com
base nas observações sobre suas ações sociais, pertinências familiares, idade, nação e
comunidade o papel feminino passa a ser moldado por regras, padrões e estruturas
políticas que configuram uma construção social23.
Esses trabalhos demonstram a imposição cultural de hierarquia entre os sexos,
apoiada nas várias dicotomias24 que foram constatadas em distintos papéis, tais como a
maternidade natural e a função social da paternidade e não são diferentes, no tocante ao
trabalho e diferenças estabelecidas entre trabalhadores e trabalhadoras. Finalmente, o
poder sobre a dominação do espaço público é relevante e reflete a organização das
famílias ocidentais, em geral, compreendendo as urbanas e rurais.
Os estudos científicos da década de 1980 sobre as "mulheres" questionaram os
antigos paradigmas de historiadores que, até então, consideravam seu olhar objetivo
(homem branco = sujeito). Assim, o significado universal das “mulheres” foi fragmentado,
ganhando novo peso as subcategorias como: raça, etnia, classe e sexualidade25, e o termo
“mulheres” passou a ser usado mediante complemento: “imigrantes, judias, empresárias”.
Diante desta perspectiva, percebemos o estudo de gênero como aquele que analisa os
detalhes, que olha os adjetivos e, portanto, aceita a possibilidade do diferente. Essa
22 MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma história da mulher, p. 28.
23 KELLY, Joan. Women, History and Theory: The Essays of Joan Kelly, p. 43.
24 SAMARA, Eni de Mesquita. Uma História. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.) História das mulheres
de Santa Catarina, pp. 7e 8
25 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História, pp. 87-89.
reivindicação abriu espaço na História para a análise das mulheres e suas contribuições,
não apenas como complemento do âmbito privado, pois, como vimos, estes contornos são
estratégias segregantes.
Pesquisas feitas por conexões pautadas em óticas econômicas distorcem a
percepção dos papéis das mulheres ao tentar colocá-las em uma estrutura masculina de
poder. O movimento operário do século XIX, por exemplo, associa a exploração capitalista
de trabalhadoras à prostituição.
Constatamos que esses modelos socialistas não estavam somente na antítese entre
capitalistas e proletários, mas, nas minorias assalariadas, entre as quais as mulheres, interrelacionando várias esferas sob o ponto de vista sociocultural.
Joan Scott salienta em seus estudos que, na época do Cartismo (movimento inglês
pelo sufrágio universal), era vedado às mulheres o direito de propriedade e relaciona
observações de cunho depreciativo, definições e termos que se fixaram, e assim,
permanecem.
Para a autora citada, é importante ponderar a respeito das limitações impostas e das
exigências das instituições sobre os diferentes grupos para a compreensão da dinâmica na
construção social do feminino. Assim, sobre a trabalhadora inglesa, a invisibilidade das
mulheres foi garantida por um longo período, sendo vistas como participantes universais,
portanto, sem destaque ou sem a necessidade de um tratamento à parte ou singular.
De acordo com Scott (1997), o processo de conquista do espaço feminino no
movimento veio com sua atuação em greves, em oposição ao uso pelos maridos dos
recursos domésticos para saneamento de dívidas do sindicato. Outros embates
apareceram, como a expansão dos quadros femininos no mercado de trabalho, diminuindo
vagas destinadas aos homens que reagiram. Como forma de proteção, instituíram-se os
diferenciais salariais, privilegiando os homens em 30,0% em média e perpetuando o
tratamento de menos-valia às mulheres, que não eram consideradas “atrizes políticas
adequadas em defesa da classe.” 26
Observamos que o próprio estudo de gênero, embora apresente expressões
relacionadas às diferenças, tem sido uma linguagem de enorme eficácia nas ideologias. O
“sistema das diferenças”27, se bem que hierarquize os cidadãos - homens e mulheres – por
intermédio das características impostas pela natureza, distinguindo entre feminino e
masculino, não advoga a naturalização da personalidade. Mas, pode ser assim
26 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História, pp. 87-89.
27HOWE, Irving. World of our fathers, p. 13.
interpretado, fixando os sujeitos às personalidades, aptidões e interesses, de acordo com
os sexos. Não é sem justificativa que a maior parte dos estudos de gênero esteja embutida
de resultados ideológicos para uso político e seus exemplos voltados à explicação sobre o
funcionamento das sociedades e suas relações de produção.
Nas Grandes Guerras, o cenário para as mulheres judias foi mais aviltante, física e
moralmente. Classificadas como terceira categoria, frágeis por definição (quando estavam
sob o jugo dos exércitos, lideraram pessoas em direção à salvação física por meio de
subterfúgios que só a dita fragilidade feminina pode inspirar), tinham pouca serventia.
Eliminadas com os doentes e as crianças para impedir a possibilidade de regeneração da
comunidade judaica, que buscava cumprir os mandamentos, povoando o mundo e
perpetuando o mito do “Povo Escolhido”, conforme as escrituras talmúdicas.
Observamos que nos países latino-americanos, o processo de conquista da
autonomia das mulheres foi mais lento e marcado pela representação masculina, que
segundo sua mentalidade, não aceita mulheres que reclamam por si próprias, impondo um
código de conduta, de espera pelo concedido. Essa é mais uma das características que
compõem as diversidades com as quais os estudos acadêmicos a respeito desse tema
defrontam-se ao definirem as mulheres latino-americanas. Há de se considerar, além da
idade, estado civil, escolaridade, camada social, religião e outras multiplicidades,
conseqüências da modernização, pois a identidade feminina depende das interfaces do
contexto em que estão incluídas.
Diante da impossibilidade de traçar um único perfil às mulheres latino-americanas e
tendo seus arquétipos e estereótipos construídos e consagrados pela literatura, os estudos
sobre as mulheres possibilitam a desconstrução ou reconstrução de cada grupo, de acordo
com a região, período, etnia, grupo social, ciclo vital, etc. Samara ainda distingue as
americanas das latinas não só pela diferença intrínseca, mas também quanto à forma
individualizada de suas ações, o que faz com que sejam identificadas pelos casos e não por
ações de um movimento:
Um exemplo disso é o próprio feminismo latino-americano
que difere do norte-americano e está atrelado aos conceitos de
feminilidade e maternidade. Além disso, é preciso entender as
condições históricas em que se deu esse movimento na América
Latina, o que gera o contraponto e a diferença. Há que se ter bem
claro também, que o conceito de gênero, bem como o de identidade,
está na dependência das variáveis: raça e classe, o que aparece na
análise das ‘vozes feministas’, a partir da sua procedência e
entendidas para a América Latina como indivíduos e não como
representantes de grupos. (Samara,1996,p.20)
Diante de tantas diferenças, o comentário de Stevens ajuda a remeter ao mundo das
semelhanças - são as mães judias e os jogos de poder do invisível que ganham paridade:
“as mulheres latino-americanas, como responsáveis pela transmissão da cultura,
apropriam-se do machismo e perpetuam o mito em benefício próprio.”28
Na história das mulheres brasileiras desde a colonização, apesar dos inúmeros
discursos e das tradições que vinculavam a personalidade feminina ao lar, muitas mulheres
invadiram o espaço público, já, no período colonial, chefiando famílias e trabalhando por
sua
própria
sobrevivência,
desafiaram
com
sua
presença
mitos
e
paradigmas
fundamentados na cultura da opressão, na qual família patriarcal era a unidade básica de
controle, modelo herdado de Portugal.29
Dessa maneira, constata-se que o contraste entre discurso e realidade está
permeado sob todos os mantos patriarcais que revestem as diversas áreas.
Na Legislação, a base estrutural da sociedade ocidental organizada foi balizada
pelos interesses do universo masculino, que objetivavam a manutenção de seu poder. Um
desses exemplos são as leis de hereditariedade e a partilha dos bens que excluem as filhas
do monte familiar, no caso de casamento. Esta alteração procurava preservar as famílias
nobres dos casos de miscigenação ao denominar de dote a parcela de herança dada à filha
em sua saída de casa e ainda como mãe terá o filho atrelado a si. Ao contrário, os filhos
homens receberiam seu monte só com a morte dos pais, preservando o grupo e a coesão.
Quando as imigrantes judias chegaram à cidade de São Paulo realizaram suas
potencialidades latentes, favorecendo a integração. Contavam em seu favor com códigos
sociais comuns, em que a estrutura patriarcal e a reserva feminina ao espaço privado
compunham o cenário. Nas entrevistas, foram captadas referências a essa dinâmica social
que aparece travestida no discurso de “nós”:
28 STEVENS, Evelyn. Marianismo: the other face of machismo in Latin América. In: PESCATELLO, Ann.
Male and Female, pp. 89-103.
29 SAMARA, Eni de Mesquita. O Discurso e a construção da identidade de gênero da América Latina,
p. 19.
Conforme relata Daniela: “A sabedoria de uma boa mulher é saber ficar atrás,
mesmo sendo a mentora.” 30
FOTO 02 – Mulheres e o Homem
Isaac Barki no Rio de Janeiro em 1956 com esposa, nora e amigas.
Fonte: acervo de Anna Bigio
A alternativa escolhida para este estudo foi descortinar apoiada no olhar sensível as
nuanças e meio tons que compuseram o discurso das entrevistadas e captar os segredos
como numa conversa de mulher para mulher. Essa empatia só foi possível pelo fato de a
pesquisa ter sido conduzida por uma mulher pertencente ao grupo étnico e social,
reiterando a cristalização da construção dos espaços femininos e seus assuntos.
Durante as entrevistas, que traziam o tom de lembranças guardadas na sombra para
serem esquecidas, notamos os discursos estruturados e adequados pelo tempo, mas foram
surpreendidos com interjeições que exigiam mais explicações. As entrevistadas
estimuladas
entregaram-se
às
emoções,
apresentando
conteúdos
vividos
que
demonstraram o exercício de poder e liderança que seus registros colaboraram para o
germinar de um outro olhar.
Assim, em cada novo estudo que inclui questões de gênero, a ampliação dos
detalhes das histórias de mulheres oferece a oportunidade de revisão dos papéis e funções,
em que se descobre uma nova janela de composição, entre indivíduos, outrora invisíveis.
A seguir, para melhor ilustrar o texto aparecem trechos dos relatos das mulheres imigrantes judias como
Daniela e outras para MFW em SP, 2000.
30
1.2- Cenário brasileiro nas décadas de 1940 a 1955
Desde o início do século XX, o Brasil buscou reorientar sua política internacional,
impulsionado por novas tecnologias de produção. Ao dividir e especializar funções em
nome da produção em larga escala, ao distribuir competências, hierarquizar e burocratizar
conhecimentos na reorganização científica do trabalho foram implantados novos modos de
saber fazer. Transformaram-se, assim, as normas e dispositivos disciplinares que
desencadearam um novo cenário que permitiu o desenvolvimento econômico de grupos
sociais, incluindo, também as possibilidades de oportunidades às mulheres.
A partir da Primeira Guerra Mundial, o quadro de práticas industriais expandiu-se e o
Brasil, mobilizado pela demanda mundial que se intensificava e movido pela instabilidade
política, deparou-se com a necessidade e oportunidade de novos negócios. Na citação
abaixo, podemos observar um relato conciso:
(...) A rivalidade política internacional se modelava no
crescimento e competição econômicos, mas o traço característico
disso era precisamente não ter limites (...). No papel, sem dúvida, era
possível o acordo neste ou naquele ponto dos quase megalomaníacos
objetivos de guerra que os dois lados formularam assim que a guerra
estourou, mas na prática só um objetivo contava naquela guerra: a
vitória total, aquilo que na Segunda Guerra Mundial veio a chamar-se
’“rendição incondicional.31
Desse modo, o mercado internacional voltava-se à produção de produtos industriais
destinados à guerra, que causavam a escassez no abastecimento interno de vários itens.
Este contingente potencial de consumidores, ávidos de víveres, anteriormente importados e
sem opções nacionais, potencializou a urgência da implantação da produção em série,
facilitando as mudanças produtivas com o respaldo da economia paulista que estava coesa
no apoio às novas políticas estruturais.
A década de 1930 iniciou-se marcada pela deposição do, então, presidente
Washington Luís (1926-1930) pelo movimento armado, contra a perpetuação no poder
federal dos paulistas e tendo como líder civil Getúlio Vargas, que veio a ocupar a
31 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991, p. 18.
presidência em caráter provisório. Conforme podemos confirmar no texto abaixo, São Paulo
já se destacava dos demais estados:
(...) numa tentativa desesperada de alijar o arcaico. O
esforço resultou em sete anos de agitada improvisão, revolta
regionalista em São Paulo, um movimento
de frente popular, um
movimento fascista e uma tentativa de golpe comunista. Em 1937, um
Brasil exausto terminou sua experimentação política e iniciou oito anos
de regime autoritário sob o Estado Novo.32
Ao valorizar o mercado interno, a política nacional direcionou a construção de novas
indústrias de substituição aos produtos importados, e a têxtil foi uma das plantas industriais
desenvolvidas desde o início do século XX. Contando com outras levas migratórias, as
novas fábricas absorveram um grande contingente de imigrantes e rapidamente abriram
espaço para a mão-de-obra feminina, segundo os vários estudos apresentados por Eva
Blay.33
Era uma nova visão voltada à urbanização que estava em curso, e com a criação do
Ministério do Trabalho, novas leis foram introduzidas compondo o Sistema Corporativo de
Relações de Trabalho, e pela implantação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
que transformou a mão-de-obra em consumidora potencial, com a fixação do salário
mínimo favoreceu o impulso industrial redirecionado ao mercado interno. Neste caso,
novamente a indústria têxtil permitia que seus trabalhos oferecidos fossem, em sua maioria,
realizados em casa e chamados domiciliares.
Mediante a participação da composição da nova camada econômica que,
supostamente, privilegiava os filhos com a presença da mãe. Este ponto merece destaque,
pois a subalternidade da mulher era mantida desde o período colonial e, ao ter seu salário
incorporado ao do marido, só ele era apto a gerir as economias, entre elas, a herança em
uma premissa absorvida da estrutura patriarcal que a priori considera o homem, o cabeça
do casal.
Para este estudo, que pretende recontar histórias antes ocultas ou invisíveis, tornase imperativo reconhecer o trabalho de Berta Lutz e da Fundação Brasileira pelo Progresso
32 SKIDMORE,Thomas E. Brasil:de Getúlio Vargas a Castelo Branco, p. 27
33 BLAY, Eva. Mulheres e o trabalho qualificado na Indústria.
Feminino, por associarem as conquistas às lutas individuais e de grupos minoritários, o que
a tornou a principal porta-voz na luta feminista sufragista.
Uma década depois, foi organizado o II Congresso Internacional Feminista, sediado
no Rio de Janeiro, que ganhou o apoio de Pérola Byington, filha de imigrantes norteamericanos, casada com empresário da área de eletrificação e importação, que se tornou
diretora-presidente da Cruzada Pró-Infância, com bom trânsito entre as elites; desse modo,
ambas interferiram na Constituição de 1934, na qual foi estabelecido que: “(...) somente as
mulheres com funções públicas remuneradas eram obrigadas a votar, às demais
continuava facultativo bem como aos homens com mais de 60 anos”.34
A luta nunca se arrefeceu e, em 1946, as mulheres ganharam mais espaço, ainda
que não se permitiria à “maioria numérica o direito ao voto, os analfabetos, contingente
composto em grande parte por mulheres e negros”35, que só irão conquistar o efetivo direito
de votar e serem eleitos na Constituição de 1985.
Outro ponto deturpado foi o significado do papel de mãe, ficando agregado à sua
responsabilidade o sustento do filho, processo iniciado a partir do parto com o aleitamento.
Diante dessa dependência biológica, mais uma ação da Cruzada Pró-Infância, por iniciativa
de Pérola Byington, veio beneficiar outras mulheres - foi criado o Banco do Leite em 1940.
Desse
modo,
o
leite
materno
oferecido
gratuito
a
bebês
era
coletado,
mecanicamente, de mães previamente examinadas que recebiam em troca pagamento
para sustentar o próprio filho em casa36. Neste círculo criado entre funções e
características, as mulheres sem leite, sem filhos, com força e tantas outras peculiaridades
também foram discriminadas em suas funções, de acordo com o sexo e qualificadas para o
empenho de vagas definidas como femininas. No embate da preservação de um maior
número de vagas de trabalho para os homens, os responsáveis pelo sustento do lar,
percebemos a instalação de práticas discriminatórias,
a própria economia de mercado
exacerba essa resistência e confere diferenciação salarial negativa às mulheres.
No que diz respeito à situação política brasileira, teremos a posse do General Eurico
Gaspar Dutra (1945-50), no cenário político-econômico mundial de capitalismo versus
comunismo. A direita endossou o capitalismo; tendência construída desde o início do século
que ganhou nova envergadura na política nacional com a crise cafeeira, que foi provocada
pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, coincidindo com a Revolução de
34 NUNES, Karla Leonora D. Antonieta de Barros: Uma História. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.). Historia das
mulheres de Santa Catarina, p. 259
35 ROSEMBERG, Fulvia. Políticas educacionais e gênero: um balanço dos anos 1990, pp. 161-162
1930. Com o apoio de tenentes, oficiais menos graduados que se viram encurralados em
seu feudo pelos clãs políticos em disputas regionais, criaram o movimento “Tenentismo dos
anos 1930-1934”37. Eram os tenentes a favor da elite industrial, dos novos industriais,
comerciantes e profissionais liberais, ou melhor, dos componentes da vida urbana civil,
embora não formassem um grupo organizado ou compusessem uma ideologia.
Para Skidmore (1988, p.33), “esse processo tinha por objetivo afastar a corrupção
dos velhos políticos e a tomar novas providências governamentais para satisfazer as
aspirações da classe trabalhadora.”
Na Nova República do governo Vargas, os trabalhadores e intelectuais encontraram
espaço em múltiplas e distintas formas, ocupando postos de direção do Estado. Quando os
tenentistas assumiram a responsabilidade pela salvação nacional, como guardiões das
instituições republicanas, constataram a falta de preparação para se encarregarem das
tarefas dirigentes, passaram a procurar, entre os civis, paulistas favoráveis às idéias
revolucionárias, para substituição dos quadros políticos.
“As disputas entre as elites dominantes divididas pelos setores agrário e industrial,
durante a Primeira República foram mantidas”38 e serviam para municiar os arranjos
políticos, dando seqüência ao interesse de privilegiar a exportação de café. Assim, foram
usados todos os recursos de negociação para facilitar a entrada do produto no mercado
americano, aparecendo como principal medida a redução de várias tarifas de importação
sobre produtos com similares à produção nacional. Esse balizamento cambial tornou-se o
principal ponto de atrito ideológico entre os núcleos dominantes, em especial, de São Paulo
e Distrito Federal.
O candidato federal Getúlio Vargas, da chapa Aliança Liberal, apoiado pelos estados
do Rio Grande do Sul (reduto pecuarista e uma das maiores áreas de investimento
americano no País com as indústrias Armour, Swift e Anglo, desde 1927, a primeira cidade
agroindustrial) e Minas Gerais vence pelo voto popular para seu segundo mandato o
candidato Júlio Prestes, do Partido Democrático (este possuía representantes da camada
média de São Paulo, composta por parte do setor agrário e de estrangeiros).
Getúlio Vargas é eleito para presidente em julho de 1934, por um período de quatro
anos, atendendo a questões nacionais de segurança e não tanto do desenvolvimento
industrial.
36 MOTT, Maria Lúcia. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil, p. 224
37 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 94
38 Ibidem, pp. 108-109
Em 19 de novembro de 1937, foi desfechado o golpe que promulgou a nova
Constituição com poderes autocráticos, embora previsse um plebiscito para dentro de seis
anos para se escolher um novo presidente. Era uma reação do Congresso conservador,
apoiado por membros da elite industrial, e parte dos agricultores, em sua maioria,
integralista, apreensiva com a ameaça da ala revolucionária do partido, os “bolchevistas”.
Muito embora estes pensassem que haviam conquistado o poder, o Estado Novo contou
com o apoio das Forças Armadas e da polícia para a desorganização da população, em
geral, desmoralizando-a, debilitando-a, desarticulando-a, até suprimi-la. Diante de uma
oposição esfacelada, o Presidente conseguiu articular-se com os industriais e mais
livremente governar e negociar.
Ações foram tomadas em áreas diversas, entre as quais a indústria extrativa e a
agroindústria, mesmo no período entre 1930 e 1937, quando o objetivo da política de
Vargas não era o desenvolvimento industrial. A escassez de produtos no mercado externo
ocasionou um superávit na Balança Comercial Brasileira e, ao mesmo tempo, um estímulo
à indústria leve, propiciando uma negociação de parte da dívida externa em contrapartida
às necessidades de produtos na Europa.
Diante das mudanças econômicas que favoreceram a elite financeira e a população
das áreas urbanas, foram implantados os programas sociais do Governo, entre eles, a
alfabetização, que exercia uma importância fundamental na vida dos desfavorecidos que,
ao acessar a leitura, ganhariam a informação e com seus olhos e mentes poderiam fazer
seu próprio juízo, conquistando sua identidade.
Para as mulheres escolherem suas leituras, os discursos e as fontes seriam
igualmente importantes; muito embora no entanto, a circulação das idéias não raro ficasse
confinada em seus espaços, não conseguia perpassar as diversas camadas sociais, ilhadas
em justificativas de escassez, sejam quais fossem; frutos de tantas renúncias a que
estavam submetidas na estrutura patriarcal. Por outro lado, a oportunidade de alfabetização
formava seu colegiado eleitoral.
Durante esse período, a opinião pública tão censurada e calada, começou a dar
sinais de contestação frente à incoerência entre a política exterior pró-democracia e a
ditadura interna.
Assim, não sem tempo de sair da presidência, mas, apresentando sinais dúbios de
eventual manipulação frente aos vários decretos formalizados em relação à convocação
das eleições, novamente, como guardiões do poder, os militares declararam em 29 de
outubro de 1945 a deposição do presidente Getúlio Vargas, que foi para seu exílio, no Rio
Grande do Sul proclamando “(...) a História e o Tempo falarão por mim” (comunicado de
Getúlio Vargas, após sua deposição pelas Forças Armadas na pessoa do General Góes
Monteiro).
O novo presidente General Eurico Gaspar Dutra, que tinha sido Ministro de Guerra
no governo Vargas, obteve 55,0% dos votos. No entanto, só granjeou fracassos
econômicos e sociais em sua política distante da imprensa e sem rédeas de condução às
massas, assim foi favorecida a reorganização das camadas baixas da população e do
operariado em torno do nome de Getúlio Vargas pelo partido PTB (Partido Trabalhista
Brasileiro), e um período mais democrático começava, fruto da Constituição de 1946.
Entretanto, a sociedade patronal ainda apresentava relutância para aceitar as novas
formas democráticas de relacionamento entre capital e trabalho, propostas pelo governo
Dutra (1945-50). Dois anos após a eleição presidencial, utilizou o poder repressivo para
colocar em retrocesso o então, emergente sindicalismo supostamente infiltrado por
comunistas. Esse período de acomodação à estrutura corporativa de representação de
interesses teve início marcado por uma forte repressão governamental e pelo apoio
empresarial que ganhava espaço a cada dia.
Diante da necessidade de acomodar os ânimos políticos internos, a sociedade
brasileira em sua posição conservadora e identificada com a política americana declarou,
em 1947, o Partido Comunista “fora da lei”. Não foi pouco relevante o fato desse momento
coincidir com o início da Guerra Fria - de um lado, os Estados Unidos da América (EUA)
que contavam com o apoio brasileiro e, do outro, a URSS (União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas), tendo como aliados os países árabes. Estes fatores resultaram em
ações políticas menos arredias em relação aos imigrantes.
A presidência de Dutra apresentou duas fases econômicas distintas: de 1945 a
1947, período marcado por uma política econômica liberal e pela abertura do país à
importação de bens manufaturados no exterior, pois contava com as grandes reservas de
divisas acumuladas durante a guerra.
Na segunda fase, de 1947 a 1950, o governo elevou as taxas de câmbio, de modo a
regular as importações em favor de artigos essenciais para a produção, como
equipamentos, maquinários e combustíveis, propiciando novos interesses no mercado
interno. Novamente, a industrialização é efeito e não fruto de um planejamento políticoeconômico.
Assim, o governo Dutra pôde ser definido pela reduzida intervenção estatal na
economia, muito embora tenha planejado várias ações de interesses regionais, como o
desenvolvimento do Rio São Francisco e Amazonas e o combate à seca do Nordeste. Este
contexto abriu espaço para um novo mandato do Governo Vargas, que apresentou em seu
discurso o seguinte:
(...) continuar a transformar em nação industrial (...)” uma
nação “(...) paralisada pela miopia dos governantes aferrados à
monocultura extensiva e à exploração primária da matéria-prima (...)”
e bradava “(...) renovar o impulso perdido em 1945 (...).39
Dentre suas alianças para a conquista da quase maioria absoluta dos votos em
eleição livre e democrática, Getúlio Vargas contou com Ademar de Barros, governador de
São Paulo, representante do núcleo dos cafeicultores e antigos desafetos conquistados
com a queima do café durante os anos de 1931 a julho de 1944. Os eventuais prejudicados
já entendiam a política do período como alternativa ao colapso econômico da época e
estavam dispostos a apoiar a candidatura à reeleição de Vargas40.
No segundo governo de Getúlio Vargas, o Estado passou a desempenhar papel de
balizador do setor industrial, articulando o capital privado, nacional e estatal. O grande
alicerce foi o Plano de Metas com apoio de executivos e políticos que orientaram a
implantação de indústrias específicas. Outra ação importante para o mercado interno foi a
imposição de tarifas aduaneiras. O fomento ao desenvolvimento industrial por meio de
políticas apoiadas pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDE), criado em 1952,
avançou até consagrar-se no maior financiador da indústria de base (energia e transportes).
Mas não tendo uma estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico41, o parque
industrial, apesar da aprovação, pelo Congresso, em 1953, da criação da Petrobrás,
tornou-se obsoleto em pouco tempo.
Em todos os níveis, a ênfase à educação foi um dos vários incrementos dados pelo
Governo Vargas. As novas escolas, as novas universidades, o desenvolvimento da
imprensa periódica e cotidiana ajudaram a motivar o interesse internacional pelo Brasil, não
só pelo pitoresco, mas pela grandeza territorial e seus recursos potenciais, em uma
economia em evolução42.
39 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 107.
40 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 137.
41 SUZIGAN, Wilson. Estado e industrialização no Brasil, p. 10.
42 BELLO, José Maria. História da República (1889-1954). Síntese de Sessenta e Cinco Anos da Vida
Brasileira, p. 339.
O apoio conquistado pela divulgação nas principais cadeias de jornais das famílias
Mesquita e Chateaubriand influenciou a opinião dos leitores em favor de uma política
econômica com investimentos externos, em prol de uma imperiosa industrialização urbana
e de mudanças na economia agrária, visando a uma produção em larga escala. A mídia, de
modo geral, a impressa, o rádio e, aos poucos, a televisão com suas possibilidades de
amplitude ajudaram na construção e transformação de um ideário social, abrindo novos
espaços de participação às mulheres.
A alfabetização e, conseqüentemente, a leitura por serem mecanismos seletivos ao
comporem o acordo tácito social ocidental tornaram este valor a premissa da inclusão.
Dessa forma, a política de disseminação com programas de alfabetização do Presidente
Getúlio Vargas, na década de 1940, favoreceu em muito as mulheres, conquistando mais
esta ciência.
Como exemplo, aparece a história de Cora Coralina, mulher simples, migrante que,
ao escrever sobre suas habilidades domésticas e as conquistas do espaço público na luta
pela sobrevivência, teve seu trabalho
reconhecido por Carlos Drummond de Andrade.
Desse modo, um novo espaço para conquistas abriu-se para ela.
FOTO 03 – Cora Coralina
Fonte: www.coracoralina.com.br, acessado em 11/11/2003.
Para Cora Coralina, numa Goiás onde as prendas de doceira puderam prolongar a
garantia de vida digna, a poetisa estendeu o espaço de suas habilidades domésticas ao
comércio de doces. Em 1956, ao voltar à cidade de origem, entre os tachos de doces
garantiu seu espaço e tempo, traduzindo no papel a vida e as profissões de muitas
mulheres goianas que invisíveis lutaram pela sobrevivência.
Fiz doces durante quatorze anos seguidos.
Ganhei o dinheiro necessário.
Tinha compromissos e não tinha recursos.
Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior.
Fiz amigos e fregueses. Escrevi livros e contei histórias.
Verdades e mentiras. Foi o melhor tempo de minha vida.43
_ Estado de São Paulo , num outro pólo, estava o industrial Estado que, de acordo
com os novos paradigmas urbanos, necessitava de incrementos nos serviços públicos. Ao
mesmo tempo, havia os personagens de linha nacionalista ou desenvolvimentista aptos a
contribuir com o governo para apoiar, manobrar e equilibrar esses dois extremos.
A burguesia industrial privilegiada pela política federal enriquecia com o mercado
consumidor formado pelo patrimônio do excedente econômico advindo do café. Como as
ofertas estavam centralizadas nos centros urbanos, estes atraíram um contingente
populacional em busca dos produtos, em geral, e o centro de São Paulo pautado na oferta
e demanda consolidou-se como o principal deles.
Na cidade, onde o estrangeiro conseguiu mais depressa conquistar seu espaço para
atuar econômica e socialmente, foi criado o mito de “a grande cidade, representante da
mentalidade dinâmica, empreendedora e anticonformista.”44
FOTO 04 – Obelisco no Parque do Ibirapuera
Obelisco em memória aos soldados mortos na Revolução de 1932.
Fonte: www.parquedoibirapuera.com.br , em 12/11/2003.
43 CORALINA, Cora. Vintém de cobre - meias confissões de Aninha, p. 44.
44 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil, p. 274.
A Revolta Constitucionalista de 1932, em São Paulo consagra o rompimento do
poderio da política do “café com leite” ou a alternância entre paulistas e mineiros do poder
presidencial. A possibilidade de o novo presidente ser um carioca revoltou os paulistas, e
em uma marcha em direção ao noroeste paulista, os revolucionários foram buscar apoio e
aliança. Ao chegarem a Minas Gerais, foram tombados pelos combatentes mineiros que
apoiavam a mudança.
A partir dessa luta, o Estado de São Paulo acelerou seu processo de autonomia,
tanto agrícola como industrial, distanciando-se do plano de integração nacional que muitos
ainda mantinham em discurso45. A Revolução de 1932 foi também o marco da separação
ideológica e desenvolvimentista de São Paulo do restante do País, para tanto estava
interessado na mão-de-obra imigrante, sendo ou não qualificada.
Dentro desse panorama, foi criado o Serviço Nacional da Indústria (SENAI),
objetivando instruir e qualificar a mão de obra necessária para atender a demanda com a
nova tecnologia. Em curto espaço de tempo, cursos rápidos “monotécnicos”46 formavam
limadores, soldadores, torneiros, profissões novas absorvendo os imigrantes.
Pela política restritiva imposta, desde 1930, aos estrangeiros e os entraves impostos
pelo Ministério do Trabalho com a reserva de dois terços das vagas nas frentes de trabalho
aos brasileiros natos, desde que alfabetizados, muitas iniciativas empreendedoras foram
necessárias que se refletiram em arranjos econômicos:
Além disso, o fato de que “a ordem urbano-industrial veio a ser implantada, tendo
como agente principal o Estado, e não as classes sociais e repercutiu diretamente no
arranjo e no conflito de classes durante um longo período histórico”.47
Diante de uma ideologia nacionalista que, no período, apoiava os movimentos
fascistas, a economia com forte intervenção estatal voltada ao consumo interno e à
descrença na democracia liberal, favorecia as características do empreendedorismo numa
cidade que estava perdendo seu ar acanhado e ganhava contornos metropolitanos, agora
cheios de esquinas.
45 CASTRO, Antônio Barros de. 7 Ensaios sobre a economia brasileira, p. 85.
46 ANTONACCi, Maria Antonieta. A Vitória da Razão(!). O IDORT e a sociedade paulista, p. 258.
47 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 25.
FOTO 05 – Esquina e a garoa paulistana
Foto da Esquina da Avenida São João com a Avenida Ipiranga
Em um dia chuvoso na década de 1950.
Fonte: Metrópole e Cultura48
O Governo, como agente principal da transformação brasileira e responsável pela
manutenção da unidade nacional, mantinha um forte controle sobre São Paulo e a região
Sudeste que ainda possuíam ideais de independência. Considerando a imagem de um
estado revolucionário, ao fase de 1930 a 1935, foi demarcada por uma sucessão de
Interventores militares (nome dado aos governadores do Estado de São Paulo). Mais três
governadores sucederam o poder, até 1946, período esse conhecido como constitucional,
que teve como primeiro governador José Carlos de Macedo Soares.49
Por outro lado, o governo federal começou a limitar as importações, pelo controle
seletivo que visava a equilibrar a balança de pagamentos, definindo também as exportações
de matéria-prima e favorecendo o setor industrial. A falta de concorrência dos produtos
importados, das matérias-primas e equipamentos ofertados a preços relativamente baixos
criou uma conjuntura favorável às industrias ligadas ao mercado interno, intensificando o
processo de crescimento no pós-guerra.50
Como a maior parte das indústrias brasileiras encontrava-se sediada em São Paulo,
o processo industrial intensificado na década de 30 com a agricultura e as exportações pelo
binômio São Paulo / Santos, viu-se no final da Segunda Grande Guerra privilegiado pela
escassez de oferta da Europa, conseqüência das guerras. De modo geral, os
48 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 77.
49 ALVES, Odair Rodrigues. Os Homens que governaram São Paulo, p. 157.
50 FURTADO,Celso. Formação Econômica do Brasil, p. 218.
empreendedores dessas indústrias foram, de modo geral, os cafeicultores, o capital
estrangeiro, os imigrantes e suas famílias.
