histórias recontadas: imigrantes judias empresárias em são paulo
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histórias recontadas: imigrantes judias empresárias em são paulo
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS ÁREA DE LÍNGUA HEBRAICA, LITERATURA E CULTURAS JUDAICAS HISTÓRIAS RECONTADAS: IMIGRANTES JUDIAS EMPRESÁRIAS EM SÃO PAULO (1945-1956) Marie Felice Weinberg São Paulo 2004 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS ÁREA DE LÍNGUA HEBRAICA, LITERATURA E CULTURAS JUDAICAS HISTÓRIAS RECONTADAS: IMIGRANTES JUDIAS EMPRESÁRIAS EM SÃO PAULO (1945-1956) Marie Felice Weinberg Dissertação apresentada à área de Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª Dra. Berta Waldman São Paulo 2004 Weinberg, M. F. Histórias Recontadas: Imigrantes Judias, Empresárias em São Paulo. (1945-1956) Dissertação (Mestrado) São Paulo,2004. Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. RESUMO O Objetivo da dissertação é o de analisar as diferenças entre as realidades vivenciadas e os discursos construídos de 22 mulheres imigrantes judias na cidade de São Paulo, no período de 1945 a 1956 - que se tornaram empresárias. Diante das circunstâncias favoráveis encontradas no cenário político, econômico e social do período, essas mulheres, partícipes do grupo étnico, teceram condições diferenciadas por intermédio das iniciativas “invisíveis”, buscando soluções econômicas para garantir as necessidades familiares. Analisar suas histórias confirma que as características específicas do grupo estudado consolidaram a identidade ao compor soluções em segmentos profissionais determinados, assim como na formação de bairros étnicos. A rede de entrevistadas estendeu-se pelo universo cultural judaico imigrante: 17 mulheres ashkenazitas, três sefarditas e duas orientais, sob uma abordagem multicultural a respeito de suas ações. A História Oral foi a metodologia escolhida para formar a amostra e interpretar as histórias dessas mulheres. Neste sentido, o desafio está em contradizer os discursos normativos, encarados como naturais, talvez, por corresponderem às narrativas mesmo quando as imagens teimam em revelar outras verdades. Desse modo, este trabalho poderá ser utilizado para questionar, ainda que só no plano discursivo, as relações de poder na estrutura familiar judaica e nos demais grupos culturais que imigraram para São Paulo. Diante da construção desse universo, percebe-se que tornar visíveis as iniciativas das mulheres significa recontar os discursos, antes entesourados na intimidade da memória. Palavras-chave: Imigração, Judeus, Empreendedorismo, Gênero, História Oral Weinberg, M. F. Re - telling life histories: Jewish women immigrant entrepreneurs in Sao Paulo (1945-1956). USP. São Paulo, 2004. SUMMARY The dissertation sought to analyze the differences found between experienced reality and constructed speech produced by 22 Jewish women who immigrated to the city of Sao Paulo from 1945 to 1956 and have shown entrepreneurial initiative. In face of the favorable circumstances found in the political, economic and social scenery over that time span, these women, who are part of a distinct ethnic group, have woven distinct life conditions by undertaking “ invisible” initiatives, in their search for economic solutions that would supply the needs of their families. The analysis of their life histories confirms that the specific characteristics of this study group led them to consolidate their identities by setting up solutions inside certain occupational segments, and in ethnical neighborhoods. The net of women interviewed expanded throughout the cultural universe of Jewish immigrants, with 17 Ashkenazim, 3 sepharadim and 2 oriental women, under a multi-cultural approach on their actions. Oral history was the methodology of choice to assemble and interpret these women’s histories. The challenge here consists in contradicting the normative discourses considered as natural, perhaps because these correspond to the narratives even when images insist on shedding light upon different types of truth. Therefore, this study may be used to question, if only in the discursive plane, the power relations embedded in the familial structure of the Jewish and other cultural groups who have immigrated to Sao Paulo. It becomes clear that the act of bringing visibility to these women’s initiatives consists in re-telling their discourse, which was previously enshrined inside the intimacy of memory. Key words: immigration, Jews, entrepreneurial skills, gender, oral history. AGRADECIMENTOS Inicialmente, dirijo meus agradecimentos às mulheres que participaram da construção do universo pesquisado e tornaram possível este trabalho que contou com o apoio da CAPES. Não foram pouco relevantes os olhares cuidadosos da banca de qualificação, Profª Dra. Eni de Mesquita Samara e a Profª Dra. Nancy Rozenchan, às quais, pela primeira vez, apresentei meu trabalho para uma análise crítica, quando recebi comentários que em muito colaboraram para a efetiva consolidação desta pesquisa. No período, também, conquistei o entusiasmo da Profª Dra. Eni de Mesquita Samara que acreditou em meu potencial e neste projeto, ajudando a finalizá-lo desta maneira... Importante agradecer os cuidados e zelos que obtive da Profª Dra. Berta Waldman, em momentos cruciais, sem os quais não teria chegado a finalizar este estudo. Não pouco significativas foram as participações e colaborações de Ada Waldman Dimantas, Noêmia Cutin e Cecília Simis Schwarz. No Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, a dedicação de Mirella Barki, também, não pode deixar de ser citada, bem como o interesse de cada parágrafo das versões dos vários capítulos delicadamente analisados pela Profª. Dra. Beatriz Kushnir. À equipe de trabalho do CEDHAL, especialmente, Ismênia Tupy e Vanessa dos Santos Bodstein Bivar, bem como Vilma Laurentino Paes, meu suspiro grato pela acolhida calorosa e interferências que muito acrescentaram na ampliação de meus limites. Deixar de mencionar o apoio inesgotável da Profª. Dra. Rachel Mizrahi, com seus comentários, interjeições, indicações, correções e suporte emocional seria desconsiderar seu papel essencial na construção deste percurso, que eu espero ter realizado satisfatoriamente. A meus filhos, Dany e Ronnie Chvaicer, pelo apoio em mais de um momento, fazendo ou deixando de pedir. Às amigas, que compõem minha família escolhida Deborah Karin Telesio, Simone Leifert, Elizabeth Camargo Fonseca, Cristina Mozer, Marlene Szpigel, Maria Penha do Nascimento, Heidi Baur, Cristiana Serrano, Gabriela Mariano e Márcia Dancini, pois cada uma em sua habilidade facilitou o processo de execução desta dissertação. Aos amigos Orlando Marques, Luiz Alberto Sanches de Oliveira, Alberto Kremnitzer, João Chakian, Abrão S. Feferman, que deram o respaldo e estimularam essa aventura. Ainda, Moradia Associação Civil (ONG) que, através de seus dirigentes flexibilizaram o horário de trabalho, permitindo a minha freqüência às aulas e em grupo de estudos. Faço ainda um reconhecimento especial a todos os professores que percorreram vários parágrafos dos corredores e bibliotecas que fazem parte da Faculdade de História, Sociologia, Economia e Psicologia Social, corrigindo e dando rumo a seguir, em momentos em que a luz parecia querer apagar-se. Finalmente e, não menos importante, agradeço àqueles que despertam em mim uma pessoa melhor (Você) e retribuo com meu aperfeiçoamento constante. SUMÁRIO Lista de Tabelas Lista de Gráficos Lista de Fotos Lista de Figuras Abreviaturas Resumo/ Abstract Introdução ......................................................................................................... 01 Capítulo I - MULHERES EM MOVIMENTO ..................................................... 11 1.1 1.2 1.3 Papéis ao longo da história .................................................................... 12 Cenário brasileiro nas décadas de 1940 -1955 ...................................... 17 Mulheres na cidade de São Paulo ......................................................... 37 Capítulo II– SÃO PAULO: BRAÇOS ABERTOS AOS IMIGRANTES JUDEUS 2.1 2.2 2.3 42 Imigrantes judeus em São Paulo ............................................................ 43 Diferentes grupos culturais judaicos ....................................................... 55 Contornos de Identidade .......................................................................... 71 Capítulo III – EMPREENDEDORAS INVISÍVEIS .............................................. 84 3.1 3.2 3.3 Oportunidade e circunstâncias: imigrantes judias em questão .............. Empresária Myetta Garon, uma história assumida ................................ Histórias Recontadas ............................................................................. 85 100 109 Considerações finais ......................................................................................... 131 Fontes e Bibliografia.................................................................................. Anexos Anexo 01 – Outras tabelas referentes às entrevistas Anexo 02 – Roteiro de Entrevista Anexo 03 – Breviário das entrevistas 152 Lista de Tabelas TABELA 01 - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo feminino .......... 32 TABELA 02 – Distribuição entre sexos nos diversos ramos de atividades ..... 34 TABELA 03 – Distribuição entre os sexos de brasileiros e estrangeiros 39 TABELA 04 – Participantes do empreendimento ........................................... 48 TABELA 05 – Apoio de entidade para a imigração ......................................... 66 TABELA 06 – Bairro de Instalação à chegada das entrevistadas .................. 75 TABELA 07 – Matrimônio Endogâmico ......................................................... 77 TABELA 08 – Contribuições Sociais ............................................................... 79 TABELA 09 – Participação em clubes sociorrecreativos ................................ 79 TABELA 10 - Tipos de casamento entre os filhos .......................................... 80 TABELA 11 - Religião que a filha mantém em casa ....................................... 80 TABELA 12 – Religião na origem ................................................................... 86 TABELA 13 – Prática religiosa hoje ................................................................ 87 TABELA 14 – Fatores que imputam a iniciativa empreendedora ................... 88 TABELA 15 –Data do início do empreendimento ........................................... 88 TABELA 16 – Duração e número de funcionários no empreendimento ......... 89 TABELA 17 – Contatos para a imigração ....................................................... 89 TABELA 18 – Profissão do pai na origem ....................................................... 90 TABELA 19 – Formação profissional da entrevistada .................................... 91 TABELA 20 – Privilégios entre irmãos / filhos sobre a educação na origem 92 TABELA 21 – Escolaridade das filhas............................................................. 93 TABELA 22 – Contribuição das filhas na economia familiar ........................... 94 TABELA 23 – Participação familiar no empreendimento ................................ 96 TABELA 24 – Grupo Cultural Judaico ............................................................. 110 TABELA 25 – Mulher no trabalho na origem .................................................. 111 TABELA 26 – Condições financeiras na imigração ........................................ 112 TABELA 27 – Participantes do empreendimento ............................................ 114 TABELA 28 – Coabitação na Imigração.......................................................... 115 TABELA 29 – Tipo de trabalho de acordo com gênero .................................. 116 TABELA 30 – Segmento do Negócio .............................................................. 116 TABELA 31 – Estado Civil na Imigração ......................................................... 117 Lista de Gráficos GRÁFICO 01 – Distribuição em porcentagem dos participantes dos negócios das entrevistadas ............................................................................. 48 GRÁFICO 02 – Distribuição por porcentagem dos bairros de instalação na chegada das entrevistada ............................................................................... 76 GRÁFICO 03 - Distribuição em Porcentagem por tipo de contribuição a entidades entre as entrevistadas .................................................................... 78 GRÁFICO 04 – Distribuição em porcentagem da participação em clubes entre as entrevistadas ..................................................................................... 79 GRÁFICO 05 – Distribuição em porcentagem da religião que as filhas das entrevistadas mantêm em casa ...................................................................... 81 GRÁFICO 06 – Distribuição em porcentagem dos privilégios concedidos entre os gêneros na origem ............................................................................ 92 GRÁFICO 07 – Distribuição em porcentagem quanto ao nível de formação das filhas das entrevistadas ............................................................................ 93 GRÁFICO 08 – Distribuição em porcentagem da contribuição das filhas das entrevistadas na economia familiar ................................................................. 94 GRÁFICO 09 – Distribuição em porcentagem das entrevistadas quanto ao trabalho na origem .......................................................................................... 111 GRÁFICO 10 – Distribuição em porcentagem das condições financeiras das entrevistadas na imigração ............................................................................ 112 GRÁFICO 11 – Distribuição em porcentagem de participantes no empreendimento ............................................................................................. 114 GRÁFICO 12 – Distribuição em porcentagem sobre o segmento de empreendimento das entrevistadas ................................................................ 116 GRÁFICO 13 – Distribuição em porcentagem da opinião sobre os homens que deixam ou precisam que a mulher trabalhe ............................................. 119 GRÁFICO 14 – Distribuição em porcentagem da opinião a respeito das mulheres que trabalham ................................................................................. 119 GRÁFICO 15 – Distribuição em porcentagem do exercício da autoridade na origem das entrevistadas ................................................................................ 121 GRÁFICO 16 – Distribuição em porcentagem da rede de relacionamentos .. 125 Lista de Fotos FOTO 01 - Mulher sozinha em via pública ...................................................... 11 FOTO 02 – Mulheres e o Homem ................................................................... 16 FOTO 03 – Cora Coralina ............................................................................... 24 FOTO 04 – Obelisco no Parque do Ibirapuera ............................................... 25 FOTO 05 – Esquina e a garoa paulistana ....................................................... 27 FOTO 06 – Parque do Trianon ....................................................................... 33 FOTO 07 – Lina Bo Bardi ............................................................................... 35 FOTO 08 – Vista aérea do Parque do Ibirapuera ........................................... 36 FOTO 09 – Perdas e Ausências ..................................................................... 40 FOTO 10 – Trilhos de bonde desembocam pelo Bom Retiro ......................... 42 FOTO 11 – Famílias de “Irmãos de travessia” – Schifsbrider ........................ 49 FOTO 12 – Atividades sociais femininas ........................................................ 53 FOTO 13 – Agrupamento de ashkenazitas em meados do século XIX .......... 57 FOTO 14 – Livro Sagrado - Torah................................................................... 58 FOTO 15 – Mesa para comemoração de Shabat ........................................... 62 FOTO 16 – Durante o Mandato Britânico ....................................................... 67 FOTO 17 – Amuleto – Chamsa ....................................................................... 70 FOTO 18 – Vista do Muro das Lamentações no setor feminino ..................... 81 FOTO 19 – Mulheres Empreendedoras em atividade .................................... 84 FOTO 20 - Myetta Garon na preparação de um desfile da coleção de inverno em 1992 ............................................................................................. 106 FOTO 21 – Reencontro Familiar ..................................................................... 115 FOTO 22 – Conquista de Tia Barki ................................................................. 122 Lista de Figuras FIGURA 01 – Anúncio do Atelier de Costura Ariela ........................................ 98 FIGURA 02 – Anúncio do Grand Prix em Revista .......................................... 98 FIGURA 03 – Página de jornal dos eventos e anúncios ................................. 99 FIGURA 04 - Anúncio em alemão de Modas Margarida ............................... 99 FIGURA 05 – Anúncio de Ester Gorovitz ........................................................ 100 FIGURA 06 – Matéria de revista sobre a empresária Myetta Garon .............. 109 Lista de Mapas MAPA 01 – Distribuição da população judaica no início do século XX nas comunidades de origem .................................................................................. Abreviaturas MFW – Marie Felice Weinberg 56 INTRODUÇÃO Os estudos realizados sobre a imigração de judeus em nosso país concentramse em núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, como único partícipe de empreendimentos econômicos e manutenção (sustento) da estrutura familiar. Recentes estudos sociológicos vêm mostrando a importância das mulheres no mercado de trabalho, mas nenhuma pesquisa acadêmica abordou as mulheres judias que, inseridas no contexto familiar, ousaram empreender ações em busca de soluções econômicas, visando ao lucro para garantir as suas necessidades e de seus familiares. Assim, este estudo caracteriza-se pelo ineditismo ao pesquisar essa temática. Nas últimas décadas, as investigações sobre a imigração judaica ampliaram-se, e sociólogos e historiadores, quando fundamentam suas pesquisas, ainda situam a participação masculina, como representante. Como chefes de família ou como profissionais são responsabilizados, inclusive, pela inserção do grupo no meio social, restando às mulheres o papel de figurantes e elementos passivos no enredo familiar. O tema abrange o período que se estende do final da Segunda Guerra Mundial até 1956, quando o General Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder do Egito, rompendo o regime monárquico do rei Faruk. Ao criar a Liga Árabe, o presidente e as demais autoridades dos países árabes do Oriente Médio partiram para investidas bélicas contra Israel, estado fundado em 1948, passando a ocupar o referencial de identificação de todo judeu. Os líderes das nações árabes mobilizaram-se e apoiados pela União das Repúblicas Socialistas Soviética adotaram uma política antiisraelense, levando ao rompimento das antigas e amistosas relações entre muçulmanos e judeus. Os judeus, em sua maioria, viviam nessas regiões e proibidos de emigrar para Israel transferiram-se para países da Europa e América, entre os quais o Brasil. Embora ainda vigorassem restrições à entrada de imigrantes, as cidades brasileiras receberam, terminada a Segunda Grande Guerra, os sobreviventes do Holocausto e os refugiados das antigas comunidades ashkenazitas e sefarditas dos países da Europa Ocidental e Oriental e os banhados pelo Mediterrâneo. No período, a cidade de São Paulo já apontava os números de 2.198.096 habitantes no censo de 1950, que demonstram a multiplicação de sua população em relação a 1,32 milhão de habitantes em 19401, fruto de movimentos migratórios que, ao final de 1959 já somava mais 700.0002 novos imigrantes em busca de cenário pacífico e da economia em crescimento. Desse modo, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde vivenciaram circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, ao imigrarem encontraram no sudeste brasileiro, um período de crescimento demográfico e econômico, circunstâncias favoráveis às iniciativas profissionais. A História Oral foi a metodologia escolhida para compor e interpretar as histórias de vida de mulheres que imigraram a São Paulo, entre 1945 e 1956 que trabalharam, visando ao lucro apoiadas em seu próprio capital. Ao discutir a documentação “viva”, a História Oral como ainda não aprisionada pela linguagem escrita, abre espaço para um recontar da história. Neste trabalho, apresentamos a história compartilhada3, considerando os múltiplos e particulares relatos das entrevistadas, sujeitos à interpretação captada pela entrevistadora e à memória coletiva (as histórias ouvidas e absorvidas como sendo da própria vivência). Na busca dessa unidade, ao escrever e ao serem lidas essas histórias tornaram-se frutos de ambas, colaboradoras e autora. A partir da década de 80 do século XX com o esfacelamento da URSS e o surgimento de novas lideranças de grupos minoritários, ficou evidente a necessidade de contar e recontar histórias de indivíduos. A História Oral fez seu papel e vem resgatando aquela que é a “ história vista de baixo, dos excluídos e não só uma história politizada, contaminada pelo viés do discurso tradicional”4 dominante. Assim, a História incluiu as minorias, tornando-se um instrumento metodológico fecundo para compreender o universo do estudo escolhido. A pesquisa qualitativa foi a técnica utilizada, visando a criação de espaço dentro da História desse grupo étnico “valendo como revisão de situações estabelecidas, pois, quase sempre, ela propõe alterações interpretativas que contrastam com a ordem vigente”5 1 CARIGNATO, T.;ROSA,M. D; PACHECO Fº, Raul A.(Org.). Psicanálise, Cultura e Migração, pp. 94-95 2 LESSER,Jeffrey. A negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil, p. 26. 3 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente, pp. 37-39 4 BURKE, Peter (Org.) A escrita da História: Novas perspectivas, pp. 8 -13 5 MEIHY, J. C. Sebe Bom. Manual de História Oral, p. 15. Na década de 90 do século XX, a História Oral é inserida no currículo dos cursos universitários brasileiros, conseqüência de novas reflexões a respeito da História Tradicional. Vários foram os discursos que participaram deste trabalho e que integraram e recontaram a realidade. A reconstrução dos fatos e a colagem das informações ganharam diversas formas, frutos da técnica escolhida que valoriza também o olhar do observador, quando ao descrever a história de vida coloriu os efeitos do momento em que a história foi narrada. O diálogo entre observador e sujeito efetivado na entrevista (“entre-vistas” ou ”olho no olho”) ganhou vários significados. As histórias vão frutificar-se e, apoiadas na integração entre discurso, fatos e capacidade interpretativa da pesquisadora, assim, uma outra história foi literariamente recontada. Em uma abordagem quantitativa, definida a população, busca-se um critério de representatividade numérica que possibilite a generalização dos conceitos teóricos. Neste trabalho, esta barreira não foi vencida. Os números do universo constante nas diversas tabelas são discutíveis, se considerarmos o período da imigração e as barreiras impostas ao grupo étnico em questão. Com base na dificuldade para encontrar o valor numérico na definição da amostra, o trabalho iniciou-se com a busca das empresárias e seus relatos. Novo obstáculo surgiu. As mulheres casadas até estes dias, não aceitam assumir seus papéis de empreendedoras, colocando suas ações na dimensão de “ajuda”. Desta maneira, o quase ausente objeto da pesquisa ficou reduzido. Para isso, foi necessária uma abordagem mais abrangente a respeito das nomenclaturas utilizadas nas ações de cunho econômico e apoiadas no “próprio” capital, para a composição da amostra. Além da investigação qualitativa, o fenômeno pode ser estudado e, alcançada a compreensão da interação6 de dados, do grupo social ou da representação.7 6 RODRIGUES, Maria L.; NEVES, Noemia P. (Org.) Cultivando a pesquisa: reflexões sobre a investigação em ciências sociais e humanas, pp. 56-57 7 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde, p. 102 O universo selecionado exigia como pré-requisito: ser mulher, judia, imigrante na cidade de São Paulo no período e de ter exercido o papel de empresária8 Assim, o foco primordial do trabalho foi a iniciativa prática das mulheres, a identificação do capital inicial próprio, independente do sucesso do empreendimento. Embora os “economistas e sociólogos façam distinção entre os diversos tamanhos das empresas”9: micro, pequena, média e grande, estas medidas ajustadas à capacidade produtiva, quantitativa, incorporações tecnológicas, hierarquização e sistematização, em geral, pontuadas pelas entrevistadas, não foram objetos de análise, pois o relevante para a pesquisa foi a iniciativa empreendedora. Documentos em arquivos (públicos e particulares), jornais da época, revistas culturais e impressos comunitários permitiram ampliar e corrigir eventuais distorções da construção da realidade, resultantes de memórias emocionais. Os discursos que participaram, integraram e reconstruíram essa realidade são vários. A colagem dos fatos e das informações em suas diversas formas documentais, inclusive, teses e dissertações sobre outras etnias abriram espaço para reflexões sobre o significado da participação dessas mulheres na luta pela sobrevivência, como empreendedoras na cidade de São Paulo, até agora invisível, ao olhar da história “tradicional” sobre a comunidade judaica. É razoável admitir que o tema das mulheres judias, imigrantes e empreendedoras é um grupo inexistente, de acordo com o discurso patriarcal. Ainda que reconheçam os eventos, somente os consideram como únicos e sem significado. O número de acontecimentos que compuseram este estudo é pequeno, mas impele a certos questionamentos, como a falta de espaço social ao empreendedorismo feminino ou a perpetuação do modelo conservador da sociedade patriarcal judaica? Ao aprofundar as análises, podemos colocar os olhos sobre estudos acadêmicos e constatar que as mulheres, como sujeitos históricos são a conquista de um movimento iniciado, em 1960, por ativistas femininas. 8 “Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu funcionamento e eficiência. Encarrega-se de reunir e coordenar os fatores de produção no processo produtivo, avaliar os mecanismos de oferta e demanda e assumir os riscos inerentes ao empreendimento. É quem cuida do suprimento de capital, compra e combina os insumos e decide o nível da produção...O administrador, por seu lado, só é considerado empresário na medida que assume os riscos do empreendimento (por participação no capital e nos lucros, por exemplo.” SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia , p. 138-139. 9 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 13. Na apresentação de um seminário com Derrida, em março de 1984, a Professora de Princenton sintetizou: Finalmente, o desvio para o gênero (aqui como divisão natural dos sexos) na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu próprio espaço, pois gênero é um termo aparentemente neutro, desprovido de propósito ideológico imediato.10 No caso das mulheres judias, a História Oral aplica-se de maneira mais pertinente, pois até muito recentemente sua história era só escrita pelas letras e olhares masculinos. As mulheres, objeto desta pesquisa, ousaram ações diferenciadas, sempre descritas na condição de objeto da estrutura familiar patriarcal aqui e no resto do mundo, onde as comunidades judaicas puderam instalar-se. Este estudo poderá ser utilizado para questionar as relações de poder, ainda que só no plano discursivo, assim, há o desafio em divulgar as 22 histórias que poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais, talvez, por corresponderem a uma narrativa patriarcal que até aqui permanece preservada pelas próprias mulheres. Neste trabalho, marcou presença uma norma de conduta tácita, que preserva o poder masculino nos atos e conquistas econômicas. As mulheres, ao exigirem a omissão das identidades, fato que ao longo do trabalho será analisado, confirmaram sua subordinação. Endossamos, então, o parecer de Hatanaka (1993), historiadora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), que em seus estudos sobre a imigração japonesa pondera o seguinte: (....) ainda que a natureza sustentada do fenômeno migratório precise de um nexo econômico fundamental, devemos manter uma grande abertura para a possibilidade de, ao mesmo tempo em que resolviam problemas econômicos, muitos imigrantes estavam ao mesmo passo resolvendo conflitos e problemas de outra ordem, nomeadamente de ordem pessoal e familiar. Essa dimensão extra-econômica pode contribuir para acentuar a enorme força e significado da migração”.11 Os arquivos: Histórico Judaico Brasileiro de São Paulo, da Federação Israelita de São Paulo, das sinagogas (o Beit-El, CIP) e da Associação Brasileira ”A Hebraica” ajudaram na composição dos nomes da rede inicial do conjunto feminino analisado. Histórias de vida adicionais foram incorporadas ao trabalho, graças às indicações fornecidas pelas próprias entrevistadas que compuseram o universo das entrevistas. Para definir o grupo de mulheres judias, imigrantes e empreendedoras, a “autoidentificação”12 serviu como referencial, abrangendo um universo desde as laicas ou não religiosas até as ortodoxas. A discussão sempre atual sobre o significado de identidade judaica converge para a questão dos valores que geram diferentes processos identificatórios. As mulheres judias carregam dentro de si uma dubiedade maior, definida como responsável pela hereditariedade étnica, que é cobrada sobre a educação religiosa e as tradições culturais dos filhos. Como mães, espera-se a repetição de comportamentos que se perpetuem na continuidade que permeia a literatura, em geral: (....)em inércia, a sabedoria de seu grupo e sem voz própria, sorrir levemente, preparar a especial toalha branca, os castiçais polidos e acender as velas que anunciam o dia santo e prenunciam um jantar com gosto de séculos”13 As entrevistas foram individuais, na residência da família ou no escritório, e o tempo de duração não foi previamente limitado, mas estendeu-se em média por três horas. Diante da presença inesperada do marido ou filho, no momento da entrevista 10 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE,Peter (Org). A escrita da História.Novas perspectivas. p. 13 11 HATANAKA, M. L. E. O processo judicial da "Shindo Remmei", um fragmento da História dos Imigrantes Japoneses no Brasil. 12 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.132 13 RAWET, Samuel. Contos do Imigrante, p.25 percebemos que o discurso alterava-se. Neste caso, marcávamos novos encontros para elucidação da história. O “grupo de trabalho” foi sendo descoberto e melhor compreendido com base no roteiro semi-estruturado14 com perguntas elaboradas no intuito de balizar as conversas, combinando perguntas abertas e fechadas. Conforme ilustram as palavras de Bernardo: A coleta de dados sobre a memória não segue uma linearidade, revelando os seus próprios mecanismos. É um ir e vir constante. Os caminhos são de profunda complexidade, demonstrando aspectos multifacetados das potencialidades do lembrar. 15 Na tabulação dos dados e na transcrição do discurso, previamente anotado, surgiram dúvidas que, não raro, exigiram novos contatos, alguns por telefone. Posteriormente, as frases captadas ajudaram a tecer essa dissertação e os dados foram transformados em tabelas e gráficos a serem apresentados no decorrer no trabalho. A metodologia foi escolhida por valorizar o olhar da observadora, pois ao descrever a história de vida pondera sobre as causas e os efeitos do momento em que é contada. Desse modo, o tema do livro “Luvas Brancas”16 ilustra essa integração por meio do diálogo entre observador e sujeito, efetivado na entrevista (“entre-vistas” ou ”olho no olho”), de modo a ampliar o discurso em vários significados, integrando as falas, os fatos e a capacidade interpretativa do pesquisador de recontar a história, desvendando as entrelinhas17 e permitindo-se apresentar uma nova versão a partir da experiência. Para Meihy, só é possível em uma democracia, na qual as entrelinhas são os próprios segredos e não as questões políticas: 14 MARCONI, M. Andrade; LAKATOS, Eva Maria.Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados, p. 84 15 BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro:olhares sobre São Paulo, p.190 16 KOTRE, John. Luvas Brancas: Como Criamos a Nós Mesmos Através da Memória. 17 FENELON ,Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa, p. 77 Uma questão fundamental da qualificação da história oral no Brasil é sua função social. Estando o seu advento intimamente ligado ao surgimento da democracia, se questiona se seus eventuais progressos a manteriam na mesma orientação de origem. (…) caberia questionar: história oral por que, de quem e para quem?18 Assim, os relatos colhidos pela pesquisadora foram anotados, pois as entrevistadas, identificadas por pseudônimos, não autorizaram a gravação de suas histórias, utilizando justificativas a serem analisadas em capítulo posterior de maneira mais específica. Para retratar esse universo, a entrevistadora valorizou sua experiência como empresária e judia, conquistando maior espontaneidade e fluidez dos discursos ao minimizar a preocupação com expressões idiomáticas. No entanto, foi dada atenção às armadilhas interpretativas e procuramos manter certo distanciamento a fim de minimizar as distorções provocadas por “identificações projetivas”19, como Bourdieu salienta e sugere, fazer interrupções lacônicas e interrogativas por parte da entrevistadora, objetivando uma reinterpretação do significado específico dado pela entrevistada. Ao visar uma reserva a respeito dos eventuais atos de bravura ou vitimização das mulheres, que passaram por perseguições, guerra ou deportação, foi previamente estipulada a exclusão do período do Holocausto, o que facilitou a receptividade tornando-se, na maioria dos casos, motivacional para a participação no estudo. Este ponto será aprofundado na análise a respeito de cada grupo específico e suas diferenças culturais que promoveram distintas versões sobre as possibilidades e atividades no contexto social, tanto público como privado. Diante desse panorama inquietante, que se traduziu no silêncio sobre as iniciativas, mulheres envolvidas na comunidade judaica foram contatadas e fizeram indicações, permitindo a construção de rede de informações para compor o universo das personagens que iremos descobrir neste trabalho. 18 MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino americana: o caso do Brasil. In: FERREIRA, M.; FERNANDES, T.; ALBERTI, V. (Org.) História oral: desafios para o século XXI. 19 BOURDIEU,Pierre et alli. A miséria do mundo, p. 691 O estudo foi estruturado em três capítulos, no Capítulo I – “Mulheres em Movimento”, objetivando detalhar a historiografia dos estudos de gênero e as transformações conquistadas pelas mulheres ao longo da história, chegando ao cotidiano na cidade de São Paulo nas décadas de 1940-1950, pólo de atração dos imigrantes. Outro ponto foi a diversidade das camadas sociais, tanto da origem como as alcançadas pelas mulheres selecionadas para descrever o cenário histórico, no qual estiveram envolvidas,revelando diferentes visões e oportunidades que contribuirão em sua economia familiar. No Capítulo II –“São Paulo: braços abertos aos imigrantes judeus”, que pretende alinhavar os distintos significados da identidade judaica, os grupos culturais diversos, frutos das diásporas e suas características familiares, darão tons à identidade feminina no grupo e afetarão a visibilidade das ações na inserção ao imigrarem à cidade de São Paulo. De acordo com Bresser Pereira, no início do século XX, foram, principalmente, os imigrantes vindos a São Paulo que criaram a classe empresarial. A cidade iniciou seu processo de desenvolvimento a partir da Revolução de 1932, foi favorecida por contingências internas e externas que consolidaram seu espaço central no cenário econômico-financeiro-comercial-brasileiro. Os imigrantes judeus que se instalaram em São Paulo, vieram de várias regiões da Europa, Oriente Médio e África do Norte. Os originários da Europa Central e Oriental são os ashkenazitas; os de origem Ibérica, sefarditas de países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo e o terceiro grupo, o oriental, oriundo dos países árabes, entre os quais, Líbano, Síria, Egito e Iraque. A maior parte do grupo é de origem ashkenazita e isto se refletiu neste estudo, que buscou incluir participantes dos três grupos culturais e cada um teve sua representação balizada em, pelo menos, 10,0% do universo pesquisado, garantindo sua significância. Paul Thompson afirma sobre a necessária coragem para enfrentar críticas aos estudos pautados “...na história da emoção e do sentimento.”20. Para este trabalho, 20 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral, p. 24 foram necessárias ainda a ousadia e a delicadeza, qualidades que ajudaram a construir o ambiente adequado para o acolhimento dos discursos, garantindo entender o raro. No Capítulo III – “Empreendedoras Invisíveis”, apresentam-se, mais especificamente, os dados coletados nas entrevistas sobre o empreendedorismo e discutimos o exercício dos papéis femininos em conflito com o âmbito público, mostrando-se um novo som, em meio ao silêncio sobre as iniciativas das mulheres que parecem ousar e criar o avesso do homem. Em caráter conclusivo, a personagem imaginária “Isha Mehagueret“ que, em hebraico significa: Mulher Imigrante, apresenta a história das 22 mulheres entrevistadas, baseada na metodologia do discurso-síntese21, assim denominado por Fernando Lèfevre. Essa colcha de retalhos foi construída apoiada nas entrevistas individuais que tornaram o relato de todas o discurso de uma. Desse modo, quem participou com seu discurso, permanece viva e pode identificar-se nos parágrafos mais contundentes e não raros, em expressões, diferentemente de tabelas, gráficos ou porcentagens, frias e inanimadas. Logo, a personagem ficcionada “Isha Mehagueret” é a condensação das conversas e frases marcantes e representativas da individualidade costurada na “história transcriada”. Esta releitura discursiva das tabelas, gráficos e dados estatísticos vem recheada das emoções demonstradas pelas mulheres ao explicitar as dificuldades, barreiras, ousadias e conservadorismo, as dores, vitórias e mudanças que estas mulheres geraram, permeando a realidade histórica do objeto estudado. 21 LÈFEVRE, Fernando; LÈFEVRE, Ana Maria Cavalcanti; TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira, (Org.), O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa, p.19. CAPÍTULO I MULHERES EM MOVIMENTO FOTO 01 - Mulher sozinha em via pública Olga Ferd na Rua José Paulino – 1948 Fonte: Acervo AHJB “A palavra política é usada atualmente em vários sentidos (...) aplicada ainda mais amplamente a práticas que reproduzem ou desafiam o que é às vezes rotulado de ideologia”, aqueles sistemas de convicção e prática que estabelecem as identidades individuais e coletivas que formam as relações entre indivíduos e coletividades e seu mundo, e que são encaradas como naturais e normativas ou auto-evidente.” Joan Scott 1.1 - Papéis ao longo da história Apesar dos avisos de perigo sinalizados por Matos a respeito dos estudos sobre as mulheres, não podemos desistir de recontar os que incluem as ações das mulheres, “....campo minado, repleto de controvérsias e de ambigüidades, caminho inóspito onde não há marcos teóricos fixos ou muito definidos.” 