Um muro me separa da escola - Pró

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Um muro me separa da escola - Pró
Maria da Conceição Silva Soares
CURRÍCULOS: REDES COTIDIANAS DE
CONHECIMENTOS E SENTIDOS TECIDAS POR
SUJEITOS EM COMUNICAÇÃO
Tese apresentada ao programa de PósGraduação
em
Educação
da
Universidade Federal do Espírito Santo
como pré-requisito para obtenção de
Grau de Doutora em Educação.
Orientadora. Professora Doutora Maria
Elizabeth Barros de Barros
Vitória, 2008
tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado
Alice Ruiz
Para Daniel Goldring Soares, Isabel Vasconcellos,
Márcia Penna Firme, Natalia Silva Goldring Soares,
Pedro Silva Goldring Soares, Tatiana Silva Goldring
Soares e Vanessa Maia.
Aprendi com Santaella, que aprendeu com Borges,
que uma dedicatória é o modo mais amoroso de
pronunciar seus nomes.
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Agradecimentos:
À minha orientadora Maria Elizabeth Barros de Barros, pela
oportunidade, incentivo e confiança.
Ao professor Carlos Eduardo Ferraço e à professora Janete
Magalhães Carvalho pelo inegável apoio e pela inestimável
contribuição.
Aos demais professores e aos meus colegas do PPGE/UFES,
por partilharem comigo a invenção de um mundo mais feliz
e esperançoso.
Aos gestores, professores e funcionários da Escola Municipal
de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos pela
acolhida, pelas sugestões, pelos questionamentos e por não
desistirem nunca de trabalhar para melhorar as condições
de existência.
Aos alunos do ACM, por me devolverem o otimismo, a
alegria, a irreverência e a potência e por inventarem
comigo sentidos para a escola e para a vida.
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Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou,
construiu ou inventou senão para sair do inferno.
Antonin Artaud
Inventa-se um mundo cada vez que se escreve.
Michel Maffesoli
E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio
de mim.
Fernando Pessoa
De tudo o que escrevi ontem, nada é verdade. Resta isto: que a
realidade me interessa como uma matéria plástica; e tenho mais
olhos para o que poderia ser, infinitamente mais do que para o que
foi. Inclino-me vertiginosamente sobre as possibilidades de cada ser
e lastimo tudo o que o manto dos costumes atrofia.
André Gide
Se alguém me perguntasse quem nós somos, eu, de toda maneira,
lhe responderia: essa abertura para todo o possível, essa espera que
nenhuma satisfação material apaziguará e que o jogo da linguagem
não poderia enganar!
Georges Bataille
Não me pergunte o que sou e não me peça para permanecer o
mesmo.
Michel Foucault
O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata,
mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo
que me consome, mas eu sou o fogo.
Jorge Luis Borges
É tão agradável não ter que se explicar!
Gilles Deleuze
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Resumo
Cultura já foi a palavra mágica que parecia solucionar todos os problemas. Entretanto, e
paradoxalmente, no contexto da globalização, com a reivindicação do direito à diferença
cultural, a idéia generalizada de cultura deixa de ser solução e passa a ser problema para
a homogeneização em escala mundial. A palavra perde seus efeitos mágicos e, nesta
condição que visa o consenso, passa a ser, cada vez mais, substituída por outra:
comunicação. Uma exigência de comunicação total vem invadindo nossas vidas, mas o
reconhecimento de sua potência tem sido reduzido à transmissão global de informações. A
ambiência comunicacional, instituída pelos modos de socialização que as tecnologias da
informação engendram, modificou nosso cotidiano. Outras formas de sociabilidade (como
audiências compartilhadas de televisão, salas virtuais de bate-papo e Orkut) e de
subjetividade (como telespectador e internauta) articulam-se às formas agora ditas
tradicionais (escola, família, aluno, pai, mãe e professor). Analisar a comunicação
praticada pelos sujeitos em seus espaçostempos cotidianos pode ser uma possibilidade
para percebermos desvios, sentidos e invenções que se produzem nos diferentes usos
dessas tecnologias. Defendemos que a escola constitui um desses espaçostempos de
mediação em que as práticas cotidianas instituem outros modos de comunicação e de
subjetivação, para além da pretensão de uma midiatização hegemônica. Nos propomos
ainda a pensar os currículos escolares como redes cotidianas de saberesfazeres e
sentidos tecidas por sujeitos em comunicação.
Palavras-chaves: comunicação, redes cotidianas de saberesfazeres e sentidos, currículos.
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Sumário
Apresentação.............................................................................................. 7
Um muro me separa da escola!..................................................... 12
Caminhando e contando.....................................................................19
O que faz sentido?............................................................................ ...27
Cultura, comunicação, escola, sentidos................................. 47
61
AGENCIAMENTO E RESISTÊNCIA.......................................................... 72
MIDIATIZAÇÃO: A ORDEM É INCLUIR...................................................... 81
A paranóia da comunicação............................................................
Eu robô?...................................................................................................122
141
SUJEITOS EM COMUNICAÇÃO............................................................. 150
ACORDEM RAIMUNDOS...........................................................................