Os cafeicultores e seus parentes perceberam outras possibilidades de investimento
em face da crise internacional do café e com a vasta experiência empresarial (produção
agrícola, comercialização do café, vivência bancária e convívio em centros urbanos)
encaminharam parte do capital para a indústria e comércio. Beneficiando-se das ligações
com o capital estrangeiro, facilmente, incorporaram os imigrantes com experiência
tecnológica e urbana, consolidando a transformação econômica em industrial.
Diante das condições de expansão com baixo custo da força de trabalho e matériaprima em diversas áreas, a aplicação do capital estrangeiro foi estimulada e atraída. As
oportunidades exigiam investimentos tecnológicos de envergadura industrial, como o
mercado energético de gás, gasolina e energia elétrica e a área de transportes, entre outras
abriram oportunidades de oferta de trabalho urbano para a absorção dos imigrantes, em
geral.
Em 14 de julho de 1944, o Presidente Vargas, buscando um melhor preparo de
pessoal mais qualificado para as administrações públicas e pretendendo o desenvolvimento
de pesquisas, assinou um Decreto-Lei autorizando o Presidente do DASP (Departamento
de Administração de Serviço Público) a promover a criação de uma entidade de divulgação
dos princípios e métodos de organização do trabalho. Além dos estabelecimentos de ensino
e criação de núcleos para a pesquisa, deveria favorecer a participação dos órgãos
autárquicos,
estaduais,
territoriais,
do
Distrito
Federal
e
dos
Municípios,
dos
estabelecimentos de economia mista e das organizações privadas.
De acordo com Antonacci (1992, p.262), a entidade passou a chamar-se Fundação
Getúlio Vargas (FGV), Centro de Pesquisa e Formação Intelectual de rigor científico que
tinha por objetivo tornar-se “(...) fonte de recursos de conhecimentos insubstituíveis da
evolução do país em seus anseios de civilização(...)”.
Instalada em São Paulo, a FGV deu impulso à concentração intelectual e
tecnológica. A produção significativa de profissionais compatíveis com seus pares no
exterior imantou e consolidou São Paulo como fonte de recursos intelectuais e profissionais,
incentivando novas oportunidades de investimentos, como a implantação de sede de várias
novas indústrias, entre as quais, a têxtil, vindo a culminar com a automobilística já no
governo de Juscelino Kubitschek, expansão essa, só possível dado o investimento na área
energética no período de Vargas.
No entanto, ainda na década de 1940, as escolas mantinham a separação por sexo e
diferenciavam a abordagem educacional para as moças. A formação mantinha uma
perspectiva normativa e de continuidade, seja da moral ou pelo exercício da maternidade,
preparando-as para o “lar” e, simplesmente, desconsiderando a casa como uma unidade de
produção e consumo, passível de treinamento das habilidades ligadas à autonomia e
iniciativa, virtudes necessárias aos autônomos.51
Em contraposição ao acelerado ritmo de mudanças, o fim da Segunda Guerra e a
reorganização interna dos países, por meio de diversas revistas e o cinema vieram a influir
na mudança de comportamento como novos modelos. Assim, o setor público ofereceu
oportunidades de emprego em profissões como enfermeira, professora, médica, assistente
social, funcionária burocrática, vendedora, etc., e o mercado privado viu-se impelido
também a expandir sua oferta, provocando mais mudanças sociais, não sem preocupação
ou preconceito.
No cenário político, o espaço público continuava com estratégias para a conquista de
espaços e de poder numa competição sem muita ideologia. Com a volta de Getúlio Vargas
à presidência e, em troca do apoio durante as eleições, o partido de Ademar de Barros, que
já fora interventor em São Paulo, de 1938 a 1941, e governador desde 1947 recebeu o
Ministério da Viação e Obras Públicas, tendo influído na escolha do novo presidente do
Banco do Brasil. As conjugações dos cargos determinavam as diretrizes da política
monetária e cambial e, no caso, de vital importância, sobretudo para um estado como São
Paulo, que no início dos anos 50 do século XX já contava:
(....)
com
metade
das
indústrias
mecânicas,
um
terço
das
metalúrgicas, e um quarto da dos estabelecimentos destinados à
produção de material elétrico e de comunicação.
(....) produção de material de transporte e auto-peças (....).ampliando a
massa salarial (....).52
Em 1949, o contexto econômico era de excepcional prosperidade, advindo de uma
nova onda no preço do café, ao mesmo tempo, em que a política de substituição das
importações foi mantida. Este panorama continuava a oferecer as oportunidades de
desenvolvimento e crescimento acelerado do mercado.
51 BRUSCHINI, Cristina & Sorj, Bila (Org.). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 184.
52 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 53.
Assim, as desigualdades e discrepâncias existentes quanto à formação, ocupação,
riqueza, posição social, nível de vida, condicionadas aos valores culturais de origem
encontraram espaço e alimentaram o já desencadeado processo de industrialização e a
urbanização da cidade de São Paulo, exigindo mais um ajustamento nas relações sociais,
inclusive, entre brancos e negros:
(....), na região de São Paulo, concentraram-se escravos vindos de
várias partes do Brasil. Cruzando como correntes, chegaram os
imigrantes, italianos desde 1870 ...como qualquer outro imigrante,
tinham um projeto de ascensão social, cuja realização a estrutura
agrária não possibilitava... sucessivas crises da cafeicultura, fez com
que os imigrantes deixassem as fazendas, dirigindo-se para outros
locais, especialmente para São Paulo... a indústria inicialmente
incipiente, era uma promessa e, com sua urbanização que sinalizava
para a modernidade: com escolas, infra-estrutura básica, comunicação,
jardins e faculdades além de restaurantes, um atrativo. 53
Pelas oportunidades criadas e a grande utilização da mão-de-obra imigrante, não
consideramos o processo das transformações do trabalho, no período, simplesmente, como
substituição da mão-de-obra escrava. Essa imagem cunhada deve-se sobretudo aos
interesses da elite cafeicultora paulista que objetivava a minimização do significado dos
novos participantes, que preenchiam as atribuições dos escravos. Diferentemente, os judeus
eram brancos e já tendo vivências econômico-financeiras na origem “puderam dar certo,
além do fato de serem brancos e não ter a escravidão na pele”54 e assim, escreveram a
história com as cores e tons da pluralidade da sociedade, tendo: “(....) o caráter integrador
da miscigenação, a cordialidade da psicologia coletiva, o sincretismo cultural, a porosidade
social, em suma uma sociedade aberta e tolerante, cujas origens remontam à particularidade
da colonização lusitana” 55
Desse modo, o cenário do desenvolvimento sem planejamento gerou problemas que
exigiam ações políticas e São Paulo apresentava resultados positivos, legitimando a ordem
capitalista, absorvendo uma grande quantidade da força de trabalho e gerando receita,
53 CENNI, Franco. Italianos no Brasil, p. 221
54 BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro: Olhares sobre São Paulo, p 122
embora no início da década de 50 do século XX estivesse estrangulada em vários pontos,
que necessitavam de uma ação governamental, como a área de transporte e energia.
“A região Sudeste concentrava mais de 40,0% da população nacional e 47,5% da
população urbana”56. Na cidade concentrava-se a maior parte da elite intelectual, atraída
pelas doutrinas do nacionalismo econômico que acreditava na industrialização, como
condutora das direções da economia.
A sucessão ao Governo do Estado, no período constitucional entre 1951 e 1954
(Nova República), por Lucas Nogueira Garcez que venceu Ademar de Barros, deu o
primeiro impulso ao já deficitário setor energético, com a construção da usina hidroelétrica
de Salto Grande. Apesar da situação financeira delicada dos cofres públicos, esse
Governador ainda deixou planos de expansão da capacidade energética ao sucessor.
Outros setores, também, desenvolveram-se como terciário, o de serviços com seus cursos
profissionalizantes, ensino em geral, restaurantes, salões de beleza, clubes, entre outros.
Em 1954, a população paulistana chegou ao número de 2.820.00057, composta de
uma massa de imigrantes de 20,0% no estado, sendo a maioria de italianos, seguida de
portugueses e espanhóis e, em menor escala, japoneses, sírios, libaneses, poloneses,
judeus, armênios e alemães. A cidade contava ainda com um movimento migratório de
outras regiões brasileiras, criando tons diversos ao sotaque paulista. Essa multiplicidade
étnica modificou o tecido sociocultural, compondo uma nova urbanidade.
Os dados da tabela mostram o número total de imigrantes na cidade de São Paulo
no período entre 1945 e 1956.
55 SORJ,Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In:SORJ, Bila (Org). Identidades Judaicas no
Brasil Contemporâneo, p.11
56 CUNHA, José Marcos Pinto da; AZEVEDO,Marta Maria. Demographic and Social-Cultural Aspects of
Population Mobility in Brazil. In:HOGAN,Daniel Joseph (Org). Population Change in Brazil: contemporary
perspectives, p.41.
57 Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 57
TABELA 01 - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo feminino
Anos
Números
Mulheres
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
3 230
13 039
18 753
21 568
23 844
35 492
62 594
88 150
80 242
72 248
55 166
44 806
1 232
4 592
7 843
10 077
9 925
12 980
*
*
*
28 332
24 136
19 762
FONTES: Departamento Nacional de Imigração e Instituto Nacional de Imigração e Colonização.
Dados da Tabela extraídos de: Anuário estatístico do Brasil 1949. Rio de Janeiro: IBGE, v. 10, 1950.
Anuário estatístico do Brasil 1952. Rio de Janeiro:IBGE, v. 13, 1953. Anuário estatístico do Brasil 1955.
Rio de Janeiro:IBGE, v. 16, 1955. Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956.
Anuário estatístico do Brasil 1957. Rio de Janeiro: IBGE, v. 18, 1957. Anuário estatístico do Brasil 1960.
Rio de Janeiro: IBGE, v. 21. 1960. * Dados não encontrados
A cidade tinha seus roteiros, um deles, o da boêmia intelectual e seu espírito crítico
que tanto incomodava os políticos. Composto de um quadrilátero passível de ser percorrido
a pé: Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a Rua Maria Antonia, onde estava a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, a Praça Dom
Gaspar, indo para rua Sete de Abril e a Barão de Itapetininga, até alcançar o Largo do
Arouche, e o Teatro Municipal., este atraiu novos donos de restaurantes, cafés, bares e
boates que também estavam dispostos a assistir a chegada das manhãs. Neste cenário
não surpreende que muitas histórias foram, posteriormente, contadas e cantadas.
Diante da construção de conviveres tão desconfortáveis e zelosos da moral, o
governo com o apoio da prefeitura de Armando Arruda Pereira fizeram novos investimentos
em prol do desenvolvimento de outras regiões:
Lucas Nogueira Garcez foi muito moralista, tendo combatido a
prostituição por todos os meios, inclusive fechando prostíbulos. Essa
medida sofreu muitas críticas: se a intenção era boa, na prática esse
mal social se agravou, pois, ao acabar com a prostituição confinada,
as mulheres de vida fácil invadiram a cidade, chocando a sociedade,
que, na época, não estava acostumada a contemplar tais espetáculos
nos logradouros públicos. 58
58 ALVES, Odair Rodrigues. Os Homens que governaram São Paulo, p. 158-159
Como resultado de seu ato, o Governador deixou reservado para o centro de São
Paulo a decadência e o popular, caracterizando mais profundamente as regiões, de acordo
com o status econômico e deslocando o centro financeiro e cultural para a Avenida
Paulista, onde além do Parque do Trianon, se podia contar com a Casa de Chá “Fasano”,
que se tornou famosa e ajudou na construção do símbolo de uma São Paulo, de
desenvolvimento florescente e glamuroso.
FOTO 06 – Parque do Trianon
Foto do Parque do Trianon na década de 1950.
Fonte: Metrópole e Cultura59
Sendo esta cidade a líder nacional do desenvolvimento, foi escolhida para abrigar o
Museu de São Paulo ao deduzir-se numa provável concentração de mecenas para a
composição do acervo do novo museu a ser construído num local incontestável: a Avenida
Paulista.
Nesta trama, certos segmentos vão abrindo espaço para novas oportunidades. Aos
imigrantes e às mulheres, em especial, a prestação de serviços e atividades sociais viriam a
corresponder com oportunidades consideradas de âmbito privado, trabalhos domiciliares,
pela reserva a que poderiam ficar confinadas, correspondendo a maior participação
feminina em números absolutos, conforme demonstrado abaixo.
A seguir, a tabela, a seguir, mostra os ramos de atividade principal e o sexo das
pessoas presentes em São Paulo, em 1950.
59 ARRUDA, Maria Arm
inda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 283.
TABELA 02- Distribuição entre os sexos nos diversos ramos de atividades
São Paulo, 1950
atividade
Principal
Agricultura
Pecuária
Silvicultura
Indústrias
Extrativas
Homens
9 154 015
455 028
1 842 141
869 360
Mulheres
732 900
27 988
389 057
89 061
Total
9 886 915
483 016
2 231 198
958 421
Ramos de
Indústrias de
transformação
Comércio de
mercadorias
Comércio
de imóvéis e
valores
mobiliários;
crédito;
seguros
e
capitlização
102 756
Prestação
de
serviços
Transportes,
comunicações
e
armazenagem
746 806
668 220
64 6
12 744
925 973
28 822
14 2
115 500
1 672 779
697 042
78 8
FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento. Tabela extraída de : Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro: IBGE, v. 16, 1955.
(cont.)
TABELA 02- Distribuição entre os sexos nos diversos ramos de atividades
São Paulo, 1950
Atividades
sociais
Administração
pública,
legislativo,
justiça
Defesa
nacional e
segurança
pública
Atividades
domésticas
não
remuneradas
e atividades
escolares
discentes
Atividades não
compreendidas
nos demais ramos;
atividades não
definidas ou não
declaradas
Condições
inativas
Totais
parciais
e geral
Homens
200 689
220 636
247 528
1 582 206
37 988
1 896 271
18 088 275
Mulheres
233 626
40 131
4 349
14 881 825
8 686
1 080 326
18 469 715
Total
434 315
260 767
251 877
16 464 031
46 674
2 976 597
36 557 990
Ramos de
atividade
Principal
Profis
Libe
NOTA DA TABELA — Os dados desta tabela excluem São Paulo (7 588), cujas declarações não foram apuradas por extravio do material.
FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento. Tabela extraída de : Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro: IBGE, v. 16, 1955.
Nesse cenário de oportunidades e absorção da mão-de-obra dos imigrantes, as
mulheres aproveitaram as facilidades e entraram nos mais diversos segmentos como
pudemos constatar. Entre conveniências e brechas, a criatividade foi a força motriz para a
transformação das aptidões pessoais em habilidades rentáveis.
A arquiteta Lina Bo Bardi (imigrante italiana) foi além, aproveitou o apoio do marido
e criou o primeiro curso de propaganda, que veio a ser o embrião da hoje consagrada
Escola Superior de Propaganda e Marketing, buscando, inicialmente, desenvolver
captadores de recursos e detectores de mecenas, para tantos artistas como ela.. Assim, o
trecho de referência de sua biografia serve para constatar como a História constrói o
espaço diminuto para a mulher “(....) iniciativa da arquiteta racionalista Lina Bo Bardi,
importante colaboradora do marido
e responsável por inúmeras iniciativas dentro do
museu, (....)”60.(grifo nosso)
FOTO 07 – Lina Bo Bardi
Lina Bo Nardi avistando o Parque do Trianon.
Fonte: www.institutobardi.com.br , em 09/09/2004.
O adjetivo: colaboradora será recorrente neste trabalho, até mesmo, fazendo
referências a grandes personalidades que estavam vivendo numa cidade multifacetada,
tendo como prefeito Jânio Quadros, cuja carreira pública na área energética avalizou a
prioridade sobre os planos de expansão energética pela arrecadação tributária implantada,
sem maiores resistências, garantindo a continuidade do crescimento econômico da cidade.
Por sua vez, a elite dominante, não apresentava características homogêneas, mas
estava dividida em dois grupos. O primeiro constituído por burocratas e administradores,
60 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 403
cujo status econômico resultava mais da urbanização do que da industrialização, que
tinham seus empregos como frutos da herança do mundo patriarcal, antes de 1930, e
tendiam a se identificar com a mentalidade dos plantadores, o grupo, comercial de
exportação e importação, que havia dominado a política brasileira, desde o século anterior.
Entretanto, no oposto, estava o menor grupo, que encarava a industrialização e a
modernização como indispensáveis para o futuro do País, e os dois grupos, por meio de
conchavos, buscaram a ampliação das forças políticas para o exercício de poder.
A consagração de poder foi entronizada na festa apoteótica de comemoração do IV
Centenário da cidade, sendo um dos grandes marcos da data de aniversário a inauguração
do Parque do Ibirapuera em frente ao barco emblemático das diversas figuras que
compõem “a força dos paulistas”, o monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (1953).
Assim, eventos de diversificadas áreas recheiam a agenda da cidade, que se torna o
centro cultural da América do Sul. A II Bienal foi postergada para 25 de janeiro, a
construção do Palácio dos Estados foi concluída, temporadas de peças que consagram
atores e atrizes até hoje dando prestígio ao círculo artístico, festivais sinfônicos e de
cinema, exposições internacionais, além da chuva de estrelas prateadas espalhadas por
toda a cidade marcaram a memória da cidade.
FOTO 08 – Vista aérea do Parque do Ibirapuera
Vista aérea da cidade de São Paulo em seu IV Centenário.
Fonte: www.parqueibirapuera /IV centenário, em 16/11/2003.
1.3 - Mulheres na cidade de São Paulo
Diante
do
contexto
exposto,
as
mulheres
tiveram
várias
alternativas
de
movimentação e oportunidades, como na área fabril61 e em diversos setores produtivos e
de serviços em São Paulo. Havia uma pluralidade que garantia uma absorção das judias,
ao mesmo tempo, permitia o uso da criatividade no recomeçar da vida, característica
judaica. O contexto econômico efervescente que a industrialização urbana oferecia e as
condições políticas bastante democráticas em relação à experiência que as arrancou da
origem foram ingredientes bastante estimulantes para novas ações de cunho econômico.
A oportunidade de acesso indiscriminado à educação e à profissionalização, bem
como à informação, ao lazer e ao consumo modificaram e estreitaram as práticas sociais
entre homens e mulheres.
O estudo ao favorecer a conquista de consciência nos indivíduos, ao gerar a
emergência de saberes e opiniões, conseqüentemente, implicou na organização das
relações e decisões entre as personagens62, e os papéis sejam femininos ou masculinos.
Apesar disso, os trabalhos e as profissões, delimitados por gênero, mantinham o diferencial
negativo aplicado ao salário das funções ditas femininas, garantindo e perpetuando a
prerrogativa econômica ao homem que se consolida, como mantenedor maior do lar.63
Vejamos os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam
que, em 1950, a População Economicamente Ativa Feminina (PEA) era de 14,6%, porém,
sem nenhum destaque às funções de empresárias. Na qualidade de funcionárias, pelo
menos, na época, não estavam no topo da gerência de empresas nacionais ou
multinacionais64. Constatamos, entretanto, que o espectro empregatício apresentou uma
polarização entre cargos técnicos versus operacionais, como uma predominância feminina
no primeiro pólo.
Os cargos técnicos, também, chamados de complementares e considerados
secundários estão revestidos do trabalho de secretariar e de suporte. Assim, a função mais
elevada, conferida às mulheres na hierarquia das organizações do período, foi de
assessora ou assistente que demanda senso de organização, qualidades relacionais,
atenção para com o acompanhamento do desenvolvimento da ação.
61 BLAY, Eva. Mulheres e o trabalho qualificado na Indústria.
62 RENK, Arlene. Mulheres camponesas: experiência de geração. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.),
História das mulheres de Santa Catarina, p. 233.
63 PIORE, Mary Del (Org.). A História das mulheres no Brasil, p. 608.
64 BRUSCHINI, Cristina; SORJ, Bila (Org.). Novos olhares: Mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 13.
Para a Antropologia, existem as denominações de funções femininas: de ligação,
familiares e produção (subordinadas em termos de status) versus funções de ação
provedora (caça) e agressoras (guerra), as masculinas numa aceitação natural das
separações, de acordo com o gênero.
Podemos estabelecer uma ponte com tradições e costumes remotos em relação aos
cargos, funções e papéis atribuídos às mulheres nas organizações empresariais
contemporâneas. Os papéis de relações públicas com as funções de ligação, os papéis de
pesquisa e estudo com as funções de apoio e, assim, uma definição dos campos das
tarefas associadas ao sexo deslocam silenciosamente as mulheres para fora das funções
operacionais e do exercício direto de poder.
Os diversos jornais e revistas da época: “Cruzeiro”, “Jornal das Moças”, “Querida” e
“Vida Doméstica” em publicações que tinham a força equivalente à mídia eletrônica, se
comparadas à atualidade, traziam vasto material para discussão dos papéis femininos. As
novas profissões sugeridas eram professora, chapeleira, modista, cozinheira comercial que
ficavam de certa maneira explicitadas às “boas” moças ou “moças de família”.
Durante a Guerra, as campanhas publicitárias impulsionando as mulheres ao
trabalho, chegaram a São Paulo, modernizando e emancipando-as, e ao final da Guerra,
deram-lhes um novo modelo, era a hora de “voltar” aos valores tradicionais da sociedade e
ocupar as tarefas do lar.
O novo modelo familiar era de famílias brancas, com sinais característicos de
estrangeiros europeus, intelectualizadas, nucleares, hierarquicamente organizadas e de
papéis definidos. Nas colunas das conselheiras, as dicas refletiam e promoviam os
costumes e valores da elite dominante da época; o marido sério e maior, a mulher de olhar
ingênuo e inocentemente feliz, acompanhada de seus filhos, em geral, dois de ambos os
sexos.
Em razão da construção dos modelos, as atividades eram selecionadas quanto à
vocação inerente ao sexo, pois, a iniciativa e a participação no mercado de trabalho eram
sinonímias de força e espírito de aventura, características notadamente masculinas. Ao
contrário, as moças de bom comportamento, as chamadas "moças de família", deveriam
estar associadas a gestos contidos, docilidades, respeito aos pais, inocência sexual e um
distanciamento físico dos rapazes.
Em seu papel, de julgadora, a sociedade atenta às virtudes ou aos deslizes de seus
participantes, podia taxar de "garota fácil", comprometendo a reputação da jovem, a ponto
de impossibilitar a realização maior: o casamento. A moral machista estendia seu manto
sobre a vida civil, garantido pelo Código Penal, ao recém-marido, o direito a exigir punições
legais como a anulação de casamento, caso percebesse que a noiva não fosse virgem. O
valor atribuído a tais qualidades favorecia o controle social sobre as mulheres e privilegiava
a manutenção da hegemonia do poder masculino, reforçando as desigualdades sociais
existentes.
Entretanto, a vida urbana e seu ritmo provocaram uma convivência mais próxima
entre homens e mulheres. Estava em intercurso uma modificação social acompanhada por
maior tolerância, sinalizada pelo sucesso do filme americano da época em cartaz em São
Paulo: "American Way of Life". Essa tendência exigia certa qualificação, demandando uma
maior escolaridade feminina, o que ocasionou mais mudanças sociais, não sem
preocupação ou preconceito. O perigo alegado era a perda da feminilidade e de seus
privilégios no ingresso ao universo competitivo, o masculino.
Sob forte pressão social o processo de mudanças desenrolou-se e, entre outros
marcos, mitificou a maternidade, considerando que as mulheres deveriam ser preservadas
da rua com a chegada do bebê e oferecer dedicação exclusiva, privilégio que foi
sacramentado na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Por outro lado, a dispensa do
trabalho por 120 dias, com ganhos preservados, sobrecarrega de custos ao empregador,
perpetuava as diferenças salariais no mercado de trabalho. Tais leis trabalhistas
interferiram na vida das brasileiras, que podiam ser inseridas no mercado de trabalho; no
entanto, para o número reduzido de imigrantes, ainda não significavam muito, pois poucas
estavam qualificadas aos cargos, dada a dificuldade com o idioma, conforme se constata
na tabela a seguir.
TABELA 03 – Distribuição entre os sexos de brasileiros e estrangeiros
Brasileiros natos
Brasileiros
naturalizados
Estrangeiros
Total
Mulheres
50 727113
25 523 745
Total
Mulheres
128 897
43 417
Total
1 085 287
Total geral:
Sem declaração de
nacionalidade
Mulheres Total
490 805
3 100
Mulheres
1 429
51 944 397
NOTA: Os dados desta tabela excluem 31 960 pessoas recenseadas nos Estados de Minas Gerais (10.461),
São Paulo (7.588) e Paraná (13.911), cujas declarações não foram apuradas por extravio do material de coleta.
FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento.
Tabela extraída de: Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956.
Nas tabelas anteriores, constatam-se agrupamentos que pouco contribuíram para
esta análise, pois as mulheres casadas ficavam dissolvidas nos números relativos às
famílias.
O grupo pesquisado refere-se às mulheres que imigraram a São Paulo, tendo a
cidade absorvido as novas moradoras, que colaboraram com sua transformação fazendo
das diferenças as oportunidades.
Diferente dos grupos anteriores de imigrantes do início do século XX, estes também
estavam sendo aguardados no Porto de Santos. Era a possibilidade de reagrupar a família,
pois alguns tinham residentes no País que se encontravam em boa situação financeira e
assim, podiam abrir oportunidade de absorver os perseguidos, conforme declara uma
ashkenazita rememorando as adversidades:
FOTO 09 – Perdas e Ausências
1917 - Amigas de escola em Bovina – Romênia
Fonte: Acervo de Lili A. Georgescu (Rosenzweig) Angele
livremente manipulada para representar as perdas.
“Queríamos juntar os pedaços da história....alguns se perderam para
sempre”65.
A chegada a São Paulo aconteceu pela estrada que corta a Mata Atlântica de
onde puderam vislumbrar um país com um clima extremamente úmido e quente e a
exuberante flora.
“Não entendo como as mulheres daqui passeiam sem a sombrinha,
naquele sol que melava tudo”.66
65 Relato de Daniela a MFW em SP,2000
66 Relato de Regina a MFW em SP, 2000.
O choque em relação ao clima não foi o único, as mulheres, ao saírem de
casa, surpreendiam-se com a multiplicidade de sotaques nas trocas de informações com a
população, percebida, até mesmo, para quem ainda não dominava a língua portuguesa.
“Eram italianos, japoneses, portugueses, pretos, que conseguiam se
comunicar basicamente pelo sorriso”67.
A simpatia foi outra característica marcante na população local, era comum
perceber que as pessoas não eram alfabetizadas e nem “não sentiam vergonha disso”68.
Espantaram-se, também, com o comportamento de muito contato físico entre os habitantes,
inclusive, sem que houvesse um conhecimento anterior entre eles:
“...eram muitos beijos, muitos abraços, naquele calor, entre pessoas que eu
mal conhecia”69.
Apesar das diferenças iniciais, a necessidade de sobreviver exigiu a execução de
tarefas e atividades de trocas entre imigrantes e paulistanos, que afrouxaram as barreiras
da cultura tradicionalista judaica da origem e o povo tolerante que os recebia. E São Paulo
fez o seu papel, tecendo uma sociedade urdida por vários grupos étnicos.
67 Relato de Regina a MFW em SP, 2000.
68 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
69 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
CAPÍTULO II
SÃO PAULO: Braços Abertos aos Imigrantes judeus
FOTO 10 – Trilhos de bonde desembocam pelo Bom Retiro
Rua Amazonas no Bom Retiro em 1949
Fonte: Acervo: AHJB
“As práticas sincréticas no Brasil igualmente
expressam um universo onde a integração do outro
não supõe a sua eliminação e, sim, sua absorção”
Bernardo Sorj
2.1- Imigrantes judeus em São Paulo
Neste trabalho, o grupo pesquisado constituiu-se das mulheres que, se consideram
judias de acordo com a auto-identificação70, que abrangem um universo diversificado de
valores. Dessa maneira, abrimos espaço para esta discussão sempre atual sobre o
significado da identidade, no caso, a judaica.
O povo judeu viveu disperso por séculos entre outras sociedades e manteve sua
unicidade na religião, filosofia, valores éticos, morais e ancestralidade, somando uma
pluralidade cultural resultante de sua participação em contextos nacionais diversos.
A religião é vista como o fio-mestre da unidade desse povo, no entanto, a
organização social contemporânea abriu espaços para a valorização de outros conceitos,
geradores de
diferentes processos identificatórios, como os preceitos ortodoxos,
conservadores, liberais ou não, a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e, após 1948, a
identificação ideológica e política com Israel.
Todos esses valores, hoje, são considerados como identificadores de pertinência,
pois fatores históricos e psicossociais forjaram distintamente os judeus nos países onde se
instalaram.
Entre estas diversas experiências, uma das mais significativas derivou das
perseguições advindas do nazismo. O anti-semitismo alemão expresso em 1933, no final da
República de Weimar, solidificou-se com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, pelo Partido
Nacional Socialista.
Em 1934, com a morte do Presidente Hindenburg, Hitler consolidou-se no poder
tornando-se Chanceler, Chefe das Forças Armadas e Presidente da Alemanha.71 A base de
seu discurso está na limpeza da raça humana, na qual os arianos auto-definiram-se como
raça branca e sendo, geneticamente dominantes, deveriam prevalecer sobre as demais,
sendo assim, os judeus, ciganos, comunistas, deficientes físicos e mentais deveriam ser
exterminados por serem considerados inferiores.
No entanto, a força de trabalho dessas “raças inferiores” deveria ser aproveitada,
como foi comprovado na Segunda Guerra Mundial com trabalhos forçados, que acabaram
por tornar-se uma forma de extermínio.
70 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.132
71 MARIANO, Neusa de Fátima. A História de Mulheres Judias Imigrantes na Era Vargas, p.6
O preconceito racial, sobretudo do anti-semitismo estabeleceu um código jurídico
que deveria ser seguido entre as normas e suas leis. Em 1935, o edital das Leis de
Nüremberg que alterou o cotidiano dos judeus e de todos os incluídos na discriminação,
proibidos de:
•
. casamentos entre judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentados;
•
. manter relações sexuais com alemães;
•
. içar a bandeira nacional alemã;
•
. exercer cargos públicos e
•
. as infrações a estas normas resultariam em prisão e multa.
A gravidez colocava as mulheres judias em situação de duplo perigo, já que eram
vistas como uma “fábrica de fazer judeus”, e a proposta colocada em prática pelo nazismo
era justamente a eliminação total do grupo em nome da “limpeza da raça humana”.
A vida dos judeus, foi marcada, assim como pelas Leis de Nüremberg, pela Noite de
Cristal ou Kristallnacht (9 e 10/11/1938). Nessa noite, sob o pretexto de vingança ao
assassinato do diplomata alemão Ernst Von Rath em Paris, dois dias antes por um jovem
judeu, todas as sinagogas foram incendiadas, indicando o início do transporte de 30 mil
judeus aos campos de concentração. Toda a ação de Hitler foi expressa em seu livro
intitulado Mein Kampf72, no qual propõe o aniquilamento total dos judeus, posteriormente,
chamada de “Solução Final”.
Para o povo judeu, significou o extermínio de 6.000.000 de indivíduos ou mais de um
terço de sua população mundial de 193973, pois a Alemanha nazista aplicou em suas
conquistas territoriais a ideologia da purificação nos países conquistados. O deslocamento
populacional aos campos de concentração deixou, milhares de judeus (com centenas e
milhares de) sobreviventes, desalojados, como refugiados na Europa e sem destino, posto
que a maioria dos países, mesmo os de origem, depois de finda a guerra, não os aceitaram
de volta.
Desse modo, após a Segunda Guerra Mundial, a leva migratória judaica distinguiu-se
das demais, considerando as etapas formuladas por Jeff Lesser (1995), como a escassez
de trabalho que mobiliza as mudanças territoriais. Para esse autor, os imigrantes judeus
desse período caracterizavam-se pela necessidade imperiosa dos deslocamentos
geográficos e problemas relativos à identidade religiosa. Assim, o objetivo era sobreviver às
72 “Minha Luta” foi escrito durante a prisão de Adolf Hitler na Fortaleza de Landsberg, Alemanha, no ano de
1924. O livro foi lançado em julho de 1925.
perseguições, à possibilidade de extermínio praticado pelo Holocausto, à perda de
familiares, amigos, propriedades, dignidade, deportações, nacionalidade, entre outras, e a
solução foi a ruptura com a origem.
Na busca por alternativas de sobrevivência, emigraram legalmente para o Brasil,
entre outros países, estimulados pelas múltiplas possibilidades que a economia em
expansão poderia oferecer, incluindo as ofertas de trabalho e os incentivos nas áreas
rurais.
Desde a década de 1920, a industrialização e a intensificação da urbanização
transformaram a cidade de São Paulo em pólo de atração econômica e intelectual,
apresentando características de interesse aos imigrantes de todas as origens, em especial,
os judeus, identificados com o meio urbano.74
No primeiro quarto do século XX, conforme Hirschberg, os judeus em São Paulo
começam a se estruturar, com a ajuda de várias organizações comunitárias. Desde 1880, já
havia imigrantes judeus de origem lituana e ucraniana em São Paulo:
(....) encontravam-se no Brasil, até 1933, cerca de 40 mil
judeus. Após esta data, teriam imigrado cerca de 24 mil, oriundos da
Europa Centro - Oriental, fugitivos do nazismo. Vigorava a Lei de
Imigração de 1919, que reconhecia todos os tipos de visto de estadia
como ‘permanentes’, isto é, possibilitando trabalho para todos”75
Embora anterior, foi durante a “Era Vargas”, como em outros países, que entraves
políticos dificultaram a imigração. Num período que se exortava o comunismo, Gustavo
Barroso, fundador do Partido Integralista, lançou em 1937 um livro sob o título “Judeus,
Maçonaria e Comunismo”, chamando os judeus de “sanguinários”, “demônios”, tal qual a
maçonaria, “organização nefasta ao povo brasileiro”, citava nomes de judeus em partidos
comunistas e socialistas, bem como seus dirigentes e acabando por inverter os
significados, rotulando-os pejorativamente.