22 Nem considerar as pesquisas sobre as atividades profissionais das mulheres somente como uma questão de redefinição profissional. Os estudos de gênero colocam novos significados sobre a multiplicidade de papéis desempenhados pelos partícipes da sociedade que implicam transformações na relação entre homens e mulheres, inclusive, em relação à concretização do exercício empreendedor. Encaremos o exercício de re-olhar. A partir da década de 1970, estudos específicos sobre as mulheres desembocaram em uma série de revisões. Assim, achamos importante definir mulher, como gênero, não só pela categoria biológica (diferença entre macho e fêmea) e, sim, no sentido cultural. Com base nas observações sobre suas ações sociais, pertinências familiares, idade, nação e comunidade o papel feminino passa a ser moldado por regras, padrões e estruturas políticas que configuram uma construção social23. Esses trabalhos demonstram a imposição cultural de hierarquia entre os sexos, apoiada nas várias dicotomias24 que foram constatadas em distintos papéis, tais como a maternidade natural e a função social da paternidade e não são diferentes, no tocante ao trabalho e diferenças estabelecidas entre trabalhadores e trabalhadoras. Finalmente, o poder sobre a dominação do espaço público é relevante e reflete a organização das famílias ocidentais, em geral, compreendendo as urbanas e rurais. Os estudos científicos da década de 1980 sobre as "mulheres" questionaram os antigos paradigmas de historiadores que, até então, consideravam seu olhar objetivo (homem branco = sujeito). Assim, o significado universal das “mulheres” foi fragmentado, ganhando novo peso as subcategorias como: raça, etnia, classe e sexualidade25, e o termo “mulheres” passou a ser usado mediante complemento: “imigrantes, judias, empresárias”. Diante desta perspectiva, percebemos o estudo de gênero como aquele que analisa os detalhes, que olha os adjetivos e, portanto, aceita a possibilidade do diferente. Essa 22 MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma história da mulher, p. 28. 23 KELLY, Joan. Women, History and Theory: The Essays of Joan Kelly, p. 43. 24 SAMARA, Eni de Mesquita. Uma História. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.) História das mulheres de Santa Catarina, pp. 7e 8 25 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História, pp. 87-89. reivindicação abriu espaço na História para a análise das mulheres e suas contribuições, não apenas como complemento do âmbito privado, pois, como vimos, estes contornos são estratégias segregantes. Pesquisas feitas por conexões pautadas em óticas econômicas distorcem a percepção dos papéis das mulheres ao tentar colocá-las em uma estrutura masculina de poder. O movimento operário do século XIX, por exemplo, associa a exploração capitalista de trabalhadoras à prostituição. Constatamos que esses modelos socialistas não estavam somente na antítese entre capitalistas e proletários, mas, nas minorias assalariadas, entre as quais as mulheres, interrelacionando várias esferas sob o ponto de vista sociocultural. Joan Scott salienta em seus estudos que, na época do Cartismo (movimento inglês pelo sufrágio universal), era vedado às mulheres o direito de propriedade e relaciona observações de cunho depreciativo, definições e termos que se fixaram, e assim, permanecem. Para a autora citada, é importante ponderar a respeito das limitações impostas e das exigências das instituições sobre os diferentes grupos para a compreensão da dinâmica na construção social do feminino. Assim, sobre a trabalhadora inglesa, a invisibilidade das mulheres foi garantida por um longo período, sendo vistas como participantes universais, portanto, sem destaque ou sem a necessidade de um tratamento à parte ou singular. De acordo com Scott (1997), o processo de conquista do espaço feminino no movimento veio com sua atuação em greves, em oposição ao uso pelos maridos dos recursos domésticos para saneamento de dívidas do sindicato. Outros embates apareceram, como a expansão dos quadros femininos no mercado de trabalho, diminuindo vagas destinadas aos homens que reagiram. Como forma de proteção, instituíram-se os diferenciais salariais, privilegiando os homens em 30,0% em média e perpetuando o tratamento de menos-valia às mulheres, que não eram consideradas “atrizes políticas adequadas em defesa da classe.” 26 Observamos que o próprio estudo de gênero, embora apresente expressões relacionadas às diferenças, tem sido uma linguagem de enorme eficácia nas ideologias. O “sistema das diferenças”27, se bem que hierarquize os cidadãos - homens e mulheres – por intermédio das características impostas pela natureza, distinguindo entre feminino e masculino, não advoga a naturalização da personalidade. Mas, pode ser assim 26 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História, pp. 87-89. 27HOWE, Irving. World of our fathers, p. 13. interpretado, fixando os sujeitos às personalidades, aptidões e interesses, de acordo com os sexos. Não é sem justificativa que a maior parte dos estudos de gênero esteja embutida de resultados ideológicos para uso político e seus exemplos voltados à explicação sobre o funcionamento das sociedades e suas relações de produção. Nas Grandes Guerras, o cenário para as mulheres judias foi mais aviltante, física e moralmente. Classificadas como terceira categoria, frágeis por definição (quando estavam sob o jugo dos exércitos, lideraram pessoas em direção à salvação física por meio de subterfúgios que só a dita fragilidade feminina pode inspirar), tinham pouca serventia. Eliminadas com os doentes e as crianças para impedir a possibilidade de regeneração da comunidade judaica, que buscava cumprir os mandamentos, povoando o mundo e perpetuando o mito do “Povo Escolhido”, conforme as escrituras talmúdicas. Observamos que nos países latino-americanos, o processo de conquista da autonomia das mulheres foi mais lento e marcado pela representação masculina, que segundo sua mentalidade, não aceita mulheres que reclamam por si próprias, impondo um código de conduta, de espera pelo concedido. Essa é mais uma das características que compõem as diversidades com as quais os estudos acadêmicos a respeito desse tema defrontam-se ao definirem as mulheres latino-americanas. Há de se considerar, além da idade, estado civil, escolaridade, camada social, religião e outras multiplicidades, conseqüências da modernização, pois a identidade feminina depende das interfaces do contexto em que estão incluídas. Diante da impossibilidade de traçar um único perfil às mulheres latino-americanas e tendo seus arquétipos e estereótipos construídos e consagrados pela literatura, os estudos sobre as mulheres possibilitam a desconstrução ou reconstrução de cada grupo, de acordo com a região, período, etnia, grupo social, ciclo vital, etc. Samara ainda distingue as americanas das latinas não só pela diferença intrínseca, mas também quanto à forma individualizada de suas ações, o que faz com que sejam identificadas pelos casos e não por ações de um movimento: Um exemplo disso é o próprio feminismo latino-americano que difere do norte-americano e está atrelado aos conceitos de feminilidade e maternidade. Além disso, é preciso entender as condições históricas em que se deu esse movimento na América Latina, o que gera o contraponto e a diferença. Há que se ter bem claro também, que o conceito de gênero, bem como o de identidade, está na dependência das variáveis: raça e classe, o que aparece na análise das ‘vozes feministas’, a partir da sua procedência e entendidas para a América Latina como indivíduos e não como representantes de grupos. (Samara,1996,p.20) Diante de tantas diferenças, o comentário de Stevens ajuda a remeter ao mundo das semelhanças - são as mães judias e os jogos de poder do invisível que ganham paridade: “as mulheres latino-americanas, como responsáveis pela transmissão da cultura, apropriam-se do machismo e perpetuam o mito em benefício próprio.”28 Na história das mulheres brasileiras desde a colonização, apesar dos inúmeros discursos e das tradições que vinculavam a personalidade feminina ao lar, muitas mulheres invadiram o espaço público, já, no período colonial, chefiando famílias e trabalhando por sua própria sobrevivência, desafiaram com sua presença mitos e paradigmas fundamentados na cultura da opressão, na qual família patriarcal era a unidade básica de controle, modelo herdado de Portugal.29 Dessa maneira, constata-se que o contraste entre discurso e realidade está permeado sob todos os mantos patriarcais que revestem as diversas áreas. Na Legislação, a base estrutural da sociedade ocidental organizada foi balizada pelos interesses do universo masculino, que objetivavam a manutenção de seu poder. Um desses exemplos são as leis de hereditariedade e a partilha dos bens que excluem as filhas do monte familiar, no caso de casamento. Esta alteração procurava preservar as famílias nobres dos casos de miscigenação ao denominar de dote a parcela de herança dada à filha em sua saída de casa e ainda como mãe terá o filho atrelado a si. Ao contrário, os filhos homens receberiam seu monte só com a morte dos pais, preservando o grupo e a coesão. Quando as imigrantes judias chegaram à cidade de São Paulo realizaram suas potencialidades latentes, favorecendo a integração. Contavam em seu favor com códigos sociais comuns, em que a estrutura patriarcal e a reserva feminina ao espaço privado compunham o cenário. Nas entrevistas, foram captadas referências a essa dinâmica social que aparece travestida no discurso de “nós”: 28 STEVENS, Evelyn. Marianismo: the other face of machismo in Latin América. In: PESCATELLO, Ann. Male and Female, pp. 89-103. 29 SAMARA, Eni de Mesquita. O Discurso e a construção da identidade de gênero da América Latina, p. 19. Conforme relata Daniela: “A sabedoria de uma boa mulher é saber ficar atrás, mesmo sendo a mentora.” 30 FOTO 02 – Mulheres e o Homem Isaac Barki no Rio de Janeiro em 1956 com esposa, nora e amigas. Fonte: acervo de Anna Bigio A alternativa escolhida para este estudo foi descortinar apoiada no olhar sensível as nuanças e meio tons que compuseram o discurso das entrevistadas e captar os segredos como numa conversa de mulher para mulher. Essa empatia só foi possível pelo fato de a pesquisa ter sido conduzida por uma mulher pertencente ao grupo étnico e social, reiterando a cristalização da construção dos espaços femininos e seus assuntos. Durante as entrevistas, que traziam o tom de lembranças guardadas na sombra para serem esquecidas, notamos os discursos estruturados e adequados pelo tempo, mas foram surpreendidos com interjeições que exigiam mais explicações. As entrevistadas estimuladas entregaram-se às emoções, apresentando conteúdos vividos que demonstraram o exercício de poder e liderança que seus registros colaboraram para o germinar de um outro olhar. Assim, em cada novo estudo que inclui questões de gênero, a ampliação dos detalhes das histórias de mulheres oferece a oportunidade de revisão dos papéis e funções, em que se descobre uma nova janela de composição, entre indivíduos, outrora invisíveis. A seguir, para melhor ilustrar o texto aparecem trechos dos relatos das mulheres imigrantes judias como Daniela e outras para MFW em SP, 2000. 30 1.2- Cenário brasileiro nas décadas de 1940 a 1955 Desde o início do século XX, o Brasil buscou reorientar sua política internacional, impulsionado por novas tecnologias de produção. Ao dividir e especializar funções em nome da produção em larga escala, ao distribuir competências, hierarquizar e burocratizar conhecimentos na reorganização científica do trabalho foram implantados novos modos de saber fazer. Transformaram-se, assim, as normas e dispositivos disciplinares que desencadearam um novo cenário que permitiu o desenvolvimento econômico de grupos sociais, incluindo, também as possibilidades de oportunidades às mulheres. A partir da Primeira Guerra Mundial, o quadro de práticas industriais expandiu-se e o Brasil, mobilizado pela demanda mundial que se intensificava e movido pela instabilidade política, deparou-se com a necessidade e oportunidade de novos negócios. Na citação abaixo, podemos observar um relato conciso: (...) A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era precisamente não ter limites (...). No papel, sem dúvida, era possível o acordo neste ou naquele ponto dos quase megalomaníacos objetivos de guerra que os dois lados formularam assim que a guerra estourou, mas na prática só um objetivo contava naquela guerra: a vitória total, aquilo que na Segunda Guerra Mundial veio a chamar-se ’“rendição incondicional.31 Desse modo, o mercado internacional voltava-se à produção de produtos industriais destinados à guerra, que causavam a escassez no abastecimento interno de vários itens. Este contingente potencial de consumidores, ávidos de víveres, anteriormente importados e sem opções nacionais, potencializou a urgência da implantação da produção em série, facilitando as mudanças produtivas com o respaldo da economia paulista que estava coesa no apoio às novas políticas estruturais. A década de 1930 iniciou-se marcada pela deposição do, então, presidente Washington Luís (1926-1930) pelo movimento armado, contra a perpetuação no poder federal dos paulistas e tendo como líder civil Getúlio Vargas, que veio a ocupar a 31 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991, p. 18. presidência em caráter provisório. Conforme podemos confirmar no texto abaixo, São Paulo já se destacava dos demais estados: (...) numa tentativa desesperada de alijar o arcaico. O esforço resultou em sete anos de agitada improvisão, revolta regionalista em São Paulo, um movimento de frente popular, um movimento fascista e uma tentativa de golpe comunista. Em 1937, um Brasil exausto terminou sua experimentação política e iniciou oito anos de regime autoritário sob o Estado Novo.32 Ao valorizar o mercado interno, a política nacional direcionou a construção de novas indústrias de substituição aos produtos importados, e a têxtil foi uma das plantas industriais desenvolvidas desde o início do século XX. Contando com outras levas migratórias, as novas fábricas absorveram um grande contingente de imigrantes e rapidamente abriram espaço para a mão-de-obra feminina, segundo os vários estudos apresentados por Eva Blay.33 Era uma nova visão voltada à urbanização que estava em curso, e com a criação do Ministério do Trabalho, novas leis foram introduzidas compondo o Sistema Corporativo de Relações de Trabalho, e pela implantação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que transformou a mão-de-obra em consumidora potencial, com a fixação do salário mínimo favoreceu o impulso industrial redirecionado ao mercado interno. Neste caso, novamente a indústria têxtil permitia que seus trabalhos oferecidos fossem, em sua maioria, realizados em casa e chamados domiciliares. Mediante a participação da composição da nova camada econômica que, supostamente, privilegiava os filhos com a presença da mãe. Este ponto merece destaque, pois a subalternidade da mulher era mantida desde o período colonial e, ao ter seu salário incorporado ao do marido, só ele era apto a gerir as economias, entre elas, a herança em uma premissa absorvida da estrutura patriarcal que a priori considera o homem, o cabeça do casal. Para este estudo, que pretende recontar histórias antes ocultas ou invisíveis, tornase imperativo reconhecer o trabalho de Berta Lutz e da Fundação Brasileira pelo Progresso 32 SKIDMORE,Thomas E. Brasil:de Getúlio Vargas a Castelo Branco, p. 27 33 BLAY, Eva. Mulheres e o trabalho qualificado na Indústria. Feminino, por associarem as conquistas às lutas individuais e de grupos minoritários, o que a tornou a principal porta-voz na luta feminista sufragista. Uma década depois, foi organizado o II Congresso Internacional Feminista, sediado no Rio de Janeiro, que ganhou o apoio de Pérola Byington, filha de imigrantes norteamericanos, casada com empresário da área de eletrificação e importação, que se tornou diretora-presidente da Cruzada Pró-Infância, com bom trânsito entre as elites; desse modo, ambas interferiram na Constituição de 1934, na qual foi estabelecido que: “(...) somente as mulheres com funções públicas remuneradas eram obrigadas a votar, às demais continuava facultativo bem como aos homens com mais de 60 anos”.34 A luta nunca se arrefeceu e, em 1946, as mulheres ganharam mais espaço, ainda que não se permitiria à “maioria numérica o direito ao voto, os analfabetos, contingente composto em grande parte por mulheres e negros”35, que só irão conquistar o efetivo direito de votar e serem eleitos na Constituição de 1985. Outro ponto deturpado foi o significado do papel de mãe, ficando agregado à sua responsabilidade o sustento do filho, processo iniciado a partir do parto com o aleitamento. Diante dessa dependência biológica, mais uma ação da Cruzada Pró-Infância, por iniciativa de Pérola Byington, veio beneficiar outras mulheres - foi criado o Banco do Leite em 1940. Desse modo, o leite materno oferecido gratuito a bebês era coletado, mecanicamente, de mães previamente examinadas que recebiam em troca pagamento para sustentar o próprio filho em casa36. Neste círculo criado entre funções e características, as mulheres sem leite, sem filhos, com força e tantas outras peculiaridades também foram discriminadas em suas funções, de acordo com o sexo e qualificadas para o empenho de vagas definidas como femininas. No embate da preservação de um maior número de vagas de trabalho para os homens, os responsáveis pelo sustento do lar, percebemos a instalação de práticas discriminatórias, a própria economia de mercado exacerba essa resistência e confere diferenciação salarial negativa às mulheres. No que diz respeito à situação política brasileira, teremos a posse do General Eurico Gaspar Dutra (1945-50), no cenário político-econômico mundial de capitalismo versus comunismo. A direita endossou o capitalismo; tendência construída desde o início do século que ganhou nova envergadura na política nacional com a crise cafeeira, que foi provocada pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, coincidindo com a Revolução de 34 NUNES, Karla Leonora D. Antonieta de Barros: Uma História. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.). Historia das mulheres de Santa Catarina, p. 259 35 ROSEMBERG, Fulvia. Políticas educacionais e gênero: um balanço dos anos 1990, pp. 161-162 1930. Com o apoio de tenentes, oficiais menos graduados que se viram encurralados em seu feudo pelos clãs políticos em disputas regionais, criaram o movimento “Tenentismo dos anos 1930-1934”37. Eram os tenentes a favor da elite industrial, dos novos industriais, comerciantes e profissionais liberais, ou melhor, dos componentes da vida urbana civil, embora não formassem um grupo organizado ou compusessem uma ideologia. Para Skidmore (1988, p.33), “esse processo tinha por objetivo afastar a corrupção dos velhos políticos e a tomar novas providências governamentais para satisfazer as aspirações da classe trabalhadora.” Na Nova República do governo Vargas, os trabalhadores e intelectuais encontraram espaço em múltiplas e distintas formas, ocupando postos de direção do Estado. Quando os tenentistas assumiram a responsabilidade pela salvação nacional, como guardiões das instituições republicanas, constataram a falta de preparação para se encarregarem das tarefas dirigentes, passaram a procurar, entre os civis, paulistas favoráveis às idéias revolucionárias, para substituição dos quadros políticos. “As disputas entre as elites dominantes divididas pelos setores agrário e industrial, durante a Primeira República foram mantidas”38 e serviam para municiar os arranjos políticos, dando seqüência ao interesse de privilegiar a exportação de café. Assim, foram usados todos os recursos de negociação para facilitar a entrada do produto no mercado americano, aparecendo como principal medida a redução de várias tarifas de importação sobre produtos com similares à produção nacional. Esse balizamento cambial tornou-se o principal ponto de atrito ideológico entre os núcleos dominantes, em especial, de São Paulo e Distrito Federal. O candidato federal Getúlio Vargas, da chapa Aliança Liberal, apoiado pelos estados do Rio Grande do Sul (reduto pecuarista e uma das maiores áreas de investimento americano no País com as indústrias Armour, Swift e Anglo, desde 1927, a primeira cidade agroindustrial) e Minas Gerais vence pelo voto popular para seu segundo mandato o candidato Júlio Prestes, do Partido Democrático (este possuía representantes da camada média de São Paulo, composta por parte do setor agrário e de estrangeiros). Getúlio Vargas é eleito para presidente em julho de 1934, por um período de quatro anos, atendendo a questões nacionais de segurança e não tanto do desenvolvimento industrial. 36 MOTT, Maria Lúcia. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil, p. 224 37 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 94 38 Ibidem, pp. 108-109 Em 19 de novembro de 1937, foi desfechado o golpe que promulgou a nova Constituição com poderes autocráticos, embora previsse um plebiscito para dentro de seis anos para se escolher um novo presidente. Era uma reação do Congresso conservador, apoiado por membros da elite industrial, e parte dos agricultores, em sua maioria, integralista, apreensiva com a ameaça da ala revolucionária do partido, os “bolchevistas”. Muito embora estes pensassem que haviam conquistado o poder, o Estado Novo contou com o apoio das Forças Armadas e da polícia para a desorganização da população, em geral, desmoralizando-a, debilitando-a, desarticulando-a, até suprimi-la. Diante de uma oposição esfacelada, o Presidente conseguiu articular-se com os industriais e mais livremente governar e negociar. Ações foram tomadas em áreas diversas, entre as quais a indústria extrativa e a agroindústria, mesmo no período entre 1930 e 1937, quando o objetivo da política de Vargas não era o desenvolvimento industrial. A escassez de produtos no mercado externo ocasionou um superávit na Balança Comercial Brasileira e, ao mesmo tempo, um estímulo à indústria leve, propiciando uma negociação de parte da dívida externa em contrapartida às necessidades de produtos na Europa. Diante das mudanças econômicas que favoreceram a elite financeira e a população das áreas urbanas, foram implantados os programas sociais do Governo, entre eles, a alfabetização, que exercia uma importância fundamental na vida dos desfavorecidos que, ao acessar a leitura, ganhariam a informação e com seus olhos e mentes poderiam fazer seu próprio juízo, conquistando sua identidade. Para as mulheres escolherem suas leituras, os discursos e as fontes seriam igualmente importantes; muito embora no entanto, a circulação das idéias não raro ficasse confinada em seus espaços, não conseguia perpassar as diversas camadas sociais, ilhadas em justificativas de escassez, sejam quais fossem; frutos de tantas renúncias a que estavam submetidas na estrutura patriarcal. Por outro lado, a oportunidade de alfabetização formava seu colegiado eleitoral. Durante esse período, a opinião pública tão censurada e calada, começou a dar sinais de contestação frente à incoerência entre a política exterior pró-democracia e a ditadura interna. Assim, não sem tempo de sair da presidência, mas, apresentando sinais dúbios de eventual manipulação frente aos vários decretos formalizados em relação à convocação das eleições, novamente, como guardiões do poder, os militares declararam em 29 de outubro de 1945 a deposição do presidente Getúlio Vargas, que foi para seu exílio, no Rio Grande do Sul proclamando “(...) a História e o Tempo falarão por mim” (comunicado de Getúlio Vargas, após sua deposição pelas Forças Armadas na pessoa do General Góes Monteiro). O novo presidente General Eurico Gaspar Dutra, que tinha sido Ministro de Guerra no governo Vargas, obteve 55,0% dos votos. No entanto, só granjeou fracassos econômicos e sociais em sua política distante da imprensa e sem rédeas de condução às massas, assim foi favorecida a reorganização das camadas baixas da população e do operariado em torno do nome de Getúlio Vargas pelo partido PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), e um período mais democrático começava, fruto da Constituição de 1946. Entretanto, a sociedade patronal ainda apresentava relutância para aceitar as novas formas democráticas de relacionamento entre capital e trabalho, propostas pelo governo Dutra (1945-50). Dois anos após a eleição presidencial, utilizou o poder repressivo para colocar em retrocesso o então, emergente sindicalismo supostamente infiltrado por comunistas. Esse período de acomodação à estrutura corporativa de representação de interesses teve início marcado por uma forte repressão governamental e pelo apoio empresarial que ganhava espaço a cada dia. Diante da necessidade de acomodar os ânimos políticos internos, a sociedade brasileira em sua posição conservadora e identificada com a política americana declarou, em 1947, o Partido Comunista “fora da lei”. Não foi pouco relevante o fato desse momento coincidir com o início da Guerra Fria - de um lado, os Estados Unidos da América (EUA) que contavam com o apoio brasileiro e, do outro, a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), tendo como aliados os países árabes. Estes fatores resultaram em ações políticas menos arredias em relação aos imigrantes. A presidência de Dutra apresentou duas fases econômicas distintas: de 1945 a 1947, período marcado por uma política econômica liberal e pela abertura do país à importação de bens manufaturados no exterior, pois contava com as grandes reservas de divisas acumuladas durante a guerra. Na segunda fase, de 1947 a 1950, o governo elevou as taxas de câmbio, de modo a regular as importações em favor de artigos essenciais para a produção, como equipamentos, maquinários e combustíveis, propiciando novos interesses no mercado interno. Novamente, a industrialização é efeito e não fruto de um planejamento políticoeconômico. Assim, o governo Dutra pôde ser definido pela reduzida intervenção estatal na economia, muito embora tenha planejado várias ações de interesses regionais, como o desenvolvimento do Rio São Francisco e Amazonas e o combate à seca do Nordeste. Este contexto abriu espaço para um novo mandato do Governo Vargas, que apresentou em seu discurso o seguinte: (...) continuar a transformar em nação industrial (...)” uma nação “(...) paralisada pela miopia dos governantes aferrados à monocultura extensiva e à exploração primária da matéria-prima (...)” e bradava “(...) renovar o impulso perdido em 1945 (...).39 Dentre suas alianças para a conquista da quase maioria absoluta dos votos em eleição livre e democrática, Getúlio Vargas contou com Ademar de Barros, governador de São Paulo, representante do núcleo dos cafeicultores e antigos desafetos conquistados com a queima do café durante os anos de 1931 a julho de 1944. Os eventuais prejudicados já entendiam a política do período como alternativa ao colapso econômico da época e estavam dispostos a apoiar a candidatura à reeleição de Vargas40. No segundo governo de Getúlio Vargas, o Estado passou a desempenhar papel de balizador do setor industrial, articulando o capital privado, nacional e estatal. O grande alicerce foi o Plano de Metas com apoio de executivos e políticos que orientaram a implantação de indústrias específicas. Outra ação importante para o mercado interno foi a imposição de tarifas aduaneiras. O fomento ao desenvolvimento industrial por meio de políticas apoiadas pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDE), criado em 1952, avançou até consagrar-se no maior financiador da indústria de base (energia e transportes). Mas não tendo uma estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico41, o parque industrial, apesar da aprovação, pelo Congresso, em 1953, da criação da Petrobrás, tornou-se obsoleto em pouco tempo. Em todos os níveis, a ênfase à educação foi um dos vários incrementos dados pelo Governo Vargas. As novas escolas, as novas universidades, o desenvolvimento da imprensa periódica e cotidiana ajudaram a motivar o interesse internacional pelo Brasil, não só pelo pitoresco, mas pela grandeza territorial e seus recursos potenciais, em uma economia em evolução42. 39 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 107. 40 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 137. 41 SUZIGAN, Wilson. Estado e industrialização no Brasil, p. 10. 42 BELLO, José Maria. História da República (1889-1954). Síntese de Sessenta e Cinco Anos da Vida Brasileira, p. 339. O apoio conquistado pela divulgação nas principais cadeias de jornais das famílias Mesquita e Chateaubriand influenciou a opinião dos leitores em favor de uma política econômica com investimentos externos, em prol de uma imperiosa industrialização urbana e de mudanças na economia agrária, visando a uma produção em larga escala. A mídia, de modo geral, a impressa, o rádio e, aos poucos, a televisão com suas possibilidades de amplitude ajudaram na construção e transformação de um ideário social, abrindo novos espaços de participação às mulheres. A alfabetização e, conseqüentemente, a leitura por serem mecanismos seletivos ao comporem o acordo tácito social ocidental tornaram este valor a premissa da inclusão. Dessa forma, a política de disseminação com programas de alfabetização do Presidente Getúlio Vargas, na década de 1940, favoreceu em muito as mulheres, conquistando mais esta ciência. Como exemplo, aparece a história de Cora Coralina, mulher simples, migrante que, ao escrever sobre suas habilidades domésticas e as conquistas do espaço público na luta pela sobrevivência, teve seu trabalho reconhecido por Carlos Drummond de Andrade. Desse modo, um novo espaço para conquistas abriu-se para ela. FOTO 03 – Cora Coralina Fonte: www.coracoralina.com.br, acessado em 11/11/2003. Para Cora Coralina, numa Goiás onde as prendas de doceira puderam prolongar a garantia de vida digna, a poetisa estendeu o espaço de suas habilidades domésticas ao comércio de doces. Em 1956, ao voltar à cidade de origem, entre os tachos de doces garantiu seu espaço e tempo, traduzindo no papel a vida e as profissões de muitas mulheres goianas que invisíveis lutaram pela sobrevivência. Fiz doces durante quatorze anos seguidos. Ganhei o dinheiro necessário. Tinha compromissos e não tinha recursos. Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior. Fiz amigos e fregueses. Escrevi livros e contei histórias. Verdades e mentiras. Foi o melhor tempo de minha vida.43 _ Estado de São Paulo , num outro pólo, estava o industrial Estado que, de acordo com os novos paradigmas urbanos, necessitava de incrementos nos serviços públicos. Ao mesmo tempo, havia os personagens de linha nacionalista ou desenvolvimentista aptos a contribuir com o governo para apoiar, manobrar e equilibrar esses dois extremos. A burguesia industrial privilegiada pela política federal enriquecia com o mercado consumidor formado pelo patrimônio do excedente econômico advindo do café. Como as ofertas estavam centralizadas nos centros urbanos, estes atraíram um contingente populacional em busca dos produtos, em geral, e o centro de São Paulo pautado na oferta e demanda consolidou-se como o principal deles. Na cidade, onde o estrangeiro conseguiu mais depressa conquistar seu espaço para atuar econômica e socialmente, foi criado o mito de “a grande cidade, representante da mentalidade dinâmica, empreendedora e anticonformista.”44 FOTO 04 – Obelisco no Parque do Ibirapuera Obelisco em memória aos soldados mortos na Revolução de 1932. Fonte: www.parquedoibirapuera.com.br , em 12/11/2003. 43 CORALINA, Cora. Vintém de cobre - meias confissões de Aninha, p. 44. 44 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil, p. 274. A Revolta Constitucionalista de 1932, em São Paulo consagra o rompimento do poderio da política do “café com leite” ou a alternância entre paulistas e mineiros do poder presidencial. A possibilidade de o novo presidente ser um carioca revoltou os paulistas, e em uma marcha em direção ao noroeste paulista, os revolucionários foram buscar apoio e aliança. Ao chegarem a Minas Gerais, foram tombados pelos combatentes mineiros que apoiavam a mudança. A partir dessa luta, o Estado de São Paulo acelerou seu processo de autonomia, tanto agrícola como industrial, distanciando-se do plano de integração nacional que muitos ainda mantinham em discurso45. A Revolução de 1932 foi também o marco da separação ideológica e desenvolvimentista de São Paulo do restante do País, para tanto estava interessado na mão-de-obra imigrante, sendo ou não qualificada. Dentro desse panorama, foi criado o Serviço Nacional da Indústria (SENAI), objetivando instruir e qualificar a mão de obra necessária para atender a demanda com a nova tecnologia. Em curto espaço de tempo, cursos rápidos “monotécnicos”46 formavam limadores, soldadores, torneiros, profissões novas absorvendo os imigrantes. Pela política restritiva imposta, desde 1930, aos estrangeiros e os entraves impostos pelo Ministério do Trabalho com a reserva de dois terços das vagas nas frentes de trabalho aos brasileiros natos, desde que alfabetizados, muitas iniciativas empreendedoras foram necessárias que se refletiram em arranjos econômicos: Além disso, o fato de que “a ordem urbano-industrial veio a ser implantada, tendo como agente principal o Estado, e não as classes sociais e repercutiu diretamente no arranjo e no conflito de classes durante um longo período histórico”.47 Diante de uma ideologia nacionalista que, no período, apoiava os movimentos fascistas, a economia com forte intervenção estatal voltada ao consumo interno e à descrença na democracia liberal, favorecia as características do empreendedorismo numa cidade que estava perdendo seu ar acanhado e ganhava contornos metropolitanos, agora cheios de esquinas. 45 CASTRO, Antônio Barros de. 7 Ensaios sobre a economia brasileira, p. 85. 46 ANTONACCi, Maria Antonieta. A Vitória da Razão(!). O IDORT e a sociedade paulista, p. 258. 47 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 25. FOTO 05 – Esquina e a garoa paulistana Foto da Esquina da Avenida São João com a Avenida Ipiranga Em um dia chuvoso na década de 1950. Fonte: Metrópole e Cultura48 O Governo, como agente principal da transformação brasileira e responsável pela manutenção da unidade nacional, mantinha um forte controle sobre São Paulo e a região Sudeste que ainda possuíam ideais de independência. Considerando a imagem de um estado revolucionário, ao fase de 1930 a 1935, foi demarcada por uma sucessão de Interventores militares (nome dado aos governadores do Estado de São Paulo). Mais três governadores sucederam o poder, até 1946, período esse conhecido como constitucional, que teve como primeiro governador José Carlos de Macedo Soares.49 Por outro lado, o governo federal começou a limitar as importações, pelo controle seletivo que visava a equilibrar a balança de pagamentos, definindo também as exportações de matéria-prima e favorecendo o setor industrial. A falta de concorrência dos produtos importados, das matérias-primas e equipamentos ofertados a preços relativamente baixos criou uma conjuntura favorável às industrias ligadas ao mercado interno, intensificando o processo de crescimento no pós-guerra.50 Como a maior parte das indústrias brasileiras encontrava-se sediada em São Paulo, o processo industrial intensificado na década de 30 com a agricultura e as exportações pelo binômio São Paulo / Santos, viu-se no final da Segunda Grande Guerra privilegiado pela escassez de oferta da Europa, conseqüência das guerras. De modo geral, os 48 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 77. 49 ALVES, Odair Rodrigues. Os Homens que governaram São Paulo, p. 157. 50 FURTADO,Celso. Formação Econômica do Brasil, p. 218. empreendedores dessas indústrias foram, de modo geral, os cafeicultores, o capital estrangeiro, os imigrantes e suas famílias. Os cafeicultores e seus parentes perceberam outras possibilidades de investimento em face da crise internacional do café e com a vasta experiência empresarial (produção agrícola, comercialização do café, vivência bancária e convívio em centros urbanos) encaminharam parte do capital para a indústria e comércio. Beneficiando-se das ligações com o capital estrangeiro, facilmente, incorporaram os imigrantes com experiência tecnológica e urbana, consolidando a transformação econômica em industrial. Diante das condições de expansão com baixo custo da força de trabalho e matériaprima em diversas áreas, a aplicação do capital estrangeiro foi estimulada e atraída. As oportunidades exigiam investimentos tecnológicos de envergadura industrial, como o mercado energético de gás, gasolina e energia elétrica e a área de transportes, entre outras abriram oportunidades de oferta de trabalho urbano para a absorção dos imigrantes, em geral. Em 14 de julho de 1944, o Presidente Vargas, buscando um melhor preparo de pessoal mais qualificado para as administrações públicas e pretendendo o desenvolvimento de pesquisas, assinou um Decreto-Lei autorizando o Presidente do DASP (Departamento de Administração de Serviço Público) a promover a criação de uma entidade de divulgação dos princípios e métodos de organização do trabalho. Além dos estabelecimentos de ensino e criação de núcleos para a pesquisa, deveria favorecer a participação dos órgãos autárquicos, estaduais, territoriais, do Distrito Federal e dos Municípios, dos estabelecimentos de economia mista e das organizações privadas. De acordo com Antonacci (1992, p.262), a entidade passou a chamar-se Fundação Getúlio Vargas (FGV), Centro de Pesquisa e Formação Intelectual de rigor científico que tinha por objetivo tornar-se “(...) fonte de recursos de conhecimentos insubstituíveis da evolução do país em seus anseios de civilização(...)”. Instalada em São Paulo, a FGV deu impulso à concentração intelectual e tecnológica. A produção significativa de profissionais compatíveis com seus pares no exterior imantou e consolidou São Paulo como fonte de recursos intelectuais e profissionais, incentivando novas oportunidades de investimentos, como a implantação de sede de várias novas indústrias, entre as quais, a têxtil, vindo a culminar com a automobilística já no governo de Juscelino Kubitschek, expansão essa, só possível dado o investimento na área energética no período de Vargas. No entanto, ainda na década de 1940, as escolas mantinham a separação por sexo e diferenciavam a abordagem educacional para as moças. A formação mantinha uma perspectiva normativa e de continuidade, seja da moral ou pelo exercício da maternidade, preparando-as para o “lar” e, simplesmente, desconsiderando a casa como uma unidade de produção e consumo, passível de treinamento das habilidades ligadas à autonomia e iniciativa, virtudes necessárias aos autônomos.51 Em contraposição ao acelerado ritmo de mudanças, o fim da Segunda Guerra e a reorganização interna dos países, por meio de diversas revistas e o cinema vieram a influir na mudança de comportamento como novos modelos. Assim, o setor público ofereceu oportunidades de emprego em profissões como enfermeira, professora, médica, assistente social, funcionária burocrática, vendedora, etc., e o mercado privado viu-se impelido também a expandir sua oferta, provocando mais mudanças sociais, não sem preocupação ou preconceito. No cenário político, o espaço público continuava com estratégias para a conquista de espaços e de poder numa competição sem muita ideologia. Com a volta de Getúlio Vargas à presidência e, em troca do apoio durante as eleições, o partido de Ademar de Barros, que já fora interventor em São Paulo, de 1938 a 1941, e governador desde 1947 recebeu o Ministério da Viação e Obras Públicas, tendo influído na escolha do novo presidente do Banco do Brasil. As conjugações dos cargos determinavam as diretrizes da política monetária e cambial e, no caso, de vital importância, sobretudo para um estado como São Paulo, que no início dos anos 50 do século XX já contava: (....) com metade das indústrias mecânicas, um terço das metalúrgicas, e um quarto da dos estabelecimentos destinados à produção de material elétrico e de comunicação. (....) produção de material de transporte e auto-peças (....).ampliando a massa salarial (....).52 Em 1949, o contexto econômico era de excepcional prosperidade, advindo de uma nova onda no preço do café, ao mesmo tempo, em que a política de substituição das importações foi mantida. Este panorama continuava a oferecer as oportunidades de desenvolvimento e crescimento acelerado do mercado. 