O Departamento de Imprensa e Propaganda, sob a liderança de Fillinto Müller, desde
1939, comandou a censura, agora mais rigorosa, repassava à população pelos meios de
comunicação de massa vários folhetos com piadas sobre judeus, havendo rebaixamento de
73 DELLA PERGOLA, S; SCMELZ, U.O. La demografia de los judios de Latinoamerica. In: Rumbos: en el
Judaísmo, el Sionismo e Israel
74 BARON, Salo W. História e Historiografia, p 152
75 HIRSCHBERG, Alice Irene. A História da Congregação Israelita Paulista, p.21
sua reputação, de seus valores, etc., fundamentando incorretamente a ideologia
nacionalista:
Incentivava também matérias favoráveis ao governo,
eliminando tudo aquilo que considerava negativo à imagem de Getúlio
Vargas. Estas atitudes
censoras
justificam-se
em
nome
do
“nacionalismo” e a favor da manutenção da ordem estabelecida.
Assim, passam a ser proibidas notícias que expressassem
ou sugerissem qualquer crítica ou descontentamento ao regime,
anúncios de livros comunistas, notícias e fotos da Rússia, referências
desfavoráveis às autoridades e países estrangeiros. Vargas procurou
impedir, de todas as formas, que a imprensa ferisse ‘os sentimentos’
da Alemanha nazista, por quem não escondia suas simpatias.76
Hoje vasto material comprova a prática discriminatória contra as levas de
judeu-imigrantes que foram considerados indesejáveis e até “nocivos ao Território
Nacional”.77 O brasilianista J. Lesser, assim, expressou-se sobre o período:
À medida que o movimento comunista brasileiro atingia
seu auge em meados da década de 30, políticos e intelectuais
ressaltavam os supostos laços entre judeus e comunismo, e notícias
na imprensa das capitais estaduais sobre as prisões
dos
militantes
estrangeiros do Partido, Olga Benário Prestes e Arthur Ewert (Harry
Berger), chamavam atenção para a origem judaica dos dois. As
críticas aos judeus e à imigração judaica na imprensa respeitável
(oficial) refletiam um desejo crescente de limitar ou encerrar as
entradas. Os nomeados por Vargas para o Itamaraty começaram a
elaborar uma política imigratória restritiva, com o apoio de diversos
burocratas federais e, em 1937, regras severas barraram a entrada de
todos os judeus no Brasil, inclusive, dos turistas e daqueles que
76 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas(1930-1945), p. 391
77 Ibidem, p. 303
vinham por razões de negócios. O nativismo brasileiro havia se
transformado numa política antijudaica”.78
A partir de 1945, os efeitos da política discriminatória contra os judeus tornaram-se
mais flexíveis, mas, ainda os vistos eram outorgados caso a caso. As solicitações de
entrada eram analisadas pela diplomacia brasileira, ponderando-se sobre a qualificação do
solicitante, apesar da manutenção da exigência da “carta de chamada” (documento de
convite ao estrangeiro com especialização profissional de interesse do residente e desde
que fosse para o exercício da atividade profissional junto e sob responsabilidade deste).
A Circular Secreta nº 1.249 solucionou diversos problemas
que haviam sido criados pela primeira. As restrições contra judeus
foram encerradas e os parentes até segundo grau podiam ser
“chamados” por judeus estrangeiros que morassem legalmente em
território brasileiro79.
Nem sempre donos de seu destino, os emigrantes acabaram na região entre acasos
e fatalidades. Essa foi a particularidade do movimento migratório judaico do período, que se
refere a um contingente populacional em sua maioria composto por indivíduos desalojados
de sua região de origem e pertinência, transformados em refugiados. Diante da
impossibilidade de voltar para casa, quando o objetivo maior ganhara um novo significado:
sair, distanciar e esquecer, para onde chegar, só muito depois terá seu valor.
No entanto, os diversos deslocamentos impostos aos judeus ao longo de sua
história, cunharam características na estrutura comunitária que favoreceram uma rápida
acomodação aos novos sistemas econômicos, culturais e políticos. A estruturação do
trabalho, em condições de escassez de recursos, cristalizou moldes baseados em
organizações familiares, perpetuando um comportamento dinâmico de inserção contra a
exclusão.
Nesta pesquisa destacamos o apoio e o envolvimento recebido na fase inicial do
empreendimento, conforme a figura abaixo que corresponde à tabela a seguir:
78 LESSER, Jeff. O Brasil e a Questão Judaica: imigração, diplomacia e preconceito, p.159
79 Ibidem, p.200
GRÁFICO 01 – Distribuição em porcentagem dos participantes dos negócios das
entrevistadas
Judeu
9%
Conterrâneo
41%
Parentesco
50%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as entrevistadas e os envolvidos diretos
na fase inicial do empreendimento.
TABELA 04 - Participantes do empreendimento
Participantes do empreendimento
Judeu
Parentesco
Conterrâneo
Total
Número de Entrevistadas
02
11
09
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Dentre as entrevistadas, 50,0% confirmam ter iniciado seu negócio com
envolvimento de familiares e ou parentes. As demais deixam brechas interpretativas em
seus discursos sobre a diminuta valorização da consangüinidade, ampliando o sentimento
de família para além dessa fronteira, passando a absorver os companheiros ou irmãos de
viagem (schifsbrider) como gesto de solidariedade, amalgamado à família. Salientamos
ainda a força de identificação com a origem, pois em mais de 40,0% o apoio veio de fora do
grupo étnico.
FOTO 11 – Famílias de “Irmãos de travessia” – Schifsbrider
1954 – Santo André – SP - Jantar de Pessach
(Páscoa Judaica) com o schifsbrider
Fonte: Acervo de MFW
“Na casa de meu tio, tínhamos almoços com os “irmãos de viagem”, a
família que pudemos reconstruir.....”80.
“Eram aqueles que chamamos de família que trabalhavam, e a maioria
morava junta. No começo, as compras fazíamos para todos, sem divisão.”81
“Eu e as outras companheiras, a “nossa”família, sempre que tínhamos
tempo livre ajudávamos na impressão dos textos clandestinos. Tudo era nosso e
para nós”82.
Desse modo, são as conquistas econômicas dos imigrantes judeus, do final do
século passado e começo do século XX, que alicerçaram a construção da comunidade em
São Paulo pela implantação desses empreendimentos ligados, sobretudo, ao ramo têxtil.
Este mesmo segmento, como o de bebidas e produtos alimentícios, favoreceu na
década de 1950 o incremento no número de vagas femininas. Eram indústrias de tecnologia
mais avançada que dispensavam a força física na execução das tarefas. Esta expansão
deveu-se a medidas cambiais da década de 1940 que redundaram na importação de
equipamentos obsoletos da Europa e Estados Unidos. Com a sobreposição entre
oportunidade, mão de obra e conhecimento tecnológico, os imigrantes atentos e
necessitados fizeram a grande massa dessa mudança e o sucesso foi rapidamente
traduzido na composição do estereótipo de industrial, como Fausto pontua neste trecho:
80 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
81 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
82 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
Não se pode negar a existência de disputas entre o setor
agrário e o industrial, das classes dominantes ao longo da Primeira
República, nem a hábil
construção ideológica efetuada pelos grupos
agrários que produziram a imagem dos industriais como elementos
parasitários, operando indústrias artificiais graças ao protecionismo,
responsáveis pela alta do custo de vida, imagem enraizada
profundamente nas classes médias daquela época.83
A conjunção de fatores permitiu a adaptação e um desempenho de resultados
econômico-positivos da maioria dos imigrantes (embora a custo da representação do novo
estereótipo) na cidade de São Paulo.
Por trazerem na bagagem conhecimentos sobre as novas tecnologias industriais e a
articulação com a vida urbana, esses imigrantes, mesmo excluídos das corporações em
seus países de origem, estavam familiarizados com o conceito organizacional. Ao absorver
a nova ordem, mas, não os “manuais de procedimentos”, mantiveram sua capacidade de
decisão e de trilhar caminhos, de acordo com suas aspirações, conhecimentos e cultura.
Essas características foram manifestas na imigração, ao constatá-los como sujeitos
econômicos de iniciativas próprias.
No entanto, a chegada e o recomeço dos imigrantes guardavam um gosto de
sobrevivência, e as articulações tornavam-se ações pontuais, emergenciais, instantâneas
de caráter temporário e provisório.
Diante da resistência na criação de novas raízes e demora de nova oportunidade,
havia o contraste de uma contagiante expectativa sobre a possibilidade de melhores
condições materiais serem conquistadas em São Paulo. Esta conquista foi adquirida pela
rede de propaganda nacional e internacional e insuflada pelas facilidades dos subsídios
ofertados, tais como na importação de maquinários diversos. A cidade transpirava
entusiasmo e os familiares e conterrâneos, já instalados, reiteravam esse otimismo das
conquistas.
Os
imigrantes
judeus
que
aqui
chegaram,
pós-Segunda
Guerra
Mundial,
encontravam-se em delicadas condições físicas e psíquicas, impressionavam-se com a
prosperidade da comunidade étnica e vislumbravam meios de alicerçar a reconstrução da
capacidade produtiva de seu grupo.
83 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 63
Por outro lado, quem pôde resgatar parte de seus bens e, após a Fundação do
Estado de Israel, conseguiu escolher não imigrar para o novo país de identidade judaica e
de visão socialista; em sua maioria estavam preservando-se da carga tributária que esse
País impunha às fortunas pessoais.
A organização judaica de ajuda ao imigrante, a “Hebrew Immigrant Aid Society”
(HIAS) tendo considerado a terra brasileira como local ideal de asilo aos imigrantes judeuss
do Oriente Médio do início do século, refez sua estrutura. Roma, a cidade italiana foi,
novamente, escolhida como um centro de atendimento médico-familiar e de triagem para
orientar imigrantes em viagem marítima à América do Sul.
Outras entidades como o JOINT (Jews Organisation International) e Wizo
(Organização Internacional Feminina Judaica) ajudaram aos sobreviventes do Holocausto e
aos refugiados da Europa Central e Oriental com sua documentação, localização de
parentes e arranjos para imigração.
Dos países sul-americanos, o Brasil por possuir grandes extensões de terras não
ocupadas, em fase de expansão econômica, e sem histórias de anti-semitismo explícito
poderia ser um refúgio. Imigrantes de mais de sessenta países diferentes84, viviam no País
em harmonia e muitos já ocupavam cargos na administração pública, sem que a etnia e a
crença religiosa fossem lembradas ou questionadas.
Os imigrantes vieram a São Paulo e aqui encontraram uma sociedade de aspecto
metropolitano e pluriculturalista, integraram-se mais rápido e ágil. Do ponto de vista
econômico, a preexistência de imigrantes, que já haviam conquistado um status e posições
de prestígio, abriu caminhos e facilidades para essa nova leva de imigração e a seus
descendentes.
A experiência em negócios, a formação acadêmica de muitos e o domínio de línguas
estrangeiras fizeram com que judeus, libaneses, iraquianos, egípcios e outros, em pouco
tempo, se posicionassem em empresas próprias ou multinacionais, abertas a profissionais
liberais, especializados e bilíngües.
Para esses indivíduos, em sua maioria, as profissões exercidas eram relacionadas
às funções desempenhadas pela família em sua terra de origem, atividades próprias do
proletariado-urbano como: alfaiates, sapateiros, costureiras, cujos papéis já vinham sendo
desempenhados pelos imigrantes de anos anteriores, chamados de “Klinteltichik”, mascates
84 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), pp. 97- 98
ou prestamistas, que eram adequadas aos recém-chegados que necessitavam fazer sua
rede de conhecimentos, partindo dos clientes de seus fornecedores.
Afinal, a necessidade de consumo da nova camada operária, que crescia em São
Paulo, e o diferencial oferecido por meio de crediário ou parcelas abriram novas
oportunidades aos imigrantes, que iniciavam sua luta pela sobrevivência na nova pátria.
A sociedade paulistana encontrava-se em um momento de novo arranjo social,
formação que clamava por mudanças contra uma elite, herdeira de uma economia rural,
que se caracterizava por relações intragrupais e estáveis com mínima mobilidade. Neste
contexto, os interesses dos imigrantes e de parte da sociedade adotiva estavam
compatíveis e puderam ver as diferenças e suas resistências abrandadas.
Observamos neste estudo, que a maioria dos imigrantes judeus de São Paulo,
instalou-se em bairros, junto a outros judeus, de mesma origem cultural, onde já havia uma
semente, uma referência. Eram parentes e conterrâneos que estavam em sua ação
solidária, tecendo, simbolicamente, seu território. Os bairros escolhidos até este período
eram, especialmente, a Mooca, o Brás, Bom Retiro, Estação da Luz, Barra Funda e
Higienópolis, onde eles se misturavam aos armênios, também, comerciantes, peculiaridade
que se soma à característica de uma repetição histórica pela falta de território nacional
representativo.
Conforme pesquisa de Roberto Grün, os armênios “nação comerciante”85, eram
requisitados, preferencialmente, para a ocupação de cargos que exigiam pontualidade,
responsabilidade e confiabilidade, e os imigrantes judeus, estes, também, contavam com
redes de recomendações, responsáveis pelo preenchimento de vagas de trabalho. Os
estabelecidos e reconhecidos endossam o novo imigrante e seus planos, encaminhando-o
aos membros e ou elos da cadeia de ajuda mútua que incluía crédito, garantia e
recomendação, cuja trama parece ser pautada pela identificação cultural.
Em 1946, a criação da FISESP (Federação Israelita de São Paulo), abarcou para si a
representação das entidades assistenciais judaicas, proporcionando uma divisão de tarefas
na absorção dos recém-chegados. Diante do crescente número de imigrantes judeus
necessitados, pós-Hitler, Fundação de Israel e perseguições nos países árabes, a
comunidade mobilizou-se num acolhimento mais pontual e formal, como a ajuda direta na
agilização da instalação, alimentação e, em especial, como interlocutor na esfera
econômica para o início de uma vida autônoma.
85 GRÜN, Roberto. Negócios & Famílias: armênios em São Paulo, p.36
Esse apoio não apresenta em si uma vantagem, mas segue o princípio da
solidariedade étnica, pois o judaísmo é norteado pela coerência com a verdade e a justiça
da comunidade como um todo, ao mesmo tempo, que reforça a identidade grupal.
Entretanto, neste estudo esta característica torna-se ainda mais relevante, uma vez
que na divisão de tarefas entre os sexos, as atividades relacionadas ao cumprimento da
justiça, entendida por caridade, foram atribuídas às mulheres na sociedade judaica,
excluindo a arrecadação e o manuseio de grandes somas de dinheiro.
Apoiados em eventos beneficentes, ações voluntárias e na organização de diversos
grupos, tais como: Sociedade das Damas Israelitas, já na década de 30 do século XX, as
Pioneiras-Naamat, a Wizo em 1946; a Sociedade Beneficente da Sinagoga-Israelita
Brasileira, da Congregação Mekor Chaim, entre outras,veremos o exercício das mulheres
nos encontros femininos que, embora fosse espaço público, não é assim categorizado.
FOTO 12 – Atividades sociais femininas
Década de 1950 -Jamile Derviche eleita Presidente da Sociedade Damas Israelitas
Fonte: Rachel Mizrahi86
Assim, além das oportunidades econômicas favoráveis que ajudaram a estabelecer e
reconstruir a comunidade, famílias e indivíduos, a própria comunidade auxiliou nesse
enraizamento. O crescimento e o desenvolvimento são exemplificados na criação e na
envergadura cada vez maior das ações das instituições, fundações culturais e assistenciais,
o hospital, sinagogas, escolas e clubes judaicos.
86 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p.229
No entanto, os imigrantes não configuravam um contingente homogêneo, haviam os
comerciantes e artesãos que viviam em pequenas comunidades voltados ao suprimento de
sua aldeia ou vila conhecida por “shtetl” e eram muito arraigados aos valores judaicos. Em
situação oposta, havia os judeus liberais que vivenciavam uma integração maior com a
sociedade laica, desde os tempos da Revolução Francesa87, eram mais tolerantes e
assimilados, do ponto de vista religioso. Inseridos à sociedade usufruíam as possibilidades
tecnológicas ofertadas pelas cidades desenvolvidas e cosmopolitas da origem, experiência
esta que em muito facilitou sua integração em São Paulo:
(....)originários de estratos sociais médios, comunicandose em ladino e não raro em francês, (idiomas próximos ao português)
integraram-se rapidamente nas médias e altas camadas da sociedade
brasileira. Estes se ligaram a negócios de importação e exportação de
café, cereais, frutas, tecidos finos, tapetes orientais, seguros, minérios
e posteriormente no ramo imobiliário (...)88
Enquanto criavam uma nova São Paulo, é interessante constatar que, não tinham
percebido que estavam fazendo parte de uma importante transformação socioeconômica na
cidade. Mas esta trajetória foi fruto de muito trabalho e não raro sem discriminação. “Ser
imigrante é não ter nada a perder”, definiu uma das entrevistadas89 e sem a preocupação
com a imagem e seus papéis sociais, sentiam-se livres para tentar fazer o que fosse
possível. Assim, fizeram self-made-men90, ou melhor, self-made-women, como este
trabalho vem constatando.
No grupo étnico, as diferenças culturais impulsionaram as pessoas de variadas
maneiras na busca das soluções de sobrevivência, e os fatores que as influenciaram foram
os hábitos apreendidos nos países de origem. Como identificá-los e sabê-los pertencente
ao grupo? Construindo a idéia de pertinência, a própria história compartilhada têm garantido
a convicção de seus membros sobre semelhanças e diferenças. Porém, a diversidade de
influências, que o povo judeu absorveu, nas distintas regiões por onde se estabeleceu,
permitiu a criação de vários grupos culturais, que, novamente, irão encontrar-se.
87 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.115
88 MIZRAHI,Rachel. Primeiras Comunidades de Imigrantes do Oriente Médio em SP e RJ.
89 Relato de Dália a MFW em SP, 2000.
90 IANNI,Otávio. O Estado e o Planejamento no Brasil, p. 36
Esses grupos culturais serão analisados a seguir, e foram definidos com base nos
estudos de concepção de Burke e Herder que chamaram de “naturalista”, “determinista”, ou
ainda, “organicista” ao combinar os aspectos biológicos e culturais.
O conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado
por um estilo; eles formam sistemas. Estou convencido de que estes
sistemas não existem em número ilimitado, e que as sociedades
humanas, assim como os indivíduos (...) jamais criaram de modo
absoluto, mas se limitam a escolher combinações num repertório ideal
que seria possível reconstruir.91
Partindo do conceito de reconstruir ou coligar o grupo, o idioma étnico foi a
característica utilizada para identificar os três principais grupos culturais judaicos que, para
São Paulo, imigraram no período estudado.
“Mantendo a identidade religiosa e as antigas tradições as diferenças
aparecem até mesmo na condução da liturgia e nos costumes”.92
2.2 - Diferentes grupos cultural-judaicos
Ao objetivar uma leitura multicultural das mulheres judias que imigraram para a
cidade de São Paulo, entre 1945 e 1956, onde se tornaram empresárias, buscamos
aprofundar nossos estudos a respeito das diferenças culturais existentes no grupo étnicojudaico, que são frutos da História construída pelas próprias mulheres judias por onde
fincaram raízes, recriando seus códigos de convivência com a sociedade local.
Para tanto, apresentamos os parâmetros utilizados para entender os valores comuns
do conjunto desse grupo étnico e a cada subgrupo, considerando a História e seu modo de
vida até o momento da ruptura, quando contingências históricas arrancaram estas
emigrantes de seus países de origem e, por diversos caminhos, chegaram ao Brasil, após a
Segunda Guerra Mundial.
91 LEVI-STRAUSS,G. Tristes Trópicos, p.167
92 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio:São Paulo e Rio de Janeiro, p.28
Neste trabalho, as mulheres pesquisadas vieram de regiões de fala ídiche (língua
baseada no alemão arcaico, mesclada a hebraísmos e eslavismos), chamadas de
ashkenazitas; as sefarditas de fala
Ibérica);
e
as
orientais,
ladino (cuja ancestralidade advém da Península
procedentes
do
Oriente
(Próximo
e
Médio).
Embora
geograficamente determinadas, as incessantes diásporas fizeram com que esses grupos
vivessem em outras áreas, concomitantemente, embora se mantivessem separados. No
mapa abaixo, está esboçada a distribuição dos três grupos culturais judaicos analisados.
MAPA 01 – Distribuição da população judaica no início do século XX nas
comunidades de origem
93
Fonte: Esboço sobre mapa do Início do século XX - Mapa de Martin Gilbert
→ Ashkenazitas:
As mulheres que vieram da Europa Central e Oriental, constituem-se no maior
número de entrevistadas deste trabalho, assim, iniciamos pelo grupo lingüístico-cultural
identificado com o ídiche - ashkenazitas.
A maioria dos judeus da Europa conheceu o período de consolidação das revoluções
do século XVIII tendo participando do “Estado Burguês”. Este cenário é o da modernidade,
determinante na separação definitiva entre as esferas do público e privado. Nas sociedades
tradicionais judaicas, as relações sociais caracterizam-se pela:
(....)intimidade,
comensalidade,
solidariedade
primária
afetiva, emocionalidade, padrões rigorosos de controle social, núcleo
familiar organizado em torno da parentela sanguínea que constitui
93 GILBERT,Martin. Atlas de la História Judia, p.60
além de sua função reprodutiva biológica, uma unidade de produção
econômica e de consumo coletivo.94
No contexto do final do século XIX, as mulheres judias do shtetl (aldeota, vila, bairro
étnico) vão precisar redefinir seus novos limites de âmbito privado, quando o público laico
passa a não mais só circundar, como interferir em seu cotidiano.
FOTO 13 – Agrupamento de judeus ashkenazitas em meados do século XIX
Comerciantes judeus em meados do século XIX, em Odessa, mostrando a vestimenta do shtetl e ao centro o
chapéu típico do judeu da região, chamado de “shtreimel”.
Fonte: Unterman95
O processo é válido para toda a comunidade, pois, em primeira instância objetiva o
fortalecimento da família judaica. Assim, a autoridade do
(....) pai é formal, de acordo com os costumes e a lei
judaica, mas o domínio real do espaço doméstico pela prática da
vivência cotidiana é da
”ídiche mame”. Ela manipula os recursos
materiais e simbólicos existentes no
interior da família (....)
(....) A aceitação pela família desse direito significa o
reconhecimento
implícito de sua autoridade (....) explicando (....)
segundo a visão tradicional da vontade divina(....)não percebendo ou
não querendo assumir explicitamente o papel de interventora. 96
94 LEWIN, Helena. “Idiche Mame”- A mulher Judia e a Controvérsia entre o tradicional e o moderno.In:
NOVINSKY, Anita; KUPERMAN,Diane (Org.). Ibérica-Judaica: Roteiros da Memória, p. 448
95 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 247
Apoiando-se no texto citado, a mãe, a responsável pela definição dos papéis e das
urgências, estabelece os quinhões com certo grau de autonomia. É seu dever acompanhar
os estudos, sobretudo dos filhos homens, conforme a cultura e a religião enfatizam (pois, é
a
garantia
da
continuidade
comunitário-judaica).
Esses
encaminhamentos
são
fundamentais por definirem responsabilidades, ao mesmo tempo, em que hierarquizam as
relações na futura geração.
O estudo talmúdico para os homens, por exemplo, é tão valorizado a ponto de as
mulheres improvisarem algum trabalho remunerado para garantir as despesas e poupar o
esposo dessa preocupação, sem levá-lo a interromper. Acrescenta-se um reconhecimento
social da família que tem um sábio (o conhecedor dos mistérios do sagrado, o estudado),
que é vista como nobre e abonada, dada a capacidade de prover o filho por tantos anos.
FOTO 14 – Livro Sagrado
Torah – O Livro Sagrado.
Fonte: Unterman97
Dentro desse cenário, o poder visível–invisível vai sendo construído e dilatado e,
num momento de separação, essa perda ganha um enorme significado no plano afetivo e
de poder. Afinal, as mulheres judias parecem tornar-se significantes em seu papel de mães
e, para isso, necessitam do objeto. Na ausência do filho, o mito de mulher fraca e
dependente configura-se; no contrário, isto é, no completo, em sua maternidade, a máxima
e plena força manifesta-se numa existência percebida como altruística, prover e proteger.
Essas mulheres ora mães, ora esposas são pessoas que irão concomitante participar
dos processos sociais do período e, especificamente das pequenas cidades da Europa
96 LEWIN, Helena. “Idiche Mame”- A mulher Judia e a Controvérsia entre o tradicional e o moderno.In:
NOVINSKY, Anita;KUPERMAN,Diane (Org.) Ibérica-Judaica: Roteiros da Memória, p. 452
Central e Oriental. Aos poucos, o mundo judaico vai ganhando novas formas e o espaço
privado invadido por distintas necessidades, abrindo outro setor à mulher.
A sobrevivência econômica, a profissionalização, o proletariado, as novas exigências
de competência individual, a secularização da sociedade, entre outros fatores, foram
dissolvendo os muros que continham esse universo público em separado e distante da
realidade privada judaica do período.
A separação entre público e privado, sendo rompida por pressões externas e,
também, num movimento interno para o mundo intelectual em diversas áreas.
Personalidades consagradas da comunidade judaica viviam, em sua maioria, nas grandes
cidades, sobretudo, da Europa Ocidental inseridas no cotidiano laico, lutando pela
renovação mundial que incluía a integração judaica.
O Iluminismo, iniciado na última década do século XVIII, ventilou a filosofia judaica
para além de sua religião, vislumbrou novas abordagens, releu o judaísmo tradicional
criando novos paradigmas.
Muitos judeus da Europa Ocidental pertencentes às camadas médias da população
chegaram às universidades, imprensa e literatura, tiveram indústrias, bancos e até
trabalharam em repartições públicas ou comércio, integrando-se à sociedade laica,
usufruindo os direitos iguais para o exercício da cidadania recém-conquistada.
No início do século XX, a Rússia e a Polônia formavam o grande centro judaico, foi
um período de florescimento da literatura ídish e, até 1933, havia mais de 25 periódicos98,
intercomunicando por volta de três milhões de judeus, que mantinham o sistema escolar em
ídish e, nas escolas mais novas, o hebraico. Mas, em 1918, os judeus poloneses perderam
sua conquista de 120 anos, quando foram reconhecidos como poloneses, se bem que sua
“nacionalidade” permanecesse judaica99.
Os filhos de famílias abastadas foram estudar na Europa Ocidental, e aos demais
restaram os estudos orientados dentro do corpo da comunidade. O universo de estudantes
judeus em 1923 caiu de 24,5% para 3,2% em menos de dez anos. Mais de 70,0% das
famílias judias100 viviam do comércio, integrando-se às cidades polonesas, conforme os
dados referentes ao ano de 1914, caindo para 34,0% em vinte anos, levando quase a
totalidade dos judeus à miséria. A exigência do conhecimento do idioma polonês escrito aos
judeus artesãos impedia-os de exercer a profissão.
97 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 235
98 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo(1925-1940), p. 74
99 MARGULIES,Marcos. Gueto de Varsóvia: Crônica Milenar de 3 semanas de luta, p. 55
Havia um movimento de assimilação e secularização de forma intensa visando a
uma penetração no universo nacional, ”estes compunham a classe média urbana sendo em
Kielce 60%, em Lublin 50% e Volínia mais de 70% de médicos”101
Essa polarização é recorrente na história, porém, com a queda do Império Russo, a
Europa Ocidental e a Oriental viviam seus dilemas econômicos que estavam sendo
recheados pelo movimento nacionalista. O conceito que valorizava o espaço de nascimento
e moradia, também, infiltrou-se entre os judeus, abrindo uma fenda na comunidade entre os
ideais sionistas e os socialistas.
Entretanto, diante das renovadas perseguições nem mesmo os sonhadores do
Partido Socialista Polonês Ídicheista, chamado BUND, continuaram a acreditar na salvação
judaica no socialismo vindo a assistir ao triunfo da intolerância religiosa.
Desse modo, a fase de convivência e absorção do judeu como parte integrante da
sociedade local, chamada de emancipação, abriu espaço às mulheres para participarem de
várias atividades econômicas, indo para dentro das escolas e conquistando lugar entre os
letrados. Quebrou-se o estigma de que a mulher não tinha condições intelectuais de
aprendizado, e muitas marcaram a história, a filosofia e a literatura, mudando os
paradigmas comportamentais como Hannah Arendt, Marie Curie.
A partir da Primeira Guerra Mundial, com a Independência política da Polônia e de
outros
países
da
Europa
Oriental,
vários
governantes
passaram
a
pressionar
discriminadamente os judeus. Medidas governamentais criaram leis e taxas, tornando o
anti-semitismo à política oficial.
As mulheres européias ganharam uma identidade pelo exercício de suas
capacitações e começaram a andar lado a lado com os homens. Nesse cenário
efervescente, os escritos de vários autores (Isaac Deutscher, Bruno Bettelheim) relatam
cenas de agressão e humilhação gratuitamente aplicada contra os homens e, assistidas
pelas mulheres.
A disseminação das linhas antagônicas aos judeus e ao socialismo culminou com o
alinhamento do fascismo de Mussolini à ideologia nazista de Hitler declarado em 14 de
julho de 1938, período que se prolongou até 1943, propiciando um cenário de envergadura
catastrófica.
Na Europa Oriental, grande número de judeus vivia mais em áreas rurais, menos
favorecidos, como conseqüência da discriminação e exclusão social, ficando fechados em
100 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo(1925-1940), p. 82
101 Ibidem, p.161
sua comunidade, arraigados à consciência judaico-religiosa. Trabalhavam como artesãos,
sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, entre outras, e, em face ao cotidiano restrito
ao vilarejo, estavam menos expostos às influências, mantendo seu modus-vivendi judaico
tradicional.
Para muitos historiadores, filósofos e literatos como Isaac Deutscher (1970) “ a
hostilidade mantém a consciência e injeta sempre nova vitalidade, atuando como fator de
agregação e manutenção do judaísmo”102. Essas folgas de perseguições ora de católicos,
ora de protestantes, ou ainda, das monarquias são um engodo. Se o anti-semitismo não
fosse tão arraigado, persistente e poderoso na civilização européia, os judeus,
provavelmente, não mais existiriam como comunidade distinta.
A idéia da construção da fronteira como alimento da separação, que consolida o
grupo, e o excluído reage discriminando, dividiu o universo judaico em diversas ideologias
no fim do século XIX. As mudanças de mentalidade e os movimentos sociais penetraram
nas comunidades judaicas da Europa e Varsóvia que já se consagravam pela densidade
populacional judaica, e assistiam entre outros movimentos, a dois grupos distintos formados
por judeus.
Os “Mitnagdim” (assimilacionistas), advindos em sua maioria da Alemanha sob a
influência do iluminismo judaico, confrontam os partidários do judaísmo tradicional, oriundos
da Lituânia. Em outro grupo, entre várias oposições, estava os que lutavam pela divulgação
e utilização da língua hebraica no cotidiano, ensinando hebraico nas novas escolas. O
Clube dos Escritores, oponentes diretos, lutava pela difusão da literatura ídiche. Havia
ainda os messiânicos que confrontavam os sionistas, influenciados pelos russos, defendiam
a imigração para a Palestina, visando a construção do país dos judeus pautados numa
sociedade igualitária:
(....)movimento
fundado em 1903 ou a
da
juventude
companhia
Geulat
sionista
Há
formada
Tehiyyah,
em
1904
participando da aquisição de terras para a sociedade Ahuzzat que
iniciou a construção de Tel-Aviv
103
que tinham a oposição dos
messiânicos.
No período, há o reinício das hostilidades contra os judeus, que vão sendo
semeadas nos movimentos trabalhistas, sobretudo alemães, ingleses e franceses. Não
102 DEUTSCHER,Isaac. O Judeu não-judeu e outros ensaios, p. 48
103 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo (1925-1940), p. 67
bastasse o passado, o presente também apresentava sinais de distinção entre trabalhador
judeu ou não. O BUND organizava massas proletárias e gerava lutas entre patrões e
operários, primando pela solidariedade comunitária, criando motivos para críticas
discriminatórias.
Muitos judeus acreditavam que a religião era coisa do passado e, a partir daquele
momento, judeus e gentios eram iguais. O grupo enfrentava os que militavam no Partido
Comunista levantando questionamentos que causaram a desintegração da comunidade
judaica local, favorecendo a intensificação do preconceito e da discriminação. Por outro
lado, ao aceitarem empregos e suas escalas de trabalho, ao participarem do movimento
operário, estavam escolhendo romper com a tradição ao não cumprir o “Shabat” (dia do
descanso santificado).
FOTO 15 – Mesa para comemoração de Shabat
Preparação da Comemoração do “Shabat”- dia santo de descanso que se inicia ao pôr-do-sol da sexta-feira
com o acendimento pela mulher de duas velas brancas acompanhado de prece. Esta noite inclui um jantar
familiar servido numa toalha especial com vinho e pães bentos.
104
Fonte: Unterman
Na oposição, o partido ZKN (Zydowski Komitet Narodovry) alinhava-se ao movimento
sionista105 que abriu uma nova alternativa econômica aos já preteridos, inclusive, como
mão-de-obra, os judeus. Assim, marginalizados do consumo, realimentaram o círculo
vicioso da reconstrução do estereótipo: o diferente, novamente ficando sujeito às ondas
democráticas, que no período ficavam cada dia mais distantes.
104 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p. 63
105 MARGULIES,Marcos. Gueto de Varsóvia: Crônica Milenar de 3 semanas de luta, p. 103
A Primeira Guerra Mundial e os movimentos nacionalistas ao ganharem espaço
político provocaram mudanças, impelindo as mulheres e ou mães, que ainda permaneciam
no universo doméstico, para onde encontrassem formas de sobrevivência. No entanto, as
novas leis de proibição do exercício de diversas atividades aos judeus, ajudaram na
cristalização ao boicote à comunidade judaica, justificando uma idéia de solução aos
problemas socioeconômicos que, inicialmente, a Alemanha enfrentava no período. Era um
retrocesso da política liberal para a intolerância.
Nesse período, a violência contra o povo judeu iniciou-se com ataques à população
(pogroms), expulsão dos empregos, de suas casas e perda de posses. Foram levados aos
guetos (bairros fechados e controlados, em condições de miséria humana). Em
circunstâncias mínimas para garantir a saúde física, sobreviveram à falta de água,
aquecimento, alimentação e medicamentos. Sem atividade ou possibilidade de produção
econômica ao menos para a subsistência, e sem encontrar no horizonte uma esperança de
liberdade, a agonia da dignidade maculava a sanidade mental. Os acontecimentos geraram
transformações que a guerra terminou por arrancar pedaços, pessoas e, não raro, famílias
desta existência.
O momento era de fugas e esconderijos para zonas rurais ou onde fosse possível,
pois, na maioria dos países potencialmente receptores de imigrantes, já, imperava o
sistema de cotas e os judeus não estavam na lista dos preferenciais. Os destituídos
estavam obrigados a depender das entidades assistenciais, ou seguir, intermináveis
caminhadas que levariam por entre esconderijos a outros países (França, Itália, Inglaterra e
Países baixos).
As mulheres, às vezes, como esposas e mães ou filhas exerceram um papel de
destaque na luta pela sobrevivência. Suas articulações, ingerências, estratégias e atuação
como porta-vozes do grupo que protegiam, puderam mostrar sua força, inteligência e
competência para resistir e vencer em tempos de guerra, enquanto os homens
permaneciam escondidos, fugindo da possibilidade de serem arrancados dali e submetidos
a trabalhos forçados.
No Brasil, após a
Segunda
Guerra Mundial e o fim do Governo Vargas,
comemorou-se o fim do autoritarismo e buscou explicitar suas características mais
democráticas, permitindo a imigração e pode-se enfatizar o recurso de solidariedade grupal,
com a carta-convite (mecanismo instituído pela embaixada que exigia endosso aos
predicados do potencial imigrante). Esta imigração só se tornava possível mediante a
garantia ao governo de que o residente receptor era responsável pela sobrevivência do
imigrante que efetivamente tinha uma formação intelectual diferenciada.
Assim, o País vivia um clima desenvolvimentista que abria espaço para a
incorporação do estrangeiro imbuído do significado desejado: desenvolvido e evoluído.
Diante dessa congruência de interesses, um acordo tácito de receptividade e não de
competitividade facilitou a inserção na economia do trabalhador estrangeiro.
Considerando o período de imigração, após a Segunda Guerra Mundial, os
sobreviventes que, para São Paulo, vieram, juntaram-se aos aqui radicados, facilitando sua
absorção e integração. A necessidade de sobreviver e as dificuldades inerentes a cada
imigrante compuseram as histórias das mulheres ashkenazitas no cenário paulistano do
período.
O processo de imigração dos judeus da Europa Central e Oriental deu-se pela
assistência da HIAS (Hebrew Immigrant Auxiliary Service) ou AJDC (American Joint
Distribuition
Committee),
instituições
americanas
espalhadas
pelo
mundo106.
Os
ashkenazitas identificados pelo idioma ídish foram integrando-se às regiões geográficas
compatíveis com seus padrões, isto é, procuraram por contemporâneos e estreitavam os
laços de ajuda mútua. Fragmentados reconheceram e buscaram a unidade. A escolha do
endereço para este grupo era o Bom Retiro, o Brás e a Mooca, congregando pessoas de
mesma origem nacional e cultural, os Landsmannshaften (conterrâneos) em muito
contribuíram para uma rápida instalação dos recém-chegados.
Neste espaço, reconstruiu-se a família que passou a ser composta, também, dos
irmãos de navio de travessia (schifsbrider) do oceano em direção ao Novo Continente. A
convivência com os pares, aqueles que se percebem, tendo os mesmos objetivos,
transforma o individual no projeto de todos. Cada um começa a identificar-se com o outro e
com os anseios, complementando solidariamente as atividades e fortalecendo o grupo107.
Essa construção social foi tecida, mesmo que, inconscientemente, pelos novos imigrantes
que elaboraram, na geografia da cidade, o projeto de inserção econômica, ao mesmo
tempo em que consolidavam sua identidade.
A reconstrução individual do elo de continuidade judaica no novo mundo ancorou-se
baseada na comunhão dos destinos e foi forjada na nova cidade, São Paulo, local onde os
valores puderam ser refeitos.
106 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), p. 92
107 VELHO,Gilberto. Individualismo e Cultura – Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea,
p. 33
No final da década de 1940, ainda em 1950, os bairros representavam um local de
abrangência maior, muito diferente do que hoje constatamos sobre a vida urbana
paulistana. O bairro era o local, onde os imigrantes moravam, estudavam, trabalhavam,
faziam compras e tinham o lazer. Era um espaço complexo e, por isso, essa decisão
relativa ao local ganhava um significado maior. Assim, morar no Bom Retiro significava ser
judeu ashkenazita e almejar a ascensão econômica, quando poderá mudar para
Higienópolis e Jardins, onde no final da década de 50 do século XX colégios e sinagogas
foram construídos.
Nos estudos americanos, sobre a imigração de judeus, em sua maioria,
sobreviventes do Holocausto, há um destaque conclusivo que recai sobre a ocorrência de
intensa assimilação nas primeiras décadas pós-guerra como uma alternativa rápida para a
inserção à vida urbana. Fato constatado nas diversas cidades para onde os sobreviventes
imigraram e reiniciaram seu processo de organização e integração. Salienta-se que, após a
Fundação do Estado de Israel, refletindo o sentimento de confiança na política brasileira, os
judeus iniciaram um novo ciclo e explicitaram a identificação com o grupo étnico em suas
diversas formas.
No início do processo de integração ao novo país e todas as dificuldades inerentes a
uma emigração forçada, o Brasil foi uma possibilidade favorável. A segurança física e o
cenário de crescimento econômico, tão divulgados entre os refugiados foram fatores
estimulantes, como podemos perceber no relato de Dália:
“Meu marido fez um curso profissionalizante de caldeiras e turbinas,
porque falaram que aqui tinha grandes oportunidades e muita água, digo,
litoral”.
Diante da falta de condições econômicas para a reestruturação pessoal, os
sobreviventes da Segunda Guerra Mundial contaram com o apoio de entidades que
ofereceram ajuda médica, alojamentos, documentação e passagens para novas paragens.
A tabela a seguir mostra a distribuição do número das mulheres entrevistadas que
contaram com apoio de entidades para efetivarem a imigração.
TABELA 05 – Apoio de entidade para a imigração
Apoio de entidade para imigração
Não
Sim
Total
Nº de Entrevistadas
13
09
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Das mulheres que imigraram, nove obtiveram apoio de entidades na imigração e ou
para a instalação na cidade. Isso é reflexo do variado número de entidades existentes,
sensibilizadas pela expansão do nazismo na Europa.
O grupo cultural ashkenazita, ao imigrar, apresentava uma grande diferença entre os
demais grupos culturais. Diante da impossibilidade de portarem seus bens, valorizaram o
grande oceano que os separava do mundo das perseguições, mortes, humilhações e
guerra, para um mundo de esperança de uma vida digna, mesmo sem ter em suas mãos
algo no que apostar.
As mudanças que irão acontecer nos anos seguintes serão várias e o conflito sobre o
modo de vida judaico perpassará por várias etapas, e uma delas foi o abandono do idioma
ídish, substituído pelo português como idioma do cotidiano, facilitando a circulação do
imigrante. Neste novo mundo de espaço aberto, os judeus ainda desconfiados108
questionarão a integração, pois, para muitos conota assimilação109. Essa alteração religiosa
e cultural, também, teve como ingrediente os outros grupos culturais judaicos, pois a partir
da década de 80 do século XX, uma nova fase de profusão dos costumes sefarditas está
em expansão.
→ Sefarditas e Orientais
Em países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo
existiam, sobretudo, judeus sefarditas, tais como: França, Itália, Turquia, Chipre, Grécia,
Bulgária Tunísia, Líbia, Marrocos, Argélia e Egito, provenientes da Península Ibérica, e
identificados pelo idioma ladino. Próximos, mas, não juntos os judeus orientais viviam no
mundo árabe: Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Egito falavam o idioma árabe, em geral. O
grupo sefardita representava no século XII, 90,0% da população judaica mundial, caindo em
108 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), pp. 52 e 78.
109 GRIN, Mônica. Etnicidade e Cultura Política no Brasil – O caso dos imigrantes judeus do Leste - Europeu,
p. 142
1700 para 50,0%, como conseqüência de imigrações forçadas, ficando reduzida a 10,0%
em 1930.110
No Oriente Médio, de modo geral, os judeus concentraram-se nas grandes cidades,
pois contavam com o apoio dos califas, no endosso às oportunidades de estudos e ao
exercçio de cargos de confiança, como apontam os censos demográficos do Prof. Hayim
Cohen111. O Egito num composto cultural de: sefarditas, orientais e ashkenazitas, gerou um
espírito cosmopolita ao conjugar o Ocidente e o Oriente.
FOTO 16 – Durante o Mandato Britânico
1932 - Palestina - Dia de Lazer de família residente sefardita em Alexandria.
Fonte: Flore Gaunzer
A relação entre os judeus sefarditas que emigraram para o Oriente e se defrontaram
com uma comunidade judaica local seguiu: “(....) três cursos distintos: assimilação total aos
autóctones, preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e a influência direta e
recíproca entre os dois grupos”112, ou ainda para Ianni113, transculturação seria o termo
mais adequado. Essa Linguagem moderna, traz em si a revolução permanente, ao não
negar a permanência ou a reiteração da identidade, seja individual ou da comunidade.
Ianni, ainda, enfatiza que são várias as formas que podem configurar os movimentos de
combinações, soltando as desamarras que as análises sociológicas e ideológicas impõem
ao pré-definirem “o que veio, o que deve ter vindo e como deverá vir a ser”.
A comunidade sefardita vai caracterizar-se no Oriente Médio, pela manutenção da
cultura e tradições da origem e pela tendência mundial e cíclica entre integração e
secularização ou o forte apego religioso.
110 SEPHARADIC POPULATION FIGURES THOUGH HISTORY – rufina@netactire.co.za
111 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p.49
112 BEN AMI,Issachar. Sepharad and Oriental Jewish Heritage. In: MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do
Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p. 34
Mas, o que foi o auge da prosperidade para muitos, para outros foi a decadência da
comunidade. No final do século XIX, a famosa escola Rabínica “Beth Zilkha” divulgou o
grande e qualificado quadro de rabinos que serviu em diversas comunidades judaicas pelo
mundo, em alto grau de conhecimento e profundidade da cultura judaica, o que terminou
por um recrudescimento religioso em cidades como: Esmirna, Alepo, Safed.
Os sefarditas como os orientais valorizavam a religião e primavam pela educação
religiosa aos filhos, que começava antes mesmo da escola regular. Os meninos eram
encaminhados ao “Kutab”114 (quarto para estudos, equivalente ao “chedder” entre os
ashkenazitas), dirigido às crianças do sexo masculino e sobretudo, aos mais abastados que
poderiam sustentar os filhos em dedicação total aos estudos, por longos períodos. No
estágio escolar seguinte, os demais ingressavam nas escolas laicas.
No período, a “Alliance Israélite Universelle” oferecia espaço aos judeus com a uma
educação ocidental, era a possibilidade do aprendizado de idiomas, como o francês, o
inglês ou italiano, habilitando-os ao mercado de trabalho. Era uma organização
internacional de origem francesa que acreditava numa tendência espiritual nova, mais
aberta115 e de forte interesse cultural.
A difusão cultural possibilitou que, nas primeiras décadas do século XX, as cidades
cosmopolitas do Oriente Médio estivessem misturando os vários idiomas, utilizando o
francês em casa, o árabe com os criados e o inglês nas melhores escolas e ainda, não raro,
encontravam interlocutores armênios, turcos e iranianos.116 Assim, os judeus orientais eram
percebidos como integrados à comunidade local, que era tolerante ao exercício da
religiosidade, a população era agregada, não havia grande separação entre judeus e
outros. Nada podia ser comparado aos hábitos dos ashkenazitas que mantinham, desde a
origem, diferenças marcantes como as “peot” (cacho de cabelo que pende dos lados da
face dos judeus religiosos), ou ainda, as “arbá kanfot” (franjas colocadas nas quatro pontas
das vestes que os homens usam sob a camisa)117.
O conhecimento dos vários idiomas foi um fator preponderante de favorecimento
desses imigrantes em sua absorção no Brasil118. Na origem, foram educados ao estilo
ocidental, vivendo com direitos iguais aos demais cidadãos integrados na comunidade local,
113 IANNI, Otavio. Enigmas da Modernidade, p.16 e 202
114 LEFTEL,Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 26
115 Ibidem, p. 54
116 Revista Morashá - Setembro,1995, p.51
117 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 161
118 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), p.166
chegando até a ocuparem cargos políticos na administração de Basra e Mosul119, em pleno
reinado do Rei Faisal (1921-1933). No entanto, essa condição favorável durou até o ano
1936, quando as idéias nazistas infiltradas já começavam a fazer suas vítimas, assim, os
curdos foram responsáveis pela maioria das fugas bem sucedidas de judeus.
Damasco assistiu ao crescimento da propaganda nazista com espancamento de
judeus pelas ruas e bombas explodindo as sinagogas. Os judeus iraquianos da Turquia
européia, da Síria – Alepo, tiveram seus livros sagrados queimados em 1945, chamas estas
que arderam em todo o mundo, deixando queimaduras, como sinal de guerra e que, a cada
ano, se tornavam mais devastadoras.
A partilha da Palestina, determinada pela ONU, intensificou nos países árabes
posturas nacionalistas; sancionada a decisão na Síria, a Grande Sinagoga de Alepo, foi
incendiada fato que chocou a muitos, pois a sinagoga, possivelmente, a mais antiga do
mundo judaico guardava importantes documentos religiosos.120
Em 1948, no Egito, onde vivia a maior comunidade judaica do Oriente Médio,
responsável pelo incremento comercial, industrial e bancário, fazendo parte dos grupos que
alavancaram a economia do país, inclusive, em cargos político-administrativos, Senado e
Câmara dos Deputados. Alguns, chegaram a manter ligações próximas com a aristocracia
egípcia muçulmana121, e os mais pobres, de modo geral vindos das áreas rurais logo se
identificaram com a proposta israelense, para onde buscaram imigrar122, recorrendo a
subterfúgios dados os impedimentos impostos pela Liga Árabe.
As mudanças foram difundidas pelos governos árabes numa campanha anti-sionista
voltada contra os estrangeiros, que apoiavam em sua maioria a Grã-Bretanha e vinham
destacando-se como a classe exploradora. Assim, o período mais conturbado foi entre a
Partilha da Palestina, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, e a
Independência de Israel, em 1948, quando parte do contingente judaico estava proibido de
imigrar para Israel.
Desse modo, os mais abastados foram extorquidos por grupos chantagistas e,
posteriormente, pelo governo árabe de modo institucionalizado, beneficiando as tropas
egípcias na Palestina sob a bandeira “Fundo de bem-estar”123 contra os judeus.
119 Revista Morashá – Junho,1997, p.34
120 O “Códice de Alepo”, o Keter, o “guardião da cidade”, com perda parcial, foi levado a Israel ao Instituto
BenZvi, segundo informação da Profa. Rifca Berezin, do CEJ da USP. In: Coletânea de Lembranças de Alepo.
Revista Morashá, abril/ 1997.
121 DECOL, René Daniel. Imigrações urbanas para o Brasil: o caso dos judeus, p. 182
122 Ibidem
123 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 72
Os sefarditas distinguiram-se dos outros dois grupos culturais significativos para este
estudo, por contar com maior participação efetiva feminina nas sinagogas e serviços
religiosos. As moças aos 12 anos, também, faziam sua iniciação religiosa e apresentavamse oficialmente à comunidade. A liturgia sefardita contava com canto de coros mistos que
permeava todo o serviço religioso, num diálogo em que se alternavam fiéis e coro. Incensos
eram usados e dos salmos eram frisadas as entrelinhas compostas, permeando de
simbologias o universo místico da maioria das mulheres sefarditas. Esse grupo cultural
abriu espaço para a participação feminina nos estudos religiosos, trazendo a
institucionalização do “Bat-mitzva” (festa da maioridade feminina) no Brasil.
As mulheres orientais permaneceram em suas casas circundadas pelo grupo familiar
feminino e suas várias gerações que se desdobravam em afazeres femininos como a
educação dos filhos, a cozinha, os trabalhos manuais e artesanais. No grupo,
expressavam-se livremente os sentimentos, mas, mantidos numa atmosfera hermética do
universo feminino. As casadas, mães, avós e tias eram as interlocutoras desse universo
para o mundo masculino e público. A literatura e a música eram as aptidões diferenciadas e
aceitas dentre as práticas permitidas às bem-educadas, às recatadas moças de olhar baixo
preparadas para o casamento indicado e acertado entre as famílias. Ao imigrarem,
diferenciaram-se pela oportunidade de trazerem bens materiais e idéias não menos
arrojadas que serviram de insumos na implantação de uma economia, inicialmente de
sobrevivência das famílias. No entanto, trouxeram em sua bagagem o “capital” intelectual,
que se desdobrou nas iniciativas que ajudaram a desenhar a cidade de São Paulo.
FOTO 17 – Amuleto – Chamsa
Chamsa – Amuleto contra mau-olhado
124
Fonte: Unterman
“Além da coleção de “Chamsa” (figura de mão como símbolo contra o mauolhado), ainda trouxemos o caderno de receitas de doces, que foi a base da minha
chocolataria artesanal, da qual sobrevivo até hoje.”125
124 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p. 23
Conta uma das sefarditas entrevistadas, ou ainda, na declaração de uma de
origem oriental:
“Tínhamos um plano arrojado que era baseado no interesse pelas
pedras brasileiras, já que nossa família trabalhava com ourivesaria, há varias
‘gerações”126
Diante de tantas diferenças, quais seriam as semelhanças que agrupam e
consolidam o grupo étnico estudado?
2.3 - Contornos de identidade
Neste caso, o grupo étnico estudado e sua longa história, em diversos espaços
geográficos, caracteriza-se pelo efeito imantador da cultura judaica, qual seja: seus valores
morais e éticos, costumes explícitos ou religião, identificados com a história de origem
mítica de origem.
Partindo da definição dada por Weber e frisada por Poutignat e Streiff-Fenart sobre a
pertinência ao grupo étnico, o conceito de autopercepção foi utilizado como parâmetro:
(....)crença subjetiva em uma comunidade de origem
fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou
dos dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de
modo que esta crença torna-se importante para a propagação da
comunalização, pouco importando se a comunidade de sangue exista
ou não objetivamente. (WEBER,1971, p.33 -34)
O psicanalista Salvador Sandoval agrega outra condição, que é a própria perenidade
potencial do grupo étnico, “a capacidade de se autoperpetuar biologicamente”127. As
palavras que melhor parecem ilustrar a magia da identificação judaica pesquisada nos
diversos trabalhos sociológicos e antropológicos da atualidade, que estudam as
conotações, os sentidos e as definições sobre etnicidade, foram as seguintes: “(....) a
125 Relato de Claudete a MFW em SP, 2000.
126 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
127 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.; PACHECO Fº,Raul A.(Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p.18
reação de um certo tipo de leitor – um leitor judeu lendo textos judaicos e explicando suas
estruturas e temas.”128
Essas histórias confirmam as realizações de mulheres oriundas de diferentes países,
de regiões estranhas entre si que imigraram no período entre 1945 e 1956. Arrancadas de
seus locais de origem por questões ligadas a perseguições, emigraram, lutando pela
sobrevivência, buscando soluções econômicas num contexto em que encontrassem
novamente segurança física,
(....)pela sua condição biológica de ser judeu transforma sua imigração
numa emigração vital, na maioria das vezes em ações clandestinas,
heroísmos individuais e até apoios de entidades internacionais, todos
unidos pela condição de serem judeus,
perseguidos
por
serem
judeus.129
Os grupos de imigrantes, perseguidos por sua identidade judaica, configuram o
grupo étnico de diversidade cultural. De diversos locais de origem, seja do velho continente
ou de impérios desaparecidos, onde viviam e conviviam com a comunidade local,
participaram do processo de crescimento das cidades de origem. Sendo sujeitos, também,
provocaram mudanças na cidade de São Paulo, tanto interétnicas como intra-étnicas,
concluindo, após algumas décadas, tornaram-se brasileiro-judeus ou judeu–brasileiros.
Ao imigrarem para o Brasil, em muitos casos, a única alternativa na premência do
momento. São Paulo tinha um apelo econômico favorável panfletado pela mídia
internacional e foi considerada desde o final da década de 1930, uma
“globalcity’,
conforme Otávio Ianni, ”... enclave de penetração do capitalismo, mesmo que de um país
semi-periférico” e foi neste cenário aberto à “alteração dos padrões de estrutura urbana e
hierarquia social’130, que chegaram os imigrantes.
→ Como entender o substantivo imigrante?
No sentido jurídico e social, a definição dada à palavra imigrante e a seu oposto, o
emigrante pode criar a correspondência no sentido da presença e ausência, forçando à
128 SHAKED, Gershon. Sombras de Identidade, p. 8
129 NAZZARI, Luiz. Estranhos Destinos: Uma pesquisa sobre a Errância dos Judeus Alemães.
130 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p. 81.
reflexão sobre ligação. Para Hannah Arendt, o cidadão é aquele que tem sua pertinência
nacional, portanto, o imigrante ao não ser “nacional”, é excluído, é o “fora da ordem” e “há
uma dupla exclusão”. Dessa maneira, a presença do imigrante altera a ordem nacional e o
emigrante deixa de mudá-la pela falta. Assim, o refugiado, o sobrevivente do pós-guerra, o
expulso, caracteriza-se pela falta dupla de cidadania: “(....) recusa ou negação ao direito a
vida, na medida que a identidade do indivíduo está contida em sua identidade cívica”131.
Na Alemanha da década de 30 do século XX, o movimento nazista alinhavou a morte
física ou biológica: “morte cívica” dos judeus, entre outros, perseguidos. A perda dos
direitos jurídicos na sociedade alemã do começo do século, o isolamento em guetos
situando-os como cidadãos de segunda classe, até culminar com as práticas nos campos
de extermínio, completamos o panorama (....) daquele que não tem direito, muito diferente
de ser fora da lei. 132
Numa correlação com outro grupo diferenciado, que ajudou a construir a história
brasileira, os negros também sofreram o trauma psicológico da não pertinência e por terem
sido escravos, não possuíam identidade, agravado ao fato da sujeição corporal. Assim, a
falta de laços identifica o escravo com o imigrante, ambos em relação à nação vivenciam a
exclusão, a diferença. A própria palavra: estrangeiro, em substituição a imigrante cria a
distância social, ele não é desta sociedade. Entretanto, o imigrante de sua parte, mantém a
separação ao usar outro idioma, um estrangeiro. Para o judeu, esta característica veio
associada ao trauma persecutório, evitando a criação de laços, diante da potencial partida.
Dentro da história brasileira e, especificamente, da paulistana, os conflitos de classe
sobrepujaram-se às eventuais divergências de inserção dos diferentes; e São Paulo foi
escrita, de acordo com o padrão social, status econômico e grupo étnico. Para Lesser
(2000, p.294) “entre 1850 a 1950 as ideologias e as políticas transformaram-se
sistematicamente assim como a composição demográfica.”
Os imigrantes europeus fazendo parte dos planos político-econômicos do período
foram amalgamados à sociedade que conciliava o direito de igualdade entre o nacional e o
estrangeiro133. Mas nem sempre a legislação brasileira sobre a imigração, especificamente
a judaica, foi aberta e receptiva, sobretudo, considerando as mudanças ocorridas no século
XX. Houve diferentes critérios de seleção das levas imigratórias, construindo-se certa
ambigüidade com relação ao estrangeiro.
131 SAYAD,Abdelmalek. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade, pp. 269-270
132 Ibidem
133 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p.55.
No caso do imigrante judeu, somava-se o adjetivo “inassimilável” que vinha imbuído
da desconfiança em portar a nacionalidade brasileira. No começo do século, as levas
imigratórias de mão-de-obra rural de alemães e japoneses para o sul do Brasil apresentam
características semelhantes ao se diferenciarem pela religião e traços físicos.134 Estes
grupos ajudaram a ampliar o conceito para estrangeiro e diferente, ao envolverem
rapidamente os imigrantes judeus.
No período estudado, o governo de Getúlio Vargas, objetivava “(....) retornar a uma
sociedade católica mais tradicional”135, restringindo136 as possibilidades de entrada dos
diferentes. No entanto, a elite intelectual e, sobretudo a Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de São Paulo já cumpriam seu papel ao abrigar diferentes vozes para reflexão e
construir um olhar paulistano-urbano que reconhecia como favorável essa pluralidade:
Em outros termos, no âmbito de uma cidade que assumia o perfil
de
metrópole que, no ângulo cultural, significa intensificar o
processo de assimilação das correntes mundiais, ao mesmo tempo
em que as absorve segundo termos próprios.137
Assim, o fim do Estado Novo foi marcado pela institucionalização da Carta de 1946 e
um “relaxamento político”. A nova situação democrática abriu espaço para um distinto
comportamento da comunidade judaica, implantando instituições e representações judaicas
no cenário público. Ao invés de “guetização”
138
, um exercício de cidadania era permitido,
ao qual não estavam acostumados.
Por isso, a participação política dos judeus no mundo laico, de modo geral, foi de
cunho universalista e acabou por significar para a maioria o enfraquecimento da identidade
étnica. A assimilação foi bastante associada ao favorecimento do êxito do nazismo,
desdobrando-se num recrudescimento das fronteiras sociais. Seguindo o pensamento de
Grin, que explica a preservação do grupo pela da convivência estabelecida “pela diferença
134 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) .Psicanálise, Cultura e Migração, p. 9
135 LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: Imigrantes,minorias e a luta pela etnicidade no
Brasil, p.118
136 CARNEIRO,Mª Luiza Tucci. O Anti-semitismo na Era-Vargas Fantasmas de uma Geração(1930-1945).
137 ARRUDA, Mª Arminda N.Metrópole e Cultura: São Paulo no meio século XX, p. 211
138 GRIN,Mônica. Etnicidade e Cultura Política no Brasil – O caso dos imigrantes judeus do Leste - Europeu,
p.151
com o outro, pelo não pertencer ao outro grupo” ou o contrário “...individuação de seus
membros significa a despolitização do grupo.”139
Houve a necessidade de preservação da ajuda para consolidar a densificação em
bairros específicos, configurando-se um mapa paulistano recheado de “bairros étnicos, e
ambientes eram favoráveis à regulamentação da comunidade e da qual a “interação passa
a caracterizar a etnicidade”140.
Conforme Rattner (1977, p. 16), “quanto mais aberta e envolvente a sociedade
adotiva, mais rápida são as mudanças culturais”. Assim, na sociedade paulistana desse
período, os diversos e modernos setores da economia ofertaram oportunidades de negócios
e empregos, sob a alegação de uma qualificada experiência profissional pregressa141,
contribuindo para a absorção e integração aos imigrantes.
Esse ponto chama a atenção, pois diferente dos estudos localizados em vasto
material bibliográfico encontrado, as imigrantes entrevistadas declararam favorecidas, em
especial, pelos conterrâneos, justificando com a facilidade de comunicação. Desse modo,
os poloneses com poloneses, os russos com russos, italianos com italianos foram por eles
ajudados no processo de reorganização familiar.
Estas mulheres surpreendendo-se com as diferenças, em São Paulo, depararam-se
com os diferentes grupos culturais e foram avizinhando-se entre seus iguais, tecendo redes
de relacionamento e construindo novas famílias.
A Tabela, a seguir mostra a distribuição das mulheres entrevistadas por bairros na
imigração a São Paulo.
TABELA 06 – Bairro de Instalação à chegada das entrevistadas
Bairro de instalação
Bom Retiro
Higienópolis
Jardins
Outros
Total
Número de Entrevistadas
07
04
03
08
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
139 Ibidem, p.152
140 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p. 19
141 PEREIRA, l.C. Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil, p. 53
GRÁFICO 02 – Distribuição por porcentagem dos bairros de instalação na chegada
das entrevistadas
Outros
36%
Jardins
14%
Bom Retiro
32%
Higienópolis
18%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Segundo Mizrahi (2003), as diferenças idiomáticas, de costumes e visões de mundo
restringiram a auto-identificação entre os grupos culturais judaicos (ashkenazitas, sefarditas
e orientais), causando certa indisposição inicial na articulação de uma comunidade única.
Diante dessa percepção, a constituição da Federação Israelita do Estado de São Paulo
(FISESP) veio a satisfazer as expectativas e necessidades, de integração do grupo
assumindo um posicionamento dos judeu-brasileiros por meio de uma entidade
democrática.
Nos discursos das entrevistadas, a percepção sobre a organização do cotidiano no
período da imigração e os ajustes à rede de relacionamentos reiteravam o reconhecimento
da força de atração e coesão do grupo étnico, assim como a percepção sobre os distintos
processos identificatórios, conforme detalhado anteriormente: a religião, a tradição, a
filosofia ético-moral, a matrilinearidade e a identificação ideológica e política com Israel.
No entanto, percebemos dois fatores que, além de estarem interligados, se
influenciam. O primeiro é a atuação da família na formação da identidade do indivíduo e o
outro é a comunidade com suas características comuns, histórias, interesses, etc., com os
quais cada indivíduo se relaciona, identificando-se com esses valores. Refletindo esse
apego está a valorização nos casamentos intra-étnicos que podem ser constatados também
nesta pesquisa.
A tabela a seguir mostra o número de entrevistadas casadas com judeu ou não.
TABELA 07 – Matrimônio Endogâmico
Marido Judeu
Número de Entrevistadas
Não
Sim
Total
03
19
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
No universo pesquisado, 19 mulheres entrevistadas casaram-se com judeu, porém,
no período inicial da pesquisa, ao chegarem a São Paulo nem todas se identificaram como
judias, resguardando-se das restrições impostas pelas leis de imigração, ainda adversas
aos judeus,. Dentre estas, duas vieram como católica e uma como protestante.
Dália, a entrevistada educada como protestante, descobriu sua ascendência judaica
depois de casada, quando sua mãe não agüentou ver o genro incorporar-se ao exército
nazista alemão e segredou a pertinência da família ao grupo étnico-judaico. Durante alguns
anos, ela tentou seguir alguns rituais judaicos sob o manto personalista, conforme este
relato confirma:
“Eu aprendi com a minha mãe a fazer jejum de um dia inteiro, na época, para
mim pouco se diferenciava das outras pessoas. Era talvez a Sexta-Feira Santa!!!!
Hoje sei que é o Yom Kipur (Dia do Perdão)”.142
Outro caso pesquisado fez a conversão ao catolicismo, refletindo uma medida de
proteção para a família, ainda na Alemanha, numa época em que o anti-semitismo tornarase evidente, também, transferiram os filhos para escola católica. Alguns resquícios da
origem judaica, no entanto, acompanharam esta família: um deles era o uso da “mezuzá143
embutida no batente da porta, na dobradiça”. Após a imigração, a nova escola escolhida
para a filha contou com a inclusão da educação religiosa. Para que esta fosse mais
facilmente aceita e reconhecida como judia, Dália fez a reconversão ao judaísmo, embora a
142 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000.
143 Mezuzá: um rolo de pergaminho contendo uma parte de uma reza e fica afixada no batente direito da
porta e para enfatizar no homem a consciência de Deus. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e
Tradições , p.174
mezuzá continue sendo colocada, até hoje, pelo lado de dentro da casa. O desdobramento
da convivência com a comunidade propiciou o casamento da filha com um judeu.
Já Suzana convertida ao catolicismo, e casada com cristão reacendeu seu vínculo
com o judaísmo após a morte do marido. Vive, atualmente, no “Lar Golda Meier” “...me
identifiquei, não sei explicar”144 Num tom de voz baixo e arrependido, declara que educou
os filhos em colégio laico, sem nenhuma referência judaica e, seu filho, hoje casado com
uma japonesa vem ao “Lar” visitá-la e ao assistir as palestras ou participar de eventos
religiosos tem apenas um olhar de curiosidade.
Uma imigrante que forjou os documentos como católica, declarou estar vinculada ao
judaísmo somente sob o ponto de vista filosófico e cultural, porém, sua filha, decoradora e
professora da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP) é praticante da religião
judaica.
De modo geral, independente da relação com a religião na época da chegada e, ao
longo da vida, todas entrevistadas identificam-se como judias e participam das distintas
formas de atividades da comunidade, sejam como contribuintes de entidades judaicas,
(82,0% dos casos estudados), sejam em clubes socioesportivos (72,0% participam das
atividades dos clubes judaicos).
GRÁFICO 03 - Distribuição em Porcentagem por tipo de contribuição a entidades
entre as entrevistadas
Não
18%
Entidades
de Israel
14%
Entidade
local
32%
Ambas
36%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela a seguir mostra as diversas formas de contribuição social entre as
entrevistadas.
TABELA 08 - Contribuições Sociais
Contribuições Sociais
Entidade Israelense
Entidade local judaica
Ambas
Número de Entrevistadas
03
07
07
Não contribui
05
Total
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Apesar das diferenças culturais, a construção social foi edificada nos clubes
sociorrecreativos para 16 mulheres entrevistadas.
A tabela abaixo mostra a distribuição das entrevistadas em relação aos clubes a que
se filiaram.