51 BRUSCHINI, Cristina & Sorj, Bila (Org.). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 184. 52 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 53. Assim, as desigualdades e discrepâncias existentes quanto à formação, ocupação, riqueza, posição social, nível de vida, condicionadas aos valores culturais de origem encontraram espaço e alimentaram o já desencadeado processo de industrialização e a urbanização da cidade de São Paulo, exigindo mais um ajustamento nas relações sociais, inclusive, entre brancos e negros: (....), na região de São Paulo, concentraram-se escravos vindos de várias partes do Brasil. Cruzando como correntes, chegaram os imigrantes, italianos desde 1870 ...como qualquer outro imigrante, tinham um projeto de ascensão social, cuja realização a estrutura agrária não possibilitava... sucessivas crises da cafeicultura, fez com que os imigrantes deixassem as fazendas, dirigindo-se para outros locais, especialmente para São Paulo... a indústria inicialmente incipiente, era uma promessa e, com sua urbanização que sinalizava para a modernidade: com escolas, infra-estrutura básica, comunicação, jardins e faculdades além de restaurantes, um atrativo. 53 Pelas oportunidades criadas e a grande utilização da mão-de-obra imigrante, não consideramos o processo das transformações do trabalho, no período, simplesmente, como substituição da mão-de-obra escrava. Essa imagem cunhada deve-se sobretudo aos interesses da elite cafeicultora paulista que objetivava a minimização do significado dos novos participantes, que preenchiam as atribuições dos escravos. Diferentemente, os judeus eram brancos e já tendo vivências econômico-financeiras na origem “puderam dar certo, além do fato de serem brancos e não ter a escravidão na pele”54 e assim, escreveram a história com as cores e tons da pluralidade da sociedade, tendo: “(....) o caráter integrador da miscigenação, a cordialidade da psicologia coletiva, o sincretismo cultural, a porosidade social, em suma uma sociedade aberta e tolerante, cujas origens remontam à particularidade da colonização lusitana” 55 Desse modo, o cenário do desenvolvimento sem planejamento gerou problemas que exigiam ações políticas e São Paulo apresentava resultados positivos, legitimando a ordem capitalista, absorvendo uma grande quantidade da força de trabalho e gerando receita, 53 CENNI, Franco. Italianos no Brasil, p. 221 54 BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro: Olhares sobre São Paulo, p 122 embora no início da década de 50 do século XX estivesse estrangulada em vários pontos, que necessitavam de uma ação governamental, como a área de transporte e energia. “A região Sudeste concentrava mais de 40,0% da população nacional e 47,5% da população urbana”56. Na cidade concentrava-se a maior parte da elite intelectual, atraída pelas doutrinas do nacionalismo econômico que acreditava na industrialização, como condutora das direções da economia. A sucessão ao Governo do Estado, no período constitucional entre 1951 e 1954 (Nova República), por Lucas Nogueira Garcez que venceu Ademar de Barros, deu o primeiro impulso ao já deficitário setor energético, com a construção da usina hidroelétrica de Salto Grande. Apesar da situação financeira delicada dos cofres públicos, esse Governador ainda deixou planos de expansão da capacidade energética ao sucessor. Outros setores, também, desenvolveram-se como terciário, o de serviços com seus cursos profissionalizantes, ensino em geral, restaurantes, salões de beleza, clubes, entre outros. Em 1954, a população paulistana chegou ao número de 2.820.00057, composta de uma massa de imigrantes de 20,0% no estado, sendo a maioria de italianos, seguida de portugueses e espanhóis e, em menor escala, japoneses, sírios, libaneses, poloneses, judeus, armênios e alemães. A cidade contava ainda com um movimento migratório de outras regiões brasileiras, criando tons diversos ao sotaque paulista. Essa multiplicidade étnica modificou o tecido sociocultural, compondo uma nova urbanidade. Os dados da tabela mostram o número total de imigrantes na cidade de São Paulo no período entre 1945 e 1956. 55 SORJ,Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In:SORJ, Bila (Org). Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, p.11 56 CUNHA, José Marcos Pinto da; AZEVEDO,Marta Maria. Demographic and Social-Cultural Aspects of Population Mobility in Brazil. In:HOGAN,Daniel Joseph (Org). Population Change in Brazil: contemporary perspectives, p.41. 57 Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 57 TABELA 01 - Total de imigrantes por ano e segundo o sexo feminino Anos Números Mulheres 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 3 230 13 039 18 753 21 568 23 844 35 492 62 594 88 150 80 242 72 248 55 166 44 806 1 232 4 592 7 843 10 077 9 925 12 980 * * * 28 332 24 136 19 762 FONTES: Departamento Nacional de Imigração e Instituto Nacional de Imigração e Colonização. Dados da Tabela extraídos de: Anuário estatístico do Brasil 1949. Rio de Janeiro: IBGE, v. 10, 1950. Anuário estatístico do Brasil 1952. Rio de Janeiro:IBGE, v. 13, 1953. Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro:IBGE, v. 16, 1955. Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956. Anuário estatístico do Brasil 1957. Rio de Janeiro: IBGE, v. 18, 1957. Anuário estatístico do Brasil 1960. Rio de Janeiro: IBGE, v. 21. 1960. * Dados não encontrados A cidade tinha seus roteiros, um deles, o da boêmia intelectual e seu espírito crítico que tanto incomodava os políticos. Composto de um quadrilátero passível de ser percorrido a pé: Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a Rua Maria Antonia, onde estava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, a Praça Dom Gaspar, indo para rua Sete de Abril e a Barão de Itapetininga, até alcançar o Largo do Arouche, e o Teatro Municipal., este atraiu novos donos de restaurantes, cafés, bares e boates que também estavam dispostos a assistir a chegada das manhãs. Neste cenário não surpreende que muitas histórias foram, posteriormente, contadas e cantadas. Diante da construção de conviveres tão desconfortáveis e zelosos da moral, o governo com o apoio da prefeitura de Armando Arruda Pereira fizeram novos investimentos em prol do desenvolvimento de outras regiões: Lucas Nogueira Garcez foi muito moralista, tendo combatido a prostituição por todos os meios, inclusive fechando prostíbulos. Essa medida sofreu muitas críticas: se a intenção era boa, na prática esse mal social se agravou, pois, ao acabar com a prostituição confinada, as mulheres de vida fácil invadiram a cidade, chocando a sociedade, que, na época, não estava acostumada a contemplar tais espetáculos nos logradouros públicos. 58 58 ALVES, Odair Rodrigues. Os Homens que governaram São Paulo, p. 158-159 Como resultado de seu ato, o Governador deixou reservado para o centro de São Paulo a decadência e o popular, caracterizando mais profundamente as regiões, de acordo com o status econômico e deslocando o centro financeiro e cultural para a Avenida Paulista, onde além do Parque do Trianon, se podia contar com a Casa de Chá “Fasano”, que se tornou famosa e ajudou na construção do símbolo de uma São Paulo, de desenvolvimento florescente e glamuroso. FOTO 06 – Parque do Trianon Foto do Parque do Trianon na década de 1950. Fonte: Metrópole e Cultura59 Sendo esta cidade a líder nacional do desenvolvimento, foi escolhida para abrigar o Museu de São Paulo ao deduzir-se numa provável concentração de mecenas para a composição do acervo do novo museu a ser construído num local incontestável: a Avenida Paulista. Nesta trama, certos segmentos vão abrindo espaço para novas oportunidades. Aos imigrantes e às mulheres, em especial, a prestação de serviços e atividades sociais viriam a corresponder com oportunidades consideradas de âmbito privado, trabalhos domiciliares, pela reserva a que poderiam ficar confinadas, correspondendo a maior participação feminina em números absolutos, conforme demonstrado abaixo. A seguir, a tabela, a seguir, mostra os ramos de atividade principal e o sexo das pessoas presentes em São Paulo, em 1950. 59 ARRUDA, Maria Arm inda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 283. TABELA 02- Distribuição entre os sexos nos diversos ramos de atividades São Paulo, 1950 atividade Principal Agricultura Pecuária Silvicultura Indústrias Extrativas Homens 9 154 015 455 028 1 842 141 869 360 Mulheres 732 900 27 988 389 057 89 061 Total 9 886 915 483 016 2 231 198 958 421 Ramos de Indústrias de transformação Comércio de mercadorias Comércio de imóvéis e valores mobiliários; crédito; seguros e capitlização 102 756 Prestação de serviços Transportes, comunicações e armazenagem 746 806 668 220 64 6 12 744 925 973 28 822 14 2 115 500 1 672 779 697 042 78 8 FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento. Tabela extraída de : Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro: IBGE, v. 16, 1955. (cont.) TABELA 02- Distribuição entre os sexos nos diversos ramos de atividades São Paulo, 1950 Atividades sociais Administração pública, legislativo, justiça Defesa nacional e segurança pública Atividades domésticas não remuneradas e atividades escolares discentes Atividades não compreendidas nos demais ramos; atividades não definidas ou não declaradas Condições inativas Totais parciais e geral Homens 200 689 220 636 247 528 1 582 206 37 988 1 896 271 18 088 275 Mulheres 233 626 40 131 4 349 14 881 825 8 686 1 080 326 18 469 715 Total 434 315 260 767 251 877 16 464 031 46 674 2 976 597 36 557 990 Ramos de atividade Principal Profis Libe NOTA DA TABELA — Os dados desta tabela excluem São Paulo (7 588), cujas declarações não foram apuradas por extravio do material. FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento. Tabela extraída de : Anuário estatístico do Brasil 1955. Rio de Janeiro: IBGE, v. 16, 1955. Nesse cenário de oportunidades e absorção da mão-de-obra dos imigrantes, as mulheres aproveitaram as facilidades e entraram nos mais diversos segmentos como pudemos constatar. Entre conveniências e brechas, a criatividade foi a força motriz para a transformação das aptidões pessoais em habilidades rentáveis. A arquiteta Lina Bo Bardi (imigrante italiana) foi além, aproveitou o apoio do marido e criou o primeiro curso de propaganda, que veio a ser o embrião da hoje consagrada Escola Superior de Propaganda e Marketing, buscando, inicialmente, desenvolver captadores de recursos e detectores de mecenas, para tantos artistas como ela.. Assim, o trecho de referência de sua biografia serve para constatar como a História constrói o espaço diminuto para a mulher “(....) iniciativa da arquiteta racionalista Lina Bo Bardi, importante colaboradora do marido e responsável por inúmeras iniciativas dentro do museu, (....)”60.(grifo nosso) FOTO 07 – Lina Bo Bardi Lina Bo Nardi avistando o Parque do Trianon. Fonte: www.institutobardi.com.br , em 09/09/2004. O adjetivo: colaboradora será recorrente neste trabalho, até mesmo, fazendo referências a grandes personalidades que estavam vivendo numa cidade multifacetada, tendo como prefeito Jânio Quadros, cuja carreira pública na área energética avalizou a prioridade sobre os planos de expansão energética pela arrecadação tributária implantada, sem maiores resistências, garantindo a continuidade do crescimento econômico da cidade. Por sua vez, a elite dominante, não apresentava características homogêneas, mas estava dividida em dois grupos. O primeiro constituído por burocratas e administradores, 60 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, p. 403 cujo status econômico resultava mais da urbanização do que da industrialização, que tinham seus empregos como frutos da herança do mundo patriarcal, antes de 1930, e tendiam a se identificar com a mentalidade dos plantadores, o grupo, comercial de exportação e importação, que havia dominado a política brasileira, desde o século anterior. Entretanto, no oposto, estava o menor grupo, que encarava a industrialização e a modernização como indispensáveis para o futuro do País, e os dois grupos, por meio de conchavos, buscaram a ampliação das forças políticas para o exercício de poder. A consagração de poder foi entronizada na festa apoteótica de comemoração do IV Centenário da cidade, sendo um dos grandes marcos da data de aniversário a inauguração do Parque do Ibirapuera em frente ao barco emblemático das diversas figuras que compõem “a força dos paulistas”, o monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (1953). Assim, eventos de diversificadas áreas recheiam a agenda da cidade, que se torna o centro cultural da América do Sul. A II Bienal foi postergada para 25 de janeiro, a construção do Palácio dos Estados foi concluída, temporadas de peças que consagram atores e atrizes até hoje dando prestígio ao círculo artístico, festivais sinfônicos e de cinema, exposições internacionais, além da chuva de estrelas prateadas espalhadas por toda a cidade marcaram a memória da cidade. FOTO 08 – Vista aérea do Parque do Ibirapuera Vista aérea da cidade de São Paulo em seu IV Centenário. Fonte: www.parqueibirapuera /IV centenário, em 16/11/2003. 1.3 - Mulheres na cidade de São Paulo Diante do contexto exposto, as mulheres tiveram várias alternativas de movimentação e oportunidades, como na área fabril61 e em diversos setores produtivos e de serviços em São Paulo. Havia uma pluralidade que garantia uma absorção das judias, ao mesmo tempo, permitia o uso da criatividade no recomeçar da vida, característica judaica. O contexto econômico efervescente que a industrialização urbana oferecia e as condições políticas bastante democráticas em relação à experiência que as arrancou da origem foram ingredientes bastante estimulantes para novas ações de cunho econômico. A oportunidade de acesso indiscriminado à educação e à profissionalização, bem como à informação, ao lazer e ao consumo modificaram e estreitaram as práticas sociais entre homens e mulheres. O estudo ao favorecer a conquista de consciência nos indivíduos, ao gerar a emergência de saberes e opiniões, conseqüentemente, implicou na organização das relações e decisões entre as personagens62, e os papéis sejam femininos ou masculinos. Apesar disso, os trabalhos e as profissões, delimitados por gênero, mantinham o diferencial negativo aplicado ao salário das funções ditas femininas, garantindo e perpetuando a prerrogativa econômica ao homem que se consolida, como mantenedor maior do lar.63 Vejamos os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que, em 1950, a População Economicamente Ativa Feminina (PEA) era de 14,6%, porém, sem nenhum destaque às funções de empresárias. Na qualidade de funcionárias, pelo menos, na época, não estavam no topo da gerência de empresas nacionais ou multinacionais64. Constatamos, entretanto, que o espectro empregatício apresentou uma polarização entre cargos técnicos versus operacionais, como uma predominância feminina no primeiro pólo. Os cargos técnicos, também, chamados de complementares e considerados secundários estão revestidos do trabalho de secretariar e de suporte. Assim, a função mais elevada, conferida às mulheres na hierarquia das organizações do período, foi de assessora ou assistente que demanda senso de organização, qualidades relacionais, atenção para com o acompanhamento do desenvolvimento da ação. 61 BLAY, Eva. Mulheres e o trabalho qualificado na Indústria. 62 RENK, Arlene. Mulheres camponesas: experiência de geração. In: MORGA, Antonio Emilio (Org.), História das mulheres de Santa Catarina, p. 233. 63 PIORE, Mary Del (Org.). A História das mulheres no Brasil, p. 608. 64 BRUSCHINI, Cristina; SORJ, Bila (Org.). Novos olhares: Mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 13. Para a Antropologia, existem as denominações de funções femininas: de ligação, familiares e produção (subordinadas em termos de status) versus funções de ação provedora (caça) e agressoras (guerra), as masculinas numa aceitação natural das separações, de acordo com o gênero. Podemos estabelecer uma ponte com tradições e costumes remotos em relação aos cargos, funções e papéis atribuídos às mulheres nas organizações empresariais contemporâneas. Os papéis de relações públicas com as funções de ligação, os papéis de pesquisa e estudo com as funções de apoio e, assim, uma definição dos campos das tarefas associadas ao sexo deslocam silenciosamente as mulheres para fora das funções operacionais e do exercício direto de poder. Os diversos jornais e revistas da época: “Cruzeiro”, “Jornal das Moças”, “Querida” e “Vida Doméstica” em publicações que tinham a força equivalente à mídia eletrônica, se comparadas à atualidade, traziam vasto material para discussão dos papéis femininos. As novas profissões sugeridas eram professora, chapeleira, modista, cozinheira comercial que ficavam de certa maneira explicitadas às “boas” moças ou “moças de família”. Durante a Guerra, as campanhas publicitárias impulsionando as mulheres ao trabalho, chegaram a São Paulo, modernizando e emancipando-as, e ao final da Guerra, deram-lhes um novo modelo, era a hora de “voltar” aos valores tradicionais da sociedade e ocupar as tarefas do lar. O novo modelo familiar era de famílias brancas, com sinais característicos de estrangeiros europeus, intelectualizadas, nucleares, hierarquicamente organizadas e de papéis definidos. Nas colunas das conselheiras, as dicas refletiam e promoviam os costumes e valores da elite dominante da época; o marido sério e maior, a mulher de olhar ingênuo e inocentemente feliz, acompanhada de seus filhos, em geral, dois de ambos os sexos. Em razão da construção dos modelos, as atividades eram selecionadas quanto à vocação inerente ao sexo, pois, a iniciativa e a participação no mercado de trabalho eram sinonímias de força e espírito de aventura, características notadamente masculinas. Ao contrário, as moças de bom comportamento, as chamadas "moças de família", deveriam estar associadas a gestos contidos, docilidades, respeito aos pais, inocência sexual e um distanciamento físico dos rapazes. Em seu papel, de julgadora, a sociedade atenta às virtudes ou aos deslizes de seus participantes, podia taxar de "garota fácil", comprometendo a reputação da jovem, a ponto de impossibilitar a realização maior: o casamento. A moral machista estendia seu manto sobre a vida civil, garantido pelo Código Penal, ao recém-marido, o direito a exigir punições legais como a anulação de casamento, caso percebesse que a noiva não fosse virgem. O valor atribuído a tais qualidades favorecia o controle social sobre as mulheres e privilegiava a manutenção da hegemonia do poder masculino, reforçando as desigualdades sociais existentes. Entretanto, a vida urbana e seu ritmo provocaram uma convivência mais próxima entre homens e mulheres. Estava em intercurso uma modificação social acompanhada por maior tolerância, sinalizada pelo sucesso do filme americano da época em cartaz em São Paulo: "American Way of Life". Essa tendência exigia certa qualificação, demandando uma maior escolaridade feminina, o que ocasionou mais mudanças sociais, não sem preocupação ou preconceito. O perigo alegado era a perda da feminilidade e de seus privilégios no ingresso ao universo competitivo, o masculino. Sob forte pressão social o processo de mudanças desenrolou-se e, entre outros marcos, mitificou a maternidade, considerando que as mulheres deveriam ser preservadas da rua com a chegada do bebê e oferecer dedicação exclusiva, privilégio que foi sacramentado na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Por outro lado, a dispensa do trabalho por 120 dias, com ganhos preservados, sobrecarrega de custos ao empregador, perpetuava as diferenças salariais no mercado de trabalho. Tais leis trabalhistas interferiram na vida das brasileiras, que podiam ser inseridas no mercado de trabalho; no entanto, para o número reduzido de imigrantes, ainda não significavam muito, pois poucas estavam qualificadas aos cargos, dada a dificuldade com o idioma, conforme se constata na tabela a seguir. TABELA 03 – Distribuição entre os sexos de brasileiros e estrangeiros Brasileiros natos Brasileiros naturalizados Estrangeiros Total Mulheres 50 727113 25 523 745 Total Mulheres 128 897 43 417 Total 1 085 287 Total geral: Sem declaração de nacionalidade Mulheres Total 490 805 3 100 Mulheres 1 429 51 944 397 NOTA: Os dados desta tabela excluem 31 960 pessoas recenseadas nos Estados de Minas Gerais (10.461), São Paulo (7.588) e Paraná (13.911), cujas declarações não foram apuradas por extravio do material de coleta. FONTE — Serviço Nacional de Recenseamento. Tabela extraída de: Anuário estatístico do Brasil 1956. Rio de Janeiro: IBGE, v. 17, 1956. Nas tabelas anteriores, constatam-se agrupamentos que pouco contribuíram para esta análise, pois as mulheres casadas ficavam dissolvidas nos números relativos às famílias. O grupo pesquisado refere-se às mulheres que imigraram a São Paulo, tendo a cidade absorvido as novas moradoras, que colaboraram com sua transformação fazendo das diferenças as oportunidades. Diferente dos grupos anteriores de imigrantes do início do século XX, estes também estavam sendo aguardados no Porto de Santos. Era a possibilidade de reagrupar a família, pois alguns tinham residentes no País que se encontravam em boa situação financeira e assim, podiam abrir oportunidade de absorver os perseguidos, conforme declara uma ashkenazita rememorando as adversidades: FOTO 09 – Perdas e Ausências 1917 - Amigas de escola em Bovina – Romênia Fonte: Acervo de Lili A. Georgescu (Rosenzweig) Angele livremente manipulada para representar as perdas. “Queríamos juntar os pedaços da história....alguns se perderam para sempre”65. A chegada a São Paulo aconteceu pela estrada que corta a Mata Atlântica de onde puderam vislumbrar um país com um clima extremamente úmido e quente e a exuberante flora. “Não entendo como as mulheres daqui passeiam sem a sombrinha, naquele sol que melava tudo”.66 65 Relato de Daniela a MFW em SP,2000 66 Relato de Regina a MFW em SP, 2000. O choque em relação ao clima não foi o único, as mulheres, ao saírem de casa, surpreendiam-se com a multiplicidade de sotaques nas trocas de informações com a população, percebida, até mesmo, para quem ainda não dominava a língua portuguesa. “Eram italianos, japoneses, portugueses, pretos, que conseguiam se comunicar basicamente pelo sorriso”67. A simpatia foi outra característica marcante na população local, era comum perceber que as pessoas não eram alfabetizadas e nem “não sentiam vergonha disso”68. Espantaram-se, também, com o comportamento de muito contato físico entre os habitantes, inclusive, sem que houvesse um conhecimento anterior entre eles: “...eram muitos beijos, muitos abraços, naquele calor, entre pessoas que eu mal conhecia”69. Apesar das diferenças iniciais, a necessidade de sobreviver exigiu a execução de tarefas e atividades de trocas entre imigrantes e paulistanos, que afrouxaram as barreiras da cultura tradicionalista judaica da origem e o povo tolerante que os recebia. E São Paulo fez o seu papel, tecendo uma sociedade urdida por vários grupos étnicos. 67 Relato de Regina a MFW em SP, 2000. 68 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 69 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. CAPÍTULO II SÃO PAULO: Braços Abertos aos Imigrantes judeus FOTO 10 – Trilhos de bonde desembocam pelo Bom Retiro Rua Amazonas no Bom Retiro em 1949 Fonte: Acervo: AHJB “As práticas sincréticas no Brasil igualmente expressam um universo onde a integração do outro não supõe a sua eliminação e, sim, sua absorção” Bernardo Sorj 2.1- Imigrantes judeus em São Paulo Neste trabalho, o grupo pesquisado constituiu-se das mulheres que, se consideram judias de acordo com a auto-identificação70, que abrangem um universo diversificado de valores. Dessa maneira, abrimos espaço para esta discussão sempre atual sobre o significado da identidade, no caso, a judaica. O povo judeu viveu disperso por séculos entre outras sociedades e manteve sua unicidade na religião, filosofia, valores éticos, morais e ancestralidade, somando uma pluralidade cultural resultante de sua participação em contextos nacionais diversos. A religião é vista como o fio-mestre da unidade desse povo, no entanto, a organização social contemporânea abriu espaços para a valorização de outros conceitos, geradores de diferentes processos identificatórios, como os preceitos ortodoxos, conservadores, liberais ou não, a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e, após 1948, a identificação ideológica e política com Israel. Todos esses valores, hoje, são considerados como identificadores de pertinência, pois fatores históricos e psicossociais forjaram distintamente os judeus nos países onde se instalaram. Entre estas diversas experiências, uma das mais significativas derivou das perseguições advindas do nazismo. O anti-semitismo alemão expresso em 1933, no final da República de Weimar, solidificou-se com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, pelo Partido Nacional Socialista. Em 1934, com a morte do Presidente Hindenburg, Hitler consolidou-se no poder tornando-se Chanceler, Chefe das Forças Armadas e Presidente da Alemanha.71 A base de seu discurso está na limpeza da raça humana, na qual os arianos auto-definiram-se como raça branca e sendo, geneticamente dominantes, deveriam prevalecer sobre as demais, sendo assim, os judeus, ciganos, comunistas, deficientes físicos e mentais deveriam ser exterminados por serem considerados inferiores. No entanto, a força de trabalho dessas “raças inferiores” deveria ser aproveitada, como foi comprovado na Segunda Guerra Mundial com trabalhos forçados, que acabaram por tornar-se uma forma de extermínio. 70 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.132 71 MARIANO, Neusa de Fátima. A História de Mulheres Judias Imigrantes na Era Vargas, p.6 O preconceito racial, sobretudo do anti-semitismo estabeleceu um código jurídico que deveria ser seguido entre as normas e suas leis. Em 1935, o edital das Leis de Nüremberg que alterou o cotidiano dos judeus e de todos os incluídos na discriminação, proibidos de: • . casamentos entre judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentados; • . manter relações sexuais com alemães; • . içar a bandeira nacional alemã; • . exercer cargos públicos e • . as infrações a estas normas resultariam em prisão e multa. A gravidez colocava as mulheres judias em situação de duplo perigo, já que eram vistas como uma “fábrica de fazer judeus”, e a proposta colocada em prática pelo nazismo era justamente a eliminação total do grupo em nome da “limpeza da raça humana”. A vida dos judeus, foi marcada, assim como pelas Leis de Nüremberg, pela Noite de Cristal ou Kristallnacht (9 e 10/11/1938). Nessa noite, sob o pretexto de vingança ao assassinato do diplomata alemão Ernst Von Rath em Paris, dois dias antes por um jovem judeu, todas as sinagogas foram incendiadas, indicando o início do transporte de 30 mil judeus aos campos de concentração. Toda a ação de Hitler foi expressa em seu livro intitulado Mein Kampf72, no qual propõe o aniquilamento total dos judeus, posteriormente, chamada de “Solução Final”. Para o povo judeu, significou o extermínio de 6.000.000 de indivíduos ou mais de um terço de sua população mundial de 193973, pois a Alemanha nazista aplicou em suas conquistas territoriais a ideologia da purificação nos países conquistados. O deslocamento populacional aos campos de concentração deixou, milhares de judeus (com centenas e milhares de) sobreviventes, desalojados, como refugiados na Europa e sem destino, posto que a maioria dos países, mesmo os de origem, depois de finda a guerra, não os aceitaram de volta. Desse modo, após a Segunda Guerra Mundial, a leva migratória judaica distinguiu-se das demais, considerando as etapas formuladas por Jeff Lesser (1995), como a escassez de trabalho que mobiliza as mudanças territoriais. Para esse autor, os imigrantes judeus desse período caracterizavam-se pela necessidade imperiosa dos deslocamentos geográficos e problemas relativos à identidade religiosa. Assim, o objetivo era sobreviver às 72 “Minha Luta” foi escrito durante a prisão de Adolf Hitler na Fortaleza de Landsberg, Alemanha, no ano de 1924. O livro foi lançado em julho de 1925. perseguições, à possibilidade de extermínio praticado pelo Holocausto, à perda de familiares, amigos, propriedades, dignidade, deportações, nacionalidade, entre outras, e a solução foi a ruptura com a origem. Na busca por alternativas de sobrevivência, emigraram legalmente para o Brasil, entre outros países, estimulados pelas múltiplas possibilidades que a economia em expansão poderia oferecer, incluindo as ofertas de trabalho e os incentivos nas áreas rurais. Desde a década de 1920, a industrialização e a intensificação da urbanização transformaram a cidade de São Paulo em pólo de atração econômica e intelectual, apresentando características de interesse aos imigrantes de todas as origens, em especial, os judeus, identificados com o meio urbano.74 No primeiro quarto do século XX, conforme Hirschberg, os judeus em São Paulo começam a se estruturar, com a ajuda de várias organizações comunitárias. Desde 1880, já havia imigrantes judeus de origem lituana e ucraniana em São Paulo: (....) encontravam-se no Brasil, até 1933, cerca de 40 mil judeus. Após esta data, teriam imigrado cerca de 24 mil, oriundos da Europa Centro - Oriental, fugitivos do nazismo. Vigorava a Lei de Imigração de 1919, que reconhecia todos os tipos de visto de estadia como ‘permanentes’, isto é, possibilitando trabalho para todos”75 Embora anterior, foi durante a “Era Vargas”, como em outros países, que entraves políticos dificultaram a imigração. Num período que se exortava o comunismo, Gustavo Barroso, fundador do Partido Integralista, lançou em 1937 um livro sob o título “Judeus, Maçonaria e Comunismo”, chamando os judeus de “sanguinários”, “demônios”, tal qual a maçonaria, “organização nefasta ao povo brasileiro”, citava nomes de judeus em partidos comunistas e socialistas, bem como seus dirigentes e acabando por inverter os significados, rotulando-os pejorativamente. O Departamento de Imprensa e Propaganda, sob a liderança de Fillinto Müller, desde 1939, comandou a censura, agora mais rigorosa, repassava à população pelos meios de comunicação de massa vários folhetos com piadas sobre judeus, havendo rebaixamento de 73 DELLA PERGOLA, S; SCMELZ, U.O. La demografia de los judios de Latinoamerica. In: Rumbos: en el Judaísmo, el Sionismo e Israel 74 BARON, Salo W. História e Historiografia, p 152 75 HIRSCHBERG, Alice Irene. A História da Congregação Israelita Paulista, p.21 sua reputação, de seus valores, etc., fundamentando incorretamente a ideologia nacionalista: Incentivava também matérias favoráveis ao governo, eliminando tudo aquilo que considerava negativo à imagem de Getúlio Vargas. Estas atitudes censoras justificam-se em nome do “nacionalismo” e a favor da manutenção da ordem estabelecida. Assim, passam a ser proibidas notícias que expressassem ou sugerissem qualquer crítica ou descontentamento ao regime, anúncios de livros comunistas, notícias e fotos da Rússia, referências desfavoráveis às autoridades e países estrangeiros. Vargas procurou impedir, de todas as formas, que a imprensa ferisse ‘os sentimentos’ da Alemanha nazista, por quem não escondia suas simpatias.76 Hoje vasto material comprova a prática discriminatória contra as levas de judeu-imigrantes que foram considerados indesejáveis e até “nocivos ao Território Nacional”.77 O brasilianista J. Lesser, assim, expressou-se sobre o período: À medida que o movimento comunista brasileiro atingia seu auge em meados da década de 30, políticos e intelectuais ressaltavam os supostos laços entre judeus e comunismo, e notícias na imprensa das capitais estaduais sobre as prisões dos militantes estrangeiros do Partido, Olga Benário Prestes e Arthur Ewert (Harry Berger), chamavam atenção para a origem judaica dos dois. As críticas aos judeus e à imigração judaica na imprensa respeitável (oficial) refletiam um desejo crescente de limitar ou encerrar as entradas. Os nomeados por Vargas para o Itamaraty começaram a elaborar uma política imigratória restritiva, com o apoio de diversos burocratas federais e, em 1937, regras severas barraram a entrada de todos os judeus no Brasil, inclusive, dos turistas e daqueles que 76 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas(1930-1945), p. 391 77 Ibidem, p. 303 vinham por razões de negócios. O nativismo brasileiro havia se transformado numa política antijudaica”.78 A partir de 1945, os efeitos da política discriminatória contra os judeus tornaram-se mais flexíveis, mas, ainda os vistos eram outorgados caso a caso. As solicitações de entrada eram analisadas pela diplomacia brasileira, ponderando-se sobre a qualificação do solicitante, apesar da manutenção da exigência da “carta de chamada” (documento de convite ao estrangeiro com especialização profissional de interesse do residente e desde que fosse para o exercício da atividade profissional junto e sob responsabilidade deste). A Circular Secreta nº 1.249 solucionou diversos problemas que haviam sido criados pela primeira. As restrições contra judeus foram encerradas e os parentes até segundo grau podiam ser “chamados” por judeus estrangeiros que morassem legalmente em território brasileiro79. Nem sempre donos de seu destino, os emigrantes acabaram na região entre acasos e fatalidades. Essa foi a particularidade do movimento migratório judaico do período, que se refere a um contingente populacional em sua maioria composto por indivíduos desalojados de sua região de origem e pertinência, transformados em refugiados. Diante da impossibilidade de voltar para casa, quando o objetivo maior ganhara um novo significado: sair, distanciar e esquecer, para onde chegar, só muito depois terá seu valor. No entanto, os diversos deslocamentos impostos aos judeus ao longo de sua história, cunharam características na estrutura comunitária que favoreceram uma rápida acomodação aos novos sistemas econômicos, culturais e políticos. A estruturação do trabalho, em condições de escassez de recursos, cristalizou moldes baseados em organizações familiares, perpetuando um comportamento dinâmico de inserção contra a exclusão. Nesta pesquisa destacamos o apoio e o envolvimento recebido na fase inicial do empreendimento, conforme a figura abaixo que corresponde à tabela a seguir: 78 LESSER, Jeff. O Brasil e a Questão Judaica: imigração, diplomacia e preconceito, p.159 79 Ibidem, p.200 GRÁFICO 01 – Distribuição em porcentagem dos participantes dos negócios das entrevistadas Judeu 9% Conterrâneo 41% Parentesco 50% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as entrevistadas e os envolvidos diretos na fase inicial do empreendimento. TABELA 04 - Participantes do empreendimento Participantes do empreendimento Judeu Parentesco Conterrâneo Total Número de Entrevistadas 02 11 09 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Dentre as entrevistadas, 50,0% confirmam ter iniciado seu negócio com envolvimento de familiares e ou parentes. As demais deixam brechas interpretativas em seus discursos sobre a diminuta valorização da consangüinidade, ampliando o sentimento de família para além dessa fronteira, passando a absorver os companheiros ou irmãos de viagem (schifsbrider) como gesto de solidariedade, amalgamado à família. Salientamos ainda a força de identificação com a origem, pois em mais de 40,0% o apoio veio de fora do grupo étnico. FOTO 11 – Famílias de “Irmãos de travessia” – Schifsbrider 1954 – Santo André – SP - Jantar de Pessach (Páscoa Judaica) com o schifsbrider Fonte: Acervo de MFW “Na casa de meu tio, tínhamos almoços com os “irmãos de viagem”, a família que pudemos reconstruir.....”80. “Eram aqueles que chamamos de família que trabalhavam, e a maioria morava junta. No começo, as compras fazíamos para todos, sem divisão.”81 “Eu e as outras companheiras, a “nossa”família, sempre que tínhamos tempo livre ajudávamos na impressão dos textos clandestinos. Tudo era nosso e para nós”82. Desse modo, são as conquistas econômicas dos imigrantes judeus, do final do século passado e começo do século XX, que alicerçaram a construção da comunidade em São Paulo pela implantação desses empreendimentos ligados, sobretudo, ao ramo têxtil. Este mesmo segmento, como o de bebidas e produtos alimentícios, favoreceu na década de 1950 o incremento no número de vagas femininas. Eram indústrias de tecnologia mais avançada que dispensavam a força física na execução das tarefas. Esta expansão deveu-se a medidas cambiais da década de 1940 que redundaram na importação de equipamentos obsoletos da Europa e Estados Unidos. Com a sobreposição entre oportunidade, mão de obra e conhecimento tecnológico, os imigrantes atentos e necessitados fizeram a grande massa dessa mudança e o sucesso foi rapidamente traduzido na composição do estereótipo de industrial, como Fausto pontua neste trecho: 80 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 81 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 82 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. Não se pode negar a existência de disputas entre o setor agrário e o industrial, das classes dominantes ao longo da Primeira República, nem a hábil construção ideológica efetuada pelos grupos agrários que produziram a imagem dos industriais como elementos parasitários, operando indústrias artificiais graças ao protecionismo, responsáveis pela alta do custo de vida, imagem enraizada profundamente nas classes médias daquela época.83 A conjunção de fatores permitiu a adaptação e um desempenho de resultados econômico-positivos da maioria dos imigrantes (embora a custo da representação do novo estereótipo) na cidade de São Paulo. Por trazerem na bagagem conhecimentos sobre as novas tecnologias industriais e a articulação com a vida urbana, esses imigrantes, mesmo excluídos das corporações em seus países de origem, estavam familiarizados com o conceito organizacional. Ao absorver a nova ordem, mas, não os “manuais de procedimentos”, mantiveram sua capacidade de decisão e de trilhar caminhos, de acordo com suas aspirações, conhecimentos e cultura. Essas características foram manifestas na imigração, ao constatá-los como sujeitos econômicos de iniciativas próprias. No entanto, a chegada e o recomeço dos imigrantes guardavam um gosto de sobrevivência, e as articulações tornavam-se ações pontuais, emergenciais, instantâneas de caráter temporário e provisório. Diante da resistência na criação de novas raízes e demora de nova oportunidade, havia o contraste de uma contagiante expectativa sobre a possibilidade de melhores condições materiais serem conquistadas em São Paulo. Esta conquista foi adquirida pela rede de propaganda nacional e internacional e insuflada pelas facilidades dos subsídios ofertados, tais como na importação de maquinários diversos. A cidade transpirava entusiasmo e os familiares e conterrâneos, já instalados, reiteravam esse otimismo das conquistas. Os imigrantes judeus que aqui chegaram, pós-Segunda Guerra Mundial, encontravam-se em delicadas condições físicas e psíquicas, impressionavam-se com a prosperidade da comunidade étnica e vislumbravam meios de alicerçar a reconstrução da capacidade produtiva de seu grupo. 83 FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930 – Historiografia e História, p. 63 Por outro lado, quem pôde resgatar parte de seus bens e, após a Fundação do Estado de Israel, conseguiu escolher não imigrar para o novo país de identidade judaica e de visão socialista; em sua maioria estavam preservando-se da carga tributária que esse País impunha às fortunas pessoais. A organização judaica de ajuda ao imigrante, a “Hebrew Immigrant Aid Society” (HIAS) tendo considerado a terra brasileira como local ideal de asilo aos imigrantes judeuss do Oriente Médio do início do século, refez sua estrutura. Roma, a cidade italiana foi, novamente, escolhida como um centro de atendimento médico-familiar e de triagem para orientar imigrantes em viagem marítima à América do Sul. Outras entidades como o JOINT (Jews Organisation International) e Wizo (Organização Internacional Feminina Judaica) ajudaram aos sobreviventes do Holocausto e aos refugiados da Europa Central e Oriental com sua documentação, localização de parentes e arranjos para imigração. Dos países sul-americanos, o Brasil por possuir grandes extensões de terras não ocupadas, em fase de expansão econômica, e sem histórias de anti-semitismo explícito poderia ser um refúgio. Imigrantes de mais de sessenta países diferentes84, viviam no País em harmonia e muitos já ocupavam cargos na administração pública, sem que a etnia e a crença religiosa fossem lembradas ou questionadas. Os imigrantes vieram a São Paulo e aqui encontraram uma sociedade de aspecto metropolitano e pluriculturalista, integraram-se mais rápido e ágil. Do ponto de vista econômico, a preexistência de imigrantes, que já haviam conquistado um status e posições de prestígio, abriu caminhos e facilidades para essa nova leva de imigração e a seus descendentes. A experiência em negócios, a formação acadêmica de muitos e o domínio de línguas estrangeiras fizeram com que judeus, libaneses, iraquianos, egípcios e outros, em pouco tempo, se posicionassem em empresas próprias ou multinacionais, abertas a profissionais liberais, especializados e bilíngües. Para esses indivíduos, em sua maioria, as profissões exercidas eram relacionadas às funções desempenhadas pela família em sua terra de origem, atividades próprias do proletariado-urbano como: alfaiates, sapateiros, costureiras, cujos papéis já vinham sendo desempenhados pelos imigrantes de anos anteriores, chamados de “Klinteltichik”, mascates 84 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), pp. 97- 98 ou prestamistas, que eram adequadas aos recém-chegados que necessitavam fazer sua rede de conhecimentos, partindo dos clientes de seus fornecedores. Afinal, a necessidade de consumo da nova camada operária, que crescia em São Paulo, e o diferencial oferecido por meio de crediário ou parcelas abriram novas oportunidades aos imigrantes, que iniciavam sua luta pela sobrevivência na nova pátria. A sociedade paulistana encontrava-se em um momento de novo arranjo social, formação que clamava por mudanças contra uma elite, herdeira de uma economia rural, que se caracterizava por relações intragrupais e estáveis com mínima mobilidade. Neste contexto, os interesses dos imigrantes e de parte da sociedade adotiva estavam compatíveis e puderam ver as diferenças e suas resistências abrandadas. Observamos neste estudo, que a maioria dos imigrantes judeus de São Paulo, instalou-se em bairros, junto a outros judeus, de mesma origem cultural, onde já havia uma semente, uma referência. Eram parentes e conterrâneos que estavam em sua ação solidária, tecendo, simbolicamente, seu território. Os bairros escolhidos até este período eram, especialmente, a Mooca, o Brás, Bom Retiro, Estação da Luz, Barra Funda e Higienópolis, onde eles se misturavam aos armênios, também, comerciantes, peculiaridade que se soma à característica de uma repetição histórica pela falta de território nacional representativo. Conforme pesquisa de Roberto Grün, os armênios “nação comerciante”85, eram requisitados, preferencialmente, para a ocupação de cargos que exigiam pontualidade, responsabilidade e confiabilidade, e os imigrantes judeus, estes, também, contavam com redes de recomendações, responsáveis pelo preenchimento de vagas de trabalho. Os estabelecidos e reconhecidos endossam o novo imigrante e seus planos, encaminhando-o aos membros e ou elos da cadeia de ajuda mútua que incluía crédito, garantia e recomendação, cuja trama parece ser pautada pela identificação cultural. Em 1946, a criação da FISESP (Federação Israelita de São Paulo), abarcou para si a representação das entidades assistenciais judaicas, proporcionando uma divisão de tarefas na absorção dos recém-chegados. Diante do crescente número de imigrantes judeus necessitados, pós-Hitler, Fundação de Israel e perseguições nos países árabes, a comunidade mobilizou-se num acolhimento mais pontual e formal, como a ajuda direta na agilização da instalação, alimentação e, em especial, como interlocutor na esfera econômica para o início de uma vida autônoma. 85 GRÜN, Roberto. Negócios & Famílias: armênios em São Paulo, p.36 Esse apoio não apresenta em si uma vantagem, mas segue o princípio da solidariedade étnica, pois o judaísmo é norteado pela coerência com a verdade e a justiça da comunidade como um todo, ao mesmo tempo, que reforça a identidade grupal. Entretanto, neste estudo esta característica torna-se ainda mais relevante, uma vez que na divisão de tarefas entre os sexos, as atividades relacionadas ao cumprimento da justiça, entendida por caridade, foram atribuídas às mulheres na sociedade judaica, excluindo a arrecadação e o manuseio de grandes somas de dinheiro. Apoiados em eventos beneficentes, ações voluntárias e na organização de diversos grupos, tais como: Sociedade das Damas Israelitas, já na década de 30 do século XX, as Pioneiras-Naamat, a Wizo em 1946; a Sociedade Beneficente da Sinagoga-Israelita Brasileira, da Congregação Mekor Chaim, entre outras,veremos o exercício das mulheres nos encontros femininos que, embora fosse espaço público, não é assim categorizado. FOTO 12 – Atividades sociais femininas Década de 1950 -Jamile Derviche eleita Presidente da Sociedade Damas Israelitas Fonte: Rachel Mizrahi86 Assim, além das oportunidades econômicas favoráveis que ajudaram a estabelecer e reconstruir a comunidade, famílias e indivíduos, a própria comunidade auxiliou nesse enraizamento. O crescimento e o desenvolvimento são exemplificados na criação e na envergadura cada vez maior das ações das instituições, fundações culturais e assistenciais, o hospital, sinagogas, escolas e clubes judaicos. 86 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p.229 No entanto, os imigrantes não configuravam um contingente homogêneo, haviam os comerciantes e artesãos que viviam em pequenas comunidades voltados ao suprimento de sua aldeia ou vila conhecida por “shtetl” e eram muito arraigados aos valores judaicos. Em situação oposta, havia os judeus liberais que vivenciavam uma integração maior com a sociedade laica, desde os tempos da Revolução Francesa87, eram mais tolerantes e assimilados, do ponto de vista religioso. Inseridos à sociedade usufruíam as possibilidades tecnológicas ofertadas pelas cidades desenvolvidas e cosmopolitas da origem, experiência esta que em muito facilitou sua integração em São Paulo: (....)originários de estratos sociais médios, comunicandose em ladino e não raro em francês, (idiomas próximos ao português) integraram-se rapidamente nas médias e altas camadas da sociedade brasileira. Estes se ligaram a negócios de importação e exportação de café, cereais, frutas, tecidos finos, tapetes orientais, seguros, minérios e posteriormente no ramo imobiliário (...)88 Enquanto criavam uma nova São Paulo, é interessante constatar que, não tinham percebido que estavam fazendo parte de uma importante transformação socioeconômica na cidade. Mas esta trajetória foi fruto de muito trabalho e não raro sem discriminação. “Ser imigrante é não ter nada a perder”, definiu uma das entrevistadas89 e sem a preocupação com a imagem e seus papéis sociais, sentiam-se livres para tentar fazer o que fosse possível. Assim, fizeram self-made-men90, ou melhor, self-made-women, como este trabalho vem constatando. No grupo étnico, as diferenças culturais impulsionaram as pessoas de variadas maneiras na busca das soluções de sobrevivência, e os fatores que as influenciaram foram os hábitos apreendidos nos países de origem. Como identificá-los e sabê-los pertencente ao grupo? Construindo a idéia de pertinência, a própria história compartilhada têm garantido a convicção de seus membros sobre semelhanças e diferenças. Porém, a diversidade de influências, que o povo judeu absorveu, nas distintas regiões por onde se estabeleceu, permitiu a criação de vários grupos culturais, que, novamente, irão encontrar-se. 87 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança ( A Comunidade Judaica em São Paulo), p.115 88 MIZRAHI,Rachel. Primeiras Comunidades de Imigrantes do Oriente Médio em SP e RJ. 89 Relato de Dália a MFW em SP, 2000. 90 IANNI,Otávio. O Estado e o Planejamento no Brasil, p. 36 Esses grupos culturais serão analisados a seguir, e foram definidos com base nos estudos de concepção de Burke e Herder que chamaram de “naturalista”, “determinista”, ou ainda, “organicista” ao combinar os aspectos biológicos e culturais. O conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas. Estou convencido de que estes sistemas não existem em número ilimitado, e que as sociedades humanas, assim como os indivíduos (...) jamais criaram de modo absoluto, mas se limitam a escolher combinações num repertório ideal que seria possível reconstruir.91 Partindo do conceito de reconstruir ou coligar o grupo, o idioma étnico foi a característica utilizada para identificar os três principais grupos culturais judaicos que, para São Paulo, imigraram no período estudado. “Mantendo a identidade religiosa e as antigas tradições as diferenças aparecem até mesmo na condução da liturgia e nos costumes”.92 2.2 - Diferentes grupos cultural-judaicos Ao objetivar uma leitura multicultural das mulheres judias que imigraram para a cidade de São Paulo, entre 1945 e 1956, onde se tornaram empresárias, buscamos aprofundar nossos estudos a respeito das diferenças culturais existentes no grupo étnicojudaico, que são frutos da História construída pelas próprias mulheres judias por onde fincaram raízes, recriando seus códigos de convivência com a sociedade local. Para tanto, apresentamos os parâmetros utilizados para entender os valores comuns do conjunto desse grupo étnico e a cada subgrupo, considerando a História e seu modo de vida até o momento da ruptura, quando contingências históricas arrancaram estas emigrantes de seus países de origem e, por diversos caminhos, chegaram ao Brasil, após a Segunda Guerra Mundial. 91 LEVI-STRAUSS,G. Tristes Trópicos, p.167 92 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio:São Paulo e Rio de Janeiro, p.28 Neste trabalho, as mulheres pesquisadas vieram de regiões de fala ídiche (língua baseada no alemão arcaico, mesclada a hebraísmos e eslavismos), chamadas de ashkenazitas; as sefarditas de fala Ibérica); e as orientais, ladino (cuja ancestralidade advém da Península procedentes do Oriente (Próximo e Médio). Embora geograficamente determinadas, as incessantes diásporas fizeram com que esses grupos vivessem em outras áreas, concomitantemente, embora se mantivessem separados. No mapa abaixo, está esboçada a distribuição dos três grupos culturais judaicos analisados. MAPA 01 – Distribuição da população judaica no início do século XX nas comunidades de origem 93 Fonte: Esboço sobre mapa do Início do século XX - Mapa de Martin Gilbert → Ashkenazitas: As mulheres que vieram da Europa Central e Oriental, constituem-se no maior número de entrevistadas deste trabalho, assim, iniciamos pelo grupo lingüístico-cultural identificado com o ídiche - ashkenazitas. A maioria dos judeus da Europa conheceu o período de consolidação das revoluções do século XVIII tendo participando do “Estado Burguês”. Este cenário é o da modernidade, determinante na separação definitiva entre as esferas do público e privado. Nas sociedades tradicionais judaicas, as relações sociais caracterizam-se pela: (....)intimidade, comensalidade, solidariedade primária afetiva, emocionalidade, padrões rigorosos de controle social, núcleo familiar organizado em torno da parentela sanguínea que constitui 93 GILBERT,Martin. Atlas de la História Judia, p.60 além de sua função reprodutiva biológica, uma unidade de produção econômica e de consumo coletivo.94 No contexto do final do século XIX, as mulheres judias do shtetl (aldeota, vila, bairro étnico) vão precisar redefinir seus novos limites de âmbito privado, quando o público laico passa a não mais só circundar, como interferir em seu cotidiano. FOTO 13 – Agrupamento de judeus ashkenazitas em meados do século XIX Comerciantes judeus em meados do século XIX, em Odessa, mostrando a vestimenta do shtetl e ao centro o chapéu típico do judeu da região, chamado de “shtreimel”. Fonte: Unterman95 O processo é válido para toda a comunidade, pois, em primeira instância objetiva o fortalecimento da família judaica. Assim, a autoridade do (....) pai é formal, de acordo com os costumes e a lei judaica, mas o domínio real do espaço doméstico pela prática da vivência cotidiana é da ”ídiche mame”. Ela manipula os recursos materiais e simbólicos existentes no interior da família (....) (....) A aceitação pela família desse direito significa o reconhecimento implícito de sua autoridade (....) explicando (....) segundo a visão tradicional da vontade divina(....)não percebendo ou não querendo assumir explicitamente o papel de interventora. 96 94 LEWIN, Helena. “Idiche Mame”- A mulher Judia e a Controvérsia entre o tradicional e o moderno.In: NOVINSKY, Anita; KUPERMAN,Diane (Org.). Ibérica-Judaica: Roteiros da Memória, p. 448 95 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 247 Apoiando-se no texto citado, a mãe, a responsável pela definição dos papéis e das urgências, estabelece os quinhões com certo grau de autonomia. É seu dever acompanhar os estudos, sobretudo dos filhos homens, conforme a cultura e a religião enfatizam (pois, é a garantia da continuidade comunitário-judaica). Esses encaminhamentos são fundamentais por definirem responsabilidades, ao mesmo tempo, em que hierarquizam as relações na futura geração. O estudo talmúdico para os homens, por exemplo, é tão valorizado a ponto de as mulheres improvisarem algum trabalho remunerado para garantir as despesas e poupar o esposo dessa preocupação, sem levá-lo a interromper. Acrescenta-se um reconhecimento social da família que tem um sábio (o conhecedor dos mistérios do sagrado, o estudado), que é vista como nobre e abonada, dada a capacidade de prover o filho por tantos anos. FOTO 14 – Livro Sagrado Torah – O Livro Sagrado. Fonte: Unterman97 Dentro desse cenário, o poder visível–invisível vai sendo construído e dilatado e, num momento de separação, essa perda ganha um enorme significado no plano afetivo e de poder. Afinal, as mulheres judias parecem tornar-se significantes em seu papel de mães e, para isso, necessitam do objeto. Na ausência do filho, o mito de mulher fraca e dependente configura-se; no contrário, isto é, no completo, em sua maternidade, a máxima e plena força manifesta-se numa existência percebida como altruística, prover e proteger. Essas mulheres ora mães, ora esposas são pessoas que irão concomitante participar dos processos sociais do período e, especificamente das pequenas cidades da Europa 96 LEWIN, Helena. “Idiche Mame”- A mulher Judia e a Controvérsia entre o tradicional e o moderno.In: NOVINSKY, Anita;KUPERMAN,Diane (Org.) Ibérica-Judaica: Roteiros da Memória, p. 452 Central e Oriental. Aos poucos, o mundo judaico vai ganhando novas formas e o espaço privado invadido por distintas necessidades, abrindo outro setor à mulher. A sobrevivência econômica, a profissionalização, o proletariado, as novas exigências de competência individual, a secularização da sociedade, entre outros fatores, foram dissolvendo os muros que continham esse universo público em separado e distante da realidade privada judaica do período. A separação entre público e privado, sendo rompida por pressões externas e, também, num movimento interno para o mundo intelectual em diversas áreas. Personalidades consagradas da comunidade judaica viviam, em sua maioria, nas grandes cidades, sobretudo, da Europa Ocidental inseridas no cotidiano laico, lutando pela renovação mundial que incluía a integração judaica. O Iluminismo, iniciado na última década do século XVIII, ventilou a filosofia judaica para além de sua religião, vislumbrou novas abordagens, releu o judaísmo tradicional criando novos paradigmas. Muitos judeus da Europa Ocidental pertencentes às camadas médias da população chegaram às universidades, imprensa e literatura, tiveram indústrias, bancos e até trabalharam em repartições públicas ou comércio, integrando-se à sociedade laica, usufruindo os direitos iguais para o exercício da cidadania recém-conquistada. No início do século XX, a Rússia e a Polônia formavam o grande centro judaico, foi um período de florescimento da literatura ídish e, até 1933, havia mais de 25 periódicos98, intercomunicando por volta de três milhões de judeus, que mantinham o sistema escolar em ídish e, nas escolas mais novas, o hebraico. Mas, em 1918, os judeus poloneses perderam sua conquista de 120 anos, quando foram reconhecidos como poloneses, se bem que sua “nacionalidade” permanecesse judaica99. Os filhos de famílias abastadas foram estudar na Europa Ocidental, e aos demais restaram os estudos orientados dentro do corpo da comunidade. O universo de estudantes judeus em 1923 caiu de 24,5% para 3,2% em menos de dez anos. Mais de 70,0% das famílias judias100 viviam do comércio, integrando-se às cidades polonesas, conforme os dados referentes ao ano de 1914, caindo para 34,0% em vinte anos, levando quase a totalidade dos judeus à miséria. A exigência do conhecimento do idioma polonês escrito aos judeus artesãos impedia-os de exercer a profissão. 97 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 235 98 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo(1925-1940), p. 74 99 MARGULIES,Marcos. Gueto de Varsóvia: Crônica Milenar de 3 semanas de luta, p. 55 Havia um movimento de assimilação e secularização de forma intensa visando a uma penetração no universo nacional, ”estes compunham a classe média urbana sendo em Kielce 60%, em Lublin 50% e Volínia mais de 70% de médicos”101 Essa polarização é recorrente na história, porém, com a queda do Império Russo, a Europa Ocidental e a Oriental viviam seus dilemas econômicos que estavam sendo recheados pelo movimento nacionalista. O conceito que valorizava o espaço de nascimento e moradia, também, infiltrou-se entre os judeus, abrindo uma fenda na comunidade entre os ideais sionistas e os socialistas. Entretanto, diante das renovadas perseguições nem mesmo os sonhadores do Partido Socialista Polonês Ídicheista, chamado BUND, continuaram a acreditar na salvação judaica no socialismo vindo a assistir ao triunfo da intolerância religiosa. Desse modo, a fase de convivência e absorção do judeu como parte integrante da sociedade local, chamada de emancipação, abriu espaço às mulheres para participarem de várias atividades econômicas, indo para dentro das escolas e conquistando lugar entre os letrados. Quebrou-se o estigma de que a mulher não tinha condições intelectuais de aprendizado, e muitas marcaram a história, a filosofia e a literatura, mudando os paradigmas comportamentais como Hannah Arendt, Marie Curie. A partir da Primeira Guerra Mundial, com a Independência política da Polônia e de outros países da Europa Oriental, vários governantes passaram a pressionar discriminadamente os judeus. Medidas governamentais criaram leis e taxas, tornando o anti-semitismo à política oficial. As mulheres européias ganharam uma identidade pelo exercício de suas capacitações e começaram a andar lado a lado com os homens. Nesse cenário efervescente, os escritos de vários autores (Isaac Deutscher, Bruno Bettelheim) relatam cenas de agressão e humilhação gratuitamente aplicada contra os homens e, assistidas pelas mulheres. A disseminação das linhas antagônicas aos judeus e ao socialismo culminou com o alinhamento do fascismo de Mussolini à ideologia nazista de Hitler declarado em 14 de julho de 1938, período que se prolongou até 1943, propiciando um cenário de envergadura catastrófica. Na Europa Oriental, grande número de judeus vivia mais em áreas rurais, menos favorecidos, como conseqüência da discriminação e exclusão social, ficando fechados em 100 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo(1925-1940), p. 82 101 Ibidem, p.161 sua comunidade, arraigados à consciência judaico-religiosa. Trabalhavam como artesãos, sapateiros, alfaiates, carpinteiros, serralheiros, entre outras, e, em face ao cotidiano restrito ao vilarejo, estavam menos expostos às influências, mantendo seu modus-vivendi judaico tradicional. Para muitos historiadores, filósofos e literatos como Isaac Deutscher (1970) “ a hostilidade mantém a consciência e injeta sempre nova vitalidade, atuando como fator de agregação e manutenção do judaísmo”102. Essas folgas de perseguições ora de católicos, ora de protestantes, ou ainda, das monarquias são um engodo. Se o anti-semitismo não fosse tão arraigado, persistente e poderoso na civilização européia, os judeus, provavelmente, não mais existiriam como comunidade distinta. A idéia da construção da fronteira como alimento da separação, que consolida o grupo, e o excluído reage discriminando, dividiu o universo judaico em diversas ideologias no fim do século XIX. As mudanças de mentalidade e os movimentos sociais penetraram nas comunidades judaicas da Europa e Varsóvia que já se consagravam pela densidade populacional judaica, e assistiam entre outros movimentos, a dois grupos distintos formados por judeus. Os “Mitnagdim” (assimilacionistas), advindos em sua maioria da Alemanha sob a influência do iluminismo judaico, confrontam os partidários do judaísmo tradicional, oriundos da Lituânia. Em outro grupo, entre várias oposições, estava os que lutavam pela divulgação e utilização da língua hebraica no cotidiano, ensinando hebraico nas novas escolas. O Clube dos Escritores, oponentes diretos, lutava pela difusão da literatura ídiche. Havia ainda os messiânicos que confrontavam os sionistas, influenciados pelos russos, defendiam a imigração para a Palestina, visando a construção do país dos judeus pautados numa sociedade igualitária: (....)movimento fundado em 1903 ou a da juventude companhia Geulat sionista Há formada Tehiyyah, em 1904 participando da aquisição de terras para a sociedade Ahuzzat que iniciou a construção de Tel-Aviv 103 que tinham a oposição dos messiânicos. No período, há o reinício das hostilidades contra os judeus, que vão sendo semeadas nos movimentos trabalhistas, sobretudo alemães, ingleses e franceses. Não 102 DEUTSCHER,Isaac. O Judeu não-judeu e outros ensaios, p. 48 103 HOJDA, Edith Gross. Imigração dos Judeus Poloneses em São Paulo (1925-1940), p. 67 bastasse o passado, o presente também apresentava sinais de distinção entre trabalhador judeu ou não. O BUND organizava massas proletárias e gerava lutas entre patrões e operários, primando pela solidariedade comunitária, criando motivos para críticas discriminatórias. Muitos judeus acreditavam que a religião era coisa do passado e, a partir daquele momento, judeus e gentios eram iguais. O grupo enfrentava os que militavam no Partido Comunista levantando questionamentos que causaram a desintegração da comunidade judaica local, favorecendo a intensificação do preconceito e da discriminação. Por outro lado, ao aceitarem empregos e suas escalas de trabalho, ao participarem do movimento operário, estavam escolhendo romper com a tradição ao não cumprir o “Shabat” (dia do descanso santificado). FOTO 15 – Mesa para comemoração de Shabat Preparação da Comemoração do “Shabat”- dia santo de descanso que se inicia ao pôr-do-sol da sexta-feira com o acendimento pela mulher de duas velas brancas acompanhado de prece. Esta noite inclui um jantar familiar servido numa toalha especial com vinho e pães bentos. 104 Fonte: Unterman Na oposição, o partido ZKN (Zydowski Komitet Narodovry) alinhava-se ao movimento sionista105 que abriu uma nova alternativa econômica aos já preteridos, inclusive, como mão-de-obra, os judeus. Assim, marginalizados do consumo, realimentaram o círculo vicioso da reconstrução do estereótipo: o diferente, novamente ficando sujeito às ondas democráticas, que no período ficavam cada dia mais distantes. 104 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p. 63 105 MARGULIES,Marcos. Gueto de Varsóvia: Crônica Milenar de 3 semanas de luta, p. 103 A Primeira Guerra Mundial e os movimentos nacionalistas ao ganharem espaço político provocaram mudanças, impelindo as mulheres e ou mães, que ainda permaneciam no universo doméstico, para onde encontrassem formas de sobrevivência. No entanto, as novas leis de proibição do exercício de diversas atividades aos judeus, ajudaram na cristalização ao boicote à comunidade judaica, justificando uma idéia de solução aos problemas socioeconômicos que, inicialmente, a Alemanha enfrentava no período. Era um retrocesso da política liberal para a intolerância. Nesse período, a violência contra o povo judeu iniciou-se com ataques à população (pogroms), expulsão dos empregos, de suas casas e perda de posses. Foram levados aos guetos (bairros fechados e controlados, em condições de miséria humana). Em circunstâncias mínimas para garantir a saúde física, sobreviveram à falta de água, aquecimento, alimentação e medicamentos. Sem atividade ou possibilidade de produção econômica ao menos para a subsistência, e sem encontrar no horizonte uma esperança de liberdade, a agonia da dignidade maculava a sanidade mental. Os acontecimentos geraram transformações que a guerra terminou por arrancar pedaços, pessoas e, não raro, famílias desta existência. O momento era de fugas e esconderijos para zonas rurais ou onde fosse possível, pois, na maioria dos países potencialmente receptores de imigrantes, já, imperava o sistema de cotas e os judeus não estavam na lista dos preferenciais. Os destituídos estavam obrigados a depender das entidades assistenciais, ou seguir, intermináveis caminhadas que levariam por entre esconderijos a outros países (França, Itália, Inglaterra e Países baixos). As mulheres, às vezes, como esposas e mães ou filhas exerceram um papel de destaque na luta pela sobrevivência. Suas articulações, ingerências, estratégias e atuação como porta-vozes do grupo que protegiam, puderam mostrar sua força, inteligência e competência para resistir e vencer em tempos de guerra, enquanto os homens permaneciam escondidos, fugindo da possibilidade de serem arrancados dali e submetidos a trabalhos forçados. No Brasil, após a Segunda Guerra Mundial e o fim do Governo Vargas, comemorou-se o fim do autoritarismo e buscou explicitar suas características mais democráticas, permitindo a imigração e pode-se enfatizar o recurso de solidariedade grupal, com a carta-convite (mecanismo instituído pela embaixada que exigia endosso aos predicados do potencial imigrante). Esta imigração só se tornava possível mediante a garantia ao governo de que o residente receptor era responsável pela sobrevivência do imigrante que efetivamente tinha uma formação intelectual diferenciada. Assim, o País vivia um clima desenvolvimentista que abria espaço para a incorporação do estrangeiro imbuído do significado desejado: desenvolvido e evoluído. Diante dessa congruência de interesses, um acordo tácito de receptividade e não de competitividade facilitou a inserção na economia do trabalhador estrangeiro. Considerando o período de imigração, após a Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes que, para São Paulo, vieram, juntaram-se aos aqui radicados, facilitando sua absorção e integração. A necessidade de sobreviver e as dificuldades inerentes a cada imigrante compuseram as histórias das mulheres ashkenazitas no cenário paulistano do período. O processo de imigração dos judeus da Europa Central e Oriental deu-se pela assistência da HIAS (Hebrew Immigrant Auxiliary Service) ou AJDC (American Joint Distribuition Committee), instituições americanas espalhadas pelo mundo106. Os ashkenazitas identificados pelo idioma ídish foram integrando-se às regiões geográficas compatíveis com seus padrões, isto é, procuraram por contemporâneos e estreitavam os laços de ajuda mútua. Fragmentados reconheceram e buscaram a unidade. A escolha do endereço para este grupo era o Bom Retiro, o Brás e a Mooca, congregando pessoas de mesma origem nacional e cultural, os Landsmannshaften (conterrâneos) em muito contribuíram para uma rápida instalação dos recém-chegados. Neste espaço, reconstruiu-se a família que passou a ser composta, também, dos irmãos de navio de travessia (schifsbrider) do oceano em direção ao Novo Continente. A convivência com os pares, aqueles que se percebem, tendo os mesmos objetivos, transforma o individual no projeto de todos. Cada um começa a identificar-se com o outro e com os anseios, complementando solidariamente as atividades e fortalecendo o grupo107. Essa construção social foi tecida, mesmo que, inconscientemente, pelos novos imigrantes que elaboraram, na geografia da cidade, o projeto de inserção econômica, ao mesmo tempo em que consolidavam sua identidade. A reconstrução individual do elo de continuidade judaica no novo mundo ancorou-se baseada na comunhão dos destinos e foi forjada na nova cidade, São Paulo, local onde os valores puderam ser refeitos. 106 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), p. 92 107 VELHO,Gilberto. Individualismo e Cultura – Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea, p. 33 No final da década de 1940, ainda em 1950, os bairros representavam um local de abrangência maior, muito diferente do que hoje constatamos sobre a vida urbana paulistana. O bairro era o local, onde os imigrantes moravam, estudavam, trabalhavam, faziam compras e tinham o lazer. Era um espaço complexo e, por isso, essa decisão relativa ao local ganhava um significado maior. Assim, morar no Bom Retiro significava ser judeu ashkenazita e almejar a ascensão econômica, quando poderá mudar para Higienópolis e Jardins, onde no final da década de 50 do século XX colégios e sinagogas foram construídos. Nos estudos americanos, sobre a imigração de judeus, em sua maioria, sobreviventes do Holocausto, há um destaque conclusivo que recai sobre a ocorrência de intensa assimilação nas primeiras décadas pós-guerra como uma alternativa rápida para a inserção à vida urbana. Fato constatado nas diversas cidades para onde os sobreviventes imigraram e reiniciaram seu processo de organização e integração. Salienta-se que, após a Fundação do Estado de Israel, refletindo o sentimento de confiança na política brasileira, os judeus iniciaram um novo ciclo e explicitaram a identificação com o grupo étnico em suas diversas formas. No início do processo de integração ao novo país e todas as dificuldades inerentes a uma emigração forçada, o Brasil foi uma possibilidade favorável. A segurança física e o cenário de crescimento econômico, tão divulgados entre os refugiados foram fatores estimulantes, como podemos perceber no relato de Dália: “Meu marido fez um curso profissionalizante de caldeiras e turbinas, porque falaram que aqui tinha grandes oportunidades e muita água, digo, litoral”. Diante da falta de condições econômicas para a reestruturação pessoal, os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial contaram com o apoio de entidades que ofereceram ajuda médica, alojamentos, documentação e passagens para novas paragens. A tabela a seguir mostra a distribuição do número das mulheres entrevistadas que contaram com apoio de entidades para efetivarem a imigração. TABELA 05 – Apoio de entidade para a imigração Apoio de entidade para imigração Não Sim Total Nº de Entrevistadas 13 09 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Das mulheres que imigraram, nove obtiveram apoio de entidades na imigração e ou para a instalação na cidade. Isso é reflexo do variado número de entidades existentes, sensibilizadas pela expansão do nazismo na Europa. O grupo cultural ashkenazita, ao imigrar, apresentava uma grande diferença entre os demais grupos culturais. Diante da impossibilidade de portarem seus bens, valorizaram o grande oceano que os separava do mundo das perseguições, mortes, humilhações e guerra, para um mundo de esperança de uma vida digna, mesmo sem ter em suas mãos algo no que apostar. As mudanças que irão acontecer nos anos seguintes serão várias e o conflito sobre o modo de vida judaico perpassará por várias etapas, e uma delas foi o abandono do idioma ídish, substituído pelo português como idioma do cotidiano, facilitando a circulação do imigrante. Neste novo mundo de espaço aberto, os judeus ainda desconfiados108 questionarão a integração, pois, para muitos conota assimilação109. Essa alteração religiosa e cultural, também, teve como ingrediente os outros grupos culturais judaicos, pois a partir da década de 80 do século XX, uma nova fase de profusão dos costumes sefarditas está em expansão. → Sefarditas e Orientais Em países da Europa Ocidental e Oriental e nos banhados pelo Mediterrâneo existiam, sobretudo, judeus sefarditas, tais como: França, Itália, Turquia, Chipre, Grécia, Bulgária Tunísia, Líbia, Marrocos, Argélia e Egito, provenientes da Península Ibérica, e identificados pelo idioma ladino. Próximos, mas, não juntos os judeus orientais viviam no mundo árabe: Palestina, Iraque, Síria, Líbano e Egito falavam o idioma árabe, em geral. O grupo sefardita representava no século XII, 90,0% da população judaica mundial, caindo em 108 RATTNER,Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), pp. 52 e 78. 109 GRIN, Mônica. Etnicidade e Cultura Política no Brasil – O caso dos imigrantes judeus do Leste - Europeu, p. 142 1700 para 50,0%, como conseqüência de imigrações forçadas, ficando reduzida a 10,0% em 1930.110 No Oriente Médio, de modo geral, os judeus concentraram-se nas grandes cidades, pois contavam com o apoio dos califas, no endosso às oportunidades de estudos e ao exercçio de cargos de confiança, como apontam os censos demográficos do Prof. Hayim Cohen111. O Egito num composto cultural de: sefarditas, orientais e ashkenazitas, gerou um espírito cosmopolita ao conjugar o Ocidente e o Oriente. FOTO 16 – Durante o Mandato Britânico 1932 - Palestina - Dia de Lazer de família residente sefardita em Alexandria. Fonte: Flore Gaunzer A relação entre os judeus sefarditas que emigraram para o Oriente e se defrontaram com uma comunidade judaica local seguiu: “(....) três cursos distintos: assimilação total aos autóctones, preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e a influência direta e recíproca entre os dois grupos”112, ou ainda para Ianni113, transculturação seria o termo mais adequado. Essa Linguagem moderna, traz em si a revolução permanente, ao não negar a permanência ou a reiteração da identidade, seja individual ou da comunidade. Ianni, ainda, enfatiza que são várias as formas que podem configurar os movimentos de combinações, soltando as desamarras que as análises sociológicas e ideológicas impõem ao pré-definirem “o que veio, o que deve ter vindo e como deverá vir a ser”. A comunidade sefardita vai caracterizar-se no Oriente Médio, pela manutenção da cultura e tradições da origem e pela tendência mundial e cíclica entre integração e secularização ou o forte apego religioso. 110 SEPHARADIC POPULATION FIGURES THOUGH HISTORY – rufina@netactire.co.za 111 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p.49 112 BEN AMI,Issachar. Sepharad and Oriental Jewish Heritage. In: MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p. 34 Mas, o que foi o auge da prosperidade para muitos, para outros foi a decadência da comunidade. No final do século XIX, a famosa escola Rabínica “Beth Zilkha” divulgou o grande e qualificado quadro de rabinos que serviu em diversas comunidades judaicas pelo mundo, em alto grau de conhecimento e profundidade da cultura judaica, o que terminou por um recrudescimento religioso em cidades como: Esmirna, Alepo, Safed. Os sefarditas como os orientais valorizavam a religião e primavam pela educação religiosa aos filhos, que começava antes mesmo da escola regular. Os meninos eram encaminhados ao “Kutab”114 (quarto para estudos, equivalente ao “chedder” entre os ashkenazitas), dirigido às crianças do sexo masculino e sobretudo, aos mais abastados que poderiam sustentar os filhos em dedicação total aos estudos, por longos períodos. No estágio escolar seguinte, os demais ingressavam nas escolas laicas. No período, a “Alliance Israélite Universelle” oferecia espaço aos judeus com a uma educação ocidental, era a possibilidade do aprendizado de idiomas, como o francês, o inglês ou italiano, habilitando-os ao mercado de trabalho. Era uma organização internacional de origem francesa que acreditava numa tendência espiritual nova, mais aberta115 e de forte interesse cultural. A difusão cultural possibilitou que, nas primeiras décadas do século XX, as cidades cosmopolitas do Oriente Médio estivessem misturando os vários idiomas, utilizando o francês em casa, o árabe com os criados e o inglês nas melhores escolas e ainda, não raro, encontravam interlocutores armênios, turcos e iranianos.116 Assim, os judeus orientais eram percebidos como integrados à comunidade local, que era tolerante ao exercício da religiosidade, a população era agregada, não havia grande separação entre judeus e outros. Nada podia ser comparado aos hábitos dos ashkenazitas que mantinham, desde a origem, diferenças marcantes como as “peot” (cacho de cabelo que pende dos lados da face dos judeus religiosos), ou ainda, as “arbá kanfot” (franjas colocadas nas quatro pontas das vestes que os homens usam sob a camisa)117. O conhecimento dos vários idiomas foi um fator preponderante de favorecimento desses imigrantes em sua absorção no Brasil118. Na origem, foram educados ao estilo ocidental, vivendo com direitos iguais aos demais cidadãos integrados na comunidade local, 113 IANNI, Otavio. Enigmas da Modernidade, p.16 e 202 114 LEFTEL,Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 26 115 Ibidem, p. 54 116 Revista Morashá - Setembro,1995, p.51 117 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 161 118 RATTNER, Henrique. Tradição e Mudança (A Comunidade Judaica em São Paulo), p.166 chegando até a ocuparem cargos políticos na administração de Basra e Mosul119, em pleno reinado do Rei Faisal (1921-1933). No entanto, essa condição favorável durou até o ano 1936, quando as idéias nazistas infiltradas já começavam a fazer suas vítimas, assim, os curdos foram responsáveis pela maioria das fugas bem sucedidas de judeus. Damasco assistiu ao crescimento da propaganda nazista com espancamento de judeus pelas ruas e bombas explodindo as sinagogas. Os judeus iraquianos da Turquia européia, da Síria – Alepo, tiveram seus livros sagrados queimados em 1945, chamas estas que arderam em todo o mundo, deixando queimaduras, como sinal de guerra e que, a cada ano, se tornavam mais devastadoras. A partilha da Palestina, determinada pela ONU, intensificou nos países árabes posturas nacionalistas; sancionada a decisão na Síria, a Grande Sinagoga de Alepo, foi incendiada fato que chocou a muitos, pois a sinagoga, possivelmente, a mais antiga do mundo judaico guardava importantes documentos religiosos.120 Em 1948, no Egito, onde vivia a maior comunidade judaica do Oriente Médio, responsável pelo incremento comercial, industrial e bancário, fazendo parte dos grupos que alavancaram a economia do país, inclusive, em cargos político-administrativos, Senado e Câmara dos Deputados. Alguns, chegaram a manter ligações próximas com a aristocracia egípcia muçulmana121, e os mais pobres, de modo geral vindos das áreas rurais logo se identificaram com a proposta israelense, para onde buscaram imigrar122, recorrendo a subterfúgios dados os impedimentos impostos pela Liga Árabe. As mudanças foram difundidas pelos governos árabes numa campanha anti-sionista voltada contra os estrangeiros, que apoiavam em sua maioria a Grã-Bretanha e vinham destacando-se como a classe exploradora. Assim, o período mais conturbado foi entre a Partilha da Palestina, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, e a Independência de Israel, em 1948, quando parte do contingente judaico estava proibido de imigrar para Israel. Desse modo, os mais abastados foram extorquidos por grupos chantagistas e, posteriormente, pelo governo árabe de modo institucionalizado, beneficiando as tropas egípcias na Palestina sob a bandeira “Fundo de bem-estar”123 contra os judeus. 