TABELA 09 – Participação em clubes sociorrecreativos
Clube
Macabi
A Hebraica
Outros
Não
Total
Número de Entrevistadas
05
11
01
05
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
GRÁFICO 04 – Distribuição em porcentagem da participação em clubes entre as
entrevistadas
Não
23%
Macabi
23%
Outros
5%
Hebraica
49%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
144 Relato de Suzana a MFW em SP, 2000.
A maneira mais imediata de identificação judaica é a religião e o ponto de inflexão
que merece atenção, refere-se ao ritual da morte, já que 100,0% do universo pesquisado
seguem os preceitos religiosos nos funerais. Esta percepção é reforçada pela resposta
afirmativa de 11 entrevistadas sobre suas filhas terem realizado casamentos endogâmicos.
Ainda que 14,0% das filhas tenham abandonado a religião ou outra forma explícita de
identificação étnica, reiteram a força de imantação com o grupo judaico, pois assim se autoidentificam.
As tabelas abaixo mostram as distribuições entre as entrevistadas de casamentos
religiosos na comunidade e a manutenção da religião herdada na geração seguinte.
TABELA 10 - Tipos de casamento entre os filhos
Casamento dos filhos
Misto
Endogâmico
Civil
Sem filhos
Total
Número de Entrevistadas
06
11
03
02
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
TABELA 11 - Religião que a filha mantém em casa
Religião que a filha mantém em casa
Mais religiosa
Igual a mãe
Menos religiosa
Abandonou a religião
Sem filhas
Total
Nº de Entrevistadas
05
02
07
03
05
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
GRÁFICO 05 – Distribuição em porcentagem da religião que as filhas das
entrevistadas mantêm em casa
Sem filhas
23%
Mais
religiosa
23%
Igual a mãe
9%
Abandonou
a religião
14%
Menos
religiosa
31%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
FOTO 18 – Vista do Muro das Lamentações no setor feminino
1899 - Fotografia do Muro das Lamentações
Fonte: Ulterman145
No entanto, os diversos bairros irão desenhar o novo mapa de São Paulo, ao criar
redutos como microcosmos de cada povo, como temos a Liberdade, local de orientais.
A comunidade judaica tendo sido composta por diferentes grupos culturais,
imigrantes, oriundos da Europa Oriental sob o regime czarista e os provenientes de
pequenas cidades da Europa Ocidental trouxe experiências diferentes entre si. Viveram, na
maior parte de suas histórias, separados da sociedade local, apresentando características
peculiares. Os procedentes do Oriente Médio concentraram-se na Mooca e no Cambucí
145 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p.185
denominados “turcos”; ao passo que o Bom Retiro foi o universo dos ashkenazitas,
apelidados pelos judeus orientais de “gringos”.
As diferenças serviram para apontar semelhanças entre imigrante-cristãos e
muçulmanos, também, do Oriente Médio. Além do idioma, estavam identificados pela
comida, música e a marcante estrutura patriarcal, aproximando as famílias no bairro, onde
fixaram residência e instalaram os negócios. Estavam familiarizados com o comércio de
tecidos, negócios com o que os imigrantes árabes, em geral, de períodos anteriores fizeram
sucesso. Os novos imigrantes foram estimulados ao enraizamento comercial no Brás e na
rua 25 de março146, ao lado de seus conterrâneos, muçulmanos e cristãos.
Entre os ashkenazitas, o maior grupo de imigrantes no período, a resistência à
integração foi grande, permanecendo em bairros étnicos identificados pela origem. Os
judeus provenientes da Alemanha tinham ainda que se livrar do estigma de ariano. Assim,
foi pelo menos, até as décadas de 70/80 do século XX com o apogeu da Sinagoga liberal
da Rua Antonio Carlos – CIP dirigida pelo Rabino Fritz Pinkuss, desde 1962, que também
colaborou para a integração com a comunidade sefardita, ao oficiar alguns casamentos na
Sinagoga da rua Abolição. Estes, os ashkenazitas, em razão de sua maioria, impingiram o
padrão judaico na cidade de São Paulo, tendência só interrompida diante da fundação de
novas sinagogas, a partir de 1980, de cunho mais tradicional ajustadas aos costumes dos
judeus sefarditas e orientais.
Essas diferenças culturais apresentam-se no mundo todo e, mesmo, aos próprios
moradores de Israel. Os espaços para discussões e análises continuam renovando-se e
reformulando os critérios fronteiriços de pertinência ao grupo étnico. Rattner (1977) estudou
a auto-identificação ou auto-reconhecimento147, considerando o judaísmo como fruto da
congruência de valores, que permitem gerar diferentes processos identificatórios, como a
religião em suas diversas formas (ortodoxa, conservadora, liberal), os preceitos, a filosofia
ético-moral, a matrilinearidade148 (com base na Halachá149), a ligação com o mito de origem
que se aproxima na idéia de parentesco e ainda a identificação ideológica e política com
Israel.
Assim sendo, a convivência torna-se a principal forma de perpetuação do grupo
étnico e cada judeu vivencia à sua maneira. Entretanto, a integração entre os diversos
146 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p. 133
147 HERKOVITS,M. When is a Jew a Jew? In: KRAUSZ, Rosa. Problemas de Sociologia Judaica, p.16
148 Matrilinearidade –a mulher é responsável pela herança étnica, mesmo quando não praticante da religião
ou das tradições judaicas.
149 Halachá – prática normativa - UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 112
grupos culturais foi difícil, pois o conceito de grupo é delimitado pelo “patrimônio coletivo”150
cultural, psicológico, entre outros e os elementos devem perceber-se objetivamente
uniformes. Ao constatarem um modo de vida distinto intra-étnico, encontraram-se diante do
dilema de relativizar as diferenças e tornaram-se racionalmente mais amplos e inclusivos,
usando como critério de pertinência a origem histórica, “(....) cidadãos de qualquer
nacionalidade fazendo parte do conjunto de pessoas que formam um determinado Estado,
enquanto permanecem identificados com sua herança histórica”151.
Por outro lado, a cidade de São Paulo com sua pluralidade de estilos de vida
favorecia a integração. O movimento de expansão econômica e a procura por mão-de-obra
aceleraram o processo de confluência populacional modificando o cenário. O movimento na
sociedade local diante do contingente de imigrantes de diversos continentes estimulou a
modificação dos padrões de comportamento, atitudes e enfoques sociais que se refletiram
na família e na condição feminina. A percepção da própria comunidade sobre mudanças de
valores do grupo étnico como de assimilação exigiu de seus líderes uma reavaliação sobre
a consciência e sua significação étnica, conceitos importantes para a manutenção do
grupo152. Tornaram-se brasileiros judeus de uma específica origem.
Segundo Blay (1972), as mulheres aproveitaram as oportunidades de acomodação
social e ocuparam espaços em atividades econômicas, não só na área fabril do início do
século, mas em vários setores produtivos e de serviços em São Paulo.
De acordo com este estudo, e tendo alinhavado suas características, pretendemos
despertar a percepção sobre o pequeno grupo pesquisado, salientando o significado das
ações dessas mulheres empreendedoras, embora muitos não acreditem ou desconsiderem
sua importância. A luta pela sobrevivência exigiu iniciativas que ainda não sabemos
denominá-las. Empresárias ou colaboradoras?
Assim, as mulheres imigrantes judias que iniciaram negócios ou criaram alternativas
utilizando seu capital pessoal e obtendo rentabilidade dos mesmos, contam suas histórias
usando o personagem “nós” - preservando ao homem o papel de provedor e porta-voz
familiar, na clara referência à divisão dos papéis de gênero tão arraigada na cultura judaicopatriarcal.
150 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth, p. 179.
151 HOBSBAWM,E.; RANGER,T. The Invention of Tradition. Cambridge, 1983 .In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, p.54
152 Ibidem, p.72
CAPÍTULO III
EMPREENDEDORAS INVISÍVEIS
FOTO 19 – Mulheres Empreendedoras em atividade
Bar e Café “Jacob” no Bom Retiro Fonte: Acervo AHJB
“A noção de silenciados tem sido valorizada
como um dos objetivos da História Oral, pois, de
certa forma, além de contemplar os “vencidos”,
abre-se também para setores considerados da
“elite”, que também não têm sido contemplados
pela formalidade analítica vigente”
José Carlos Sebe Bom Meihy
No processo de transformação das mulheres, percebemos uma grande diferença,
pois, ao analisar o caso das imigrantes judias, constatamos que as relações interpessoais
sofreram diversas mudanças.
O movimento de saída dessas personagens, como conseqüência das Grandes
Guerras do século XX, não foi espontâneo, mas, fruto de uma história interrompida. Os
homens, enfraquecidos, doentes ou humilhados pela necessidade de esconder-se, e as
mulheres com vestimentas masculinizadas, que as preservavam de ataques masculinos,
tornaram-se guerreiras em defesa dos filhos e pais, lutando por protegê-los. Assim, ambos
abandonaram suas atitudes milenares e apossaram-se de várias atividades em setores que
outrora eram privilégio de uns ou de outros, vivenciando questionamentos sobre os
estereótipos tradicionais.
A necessidade de lutar pela sobrevivência apresentou a oportunidade para
embaralhar os papéis, com urgência e sem muito zelo, iniciando um caminho que garantiu
um novo olhar sobre a capacidade e potencial de cada um, da nova família e de sua
distribuição de poder, sobretudo, das mulheres, vislumbrando, assim, novos contornos
sobre a especificidade dos papéis de gênero.
Apesar dos resultados, esses eram do conjunto familiar, quando muito ficavam
associados às novas qualidades consideradas femininas: a dedicação e o sacrifício pela
família. No cotidiano do papel feminino de donas-de-casa e consumidoras, tornaram-se
agentes da adaptação e encontraram pontos de contato com a comunidade gentia,
estabelecendo os novos parâmetros de relacionamento, transculturação e absorção de
valores da sociedade receptora.
3.1 – Oportunidades e circunstâncias: imigrantes judias
Ao estudarmos, essas mulheres que se tornaram empresárias em São Paulo,
identificamos nas histórias o esforço individual na busca de espaço na sociedade. Tanto
aquelas que passaram a experiência da Segunda Guerra Mundial como as refugiadas que
fizeram parceria com o marido, viveram situações emergenciais e lutaram por soluções,
construindo uma relação de igualdade de responsabilidades, sem subordinação, obediência
ou invisibilidade, priorizando o intrínseco sentimento de sobrevivência e solidariedade.
Assim, mais rapidamente puderam assimilar a mudança social e encontrar novas
alternativas, como o trabalho independente com menor resistência familiar.
É interessante salientar que a sociedade paulistana abrigou e articulou um processo
de integração sem dissolver as características das novas imigrantes, foi um processo de
troca de influência e absorção cautelosa, pois no plano governamental havia fortes
influências fascistas que impossibilitaram ou dificultaram a vinda de outros judeus. Mas a
dicotomia entre o discurso de alguns componentes do governo brasileiro e a realidade
sociocultural encontra-se perpetuada até os dias de hoje. Dessa maneira, consideramos
que o Estado-Novo não modificou os padrões internos da convivência brasileira.153
Assim, dezesseis das mulheres entrevistadas puderam imigrar, identificando-se
como judias: quatro chegaram como cristãs, uma como protestante e, finalmente, uma sem
identificação religiosa.
A tabela a seguir mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas da religião
praticada na origem.
TABELA 12 – Religião na origem
Religião na origem
Número de Entrevistadas
Cristã
Judia
Outros
Total
04
16
02
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Todas as entrevistadas reforçaram a pertinência ao grupo étnico para além da
possibilidade de auto-identificação, o fato de serem filhas de mães judias (a Halachá
considera a matrilinearidade o que define a descendência judaica) e mais, ainda manterem
sua ligação com a comunidade pelo ponto de vista cultural, como pontuamos anteriormente.
Ao avaliarmos mais profundamente as mudanças ocorridas no tocante ao exercício
da religiosidade das famílias das entrevistadas, percebemos uma polarização quanto ao
vínculo religioso, sinalizado por um lado pela “Teshuvá154” (volta aos costumes ortodoxos
judaicos), e por outro o processo de distanciamento da religião, um movimento semelhante
ao constatado nas pesquisas demográficas de Sergio Della Pergola (2000)
As entrevistadas perceberam uma valorização da religião sujeita a vários fatores e
que, num contexto favorável, como o Brasil e, em particular, São Paulo oferece, puderam e
153 SORJ, Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In: SORJ, Bila. Identidades Judaicas no
Brasil Contemporâneo, p. 27.
podem desenvolver mais autenticamente seus interesses seja o cultural, o social, a filosofia
ou a religião.
Assim, a composição do escopo religioso atual do universo pesquisado é de quatro
ortodoxas, dez liberais, quatro conservadoras e quatro vinculadas culturalmente ao
judaísmo.
A seguir, a tabela abaixo aponta a distribuição das entrevistadas sobre sua prática
religiosa atual.
TABELA 13 – Prática religiosa hoje
Prática religiosa hoje
Conservadora
Ortodoxa
Liberal
Só vínculo cultural
Total
Número de Entrevistadas
04
04
10
04
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
As
memórias
e
as
lembranças
anunciaram
mudanças
recorrentes
de
comportamentos e atitudes que redundaram num cotidiano diferente, de acordo com as
possibilidades oferecidas pela sociedade local, nos distintos períodos.
A necessidade, a solidariedade e as oportunidades de relacionamentos deram
impulso e coragem às entrevistadas para o início da história individual como empresárias,
muito embora, a maioria não admita esta definição, considerando-se, no máximo,
colaboradoras. A pesquisa identificou como pontos comuns nos discursos, a necessidade
de sobrevivência e o senso de liberdade social que o espírito de imigrante favoreceu, além
da sorte, como fatores para sua iniciativa.
154 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 31.
A tabela a seguir refere-se à distribuição entre as mulheres entrevistadas dos fatores,
que atribuíram a possibilidade de iniciar o empreendimento.
TABELA 14 - Fatores que imputam a iniciativa empreendedora
A que atribuem a iniciativa empreendedora
Grupo étnico
Ser imigrante
Necessidade financeira
Outros
Total
Nº de Entrevistadas
04
07
03
08
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Numa avaliação sobre o êxito da iniciativa do empreendimento, as entrevistadas têm
uma visão comum de que o fato de ser imigrante desperta o potencial empreendedor pela
necessidade premente de sobrevivência e pela liberdade de escolha como conseqüência
do desenraizamento.
A tabela abaixo aponta distribuição entre as mulheres entrevistadas no início do
empreendimento por período.
TABELA 15 –Data do início do empreendimento
Data do início do empreendimento
05/1948-01/1951
02/1951-08/1954
09/1954-01/1956
01/1956-02/1961
Total
Nº de Entrevistadas
06
10
03
03
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
No universo pesquisado 40,0% das entrevistadas mantêm até hoje seu
empreendimento; no entanto, 40,0% fecharam seus negócios por questões financeiras ou
falta de interesse familiar pela sua continuidade e quase 10,0% não alcançaram sucesso no
negócio, ficando menos de cinco anos em tentativa de melhores resultados econômicos.
Considerando que mais de 85,0% dos empreendimentos foram iniciados no período
de balizamento desta pesquisa, até a data para a imigração 1956, numa cidade em
profundas mudanças socioeconômicas, que torna mais significativo o fato de 90,0% das
entrevistadas contarem com funcionários e para 55,0% empregarem mais de seis
funcionários no processo produtivo
A seguir, a tabela refere-se à distribuição entre as mulheres entrevistadas sobre o
período de duração do empreendimento e o número de funcionários.
TABELA 16 – Duração e número de funcionários no empreendimento
Duração do Empreendimento
1990 Era Collor
Até hoje
Mais de 10 anos até Era Collor
Menos de 5 anos
Total
Número de funcionários
1 a 5 funcionários
Sozinha
6 a 30 funcionários
Mais de 30 funcionários
Total
Nº de Entrevistadas
03
10
07
02
22
Nº de Entrevistadas
10
01
03
08
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Ao analisar a trajetória dessas mulheres e sua inserção na cidade, foi constatado o
uso de seu repertório cultural e educacional no espaço de trabalho como diferencial
favorável. Elas buscaram amigos, conhecidos e conhecidos de conhecidos oferecendo
confiança e novidade. Com base no sentimento de solidariedade entre os imigrantes de
modo geral, vários empreendimentos foram possíveis.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres sobre os contatos no Brasil
que estimularam a emigração.
TABELA 17 – Contatos para a imigração
Contatos para a chegada
Número de Entrevistadas
Família
12
Amigos
06
Conterrâneos
04
Total
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Pelos dados da tabela, notamos que o processo de acomodação e ajustamento das
mulheres imigrantes judias na comunidade paulistana dependeu da força de coesão
familiar. Elas contavam com a aprovação de seus membros familiares ao relatarem suas
conquistas comerciais, sobretudo, dos homens que eram “os donos desse saber”. Essas
atitudes denotam que o manto de submissão ainda envolve as relações e confere papéis,
de acordo com os sexos.
O segmento escolhido pela maioria das mulheres que iniciou sua busca pela
sobrevivência, colocando em risco seu próprio capital que, também, como Sandroni
155
define a empresária como uma “pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra
uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu funcionamento..., assumindo os
riscos inerentes ao empreendimento.....” está relacionado, de modo geral, com o universo
feminino: sacoleiras, costureiras de lingerie, roupas sob medida, roupas infantis
(especialização étnica, segundo Grün156), ou mesmo, “quentinhas” (almoço para viagem),
ou a fabricação de doces, pirulitos e chocolates, buscando um contato inicial com mulheres.
A seguir, a tabela revela a profissão do pai na origem que servirá de referência para
a maioria das entrevistadas.
TABELA 18 – Profissão do pai na origem
Profissão do pai na Origem
Número de Entrevistadas
Artesão
10
Comércio
02
Profissional Liberal
03
Assalariado
06
Fazendeiro/Trabalhador rural
01
Total
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Em 1984, nos EUA, John Rury fez uma análise sobre as “nebulosas” fronteiras entre
formação técnica e a do lar que em muito constituem as bases das empresárias aqui
estudadas:
(....) na base de algumas dessas atividades (como o setor de
confecção e de cozinha industrial) estavam habilidades muito
semelhantes às consideradas importantes para o lar; o que teria
155 SANDRONI,Paulo. Dicionário de Economia, pp. 138/139.
156 GRÜN, Roberto.Intelectuais na Comunidade Judaica Brasileira apud SORJ, Bernardo. Sociabilidade
Brasileira e Identidade Judaica. In: SORJ, Bila. Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, p. 137
então ajudado a “borrar” a distinção entre a preparação
industrial
/
técnica e preparação doméstica.157
Pautados nesse contorno nebuloso sobre a formação profissional, constatamos que
as linhas divisórias no universo pesquisado foram a capacidade e a habilidade para romper
os
arranjos
idealizados
e
arriscarem-se
com
seus
conhecimentos,
acumulados
empiricamente, pois, só quatro das entrevistadas tiveram preparação formal para o
trabalho, as demais aplicaram a experiência vivenciada na família ou aproveitaram
oportunidades. Na “nova terra”, as mulheres imigrantes buscaram em suas entranhas a
solução para a sobrevivência econômica. Neste estudo, constatamos que 50,0% das
entrevistadas encontraram-na com base no conhecimento adquirido da família de origem.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas sobre a
formação profissional.
TABELA 19 – Formação profissional da entrevistada
Formação Profissional
Familiar
Formal
Experiência Própria /Oportunidades
Total
Nº de Entrevistadas
11
04
07
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
É importante observar que a educação formal ou profissionalizante não era dirigida
às mulheres, pois destas não era esperado o sustento da casa, salvo entre as famílias
religiosas, enquanto o marido estudasse. A afirmativa é endossada pelas diferenças
atribuídas às oportunidades educacionais entre os filhos e sua hierarquia, que dota o
primogênito de privilégios frente aos demais, preterindo as filhas em 37,0% das famílias
entrevistadas, perpetuando os valores patriarcais.
157 BRUSCHINI, Cristina;SORJ, Bila (Org.) Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 194.
GRÁFICO 06 – Distribuição em porcentagem dos privilégios concedidos entre os
gêneros na origem
Mulher não
37%
Iguais
36%
Primogênito
27%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela, a seguir, destaca a distribuição das mulheres entrevistadas as diferenças
oferecidas entre os filhos sobre a educação na origem.
TABELA 20 – Privilégios entre irmãos / filhos sobre a educação na origem
Privilégios entre irmãos / filhos sobre a
educação na origem
Mulher não
Primogênito
Iguais
Total
Nº de Entrevistadas
08
06
07
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
As mulheres entrevistadas relatam a respeito da valorização da educação das
diferentes formas, nas hierarquias criadas entre os filhos. No começo do século, tanto na
Europa como no Oriente Próximo e Médio costumavam privilegiar os filhos homens na
educação formal e, quase 30,0% dos casos estudados apontam prioridade aos
primogênitos.
No entanto, essa conduta não se repete na família imigrante, na qual a preocupação
com os estudos era um diferencial do grupo étnico. Constatamos que a geração seguinte
conquistou o segundo grau completo como nível mínimo educacional. Portanto, não
surpreende que, quase 36,0% das filhas das imigrantes estudadas tenham formação de
nível universitário. Conforme demonstra a tabela a seguir, quanto à formação das filhas das
imigrantes entrevistadas.
TABELA 21 – Escolaridade das filhas
Formação das filhas
Universitário
Profissionalizante
Especialização
Sem filhas/ II Grau
Total
Número de Entrevistadas
08
07
02
05
22
GRÁFICO 07 – Distribuição em porcentagem quanto ao nível de formação das filhas
das entrevistadas
Sem filhas
23%
Universitário
36%
Outros
9%
Profissionalizante
32%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Destas, 63,0% contribuem na economia familiar exercendo profissões diversas, não
desconsiderando que no contexto das décadas de 70/80 do século XX, o mercado de
trabalho apresentava incremento na absorção da mão de obra feminina. Mas, seguindo os
passos de autonomia profissional de suas mães, 44,0% das filhas optaram por serem
empresárias ou profissionais liberais e assim contribuem para a economia do lar. Esses são
os resultados das mudanças promovidas pelo esgarçamento dos códigos sociais que
aumentaram o espaço de ação das mulheres, sem minimizar o papel social dos homens.
GRÁFICO 8 – Distribuição em porcentagem da contribuição das filhas das
entrevistadas na economia familiar
Sem filhas
23%
Executiva
22%
Empresária
14%
Não contribui
14%
Outros
5%
Prof. Liberal
22%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo aponta a contribuição da filha das entrevistadas na economia da
família.
TABELA 22 – Contribuição das filhas na economia familiar
Contribuição das filhas na economia
familiar
Executiva
Empresária
Profissional Liberal
Outros
Não contribui
Sem filhas
Total
Nº de Entrevistadas
05
04
05
02
02
04
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
No entanto, esse comportamento de “sair sem endereço conhecido”, negociar,
arbitrar preços, carregar e apresentar produtos, manusear dinheiro e falar com
desconhecidos das desbravadoras do território público, era acompanhado de uma
importante peça na bagagem: a família. A indicação e a referência eram partes do cartão de
visita que endossava um empenho ideológico, ao mesmo tempo, dava a conotação de
proteção. Essa lógica é composta de marcante diferença, encontrada na valorização dos
papéis tão exemplarmente definida por Piscitelli158;
158 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 104.
Mulher => Feminilidade => Família => Cooperação => Amor
Homem => Masculinidade => Trabalho => Competência => Dinheiro
Assim, as mulheres realizaram as tarefas e omitiram atitudes cumprindo a divisão
das competências. Ao selecionar o universo a ser entrevistado entre as mulheres
imigrantes judias, que utilizaram o próprio capital (dote ou herança e acima de tudo sua
capacidade de criar crédito), constatamos a dificuldade na percepção da propriedade
pessoal. Para as mulheres, a definição de propriedade mantém-se nebulosa, mesmo
quando a origem do objeto estivesse clara para ambos, como a louça da casa da mãe, as
meias defeituosas que o tio deu, jóias da própria família, enxoval. O fator refletiu-se na
significativa restrição ao número potencial do universo a ser pesquisado.
Dentro dos relatos pesquisados, constatamos que a grande maioria ao implantar o
empreendimento por conta e risco, nos casos de êxito e expansão incluiu o marido, pai e
irmãos, justificando
Para Myetta, “mulher ganhar dinheiro é prêmio, para o homem é obrigação”.
“Tão logo pude meu filho assumiu os negócios. Isso é coisa de homem.”, como se refere
Margareth.
Luiza afirma: ”eu comecei a costurar e não era trabalho, depois costurei para
as amigas e foi virando pequena produção. O meu marido ampliou e tornou isto um negócio
de verdade e eu continuei dando as idéias”
As demais para as quais a experiência não resultou em nada além de:
Para Margareth “a solidariedade é uma marca, o resto é questão de sobrevivência”
Daniela afirma: “a mulher inteligente não fica na vitrine”.
A participação dos membros da família das entrevistadas no empreendimento foi a
estrutura formada por 77,0% das entrevistadas, porém sem haver o pagamento de salário
formal, as despesas eram inseridas no fundo familiar.
A tabela abaixo indica a distribuição da participação da família das entrevistadas no
empreendimento.
TABELA 23 – Participação familiar no empreendimento
Participação da Família
Não
Sim
Total
Nº de Entrevistadas
05
17
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
As oportunidades do sistema capitalista permitiram que as mulheres, assim, como os
homens pudessem tornar-se empresários, embora a feminização de certas ocupações,
como o trabalho em domicílio, seja uma herança que ainda reside no ideário social da
burguesia. Na Revolução Industrial, as mulheres já participam significativamente da
indústria manufatureira e: “a idéia de que toda mulher deveria ter uma ocupação que
contribuísse para seu sustento já era corriqueira”159
A participação crescente das mulheres começou a separar a casa do local de
trabalho. Entretanto, a manutenção do tratamento como indústria doméstica ainda traz em
seu bojo a concepção invisível da remuneração familiar incluída na soma paga ao chefe de
família.
Durante o século XIX, a tenacidade da divisão sexual do trabalho é revelada.
As ideologias cujas manifestações materiais estão incorporadas
são reproduzidas dentro da família e depois para a produção social,
assegurando com que mulheres fossem as que se transferissem para
as posições subordinadas e auxiliares160
Desta forma, a industria têxtil e a confecção foram as formas que melhor se
adaptavam às características femininas e continuam mantendo o modelo domiciliar que
garante a flexibilidade da carga de trabalho, ao mesmo tempo, em que se equilibra frente às
distintas necessidades sazonais.
A noção de trabalho “leve ou pesado” perpassa pela definição “das categorias
possíveis às mulheres nem sempre de acordo com o esforço necessário”161. Em
contrapartida, a disciplina e a especialização mantêm a baixa remuneração do serviço, que,
159 ABREU, Alice Rangel de Paiva. O Avesso da Moda: Trabalho a Domicílio na Indústria de Confecção, p 60
160 Ibidem, p. 67
161 Carola,C.Renato As trabalhadoras nas minas de carvão de Santa Catarina(1937-1964) In: MORGA,
Antonio Emilio(Org) Historia das mulheres de Santa Catarina, pp.121-133.
em sua maioria, é composto de mulheres comprometidas com as tarefas domésticas e com
os filhos, colocando-as sempre diante da equação sobre a distribuição do tempo diário.
O círculo vicioso é mantido pela inércia frente ao sistema patriarcal e diante da
instabilidade da remuneração, a própria mulher minimiza sua participação na economia
familiar, muito embora essa renda possa custear itens importantes ao grupo. No entanto, o
próprio posicionamento feminino de que sua contribuição é ajudar162, supervaloriza o papel
masculino em sustentar a família, alimentando o argumento da desigualdade e não
equiparação de rendimentos.
É importante ressaltar que as mulheres judias estão mais ainda envolvidas com sua
primordial responsabilidade, a família. Ao equacionar seu tempo, colocam como prioridade
o marido e os filhos, e só usam o tempo que não põe em risco suas funções maiores
garantindo o reconhecimento sociocultural positivo.
As possíveis atividades a serem exercidas serão escolhidas, visando a privilegiar a
família em algum aspecto, isto é, se houver a necessidade de um incremento econômico,
buscará atividades alternativas. Entretanto, isto nos remete ao declínio do número de filhos
por família, sendo mais acentuada essa diferença nas áreas urbanas e classes sociais mais
altas ou com maior escolaridade, possibilitando mais rápido às mulheres uma imediata
mudança de seu ciclo vital e, estando os filhos em idade escolar, abriram-lhes um espaço
de tempo produtivamente econômico.
Dentro do aspecto familiar, a convivência domiciliar com parentes facilitou a
realização da participação econômica feminina, dada a presença de outros adultos no lar
que podem responsabilizar-se pelas crianças e tarefas domésticas.
Diante do exposto, não é surpreendente como as entrevistadas apresentam-se:
colaboradoras e ou cooperadoras. Minimizando os fatos, para não dizer ocultando, até se
tornarem invisíveis na história dos negócios que iniciaram. Não raro, por insistência de
contemporâneos,
intitulam-se
como
co-responsáveis,
não
assumindo
seu
papel
empreendedor, perpetuando a biografia oficial que conhece as ações e mantém as
personagens invisíveis.
Este trabalho mostrou-se diferente de outros estudos sobre empresários como o de
Piscitelli163, nos quais as características femininas ganharam um tom neutro dentro das
atividades da descendência. No grupo estudado, as mulheres imigrantes judias não
projetaram uma durabilidade para seus negócios, valorizaram os estudos para os filhos e
162 NAISBITT,John; ABURDENE,Patrícia. Reinventando a Empresa, p.217.
163 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 97.
filhas, respeitando o aprimoramento intelectual e o crescimento pessoal, de acordo com a
vocação e a ambição de cada um dos descendentes. Perante a falta de envolvimento dos
filhos, em geral, a maioria dos empreendimentos esgotou-se com seus fundadores.
Assim, o empreendimento “era a solução”164 econômica, como não havia projeto de
profissionalização administrativa, a perenidade do empreendimento ficava ligada à
capacidade produtiva dos pioneiros.
Ao apresentar a história de mulheres que foram buscar soluções coerentes com suas
próprias iniciativas, sobretudo, pelo fato de terem sido consideradas inexistentes, a história
assumida da empreendedora no mundo da moda, Myetta Garon, mereceu destaque,
conforme transcriação sob o título de “História Assumida”. A seguir, alguns anúncios
publicados no período pesquisado, na mídia impressa, demonstrando a existência de
empreendimentos nos quais a representante da atividade econômica era mulher.
FIGURA 01 – Anúncio do Atelier de Costura Ariela
Fonte: Revista Shalom fev/ 1967- p. 31
Acervo AHJB
FIGURA 02 – Anúncio do Grand Prix em Revista
.
Fonte: Revista Desfile set/1979
164 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000.
Acervo Myetta Garon
FIGURA 03 – Página de jornal dos eventos e anúncios
Fonte: Jornal ” Aonde Vamos” de fev /1949 – p.19
Acervo AHJB
FIGURA 04 - Anúncio em alemão de Modas Margarida
Fonte: Jornal “Crônica Israelita” de 31/01/1952 – p.10
Acervo AHJB
FIGURA 05 – Anúncio de Ester Gorovitz
Fonte: Jornal “Aonde Vamos” de fev /1949 – p.18
Acervo AHJB
3.2 - Myetta Garon, uma História assumida165
A entrevistada aceitou participar de novo encontro para que seu relato fosse gravado
tornando a entrevista “ponto zero”166 que após receber o tratamento de transcrição,
textualização167, transcriação168 foi aprovada conforme segue:
“Meu nome é Myetta Garon .
Eu vou falar desde o tempo quando menina, já sonhava com moda, modelos e
figurinos. Isso começa ainda lá na Romênia, onde as mulheres eram muito bonitas. Eu,
também, já fui muito bonita.
A cidade de Bucareste, onde eu nasci, tinha uma vida social muito chique e, por isso,
era chamada de “Pequena Paris”. Todo final de semana tinha uma apresentação diferente
de uma peça de ópera. Matinal, menos formal, e à noite para os adultos, como eu era da
ala jovem com meus 15 - 16 anos, ia de manhã com minha prima Anita, ela era secretária
165 Entrevistada por Marie Felice Weinberg, na cidade de São Paulo na tarde de 4/12/2001 em seu
apartamento em Higienópolis, em fase final de encaixotamento para a mudança.
Essa entrevista foi gravada e passou pelos processos de transcrição, textualização e esta apresentação é o
resultado de sua transcriação. (Menhy).
A publicação foi aprovada pela entrevistada embora tenha sofrido a censura de seus filhos em certas
partes que melhor detalhavam cada um deles. A supressão desses trechos não prejudicou o entendimento
das nuanças da história e, sim, colaborou para reiterar o papel masculino que o filho já exerce sobre a mãe
que se resigna ao papel de aposentada.
166 O ponto zero “é um depoente que conheça a história do grupo ou de quem se quer fazer a entrevista
central” . MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino-americana: o caso do Brasil, p. 84.
167 Textualização é uma fase posterior à transcrição, e “nesta fase, suprime-se as eventuais perguntas que,
fundidas nas respostas, superam sua importância”. MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino
americana: o caso do Brasil, p. 90.
168 Transcriação “se compromete a ser um texto recriado em sua plenitude. Com isso, afirma-se que há
interferência do autor no texto…”. MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino americana: o caso do
Brasil, p. 91.
da embaixada. Era com ela que eu ficava conversando durante as grandes festas
religiosas, quando íamos à sinagoga. A comunidade judaica lá, não era tão fechada como
em outras cidades menores, era liberal, era uma cidade de gente muito para frente. Por
essas e outras, nós não entendíamos nada das rezas, éramos nariz em pé como se dizia e
falar romeno, era mais chique do que aprender o ídish. Eu, por exemplo, estudei francês,
inglês, pelo menos, durante 12 anos.