119 Revista Morashá – Junho,1997, p.34 120 O “Códice de Alepo”, o Keter, o “guardião da cidade”, com perda parcial, foi levado a Israel ao Instituto BenZvi, segundo informação da Profa. Rifca Berezin, do CEJ da USP. In: Coletânea de Lembranças de Alepo. Revista Morashá, abril/ 1997. 121 DECOL, René Daniel. Imigrações urbanas para o Brasil: o caso dos judeus, p. 182 122 Ibidem 123 LEFTEL, Ruth. A Comunidade Sefardita Egípcia de São Paulo, p. 72 Os sefarditas distinguiram-se dos outros dois grupos culturais significativos para este estudo, por contar com maior participação efetiva feminina nas sinagogas e serviços religiosos. As moças aos 12 anos, também, faziam sua iniciação religiosa e apresentavamse oficialmente à comunidade. A liturgia sefardita contava com canto de coros mistos que permeava todo o serviço religioso, num diálogo em que se alternavam fiéis e coro. Incensos eram usados e dos salmos eram frisadas as entrelinhas compostas, permeando de simbologias o universo místico da maioria das mulheres sefarditas. Esse grupo cultural abriu espaço para a participação feminina nos estudos religiosos, trazendo a institucionalização do “Bat-mitzva” (festa da maioridade feminina) no Brasil. As mulheres orientais permaneceram em suas casas circundadas pelo grupo familiar feminino e suas várias gerações que se desdobravam em afazeres femininos como a educação dos filhos, a cozinha, os trabalhos manuais e artesanais. No grupo, expressavam-se livremente os sentimentos, mas, mantidos numa atmosfera hermética do universo feminino. As casadas, mães, avós e tias eram as interlocutoras desse universo para o mundo masculino e público. A literatura e a música eram as aptidões diferenciadas e aceitas dentre as práticas permitidas às bem-educadas, às recatadas moças de olhar baixo preparadas para o casamento indicado e acertado entre as famílias. Ao imigrarem, diferenciaram-se pela oportunidade de trazerem bens materiais e idéias não menos arrojadas que serviram de insumos na implantação de uma economia, inicialmente de sobrevivência das famílias. No entanto, trouxeram em sua bagagem o “capital” intelectual, que se desdobrou nas iniciativas que ajudaram a desenhar a cidade de São Paulo. FOTO 17 – Amuleto – Chamsa Chamsa – Amuleto contra mau-olhado 124 Fonte: Unterman “Além da coleção de “Chamsa” (figura de mão como símbolo contra o mauolhado), ainda trouxemos o caderno de receitas de doces, que foi a base da minha chocolataria artesanal, da qual sobrevivo até hoje.”125 124 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p. 23 Conta uma das sefarditas entrevistadas, ou ainda, na declaração de uma de origem oriental: “Tínhamos um plano arrojado que era baseado no interesse pelas pedras brasileiras, já que nossa família trabalhava com ourivesaria, há varias ‘gerações”126 Diante de tantas diferenças, quais seriam as semelhanças que agrupam e consolidam o grupo étnico estudado? 2.3 - Contornos de identidade Neste caso, o grupo étnico estudado e sua longa história, em diversos espaços geográficos, caracteriza-se pelo efeito imantador da cultura judaica, qual seja: seus valores morais e éticos, costumes explícitos ou religião, identificados com a história de origem mítica de origem. Partindo da definição dada por Weber e frisada por Poutignat e Streiff-Fenart sobre a pertinência ao grupo étnico, o conceito de autopercepção foi utilizado como parâmetro: (....)crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco importando se a comunidade de sangue exista ou não objetivamente. (WEBER,1971, p.33 -34) O psicanalista Salvador Sandoval agrega outra condição, que é a própria perenidade potencial do grupo étnico, “a capacidade de se autoperpetuar biologicamente”127. As palavras que melhor parecem ilustrar a magia da identificação judaica pesquisada nos diversos trabalhos sociológicos e antropológicos da atualidade, que estudam as conotações, os sentidos e as definições sobre etnicidade, foram as seguintes: “(....) a 125 Relato de Claudete a MFW em SP, 2000. 126 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 127 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.; PACHECO Fº,Raul A.(Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p.18 reação de um certo tipo de leitor – um leitor judeu lendo textos judaicos e explicando suas estruturas e temas.”128 Essas histórias confirmam as realizações de mulheres oriundas de diferentes países, de regiões estranhas entre si que imigraram no período entre 1945 e 1956. Arrancadas de seus locais de origem por questões ligadas a perseguições, emigraram, lutando pela sobrevivência, buscando soluções econômicas num contexto em que encontrassem novamente segurança física, (....)pela sua condição biológica de ser judeu transforma sua imigração numa emigração vital, na maioria das vezes em ações clandestinas, heroísmos individuais e até apoios de entidades internacionais, todos unidos pela condição de serem judeus, perseguidos por serem judeus.129 Os grupos de imigrantes, perseguidos por sua identidade judaica, configuram o grupo étnico de diversidade cultural. De diversos locais de origem, seja do velho continente ou de impérios desaparecidos, onde viviam e conviviam com a comunidade local, participaram do processo de crescimento das cidades de origem. Sendo sujeitos, também, provocaram mudanças na cidade de São Paulo, tanto interétnicas como intra-étnicas, concluindo, após algumas décadas, tornaram-se brasileiro-judeus ou judeu–brasileiros. Ao imigrarem para o Brasil, em muitos casos, a única alternativa na premência do momento. São Paulo tinha um apelo econômico favorável panfletado pela mídia internacional e foi considerada desde o final da década de 1930, uma “globalcity’, conforme Otávio Ianni, ”... enclave de penetração do capitalismo, mesmo que de um país semi-periférico” e foi neste cenário aberto à “alteração dos padrões de estrutura urbana e hierarquia social’130, que chegaram os imigrantes. → Como entender o substantivo imigrante? No sentido jurídico e social, a definição dada à palavra imigrante e a seu oposto, o emigrante pode criar a correspondência no sentido da presença e ausência, forçando à 128 SHAKED, Gershon. Sombras de Identidade, p. 8 129 NAZZARI, Luiz. Estranhos Destinos: Uma pesquisa sobre a Errância dos Judeus Alemães. 130 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p. 81. reflexão sobre ligação. Para Hannah Arendt, o cidadão é aquele que tem sua pertinência nacional, portanto, o imigrante ao não ser “nacional”, é excluído, é o “fora da ordem” e “há uma dupla exclusão”. Dessa maneira, a presença do imigrante altera a ordem nacional e o emigrante deixa de mudá-la pela falta. Assim, o refugiado, o sobrevivente do pós-guerra, o expulso, caracteriza-se pela falta dupla de cidadania: “(....) recusa ou negação ao direito a vida, na medida que a identidade do indivíduo está contida em sua identidade cívica”131. Na Alemanha da década de 30 do século XX, o movimento nazista alinhavou a morte física ou biológica: “morte cívica” dos judeus, entre outros, perseguidos. A perda dos direitos jurídicos na sociedade alemã do começo do século, o isolamento em guetos situando-os como cidadãos de segunda classe, até culminar com as práticas nos campos de extermínio, completamos o panorama (....) daquele que não tem direito, muito diferente de ser fora da lei. 132 Numa correlação com outro grupo diferenciado, que ajudou a construir a história brasileira, os negros também sofreram o trauma psicológico da não pertinência e por terem sido escravos, não possuíam identidade, agravado ao fato da sujeição corporal. Assim, a falta de laços identifica o escravo com o imigrante, ambos em relação à nação vivenciam a exclusão, a diferença. A própria palavra: estrangeiro, em substituição a imigrante cria a distância social, ele não é desta sociedade. Entretanto, o imigrante de sua parte, mantém a separação ao usar outro idioma, um estrangeiro. Para o judeu, esta característica veio associada ao trauma persecutório, evitando a criação de laços, diante da potencial partida. Dentro da história brasileira e, especificamente, da paulistana, os conflitos de classe sobrepujaram-se às eventuais divergências de inserção dos diferentes; e São Paulo foi escrita, de acordo com o padrão social, status econômico e grupo étnico. Para Lesser (2000, p.294) “entre 1850 a 1950 as ideologias e as políticas transformaram-se sistematicamente assim como a composição demográfica.” Os imigrantes europeus fazendo parte dos planos político-econômicos do período foram amalgamados à sociedade que conciliava o direito de igualdade entre o nacional e o estrangeiro133. Mas nem sempre a legislação brasileira sobre a imigração, especificamente a judaica, foi aberta e receptiva, sobretudo, considerando as mudanças ocorridas no século XX. Houve diferentes critérios de seleção das levas imigratórias, construindo-se certa ambigüidade com relação ao estrangeiro. 131 SAYAD,Abdelmalek. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade, pp. 269-270 132 Ibidem 133 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p.55. No caso do imigrante judeu, somava-se o adjetivo “inassimilável” que vinha imbuído da desconfiança em portar a nacionalidade brasileira. No começo do século, as levas imigratórias de mão-de-obra rural de alemães e japoneses para o sul do Brasil apresentam características semelhantes ao se diferenciarem pela religião e traços físicos.134 Estes grupos ajudaram a ampliar o conceito para estrangeiro e diferente, ao envolverem rapidamente os imigrantes judeus. No período estudado, o governo de Getúlio Vargas, objetivava “(....) retornar a uma sociedade católica mais tradicional”135, restringindo136 as possibilidades de entrada dos diferentes. No entanto, a elite intelectual e, sobretudo a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo já cumpriam seu papel ao abrigar diferentes vozes para reflexão e construir um olhar paulistano-urbano que reconhecia como favorável essa pluralidade: Em outros termos, no âmbito de uma cidade que assumia o perfil de metrópole que, no ângulo cultural, significa intensificar o processo de assimilação das correntes mundiais, ao mesmo tempo em que as absorve segundo termos próprios.137 Assim, o fim do Estado Novo foi marcado pela institucionalização da Carta de 1946 e um “relaxamento político”. A nova situação democrática abriu espaço para um distinto comportamento da comunidade judaica, implantando instituições e representações judaicas no cenário público. Ao invés de “guetização” 138 , um exercício de cidadania era permitido, ao qual não estavam acostumados. Por isso, a participação política dos judeus no mundo laico, de modo geral, foi de cunho universalista e acabou por significar para a maioria o enfraquecimento da identidade étnica. A assimilação foi bastante associada ao favorecimento do êxito do nazismo, desdobrando-se num recrudescimento das fronteiras sociais. Seguindo o pensamento de Grin, que explica a preservação do grupo pela da convivência estabelecida “pela diferença 134 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) .Psicanálise, Cultura e Migração, p. 9 135 LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: Imigrantes,minorias e a luta pela etnicidade no Brasil, p.118 136 CARNEIRO,Mª Luiza Tucci. O Anti-semitismo na Era-Vargas Fantasmas de uma Geração(1930-1945). 137 ARRUDA, Mª Arminda N.Metrópole e Cultura: São Paulo no meio século XX, p. 211 138 GRIN,Mônica. Etnicidade e Cultura Política no Brasil – O caso dos imigrantes judeus do Leste - Europeu, p.151 com o outro, pelo não pertencer ao outro grupo” ou o contrário “...individuação de seus membros significa a despolitização do grupo.”139 Houve a necessidade de preservação da ajuda para consolidar a densificação em bairros específicos, configurando-se um mapa paulistano recheado de “bairros étnicos, e ambientes eram favoráveis à regulamentação da comunidade e da qual a “interação passa a caracterizar a etnicidade”140. Conforme Rattner (1977, p. 16), “quanto mais aberta e envolvente a sociedade adotiva, mais rápida são as mudanças culturais”. Assim, na sociedade paulistana desse período, os diversos e modernos setores da economia ofertaram oportunidades de negócios e empregos, sob a alegação de uma qualificada experiência profissional pregressa141, contribuindo para a absorção e integração aos imigrantes. Esse ponto chama a atenção, pois diferente dos estudos localizados em vasto material bibliográfico encontrado, as imigrantes entrevistadas declararam favorecidas, em especial, pelos conterrâneos, justificando com a facilidade de comunicação. Desse modo, os poloneses com poloneses, os russos com russos, italianos com italianos foram por eles ajudados no processo de reorganização familiar. Estas mulheres surpreendendo-se com as diferenças, em São Paulo, depararam-se com os diferentes grupos culturais e foram avizinhando-se entre seus iguais, tecendo redes de relacionamento e construindo novas famílias. A Tabela, a seguir mostra a distribuição das mulheres entrevistadas por bairros na imigração a São Paulo. TABELA 06 – Bairro de Instalação à chegada das entrevistadas Bairro de instalação Bom Retiro Higienópolis Jardins Outros Total Número de Entrevistadas 07 04 03 08 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. 139 Ibidem, p.152 140 CARIGNATO,Taeco T; ROSA, Miriam D.;PACHECO Fº,Raul A. (Org.) Psicanálise, Cultura e Migração, p. 19 141 PEREIRA, l.C. Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil, p. 53 GRÁFICO 02 – Distribuição por porcentagem dos bairros de instalação na chegada das entrevistadas Outros 36% Jardins 14% Bom Retiro 32% Higienópolis 18% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Segundo Mizrahi (2003), as diferenças idiomáticas, de costumes e visões de mundo restringiram a auto-identificação entre os grupos culturais judaicos (ashkenazitas, sefarditas e orientais), causando certa indisposição inicial na articulação de uma comunidade única. Diante dessa percepção, a constituição da Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP) veio a satisfazer as expectativas e necessidades, de integração do grupo assumindo um posicionamento dos judeu-brasileiros por meio de uma entidade democrática. Nos discursos das entrevistadas, a percepção sobre a organização do cotidiano no período da imigração e os ajustes à rede de relacionamentos reiteravam o reconhecimento da força de atração e coesão do grupo étnico, assim como a percepção sobre os distintos processos identificatórios, conforme detalhado anteriormente: a religião, a tradição, a filosofia ético-moral, a matrilinearidade e a identificação ideológica e política com Israel. No entanto, percebemos dois fatores que, além de estarem interligados, se influenciam. O primeiro é a atuação da família na formação da identidade do indivíduo e o outro é a comunidade com suas características comuns, histórias, interesses, etc., com os quais cada indivíduo se relaciona, identificando-se com esses valores. Refletindo esse apego está a valorização nos casamentos intra-étnicos que podem ser constatados também nesta pesquisa. A tabela a seguir mostra o número de entrevistadas casadas com judeu ou não. TABELA 07 – Matrimônio Endogâmico Marido Judeu Número de Entrevistadas Não Sim Total 03 19 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. No universo pesquisado, 19 mulheres entrevistadas casaram-se com judeu, porém, no período inicial da pesquisa, ao chegarem a São Paulo nem todas se identificaram como judias, resguardando-se das restrições impostas pelas leis de imigração, ainda adversas aos judeus,. Dentre estas, duas vieram como católica e uma como protestante. Dália, a entrevistada educada como protestante, descobriu sua ascendência judaica depois de casada, quando sua mãe não agüentou ver o genro incorporar-se ao exército nazista alemão e segredou a pertinência da família ao grupo étnico-judaico. Durante alguns anos, ela tentou seguir alguns rituais judaicos sob o manto personalista, conforme este relato confirma: “Eu aprendi com a minha mãe a fazer jejum de um dia inteiro, na época, para mim pouco se diferenciava das outras pessoas. Era talvez a Sexta-Feira Santa!!!! Hoje sei que é o Yom Kipur (Dia do Perdão)”.142 Outro caso pesquisado fez a conversão ao catolicismo, refletindo uma medida de proteção para a família, ainda na Alemanha, numa época em que o anti-semitismo tornarase evidente, também, transferiram os filhos para escola católica. Alguns resquícios da origem judaica, no entanto, acompanharam esta família: um deles era o uso da “mezuzá143 embutida no batente da porta, na dobradiça”. Após a imigração, a nova escola escolhida para a filha contou com a inclusão da educação religiosa. Para que esta fosse mais facilmente aceita e reconhecida como judia, Dália fez a reconversão ao judaísmo, embora a 142 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000. 143 Mezuzá: um rolo de pergaminho contendo uma parte de uma reza e fica afixada no batente direito da porta e para enfatizar no homem a consciência de Deus. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p.174 mezuzá continue sendo colocada, até hoje, pelo lado de dentro da casa. O desdobramento da convivência com a comunidade propiciou o casamento da filha com um judeu. Já Suzana convertida ao catolicismo, e casada com cristão reacendeu seu vínculo com o judaísmo após a morte do marido. Vive, atualmente, no “Lar Golda Meier” “...me identifiquei, não sei explicar”144 Num tom de voz baixo e arrependido, declara que educou os filhos em colégio laico, sem nenhuma referência judaica e, seu filho, hoje casado com uma japonesa vem ao “Lar” visitá-la e ao assistir as palestras ou participar de eventos religiosos tem apenas um olhar de curiosidade. Uma imigrante que forjou os documentos como católica, declarou estar vinculada ao judaísmo somente sob o ponto de vista filosófico e cultural, porém, sua filha, decoradora e professora da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP) é praticante da religião judaica. De modo geral, independente da relação com a religião na época da chegada e, ao longo da vida, todas entrevistadas identificam-se como judias e participam das distintas formas de atividades da comunidade, sejam como contribuintes de entidades judaicas, (82,0% dos casos estudados), sejam em clubes socioesportivos (72,0% participam das atividades dos clubes judaicos). GRÁFICO 03 - Distribuição em Porcentagem por tipo de contribuição a entidades entre as entrevistadas Não 18% Entidades de Israel 14% Entidade local 32% Ambas 36% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela a seguir mostra as diversas formas de contribuição social entre as entrevistadas. TABELA 08 - Contribuições Sociais Contribuições Sociais Entidade Israelense Entidade local judaica Ambas Número de Entrevistadas 03 07 07 Não contribui 05 Total 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Apesar das diferenças culturais, a construção social foi edificada nos clubes sociorrecreativos para 16 mulheres entrevistadas. A tabela abaixo mostra a distribuição das entrevistadas em relação aos clubes a que se filiaram. TABELA 09 – Participação em clubes sociorrecreativos Clube Macabi A Hebraica Outros Não Total Número de Entrevistadas 05 11 01 05 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. GRÁFICO 04 – Distribuição em porcentagem da participação em clubes entre as entrevistadas Não 23% Macabi 23% Outros 5% Hebraica 49% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. 144 Relato de Suzana a MFW em SP, 2000. A maneira mais imediata de identificação judaica é a religião e o ponto de inflexão que merece atenção, refere-se ao ritual da morte, já que 100,0% do universo pesquisado seguem os preceitos religiosos nos funerais. Esta percepção é reforçada pela resposta afirmativa de 11 entrevistadas sobre suas filhas terem realizado casamentos endogâmicos. Ainda que 14,0% das filhas tenham abandonado a religião ou outra forma explícita de identificação étnica, reiteram a força de imantação com o grupo judaico, pois assim se autoidentificam. As tabelas abaixo mostram as distribuições entre as entrevistadas de casamentos religiosos na comunidade e a manutenção da religião herdada na geração seguinte. TABELA 10 - Tipos de casamento entre os filhos Casamento dos filhos Misto Endogâmico Civil Sem filhos Total Número de Entrevistadas 06 11 03 02 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. TABELA 11 - Religião que a filha mantém em casa Religião que a filha mantém em casa Mais religiosa Igual a mãe Menos religiosa Abandonou a religião Sem filhas Total Nº de Entrevistadas 05 02 07 03 05 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. GRÁFICO 05 – Distribuição em porcentagem da religião que as filhas das entrevistadas mantêm em casa Sem filhas 23% Mais religiosa 23% Igual a mãe 9% Abandonou a religião 14% Menos religiosa 31% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. FOTO 18 – Vista do Muro das Lamentações no setor feminino 1899 - Fotografia do Muro das Lamentações Fonte: Ulterman145 No entanto, os diversos bairros irão desenhar o novo mapa de São Paulo, ao criar redutos como microcosmos de cada povo, como temos a Liberdade, local de orientais. A comunidade judaica tendo sido composta por diferentes grupos culturais, imigrantes, oriundos da Europa Oriental sob o regime czarista e os provenientes de pequenas cidades da Europa Ocidental trouxe experiências diferentes entre si. Viveram, na maior parte de suas histórias, separados da sociedade local, apresentando características peculiares. Os procedentes do Oriente Médio concentraram-se na Mooca e no Cambucí 145 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições , p.185 denominados “turcos”; ao passo que o Bom Retiro foi o universo dos ashkenazitas, apelidados pelos judeus orientais de “gringos”. As diferenças serviram para apontar semelhanças entre imigrante-cristãos e muçulmanos, também, do Oriente Médio. Além do idioma, estavam identificados pela comida, música e a marcante estrutura patriarcal, aproximando as famílias no bairro, onde fixaram residência e instalaram os negócios. Estavam familiarizados com o comércio de tecidos, negócios com o que os imigrantes árabes, em geral, de períodos anteriores fizeram sucesso. Os novos imigrantes foram estimulados ao enraizamento comercial no Brás e na rua 25 de março146, ao lado de seus conterrâneos, muçulmanos e cristãos. Entre os ashkenazitas, o maior grupo de imigrantes no período, a resistência à integração foi grande, permanecendo em bairros étnicos identificados pela origem. Os judeus provenientes da Alemanha tinham ainda que se livrar do estigma de ariano. Assim, foi pelo menos, até as décadas de 70/80 do século XX com o apogeu da Sinagoga liberal da Rua Antonio Carlos – CIP dirigida pelo Rabino Fritz Pinkuss, desde 1962, que também colaborou para a integração com a comunidade sefardita, ao oficiar alguns casamentos na Sinagoga da rua Abolição. Estes, os ashkenazitas, em razão de sua maioria, impingiram o padrão judaico na cidade de São Paulo, tendência só interrompida diante da fundação de novas sinagogas, a partir de 1980, de cunho mais tradicional ajustadas aos costumes dos judeus sefarditas e orientais. Essas diferenças culturais apresentam-se no mundo todo e, mesmo, aos próprios moradores de Israel. Os espaços para discussões e análises continuam renovando-se e reformulando os critérios fronteiriços de pertinência ao grupo étnico. Rattner (1977) estudou a auto-identificação ou auto-reconhecimento147, considerando o judaísmo como fruto da congruência de valores, que permitem gerar diferentes processos identificatórios, como a religião em suas diversas formas (ortodoxa, conservadora, liberal), os preceitos, a filosofia ético-moral, a matrilinearidade148 (com base na Halachá149), a ligação com o mito de origem que se aproxima na idéia de parentesco e ainda a identificação ideológica e política com Israel. Assim sendo, a convivência torna-se a principal forma de perpetuação do grupo étnico e cada judeu vivencia à sua maneira. Entretanto, a integração entre os diversos 146 MIZRAHI,Rachel. Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, p. 133 147 HERKOVITS,M. When is a Jew a Jew? In: KRAUSZ, Rosa. Problemas de Sociologia Judaica, p.16 148 Matrilinearidade –a mulher é responsável pela herança étnica, mesmo quando não praticante da religião ou das tradições judaicas. 149 Halachá – prática normativa - UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 112 grupos culturais foi difícil, pois o conceito de grupo é delimitado pelo “patrimônio coletivo”150 cultural, psicológico, entre outros e os elementos devem perceber-se objetivamente uniformes. Ao constatarem um modo de vida distinto intra-étnico, encontraram-se diante do dilema de relativizar as diferenças e tornaram-se racionalmente mais amplos e inclusivos, usando como critério de pertinência a origem histórica, “(....) cidadãos de qualquer nacionalidade fazendo parte do conjunto de pessoas que formam um determinado Estado, enquanto permanecem identificados com sua herança histórica”151. Por outro lado, a cidade de São Paulo com sua pluralidade de estilos de vida favorecia a integração. O movimento de expansão econômica e a procura por mão-de-obra aceleraram o processo de confluência populacional modificando o cenário. O movimento na sociedade local diante do contingente de imigrantes de diversos continentes estimulou a modificação dos padrões de comportamento, atitudes e enfoques sociais que se refletiram na família e na condição feminina. A percepção da própria comunidade sobre mudanças de valores do grupo étnico como de assimilação exigiu de seus líderes uma reavaliação sobre a consciência e sua significação étnica, conceitos importantes para a manutenção do grupo152. Tornaram-se brasileiros judeus de uma específica origem. Segundo Blay (1972), as mulheres aproveitaram as oportunidades de acomodação social e ocuparam espaços em atividades econômicas, não só na área fabril do início do século, mas em vários setores produtivos e de serviços em São Paulo. De acordo com este estudo, e tendo alinhavado suas características, pretendemos despertar a percepção sobre o pequeno grupo pesquisado, salientando o significado das ações dessas mulheres empreendedoras, embora muitos não acreditem ou desconsiderem sua importância. A luta pela sobrevivência exigiu iniciativas que ainda não sabemos denominá-las. Empresárias ou colaboradoras? Assim, as mulheres imigrantes judias que iniciaram negócios ou criaram alternativas utilizando seu capital pessoal e obtendo rentabilidade dos mesmos, contam suas histórias usando o personagem “nós” - preservando ao homem o papel de provedor e porta-voz familiar, na clara referência à divisão dos papéis de gênero tão arraigada na cultura judaicopatriarcal. 150 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, p. 179. 151 HOBSBAWM,E.; RANGER,T. The Invention of Tradition. Cambridge, 1983 .In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, p.54 152 Ibidem, p.72 CAPÍTULO III EMPREENDEDORAS INVISÍVEIS FOTO 19 – Mulheres Empreendedoras em atividade Bar e Café “Jacob” no Bom Retiro Fonte: Acervo AHJB “A noção de silenciados tem sido valorizada como um dos objetivos da História Oral, pois, de certa forma, além de contemplar os “vencidos”, abre-se também para setores considerados da “elite”, que também não têm sido contemplados pela formalidade analítica vigente” José Carlos Sebe Bom Meihy No processo de transformação das mulheres, percebemos uma grande diferença, pois, ao analisar o caso das imigrantes judias, constatamos que as relações interpessoais sofreram diversas mudanças. O movimento de saída dessas personagens, como conseqüência das Grandes Guerras do século XX, não foi espontâneo, mas, fruto de uma história interrompida. Os homens, enfraquecidos, doentes ou humilhados pela necessidade de esconder-se, e as mulheres com vestimentas masculinizadas, que as preservavam de ataques masculinos, tornaram-se guerreiras em defesa dos filhos e pais, lutando por protegê-los. Assim, ambos abandonaram suas atitudes milenares e apossaram-se de várias atividades em setores que outrora eram privilégio de uns ou de outros, vivenciando questionamentos sobre os estereótipos tradicionais. A necessidade de lutar pela sobrevivência apresentou a oportunidade para embaralhar os papéis, com urgência e sem muito zelo, iniciando um caminho que garantiu um novo olhar sobre a capacidade e potencial de cada um, da nova família e de sua distribuição de poder, sobretudo, das mulheres, vislumbrando, assim, novos contornos sobre a especificidade dos papéis de gênero. Apesar dos resultados, esses eram do conjunto familiar, quando muito ficavam associados às novas qualidades consideradas femininas: a dedicação e o sacrifício pela família. No cotidiano do papel feminino de donas-de-casa e consumidoras, tornaram-se agentes da adaptação e encontraram pontos de contato com a comunidade gentia, estabelecendo os novos parâmetros de relacionamento, transculturação e absorção de valores da sociedade receptora. 3.1 – Oportunidades e circunstâncias: imigrantes judias Ao estudarmos, essas mulheres que se tornaram empresárias em São Paulo, identificamos nas histórias o esforço individual na busca de espaço na sociedade. Tanto aquelas que passaram a experiência da Segunda Guerra Mundial como as refugiadas que fizeram parceria com o marido, viveram situações emergenciais e lutaram por soluções, construindo uma relação de igualdade de responsabilidades, sem subordinação, obediência ou invisibilidade, priorizando o intrínseco sentimento de sobrevivência e solidariedade. Assim, mais rapidamente puderam assimilar a mudança social e encontrar novas alternativas, como o trabalho independente com menor resistência familiar. É interessante salientar que a sociedade paulistana abrigou e articulou um processo de integração sem dissolver as características das novas imigrantes, foi um processo de troca de influência e absorção cautelosa, pois no plano governamental havia fortes influências fascistas que impossibilitaram ou dificultaram a vinda de outros judeus. Mas a dicotomia entre o discurso de alguns componentes do governo brasileiro e a realidade sociocultural encontra-se perpetuada até os dias de hoje. Dessa maneira, consideramos que o Estado-Novo não modificou os padrões internos da convivência brasileira.153 Assim, dezesseis das mulheres entrevistadas puderam imigrar, identificando-se como judias: quatro chegaram como cristãs, uma como protestante e, finalmente, uma sem identificação religiosa. A tabela a seguir mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas da religião praticada na origem. TABELA 12 – Religião na origem Religião na origem Número de Entrevistadas Cristã Judia Outros Total 04 16 02 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Todas as entrevistadas reforçaram a pertinência ao grupo étnico para além da possibilidade de auto-identificação, o fato de serem filhas de mães judias (a Halachá considera a matrilinearidade o que define a descendência judaica) e mais, ainda manterem sua ligação com a comunidade pelo ponto de vista cultural, como pontuamos anteriormente. Ao avaliarmos mais profundamente as mudanças ocorridas no tocante ao exercício da religiosidade das famílias das entrevistadas, percebemos uma polarização quanto ao vínculo religioso, sinalizado por um lado pela “Teshuvá154” (volta aos costumes ortodoxos judaicos), e por outro o processo de distanciamento da religião, um movimento semelhante ao constatado nas pesquisas demográficas de Sergio Della Pergola (2000) As entrevistadas perceberam uma valorização da religião sujeita a vários fatores e que, num contexto favorável, como o Brasil e, em particular, São Paulo oferece, puderam e 153 SORJ, Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In: SORJ, Bila. Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, p. 27. podem desenvolver mais autenticamente seus interesses seja o cultural, o social, a filosofia ou a religião. Assim, a composição do escopo religioso atual do universo pesquisado é de quatro ortodoxas, dez liberais, quatro conservadoras e quatro vinculadas culturalmente ao judaísmo. A seguir, a tabela abaixo aponta a distribuição das entrevistadas sobre sua prática religiosa atual. TABELA 13 – Prática religiosa hoje Prática religiosa hoje Conservadora Ortodoxa Liberal Só vínculo cultural Total Número de Entrevistadas 04 04 10 04 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. As memórias e as lembranças anunciaram mudanças recorrentes de comportamentos e atitudes que redundaram num cotidiano diferente, de acordo com as possibilidades oferecidas pela sociedade local, nos distintos períodos. A necessidade, a solidariedade e as oportunidades de relacionamentos deram impulso e coragem às entrevistadas para o início da história individual como empresárias, muito embora, a maioria não admita esta definição, considerando-se, no máximo, colaboradoras. A pesquisa identificou como pontos comuns nos discursos, a necessidade de sobrevivência e o senso de liberdade social que o espírito de imigrante favoreceu, além da sorte, como fatores para sua iniciativa. 154 UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 31. A tabela a seguir refere-se à distribuição entre as mulheres entrevistadas dos fatores, que atribuíram a possibilidade de iniciar o empreendimento. TABELA 14 - Fatores que imputam a iniciativa empreendedora A que atribuem a iniciativa empreendedora Grupo étnico Ser imigrante Necessidade financeira Outros Total Nº de Entrevistadas 04 07 03 08 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Numa avaliação sobre o êxito da iniciativa do empreendimento, as entrevistadas têm uma visão comum de que o fato de ser imigrante desperta o potencial empreendedor pela necessidade premente de sobrevivência e pela liberdade de escolha como conseqüência do desenraizamento. A tabela abaixo aponta distribuição entre as mulheres entrevistadas no início do empreendimento por período. TABELA 15 –Data do início do empreendimento Data do início do empreendimento 05/1948-01/1951 02/1951-08/1954 09/1954-01/1956 01/1956-02/1961 Total Nº de Entrevistadas 06 10 03 03 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. No universo pesquisado 40,0% das entrevistadas mantêm até hoje seu empreendimento; no entanto, 40,0% fecharam seus negócios por questões financeiras ou falta de interesse familiar pela sua continuidade e quase 10,0% não alcançaram sucesso no negócio, ficando menos de cinco anos em tentativa de melhores resultados econômicos. Considerando que mais de 85,0% dos empreendimentos foram iniciados no período de balizamento desta pesquisa, até a data para a imigração 1956, numa cidade em profundas mudanças socioeconômicas, que torna mais significativo o fato de 90,0% das entrevistadas contarem com funcionários e para 55,0% empregarem mais de seis funcionários no processo produtivo A seguir, a tabela refere-se à distribuição entre as mulheres entrevistadas sobre o período de duração do empreendimento e o número de funcionários. TABELA 16 – Duração e número de funcionários no empreendimento Duração do Empreendimento 1990 Era Collor Até hoje Mais de 10 anos até Era Collor Menos de 5 anos Total Número de funcionários 1 a 5 funcionários Sozinha 6 a 30 funcionários Mais de 30 funcionários Total Nº de Entrevistadas 03 10 07 02 22 Nº de Entrevistadas 10 01 03 08 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Ao analisar a trajetória dessas mulheres e sua inserção na cidade, foi constatado o uso de seu repertório cultural e educacional no espaço de trabalho como diferencial favorável. Elas buscaram amigos, conhecidos e conhecidos de conhecidos oferecendo confiança e novidade. Com base no sentimento de solidariedade entre os imigrantes de modo geral, vários empreendimentos foram possíveis. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres sobre os contatos no Brasil que estimularam a emigração. TABELA 17 – Contatos para a imigração Contatos para a chegada Número de Entrevistadas Família 12 Amigos 06 Conterrâneos 04 Total 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Pelos dados da tabela, notamos que o processo de acomodação e ajustamento das mulheres imigrantes judias na comunidade paulistana dependeu da força de coesão familiar. Elas contavam com a aprovação de seus membros familiares ao relatarem suas conquistas comerciais, sobretudo, dos homens que eram “os donos desse saber”. Essas atitudes denotam que o manto de submissão ainda envolve as relações e confere papéis, de acordo com os sexos. O segmento escolhido pela maioria das mulheres que iniciou sua busca pela sobrevivência, colocando em risco seu próprio capital que, também, como Sandroni 155 define a empresária como uma “pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu funcionamento..., assumindo os riscos inerentes ao empreendimento.....” está relacionado, de modo geral, com o universo feminino: sacoleiras, costureiras de lingerie, roupas sob medida, roupas infantis (especialização étnica, segundo Grün156), ou mesmo, “quentinhas” (almoço para viagem), ou a fabricação de doces, pirulitos e chocolates, buscando um contato inicial com mulheres. A seguir, a tabela revela a profissão do pai na origem que servirá de referência para a maioria das entrevistadas. TABELA 18 – Profissão do pai na origem Profissão do pai na Origem Número de Entrevistadas Artesão 10 Comércio 02 Profissional Liberal 03 Assalariado 06 Fazendeiro/Trabalhador rural 01 Total 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Em 1984, nos EUA, John Rury fez uma análise sobre as “nebulosas” fronteiras entre formação técnica e a do lar que em muito constituem as bases das empresárias aqui estudadas: (....) na base de algumas dessas atividades (como o setor de confecção e de cozinha industrial) estavam habilidades muito semelhantes às consideradas importantes para o lar; o que teria 155 SANDRONI,Paulo. Dicionário de Economia, pp. 138/139. 156 GRÜN, Roberto.Intelectuais na Comunidade Judaica Brasileira apud SORJ, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In: SORJ, Bila. Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, p. 137 então ajudado a “borrar” a distinção entre a preparação industrial / técnica e preparação doméstica.157 Pautados nesse contorno nebuloso sobre a formação profissional, constatamos que as linhas divisórias no universo pesquisado foram a capacidade e a habilidade para romper os arranjos idealizados e arriscarem-se com seus conhecimentos, acumulados empiricamente, pois, só quatro das entrevistadas tiveram preparação formal para o trabalho, as demais aplicaram a experiência vivenciada na família ou aproveitaram oportunidades. Na “nova terra”, as mulheres imigrantes buscaram em suas entranhas a solução para a sobrevivência econômica. Neste estudo, constatamos que 50,0% das entrevistadas encontraram-na com base no conhecimento adquirido da família de origem. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas sobre a formação profissional. TABELA 19 – Formação profissional da entrevistada Formação Profissional Familiar Formal Experiência Própria /Oportunidades Total Nº de Entrevistadas 11 04 07 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. É importante observar que a educação formal ou profissionalizante não era dirigida às mulheres, pois destas não era esperado o sustento da casa, salvo entre as famílias religiosas, enquanto o marido estudasse. A afirmativa é endossada pelas diferenças atribuídas às oportunidades educacionais entre os filhos e sua hierarquia, que dota o primogênito de privilégios frente aos demais, preterindo as filhas em 37,0% das famílias entrevistadas, perpetuando os valores patriarcais. 157 BRUSCHINI, Cristina;SORJ, Bila (Org.) Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil, p. 194. GRÁFICO 06 – Distribuição em porcentagem dos privilégios concedidos entre os gêneros na origem Mulher não 37% Iguais 36% Primogênito 27% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela, a seguir, destaca a distribuição das mulheres entrevistadas as diferenças oferecidas entre os filhos sobre a educação na origem. TABELA 20 – Privilégios entre irmãos / filhos sobre a educação na origem Privilégios entre irmãos / filhos sobre a educação na origem Mulher não Primogênito Iguais Total Nº de Entrevistadas 08 06 07 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. As mulheres entrevistadas relatam a respeito da valorização da educação das diferentes formas, nas hierarquias criadas entre os filhos. No começo do século, tanto na Europa como no Oriente Próximo e Médio costumavam privilegiar os filhos homens na educação formal e, quase 30,0% dos casos estudados apontam prioridade aos primogênitos. No entanto, essa conduta não se repete na família imigrante, na qual a preocupação com os estudos era um diferencial do grupo étnico. Constatamos que a geração seguinte conquistou o segundo grau completo como nível mínimo educacional. Portanto, não surpreende que, quase 36,0% das filhas das imigrantes estudadas tenham formação de nível universitário. Conforme demonstra a tabela a seguir, quanto à formação das filhas das imigrantes entrevistadas. TABELA 21 – Escolaridade das filhas Formação das filhas Universitário Profissionalizante Especialização Sem filhas/ II Grau Total Número de Entrevistadas 08 07 02 05 22 GRÁFICO 07 – Distribuição em porcentagem quanto ao nível de formação das filhas das entrevistadas Sem filhas 23% Universitário 36% Outros 9% Profissionalizante 32% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Destas, 63,0% contribuem na economia familiar exercendo profissões diversas, não desconsiderando que no contexto das décadas de 70/80 do século XX, o mercado de trabalho apresentava incremento na absorção da mão de obra feminina. Mas, seguindo os passos de autonomia profissional de suas mães, 44,0% das filhas optaram por serem empresárias ou profissionais liberais e assim contribuem para a economia do lar. Esses são os resultados das mudanças promovidas pelo esgarçamento dos códigos sociais que aumentaram o espaço de ação das mulheres, sem minimizar o papel social dos homens. GRÁFICO 8 – Distribuição em porcentagem da contribuição das filhas das entrevistadas na economia familiar Sem filhas 23% Executiva 22% Empresária 14% Não contribui 14% Outros 5% Prof. Liberal 22% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo aponta a contribuição da filha das entrevistadas na economia da família. TABELA 22 – Contribuição das filhas na economia familiar Contribuição das filhas na economia familiar Executiva Empresária Profissional Liberal Outros Não contribui Sem filhas Total Nº de Entrevistadas 05 04 05 02 02 04 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. No entanto, esse comportamento de “sair sem endereço conhecido”, negociar, arbitrar preços, carregar e apresentar produtos, manusear dinheiro e falar com desconhecidos das desbravadoras do território público, era acompanhado de uma importante peça na bagagem: a família. A indicação e a referência eram partes do cartão de visita que endossava um empenho ideológico, ao mesmo tempo, dava a conotação de proteção. Essa lógica é composta de marcante diferença, encontrada na valorização dos papéis tão exemplarmente definida por Piscitelli158; 158 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 104. Mulher => Feminilidade => Família => Cooperação => Amor Homem => Masculinidade => Trabalho => Competência => Dinheiro Assim, as mulheres realizaram as tarefas e omitiram atitudes cumprindo a divisão das competências. Ao selecionar o universo a ser entrevistado entre as mulheres imigrantes judias, que utilizaram o próprio capital (dote ou herança e acima de tudo sua capacidade de criar crédito), constatamos a dificuldade na percepção da propriedade pessoal. Para as mulheres, a definição de propriedade mantém-se nebulosa, mesmo quando a origem do objeto estivesse clara para ambos, como a louça da casa da mãe, as meias defeituosas que o tio deu, jóias da própria família, enxoval. O fator refletiu-se na significativa restrição ao número potencial do universo a ser pesquisado. Dentro dos relatos pesquisados, constatamos que a grande maioria ao implantar o empreendimento por conta e risco, nos casos de êxito e expansão incluiu o marido, pai e irmãos, justificando Para Myetta, “mulher ganhar dinheiro é prêmio, para o homem é obrigação”. “Tão logo pude meu filho assumiu os negócios. Isso é coisa de homem.”, como se refere Margareth. Luiza afirma: ”eu comecei a costurar e não era trabalho, depois costurei para as amigas e foi virando pequena produção. O meu marido ampliou e tornou isto um negócio de verdade e eu continuei dando as idéias” As demais para as quais a experiência não resultou em nada além de: Para Margareth “a solidariedade é uma marca, o resto é questão de sobrevivência” Daniela afirma: “a mulher inteligente não fica na vitrine”. A participação dos membros da família das entrevistadas no empreendimento foi a estrutura formada por 77,0% das entrevistadas, porém sem haver o pagamento de salário formal, as despesas eram inseridas no fundo familiar. A tabela abaixo indica a distribuição da participação da família das entrevistadas no empreendimento. TABELA 23 – Participação familiar no empreendimento Participação da Família Não Sim Total Nº de Entrevistadas 05 17 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. As oportunidades do sistema capitalista permitiram que as mulheres, assim, como os homens pudessem tornar-se empresários, embora a feminização de certas ocupações, como o trabalho em domicílio, seja uma herança que ainda reside no ideário social da burguesia. Na Revolução Industrial, as mulheres já participam significativamente da indústria manufatureira e: “a idéia de que toda mulher deveria ter uma ocupação que contribuísse para seu sustento já era corriqueira”159 A participação crescente das mulheres começou a separar a casa do local de trabalho. Entretanto, a manutenção do tratamento como indústria doméstica ainda traz em seu bojo a concepção invisível da remuneração familiar incluída na soma paga ao chefe de família. Durante o século XIX, a tenacidade da divisão sexual do trabalho é revelada. As ideologias cujas manifestações materiais estão incorporadas são reproduzidas dentro da família e depois para a produção social, assegurando com que mulheres fossem as que se transferissem para as posições subordinadas e auxiliares160 Desta forma, a industria têxtil e a confecção foram as formas que melhor se adaptavam às características femininas e continuam mantendo o modelo domiciliar que garante a flexibilidade da carga de trabalho, ao mesmo tempo, em que se equilibra frente às distintas necessidades sazonais. A noção de trabalho “leve ou pesado” perpassa pela definição “das categorias possíveis às mulheres nem sempre de acordo com o esforço necessário”161. Em contrapartida, a disciplina e a especialização mantêm a baixa remuneração do serviço, que, 159 ABREU, Alice Rangel de Paiva. O Avesso da Moda: Trabalho a Domicílio na Indústria de Confecção, p 60 160 Ibidem, p. 67 161 Carola,C.Renato As trabalhadoras nas minas de carvão de Santa Catarina(1937-1964) In: MORGA, Antonio Emilio(Org) Historia das mulheres de Santa Catarina, pp.121-133. em sua maioria, é composto de mulheres comprometidas com as tarefas domésticas e com os filhos, colocando-as sempre diante da equação sobre a distribuição do tempo diário. O círculo vicioso é mantido pela inércia frente ao sistema patriarcal e diante da instabilidade da remuneração, a própria mulher minimiza sua participação na economia familiar, muito embora essa renda possa custear itens importantes ao grupo. No entanto, o próprio posicionamento feminino de que sua contribuição é ajudar162, supervaloriza o papel masculino em sustentar a família, alimentando o argumento da desigualdade e não equiparação de rendimentos. É importante ressaltar que as mulheres judias estão mais ainda envolvidas com sua primordial responsabilidade, a família. Ao equacionar seu tempo, colocam como prioridade o marido e os filhos, e só usam o tempo que não põe em risco suas funções maiores garantindo o reconhecimento sociocultural positivo. As possíveis atividades a serem exercidas serão escolhidas, visando a privilegiar a família em algum aspecto, isto é, se houver a necessidade de um incremento econômico, buscará atividades alternativas. Entretanto, isto nos remete ao declínio do número de filhos por família, sendo mais acentuada essa diferença nas áreas urbanas e classes sociais mais altas ou com maior escolaridade, possibilitando mais rápido às mulheres uma imediata mudança de seu ciclo vital e, estando os filhos em idade escolar, abriram-lhes um espaço de tempo produtivamente econômico. Dentro do aspecto familiar, a convivência domiciliar com parentes facilitou a realização da participação econômica feminina, dada a presença de outros adultos no lar que podem responsabilizar-se pelas crianças e tarefas domésticas. Diante do exposto, não é surpreendente como as entrevistadas apresentam-se: colaboradoras e ou cooperadoras. Minimizando os fatos, para não dizer ocultando, até se tornarem invisíveis na história dos negócios que iniciaram. Não raro, por insistência de contemporâneos, intitulam-se como co-responsáveis, não assumindo seu papel empreendedor, perpetuando a biografia oficial que conhece as ações e mantém as personagens invisíveis. Este trabalho mostrou-se diferente de outros estudos sobre empresários como o de Piscitelli163, nos quais as características femininas ganharam um tom neutro dentro das atividades da descendência. No grupo estudado, as mulheres imigrantes judias não projetaram uma durabilidade para seus negócios, valorizaram os estudos para os filhos e 162 NAISBITT,John; ABURDENE,Patrícia. Reinventando a Empresa, p.217. 163 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 97. filhas, respeitando o aprimoramento intelectual e o crescimento pessoal, de acordo com a vocação e a ambição de cada um dos descendentes. Perante a falta de envolvimento dos filhos, em geral, a maioria dos empreendimentos esgotou-se com seus fundadores. Assim, o empreendimento “era a solução”164 econômica, como não havia projeto de profissionalização administrativa, a perenidade do empreendimento ficava ligada à capacidade produtiva dos pioneiros. Ao apresentar a história de mulheres que foram buscar soluções coerentes com suas próprias iniciativas, sobretudo, pelo fato de terem sido consideradas inexistentes, a história assumida da empreendedora no mundo da moda, Myetta Garon, mereceu destaque, conforme transcriação sob o título de “História Assumida”. A seguir, alguns anúncios publicados no período pesquisado, na mídia impressa, demonstrando a existência de empreendimentos nos quais a representante da atividade econômica era mulher. FIGURA 01 – Anúncio do Atelier de Costura Ariela Fonte: Revista Shalom fev/ 1967- p. 31 Acervo AHJB FIGURA 02 – Anúncio do Grand Prix em Revista . Fonte: Revista Desfile set/1979 164 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000. Acervo Myetta Garon FIGURA 03 – Página de jornal dos eventos e anúncios Fonte: Jornal ” Aonde Vamos” de fev /1949 – p.19 Acervo AHJB FIGURA 04 - Anúncio em alemão de Modas Margarida Fonte: Jornal “Crônica Israelita” de 31/01/1952 – p.10 Acervo AHJB FIGURA 05 – Anúncio de Ester Gorovitz Fonte: Jornal “Aonde Vamos” de fev /1949 – p.18 Acervo AHJB 3.2 - Myetta Garon, uma História assumida165 A entrevistada aceitou participar de novo encontro para que seu relato fosse gravado tornando a entrevista “ponto zero”166 que após receber o tratamento de transcrição, textualização167, transcriação168 foi aprovada conforme segue: “Meu nome é Myetta Garon . Eu vou falar desde o tempo quando menina, já sonhava com moda, modelos e figurinos. Isso começa ainda lá na Romênia, onde as mulheres eram muito bonitas. Eu, também, já fui muito bonita. A cidade de Bucareste, onde eu nasci, tinha uma vida social muito chique e, por isso, era chamada de “Pequena Paris”. Todo final de semana tinha uma apresentação diferente de uma peça de ópera. Matinal, menos formal, e à noite para os adultos, como eu era da ala jovem com meus 15 - 16 anos, ia de manhã com minha prima Anita, ela era secretária 165 Entrevistada por Marie Felice Weinberg, na cidade de São Paulo na tarde de 4/12/2001 em seu apartamento em Higienópolis, em fase final de encaixotamento para a mudança. Essa entrevista foi gravada e passou pelos processos de transcrição, textualização e esta apresentação é o resultado de sua transcriação. (Menhy). A publicação foi aprovada pela entrevistada embora tenha sofrido a censura de seus filhos em certas partes que melhor detalhavam cada um deles. A supressão desses trechos não prejudicou o entendimento das nuanças da história e, sim, colaborou para reiterar o papel masculino que o filho já exerce sobre a mãe que se resigna ao papel de aposentada. 166 O ponto zero “é um depoente que conheça a história do grupo ou de quem se quer fazer a entrevista central” . MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino-americana: o caso do Brasil, p. 84. 167 Textualização é uma fase posterior à transcrição, e “nesta fase, suprime-se as eventuais perguntas que, fundidas nas respostas, superam sua importância”. MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino americana: o caso do Brasil, p. 90. 168 Transcriação “se compromete a ser um texto recriado em sua plenitude. Com isso, afirma-se que há interferência do autor no texto…”. MEIHY, J. C. Sebe Bom. Desafio da história oral latino americana: o caso do Brasil, p. 91. da embaixada. Era com ela que eu ficava conversando durante as grandes festas religiosas, quando íamos à sinagoga. A comunidade judaica lá, não era tão fechada como em outras cidades menores, era liberal, era uma cidade de gente muito para frente. Por essas e outras, nós não entendíamos nada das rezas, éramos nariz em pé como se dizia e falar romeno, era mais chique do que aprender o ídish. Eu, por exemplo, estudei francês, inglês, pelo menos, durante 12 anos. Depois que deixamos Bucareste, a filha da minha prima foi para Nova York. Ela largou o marido, que não era judeu e foi embora com a filha para Nova York. Esta prima e todos os demais eram da família de minha mãe. Do lado de meu pai, eu vi o pai dele uma vez só. A família de meu pai era de Odessa na Rússia. Imigraram direto para Israel, onde eu vi este avô, mas logo faleceu. Eu conheci um irmão do meu pai, um cara muito bonito, foi ainda em Bucareste, porém depois eles foram para Israel noutra cidade não sei qual e nunca mais os vi. Então com quem eu cresci ? Foi com a família da minha mãe. Ela tinha um irmão que foi para Filadélfia, onde nasceram seus oito filhos, três morreram, dois na aviação e uma menina que morreu queimada ainda de 12 anos. Ficaram cinco. Este tio era 20 anos mais velho que minha mãe. Ele saiu da Romênia, quando minha mãe ainda era pequena, e só voltaram a se ver muito tempo depois. Marcaram um encontro, desses que para reconhecer um ao outro precisaram combinar sinais, ele pôs uma flor na orelha, mas ela reconheceu sem nem olhar a flor, era tão parecido com ela... Quando eu quis conhecer esse tio, fui para Filadélfia. Hoje ele mora num lar. Lá é costume que os velhos vivam em asilos, e custa muito caro. Eu fui vê-lo, mas eu não gostei de lá. Um lugar ajardinado como este daqui, o “Lar Golda Meier” com muitas atividades, shows, restaurante... Nesta visita, ele me cantou uma canção em Romeno, imagina! Ele lembrou alguma coisa de 70 anos atrás, pelo menos. Eu soube que ele continua assim, cantarola com os cinco filhos e as quatro filhas, e uma é a secretária de um ministro muito importante. Bem, meus estudos foram numa escola normal e uma outra profissionalizante. Lá, em Bucareste poucas mulheres trabalhavam fora. Eu já me sobressaia desde os tempos de escola com meus desenhos expostos. Esse é um dom que descobri cedo. Nos meus 16, 17 anos, montei um atelier em casa. Nós, meus pais, meu irmão e eu morávamos numa casa alugada. Ela era muito grande e foi sublocada para nossa família. Aliás, esta proprietária tinha piano e começou a dar aulas para mim e ao meu primo que se tornou famoso em Nova York, onde mora com a família. Levei uns bons anos para aprender. Fiz o mesmo com a minha filha. Vivian estudou durante sete anos piano. Nos fundos da casa, ficava meu atelier. As aulas foram um bom exercício. No começo, eram roupas para as minhas amigas e depois foi aumentando até formarmos uma equipe de oito pessoas de alta costura. O dinheiro que entrava, era para comprar mais uma boneca-modelo, era o que eu queria. A Escola especial de corte costura chamava-se Flameng. Pela manhã, eu ia à escola regular com aulas de francês, inglês, história, matemática, essas coisas! A tarde era a hora mais importante e deliciosa! Este é um dos cadernos. A maravilhosa caligrafia, desenhos de exemplos, tudo caprichado...Um dia, quem sabe, vou traduzir. Por conta deste curso, meu atelier foi ganhando notoriedade e enquanto não tinha muito que fazer, eu ia inventando modelos e produzindo roupas, que ficavam expostas nas araras. As pessoas que freqüentavam a casa, olhavam as mercadorias e saiam comentando. Era muito engraçado! De repente, tocavam a campainha, perguntando pela dona... A dona era eu!!!... Mas eu não me apresentava assim, provavelmente, elas não teriam confiança naquela jovem. Aos poucos, foram descobrindo que aquela mocinha era “a Dona que sabia cobrar”, era assim que falavam! Meu pai era comerciante, acho que aprendi com ele a negociar e a minha mãe, uma grande dona de casa. Ela sempre falava para mim: “Você vai respirar ar lá fora”. Ela foi a mentora de tudo. Numa conversa entre ela e uma amiga, a professora de matemática, que surgiu a idéia de não me mandar para o Liceu, lá se chamava Litchel. O Liceu era uma escola feminina de secretariado. Seria mais interessante aproveitar meu dom na área de moda. E, assim, eu fui para a escola Princesa Sandra, quando me formei, fui convidada a ensinar. Foi muito importante ter uma formação teórica, porém eu sonhava com a tesoura, os tecidos as cores...E não com giz, lousa, alunas... Fiz o estágio de conclusão de curso num atelier que minha mãe conseguiu para mim, num atelier de alta costura chamado Panet. Era uma casa, era muito chique, muito linda! Eu não recebia salário, entretanto o combinado era ficar na sala de provas. É lá que se aprende. Eu fiquei lá por uns três ou quatro meses, até a chegada do inverno. Aconteceu até um episódio interessante! Como era inverno e aquele ano foi, especialmente, rigoroso, um gelo! As pessoas usavam todos os casacos e botas possíveis para se proteger da neve. Um dia, uma senhora chegou ao atelier e pediu que eu tirasse a sua bota. Quando contei à minha mãe, ela ficou tão indignada, que me tirou de lá. Surgiu a idéia desse atelier em casa! Moravam em casa duas meninas que vieram do interior para estudar, eram daquelas famílias do interior, muito ricas. Eles mandavam sacos de farinha, sacos de milho, de tudo que uma casa precisa, até ovelhas, não vivas, mas prontas para cozinhar. Era uma fartura para nós da cidade. Essas duas meninas é que me ajudaram a começar o atelier. Depois de um tempo e de bastante prática, veio a guerra e...Eu era muito jovem, tão jovem que não sei quantos anos eu tinha na época. Em todo caso, hoje tenho 73 anos. Não os sinto porque eu trabalhei toda vida com meu hobby! Veio a guerra...Eu vou pular este pedaço, conforme combinamos, não vamos falar da guerra. Quando os familiares, amigos e vizinhos começaram a emigrar da Romênia, nós tentamos ir para os Estados Unidos, mais precisamente queríamos a Filadélfia onde parte da família da minha mãe já estava instalada. Uma prima foi para Los Angeles, onde casou com um ortodoxo, mas, não ortodoxo judeu, russo. Eles se entendem muito bem e têm um filho que já é arquiteto. Quando vamos... Quando eu costumava ir, era na casa deles que me hospedava, com seis lindos e bem-decorados dormitórios, toda espaçosa, uma casa linda! O chão de mármore preto e a escadaria com tapete rosado. Uma suntuosidade! A mulher dele trabalhava e ajudava, ela é engenheira hidráulica. Em 46 ou 47, a saída da Romênia, só estava permitida para Israel. Meu irmão foi quando os ingleses saíram de lá, deve ter sido. Michel teve um bom emprego em Israel, trabalhou num navio, mas antes de trabalhar no navio ele lutou com os ingleses. Quando eu e meus pais chegamos, já havia terminado a guerra, foi quando ele começou a trabalhar no navio como camareiro. Ele trazia de Nápoles-Itália bijuterias muito bonitas, finas, caixas inteiras. Todo mundo fazia assim, cada um trazia alguma coisa. Ele casou lá, mas suas duas filhas nasceram aqui e ele tem oito netos. A filha mais velha mora em Campinas e está convidando o Michel para morar lá. Ela tem uma casa muito grande, tem um jardim com árvores frutíferas, mas ele não vai agüentar os seis netos... para lá e para cá, todos os dias? Ele é um boa vida... Foi após a Independência que chegamos em Israel. Ficamos lá por sete anos. Eu consegui um bom trabalho e o melhor...Na minha área, era numa das lojas mais bonitas da época. Ficava na Rua Hershon, lá me tornei diretora de atendimento da seção de alta costura. Fui reconhecida pelos meus patrões a ponto de ser convidada a ser sócia. Recebi, mais ainda, um convite para retornar caso a experiência do Brasil não desse certo. Isso foi muito gratificante e encorajador. Durante a travessia ao Brasil, tivemos aulas de português com um viajante professor da Berlitz, foram duas semanas e ajudou a passar o tempo também. Quando chegamos, fomos morar no centro da cidade, e eu comecei a trabalhar numa alfaiataria já com a freguesia montada. O dono era um grande alfaiate com clientes da alta sociedade. Ele com paletós e blaizers, e eu poderia fazer os vestidos, blusas, saias. Devagar as freguesas passaram a querer o meu corte com a modelagem diferenciada, uma linha mais feminina...Fui sutilmente convidada a me desligar. Devagar eu fiz amizades, grandes amigas! Eram romenas na maioria, pela facilidade da língua. Nina não era romena, ela vinha da Polônia. Eu era amiga da Rita da Viva Vida, era também romena. Mudei para o Largo do Arouche, aluguei a loja. Uma loja muito bonita com uma enorme vitrine que montava de maneira muito sofisticada. Eu expunha uma peça de roupa de cada vez e um buquê de flores. Tudo era tão elegante que o pessoal tinha medo de entrar. Eu usava um daqueles “tubinhos”, um básico, pérolas compridas e salto alto. Era o máximo! Era demais para o lugar ou para a época, sei lá. Resolvi me vestir mais esportiva, fantasiei a vitrine e logo começou a aumentar o movimento. Aos poucos, fui contratando...Uma modelista, depois uma costureira... Uma das costureiras não falava português, só falava francês e, para mim, era bom, afinal eu não fiz uma escola em português, eu fui formada na arte em francês, embora o português fosse um idioma bastante próximo ao romeno, no som é claro, mas as palavras de meu ofício, essas, eu só as encontrava no francês, acho que é assim até hoje. Começaram as viagens para o exterior, eu trazia roupa para revender. Lembro de uma saia plissada e xadrez, trouxe de Paris e vendi todas como água, para pessoas abastadas como os Klabin. Um dia, eu vestida com a tal da saia, recebi a esposa do pintor Lasar Segal. Ela comprou a minha saia e saiu vestida. Foi muito engraçado!! Viajei muito, desde o começo foram 31 anos, pelo menos, duas vezes por ano. Fazendo a conta... Fui 62 vezes para Europa... Paris, Roma, Firenze, Milão, Londres, Mônaco, Dusserdorf e... Sei lá, por tudo onde houvesse moda. Fui umas 40 vezes para Nova York, Los Angeles, Filadélfia... As primeiras viagens eu fiz com uma agência de turismo que organizava excursão, especialmente, para confeccionistas, participavam pessoas do Rio de Janeiro também. Aqui de São Paulo, fizemos um grupo muito bom, a Dona das Calças Berta, a Edith que também tinha uma fábrica com cinco ou seis lojas e está trabalhando mais com pronta entrega de blusas e malhas. A Nadia morreu, já não lembro do nome da malharia. E durante 30, 31 ou 32 anos, a cada estação, quero dizer, duas vezes por ano, uma no inverno e outra no verão, viajávamos para ver a moda, principalmente, os desfiles. Meu interesse era pela alta costura, com aquele acabamento chamado feston, não a máquina ou overloque, tudo à mão, um acabamento muito fino, quando bem-feito!? Em Paris, era a Alta Costura!! As minhas companheiras iam aos lugares de atacado como Saint Dennis. Eu ia ao Avenue Montaigne, na Dior, no Valentim, Givenchy, todo esse mundo não é que eu gostava. Aquilo que me interessava, eu desenhava lógico! Não podia comprar tudo, fotografava escondido. Tinha que saber fotografar. Às vezes, eu ia ao banheiro para desenhar alguma coisa importante. Eram muitos detalhes. Outras vezes, eu saía, por exemplo, na Montaigne na esquina do outro lado da rua, tinha um café, eu tomava um refrigerante ou qualquer coisa e sentava para desenhar. Eu me lembro que na Galeria Lafayette precisava sair do andar, cada andar tem um tipo de mercadoria, sentava na escadaria de um andar para outro, descia, subia, era cansativo. Já não é fácil sentar na escada e desenhar. E se esquecia algum detalhe?! Precisava voltar, ir lá de novo e mais sobe, desce, senta, levanta... Quando eu comprava alguma coisa, era em lugares como o Rue d’Abouquir, Saint Denise, onde os preços eram melhores e, assim, podia revender, porque da alta costura não podia comprar, só meias, écharpes, coisas, assim, batom, perfume. Muita coisa eu vivi naquelas tantas vitrines!! Muita coisa maravilhosa como Saint Laurent e a sua inspiração! Para tudo isso, eu precisava estar vestida elegantemente, usava um manteaux de vison que encomendei em Nova York, lá onde a Madame Rosita encomendava, e lá estava eu nas primeiras cadeiras dos desfiles. Não ficávamos só nisso. Íamos a restaurantes, algumas noites em shows, um ballet... Durante um tempo, os maridos também vinham, às vezes, eram as esposas que acompanhavam, mas, a maioria era empreendedoras mulheres. Mas, ultimamente, pelo menos nos 15 últimos anos, o grupo era: Eu, a Nádia, Edith com as lojas, as Calças Berta, a Mizela ou Gisela com a malharia e a Nádia. Algumas morreram, uma pena! Mulheres trabalhadoras e muito inteligentes! Esta, das calças Berta, casou de novo e o marido tem fábrica de malharia. A Confecção Nadir, também, acabou, infelizmente, ela morreu, era uma mulher muito inteligente que também falava diversos idiomas. Ela era acho que da Iugoslávia, não sei... Muito despachada. Ela sempre me pedia para desenhar alguma coisa de alguma vitrine. Não me atrapalhava, porque ela fabricava uma mercadoria mais barata, então, eu desenhava rápido, eu desenho, rapidinho, eu faço ainda bem rápido. E o atacado apareceu na minha vida de pronta entrega e sob medida. Depois de uma conversa com amigos nossos, que estavam enriquecendo com uma malharia para atacado. Eles sugeriram apostar no mercado atacadista, com uma pequena coleção. E a minha vida mudou de novo... FOTO 20 - Myetta Garon na preparação de um desfile da coleção de inverno em 1992 Fonte: Acervo de Myetta Garon Então, nós, meu pai e meu marido, depois meu irmão, começamos no atacado. Bem, fiz uma primeira e pequena coleção. O meu primeiro cliente atacadista foi o dono de uma loja que se chamava Trianon, fiz a coleção no tamanho 46. Eu não sabia, não sabia fazer atacado, eu engordei um pouquinho fiquei entre 44 e 46, fiz do meu tamanho, e se não vendesse?...Eu usaria! Este cliente me explicou sobre as vantagens da apresentação no tamanho 42, a roupa ficava mais modelada, a peça mais atraente e até mais econômica. Ele me ensinou. E começamos a vida do atacado... Eu trouxe uma reserva de dinheiro de Israel, mas não muito. Saí daquela loja. Meu marido já não tinha bons resultados como representante de lingerie. Meu pai, preocupado com minha segurança, sugeriu...”Se o marido entra, entra o irmão” e, assim, foi. Alugamos um espaço para pronta entrega também. O clima era outro. O inverno era forte e a coleção crescendo, chegou a ter 30 peças de diferentes modelos de manteaux. Ultimamente, se tivessem dois modelos, já era muita ousadia. Devagar a coisa foi engrenando, até o governo inventar um viaduto, este que passa pelo Largo do Arouche. Precisaram demolir uns prédios, umas casas e, assim, mudamos para a Rua Vitória. A minha mãe tinha alguns conterrâneos que ajudaram muito e desde o começo. Eles ofereceram um galpão com 600 metros quadrados, era muito grande, e eu construí uma grande fábrica, eram mais de 100 funcionários e representantes. Eu comecei com a oficina e a minha mãe trazia pratos bonitos e muito gostosos para a hora do almoço. Ela cuidava dos meus filhos pequenos, depois pude ter duas empregadas, sendo uma faxineira e a outra mensalista. Eu tive uma empregada chamada Dulce, que ficou 17 anos na minha casa. A Vivian, minha filha tinha cinco anos, quando ela entrou para trabalhar conosco e logo, três meses depois, nasceu o Sérgio, com a minha mãe sempre por perto. Ela faleceu em Israel, numa viagem para Europa e Israel, e morreu lá. A gente a trouxe para cá, para ficar sempre por perto... O Sérgio está aqui em São Paulo, mas, não por muito tempo. Ele cursou administração, pós em Illinóis, trabalhou na Nestlé, Philips, trabalhou num banco suíço e agora presta consultoria. Ele tem 35 anos, não está casado porque quer ir embora. Com uma mulher, um peso, uma responsabilidade... talvez uma criança? Ele não poderia ir, assim para outro país, assim tem mais oportunidades. Sei lá! É sorte! A Vívian, minha filha, trabalha no departamento obstétrico e está estabelecida em Cuiabá. É uma cidade em franca expansão e grandes oportunidades, mas não tem sinagoga, nem Mohel (o especialista religioso que faz a circuncisão), não tem nada disto; acho que deve ter umas oito famílias de judeus nada mais. Meu genro é médico cirurgião vascular, não judeu, mas é gente muito boa e eles se entendem muito bem; resolveram a circuncisão dos filhos no hospital. Eu vou para lá. Vou curtir os meus três netos. Pensei em talvez trabalhar por lá, mas ela não vai me deixar, ela acha que é tempo de ter tempo. ...Para os meus filhos crescerem, muitos rolos de tecido foram enfestados, quero dizer tecido esticado em camadas para cortar um determinado modelo e tamanho. Cresceram, estudaram, viajaram e tudo graças ao sucesso da Grand Prix. E cada vez melhor, até começarem a me roubar. A nossa marca chamava-se Grand Prix, era muito conhecida, nós tivemos bastante sucesso. O maior roubo foi a minha maior decepção. Um representante que trabalhava, há 18 anos conosco! Vinha na hora do almoço, mas assim ele não falava com os donos, isso era muito estranho. Para mim, era distante, eu queria saber dos comentários da clientela dele, eu não me preocupava com os acertos, a parte administrativa não me interessava. Eu gostava de ficar nas vendas, nas viagens, fazia modelagem, escolhia padronagem, fazia coleção...Enquanto eu estava numa destas viagens pela Europa, ele pegou mais de 100 peças e vendeu para não sei para quem. A verdade, sempre faltava uma coisa e outra, mas nós fechávamos os olhos. Isso não é bom para nenhuma firma. Enfim, para encurtar a história, eu fui lá na expedição, consegui o endereço através da indicação do motorista e encontrei a nossa mercadoria. Pegamos a mercadoria de volta. Abrimos um processo, mas eles tinham um advogado amigo e... Nada aconteceu. Passou o tempo e mudamos para uma loja na Rua Oscar Freire, uma loja de mármore branca e uma escadaria enorme. A gerente da loja era a dona do prédio e começou a me roubar... de novo esse problema! Eu não podia mandar ela embora, ela era a dona do prédio, então, eu saí de lá. Abri na Rua Prates, lá no Bom Retiro, com aluguel mais barato, uma fábrica nos fundos, e na frente, era de novo uma pronta entrega muito grande. Quando eu fechei o negócio, vendíamos quatro mil peças-mês, além da pronta entrega. Houve um tempo bom, eu sempre viajava e trazia e fazia a moda. Eu gostava muito do meu ramo e sempre aparecia nas revistas, a Grand Prix era muito conhecida, nós tivemos bastante sucesso. FIGURA 06 – Matéria de revista sobre a empresária Myetta Garon Fonte:Revista “Desfile”- Ed. 09/1979 Acervo Myetta Garon Com essas e outras histórias é que eu vou para a Casa da Vivian em Cuiabá. Vou ter hora para viver outros dons que nunca é tarde para descobrir e... lembrar de outras tantas histórias”. 3.3 - Empresárias – Histórias Recontadas O universo pesquisado foi sobre 22 mulheres imigrantes, e o número não é aleatório, são 17 de origem ashkenazita, mas este foi o limite imposto para que tivesse significância a participação das três mulheres de origem sefardita e duas orientais, que aceitaram participar, contando sobre a luta que travaram pela sobrevivência. A tabela a seguir apresenta a distribuição das entrevistadas, de acordo com seu grupo cultural identificado pelo idioma étnico. TABELA 24 – Grupo Cultural Judaico Grupo Cultural Oriental Ashkenazita (ídish) Sefardita (ladino) Total Número de Entrevistadas 02 17 03 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Este número confirma a existência do universo de mulheres imigrantes judias, que se tornaram empresárias, por outro lado, essa distribuição é resultante das estruturas familiares judaicas, em especial, as sefarditas e orientais serem mais acentuadamente patriarcais e conservadoras se comparadas com as oriundas da Europa Central e Oriental. Acentua-se, ainda, como conseqüência da divisão dos papéis por serem: a propriedade do capital, o prover e representar a família, atribuições masculinas, assim poucas autoras identificam-se, embora as mães das entrevistadas, nos países de origem, em 41,0% dos casos, já trabalhavam fora de casa com remuneração, por isso servindo de modelo nas iniciativas que criaram alternativas de rentabilidade . “Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas.”, comentário da sefardita Isabel. Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia: “As mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas cuidavam dos idosos e doentes. Eram enfermeiras.”. Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda, trabalhava como balconista”. NItza conta que: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas gerações, fazíamos corsette e soutien e cintas” GRÁFICO 09 – Distribuição em porcentagem das entrevistadas quanto ao trabalho na origem Não 36% Remunerado 41% Voluntário 23% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000 A tabela a seguir refere-se à distribuição das entrevistadas no trabalho na origem. TABELA 25 – Mulher no trabalho na origem Mulher no trabalho Remunerado Voluntário Não Número de Entrevistadas 5 9 8 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. No universo pesquisado, houve grande resistência das entrevistadas em se identificarem como empresárias, apesar das iniciativas econômicas realizadas. Assim, cuidados semânticos foram necessários para o entendimento de palavras que não raro podem ser tomadas como sinônimas: “trabalhar” e “ajudar”, característica do patriarcalismo, cuja ótica atrela a identidade da mulher a seu marido. Luiza acrescenta: “Eu comecei a costurar, não era trabalho. Depois fiz para as amigas, e foi virando uma pequena produção, e o meu marido cuidava disso, eu só dava as idéias. Deu certo, e assim é.” Consideramos empresárias aquelas que arriscaram seu próprio capital investindo ou transformando-o em produtos e serviços diversos169, pelo uso de atributos próprios, independentes da participação de outros nas distintas fases do processo. 169 SANDRONI,Paulo. Dicionário de Economia, pp.138/139. Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar certo, é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.” É bom lembrar que o empreendimento ou atividade econômica, formalidade jurídica, contratação de funcionários, a continuidade e o sucesso do negócio não se constituíram no objeto desta pesquisa. Embora o resultado seja valorizado entre judeus, assim como para os protestantes, ambos com a mentalidade econômico-capitalista, o foco primordial do trabalho foi constatar a capacidade de iniciativa prática dessas mulheres, e o risco de se adentrar no universo masculino, mesmo que justificando a necessidade de garantir sua sobrevivência e de sua família. Compuseram o grupo estudado mulheres que usaram seu próprio capital para uma iniciativa empreendedora. Algumas empregaram a herança, jóias ou bens provenientes de seus laços familiares de origem. GRÁFICO 10 – Distribuição em porcentagem das condições financeiras das entrevistadas na imigração Nada 18% Contra bando 23% Jóias 5% Dinheiro 54% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo revela a distribuição das condições financeiras das mulheres entrevistadas. TABELA 26 – Condições financeiras na imigração Condições financeiras na imigração Jóias Dinheiro Contrabando Nada Total Nº de Entrevistadas 01 12 05 04 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Para Sofia, “Conhecemos um austríaco muito necessitado vendendo um lote de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender, e resolvi inventar como o meu pai fazia. Devo a ela a nossa fábrica de bolsas e carteiras.”