Depois que deixamos Bucareste, a filha da minha prima foi para Nova York. Ela
largou o marido, que não era judeu e foi embora com a filha para Nova York. Esta prima e
todos os demais eram da família de minha mãe. Do lado de meu pai, eu vi o pai dele uma
vez só. A família de meu pai era de Odessa na Rússia. Imigraram direto para Israel, onde
eu vi este avô, mas logo faleceu. Eu conheci um irmão do meu pai, um cara muito bonito,
foi ainda em Bucareste, porém depois eles foram para Israel noutra cidade não sei qual e
nunca mais os vi. Então com quem eu cresci ? Foi com a família da minha mãe. Ela tinha
um irmão que foi para Filadélfia, onde nasceram seus oito filhos, três morreram, dois na
aviação e uma menina que morreu queimada ainda de 12 anos. Ficaram cinco.
Este tio era 20 anos mais velho que minha mãe. Ele saiu da Romênia, quando
minha mãe ainda era pequena, e só voltaram a se ver muito tempo depois. Marcaram um
encontro, desses que para reconhecer um ao outro precisaram combinar sinais, ele pôs
uma flor na orelha, mas ela reconheceu sem nem olhar a flor, era tão parecido com ela...
Quando eu quis conhecer esse tio, fui para Filadélfia. Hoje ele mora num lar. Lá é costume
que os velhos vivam em asilos, e custa muito caro. Eu fui vê-lo, mas eu não gostei de lá.
Um lugar ajardinado como este daqui, o “Lar Golda Meier” com muitas atividades, shows,
restaurante... Nesta visita, ele me cantou uma canção em Romeno, imagina! Ele lembrou
alguma coisa de 70 anos atrás, pelo menos. Eu soube que ele continua assim, cantarola
com os cinco filhos e as quatro filhas, e uma é a secretária de um ministro muito importante.
Bem, meus estudos foram numa escola normal e uma outra profissionalizante. Lá,
em Bucareste poucas mulheres trabalhavam fora. Eu já me sobressaia desde os tempos de
escola com meus desenhos expostos. Esse é um dom que descobri cedo.
Nos meus 16, 17 anos, montei um atelier em casa. Nós, meus pais, meu irmão e eu
morávamos numa casa alugada. Ela era muito grande e foi sublocada para nossa família.
Aliás, esta proprietária tinha piano e começou a dar aulas para mim e ao meu primo que se
tornou famoso em Nova York, onde mora com a família. Levei uns bons anos para
aprender. Fiz o mesmo com a minha filha. Vivian estudou durante sete anos piano.
Nos fundos da casa, ficava meu atelier. As aulas foram um bom exercício. No
começo, eram roupas para as minhas amigas e depois foi aumentando até formarmos uma
equipe de oito pessoas de alta costura. O dinheiro que entrava, era para comprar mais uma
boneca-modelo, era o que eu queria.
A Escola especial de corte costura chamava-se Flameng. Pela manhã, eu ia à escola
regular com aulas de francês, inglês, história, matemática, essas coisas! A tarde era a hora
mais importante e deliciosa! Este é um dos cadernos. A maravilhosa caligrafia, desenhos de
exemplos, tudo caprichado...Um dia, quem sabe, vou traduzir. Por conta deste curso, meu
atelier foi ganhando notoriedade e enquanto não tinha muito que fazer, eu ia inventando
modelos e produzindo roupas, que ficavam expostas nas araras. As pessoas que
freqüentavam a casa, olhavam as mercadorias e saiam comentando. Era muito engraçado!
De repente, tocavam a campainha, perguntando pela dona...
A dona era eu!!!... Mas eu não me apresentava assim, provavelmente, elas não
teriam confiança naquela jovem. Aos poucos, foram descobrindo que aquela mocinha era “a
Dona que sabia cobrar”, era assim que falavam!
Meu pai era comerciante, acho que aprendi com ele a negociar e a minha mãe, uma
grande dona de casa. Ela sempre falava para mim: “Você vai respirar ar lá fora”. Ela foi a
mentora de tudo.
Numa conversa entre ela e uma amiga, a professora de matemática, que surgiu a
idéia de não me mandar para o Liceu, lá se chamava Litchel. O Liceu era uma escola
feminina de secretariado. Seria mais interessante aproveitar meu dom na área de moda. E,
assim, eu fui para a escola Princesa Sandra, quando me formei, fui convidada a ensinar.
Foi muito importante ter uma formação teórica, porém eu sonhava com a tesoura, os
tecidos as cores...E não com giz, lousa, alunas...
Fiz o estágio de conclusão de curso num atelier que minha mãe conseguiu para mim,
num atelier de alta costura chamado Panet. Era uma casa, era muito chique, muito linda! Eu
não recebia salário, entretanto o combinado era ficar na sala de provas. É lá que se
aprende. Eu fiquei lá por uns três ou quatro meses, até a chegada do inverno. Aconteceu
até um episódio interessante! Como era inverno e aquele ano foi, especialmente, rigoroso,
um gelo! As pessoas usavam todos os casacos e botas possíveis para se proteger da neve.
Um dia, uma senhora chegou ao atelier e pediu que eu tirasse a sua bota. Quando contei à
minha mãe, ela ficou tão indignada, que me tirou de lá.
Surgiu a idéia desse atelier em casa! Moravam em casa duas meninas que vieram
do interior para estudar, eram daquelas famílias do interior, muito ricas. Eles mandavam
sacos de farinha, sacos de milho, de tudo que uma casa precisa, até ovelhas, não vivas,
mas prontas para cozinhar. Era uma fartura para nós da cidade. Essas duas meninas é que
me ajudaram a começar o atelier.
Depois de um tempo e de bastante prática, veio a guerra e...Eu era muito jovem, tão
jovem que não sei quantos anos eu tinha na época. Em todo caso, hoje tenho 73 anos. Não
os sinto porque eu trabalhei toda vida com meu hobby!
Veio a guerra...Eu vou pular este pedaço, conforme combinamos, não vamos falar da
guerra.
Quando os familiares, amigos e vizinhos começaram a emigrar da Romênia, nós
tentamos ir para os Estados Unidos, mais precisamente queríamos a Filadélfia onde parte
da família da minha mãe já estava instalada. Uma prima foi para Los Angeles, onde casou
com um ortodoxo, mas, não ortodoxo judeu, russo. Eles se entendem muito bem e têm um
filho que já é arquiteto. Quando vamos... Quando eu costumava ir, era na casa deles que
me hospedava, com seis lindos e bem-decorados dormitórios, toda espaçosa, uma casa
linda! O chão de mármore preto e a escadaria com tapete rosado. Uma suntuosidade! A
mulher dele trabalhava e ajudava, ela é engenheira hidráulica.
Em 46 ou 47, a saída da Romênia, só estava permitida para Israel. Meu irmão foi
quando os ingleses saíram de lá, deve ter sido.
Michel teve um bom emprego em Israel, trabalhou num navio, mas antes de trabalhar
no navio ele lutou com os ingleses. Quando eu e meus pais chegamos, já havia terminado a
guerra, foi quando ele começou a trabalhar no navio como camareiro. Ele trazia de
Nápoles-Itália bijuterias muito bonitas, finas, caixas inteiras. Todo mundo fazia assim, cada
um trazia alguma coisa. Ele casou lá, mas suas duas filhas nasceram aqui e ele tem oito
netos. A filha mais velha mora em Campinas e está convidando o Michel para morar lá. Ela
tem uma casa muito grande, tem um jardim com árvores frutíferas, mas ele não vai
agüentar os seis netos... para lá e para cá, todos os dias? Ele é um boa vida...
Foi após a Independência que chegamos em Israel. Ficamos lá por sete anos. Eu
consegui um bom trabalho e o melhor...Na minha área, era numa das lojas mais bonitas da
época. Ficava na Rua Hershon, lá me tornei diretora de atendimento da seção de alta
costura. Fui reconhecida pelos meus patrões a ponto de ser convidada a ser sócia. Recebi,
mais ainda, um convite para retornar caso a experiência do Brasil não desse certo. Isso foi
muito gratificante e encorajador.
Durante a travessia ao Brasil, tivemos aulas de português com um viajante professor
da Berlitz, foram duas semanas e ajudou a passar o tempo também.
Quando chegamos, fomos morar no centro da cidade, e eu comecei a trabalhar
numa alfaiataria já com a freguesia montada. O dono era um grande alfaiate com clientes
da alta sociedade. Ele com paletós e blaizers, e eu poderia fazer os vestidos, blusas, saias.
Devagar as freguesas passaram a querer o meu corte com a modelagem diferenciada, uma
linha mais feminina...Fui sutilmente convidada a me desligar.
Devagar eu fiz amizades, grandes amigas! Eram romenas na maioria, pela facilidade
da língua. Nina não era romena, ela vinha da Polônia. Eu era amiga da Rita da Viva Vida,
era também romena.
Mudei para o Largo do Arouche, aluguei a loja. Uma loja muito bonita com uma
enorme vitrine que montava de maneira muito sofisticada. Eu expunha uma peça de roupa
de cada vez e um buquê de flores. Tudo era tão elegante que o pessoal tinha medo de
entrar. Eu usava um daqueles “tubinhos”, um básico, pérolas compridas e salto alto. Era o
máximo! Era demais para o lugar ou para a época, sei lá. Resolvi me vestir mais esportiva,
fantasiei a vitrine e logo começou a aumentar o movimento. Aos poucos, fui
contratando...Uma modelista, depois uma costureira...
Uma das costureiras não falava português, só falava francês e, para mim, era bom,
afinal eu não fiz uma escola em português, eu fui formada na arte em francês, embora o
português fosse um idioma bastante próximo ao romeno, no som é claro, mas as palavras
de meu ofício, essas, eu só as encontrava no francês, acho que é assim até hoje.
Começaram as viagens para o exterior, eu trazia roupa para revender. Lembro de
uma saia plissada e xadrez, trouxe de Paris e vendi todas como água, para pessoas
abastadas como os Klabin. Um dia, eu vestida com a tal da saia, recebi a esposa do pintor
Lasar Segal. Ela comprou a minha saia e saiu vestida. Foi muito engraçado!!
Viajei muito, desde o começo foram 31 anos, pelo menos, duas vezes por ano.
Fazendo a conta... Fui 62 vezes para Europa... Paris, Roma, Firenze, Milão, Londres,
Mônaco, Dusserdorf e... Sei lá, por tudo onde houvesse moda. Fui umas 40 vezes para
Nova York, Los Angeles, Filadélfia...
As primeiras viagens eu fiz com uma agência de turismo que organizava excursão,
especialmente, para confeccionistas, participavam pessoas do Rio de Janeiro também. Aqui
de São Paulo, fizemos um grupo muito bom, a Dona das Calças Berta, a Edith que também
tinha uma fábrica com cinco ou seis lojas e está trabalhando mais com pronta entrega de
blusas e malhas. A Nadia morreu, já não lembro do nome da malharia. E durante 30, 31 ou
32 anos, a cada estação, quero dizer, duas vezes por ano, uma no inverno e outra no
verão, viajávamos para ver a moda, principalmente, os desfiles.
Meu interesse era pela alta costura, com aquele acabamento chamado feston, não a
máquina ou overloque, tudo à mão, um acabamento muito fino, quando bem-feito!? Em
Paris, era a Alta Costura!! As minhas companheiras iam aos lugares de atacado como Saint
Dennis. Eu ia ao Avenue Montaigne, na Dior, no Valentim, Givenchy, todo esse mundo não
é que eu gostava. Aquilo que me interessava, eu desenhava lógico! Não podia comprar
tudo, fotografava escondido. Tinha que saber fotografar. Às vezes, eu ia ao banheiro para
desenhar alguma coisa importante. Eram muitos detalhes. Outras vezes, eu saía, por
exemplo, na Montaigne na esquina do outro lado da rua, tinha um café, eu tomava um
refrigerante ou qualquer coisa e sentava para desenhar. Eu me lembro que na Galeria
Lafayette precisava sair do andar, cada andar tem um tipo de mercadoria, sentava na
escadaria de um andar para outro, descia, subia, era cansativo. Já não é fácil sentar na
escada e desenhar. E se esquecia algum detalhe?! Precisava voltar, ir lá de novo e mais
sobe, desce, senta, levanta...
Quando eu comprava alguma coisa, era em lugares como o Rue d’Abouquir, Saint
Denise, onde os preços eram melhores e, assim, podia revender, porque da alta costura
não podia comprar, só meias, écharpes, coisas, assim, batom, perfume.
Muita coisa eu vivi naquelas tantas vitrines!! Muita coisa maravilhosa como Saint
Laurent e a sua inspiração! Para tudo isso, eu precisava estar vestida elegantemente,
usava um manteaux de vison que encomendei em Nova York, lá onde a Madame Rosita
encomendava, e lá estava eu nas primeiras cadeiras dos desfiles.
Não ficávamos só nisso. Íamos a restaurantes, algumas noites em shows, um
ballet... Durante um tempo, os maridos também vinham, às vezes, eram as esposas que
acompanhavam, mas, a maioria era empreendedoras mulheres. Mas, ultimamente, pelo
menos nos 15 últimos anos, o grupo era: Eu, a Nádia, Edith com as lojas, as Calças Berta,
a Mizela ou Gisela com a malharia e a Nádia. Algumas morreram, uma pena! Mulheres
trabalhadoras e muito inteligentes! Esta, das calças Berta, casou de novo e o marido tem
fábrica de malharia.
A Confecção Nadir, também, acabou, infelizmente, ela morreu, era uma mulher muito
inteligente que também falava diversos idiomas. Ela era acho que da Iugoslávia, não sei...
Muito despachada. Ela sempre me pedia para desenhar alguma coisa de alguma vitrine.
Não me atrapalhava, porque ela fabricava uma mercadoria mais barata, então, eu
desenhava rápido, eu desenho, rapidinho, eu faço ainda bem rápido.
E o atacado apareceu na minha vida de pronta entrega e sob medida. Depois de
uma conversa com amigos nossos, que estavam enriquecendo com uma malharia para
atacado. Eles sugeriram apostar no mercado atacadista, com uma pequena coleção. E a
minha vida mudou de novo...
FOTO 20 - Myetta Garon na preparação de um desfile da coleção de inverno em 1992
Fonte: Acervo de Myetta Garon
Então, nós, meu pai e meu marido, depois meu irmão, começamos no atacado.
Bem, fiz uma primeira e pequena coleção. O meu primeiro cliente atacadista foi o
dono de uma loja que se chamava Trianon, fiz a coleção no tamanho 46. Eu não sabia, não
sabia fazer atacado, eu engordei um pouquinho fiquei entre 44 e 46, fiz do meu tamanho, e
se não vendesse?...Eu usaria! Este cliente me explicou sobre as vantagens da
apresentação no tamanho 42, a roupa ficava mais modelada, a peça mais atraente e até
mais econômica. Ele me ensinou. E começamos a vida do atacado...
Eu trouxe uma reserva de dinheiro de Israel, mas não muito. Saí daquela loja. Meu
marido já não tinha bons resultados como representante de lingerie. Meu pai, preocupado
com minha segurança, sugeriu...”Se o marido entra, entra o irmão” e, assim, foi. Alugamos
um espaço para pronta entrega também. O clima era outro. O inverno era forte e a coleção
crescendo, chegou a ter 30 peças de diferentes modelos de manteaux.
Ultimamente, se tivessem dois modelos, já era muita ousadia. Devagar a coisa foi
engrenando, até o governo inventar um viaduto, este que passa pelo Largo do Arouche.
Precisaram demolir uns prédios, umas casas e, assim, mudamos para a Rua Vitória. A
minha mãe tinha alguns conterrâneos que ajudaram muito e desde o começo. Eles
ofereceram um galpão com 600 metros quadrados, era muito grande, e eu construí uma
grande fábrica, eram mais de 100 funcionários e representantes.
Eu comecei com a oficina e a minha mãe trazia pratos bonitos e muito gostosos para
a hora do almoço. Ela cuidava dos meus filhos pequenos, depois pude ter duas
empregadas, sendo uma faxineira e a outra mensalista. Eu tive uma empregada chamada
Dulce, que ficou 17 anos na minha casa. A Vivian, minha filha tinha cinco anos, quando ela
entrou para trabalhar conosco e logo, três meses depois, nasceu o Sérgio, com a minha
mãe sempre por perto. Ela faleceu em Israel, numa viagem para Europa e Israel, e morreu
lá. A gente a trouxe para cá, para ficar sempre por perto...
O Sérgio está aqui em São Paulo, mas, não por muito tempo. Ele cursou
administração, pós em Illinóis, trabalhou na Nestlé, Philips, trabalhou num banco suíço e
agora presta consultoria. Ele tem 35 anos, não está casado porque quer ir embora. Com
uma mulher, um peso, uma responsabilidade... talvez uma criança? Ele não poderia ir,
assim para outro país, assim tem mais oportunidades. Sei lá! É sorte!
A Vívian, minha filha, trabalha no departamento obstétrico e está estabelecida em
Cuiabá. É uma cidade em franca expansão e grandes oportunidades, mas não tem
sinagoga, nem Mohel (o especialista religioso que faz a circuncisão), não tem nada disto;
acho que deve ter umas oito famílias de judeus nada mais. Meu genro é médico cirurgião
vascular, não judeu, mas é gente muito boa e eles se entendem muito bem; resolveram a
circuncisão dos filhos no hospital.
Eu vou para lá. Vou curtir os meus três netos. Pensei em talvez trabalhar por lá, mas
ela não vai me deixar, ela acha que é tempo de ter tempo.
...Para os meus filhos crescerem, muitos rolos de tecido foram enfestados, quero dizer
tecido esticado em camadas para cortar um determinado modelo e tamanho. Cresceram,
estudaram, viajaram e tudo graças ao sucesso da Grand Prix. E cada vez melhor, até
começarem a me roubar.
A nossa marca chamava-se Grand Prix, era muito conhecida, nós tivemos bastante
sucesso. O maior roubo foi a minha maior decepção. Um representante que trabalhava, há
18 anos conosco! Vinha na hora do almoço, mas assim ele não falava com os donos, isso
era muito estranho. Para mim, era distante, eu queria saber dos comentários da clientela
dele, eu não me preocupava com os acertos, a parte administrativa não me interessava. Eu
gostava de ficar nas vendas, nas viagens, fazia modelagem, escolhia padronagem, fazia
coleção...Enquanto eu estava numa destas viagens pela Europa, ele pegou mais de 100
peças e vendeu para não sei para quem. A verdade, sempre faltava uma coisa e outra, mas
nós fechávamos os olhos. Isso não é bom para nenhuma firma. Enfim, para encurtar a
história, eu fui lá na expedição, consegui o endereço através da indicação do motorista e
encontrei a nossa mercadoria. Pegamos a mercadoria de volta. Abrimos um processo, mas
eles tinham um advogado amigo e... Nada aconteceu.
Passou o tempo e mudamos para uma loja na Rua Oscar Freire, uma loja de
mármore branca e uma escadaria enorme. A gerente da loja era a dona do prédio e
começou a me roubar... de novo esse problema! Eu não podia mandar ela embora, ela era
a dona do prédio, então, eu saí de lá. Abri na Rua Prates, lá no Bom Retiro, com aluguel
mais barato, uma fábrica nos fundos, e na frente, era de novo uma pronta entrega muito
grande. Quando eu fechei o negócio, vendíamos quatro mil peças-mês, além da pronta
entrega.
Houve um tempo bom, eu sempre viajava e trazia e fazia a moda. Eu gostava muito
do meu ramo e sempre aparecia nas revistas, a Grand Prix era muito conhecida, nós
tivemos bastante sucesso.
FIGURA 06 – Matéria de revista sobre a empresária Myetta Garon
Fonte:Revista “Desfile”- Ed. 09/1979
Acervo Myetta Garon
Com essas e outras histórias é que eu vou para a Casa da Vivian em Cuiabá. Vou ter
hora para viver outros dons que nunca é tarde para descobrir e... lembrar de outras tantas
histórias”.
3.3 - Empresárias – Histórias Recontadas
O universo pesquisado foi sobre 22 mulheres imigrantes, e o número não é aleatório,
são 17 de origem ashkenazita, mas este foi o limite imposto para que tivesse significância a
participação das três mulheres de origem sefardita e duas orientais, que aceitaram
participar, contando sobre a luta que travaram pela sobrevivência.
A tabela a seguir apresenta a distribuição das entrevistadas, de acordo com seu
grupo cultural identificado pelo idioma étnico.
TABELA 24 – Grupo Cultural Judaico
Grupo Cultural
Oriental
Ashkenazita (ídish)
Sefardita (ladino)
Total
Número de Entrevistadas
02
17
03
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Este número confirma a existência do universo de mulheres imigrantes judias, que se
tornaram empresárias, por outro lado, essa distribuição é resultante das estruturas
familiares judaicas, em especial, as sefarditas e orientais serem mais acentuadamente
patriarcais e conservadoras se comparadas com as oriundas da Europa Central e Oriental.
Acentua-se, ainda, como conseqüência da divisão dos papéis por serem: a
propriedade do capital, o prover e representar a família, atribuições masculinas, assim
poucas autoras identificam-se, embora as mães das entrevistadas, nos países de origem,
em 41,0% dos casos, já trabalhavam fora de casa com remuneração, por isso servindo de
modelo nas iniciativas que criaram alternativas de rentabilidade .
“Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas.”, comentário da
sefardita Isabel.
Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia:
“As mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas
cuidavam dos idosos e doentes. Eram enfermeiras.”.
Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda,
trabalhava como
balconista”.
NItza conta que: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas gerações,
fazíamos
corsette e soutien e cintas”
GRÁFICO 09 – Distribuição em porcentagem das entrevistadas quanto ao trabalho na
origem
Não
36%
Remunerado
41%
Voluntário
23%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000
A tabela a seguir refere-se à distribuição das entrevistadas no trabalho na origem.
TABELA 25 – Mulher no trabalho na origem
Mulher no trabalho
Remunerado
Voluntário
Não
Número de Entrevistadas
5
9
8
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
No universo pesquisado, houve grande resistência das entrevistadas em se
identificarem como empresárias, apesar das iniciativas econômicas realizadas. Assim,
cuidados semânticos foram necessários para o entendimento de palavras que não raro
podem ser tomadas como sinônimas: “trabalhar” e “ajudar”, característica do patriarcalismo,
cuja ótica atrela a identidade da mulher a seu marido.
Luiza acrescenta: “Eu comecei a costurar, não era trabalho. Depois fiz para as
amigas, e foi virando uma pequena produção, e o meu marido cuidava disso, eu só dava as
idéias. Deu certo, e assim é.”
Consideramos empresárias aquelas que arriscaram seu próprio capital investindo ou
transformando-o em produtos e serviços diversos169, pelo uso de atributos próprios,
independentes da participação de outros nas distintas fases do processo.
169 SANDRONI,Paulo. Dicionário de Economia, pp.138/139.
Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar
certo, é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.”
É bom lembrar que o empreendimento ou atividade econômica, formalidade jurídica,
contratação de funcionários, a continuidade e o sucesso do negócio não se constituíram no
objeto desta pesquisa. Embora o resultado seja valorizado entre judeus, assim como para
os protestantes, ambos com a mentalidade econômico-capitalista, o foco primordial do
trabalho foi constatar a capacidade de iniciativa prática dessas mulheres, e o risco de se
adentrar no universo masculino, mesmo que justificando a necessidade de garantir sua
sobrevivência e de sua família.
Compuseram o grupo estudado mulheres que usaram seu próprio capital para uma
iniciativa empreendedora. Algumas empregaram a herança, jóias ou bens provenientes de
seus laços familiares de origem.
GRÁFICO 10 – Distribuição em porcentagem das condições financeiras das
entrevistadas na imigração
Nada
18%
Contra
bando
23%
Jóias
5%
Dinheiro
54%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo revela a distribuição das condições financeiras das mulheres
entrevistadas.
TABELA 26 – Condições financeiras na imigração
Condições financeiras na imigração
Jóias
Dinheiro
Contrabando
Nada
Total
Nº de Entrevistadas
01
12
05
04
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Para Sofia, “Conhecemos um austríaco muito necessitado vendendo um lote
de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender, e resolvi
inventar
como o meu pai fazia. Devo a ela a nossa fábrica de bolsas e
carteiras.”.
O capital para início dos empreendimentos estudados foi disponibilizado de
diferentes maneiras, todas as mulheres utilizaram seu próprio capital, seja econômico, de
conhecimento e, sobretudo, de risco.
“Um dia, eu resolvi vender uma bíblia antiga, com a capa dourada que trouxe
comigo, para comprar uma máquina de costura. Assim, iniciei o negócio de
conserto de roupas que se transformou numa pequena confecção de calças e
camisas.” – esta foi a solução encontrada por Dália.
“Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importar
através de contatos com amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as
viagens. Assim que a situação do meu marido se estabilizou, ele pediu
que
eu
parasse com o negócio, e vendi o negócio para um conterrâneo, mas continuo com
uma participação. Até hoje eu falo para o meu marido que recebo dinheiro do
meu
filho para as minhas bobagens pessoais.” – declara a oriental Juliette.
Há o relato de Linda, ashkenazita, que utiliza seu capital de conhecimento e de risco.
Ela trabalhou para o tio, por ter feito um curso profissionalizante de contabilidade. Neste
trabalho teve a oportunidade de negociar um lote de tecido que seria descartado, por estar
fora das especificações, e com ele costurou uma série de colchas em matelassê. Este foi o
embrião de seu negócio, que hoje exporta colchas e roupa de cama.
Há ainda o caso de Esmeralda, de origem ashkenazita, após a morte do marido,
passa a trabalhar como sacoleira em repartições públicas no Centro de São Paulo.
Ainda de Ruth, cujo marido foi perseguido político na Europa e no Brasil, por ser
socialista. Adquiriu capital para montar a sua loja, vendendo livros e quadros originais, que
são frutos do relacionamento que mantém até os dias de hoje com figuras de destaque no
universo cultural. A loja de roupas na Rua Rui Barbosa servia, inclusive, para acobertar as
atividades políticas de seu marido, pois no fundo da casa ficava a tipografia, que imprimia o
jornal ídish.
Em casos, onde houve a necessidade de obtenção de apoio financeiro para a
implementação do negócio, constatamos que diferente do que existe na literatura elaborada
pelos estudiosos da imigração paulista Bernardo Sorj e Henrique Rattner, o apoio não veio,
exclusivamente, de parentes ou de judeus, mas, em 41,0% dos casos foi obtido com os
conterrâneos. O principal atributo facilitador para este vínculo foi o idioma comum. Mas
consideravam importante o endosso do homem, independente da relação que segundo
Scott, “o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”170. Outras,
que contavam com maridos já estabelecidos puderam arriscar um novo empreendimento:
Luiza acrescenta que: “Hoje é uma grande malharia, que começou com uma
saleta que
meu marido me reservou para fazer roupas para os meus filhos. E por que
não também para
as amigas?!!!”
GRÁFICO 11 – Distribuição em porcentagem de participantes no empreendimento
Judeu
9%
Conterrâneo
41%
Parentes
50%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as entrevistadas sobre os participantes do
empreendimento.
TABELA 27 – Participantes do empreendimento
Participantes do empreendimento
Judeu
Parentes
Conterrâneo
Total
Nº de Entrevistadas
02
11
09
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
170 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica, p.86.
Isso aparece endossado, quando constatamos que 15 das imigrantes coabitaram
com sua família, seja ela a primária (pai, mãe, irmãos, sogro, sogra, cunhados) ou
secundária (tios, tias, primos e sobrinhos). Apenas sete instalaram-se exclusivamente com
a família nuclear (marido e filhos) ou independente.
A seguir, a tabela seguir demonstra a distribuição do número de entrevistadas quanto
à coabitação na imigração.
TABELA 28 – Coabitação na Imigração
Coabitação na chegada
Secundária
Primária
Nuclear
Independente
Total
Número de Entrevistadas
06
09
06
01
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
FOTO 21 – Reencontro Familiar
Juntamos mais um pedaço da família com a chegada de Tia Matilde B. Menache
entre Anna em 1952. Bigio e Perla Barki.
Fonte: Acervo de Anna Bigio
Dos negócios estabelecidos entre as entrevistadas cinco são marcadamente do
segmento masculino, como açougue, ourivesaria e importação de tapetes.
A tabela a seguir demonstra a distribuição entre as entrevistadas sobre o tipo de
trabalho que empreenderam.
TABELA 29 – Tipo de trabalho de acordo com gênero
Tipo de Trabalho
Feminino
Masculino
Unissex
Total
Número de Entrevistadas
09
05
08
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
GRÁFICO 12 – Distribuição em porcentagem sobre o segmento de empreendimento
das entrevistadas
Frigorífico
5%
Joalheria
5%
Couro
9%
Comércio
36%
Malharia/
Confecção
45%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A seguir a tabela revela a distribuição entre as entrevistadas sobre os segmento de
negócio que empreenderam.
TABELA 30 – Segmento do Negócio
Segmento do Negócio
Couro
Malharia /Confecção
Comércio
Frigorífico
Joalheria
Total
Número de Entrevistadas
02
10
08
01
01
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Os empreendimentos na área de malharia e confecção representam 45 e 36,0% e
estão no ramo do comércio. Uma das pesquisadas monta uma joalheria baseada na
experiência familiar no ramo de ourivesaria. O caso do frigorífico repete esse mesmo
padrão:
O relato de Zélia cita que: “O que trouxemos de mais importante foi a faca de
meu sogro que era shochet171. A partir dos conhecimentos que aprendi, observando meu
pai que era fazendeiro e meu sogro em suas atividades, é que decidi tentar o açougue e
depois ampliamos para um açougue convencional”
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo
com o estado civil na imigração.
TABELA 31 – Estado Civil na Imigração
Estado civil na chegada
Casada
Solteira
Total
Número de Entrevistadas
17
05
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Diante do cenário pesquisado, 17 mulheres chegaram a São Paulo casadas e, das
22 entrevistadas, apenas duas não tiveram filhos. No período do início de seu
empreendimento, 18 já eram mães, destas, 11, ainda tinham filhos em idade pré-escolar,
para tanto tiveram de contar com a participação do marido, parentes e ajudante contratada
nas tarefas domésticas.
A seguir a tabela mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo
com o local de trabalho no início do empreendimento.
TABELA 32 – Local de trabalho no início do empreendimento
Local de Trabalho
Fora de casa
Em casa
Total
Número de Entrevistadas
12
10
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
No início do empreendimento, 45,0% das mulheres trabalhavam em casa e podiam
administrar o próprio lar, era imperativo contar com apoio logístico para as tarefas
171 Shochet é aquele que aplica o método de abate de animais e aves (shechitá), que está prescrita pelas
leis dietéticas para que a carne seja considerada kosher. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e
Tradições, p. 241.
domésticas. É importante ressaltar que, quatro maridos, dos casos analisados, dividiam a
responsabilidade dessas tarefas, dando suporte para que elas pudessem dar andamento às
atividades do empreendimento.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo
com a idade dos filhos no início das atividades profissionais e o apoio logístico na divisão
de responsabilidade com os filhos.
TABELA 33 – Idade dos filhos e apoio logístico para as tarefas domésticas e
maternais
Idade dos filhos no primeiro
trabalho
Escolar
Pré escolar
Sem filhos/ filhos independentes
Total
Número de Entrevistadas
7
11
4
22
Apoio Logístico
Parentes
Marido
Ajudante contratada
Não tiveram filhos / independentes
Total
Número de Entrevistadas
8
4
6
4
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
O trabalho doméstico sendo entendido como um ciclo que a cada dia se repete, as
tarefas diárias da casa deixam de ser valorizadas. Ao não serem reconhecidas como
trabalho e só notadas como importantes, quando não são feitas, isso pode explicar o
interesse demonstrado pelas mulheres, em geral, pelo trabalho não-doméstico. No entanto,
embora elas mesmas tenham se tornado empresárias, escorregavam nas respostas,
apresentando valores de sentido afinado com um padrão patriarcal:
Margareth relata que: “Algumas trabalhavam, mas era sinal de que o homem
não podia sustentar.” . Esse comentário, reforça o patriarcado introjetado.
GRÁFICO 13 – Distribuição em porcentagem da opinião sobre os homens que deixam
ou precisam que a mulher trabalhe
Negativa
27%
Indiferente
46%
Positiva
27%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo
com a percepção do olhar sobre o homem que deixa ou precisa da renda da mulher que
trabalha.
TABELA 34 – Olhar sobre o homem que deixa ou precisa da renda da mulher que
trabalha
Olhar sobre o homem que deixa ou
precisa da renda
Negativa
Positiva
Indiferente
Total
Nº de Entrevistadas
06
06
10
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
GRÁFICO 14 – Distribuição em porcentagem da opinião a respeito das mulheres que
trabalham
Indiferente
23%
Negativa
23%
Positiva
54%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas com a
percepção do olhar sobre a mulher que trabalha.
TABELA 35 - Olhar sobre a mulher que trabalha
Olhar sobre a mulher que trabalha
Negativa
Positiva
Indiferente
Total
Nº de Entrevistadas
05
12
05
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Não muito diferentes são os comentários entre as ashkenazitas, que ainda
minimizavam os feitos daquelas que estavam envolvidas com afazeres fora de casa:
Miriam considera que: “Não eram obrigadas, as casadas podiam ajudar os
maridos, as solteiras trabalhavam se quisessem”
Para Samantha, “Quando a sociedade é entre o casal, não tem essa de
salário”.
Mas Myetta cita que:“Mulher ganhar dinheiro é prêmio, para o homem é
obrigação.”
As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam
opiniões compatíveis com o grupo familiar. Para garantir a possibilidade de exercer
atividades profissionais, preservando o código de conduta estabelecido dentro da família e
comunidade, a maioria delas criou esquemas, nos quais o “respeito” ao marido e pai
(autoridade masculina) fossem preservados.
“Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência” comenta uma ashkenazita
Luiza.
“No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos amigos do meu
marido.”172.