. O capital para início dos empreendimentos estudados foi disponibilizado de diferentes maneiras, todas as mulheres utilizaram seu próprio capital, seja econômico, de conhecimento e, sobretudo, de risco. “Um dia, eu resolvi vender uma bíblia antiga, com a capa dourada que trouxe comigo, para comprar uma máquina de costura. Assim, iniciei o negócio de conserto de roupas que se transformou numa pequena confecção de calças e camisas.” – esta foi a solução encontrada por Dália. “Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importar através de contatos com amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as viagens. Assim que a situação do meu marido se estabilizou, ele pediu que eu parasse com o negócio, e vendi o negócio para um conterrâneo, mas continuo com uma participação. Até hoje eu falo para o meu marido que recebo dinheiro do meu filho para as minhas bobagens pessoais.” – declara a oriental Juliette. Há o relato de Linda, ashkenazita, que utiliza seu capital de conhecimento e de risco. Ela trabalhou para o tio, por ter feito um curso profissionalizante de contabilidade. Neste trabalho teve a oportunidade de negociar um lote de tecido que seria descartado, por estar fora das especificações, e com ele costurou uma série de colchas em matelassê. Este foi o embrião de seu negócio, que hoje exporta colchas e roupa de cama. Há ainda o caso de Esmeralda, de origem ashkenazita, após a morte do marido, passa a trabalhar como sacoleira em repartições públicas no Centro de São Paulo. Ainda de Ruth, cujo marido foi perseguido político na Europa e no Brasil, por ser socialista. Adquiriu capital para montar a sua loja, vendendo livros e quadros originais, que são frutos do relacionamento que mantém até os dias de hoje com figuras de destaque no universo cultural. A loja de roupas na Rua Rui Barbosa servia, inclusive, para acobertar as atividades políticas de seu marido, pois no fundo da casa ficava a tipografia, que imprimia o jornal ídish. Em casos, onde houve a necessidade de obtenção de apoio financeiro para a implementação do negócio, constatamos que diferente do que existe na literatura elaborada pelos estudiosos da imigração paulista Bernardo Sorj e Henrique Rattner, o apoio não veio, exclusivamente, de parentes ou de judeus, mas, em 41,0% dos casos foi obtido com os conterrâneos. O principal atributo facilitador para este vínculo foi o idioma comum. Mas consideravam importante o endosso do homem, independente da relação que segundo Scott, “o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”170. Outras, que contavam com maridos já estabelecidos puderam arriscar um novo empreendimento: Luiza acrescenta que: “Hoje é uma grande malharia, que começou com uma saleta que meu marido me reservou para fazer roupas para os meus filhos. E por que não também para as amigas?!!!” GRÁFICO 11 – Distribuição em porcentagem de participantes no empreendimento Judeu 9% Conterrâneo 41% Parentes 50% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as entrevistadas sobre os participantes do empreendimento. TABELA 27 – Participantes do empreendimento Participantes do empreendimento Judeu Parentes Conterrâneo Total Nº de Entrevistadas 02 11 09 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. 170 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica, p.86. Isso aparece endossado, quando constatamos que 15 das imigrantes coabitaram com sua família, seja ela a primária (pai, mãe, irmãos, sogro, sogra, cunhados) ou secundária (tios, tias, primos e sobrinhos). Apenas sete instalaram-se exclusivamente com a família nuclear (marido e filhos) ou independente. A seguir, a tabela seguir demonstra a distribuição do número de entrevistadas quanto à coabitação na imigração. TABELA 28 – Coabitação na Imigração Coabitação na chegada Secundária Primária Nuclear Independente Total Número de Entrevistadas 06 09 06 01 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. FOTO 21 – Reencontro Familiar Juntamos mais um pedaço da família com a chegada de Tia Matilde B. Menache entre Anna em 1952. Bigio e Perla Barki. Fonte: Acervo de Anna Bigio Dos negócios estabelecidos entre as entrevistadas cinco são marcadamente do segmento masculino, como açougue, ourivesaria e importação de tapetes. A tabela a seguir demonstra a distribuição entre as entrevistadas sobre o tipo de trabalho que empreenderam. TABELA 29 – Tipo de trabalho de acordo com gênero Tipo de Trabalho Feminino Masculino Unissex Total Número de Entrevistadas 09 05 08 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. GRÁFICO 12 – Distribuição em porcentagem sobre o segmento de empreendimento das entrevistadas Frigorífico 5% Joalheria 5% Couro 9% Comércio 36% Malharia/ Confecção 45% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A seguir a tabela revela a distribuição entre as entrevistadas sobre os segmento de negócio que empreenderam. TABELA 30 – Segmento do Negócio Segmento do Negócio Couro Malharia /Confecção Comércio Frigorífico Joalheria Total Número de Entrevistadas 02 10 08 01 01 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Os empreendimentos na área de malharia e confecção representam 45 e 36,0% e estão no ramo do comércio. Uma das pesquisadas monta uma joalheria baseada na experiência familiar no ramo de ourivesaria. O caso do frigorífico repete esse mesmo padrão: O relato de Zélia cita que: “O que trouxemos de mais importante foi a faca de meu sogro que era shochet171. A partir dos conhecimentos que aprendi, observando meu pai que era fazendeiro e meu sogro em suas atividades, é que decidi tentar o açougue e depois ampliamos para um açougue convencional” A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo com o estado civil na imigração. TABELA 31 – Estado Civil na Imigração Estado civil na chegada Casada Solteira Total Número de Entrevistadas 17 05 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Diante do cenário pesquisado, 17 mulheres chegaram a São Paulo casadas e, das 22 entrevistadas, apenas duas não tiveram filhos. No período do início de seu empreendimento, 18 já eram mães, destas, 11, ainda tinham filhos em idade pré-escolar, para tanto tiveram de contar com a participação do marido, parentes e ajudante contratada nas tarefas domésticas. A seguir a tabela mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo com o local de trabalho no início do empreendimento. TABELA 32 – Local de trabalho no início do empreendimento Local de Trabalho Fora de casa Em casa Total Número de Entrevistadas 12 10 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. No início do empreendimento, 45,0% das mulheres trabalhavam em casa e podiam administrar o próprio lar, era imperativo contar com apoio logístico para as tarefas 171 Shochet é aquele que aplica o método de abate de animais e aves (shechitá), que está prescrita pelas leis dietéticas para que a carne seja considerada kosher. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p. 241. domésticas. É importante ressaltar que, quatro maridos, dos casos analisados, dividiam a responsabilidade dessas tarefas, dando suporte para que elas pudessem dar andamento às atividades do empreendimento. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo com a idade dos filhos no início das atividades profissionais e o apoio logístico na divisão de responsabilidade com os filhos. TABELA 33 – Idade dos filhos e apoio logístico para as tarefas domésticas e maternais Idade dos filhos no primeiro trabalho Escolar Pré escolar Sem filhos/ filhos independentes Total Número de Entrevistadas 7 11 4 22 Apoio Logístico Parentes Marido Ajudante contratada Não tiveram filhos / independentes Total Número de Entrevistadas 8 4 6 4 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. O trabalho doméstico sendo entendido como um ciclo que a cada dia se repete, as tarefas diárias da casa deixam de ser valorizadas. Ao não serem reconhecidas como trabalho e só notadas como importantes, quando não são feitas, isso pode explicar o interesse demonstrado pelas mulheres, em geral, pelo trabalho não-doméstico. No entanto, embora elas mesmas tenham se tornado empresárias, escorregavam nas respostas, apresentando valores de sentido afinado com um padrão patriarcal: Margareth relata que: “Algumas trabalhavam, mas era sinal de que o homem não podia sustentar.” . Esse comentário, reforça o patriarcado introjetado. GRÁFICO 13 – Distribuição em porcentagem da opinião sobre os homens que deixam ou precisam que a mulher trabalhe Negativa 27% Indiferente 46% Positiva 27% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas, de acordo com a percepção do olhar sobre o homem que deixa ou precisa da renda da mulher que trabalha. TABELA 34 – Olhar sobre o homem que deixa ou precisa da renda da mulher que trabalha Olhar sobre o homem que deixa ou precisa da renda Negativa Positiva Indiferente Total Nº de Entrevistadas 06 06 10 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. GRÁFICO 14 – Distribuição em porcentagem da opinião a respeito das mulheres que trabalham Indiferente 23% Negativa 23% Positiva 54% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas com a percepção do olhar sobre a mulher que trabalha. TABELA 35 - Olhar sobre a mulher que trabalha Olhar sobre a mulher que trabalha Negativa Positiva Indiferente Total Nº de Entrevistadas 05 12 05 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Não muito diferentes são os comentários entre as ashkenazitas, que ainda minimizavam os feitos daquelas que estavam envolvidas com afazeres fora de casa: Miriam considera que: “Não eram obrigadas, as casadas podiam ajudar os maridos, as solteiras trabalhavam se quisessem” Para Samantha, “Quando a sociedade é entre o casal, não tem essa de salário”. Mas Myetta cita que:“Mulher ganhar dinheiro é prêmio, para o homem é obrigação.” As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam opiniões compatíveis com o grupo familiar. Para garantir a possibilidade de exercer atividades profissionais, preservando o código de conduta estabelecido dentro da família e comunidade, a maioria delas criou esquemas, nos quais o “respeito” ao marido e pai (autoridade masculina) fossem preservados. “Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência” comenta uma ashkenazita Luiza. “No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos amigos do meu marido.”172. 172 Relato de Claudete a MFW em SP, 2000. Pautados em Bourdieu (1995), percebemos que a visão da divisão sexual é incorporada como se fosse a única visão e ou a mais correta. O autor explica a eficácia desse “preconceito desfavorável” ao perceber que essa afirmação é reproduzida também pelas próprias vítimas, as mulheres, reforçando a suposta inferioridade como se esta fosse biológica. Isso se dá no momento em que elas se percebem a partir do que a visão masculina lhes atribui, dando assim a aparência de um fundamento natural a uma identidade que lhes foi socialmente imposta173 A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas quem tinha maior autoridade na casa na origem. TABELA 36 – Autoridade em casa na origem Quem tinha mais autoridade na casa na origem Mulher Homem Igual Total Nº de Entrevistadas 00 16 06 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. GRÁFICO 15 – Distribuição em porcentagem do exercício da autoridade na origem das entrevistadas Igual 27% Mulher 0% Homem 73% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. 173 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. p. 141 Essas mulheres mesmo sendo responsáveis pela estabilidade econômico-familiar submetem-se ao código patriarcal que receberam como modelo, exemplificado pela autoridade do irmão mais velho, de família de origem oriental: Segundo Margareth: “Não era bonito, mas no meu caso, eu estava cumprindo um plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para as jóias que eu aqui fabricaria”. Pelo depoimento acima, não se surpreende que elas se recusem a serem reconhecidas como empresárias, banalizando e minimizando suas iniciativas empreendedoras e entregando esse mérito a seus maridos. Myetta acrescenta: “Sabe, porque a mulher foi feita da costela, a parte escondida do homem!!!! Para que seja modesta, isso está escrito no livro Gênesis. Esse é o truque.” Samantha afirma que: “A mulher, que tem sucesso, não pode perder a humildade, principalmente, com o marido. Guarde este lema!.” Dentre as entrevistadas, Isabel, uma sefardita, fez questão de contar a respeito do êxito de seu novo empreendimento. O lançamento do livro de culinária, fruto de seu sucesso nas festas ao longo de sua história, que só poderia coroar-se na Terceira Idade. FOTO 22 – Conquista de Tia Barki Lançamento do Livro: ”A Cozinha sem Mistérios da Tia Barki” em 1982 Fonte: Acervo de Anna Bigio Nem todas as entrevistadas, tiveram êxito nas atividades econômicas que empreenderam, porém, de acordo com os códigos culturais, o efeito nos estudos e a ascensão econômica dos filhos refletem a medida de sucesso valorizada pelo grupo estudado. A tabela abaixo revela a distribuição da formação acadêmica e o nível socioeconômico conquistado pelos filhos das mulheres entrevistadas. TABELA 37 – Formação acadêmica e nível socioeconômico dos filhos Formação acadêmica dos filhos Primário Ginásio Chedder ou Yeshiva Nº de Entrevistadas 01 02 02 Superior 15 Sem filhos 02 Total 22 Nível socioeconômico dos filhos Nº de Entrevistadas Baixo 00 Médio 08 Alto 12 Sem filhos 02 Total 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Para Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior é o que nos deu força para construir algo melhor para nossos filhos.” Esmeralda refere-se que o: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias, ao mesmo tempo em que se abria espaço para novas amizades e contatos.” Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o espírito de não ter nada a perder.” As mulheres que sentiram necessidade de buscar soluções econômicas, em nome da sobrevivência da família, a renda, para mais de 68,0% tinham como finalidade o fundo familiar ou era entregue diretamente ao marido. A tabela abaixo mostra a distribuição entre as mulheres entrevistadas da finalidade da renda conquistada e a proporção na contribuição na receita familiar. TABELA 38 – Finalidade da renda e contribuição familiar Finalidade da renda Fundo familiar Pessoal Marido Total Contribuição familiar Parcela das despesas Nenhuma Todas Total Nº de Entrevistadas 12 07 03 22 Nº de Entrevistadas 07 03 12 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. O montante que cada entrevistada produziu, embora não tenha sido mensurado, para mais de 55,0% significou a cobertura da totalidade das despesas e para mais de 31,0% a parcela do pagamento destas. Para Daniela é :“Sorte ter os filhos perto, que se uniram para o negócio comum e fizeram a linha de frente. Hoje os homens já aceitam as mulheres comprando e vendendo.” Margot conta que: “A filha fazia o acabamento e o marido, as embalagens e a venda”. Por ser um grupo étnico que valoriza o êxito econômico, há um comportamento tácito de também buscar soluções independentes da comunidade judaica. Este ponto é reforçado quando analisamos a rede de relacionamentos apontada pelas entrevistadas para a implementação do negócio. Dentro do universo pesquisado, a metade dos que participaram dos empreendimentos, como clientes ou fornecedores, não pertenciam à comunidade judaica, o que pode demonstrar, também, a iniciativa de ampliar ações, para além das fronteiras do grupo. GRÁFICO 16 – Distribuição em porcentagem da rede de relacionamentos Judeu fornecedor 23% Não Judeu 50% Judeu cliente 18% Somente judeu 9% Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. A tabela abaixo demonstra que a distribuição entre as mulheres entrevistadas, quanto à rede de relacionamento que contou para o início do empreendimento. TABELA 39 – Rede de relacionamento no empreendimento Rede de relacionamento Judeu fornecedor Judeu cliente Só judeu Não Judeu Total Número de Entrevistadas 05 04 02 11 22 Fonte: Entrevistas orais com imigrantes judias em São Paulo, 2000. Para Amelie: “A perspectiva de transformar o pequeno negócio iniciado na França numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda família.” Apesar de raramente assumir o papel de empresária e, muitas vezes, dividir seu êxito com o marido, familiares ou com a própria sorte, Amelie menciona que: “A gente precisa ter sorte na vida para tudo.” Para Linda, “A expectativa sobre o resultado na mulher é menor, pois ela não sofre tanta pressão.” Entre as entrevistadas, constata-se o reconhecimento de suas qualidades e do respeito, que foram capazes de conquistar com a família e na comunidade. Esta conquista verifica-se pelo seu próprio esforço, apesar de identificar preconceitos contra as mulheres. Maura acrescenta que: “No início da minha loja eu tinha um ajudante que me tratava apenas como a esposa do dono. Até o dia em que ele se recusou a fazer um serviço devido à dificuldade, eu fiz sozinha. A partir daí ele passou a me considerar como a chefe do negócio.” Essa é mais uma das formas de que Bourdieu considera como necessárias na consolidação do espaço feminino. São os novos valores e códigos femininos que deverão servir para avalizar suas ações e não mais de acordo com as medidas masculinas. Duas entrevistadas ashkenazitas que vivenciaram experiências em países diferenciados, como na Suécia e Inglaterra, cidades cosmopolitas que valorizam uma posição feminina de maior liberdade: Rosa afirma: “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria identidade.” Assim, Samantha considera que: “Para a mulher a escola e o trabalho são sinônimos de liberdade.” Na declaração da entrevistada sefardita,Claudete: “Se não fosse a minha cara-de-pau de entrar nos prédios, eu não teria chegado a lugar nenhum e nós teríamos passado fome.”, e a oriental Juliette afirma que:: “Foi uma questão de visualizar as oportunidades e uni-las aos relacionamentos.”. Ambas exaltam sua contribuição na liderança da solução financeira. A pesquisa buscou avaliar as percepções das entrevistadas, sobre suas contribuições à cidade de São Paulo por meio de suas iniciativas, colocadas de maneira evasiva ou segredada: Claudette, nascida em Alexandria, declara: “Aqui não havia trufas de chocolate, só quando alguém recebia presentes de fora. Passei pela fase onde o industrializado era o mais valorizado, e agora de novo o artesanal é o bom. Eu sofri, mas sobrevivi.”174 174 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. Seguindo a mesma linha, Margarth que comercializa jóias com pedras brasileiras em São Paulo e, em outras cidades do mundo, acredita ter influenciado a valorização da beleza destas pedras, inclusive entre as brasileiras. O caso que interferiu no padrão estético de decoração de interiores, Juliette conta que, muito antes dos europeus, os paulistanos já tinham acesso aos tapetes vulgarmente conhecidos como “persas”. Sofia, a dona da loja de artigos de couro acredita ter elevado os produtos paulistanos à categoria européia: “Os produtos de couro, eram simples e de péssimo acabamento. A minha fábrica trouxe um padrão europeu que transformou a cara da cidade antiga para a de uma metrópole.”175 A mesma autopercepção tem Myetta, a primeira e maior fabricante de “manteaux”, do Brasil, em seu tempo. De origem alemã, Nitza cita que a empresa contribuiu para a mudança da moda íntima: “Com o tempo, fui modificando os moldes de minha coleção. As peças foram ficando cheias de rendas, decotes, bicos e bojo, mas não tanto quanto hoje!”176 Em um período de crescimento da cidade de São Paulo e de novas oportunidades no mercado de trabalho às mulheres, temos o caso de Samantha, empresária de origem polonesa, educada na Inglaterra, que considera ter implantado a moda para executivas, usando a tecnologia de novos tecidos que se mantinham impecáveis, durante a jornada. “Os modelos de soutien que eu trouxe da França eram ultramodernos, eles modelavam. Não havia nada parecido aqui”, declara Regina que aprendeu a profissão com sua tia ashkenazita. Conforme foi mencionado anteriormente, a pesquisa enfatizou a iniciativa no negócio, independente do sucesso ou da envergadura por ele alcançada. Portanto, percebemos ser importante mencionar uma avaliação crítica sobre o empreendimento na qual o senso de responsabilidade sobre o negócio perpassa: 175 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 176 Relato de Nitza a MFW em SP, 2000. “Naquela época, não se usava ainda meias coloridas, estampadas, bolinhas ou listas. Não era como hoje. Eu arrisquei e perdi tudo.”, conta Suzana que acabou vendendo a fábrica para pagar as dívidas. Buscando agigantar a percepção das mulheres que desvalorizaram seu papel na história, segue a fala de Luiza: “Você viu o filme Casablanca? A Ingrid Bergman usava um cardigan com um xale, que eu fiz na fábrica pensando nas minhas amigas. Foi um estouro em vendas. As minhas idéias eram inspiradas dos filmes.”, conta Luiza, a polonesa de Cracóvia, ainda relutante em assumir sua contribuição. Para este estudo, as mulheres que construíram seu universo de empresárias, encontraram soluções, mantendo a “liberdade de escolha e de responsabilidade pessoal”177 com as outras entidades econômicas, de acordo com os pressupostos do capitalismo, mantendo as fases primordiais da produção sob seu controle, embora já contassem com o trabalho cooperativo, característica que mantém a nebulosa definição de responsabilidade. O período estudado, como já apresentamos, era de um ciclo econômico favorável diante das altas taxas de crescimento que criavam uma forte demanda. As empresas crescendo e tornando-se complexas, abriam espaço para a contratação de mão-de-obra administrativa. No entanto, o papel central familiar continua sendo adequadamente exercido nas pequenas e médias empresas que ainda hoje, correspondem a 90,0% do total das empresas de indústrias e serviços no Brasil178. Neste contexto, as imigrantes sentiram necessidade de produzir recursos para resgatar o padrão familiar de consumo, favorecidas pelo aumento da participação feminina, em geral, no mercado de trabalho. Para os casos estudados, estas mulheres tinham um capital cultural que as diferenciava e as colocava afinadas com a camada social dominante. Eram preponderantes nas decisões durante o processo produtivo, pois criavam e reproduziam os gostos e padrões de consumo, de acordo com as camadas mais abastadas, consolidando seu papel de mentoras. Ainda que o intuito fosse de “ajudar” no orçamento familiar arriscaram um certo capital, ousando empreender. Estas iniciativas, minimizadas ou invisíveis, no papel de 177 BENN ,A. E. Dicionário de Administração, p. 89. 178 PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 13. sujeito correspondem à “condição estereotipada de subordinadas aos homens e à sociedade patriarcal”179 judaica. Diante das conquistas relativas, as mulheres e os familiares começaram a participar transformando rapidamente em “nosso” o resultado do trabalho, sem caracterizar o dinheiro ganho como de propriedade da empreendedora. Assim, envolvidas com a imagem idealizada de suas funções femininas, abriram mão do poder e da autonomia financeira para serem reconhecidas em seu papel “maior”: encaminhar os filhos para serem motivos de orgulho familiar; administrar o orçamento e o lar, exemplarmente, sem, contudo, deixar de ser a esposa ideal para o prazer e vaidade do marido. A característica de subordinação feminina foi um problema amplamente discutido nos meios acadêmicos que ainda colocam esta condição como natural às mulheres e à postura dos homens, ainda que o fruto da cultura mantenha um estilo de pensamento e dados inquestionáveis. Essas variáveis estão mais para atributos morais e culturais do que para a biologia dos sexos, se bem que permaneçam como pressupostos fundamentais nos trabalhos antropológicos encontrados, conforme Haraway180. Ainda, o condicionamento às alianças apoiadas na consangüinidade, em que se exigem lealdade, também, são noções culturais ocidentais que permeiam os paradigmas das relações. Estudos acadêmicos americanos específicos sobre o movimento feminista, preocuparam-se em analisar as mulheres judias e suas experiências durante a história, motivados pelo vasto rol de escritoras e jornalistas consagradas. Um destes é o trabalho comparativo de Linda Kuzmack chamado de "A Causa da Mulher”181, escrito em 1990, sobre as comunidades judaicas dos Estados Unidos e Inglaterra, na virada do século. Esta pesquisa surpreendeu a todos ao constatar a interação entre as feministas laicas e as judias, enriquecendo nossa compreensão sobre a cultura e o contexto social, promovendo diferentes versões sobre os ativismos feministas. Os resultados consideram a questão de gênero ou sexo relevante para o estudo sobre a atividade econômica, vista como categoria que interfere na construção das relações sociais. Para tanto, aqui se faz também necessário frisar sobre a validade das análises das particularidades, explicitando uma oposição ao conceito elaborado por Piscitelli (1999, p.33) que afirma:“cada pessoa é uma espécie de andrógino que não opera nem como homem nem como mulher, todos são mulheres-homens; homens-mulheres”. 179 Revista La Aljaba – segunda época.vol.I Argentina, l996, pp. .29/30. 180 Haraway,Donna Symians Cyborg and Women. The reinvention of Nature. In: PISCITELLI,Adriana. “Jóias de família”:Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, p. 24-29. Especificamente, nos estudos dos historiadores do feminismo judaico, que colocam a família no centro articular das relações de gênero e sua interação entre a vida pública e privada, é possível perceber a necessidade de questionar sobre o impacto da cultura das novas décadas e o sistema capitalista no indivíduo e na comunidade; na divisão de trabalho e na remuneração; sobre a representação feminina e sua autodefinição. Dessa maneira, notamos um incremento de estudos desde a década dos 90 do século XX, que vêem analisando a construção do mito da família judaica sobre a cultura judaica. No entanto, o tecido que constitui a rede de solidariedade feminino-judaica é o desafio aos estudos, dada a ausência de representante para um posicionamento político assumido. Podemos exemplificar com o caso em Nova Iorque, do boicote aos preços da carne "Kosher182“ e longe de qualquer associação ou entidade, as ativistas clamaram pelas ruas combinando a pressão econômica a uma persuasão moral de proteção à família. Este procedimento é a arte que as mulheres judias desenvolveram para realizar seus desejos. Na esfera privada ou anonimamente, as manobras são equacionadas, garantindo total reverência pública ao marido.183 Assim, para estudos sobre mulheres imigrantes judias e suas famílias, no tocante à combinação entre família e trabalho faz-se necessário um maior aprofundamento aos códigos aplicados na separação entre público e privado. 181 DAVIDMAN, Lynn;TENENBAUM, Shelly. Feminist perspectives on Jewish studies, p.123. 182 Kosher: alimento preparado de acordo com os preceitos alimentares judaicos. UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, p.146 183 YALOM, Marilyn. A história da esposa:Da Virgem Maria a Madonna: o papel da mulher casada dos tempos bíblicos aos dias de hoje, p. 311 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho trouxe à tona questões modernas como o judaísmo e a religiosidade, o trabalho e a família, o empreendedorismo e os papéis de gênero. As empresárias judias transformam-se em tema que reitera o âmago judaico, o autodesafio. Na minha opinião, restaurar a memória sobre as ousadias, os momentos de desordem e desintegração é recompor a história, desemaranhando as crenças atadas ao passado, reprimidas ou descartadas por não fazerem parte da memória de censo comum. A pesquisa pretendeu reler os velhos momentos, embora pareçam novos ou, de fato, momentos de inflexão que cada história tem ao perturbar o movimento previsível desta minoria que pode vir a ser o embrião para uma análise comparativa com outros grupos étnicos. O universo selecionado para compor o estudo referiu-se às mulheres que se autoidentificaram como judias. Desse modo, apoiados, nesta questão, apresentamos inúmeras nuanças que percorreram o cotidiano das entrevistadas, trazendo a necessidade de reconhecer o contexto e as possibilidades, não somente ser, mas, estar judia. O judaísmo teve seu ponto de partida na religião. Hoje é a história do povo judeu, fruto da conjunção de ações políticas, porém, acima de tudo, da memória judaica.184 Diante da constatação, uma multiplicidade de fatores foi considerada como vínculos judaicos e ao analisarmos as respostas sobre a religiosidade, a tendência observada por DellaPergola,185 também, confirma-se neste trabalho. É a polarização sobre o retorno ao exercício religioso ou à assimilação das famílias e não, raras vezes, as duas alternativas foram escolhidas por descendentes da mesma imigrante. A lei de Hansen186 (aquilo que o pai quer esquecer, o neto quer lembrar) impele-nos a uma reflexão sobre a diferença entre assimilação e aculturação que, neste caso, parece ter constituído um novo grupo187 étnico: judeu-brasileiro, fruto de uma construção gradativa que se mantém em constantes mudanças, a transculturação de Ianni. O processo de distanciamento da religião revelado culmina com o abandono da fé pelas filhas das entrevistadas e conjuga o movimento constatado nas pesquisas demográficas de Sergio 184 YERUSHALMI,Yosef Hayim.Zakhor. História Judaica e Memória Judaica, p. 103-109. 185 DELLAPERGOLA. Sergio Studies In Contemporary Jewry. 186 Glazer, N. Ethnic Groups in América: From National Culture to Idiologie.In: BERGER,M.; ABEL,T.; PAGE,C.H. Freedom and Control in Modern Society, p. 158-176. 187 CARIGNATO, T.; ROSA,M. D; PACHECO Fº, Raul A.(Org). Psicanálise, Cultura e Migração, p.20 DellaPergola188, ao contextualizar-se na sociedade contemporânea. Uma resultante das relações entre as imigrantes e suas famílias, que constituiu uma comunidade e a sociedade receptora flexível, possibilitando a aculturação com pouca segregação, conforme demonstram os relatos. Importante ainda foi perceber que a aquisição das competências cognitivas e dos valores modernos vigentes no cotidiano trouxe novos questionamentos sobre a assimilação do grupo étnico num processo iniciado na construção da geografia dos bairros da cidade de São Paulo. Os imigrantes foram reconhecidos e tornaram-se cidadãos brasileiros. Por outro lado, mantiveram-se agregados, circunvizinhos no movimento que teve como efeito o aumento de consciência e da significação étnica, conforme previsto por Poutignat, StreiffFenart189 A pesquisa constatou que a associação dos eventos vividos no período de perseguições, sobretudo, entre as entrevistadas ashkenazitas, durante o Holocausto, não pode ser esquecida nem contada. Essas vivências traziam o gosto amargo da impossibilidade de iniciativas que, por não corresponderem ao perfil das entrevistadas, pressuponho terem sido muito mais difíceis de serem vivenciadas. É interessante constatar que a sociedade paulistana abrigou e articulou um processo de integração sem, contudo, impor a dissolução das características da nova imigrante. Foi um processo de troca de influências e absorção, embora alguns dos componentes do governo brasileiro do período tentassem estimular o anti-semitismo que, de fato, pouco modificou os padrões internos da convivência pluralista brasileira.190 As histórias aqui recontadas surpreenderam pela banalização demonstrada frente às iniciativas e conquistas alcançadas. A preservação dos segredos sobre as iniciativas femininas ainda permanece alicerçada no código da família patriarcal-judaica fazendo uma clara referência à divisão de papéis de gênero, como apontaram os historiadores Sokoloff, Lewisohn, Greenberg a respeito dos estudos de diversas comunidades judaicas de cultura inglesa, como os Estados Unidos, Inglaterra e Índia. A singularidade das histórias que compõem este trabalho dá significado ao reexame das memórias, ao ângulo da visão, à importância do orador e à possibilidade dos ecos. As resistências às mudanças, ao diferente tornam inconcebíveis certas conquistas. Foram, 188 DellaPergola, Sergio. Studies In Contemporary Jewry. 189 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frdrik Barth, pp. 65-78. 190 SORJ,Bernardo.Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In:SORJ,Bila.Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, p. 27. sobretudo, impulsos em benefício da família, pelo conjunto das aspirações socioeconômicas. O apoio foi conquistado diante das situações extremadas que vivenciaram. De acordo com Feres (1960), constatamos, ainda, que as mulheres necessitavam da aprovação dos homens em suas conquistas comerciais e, assim, mantinham a subordinação à competência do masculino. Pelos relatos, verificamos que a valorização positiva dos êxitos deve estar ligada aos atributos tidos como femininos. Desse modo, as mulheres empresárias que participaram da pesquisa, embora apresentassem personalidades marcantes, frisaram que não tiveram demandas que implicassem força física, mas, que exigissem coragem, ousadia e muita energia para assumir riscos. A questão mantém-se em aberto, porém ao nos remetermos às palavras de Barzini sobre a sociedade italiana: “Qualquer que seja a sua posição(...), a esposa é dotada de grande poder”, e continua citando que “a mulher é a personagem principal ainda que não o mais saliente”191. Elementos recorrentes, também, parecem traduzir padrões reconhecidos como judaicos. As histórias dessas personagens foram mais um dos trabalhos relevantes e invisíveis da inserção dessas imigrantes perpassando pela ação educativo-idiomática, pelos ajustamentos relativos aos mecanismos econômicos, pelas regras sociais, entre outros aprendizados, que as mulheres teceram dia a dia na rotina familiar, reafirmando a identificação e não a diferença. No caso desta leva imigratória, a maioria dos imigrantes judeuss do período reconhece por meio da solicitude demonstrada, a denúncia da aceitação da sociedade local em absorvê-los. O fato de trazerem conhecimentos de além-mar, possivelmente, tenha criado uma lógica de caráter político-social de ascendência. Talvez as diferenças inerentes fossem aceitas por serem advindas dos países de antigos impérios e fomentassem, como até hoje, um ideário mágico da possibilidade de ascensão social, fruto da absorção de novos conhecimentos. As mulheres judias, que chegaram a São Paulo, merecem o reconhecimento de cada esforço individual. No entanto, aquelas que viveram situações emergenciais em parceria com o marido, conquistaram uma relação de igualdade e puderam mais rapidamente assimilar a mudança social e com o “espírito de imigrante” encontrar novas alternativas, como o trabalho independente, demandando menor esforço e tempo, frente à resistência familiar. 191 BARZINI, Luigi. Os Italianos , p. 229-230 Constata-se entre as entrevistadas que a maioria fez este percurso e nos casos de êxito e expansão dos negócios, logo, incluíam o marido, pai e irmãos, justificando “não serem muito boas para administrar negócios”. As demais, para as quais a experiência não resultou em nada, além de “um período duro de luta pela sobrevivência”, concluem que “afinal, o mundo é dos homens”. O ponto mais surpreendente é como se auto-apresentam: colaboradoras.(grifo nosso) Minimizando os fatos, para não dizer, ocultando-os, até se tornarem invisíveis na história que empreenderam. Não raro reforçadas por insistência de contemporâneos, intitulam-se co-responsáveis,(grifo nosso) não assumindo seu papel empreendedor, perpetuando a história contada e negando a que escreveram. Dessa maneira, mantêm suas iniciativas restritas ao âmbito privado, eternizando a divisão de papéis de gênero. Diante da densa neblina, que encobre a divisão entre o espaço público e privado, as histórias permanecem como “segredos nossos”. Consideramos importante ressaltar que a geração seguinte não cultuou o espaço para as filhas, perpetuando, não raro, o negócio pela liderança entre os filhos homens. Assinalamos, ainda, que o espírito empreendedor das mulheres ficou limitado às circunstâncias da necessidade, fato observado na geração seguinte. As descendentes não foram envolvidas no projeto familiar, embora sejam graduadas e exerçam suas profissões. Fato relevante entre aquelas que apostaram numa ascensão social, também, via projeto educacional e profissional dos filhos192, exceção feita às filhas de famílias religiosas que se dedicam à vida doméstica. Ao fim deste trabalho sobre as empreendedoras imigrantes judias, ainda se verificam territórios a serem aprofundados nos estudos sobre as relações de casamento, organização familiar, trabalho e economia. Outro ponto a ser mais bem estudado será a comparação com os outros grupos étnicos e a relação com os papéis de gênero, em especial, uma avaliação sobre o verdadeiro significado que a formação de grupo pode trazer, satisfazendo uma eventual necessidade de ancoragem e reorganização. Consideramos significativo frisar que a História sobre as conquistas de espaços das mulheres, reflete-se em períodos, nos quais os agrupamentos femininos “existiam, mesmo 192 OSMAN,Samira Adel. História Oral de Famílias Imigrantes Árabes em São Paulo. In: MEIHY,José Carlos Sebe Bom.(Org) História Oral de Família, p. 27 que cercados do estigma da futilidade e tagarelice”193, sendo pelos exercícios da oralidade que foram construídas as verdades e consolidadas as crenças. A transição do artesanal para o industrial, ou seja, a qualificação domesticamente adquirida e exercida tirou das mulheres o suporte para sua organização. Atualmente, em um cotidiano sobrecarregado de multitarefas ajustado, de acordo com as necessidades familiares nucleares, os grupos femininos dispersaram-se, assim como seus significados. Diante das transformações estruturais contemporâneas, estes grupos femininos, em geral, não encontraram ainda novas formas de expressão de gênero ou andróginas. Ao dar seqüência à construção de um espaço das mulheres imigrantes judias que trouxeram a bagagem cheia de sementes para a construção de suas profissões pautadas nas vivências familiares, pois, pelas oportunidades oferecidas escolheram as de afinidade com seus vínculos afetivos e ancestrais. Constata-se a concentração de profissionais em áreas específicas, de acordo com o grupo étnico de pertinência. Para Grillo essas escolhas são “armas”194, porque reforçam as identidades e ideologias étnicas e enfatizam a influência nas políticas socioeconômicas. O uso dessas “armas” rompeu com as tradições e os arranjos idealizados, produzindo novas soluções e distintos comportamentos, muito embora essas mulheres carregassem o manto da proteção familiar, e em nome dessa família foram impelidas à mudança. Especialmente para esse grupo étnico, a solidariedade grupal pode ser encarada como uma ação política, que tenta preservar os judeus em suas experiências de diásporas diversas. A preservação da cultura e o estilo de vida que mantêm por meio de marcantes organizações sociais oferecidas, facilitam o acesso a posições dominantes na sociedade global.195 Em tempo, para que as mulheres e suas iniciativas ganhem visibilidade, os momentos de quebra do sistema de subordinação devem ser tornados públicos. Novos processos de abertura de espaços às aptidões individuais “e sem gênero (mas não sem sexo) na qual a anatomia sexual seja irrelevante para o que são ou fazem”196 de modo a permitir novos modos para que as mulheres sejam “politicamente significantes”197. 193 RECHIA, Karen Christine. Das mulheres dos ‘repolhos e das ‘roças’: ou de como nasciam os bebês.In: MORGA, Antonio Emilio (Org). Historia das mulheres de Santa Catarina, p.117 194 GRILLO, R.D. The tibalfactor in na East African Trade Union. In: GULLIVER,P.H. Ed.Tradition and Transition in East África, pp.297-321 195 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth, p.99. 196 CAROLA, Carlos Renato. As trabalhadoras nas minas de carvão de Santa Catarina(1937-1964). In: Morga, Antonio Emilio(Org). Historia das mulheres de Santa Catarina, p. 156. 197 BRENNER, Athalya. A mulher israelita:papel social e modelo literário na narrativa bíblica, p.199. Para o bojo das conclusões, segue em anexo a história da personagem fictícia “Isha Mehagueret”, que consideramos elucidativa. Essa apresentação em caráter literário, fórmula absorvida e enaltecida pelo povo judeu em suas diversas fases, encontrou ressonâncias afetuosas, mesmo em textos que confrontam os mitos. As palavras de Yerushalmi foram um importante impulso, para a inclusão no trabalho de “Isha Mehagueret”, também, pela necessidade de envolver a “...arte e a ciência, a história e a literatura...”198. Buscando reler a pesquisa e sentindo o “envolver”, construímos um discursosíntese199, pois as histórias de vida que compõem essa história fictícia, só foram possíveis dadas às mudanças ocorridas na cidade de São Paulo com possibilidades de mobilidades socioeconômicas que refletiram na organização familiar, nos valores e papéis. As mulheres saíram de casa..... ISHA MEHAGUERET – Polônia, 1922 Meu nome é Isha Mehagueret. 