172 Relato de Claudete a MFW em SP, 2000.
Pautados em Bourdieu (1995), percebemos que a visão da divisão sexual é
incorporada como se fosse a única visão e ou a mais correta. O autor explica a eficácia
desse “preconceito desfavorável” ao perceber que essa afirmação é reproduzida também
pelas próprias vítimas, as mulheres, reforçando a suposta inferioridade como se esta fosse
biológica.
Isso se dá no momento em que elas se percebem a partir do que
a visão masculina lhes atribui, dando assim a aparência de um
fundamento natural a uma identidade que
lhes
foi
socialmente
imposta173
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas quem tinha
maior autoridade na casa na origem.
TABELA 36 – Autoridade em casa na origem
Quem tinha mais autoridade na casa na
origem
Mulher
Homem
Igual
Total
Nº de Entrevistadas
00
16
06
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
GRÁFICO 15 – Distribuição em porcentagem do exercício da autoridade na origem
das entrevistadas
Igual
27%
Mulher
0%
Homem
73%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
173 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. p. 141
Essas mulheres mesmo sendo responsáveis pela estabilidade econômico-familiar
submetem-se ao código patriarcal que receberam como modelo, exemplificado pela
autoridade do irmão mais velho, de família de origem oriental:
Segundo Margareth: “Não era bonito, mas no meu caso, eu estava cumprindo
um plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para
as jóias que eu aqui fabricaria”.
Pelo depoimento acima, não se surpreende que elas se recusem a serem
reconhecidas
como
empresárias,
banalizando
e
minimizando
suas
iniciativas
empreendedoras e entregando esse mérito a seus maridos.
Myetta acrescenta: “Sabe, porque a mulher foi feita da costela, a parte
escondida do homem!!!! Para que seja modesta, isso está escrito no livro Gênesis. Esse é o
truque.”
Samantha afirma que: “A mulher, que tem sucesso, não pode perder a
humildade,
principalmente, com o marido. Guarde este lema!.”
Dentre as entrevistadas, Isabel, uma sefardita, fez questão de contar a respeito do
êxito de seu novo empreendimento. O lançamento do livro de culinária, fruto de seu
sucesso nas festas ao longo de sua história, que só poderia coroar-se na Terceira Idade.
FOTO 22 – Conquista de Tia Barki
Lançamento do Livro: ”A Cozinha sem Mistérios da Tia Barki” em 1982
Fonte: Acervo de Anna Bigio
Nem todas as entrevistadas, tiveram êxito nas atividades econômicas que
empreenderam, porém, de acordo com os códigos culturais, o efeito nos estudos e a
ascensão econômica dos filhos refletem a medida de sucesso valorizada pelo grupo
estudado.
A tabela abaixo revela a distribuição da formação acadêmica e o nível
socioeconômico conquistado pelos filhos das mulheres entrevistadas.
TABELA 37 – Formação acadêmica e nível socioeconômico dos filhos
Formação acadêmica dos filhos
Primário
Ginásio
Chedder ou Yeshiva
Nº de Entrevistadas
01
02
02
Superior
15
Sem filhos
02
Total
22
Nível socioeconômico dos filhos
Nº de Entrevistadas
Baixo
00
Médio
08
Alto
12
Sem filhos
02
Total
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Para Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior é o que nos deu
força para
construir algo melhor para nossos filhos.”
Esmeralda refere-se que o: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias,
ao mesmo tempo em que se abria espaço para novas amizades e contatos.”
Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o
espírito de não ter nada a perder.”
As mulheres que sentiram necessidade de buscar soluções econômicas, em nome
da sobrevivência da família, a renda, para mais de 68,0% tinham como finalidade o fundo
familiar ou era entregue diretamente ao marido.
A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas da finalidade
da renda conquistada e a proporção na contribuição na receita familiar.
TABELA 38 – Finalidade da renda e contribuição familiar
Finalidade da renda
Fundo familiar
Pessoal
Marido
Total
Contribuição familiar
Parcela das despesas
Nenhuma
Todas
Total
Nº de Entrevistadas
12
07
03
22
Nº de Entrevistadas
07
03
12
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
O montante que cada entrevistada produziu, embora não tenha sido mensurado,
para mais de 55,0% significou a cobertura da totalidade das despesas e para mais de
31,0% a parcela do pagamento destas.
Para Daniela é :“Sorte ter os filhos perto, que se uniram para o negócio
comum e
fizeram a
linha de frente. Hoje os homens já aceitam as mulheres
comprando e vendendo.”
Margot conta que: “A filha fazia o acabamento e o marido, as embalagens e a
venda”.
Por ser um grupo étnico que valoriza o êxito econômico, há um comportamento tácito
de também buscar soluções independentes da comunidade judaica. Este ponto é reforçado
quando analisamos a rede de relacionamentos apontada pelas entrevistadas para a
implementação do negócio. Dentro do universo pesquisado, a metade dos que participaram
dos empreendimentos, como clientes ou fornecedores, não pertenciam à comunidade
judaica, o que pode demonstrar, também, a iniciativa de ampliar ações, para além das
fronteiras do grupo.
GRÁFICO 16 – Distribuição em porcentagem da rede de relacionamentos
Judeu fornecedor
23%
Não Judeu
50%
Judeu cliente
18%
Somente judeu
9%
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
A tabela abaixo demonstra que a distribuição entre as mulheres entrevistadas,
quanto à rede de relacionamento que contou para o início do empreendimento.
TABELA 39 – Rede de relacionamento no empreendimento
Rede de relacionamento
Judeu fornecedor
Judeu cliente
Só judeu
Não Judeu
Total
Número de Entrevistadas
05
04
02
11
22
Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000.
Para Amelie: “A perspectiva de transformar o pequeno negócio iniciado na França
numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda família.”
Apesar de raramente assumir o papel de empresária e, muitas vezes, dividir seu
êxito com o marido, familiares ou com a própria sorte, Amelie menciona que:
“A gente precisa ter sorte na vida para tudo.”
Para Linda, “A expectativa sobre o resultado na mulher é menor, pois ela não
sofre tanta
pressão.”
Entre as entrevistadas, constata-se o reconhecimento de suas qualidades e do
respeito, que foram capazes de conquistar com a família e na comunidade. Esta conquista
verifica-se pelo seu próprio esforço, apesar de identificar preconceitos contra as mulheres.
Maura acrescenta que: “No início da minha loja eu tinha um ajudante que me
tratava apenas como a esposa do dono. Até o dia em que ele se recusou a fazer um serviço
devido à dificuldade, eu fiz sozinha. A partir daí ele passou a me considerar como a chefe
do negócio.”
Essa é mais uma das formas de que Bourdieu considera como necessárias na
consolidação do espaço feminino. São os novos valores e códigos femininos que deverão
servir para avalizar suas ações e não mais de acordo com as medidas masculinas.
Duas entrevistadas ashkenazitas que vivenciaram experiências em países
diferenciados, como na Suécia e Inglaterra, cidades cosmopolitas que valorizam uma
posição feminina de maior liberdade:
Rosa afirma: “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria
identidade.”
Assim, Samantha considera que: “Para a mulher a escola e o trabalho são
sinônimos de liberdade.”
Na declaração da entrevistada sefardita,Claudete:
“Se não fosse a minha cara-de-pau de entrar nos prédios, eu não teria
chegado a lugar nenhum e nós teríamos passado fome.”, e a oriental Juliette afirma
que:: “Foi uma questão de visualizar as oportunidades e uni-las aos relacionamentos.”.
Ambas exaltam sua contribuição na liderança da solução financeira.
A pesquisa buscou avaliar as percepções das entrevistadas, sobre suas
contribuições à cidade de São Paulo por meio de suas iniciativas, colocadas de maneira
evasiva ou segredada: Claudette, nascida em Alexandria, declara:
“Aqui não havia trufas de chocolate, só quando alguém recebia presentes
de fora. Passei pela fase onde o industrializado era o mais valorizado, e agora de
novo o artesanal é o bom. Eu sofri, mas sobrevivi.”174
174 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000.
Seguindo a mesma linha, Margarth que comercializa jóias com pedras brasileiras em
São Paulo e, em outras cidades do mundo, acredita ter influenciado a valorização da beleza
destas pedras, inclusive entre as brasileiras.
O caso que interferiu no padrão estético de decoração de interiores, Juliette conta
que, muito antes dos europeus, os paulistanos já tinham acesso aos tapetes vulgarmente
conhecidos como “persas”.
Sofia, a dona da loja de artigos de couro acredita ter elevado os produtos paulistanos
à categoria européia:
“Os produtos de couro, eram simples e de péssimo acabamento. A
minha fábrica trouxe um padrão europeu que transformou a cara da cidade
antiga para a de uma metrópole.”175
A mesma autopercepção tem Myetta, a primeira e maior fabricante de “manteaux”,
do Brasil, em seu tempo.
De origem alemã, Nitza cita que a empresa contribuiu para a mudança da moda
íntima:
“Com o tempo, fui modificando os moldes de minha coleção. As
peças foram
ficando cheias de rendas, decotes, bicos e bojo, mas não tanto quanto hoje!”176
Em um período de crescimento da cidade de São Paulo e de novas oportunidades no
mercado de trabalho às mulheres, temos o caso de Samantha, empresária de origem
polonesa, educada na Inglaterra, que considera ter implantado a moda para executivas,
usando a tecnologia de novos tecidos que se mantinham impecáveis, durante a jornada.
“Os modelos de soutien que eu trouxe da França eram ultramodernos, eles
modelavam. Não havia nada parecido aqui”, declara Regina que aprendeu a
profissão com sua tia ashkenazita.
Conforme foi mencionado anteriormente, a pesquisa enfatizou a iniciativa no
negócio, independente do sucesso ou da envergadura por ele alcançada. Portanto,
percebemos ser importante mencionar uma avaliação crítica sobre o empreendimento na
qual o senso de responsabilidade sobre o negócio perpassa:
175 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
176 Relato de Nitza a MFW em SP, 2000.
“Naquela época, não se usava ainda meias coloridas, estampadas,
bolinhas ou listas. Não era como hoje. Eu arrisquei e perdi tudo.”, conta Suzana que
acabou vendendo a fábrica para pagar as dívidas.
Buscando agigantar a percepção das mulheres que desvalorizaram seu papel na
história, segue a fala de Luiza:
“Você viu o filme Casablanca? A Ingrid Bergman usava um cardigan com
um xale, que eu fiz na fábrica pensando nas minhas amigas. Foi um estouro em
vendas. As minhas idéias eram inspiradas dos filmes.”, conta Luiza, a polonesa de
Cracóvia, ainda relutante em assumir sua contribuição.
Para este estudo, as mulheres que construíram seu universo de empresárias,
encontraram soluções, mantendo a “liberdade de escolha e de responsabilidade pessoal”177
com as outras entidades econômicas, de acordo com os pressupostos do capitalismo,
mantendo as fases primordiais da produção sob seu controle, embora já contassem com o
trabalho cooperativo, característica que mantém a nebulosa definição de responsabilidade.
O período estudado, como já apresentamos, era de um ciclo econômico favorável
diante das altas taxas de crescimento que criavam uma forte demanda. As empresas
crescendo e tornando-se complexas, abriam espaço para a contratação de mão-de-obra
administrativa. No entanto, o papel central familiar continua sendo adequadamente exercido
nas pequenas e médias empresas que ainda hoje, correspondem a 90,0% do total das
empresas de indústrias e serviços no Brasil178.
Neste contexto, as imigrantes sentiram necessidade de produzir recursos para
resgatar o padrão familiar de consumo, favorecidas pelo aumento da participação feminina,
em geral, no mercado de trabalho.
Para os casos estudados, estas mulheres tinham um capital cultural que as
diferenciava e as colocava afinadas com a camada social dominante. Eram preponderantes
nas decisões durante o processo produtivo, pois criavam e reproduziam os gostos e
padrões de consumo, de acordo com as camadas mais abastadas, consolidando seu papel
de mentoras.
Ainda que o intuito fosse de “ajudar” no orçamento familiar arriscaram um certo
capital, ousando empreender. Estas iniciativas, minimizadas ou invisíveis, no papel de
177 BENN ,A. E. Dicionário de Administração, p. 89.
178 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 13.
sujeito correspondem à “condição estereotipada de subordinadas aos homens e à
sociedade patriarcal”179 judaica.
Diante das conquistas relativas, as mulheres e os familiares começaram a participar
transformando rapidamente em “nosso” o resultado do trabalho, sem caracterizar o dinheiro
ganho como de propriedade da empreendedora. Assim, envolvidas com a imagem
idealizada de suas funções femininas, abriram mão do poder e da autonomia financeira
para serem reconhecidas em seu papel “maior”: encaminhar os filhos para serem motivos
de orgulho familiar; administrar o orçamento e o lar, exemplarmente, sem, contudo, deixar
de ser a esposa ideal para o prazer e vaidade do marido.
A característica de subordinação feminina foi um problema amplamente discutido nos
meios acadêmicos que ainda colocam esta condição como natural às mulheres e à postura
dos homens, ainda que o fruto da cultura mantenha um estilo de pensamento e dados
inquestionáveis. Essas variáveis estão mais para atributos morais e culturais do que para a
biologia dos sexos, se bem que permaneçam como pressupostos fundamentais nos
trabalhos antropológicos encontrados, conforme Haraway180. Ainda, o condicionamento às
alianças apoiadas na consangüinidade, em que se exigem lealdade, também, são noções
culturais ocidentais que permeiam os paradigmas das relações.
Estudos acadêmicos americanos específicos sobre o movimento feminista,
preocuparam-se em analisar as mulheres judias e suas experiências durante a história,
motivados pelo vasto rol de escritoras e jornalistas consagradas. Um destes é o trabalho
comparativo de Linda Kuzmack chamado de "A Causa da Mulher”181, escrito em 1990,
sobre as comunidades judaicas dos Estados Unidos e Inglaterra, na virada do século.
Esta pesquisa surpreendeu a todos ao constatar a interação entre as feministas
laicas e as judias, enriquecendo nossa compreensão sobre a cultura e o contexto social,
promovendo diferentes versões sobre os ativismos feministas. Os resultados consideram a
questão de gênero ou sexo relevante para o estudo sobre a atividade econômica, vista
como categoria que interfere na construção das relações sociais. Para tanto, aqui se faz
também necessário frisar sobre a validade das análises das particularidades, explicitando
uma oposição ao conceito elaborado por Piscitelli (1999, p.33) que afirma:“cada pessoa é
uma espécie de andrógino que não opera nem como homem nem como mulher, todos são
mulheres-homens; homens-mulheres”.
179 Revista La Aljaba – segunda época.vol.I Argentina, l996, pp. .29/30.
180 Haraway,Donna Symians Cyborg and Women. The reinvention of Nature. In: PISCITELLI,Adriana. “Jóias de
família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 24-29.
Especificamente, nos estudos dos historiadores do feminismo judaico, que colocam a
família no centro articular das relações de gênero e sua interação entre a vida pública e
privada, é possível perceber a necessidade de questionar sobre o impacto da cultura das
novas décadas e o sistema capitalista no indivíduo e na comunidade; na divisão de trabalho
e na remuneração; sobre a representação feminina e sua autodefinição. Dessa maneira,
notamos um incremento de estudos desde a década dos 90 do século XX, que vêem
analisando a construção do mito da família judaica sobre a cultura judaica.
No entanto, o tecido que constitui a rede de solidariedade feminino-judaica é o
desafio aos estudos, dada a ausência de representante para um posicionamento político
assumido.
Podemos exemplificar com o caso em Nova Iorque, do boicote aos preços da carne
"Kosher182“ e longe de qualquer associação ou entidade, as ativistas clamaram pelas ruas
combinando a pressão econômica a uma persuasão moral de proteção à família. Este
procedimento é a arte que as mulheres judias desenvolveram para realizar seus desejos.
Na esfera privada ou anonimamente, as manobras são equacionadas, garantindo
total reverência pública ao marido.183 Assim, para estudos sobre mulheres imigrantes judias
e suas famílias, no tocante à combinação entre família e trabalho faz-se necessário um
maior aprofundamento aos códigos aplicados na separação entre público e privado.
181 DAVIDMAN, Lynn;TENENBAUM, Shelly. Feminist perspectives on Jewish studies, p.123.
182 Kosher: alimento preparado de acordo com os preceitos alimentares judaicos. UNTERMAN, Alan.
Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p.146
183 YALOM, Marilyn. A história da esposa:Da Virgem Maria a Madonna: o papel da mulher casada dos tempos
bíblicos aos dias de hoje, p. 311
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho trouxe à tona questões modernas como o judaísmo e a religiosidade, o
trabalho e a família, o empreendedorismo e os papéis de gênero.
As empresárias judias transformam-se em tema que reitera o âmago judaico, o
autodesafio. Na minha opinião, restaurar a memória sobre as ousadias, os momentos de
desordem e desintegração é recompor a história, desemaranhando as crenças atadas ao
passado, reprimidas ou descartadas por não fazerem parte da memória de censo comum.
A pesquisa pretendeu reler os velhos momentos, embora pareçam novos ou, de fato,
momentos de inflexão que cada história tem ao perturbar o movimento previsível desta
minoria que pode vir a ser o embrião para uma análise comparativa com outros grupos
étnicos.
O universo selecionado para compor o estudo referiu-se às mulheres que se autoidentificaram como judias. Desse modo, apoiados, nesta questão, apresentamos inúmeras
nuanças que percorreram o cotidiano das entrevistadas, trazendo a necessidade de
reconhecer o contexto e as possibilidades, não somente ser, mas, estar judia.
O judaísmo teve seu ponto de partida na religião. Hoje é a história do povo judeu,
fruto da conjunção de ações políticas, porém, acima de tudo, da memória judaica.184
Diante da constatação, uma multiplicidade de fatores foi considerada como vínculos
judaicos e ao analisarmos as respostas sobre a religiosidade, a tendência observada por
DellaPergola,185 também, confirma-se neste trabalho. É a polarização sobre o retorno ao
exercício religioso ou à assimilação das famílias e não, raras vezes, as duas alternativas
foram escolhidas por descendentes da mesma imigrante.
A lei de Hansen186 (aquilo que o pai quer esquecer, o neto quer lembrar) impele-nos
a uma reflexão sobre a diferença entre assimilação e aculturação que, neste caso, parece
ter constituído um novo grupo187 étnico: judeu-brasileiro, fruto de uma construção gradativa
que se mantém em constantes mudanças, a transculturação de Ianni. O processo de
distanciamento da religião revelado culmina com o abandono da fé pelas filhas das
entrevistadas e conjuga o movimento constatado nas pesquisas demográficas de Sergio
184 YERUSHALMI,Yosef Hayim.Zakhor. História Judaica e Memória Judaica, p. 103-109.
185 DELLAPERGOLA. Sergio Studies In Contemporary Jewry.
186 Glazer, N. Ethnic Groups in América: From National Culture to Idiologie.In: BERGER,M.; ABEL,T.;
PAGE,C.H. Freedom and Control in Modern Society, p. 158-176.
187 CARIGNATO, T.; ROSA,M. D; PACHECO Fº, Raul A.(Org). Psicanálise, Cultura e Migração, p.20
DellaPergola188, ao contextualizar-se na sociedade contemporânea. Uma resultante das
relações entre as imigrantes e suas famílias, que constituiu uma comunidade e a sociedade
receptora flexível, possibilitando a aculturação com pouca segregação, conforme
demonstram os relatos.
Importante ainda foi perceber que a aquisição das competências cognitivas e dos
valores modernos vigentes no cotidiano trouxe novos questionamentos sobre a assimilação
do grupo étnico num processo iniciado na construção da geografia dos bairros da cidade de
São Paulo. Os imigrantes foram reconhecidos e tornaram-se cidadãos brasileiros. Por outro
lado, mantiveram-se agregados, circunvizinhos no movimento que teve como efeito o
aumento de consciência e da significação étnica, conforme previsto por Poutignat, StreiffFenart189
A pesquisa constatou que a associação dos eventos vividos no período de
perseguições, sobretudo, entre as entrevistadas ashkenazitas, durante o Holocausto, não
pode ser esquecida nem contada. Essas vivências traziam o gosto amargo da
impossibilidade de iniciativas que, por não corresponderem ao perfil das entrevistadas,
pressuponho terem sido muito mais difíceis de serem vivenciadas.
É interessante constatar que a sociedade paulistana abrigou e articulou um processo
de integração sem, contudo, impor a dissolução das características da nova imigrante. Foi
um processo de troca de influências e absorção, embora alguns dos componentes do
governo brasileiro do período tentassem estimular o anti-semitismo que, de fato, pouco
modificou os padrões internos da convivência pluralista brasileira.190
As histórias aqui recontadas surpreenderam pela banalização demonstrada frente às
iniciativas e conquistas alcançadas. A preservação dos segredos sobre as iniciativas
femininas ainda permanece alicerçada no código da família patriarcal-judaica fazendo uma
clara referência à divisão de papéis de gênero, como apontaram os historiadores Sokoloff,
Lewisohn, Greenberg a respeito dos estudos de diversas comunidades judaicas de cultura
inglesa, como os Estados Unidos, Inglaterra e Índia.
A singularidade das histórias que compõem este trabalho dá significado ao reexame
das memórias, ao ângulo da visão, à importância do orador e à possibilidade dos ecos. As
resistências às mudanças, ao diferente tornam inconcebíveis certas conquistas. Foram,
188 DellaPergola, Sergio. Studies In Contemporary Jewry.
189 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e
suas fronteiras de Frdrik Barth, pp. 65-78.
190 SORJ,Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In:SORJ,Bila.Identidades Judaicas no
Brasil Contemporâneo, p. 27.
sobretudo,
impulsos
em
benefício
da
família,
pelo
conjunto
das
aspirações
socioeconômicas. O apoio foi conquistado diante das situações extremadas que
vivenciaram.
De acordo com Feres (1960), constatamos, ainda, que as mulheres necessitavam da
aprovação dos homens em suas conquistas comerciais e, assim, mantinham a
subordinação à competência do masculino. Pelos relatos, verificamos que a valorização
positiva dos êxitos deve estar ligada aos atributos tidos como femininos.
Desse modo, as mulheres empresárias que participaram da pesquisa, embora
apresentassem personalidades marcantes, frisaram que não tiveram demandas que
implicassem força física, mas, que exigissem coragem, ousadia e muita energia para
assumir riscos. A questão mantém-se em aberto, porém ao nos remetermos às palavras de
Barzini sobre a sociedade italiana: “Qualquer que seja a sua posição(...), a esposa é dotada
de grande poder”, e continua citando que “a mulher é a personagem principal ainda que não
o
mais
saliente”191.
Elementos
recorrentes,
também,
parecem
traduzir
padrões
reconhecidos como judaicos.
As histórias dessas personagens foram mais um dos trabalhos relevantes e invisíveis
da inserção dessas imigrantes perpassando pela ação educativo-idiomática, pelos
ajustamentos relativos aos mecanismos econômicos, pelas regras sociais, entre outros
aprendizados, que as mulheres teceram dia a dia na rotina familiar, reafirmando a
identificação
e
não
a
diferença.
No caso desta leva imigratória,
a maioria
dos
imigrantes judeuss do período reconhece por meio da solicitude demonstrada, a denúncia
da aceitação da sociedade local em absorvê-los. O fato de trazerem conhecimentos de
além-mar, possivelmente, tenha criado uma lógica de caráter político-social de
ascendência. Talvez as diferenças inerentes fossem aceitas por serem advindas dos países
de antigos impérios e fomentassem, como até hoje, um ideário mágico da possibilidade de
ascensão social, fruto da absorção de novos conhecimentos.
As mulheres judias, que chegaram a São Paulo, merecem o reconhecimento de
cada esforço individual. No entanto, aquelas que viveram situações emergenciais em
parceria com o marido, conquistaram uma relação de igualdade e puderam mais
rapidamente assimilar a mudança social e com o “espírito de imigrante” encontrar novas
alternativas, como o trabalho independente, demandando menor esforço e tempo, frente à
resistência familiar.
191 BARZINI, Luigi. Os Italianos , p. 229-230
Constata-se entre as entrevistadas que a maioria fez este percurso e nos casos de
êxito e expansão dos negócios, logo, incluíam o marido, pai e irmãos, justificando “não
serem muito boas para administrar negócios”. As demais, para as quais a experiência não
resultou em nada, além de “um período duro de luta pela sobrevivência”, concluem que
“afinal, o mundo é dos homens”.
O ponto mais surpreendente é como
se auto-apresentam: colaboradoras.(grifo
nosso) Minimizando os fatos, para não dizer, ocultando-os, até se tornarem invisíveis na
história que empreenderam. Não raro reforçadas por insistência de contemporâneos,
intitulam-se co-responsáveis,(grifo nosso) não assumindo seu papel empreendedor,
perpetuando a história contada e negando a que escreveram. Dessa maneira, mantêm suas
iniciativas restritas ao âmbito privado, eternizando a divisão de papéis de gênero. Diante da
densa neblina, que encobre a divisão entre o espaço público e privado, as histórias
permanecem como “segredos nossos”.
Consideramos importante ressaltar que a geração seguinte não cultuou o espaço
para as filhas, perpetuando, não raro, o negócio pela liderança entre os filhos homens.
Assinalamos, ainda, que o espírito empreendedor das mulheres ficou limitado às
circunstâncias da necessidade, fato observado na geração seguinte.
As descendentes não foram envolvidas no projeto familiar, embora sejam graduadas
e exerçam suas profissões. Fato relevante entre aquelas que apostaram numa ascensão
social, também, via projeto educacional e profissional dos filhos192, exceção feita às filhas
de famílias religiosas que se dedicam à vida doméstica.
Ao fim deste trabalho sobre as empreendedoras imigrantes judias, ainda se verificam
territórios a serem aprofundados nos estudos sobre as relações de casamento, organização
familiar, trabalho e economia.
Outro ponto a ser mais bem estudado será a comparação com os outros grupos
étnicos e a relação com os papéis de gênero, em especial, uma avaliação sobre o
verdadeiro significado que a formação de grupo pode trazer, satisfazendo uma eventual
necessidade de ancoragem e reorganização.
Consideramos significativo frisar que a História sobre as conquistas de espaços das
mulheres, reflete-se em períodos, nos quais os agrupamentos femininos “existiam, mesmo
192 OSMAN,Samira Adel. História Oral de Famílias Imigrantes Árabes em São Paulo. In: MEIHY,José
Carlos Sebe Bom.(Org) História Oral de Família, p. 27
que cercados do estigma da futilidade e tagarelice”193, sendo pelos exercícios da oralidade
que foram construídas as verdades e consolidadas as crenças. A transição do artesanal
para o industrial, ou seja, a qualificação domesticamente adquirida e exercida tirou das
mulheres o suporte para sua organização.
Atualmente, em um cotidiano sobrecarregado de multitarefas ajustado, de acordo
com as necessidades familiares nucleares, os grupos femininos dispersaram-se, assim
como seus significados. Diante das transformações estruturais contemporâneas, estes
grupos femininos, em geral, não encontraram ainda novas formas de expressão de gênero
ou andróginas.
Ao dar seqüência à construção de um espaço das mulheres imigrantes judias que
trouxeram a bagagem cheia de sementes para a construção de suas profissões pautadas
nas vivências familiares, pois, pelas oportunidades oferecidas escolheram as de afinidade
com seus vínculos afetivos e ancestrais. Constata-se a concentração de profissionais em
áreas específicas, de acordo com o grupo étnico de pertinência.
Para Grillo essas escolhas são “armas”194, porque reforçam as identidades e
ideologias étnicas e enfatizam a influência nas políticas socioeconômicas. O uso dessas
“armas” rompeu com as tradições e os arranjos idealizados, produzindo novas soluções e
distintos comportamentos, muito embora essas mulheres carregassem o manto da proteção
familiar, e em nome dessa família foram impelidas à mudança. Especialmente para esse
grupo étnico, a solidariedade grupal pode ser encarada como uma ação política, que tenta
preservar os judeus em suas experiências de diásporas diversas. A preservação da cultura
e o estilo de vida que mantêm por meio de marcantes organizações sociais oferecidas,
facilitam o acesso a posições dominantes na sociedade global.195
Em tempo, para que as mulheres e suas iniciativas ganhem visibilidade, os
momentos de quebra do sistema de subordinação devem ser tornados públicos. Novos
processos de abertura de espaços às aptidões individuais “e sem gênero (mas não sem
sexo) na qual a anatomia sexual seja irrelevante para o que são ou fazem”196 de modo a
permitir novos modos para que as mulheres sejam “politicamente significantes”197.
193 RECHIA, Karen Christine. Das mulheres dos ‘repolhos e das ‘roças’: ou de como nasciam os bebês.In:
MORGA, Antonio Emilio (Org). Historia das mulheres de Santa Catarina, p.117
194 GRILLO, R.D. The tibalfactor in na East African Trade Union. In: GULLIVER,P.H. Ed.Tradition and
Transition in East África, pp.297-321
195 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e
suas fronteiras de Fredrik Barth, p.99.
196 CAROLA, Carlos Renato. As trabalhadoras nas minas de carvão de Santa Catarina(1937-1964). In:
Morga, Antonio Emilio(Org). Historia das mulheres de Santa Catarina, p. 156.
197 BRENNER, Athalya. A mulher israelita:papel social e modelo literário na narrativa bíblica, p.199.
Para o bojo das conclusões, segue em anexo a história da personagem fictícia “Isha
Mehagueret”, que consideramos elucidativa. Essa apresentação em caráter literário,
fórmula absorvida e enaltecida pelo povo judeu em suas diversas fases, encontrou
ressonâncias afetuosas, mesmo em textos que confrontam os mitos.
As palavras de Yerushalmi foram um importante impulso, para a inclusão no trabalho
de “Isha Mehagueret”, também, pela necessidade de envolver a “...arte e a ciência, a
história e a literatura...”198.
Buscando reler a pesquisa e sentindo o “envolver”, construímos um discursosíntese199, pois as histórias de vida que compõem essa história fictícia, só foram possíveis
dadas às mudanças ocorridas na cidade de São Paulo com possibilidades de mobilidades
socioeconômicas que refletiram na organização familiar, nos valores e papéis. As mulheres
saíram de casa.....
ISHA MEHAGUERET – Polônia, 1922
Meu nome é Isha Mehagueret. 200
Eu vou falar desde os meus tempos de menina. Isso começa ainda na Polônia201,
numa aldeia perto de Lodz202, onde as mulheres eram muito bonitas. Eu também já fui
bonita203.
Era com minha prima Anit204, na casa de minha avó que aprendemos a fazer chalá e
a vender205 pelo bairro206. Fazíamos sempre algumas a mais e dávamos para famílias mais
pobres207. Tínhamos, nessa época por volta de dez anos. Eu ficava conversando com ela
até na sinagoga, para onde íamos todas às sextas-feiras para o Shabat. Anit era minha
melhor amiga e companheira de todas as horas208. Nossas mães também eram muito
unidas e trabalhavam juntas como enfermeiras numa casa para idosos209, onde passavam
horas falando dos filhos e sobre as famílias daquela nossa pequena comunidade. O pai
198 YERUSHALMI,Yosef Hayim.Zakhor. História Judaica e Memória, p. 117.
199 LÈFEVRE, Fernando, LÈFEVRE, Ana Maria Cavalcanti, TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira, (Org.). O discurso do
sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa, p.19.
200 Isha Mehagueret significa no idioma hebraico, Mulher Imigrante. Pequeno Dicionário PortuguêsHebraico, publicado pela Organização Sionista do Brasil em 1980.
201 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
202 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
203 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
204 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
205 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
206 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
207 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
208 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
209 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
dela havia morrido, logo que ela nasceu210 e a mãe casou com um dentista211 de quem ela
gostava muito.
Meu pai, o alfaiate212 mais conhecido e respeitado de nossa aldeia, trabalhava
também como tesoureiro da sinagoga213, e participava ativamente das rezas e das reuniões
para discussões e estudos. A nossa vida orbitava no calendário dos eventos na
sinagoga214. As Grandes Festas eram muito esperadas e comemoradas na casa de meus
avós, que moravam atrás da sinagoga.215
A família era grande e essas festas eram divertidas, longas e sempre acabávamos
adormecendo entre as camas, os sofás e os colos disponíveis216.
No lugar onde morávamos, todos se conheciam.
sermos religiosos, “respeitávamos o Shabat” e os almoços
Lembro-me, aos sábados, por
217
, que sempre terminavam em
longas discussões sobre os fundamentos judaicos, a filosofia por trás dos rituais, o
significado de cada um deles218.
Em casa, lia-se muito. Na maioria das casas dos amigos dos meus pais, também, eu
via sempre muitos livros e jornais nos mais diversos idiomas. Falávamos alemão, ídish e
polonês em casa, não raro o russo e o romeno, mas, meus pais fizeram questão de que
aprendêssemos também o inglês219, o que veio a ser de grande importância para mim,
alguns anos mais tarde220. Foi num desses jornais, que aprendemos sobre o movimento
sionista221, que ganhava corpo entre alguns dos amigos dos meus pais que acabaram por
emigrar para Israel, antes até do Bar-Mitzva de meu irmão.222 Isso foi em 1932, perto de
Chanucá.
Ainda me lembro como se fosse hoje dessa comemoração. Foram longas semanas
em que minhas tias vinham em casa cozinhar, fazer doces deliciosos e uma delas fez a
toalha de mesa mais bonita que eu já tinha visto223. Enquanto isso, meu irmão não saía do
quarto estudando com mais dois amigos e um primo mais velho, que parecia um príncipe.
210 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000.
211 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
212 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000.
213 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
214 Relato de Mauraa a MFW em SP, 2000.
215 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
216 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
217 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
218 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
219 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
220 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
221 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
222 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
223 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
Eu e Anit ficávamos espiando Samuel e seus lindos olhos azuis pelo buraco da
fechadura, oferecíamos sucos e biscoitos com grande freqüência, na esperança de que ele
saísse do quarto para mais uma daquelas trocas de olhar224.