200 Eu vou falar desde os meus tempos de menina. Isso começa ainda na Polônia201, numa aldeia perto de Lodz202, onde as mulheres eram muito bonitas. Eu também já fui bonita203. Era com minha prima Anit204, na casa de minha avó que aprendemos a fazer chalá e a vender205 pelo bairro206. Fazíamos sempre algumas a mais e dávamos para famílias mais pobres207. Tínhamos, nessa época por volta de dez anos. Eu ficava conversando com ela até na sinagoga, para onde íamos todas às sextas-feiras para o Shabat. Anit era minha melhor amiga e companheira de todas as horas208. Nossas mães também eram muito unidas e trabalhavam juntas como enfermeiras numa casa para idosos209, onde passavam horas falando dos filhos e sobre as famílias daquela nossa pequena comunidade. O pai 198 YERUSHALMI,Yosef Hayim.Zakhor. História Judaica e Memória, p. 117. 199 LÈFEVRE, Fernando, LÈFEVRE, Ana Maria Cavalcanti, TEIXEIRA, Jorge Juarez Vieira, (Org.). O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa, p.19. 200 Isha Mehagueret significa no idioma hebraico, Mulher Imigrante. Pequeno Dicionário PortuguêsHebraico, publicado pela Organização Sionista do Brasil em 1980. 201 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 202 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 203 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 204 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 205 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. 206 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 207 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. 208 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 209 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. dela havia morrido, logo que ela nasceu210 e a mãe casou com um dentista211 de quem ela gostava muito. Meu pai, o alfaiate212 mais conhecido e respeitado de nossa aldeia, trabalhava também como tesoureiro da sinagoga213, e participava ativamente das rezas e das reuniões para discussões e estudos. A nossa vida orbitava no calendário dos eventos na sinagoga214. As Grandes Festas eram muito esperadas e comemoradas na casa de meus avós, que moravam atrás da sinagoga.215 A família era grande e essas festas eram divertidas, longas e sempre acabávamos adormecendo entre as camas, os sofás e os colos disponíveis216. No lugar onde morávamos, todos se conheciam. sermos religiosos, “respeitávamos o Shabat” e os almoços Lembro-me, aos sábados, por 217 , que sempre terminavam em longas discussões sobre os fundamentos judaicos, a filosofia por trás dos rituais, o significado de cada um deles218. Em casa, lia-se muito. Na maioria das casas dos amigos dos meus pais, também, eu via sempre muitos livros e jornais nos mais diversos idiomas. Falávamos alemão, ídish e polonês em casa, não raro o russo e o romeno, mas, meus pais fizeram questão de que aprendêssemos também o inglês219, o que veio a ser de grande importância para mim, alguns anos mais tarde220. Foi num desses jornais, que aprendemos sobre o movimento sionista221, que ganhava corpo entre alguns dos amigos dos meus pais que acabaram por emigrar para Israel, antes até do Bar-Mitzva de meu irmão.222 Isso foi em 1932, perto de Chanucá. Ainda me lembro como se fosse hoje dessa comemoração. Foram longas semanas em que minhas tias vinham em casa cozinhar, fazer doces deliciosos e uma delas fez a toalha de mesa mais bonita que eu já tinha visto223. Enquanto isso, meu irmão não saía do quarto estudando com mais dois amigos e um primo mais velho, que parecia um príncipe. 210 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000. 211 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 212 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. 213 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 214 Relato de Mauraa a MFW em SP, 2000. 215 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 216 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 217 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 218 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 219 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 220 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 221 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 222 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. 223 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. Eu e Anit ficávamos espiando Samuel e seus lindos olhos azuis pelo buraco da fechadura, oferecíamos sucos e biscoitos com grande freqüência, na esperança de que ele saísse do quarto para mais uma daquelas trocas de olhar224. Nessa época, eu fui para Lodz, cidade onde minha tia Chana morava. Ela cozinhava com esmero, e acredito que meu gosto pela boa comida venha dessa época225. Lodz era uma cidade muito mais desenvolvida, com ruas largas, pessoas desconhecidas e diferentes. Eu me assustei ao notar que as pessoas não se cumprimentavam nas ruas226. Embora minha tia acendesse as velas de Shabat, ela nem sempre freqüentava a sinagoga. Estivemos uma vez na sinagoga de seu bairro, e o serviço religioso era estranho para mim, tudo era mais sério, até as músicas. Durante a prédica, falou-se na responsabilidade de sermos judeus, mas, só em casa227. Tudo ficou muito confuso para mim. À noite, minha tia explicou e falou sobre certos cuidados que deveríamos tomar ao andar pelas ruas, na escola e nas lojas como, por exemplo, evitando falar em ídiche com qualquer pessoa, já que alguns não tinham simpatia por judeus, foram, assim, os primeiros sinais de anti-semitismo com os quais tive contato228. Agora, então, com 11 ou 12 anos, por conta do curso técnico de corte e costura, meus pais mandaram-me aos cuidados dessa tia em Lodz. A casa foi sublocada para a família de meus tios, porque era muito grande para a proprietária que, recentemente, tinha perdido o marido. Aliás, ela tinha um belo piano e foi com ela que meu primo Ariel aprendeu a tocar e veio a se tornar um renomado pianista alguns anos mais tarde em Nova York, onde hoje vive com sua família229. A maioria, das amigas de escola, foi para o Liceu, uma escola feminina de secretariado. Eu freqüentei a escola regular com aulas de francês, inglês, história e matemática e, à tarde, a profissionalizante230, porque desde pequena brincava na máquina de costura da minha avó, fazendo roupas para bonecas. No período, as minhas tardes eram as horas mais importantes e deliciosas de minha vida! Eu era muito caprichosa e guardo, até hoje, meus cadernos com uma maravilhosa caligrafia, teoria sobre moda, técnicas de proporção e equilíbrio, desenhos e exemplos. Um dia, vou traduzir, 224 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. 225 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 226 Relato de Zelia a MFW em SP, 2000. 227 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 228 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000. 229 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 230 Relato de Regina a MFW em SP, 2000. reescrever231 e, até quem sabe, ensinar? Por conta desse curso, eu ia inventando modelos e produzindo peças de roupas com jornais velhos que eu coloria, até a chegada da guerra. Eu adorava fazer camisolas que pareciam roupas de baile, eram decotadas. Minha tia reprovava minha ousadia. Meu pai que era um ótimo comerciante e com ele aprendi a negociar232, observandoo na alfaiataria e no pequeno armarinho onde trabalhava. Eu não me sentia tão à vontade entre as tarefas de minha mãe e minha tia, que eram ótimas donas de casa. Eu era um pouco desajeitada 233 , e elas sempre me diziam: “Você vai respirar o ar de fora”.234 Elas tinham razão, deve ter sido praga de mãe. Por isso, foi muito importante ter a formação teórica. Eu sonhava com tesouras, tecidos e moldes, mas nunca pensei que seria para minha sobrevivência, inclusive, de minha família! Fiz o estágio de conclusão de curso num atelier de alta costura235 na Cracóvia que meu pai conseguiu-me. Era numa casa muito chique, eu lá não recebia salário, mas o combinado era ficar na sala de provas, onde de fato se aprende, fiquei lá por uns dois ou três meses, até a chegada do inverno. A maioria dos clientes desse atelier vinha do interior e vivia mandando sacos de farinha, sacos de milho, de tudo que uma casa precisa, até ovelhas236, já prontas para assar. Era uma fartura.237 Em 1938, já na casa de meus pais, minha outra prima Morgit, veio morar conosco. Os pais dela eram jornalistas e tinham fugido para a Suíça238, mas ninguém sabia que estavam sendo perseguidos e acusados de crime político, por terem publicado e distribuído diversos panfletos contra a discriminação do governo russo e alemão239. Ela havia ficado sozinha com seus irmãos menores240, numa aldeia maior que a nossa, chamada SatuMare, na Transilvânia, norte da Romênia que fazia fronteira com a Hungria, Checoslováquia e Polônia. Antes da Primeira Grande Guerra, a região pertencia ao Império austro-húngaro. Depois, toda Transilvânia passou a ser chamada de Romênia. Em 231 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 232 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 233 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. 234 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 235 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 236 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 237 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 238 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 239 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 240 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000 1940, voltou a pertencer à Hungria. Em 1945, no final da Guerra, de novo à Romênia241. Isto tudo hoje é história, para minha época era o dia-a-dia. Em Satu-Mare, todos os judeus moravam no mesmo bairro, assim como na aldeia dos meus tempos de criança, embora o nacionalismo, depois da Primeira Grande Guerra, tenha levado muitas dessas famílias a adotarem nomes romenos. Como a cidade já era maior que a minha aldeota havia, pelo menos, duas sinagogas, uma chassídica e outra liberal e sionista242. Morgit descrevia sua cidade com saudades, falava de umas famílias ricas, entre elas, os Printz, muito religiosos que fabricavam panelas de ágata, e os Kalicz, que viviam de um cortume243. Ao começar a ouvir sobre as atrocidades cometidas pelos alemães na Bessarábia, os Kalicz venderam seu negócio e foram para a América do Sul. Eu tinha outros tios: tia Fala, casada com Fisher; Margareth, mãe do Yonti; Itso, que, por ser religioso, teve muitos filhos, hoje é diretor de uma Yeshivá em Israel244; Ernest cresceu na Bulgária e está casado pela terceira vez, vive nos Estados Unidos; Korte morreu na Espanha, lutando na Guerra Civil Espanhola; Yael está casada em Israel. Minha prima Pauline, já órfã aos 16 anos, fugiu para Bruxelas, e depois ficou em Paris escondida numa igreja até conseguir novos documentos com ajuda da Cruz Vermelha245. A história dela é emocionante. Depois da guerra, emigrou para os Estados Unidos e cursou contabilidade246. Até que encontrou nas listas de identificação de sobreviventes, divulgadas no mundo inteiro247, o nome do tio que estava morando em São Paulo, assim, imigrou para cá e não demorou a se casar com um ortodoxo, que veio de Budapeste, conterrâneo da tia, já têm um neto, que é um advogado famoso. Mas o começo não foi nada fácil, o marido começou com uma fabriqueta de lingerie e as coisas não iam tão bem. Ela foi ajudar na contabilidade, depois inventou um crediário, cujas parcelas iam diminuindo. Foi bom por um tempo, mas ela não gostava de trabalhar com peças pequenas e tantos detalhes. Fez uma parceria com duas tecelagens e começou a fazer matelassê para colchas de cama exclusivas. Hoje é uma fábrica de exportação, e ela ainda arruma tempo para cuidar de uma creche para meninas órfãs, ensina inglês e costura. Ao chegar ao Brasil, ganhou uma 241 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 242 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000. 243 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 244 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 245 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 246 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 247 Relato de Nitza a MFW em SP, 2000. família e retribui essa sorte248, conforme conta. Nós fomos mais egoístas, demoramos muito para ter tempo de pensar nos outros, cuidávamos da família e dos amigos.249 Eu tinha uma outra tia, por parte de pai, que veio ficar conosco, logo que o marido morreu. Eles faziam costura de soutiens e cintas por encomenda, foi ela que eu, de fato, aprendi uma profissão.250 A guerra chegou para nós! Assim, fomos para Lodz para aquela que veio a ser a última reunião familiar. Lá foi decidido que deveríamos emigrar para onde fosse possível e seria em separado. Quando encontrássemos segurança, passaríamos o endereço a Dom Fellipe251, o padre da igreja que ficava perto da praça onde era a alfaiataria de meu pai. Ele nos ajudou muito, para quem quis, fez a conversão, casamento e entregou a documentação acima de qualquer suspeita252. Nós escolhemos ir embora para recomeçar em outro lugar que aceitasse nossas convicções e poderíamos ajudar uns aos outros e nos reagruparmos novamente253. Para cada parte da família, ficou a incumbência de levar um pedaço da história. O álbum de fotos, o castiçal de Chanucá, a toalha de Rosh Hashaná, o quadro que ficava na sala de jantar da minha avó, que eu nunca mais vi. Não lembro mais quanto ficou faltando, são pedaços que ficaram espalhados254 e não conseguimos mais juntar. Isso ainda machuca255. Saindo da cidade, tive sorte de encontrar minha antiga professora, sabíamos que era o último encontro256. Chorei e entre soluços de tantas perdas, sugeriram o nome de um noivo para mim. Meu pai aceitou de imediato, afinal era de uma boa família. Um cliente de meu pai, que havia se tornado prefeito da cidade, preparou os papéis257 e formalizamos o casamento civil. Quando a cerimônia terminou, ouvimos o barulho de tanques e soldados. Gritos, vidros quebrando, coisas caindo. Fugimos para o cemitério, que foi durante um tempo um lugar seguro. Anit, minha amiga, estava apaixonada por um ortodoxo russo258 e foi embora já com uma filha na barriga, direto para Filadélfia. Até hoje, somos muito amigas, de tempos em tempos, eu vou, ela vem e sentamos em qualquer lugar e falamos de dentro da alma. Sua filha, Deborah, também já é mãe...O tempo passa. 248 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 249 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 250 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 251 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 252 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000. 253 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 254 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 255 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 256 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000. 257 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 258 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. Nós também tentamos ir para os Estados Unidos, onde parte da família de minha mãe já estava instalada. Anit, que chegou primeiro, agilizou os papéis necessários para a imigração de muitos, facilitado pelo fato de seu marido não ser judeu 259. Até hoje, eles são convidados para as festas religiosas judaicas que para Anit ainda são muito importantes. Ela teve mais um filho que é arquiteto. Quando vou à Filadélfia, é na casa dele que me hospedo, com seis lindos e bem decorados dormitórios, uma casa moderna e espaçosa. O chão de mármore preto e a escadaria com tapete rosado. Uma suntuosidade! A esposa dele, também, trabalha e ajuda muito. Ela é engenheira pública260. As tentativas foram muitas, mas definitivamente nosso destino estava escrito em outra rota. Entre muitos esconderijos, rodamos por lugares que nem sei e, assim, fui aprendendo mais e melhor os idiomas261, as diferenças de sotaque e o gosto por comidas e temperos novos262. Descobrimos que a guerra havia acabado, há alguns meses num dos jornais velhos que recolhíamos para forrar o fundo dos sapatos já gastos. Tentamos voltar para casa, mas lá nada mais existia. Os poucos que restaram mal nos reconheceram, estávamos magros e esfarrapados. Um velho e bom vizinho sentiu pena e nos ajudou acolhendo por uns dias, ofereceu comida, roupa limpa e cuidou de algumas feridas, inclusive, as d’alma com o aconchego e o calor humano. Mas as antigas lembranças doíam demais, reforçadas pela falta que minha irmã caçula fazia naquele lugar...ela não agüentou o frio e morreu logo que deixamos a casa263. Este bondoso vizinho acabou doando a meus pais um lote de couro para que pudessem fazer algum dinheiro264 e fomos embora. Chegamos a Kluj265, na Transilvânia, ou hoje, Romênia, onde sabíamos que vários amigos estavam se arranjando e apareceu uma alternativa de alistamento no exército pela luta em Israel. Meu irmão alistou-se e foi por conta do emprego como camareiro no navio que ia em direção a Israel. Com esse dinheiro, mandou buscar meus pais e, quando chegaram, já havia terminado a guerra. Ele lutou com os ingleses pela Fundação de Israel e, depois da Declaração de Independência, voltou a trabalhar no navio266 fazendo a rota para os Estados Unidos. Na passagem pela Itália, trazia bijuterias finas, caixas inteiras267. 259 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 260 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 261 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 262 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 263 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000. 264 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 265 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 266 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 267 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. Todos assim faziam, cada um trazia alguma coisa, revendia e começava a fazer dinheiro268. Ele casou em Israel, mas suas duas filhas nasceram aqui e já são oito netos. Após sete anos, chegaram aqui junto com meus pais. A filha mais velha dele, Sofia, mora em Sorocaba e está convidando o pai para morar lá. Ela tem uma casa muito grande, um jardim com árvores frutíferas, mas ele não vai agüentar os seis netos... para lá e para cá, todos os dias? Ele merece sossego269. O dinheiro que meu irmão mandou foi suficiente apenas para as despesas com as passagens de meus pais. Entretanto, nós havíamos localizado Peter, um vizinho de meu marido, que já vivia em São Paulo e mandou a carta de chamada para nós270. Conseguimos vir pela Itália271. Afinal, vivíamos num país comunista, e não era fácil sair. Tínhamos o dinheiro da venda do antigo estabelecimento comercial da família de meu marido. Não era bem venda, era o acordo que conseguimos fazer com as pessoas que encontramos morando na antiga casa de meus sogros. Um antigo vizinho272 ajudou-nos, enviando o dinheiro das parcelas restantes para o endereço que íamos atualizando273. Nosso percurso de saída foi no luxuoso “Orient Express”, porque não parava em todas as estações e, assim, evitávamos a checagem de documentação que era sempre muito desgastante. Atravessamos os Alpes274 a pé, clandestinamente. Andamos por mais de 24 horas. Foi uma epopéia. Na época, com dinheiro comprava-se tudo. Apesar disso, eu morria de medo e tremia tanto que precisava segurar o queixo. Depois que chegamos à Áustria, uma entidade275 sionista nos ajudou a chegar à Itália para buscar o visto de chamada no consulado brasileiro. Eu já estava grávida. Durante a travessia para o Brasil, eu e meu marido tivemos aulas de português com um viajante professor da Berlitz276. Foram duas semanas e isso ajudou a passar o tempo. Só exista a Primeira Classe e a Turística. Na viagem, não havia restrições, podíamos andar pelo navio, aproveitar do conforto e da comida farta. O tempo esteve sempre bom e golfinhos acompanharam o navio. Peter e sua família estavam nos esperando e ficamos, inicialmente, instalados em sua casa em São Paulo, que ficava em frente à praça da Estação da Luz, onde tinha um 268 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. 269 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 270 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 271 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. 272 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 273 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 274 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000. 275 Relato de Margot a MFW em SP,.2000. 276 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. lago com peixes vermelhos e podíamos atravessá-lo por uma ponte. Foi o nosso tempo de lua-de-mel. Aos poucos começamos a sair de casa, havíamos ficado impressionados com as favelas e a pobreza e demoramos a entrar em contato com as pessoas277. Outra coisa que estranhamos eram os negros que nós nunca tínhamos visto, ao mesmo tempo, em que nos encantava tanta mistura, desde japoneses278, árabes, italianos... tantos sotaques. As nossas aulas de português, de fato, ajudaram, mas ainda assim ficávamos confusos ao perceber que a maioria não sabia ler279, embora fosse muito atenciosa e prestativa280, talvez até serviçais. Os costumes sobre higiene281 eram diferentes282, mesmo com água em abundância. Andar pelas ruas sem sombrinha, como era o costume local, parecia impossível283. O clima quente e úmido284 deixava a roupa marcada pelo suor e nem assim as pessoas deixavam de se cumprimentar com longas seqüências de beijos285, mostravam-se sempre íntimos!!286 Eu comecei a trabalhar numa alfaiataria, no centro da cidade, que já tinha uma boa freguesia da alta sociedade. Ele confeccionava paletós e blaizers e eu, no começo, ajudava na parte de acabamento e depois passei a fazer também as provas. Devagar as freguesas que vinham acompanhar os maridos, conversavam comigo pela minha facilidade de comunicação287 e, também, porque falava vários idiomas. Assim, comecei a oferecer os serviços de confecção de soutiens, fora de horário de trabalho, para senhoras que tinham máquina de costura em casa288. Fui ficando sobrecarregada e, sutilmente, convidada a me desligar da alfaiataria289. Aos poucos, fiz amizades, grandes amigas. Tudo começava com a facilidade do idioma290. A Lolita, que é polonesa, hoje é dona de uma grande confecção de moda feminina, começou ajudando a camisaria da família do marido e resolveu fazer uma 277 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 278 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 279 Relato de Regina a MFW em SP, 2000. 280 Relato de Rosalia MFW em SP, 2000. 281 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 282 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 283 Relato de Regina a MFW em SP, 2000. 284 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. 285 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000. 286 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 287 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 288 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 289 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 290 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. experiência com blusas femininas291. Deu tão certo que hoje não existe mais a camisaria, ela tem uma fábrica com 2.000 funcionários, fazendo toda a linha feminina: calças, saias, blaizers e blusas, só não faz roupa de festa292. Tivemos ajuda de vizinhos e amigos para conseguir mudar de casa. A nova era alugada e tinha um quarto grande, com cozinha e banheiro. Lá ficamos muitos anos e tivemos dois filhos. Quando o primeiro nasceu, não dava mais para atender às clientes em casa e acabamos alugando na região um galpão. Elas vinham com hora marcada para ter sempre privacidade, e eu tinha muito cuidado com isso. Soutien e cinta precisam olhar, mexer e exige muita paciência. Eu preparava um chá e servia com bolachas e uns chocolates muito gostosos, que eu comprava da Monique. Ela é uma egípcia que chegou já em 1952 ou 1953, fugindo das perseguições que estavam acontecendo contra os judeus como retaliação à Fundação de Israel. Com ela, eu conheci um outro judaísmo. Tudo para ela é cheio de sinais e significados e para minha surpresa, ela não falava ídish. Era uma mistura de espanhol com hebraico, o ladino, as músicas diferentes, embora as comemorações religiosas sejam as mesmas, mas havia outros tipos de comidas, todas perfumadas293. Os chocolates dela também tinham perfume, mas ela conta que demorou a acertar o ponto, pois derretiam muito fácil.294 Ela trabalhava fazendo e vendendo chocolates. Este era o nosso segredo. Não podíamos falar sobre isso, porque ninguém, entre os amigos deles, sabia que era ela que, praticamente, sustentava a casa. Quando a situação deles melhorou, alugaram a frente do meu atelier, deixando uma entrada separada e construíram uma bomboniere. Ficou bonita com uma vitrine muito apetitosa e o segredo foi mantido295. Eu conheci, certa vez, uma amiga dela de Trípoli, que vendia rendas e sedas importadas e sabia fazer destas comidas perfumadas. Ela e a família não se adaptaram e acabaram mudando para o Rio296. Quando vinha a São Paulo, sempre passava para ver Monique e, assim, criamos uma amizade que me permitiu aprender exóticas receitas297 e até algumas melodias que elas, às vezes, cantarolavam298. Até no jeito de ser mulher, eram 291 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 292 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 293 Relato de Margareth a MFW em SP, 2000. 294 Relato de Esmeralda a MFW em SP, 2000. 295 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. 296 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. 297 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000. 298 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. diferentes, mantinham-se reservadas dos homens, eram mais maquiadas , usavam muitas jóias e quando se reuniam soltavam gargalhadas, como eu nunca tinha visto299. Nós, eu e meu marido, fomos convidados, muitas vezes, para essas reuniões, porque ele falava francês e era brincalhão, logo nos entrosamos com esse mundo tão diferente! O marido de Monique falava vários idiomas, também, e com seu charme foi conhecendo muitas pessoas. Quando alguém precisava de qualquer coisa, perguntava para ele. Ele ganhava comissão sobre a venda de terrenos, de contratos de aluguel, serviços de mudanças, indicação de empregados. Era como se ele fosse o jornal de negócios do bairro300. Até um dia que ele não voltou mais, e deixou Monique com a filha. Foi muito duro e triste para ela. A filha, hoje, é professora e já tem uma neta que é linda como uma boneca. Mas, ela nunca mais foi a mesma301. Hoje, mora no “Lar Golda Meier” e, quando a visito, faço questão que leia a borra de café302, mais uma das coisas que tantas vezes compartilhamos. Meu atelier foi crescendo e ficando elegante. Comecei a pensar em fazer lingerie prêt-à-porter, uns dois ou três conjuntos em vários tamanhos303. Foi quando meu marido, que não ia bem com sua loja de material elétrico, resolveu ajudar-me no negócio. Aos poucos, as primas começaram a ajudar e chegou o momento que contratamos, primeiro uma costureira, depois uma modelista... Uma delas mal falava português, só polonês. Para mim, isso era confortável, afinal ela tinha uma história parecida e não tinha estudado português304. Ela imigrou com o marido para o Rio e faziam lenços de cabeça e pescoço, porém o clima era quente e não conhecendo nem religiosas, nem portuguesas que seriam as suas maiores clientes resolveram tentar a sorte em São Paulo. Não foi muito bem, até que ela resolveu ser assalariada.305 Com o negócio, começando a crescer, iniciei uma nova fase, que incluía viagens para o exterior em busca de modelos e detalhes306, como a renda307. Aos poucos, comecei 299 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000. 300 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 301 Relato de Claudette a MFW em SP, 2000. 302 Relato de Juliette a MFW em SP, 2000. 303 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 304 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 305 Relato de Margot a MFW em SP, 2000. 306 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 307 Relato de Isabel a MFW em SP, 2000. a trazer algumas camisolas e dei início à confecção de camisolas e peignoir. Enfim, eu estava realizando um sonho que eu pensava soterrado pelos muitos tanques de guerra. Algumas vezes viajei à Europa... Paris, Roma, Londres, Mônaco, e... Sei lá, por onde houvesse a moda308 para as várias coleções que produzi309, sobretudo, depois que o atacado impulsionou o negócio310. Fui também para Nova York311. Sempre descobria mais alguém da família para visitar. Hoje, tenho a minha filha em Miami e meus netos que estudam em colégio judaico, diferente do que fizemos aos nossos filhos, porque, naquela época, isso não era importante.312 A última vez que eu estive em Israel foi em Pessach de 1997 e cantamos várias canções que eu pensei já ter esquecido, lembranças de, pelo menos, 70 anos313 atrás, mas elas brotaram com aquela risada solta, bem de criança. Foi um reencontro com a família de meu pai , que era de Odessa na Rússia. Ele decidiu ainda jovem sair de sua cidade e, em Viena, formou-se em Ciências Econômicas314. Distinguia-se por dominar línguas. Além do ídish, falava o alemão, inglês, italiano, o romeno e o húngaro e a avó escrevia em gótico. Emigraram direto para Israel com os irmãos de meu pai, que ainda não estavam casados, mas ele logo faleceu. Eu ainda lembro de um dos tios, um rapaz muito bonito, mas demorou muito podermos nos reencontrar. As primeiras viagens eu fiz com uma agência de turismo, que organizava excursões, especialmente, para confeccionistas. Participavam pessoas do Rio de Janeiro também. Aqui de São Paulo, fizemos um grupo muito bom. Eu e minhas companheiras íamos aos lugares de atacado como Saint Dennis, também bisbilhotávamos na Avenue Montaigne, Dior, Valentino, Givenchy e todo esse mundo. Aquilo que me interessava, eu desenhava ou fotografava escondido315. Tinha de saber fotografar. Às vezes, eu ia ao banheiro para desenhar alguma coisa importante, eram muitos detalhes. Outras vezes, eu saía da loja e parava num café para desenhar. Eu me lembro que na Galeria Lafayette precisava sair do andar, cada andar tem um tipo de mercadoria. Eu sentava na escadaria de um andar para outro, descia, subia, era cansativo. 308 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 309 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 310 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 311 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 312 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 313 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 314 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 315 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. Já não é fácil sentar na escada e desenhar316. E se esquecia algum detalhe?! Precisava ir lá de novo e mais sobe, desce, senta, levanta... Quando comprava alguma coisa, era em lugares, onde os preços eram melhores e, assim, poderia revender. Comprava meias, chinelos, complementos, às vezes, um batom ou um perfume. Muita coisa eu vivi naquelas tantas vitrines!317. Nós não ficávamos só nisso. Íamos a restaurantes, algumas noites em shows, um balé... Durante um tempo os maridos também vinham. Às vezes, eram as esposas que acompanhavam, mas a maioria desse grupo era de empreendedoras mulheres, mulheres trabalhadoras e muito inteligentes. Ainda, lembro de uma que veio da Iugoslávia... muito despachada. Ela, às vezes, pedia para fotografar algumas vitrines. Não me atrapalhava, porque ela fabricava mercadoria diferente da minha.318 Peter, irmão de Don Fellipe, que para proteger a esposa judia, imigrou para cá, tornou-se um empresário que influenciou muito nosso negócio. Com ele construímos uma amizade de muita confiança, inicialmente, estimulada pela gratidão ao apoio recebido ao final da guerra319. Eles estavam enriquecendo com uma malharia e nos incentivaram a apostar no mercado atacadista. A primeira coleção foi vendida por seus próprios representantes. Assim, o atacado apareceu na minha vida. Só ficou a pronta entrega. Cometi muitos erros no começo. O meu primeiro mostruário foi tamanho 46, eu não sabia fazer atacado. Eu engordei um pouquinho, fiquei entre 44 e 46 e fiz do meu tamanho, e se não vendesse?...Então, eu usaria! Mas, Peter explicou-me sobre as vantagens da apresentação no tamanho 40. A roupa ficava mais modelada, a peça mais atraente e até mais econômica, ele me ensinou muitos truques desse novo mundo320. Meu irmão quando saiu de Israel, trouxe uma reserva de dinheiro, mas não muito. Com esse dinheiro, alugamos outro galpão com espaço maior321 e no auge do nosso negócio a coleção chegou a ter 30 peças, entre cintas, soutiens e calcinhas, camisolas e peignoir de diferentes modelos. Devagar a coisa foi engrenando, até o governo inventar um viaduto, este que passa pelo Largo do Arouche. Precisaram demolir uns prédios, umas 316 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 317 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 318 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 319 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 320 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 321 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. casas e, assim, mudamos para a Rua José Paulino. A minha mãe tinha um conterrâneo que ofereceu um galpão322 com 300 metros quadrados. Aqui em São Paulo tinha muita malandragem323, assim, era mais garantido fazer negócios entre conhecidos324. Soubemos que outros imigrantes vieram trazendo um lote de couro e alugaram um depósito. Um dia foram ver a mercadoria, e tinha sumido uma parte, mas a polícia não conseguiu achar325. Acho que esses acontecimentos fizeram com que nós, os imigrantes, de modo geral, ficássemos mais fechados como um grupo, pelo menos, no princípio. No caso dos judeus, isso era mais forte porque algum anti-semitismo ainda se podia sentir. É caso de uma senhora que vive atualmente no Lar com minha amiga Monique. Ela teve um açougue326 num bairro longe da maior parte dos imigrantes judeus. O negócio funcionava bem até a morte de sua mãe. Por causa dos preparativos diferentes, descobriram que eram de judeus e deixaram de comprar, fantasiando sei lá o que sobre a carne. Ela hoje viúva diz que acabou ficando pobre e precisando de ajuda por causa do anti-semitismo, mais uma vez327. Quando esse assunto aparece entre as moradoras do Lar, cada uma conta e reconta sua história. Aparecem algumas surpresas, como a Riva que cresceu como protestante328 e tempos depois se reconverteu ao judaísmo, ou ainda, o caso dos filhos de Varja que só depois de adultos descobriram serem judeus e não se interessaram por resgatar o vínculo329. Quando alguém ainda reclama da vida, Clara exalta o significado político da existência do Lar “Golda Meier”, motivo suficiente para se orgulharem da cultura judaica que cultua a solidariedade330, mencionando ainda o fato de São Paulo ter acolhido tantos imigrantes e terem encontrado espaço e liberdade para progredir. Clara e seu marido foram ativistas políticos, e mantêm essa força em sua alma. Eu tive sorte de não mais reviver esses conflitos, mas mantenho certa discrição331. Nós crescemos economicamente e construímos uma fábrica, onde eu passava a maior parte dos dias. Eram 300 metros quadrados com mais de 40 funcionários e representantes para controlar. Eu ficava na oficina o dia todo, mas, na hora do almoço, eu recebia 322 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 323 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 324 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 325 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 326 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 327 Relato de Zelia a MFW em SP, 2000. 328 Relato de Dalia a MFW em SP, 2000. 329 Relato de Suzana a MFW em SP, 2000. 330 Relato de Ruth a MFW em SP, 2000. 331 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. deliciosos pratos que só a minha mãe sabia fazer. Ela também cuidava dos meus filhos pequenos. Demorou um tempo, até podermos ter uma empregada332. Aliás, elas me assustavam um pouco com sugestões que pareciam feitiçaria, como curar dor de barriga com chá da goiabeira do jardim do Seu Antônio ou a dor de ouvido com um copo d’água embaixo do berço, enquanto o bebê dormia333. Por essas e outras, minha mãe sempre ficava por perto, ela faleceu logo após uma viagem que fizemos pela Europa e fomos até Israel para visitar seu irmão 20 anos mais velho. Ele fez “aliá la-Arets”334, quando ela ainda era pequena e só se encontraram, após a guerra. Marcaram um encontro, para reconhecer um ao outro, pensavam precisar combinar sinais, ele pôs uma flor na orelha, mas ela o identificou sem nem olhar a flor, pois eram bastante semelhantes335. Meu filho, também, é muito parecido com eles. Aliás, foi ele quem nos resgatou para a comunidade judaica. Ele fez amizades e acabou freqüentando a CIP, o grupo de escoteiros e passamos a freqüentar a sinagoga. possibilitaram passar férias no Guarujá e, As condições econômicas nos assim, os laços com os amigos foram fortalecidos. Veio o “Bar-Mitzva”336 e depois de seu casamento com a Denise, passamos a freqüentar, inclusive, o clube Hebraica. Recomeçamos a sentir o espírito de solidariedade com a comunidade e os menos afortunados. Hoje fazemos doações para várias entidades aqui de São Paulo e, também, de Israel337. Para os meus filhos crescerem, muitos rolos de tecido foram enfestados, quero dizer, tecido esticado em camadas para cortar um determinado modelo e tamanho338. Cresceram e estudaram, tudo graças ao sucesso de nossa marca. Eu gostava de ficar nas vendas, na modelagem, escolhia padronagem, fazia a coleção, eu fazia moda de São Paulo. Eu podia fazer sucesso porque tive sabedoria em relação a meu marido e à minha família. As mulheres podem ser a mentora339, mas deve manter a humildade em casa340. Passou o tempo e as dificuldades econômicas afetaram nosso negócio, os grandes concorrentes vieram e não mais conseguimos competir341. Mudamos para um aluguel mais 332 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 333 Relato de Amelie a MFW em SP, 2000. 334 Expressão no idioma Hebraico que significa imigrar para a Terra Santa – Israel. 335 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 336 Relato de Sofia a MFW em SP, 2000. 337 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 338 Relato de Linda a MFW em SP, 2000. 339 Relato de Daniela a MFW em SP, 2000. 340 Relato de Samantha a MFW em SP, 2000. 341 Relato de Maura a MFW em SP, 2000. barato, na mesma região, sendo a fábrica nos fundos e na frente uma pronta entrega. Quando eu fechei o negócio, vendíamos quinhentas peças por mês. Houve um tempo bom, eu fazia a moda. Eu gostava muito do meu ramo. A vida continua quando podemos olhar para frente. A minha filha é enfermeira e meu genro é médico cirurgião-vascular, não-judeu e eles se entendem muito bem. Moram em Cuiabá e resolveram a circuncisão dos filhos no hospital342. Eu vou para lá, vou curtir os netos, tenho três. Pensei em talvez trabalhar por lá, mas ela não vai me deixar, ela acha que é tempo de ter hora343. Na minha vida, quando poderia parar de trabalhar, ficamos com medo da economia que não é muito estável e, nesta indecisão, só parei quando meu marido ficou doente e precisava de cuidados344. Não tivemos mais tempo, perdemos a nossa hora, mas com isso vivemos um tempo de mais conforto. Com essas e outras histórias, é que eu vou para a casa da minha filha.345 Vou ter hora para viver outros dons, que nunca é tarde para descobrir e recontar outras histórias346. 342 Relato de Luiza a MFW em SP, 2000. 343 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. 344 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000. 345 Relato de Rosalia a MFW em SP, 2000. 346 Relato de Myetta a MFW em SP, 2000. FONTES E BIBLIOGRAFIA Fontes Orais Nomes fictícios das mulheres imigrantes judias empreendedoras em São Paulo, a partir de 1945, e seus relatos registrados no 2º semestre de 2000 ao 2º semestre de 2003. 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