Nessa época, eu fui para Lodz, cidade onde minha tia Chana morava. Ela cozinhava
com esmero, e acredito que meu gosto pela boa comida venha dessa época225. Lodz era
uma cidade muito mais desenvolvida, com ruas largas, pessoas desconhecidas e
diferentes. Eu me assustei ao notar que as pessoas não se cumprimentavam nas ruas226.
Embora minha tia acendesse as velas de Shabat, ela nem sempre freqüentava a sinagoga.
Estivemos uma vez na sinagoga de seu bairro, e o serviço religioso era estranho para mim,
tudo era mais sério, até as músicas. Durante a prédica, falou-se na responsabilidade de
sermos judeus, mas, só em casa227. Tudo ficou muito confuso para mim.
À noite, minha tia explicou e falou sobre certos cuidados que deveríamos tomar ao
andar pelas ruas, na escola e nas lojas como, por exemplo, evitando falar em ídiche com
qualquer pessoa, já que alguns não tinham simpatia por judeus, foram, assim, os primeiros
sinais de anti-semitismo com os quais tive contato228.
Agora, então, com 11 ou 12 anos, por conta do curso técnico de corte e costura,
meus pais mandaram-me aos cuidados dessa tia em Lodz. A casa foi sublocada para a
família de meus tios, porque era muito grande para a proprietária que, recentemente, tinha
perdido o marido. Aliás, ela tinha um belo piano e foi com ela que meu primo Ariel aprendeu
a tocar e veio a se tornar um renomado pianista alguns anos mais tarde em Nova York,
onde hoje vive com sua família229.
A maioria, das amigas de escola, foi para o Liceu, uma escola feminina de
secretariado.
Eu freqüentei a escola regular com aulas de francês, inglês, história e
matemática e, à tarde, a profissionalizante230, porque desde pequena brincava na máquina
de costura da minha avó, fazendo roupas para bonecas. No período, as minhas tardes
eram as horas mais importantes e deliciosas de minha vida! Eu era muito caprichosa e
guardo, até hoje, meus cadernos com uma maravilhosa caligrafia, teoria sobre moda,
técnicas de proporção e equilíbrio, desenhos e exemplos. Um dia, vou traduzir,
224 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
225 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
226 Relato de Zelia a MFW em SP, 2000.
227 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
228 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000.
229 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
230 Relato de Regina a MFW em SP, 2000.
reescrever231 e, até quem sabe, ensinar? Por conta desse curso, eu ia inventando modelos
e produzindo peças de roupas com jornais velhos que eu coloria, até a chegada da guerra.
Eu adorava fazer camisolas que pareciam roupas de baile, eram decotadas. Minha tia
reprovava minha ousadia.
Meu pai que era um ótimo comerciante e com ele aprendi a negociar232, observandoo na alfaiataria e no pequeno armarinho onde trabalhava. Eu não me sentia tão à vontade
entre as tarefas de minha mãe e minha tia, que eram ótimas donas de casa. Eu era um
pouco desajeitada
233
, e elas sempre me diziam: “Você vai respirar o ar de fora”.234 Elas
tinham razão, deve ter sido praga de mãe. Por isso, foi muito importante ter a formação
teórica. Eu sonhava com tesouras, tecidos e moldes, mas nunca pensei que seria para
minha sobrevivência, inclusive, de minha família!
Fiz o estágio de conclusão de curso num atelier de alta costura235 na Cracóvia que
meu pai conseguiu-me. Era numa casa muito chique, eu lá não recebia salário, mas o
combinado era ficar na sala de provas, onde de fato se aprende, fiquei lá por uns dois ou
três meses, até a chegada do inverno.
A maioria dos clientes desse atelier vinha do interior e vivia mandando sacos de
farinha, sacos de milho, de tudo que uma casa precisa, até ovelhas236, já prontas para
assar. Era uma fartura.237
Em 1938, já na casa de meus pais, minha outra prima Morgit, veio morar conosco.
Os pais dela eram jornalistas e tinham fugido para a Suíça238, mas ninguém sabia que
estavam sendo perseguidos e acusados de crime político, por terem publicado e distribuído
diversos panfletos contra a discriminação do governo russo e alemão239. Ela havia ficado
sozinha com seus irmãos menores240, numa aldeia maior que a nossa, chamada SatuMare, na Transilvânia, norte da Romênia que fazia fronteira com a Hungria,
Checoslováquia e Polônia. Antes da Primeira Grande Guerra, a região pertencia ao Império
austro-húngaro.
Depois, toda Transilvânia passou a ser chamada de Romênia. Em
231 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
232 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
233 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
234 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
235 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
236 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
237 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
238 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
239 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
240 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000
1940, voltou a pertencer à Hungria. Em 1945, no final da Guerra, de novo à Romênia241.
Isto tudo hoje é história, para minha época era o dia-a-dia.
Em Satu-Mare, todos os judeus moravam no mesmo bairro, assim como na aldeia
dos meus tempos de criança, embora o nacionalismo, depois da Primeira Grande Guerra,
tenha levado muitas dessas famílias a adotarem nomes romenos. Como a cidade já era
maior que a minha aldeota havia, pelo menos, duas sinagogas, uma chassídica e outra
liberal e sionista242. Morgit descrevia sua cidade com saudades, falava de umas famílias
ricas, entre elas, os Printz, muito religiosos que fabricavam panelas de ágata, e os Kalicz,
que viviam de um cortume243. Ao começar a ouvir sobre as atrocidades cometidas pelos
alemães na Bessarábia, os Kalicz venderam seu negócio e foram para a América do Sul.
Eu tinha outros tios: tia Fala, casada com Fisher; Margareth, mãe do Yonti; Itso, que,
por ser religioso, teve muitos filhos, hoje é diretor de uma Yeshivá em Israel244; Ernest
cresceu na Bulgária e está casado pela terceira vez, vive nos Estados Unidos; Korte morreu
na Espanha, lutando na Guerra Civil Espanhola; Yael está casada em Israel.
Minha prima Pauline, já órfã aos 16 anos, fugiu para Bruxelas, e depois ficou em
Paris escondida numa igreja até conseguir novos documentos com ajuda da Cruz
Vermelha245. A história dela é emocionante. Depois da guerra, emigrou para os Estados
Unidos e cursou contabilidade246.
Até que encontrou nas listas de identificação de sobreviventes, divulgadas no mundo
inteiro247, o nome do tio que estava morando em São Paulo, assim, imigrou para cá e não
demorou a se casar com um ortodoxo, que veio de Budapeste, conterrâneo da tia, já têm
um neto, que é um advogado famoso. Mas o começo não foi nada fácil, o marido começou
com uma fabriqueta de lingerie e as coisas não iam tão bem. Ela foi ajudar na
contabilidade, depois inventou um crediário, cujas parcelas iam diminuindo. Foi bom por um
tempo, mas ela não gostava de trabalhar com peças pequenas e tantos detalhes. Fez uma
parceria com duas tecelagens e começou a fazer matelassê para colchas de cama
exclusivas.
Hoje é uma fábrica de exportação, e ela ainda arruma tempo para cuidar de uma
creche para meninas órfãs, ensina inglês e costura. Ao chegar ao Brasil, ganhou uma
241 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
242 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000.
243 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
244 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
245 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
246 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
247 Relato de Nitza a MFW em SP, 2000.
família e retribui essa sorte248, conforme conta. Nós fomos mais egoístas, demoramos muito
para ter tempo de pensar nos outros, cuidávamos da família e dos amigos.249
Eu tinha uma outra tia, por parte de pai, que veio ficar conosco, logo que o marido
morreu. Eles faziam costura de soutiens e cintas por encomenda, foi ela que eu, de fato,
aprendi uma profissão.250
A guerra chegou para nós! Assim, fomos para Lodz para aquela que veio a ser a
última reunião familiar. Lá foi decidido que deveríamos emigrar para onde fosse possível e
seria em separado. Quando encontrássemos segurança, passaríamos o endereço a Dom
Fellipe251, o padre da igreja que ficava perto da praça onde era a alfaiataria de meu pai. Ele
nos ajudou muito, para quem quis, fez a conversão, casamento e entregou a documentação
acima de qualquer suspeita252. Nós escolhemos ir embora para recomeçar em outro lugar
que aceitasse nossas convicções e poderíamos ajudar uns aos outros e nos reagruparmos
novamente253. Para cada parte da família, ficou a incumbência de levar um pedaço da
história. O álbum de fotos, o castiçal de Chanucá, a toalha de Rosh Hashaná, o quadro que
ficava na sala de jantar da minha avó, que eu nunca mais vi. Não lembro mais quanto ficou
faltando, são pedaços que ficaram espalhados254 e não conseguimos mais juntar. Isso
ainda machuca255.
Saindo da cidade, tive sorte de encontrar minha antiga professora, sabíamos que era
o último encontro256. Chorei e entre soluços de tantas perdas, sugeriram o nome de um
noivo para mim. Meu pai aceitou de imediato, afinal era de uma boa família. Um cliente de
meu pai, que havia se tornado prefeito da cidade, preparou os papéis257 e formalizamos o
casamento civil. Quando a cerimônia terminou, ouvimos o barulho de tanques e soldados.
Gritos, vidros quebrando, coisas caindo. Fugimos para o cemitério, que foi durante um
tempo um lugar seguro. Anit, minha amiga, estava apaixonada por um ortodoxo russo258 e
foi embora já com uma filha na barriga, direto para Filadélfia. Até hoje, somos muito amigas,
de tempos em tempos, eu vou, ela vem e sentamos em qualquer lugar e falamos de dentro
da alma. Sua filha, Deborah, também já é mãe...O tempo passa.
248 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
249 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
250 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
251 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
252 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000.
253 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
254 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
255 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
256 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000.
257 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
258 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
Nós também tentamos ir para os Estados Unidos, onde parte da família de minha
mãe já estava instalada. Anit, que chegou primeiro, agilizou os papéis necessários para a
imigração de muitos, facilitado pelo fato de seu marido não ser judeu 259.
Até hoje, eles são convidados para as festas religiosas judaicas que para Anit ainda
são muito importantes. Ela teve mais um filho que é arquiteto. Quando vou à Filadélfia, é na
casa dele que me hospedo, com seis lindos e bem decorados dormitórios, uma casa
moderna e espaçosa. O chão de mármore preto e a escadaria com tapete rosado. Uma
suntuosidade! A esposa dele, também, trabalha e ajuda muito. Ela é engenheira pública260.
As tentativas foram muitas, mas definitivamente nosso destino estava escrito em
outra rota. Entre muitos esconderijos, rodamos por lugares que nem sei e, assim, fui
aprendendo mais e melhor os idiomas261, as diferenças de sotaque e o gosto por comidas e
temperos novos262. Descobrimos que a guerra havia acabado, há alguns meses num dos
jornais velhos que recolhíamos para forrar o fundo dos sapatos já gastos. Tentamos voltar
para casa, mas lá nada mais existia. Os poucos que restaram mal nos reconheceram,
estávamos magros e esfarrapados. Um velho e bom vizinho sentiu pena e nos ajudou
acolhendo por uns dias, ofereceu comida, roupa limpa e cuidou de algumas feridas,
inclusive, as d’alma com o aconchego e o calor humano. Mas as antigas lembranças doíam
demais, reforçadas pela falta que minha irmã caçula fazia naquele lugar...ela não agüentou
o frio e morreu logo que deixamos a casa263. Este bondoso vizinho acabou doando a meus
pais um lote de couro para que pudessem fazer algum dinheiro264 e fomos embora.
Chegamos a Kluj265, na Transilvânia, ou hoje, Romênia, onde sabíamos que vários
amigos estavam se arranjando e apareceu uma alternativa de alistamento no exército pela
luta em Israel. Meu irmão alistou-se e foi por conta do emprego como camareiro no navio
que ia em direção a Israel. Com esse dinheiro, mandou buscar meus pais e, quando
chegaram, já havia terminado a guerra. Ele lutou com os ingleses pela Fundação de Israel
e, depois da Declaração de Independência, voltou a trabalhar no navio266 fazendo a rota
para os Estados Unidos. Na passagem pela Itália, trazia bijuterias finas, caixas inteiras267.
259 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
260 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
261 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
262 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
263 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000.
264 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
265 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
266 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
267 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
Todos assim faziam, cada um trazia alguma coisa, revendia e começava a fazer dinheiro268.
Ele casou em Israel, mas suas duas filhas nasceram aqui e já são oito netos. Após sete
anos, chegaram aqui junto com meus pais. A filha mais velha dele, Sofia, mora em
Sorocaba e está convidando o pai para morar lá. Ela tem uma casa muito grande, um
jardim com árvores frutíferas, mas ele não vai agüentar os seis netos... para lá e para cá,
todos os dias? Ele merece sossego269.
O dinheiro que meu irmão mandou foi suficiente apenas para as despesas com as
passagens de meus pais. Entretanto, nós havíamos localizado Peter, um vizinho de meu
marido, que já vivia em São Paulo e mandou a carta de chamada para nós270.
Conseguimos vir pela Itália271. Afinal, vivíamos num país comunista, e não era fácil sair.
Tínhamos o dinheiro da venda do antigo estabelecimento comercial da família de meu
marido. Não era bem venda, era o acordo que conseguimos fazer com as pessoas que
encontramos morando na antiga casa de meus sogros. Um antigo vizinho272 ajudou-nos,
enviando o dinheiro das parcelas restantes para o endereço que íamos atualizando273.
Nosso percurso de saída foi no luxuoso “Orient Express”, porque não parava em
todas as estações e, assim, evitávamos a checagem de documentação que era sempre
muito desgastante. Atravessamos os Alpes274 a pé, clandestinamente. Andamos por mais
de 24 horas. Foi uma epopéia. Na época, com dinheiro comprava-se tudo. Apesar disso, eu
morria de medo e tremia tanto que precisava segurar o queixo. Depois que chegamos à
Áustria, uma entidade275 sionista nos ajudou a chegar à Itália para buscar o visto de
chamada no consulado brasileiro. Eu já estava grávida.
Durante a travessia para o Brasil, eu e meu marido tivemos aulas de português com
um viajante professor da Berlitz276. Foram duas semanas e isso ajudou a passar o tempo.
Só exista a Primeira Classe e a Turística. Na viagem, não havia restrições, podíamos andar
pelo navio, aproveitar do conforto e da comida farta. O tempo esteve sempre bom e
golfinhos acompanharam o navio.
Peter e sua família estavam nos esperando e ficamos, inicialmente, instalados em
sua casa em São Paulo, que ficava em frente à praça da Estação da Luz, onde tinha um
268 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
269 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
270 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
271 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
272 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
273 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
274 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000.
275 Relato de Margot a MFW em SP,.2000.
276 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
lago com peixes vermelhos e podíamos atravessá-lo por uma ponte. Foi o nosso tempo de
lua-de-mel.
Aos poucos começamos a sair de casa, havíamos ficado impressionados com as
favelas e a pobreza e demoramos a entrar em contato com as pessoas277. Outra coisa que
estranhamos eram os negros que nós nunca tínhamos visto, ao mesmo tempo, em que nos
encantava tanta mistura, desde japoneses278, árabes, italianos... tantos sotaques. As
nossas aulas de português, de fato, ajudaram, mas ainda assim ficávamos confusos ao
perceber que a maioria não sabia ler279, embora fosse muito atenciosa e prestativa280,
talvez até serviçais. Os costumes sobre higiene281 eram diferentes282, mesmo com água em
abundância.
Andar pelas ruas sem sombrinha, como era o costume local, parecia impossível283. O
clima quente e úmido284 deixava a roupa marcada pelo suor e nem assim as pessoas
deixavam de se cumprimentar com longas seqüências de beijos285, mostravam-se sempre
íntimos!!286
Eu comecei a trabalhar numa alfaiataria, no centro da cidade, que já tinha uma boa
freguesia da alta sociedade. Ele confeccionava paletós e blaizers e eu, no começo, ajudava
na parte de acabamento e depois passei a fazer também as provas. Devagar as freguesas
que vinham acompanhar os maridos, conversavam comigo pela minha facilidade de
comunicação287 e, também, porque falava vários idiomas. Assim, comecei a oferecer os
serviços de confecção de soutiens, fora de horário de trabalho, para senhoras que tinham
máquina de costura em casa288. Fui ficando sobrecarregada e, sutilmente, convidada a me
desligar da alfaiataria289.
Aos poucos, fiz amizades, grandes amigas. Tudo começava com a facilidade do
idioma290. A Lolita, que é polonesa, hoje é dona de uma grande confecção de moda
feminina, começou ajudando a camisaria da família do marido e resolveu fazer uma
277 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
278 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
279 Relato de Regina a MFW em SP, 2000.
280 Relato de Rosalia MFW em SP, 2000.
281 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
282 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
283 Relato de Regina a MFW em SP, 2000.
284 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
285 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000.
286 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
287 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
288 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
289 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
290 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
experiência com blusas femininas291. Deu tão certo que hoje não existe mais a camisaria,
ela tem uma fábrica com 2.000 funcionários, fazendo toda a linha feminina: calças, saias,
blaizers e blusas, só não faz roupa de festa292.
Tivemos ajuda de vizinhos e amigos para conseguir mudar de casa. A nova era
alugada e tinha um quarto grande, com cozinha e banheiro. Lá ficamos muitos anos e
tivemos dois filhos. Quando o primeiro nasceu, não dava mais para atender às clientes em
casa e acabamos alugando na região um galpão. Elas vinham com hora marcada para ter
sempre privacidade, e eu tinha muito cuidado com isso. Soutien e cinta precisam olhar,
mexer e exige muita paciência. Eu preparava um chá e servia com bolachas e uns
chocolates muito gostosos, que eu comprava da Monique. Ela é uma egípcia que chegou já
em 1952 ou 1953, fugindo das perseguições que estavam acontecendo contra os judeus
como retaliação à Fundação de Israel. Com ela, eu conheci um outro judaísmo. Tudo para
ela é cheio de sinais e significados e para minha surpresa, ela não falava ídish. Era uma
mistura de espanhol com hebraico, o ladino, as músicas diferentes, embora as
comemorações religiosas sejam as mesmas, mas havia outros tipos de comidas, todas
perfumadas293. Os chocolates dela também tinham perfume, mas ela conta que demorou a
acertar o ponto, pois derretiam muito fácil.294 Ela trabalhava fazendo e vendendo
chocolates. Este era o nosso segredo. Não podíamos falar sobre isso, porque ninguém,
entre os amigos deles, sabia que era ela que, praticamente, sustentava a casa. Quando a
situação deles melhorou, alugaram a frente do meu atelier, deixando uma entrada separada
e construíram uma bomboniere. Ficou bonita com uma vitrine muito apetitosa e o segredo
foi mantido295.
Eu conheci, certa vez, uma amiga dela de Trípoli, que vendia rendas e sedas
importadas e sabia fazer destas comidas perfumadas. Ela e a família não se adaptaram e
acabaram mudando para o Rio296. Quando vinha a São Paulo, sempre passava para ver
Monique e, assim, criamos uma amizade que me permitiu aprender exóticas receitas297 e
até algumas melodias que elas, às vezes, cantarolavam298. Até no jeito de ser mulher, eram
291 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
292 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
293 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000.
294 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000.
295 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000.
296 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
297 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000.
298 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
diferentes, mantinham-se reservadas dos homens, eram mais maquiadas , usavam muitas
jóias e quando se reuniam soltavam gargalhadas, como eu nunca tinha visto299.
Nós, eu e meu marido, fomos convidados, muitas vezes, para essas reuniões,
porque ele falava francês e era brincalhão, logo nos entrosamos com esse mundo tão
diferente!
O marido de Monique falava vários idiomas, também, e com seu charme foi
conhecendo muitas pessoas. Quando alguém precisava de qualquer coisa, perguntava para
ele. Ele ganhava comissão sobre a venda de terrenos, de contratos de aluguel, serviços de
mudanças, indicação de empregados. Era como se ele fosse o jornal de negócios do
bairro300. Até um dia que ele não voltou mais, e deixou Monique com a filha.
Foi
muito
duro e triste para ela. A filha, hoje, é professora e já tem uma neta que é linda como uma
boneca. Mas, ela nunca mais foi a mesma301. Hoje, mora no “Lar Golda Meier” e, quando a
visito, faço questão que leia a borra de café302, mais uma das coisas que tantas vezes
compartilhamos.
Meu atelier foi crescendo e ficando elegante. Comecei a pensar em fazer lingerie
prêt-à-porter, uns dois ou três conjuntos em vários tamanhos303. Foi quando meu marido,
que não ia bem com sua loja de material elétrico, resolveu ajudar-me no negócio. Aos
poucos, as primas começaram a ajudar e chegou o momento que contratamos, primeiro
uma costureira, depois uma modelista...
Uma delas mal falava português, só polonês. Para mim, isso era confortável, afinal
ela tinha uma história parecida e não tinha estudado português304. Ela imigrou com o
marido para o Rio e faziam lenços de cabeça e pescoço, porém o clima era quente e não
conhecendo nem religiosas, nem portuguesas que seriam as suas maiores clientes
resolveram tentar a sorte em São Paulo. Não foi muito bem, até que ela resolveu ser
assalariada.305
Com o negócio, começando a crescer, iniciei uma nova fase, que incluía viagens
para o exterior em busca de modelos e detalhes306, como a renda307. Aos poucos, comecei
299 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000.
300 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
301 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000.
302 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000.
303 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
304 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
305 Relato de Margot a MFW em SP, 2000.
306 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
307 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000.
a trazer algumas camisolas e dei início à confecção de camisolas e peignoir. Enfim, eu
estava realizando um sonho que eu pensava soterrado pelos muitos tanques de guerra.
Algumas vezes viajei à Europa... Paris, Roma, Londres, Mônaco, e... Sei lá, por onde
houvesse a moda308 para as várias coleções que produzi309, sobretudo, depois que o
atacado impulsionou o negócio310. Fui também para Nova York311. Sempre descobria mais
alguém da família para visitar. Hoje, tenho a minha filha em Miami e meus netos que
estudam em colégio judaico, diferente do que fizemos aos nossos filhos, porque, naquela
época, isso não era importante.312
A última vez que eu estive em Israel foi em Pessach de 1997 e cantamos várias
canções que eu pensei já ter esquecido, lembranças de, pelo menos, 70 anos313 atrás, mas
elas brotaram com aquela risada solta, bem de criança. Foi um reencontro com a família de
meu pai , que era de Odessa na Rússia. Ele decidiu ainda jovem sair de sua cidade e, em
Viena, formou-se em Ciências Econômicas314. Distinguia-se por dominar línguas. Além do
ídish, falava o alemão, inglês, italiano, o romeno e o húngaro e a avó escrevia em gótico.
Emigraram direto para Israel com os irmãos de meu pai, que ainda não estavam casados,
mas ele logo faleceu. Eu ainda lembro de um dos tios, um rapaz muito bonito, mas demorou
muito podermos nos reencontrar.
As primeiras viagens eu fiz com uma agência de turismo, que organizava excursões,
especialmente, para confeccionistas. Participavam pessoas do Rio de Janeiro também.
Aqui de São Paulo, fizemos um grupo muito bom.
Eu e minhas companheiras íamos aos lugares de atacado como Saint Dennis,
também bisbilhotávamos na Avenue Montaigne, Dior, Valentino, Givenchy e todo esse
mundo. Aquilo que me interessava, eu desenhava ou fotografava escondido315. Tinha de
saber fotografar. Às vezes, eu ia ao banheiro para desenhar alguma coisa importante, eram
muitos detalhes. Outras vezes, eu saía da loja e parava num café para desenhar. Eu me
lembro que na Galeria Lafayette precisava sair do andar, cada andar tem um tipo de
mercadoria. Eu sentava na escadaria de um andar para outro, descia, subia, era cansativo.
308 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
309 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
310 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
311 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
312 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
313 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
314 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
315 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
Já não é fácil sentar na escada e desenhar316. E se esquecia algum detalhe?! Precisava ir
lá de novo e mais sobe, desce, senta, levanta...
Quando comprava alguma coisa, era em lugares, onde os preços eram melhores e,
assim, poderia revender. Comprava meias, chinelos, complementos, às vezes, um batom
ou um perfume. Muita coisa eu vivi naquelas tantas vitrines!317. Nós não ficávamos só nisso.
Íamos a restaurantes, algumas noites em shows, um balé... Durante um tempo os maridos
também vinham. Às vezes, eram as esposas que acompanhavam, mas a maioria desse
grupo era de empreendedoras mulheres, mulheres trabalhadoras e muito inteligentes.
Ainda, lembro de uma que veio da Iugoslávia... muito despachada. Ela, às vezes, pedia
para fotografar algumas vitrines. Não me atrapalhava, porque ela fabricava mercadoria
diferente da minha.318
Peter, irmão de Don Fellipe, que para proteger a esposa judia, imigrou para cá,
tornou-se um empresário que influenciou muito nosso negócio. Com ele construímos uma
amizade de muita confiança, inicialmente, estimulada pela gratidão ao apoio recebido ao
final da guerra319.
Eles estavam enriquecendo com uma malharia e nos incentivaram a apostar no
mercado atacadista. A primeira coleção foi vendida por seus próprios representantes.
Assim, o atacado apareceu na minha vida. Só ficou a pronta entrega.
Cometi muitos erros no começo. O meu primeiro mostruário foi tamanho 46, eu não
sabia fazer atacado. Eu engordei um pouquinho, fiquei entre 44 e 46 e fiz do meu tamanho,
e se não vendesse?...Então, eu usaria! Mas, Peter explicou-me sobre as vantagens da
apresentação no tamanho 40. A roupa ficava mais modelada, a peça mais atraente e até
mais econômica, ele me ensinou muitos truques desse novo mundo320.
Meu irmão quando saiu de Israel, trouxe uma reserva de dinheiro, mas não muito.
Com esse dinheiro, alugamos outro galpão com espaço maior321 e no auge do nosso
negócio a coleção chegou a ter 30 peças, entre cintas, soutiens e calcinhas, camisolas e
peignoir de diferentes modelos. Devagar a coisa foi engrenando, até o governo inventar um
viaduto, este que passa pelo Largo do Arouche. Precisaram demolir uns prédios, umas
316 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
317 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
318 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
319 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
320 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
321 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
casas e, assim, mudamos para a Rua José Paulino. A minha mãe tinha um conterrâneo que
ofereceu um galpão322 com 300 metros quadrados.
Aqui em São Paulo tinha muita malandragem323, assim, era mais garantido fazer
negócios entre conhecidos324. Soubemos que outros imigrantes vieram trazendo um lote de
couro e alugaram um depósito. Um dia foram ver a mercadoria, e tinha sumido uma parte,
mas a polícia não conseguiu achar325. Acho que esses acontecimentos fizeram com que
nós, os imigrantes, de modo geral, ficássemos mais fechados como um grupo, pelo menos,
no princípio. No caso dos judeus, isso era mais forte porque algum anti-semitismo ainda se
podia sentir. É caso de uma senhora que vive atualmente no Lar com minha amiga
Monique. Ela teve um açougue326 num bairro longe da maior parte dos imigrantes judeus.
O negócio funcionava bem até a morte de sua mãe. Por causa dos preparativos
diferentes, descobriram que eram de judeus e deixaram de comprar, fantasiando sei lá o
que sobre a carne. Ela hoje viúva diz que acabou ficando pobre e precisando de ajuda por
causa do anti-semitismo, mais uma vez327. Quando esse assunto aparece entre as
moradoras do Lar, cada uma conta e reconta sua história. Aparecem algumas surpresas,
como a Riva que cresceu como protestante328 e tempos depois se reconverteu ao judaísmo,
ou ainda, o caso dos filhos de Varja que só depois de adultos descobriram serem judeus e
não se interessaram por resgatar o vínculo329.
Quando alguém ainda reclama da vida, Clara exalta o significado político da
existência do Lar “Golda Meier”, motivo suficiente para se orgulharem da cultura judaica
que cultua a solidariedade330, mencionando ainda o fato de São Paulo ter acolhido tantos
imigrantes e terem encontrado espaço e liberdade para progredir. Clara e seu marido foram
ativistas políticos, e mantêm essa força em sua alma.
Eu tive sorte de não mais reviver esses conflitos, mas mantenho certa discrição331.
Nós crescemos economicamente e construímos uma fábrica, onde eu passava a maior
parte dos dias. Eram 300 metros quadrados com mais de 40 funcionários e representantes
para controlar. Eu ficava na oficina o dia todo, mas, na hora do almoço, eu recebia
322 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
323 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
324 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
325 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
326 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
327 Relato de Zelia a MFW em SP, 2000.
328 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000.
329 Relato de Suzana a MFW em SP, 2000.
330 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000.
331 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
deliciosos pratos que só a minha mãe sabia fazer. Ela também cuidava dos meus filhos
pequenos.
Demorou um tempo, até podermos ter uma empregada332. Aliás, elas me
assustavam um pouco com sugestões que pareciam feitiçaria, como curar dor de barriga
com chá da goiabeira do jardim do Seu Antônio ou a dor de ouvido com um copo d’água
embaixo do berço, enquanto o bebê dormia333. Por essas e outras, minha mãe sempre
ficava por perto, ela faleceu logo após uma viagem que fizemos pela Europa e fomos até
Israel para visitar seu irmão 20 anos mais velho. Ele fez “aliá la-Arets”334, quando ela ainda
era pequena e só se encontraram, após a guerra. Marcaram um encontro, para reconhecer
um ao outro, pensavam precisar combinar sinais, ele pôs uma flor na orelha, mas ela o
identificou sem nem olhar a flor, pois eram bastante semelhantes335.
Meu filho, também, é muito parecido com eles. Aliás, foi ele quem nos resgatou para
a comunidade judaica. Ele fez amizades e acabou freqüentando a CIP, o grupo de
escoteiros e passamos a freqüentar a sinagoga.
possibilitaram passar férias no
Guarujá e,
As condições econômicas
nos
assim, os laços com os amigos foram
fortalecidos. Veio o “Bar-Mitzva”336 e depois de seu casamento com a Denise, passamos a
freqüentar, inclusive, o clube Hebraica. Recomeçamos a sentir o espírito de solidariedade
com a comunidade e os menos afortunados.
Hoje fazemos doações para várias entidades aqui de São Paulo e, também, de
Israel337. Para os meus filhos crescerem, muitos rolos de tecido foram enfestados, quero
dizer, tecido esticado em camadas para cortar um determinado modelo e tamanho338.
Cresceram e estudaram, tudo graças ao sucesso de nossa marca. Eu gostava de ficar nas
vendas, na modelagem, escolhia padronagem, fazia a coleção, eu fazia moda de São
Paulo. Eu podia fazer sucesso porque tive sabedoria em relação a meu marido e à minha
família. As mulheres podem ser a mentora339, mas deve manter a humildade em casa340.
Passou o tempo e as dificuldades econômicas afetaram nosso negócio, os grandes
concorrentes vieram e não mais conseguimos competir341. Mudamos para um aluguel mais
332 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
333 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000.
334 Expressão no idioma Hebraico que significa imigrar para a Terra Santa – Israel.
335 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
336 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000.
337 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
338 Relato de Linda a MFW em SP, 2000.
339 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000.
340 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000.
341 Relato de Maura a MFW em SP, 2000.
barato, na mesma região, sendo a fábrica nos fundos e na frente uma pronta entrega.
Quando eu fechei o negócio, vendíamos quinhentas peças por mês. Houve um tempo bom,
eu fazia a moda. Eu gostava muito do meu ramo.
A vida continua quando podemos olhar para frente. A minha filha é enfermeira e meu
genro é médico cirurgião-vascular, não-judeu e eles se entendem muito bem. Moram em
Cuiabá e resolveram a circuncisão dos filhos no hospital342. Eu vou para lá, vou curtir os
netos, tenho três. Pensei em talvez trabalhar por lá, mas ela não vai me deixar, ela acha
que é tempo de ter hora343. Na minha vida, quando poderia parar de trabalhar, ficamos com
medo da economia que não é muito estável e, nesta indecisão, só parei quando meu
marido ficou doente e precisava de cuidados344. Não tivemos mais tempo, perdemos a
nossa hora, mas com isso vivemos um tempo de mais conforto.
Com essas e outras histórias, é que eu vou para a casa da minha filha.345 Vou ter
hora para viver outros dons, que nunca é tarde para descobrir e recontar outras histórias346.
342 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000.
343 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
344 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000.
345 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000.
346 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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Nomes fictícios das mulheres imigrantes judias empreendedoras em São Paulo, a partir de
1945, e seus relatos registrados no 2º semestre de 2000 ao 2º semestre de 2003.
Amelie; Claudete; Dália; Daniela; Esmeralda; Isabel; Juliette; Linda; Luiza;
Margareth;Maura; Miriam; Nitza; Regina; Rosália; Ruth; Samantha; Sofia; Suzana; Zelia
Histórias de Vida
Nice Weiss - Núcleo de História Oral do Arquivo Histórico-Judaico-Brasileiro - SP
Myetta Garon – Entrevista gravada e texto aprovado para publicação neste estudo.
Fotos
Fotos e publicações pessoais apresentam seus créditos no texto de referência.
Fotos de acervo do Arquivo Histórico-Judaico-Brasileiro - SP - apresentam seus créditos no
texto de referência.
Fotos da Internet apresentam seus endereços e datas de consulta no texto de referência.
Mapas
Adaptação livre dos Mapas de Martin Gilbert (GILBERT,Martin. Atlas de la História Judia.
Jerusalém: La Semana Publicaciones, 1978. p.60)
Periódicos
Matérias sobre as entrevistadas fazem parte de acervo particular e apresentam seus
créditos no texto de referência.
Revista “Shalom” – fevereiro, 1967 (Acervo AHJB)
Jornal ” Aonde Vamos” - fevereiro, 1949 (Acervo AHJB)
Jornal “Crônica Israelita” - janeiro, 1952 (Acervo AHJB)
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