Currículos: redes cotidianas de conhecimentos e
sentidos
tecidas
por
sujeitos
em
comunicação......................................................................................... 157
A FIGURA DAS REDES: EPISTEMOLOGIA, DIMENSÃO DA
COMUNICAÇÃO E SACO DE METÁFORAS...........................................
OS
SENTIDOS
DA
ESCOLA
TECIDOS
POR
163
SUJEITOS
EM
169
PORQUE O QUADRO NEGRO É BRANCO?........................................ 180
DISCUTINDO CURRÍCULOS NA E COM A ESCOLA........................... 194
COMUNICAÇÃO...........................................................................................
ESTAMOS FAZENDO DOS CURRÍCULOS ESPAÇOS DE DIMINUIÇÃO
DO OUTRO?..............................................................................................
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207
Currículos tecidos em redes cotidianas por sujeitos em
comunicação na, com a e para além da escola............... 230
Ponto final ............................................................................................ 243
Referências........................................................................................... 244
7
Apresentação
Mas, o que é isso afinal?
Esta pesquisa com os cotidianos da Escola Municipal Álvaro de Castro
Mattos (Vitória/ES) e a discussão e a análise dessa experiência, que resultou
em minha tese de doutoramento, pode traduzir-se como mais uma tentativa
de criar um efeito de ordem no caos, aliás, no caos semiótico, no qual
flanamos, navegamos, zapeamos e nos deixamos arrastar e em meio ao qual
de alguma forma nos movimentamos, nos constituímos e vivemos, desviando
de e esbarrando em pessoas, animais, objetos, palavras, imagens, sinais,
gestos, sons, cores, ruídos, luzes, fluídos, silêncios, gritos, memórias,
esquecimentos, restos, cacos e fragmentos. Tudo isso flutuando em
intensidades, freqüências, velocidades e direções variadas, transversais,
enviesadas, pelo ar.
Aldeia global
Geléia geral
Velocidade total
Realidade virtual
Inteligência artificial
Apelo sexual
Relacionamento superficial
Choque cultural
Linguagem digital
Em meio a tudo isso, que entre outros conceitos-atitudes caracterizam a
contemporaneidade, como pensar a educação, a escola, o currículo, o aluno,
o professor, o conhecimento, a constituição dos sujeitos?
Qual é o papel social e político da escola na sociedade atual?
Quais os seus sentidos?
Quais as suas possibilidades?
Com esse trabalho, tentei pensar a escola e a escolarização a partir de
perguntas menores (como sugere Deleuze), forjadas na minha condição de,
até certo ponto, estrangeira ao discurso pedagógico oficial.
Tentei fazê-lo deixando-me tocar pelas experiências que me afetaram
durante o espaçotempo em que realizei a pesquisa, deixando o pensamento,
indissociável do meu corpo, bailar, escapar, se enroscar e se libertar em
meio aos movimentos das redes cotidianas de saberesfazeres e sentidos
diversos e impossíveis de serem controlados. Comecei a escrever sem
nenhum roteiro pré-definido, sem um caminho esboçado e sem nenhuma
idéia de onde eu iria chegar.
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Tive muitas dificuldades e também muito apoio ao começar essa pesquisa. O
mais complicado, nesse começar, foi “entrar” na escola, pois teria que
atravessar o “muro”, para mim real, que me separava dela. Essa experiência,
a angústia que se abateu sobre mim e a necessidade de superá-la
constituíram a violência inicial que detonou o pensamento que persegui e
produzi sobre os currículos, a escola e a escolarização. O modo que
encontrei para realizar esse trabalho de pensamento-ação que me
possibilitou deslanchar o texto e o trabalho com os cotidianos na escola é o
que eu procuro contar, e que comecei a narrar ao mesmo tempo em que
pensava-agia, no primeiro capítulo, que recebeu o título Um muro me separa
da escola.
Optei, desde o começo, por tentar deixar esse pensamento vir, fluir e se
constituir, mobilizando todos os recursos que pude captar e os links que
consegui estabelecer, numa lógica, até onde foi possível, caótica, num
regime semiótico da ordem do indiciário e num esforço de edição que tenta
colocar ordem por meio de montagens e mixagens, mas que é incapaz
aniquilar suas ambigüidades. Essa é a forma pela qual suponho que nós
percebemos, contabilizamos e expressamos o mundo na ambiência das
novas tecnologias, meios, recursos e práticas da comunicação.
No segundo capítulo, Caminhando e contando, relato minhas primeiras
experiências com os cotidianos da escola e tudo que elas suscitaram em
meus pensamentos e em meu corpo. As impressões, as sensações, as
afetações, as rememorações e as refuncionalizações dos meus sentimentos
e conhecimentos sobre escolas e processos de escolarização. Procurei
também dar conta nesse capítulo de iniciar uma discussão sobre a
importância política e epistemológica do que chamamos pesquisa no/do/com
os cotidianos. Desde esse momento até o final da escritura desse trabalho
procurei costurar as experiências vividas na escola com uma discussão
teórica a respeito das possibilidades e limites da educação escolar nas
sociedades contemporâneas, embora, inicialmente, predominasse essa
segunda prática.
Pensando, escrevendo e praticando o texto e o cotidiano da escola, numa
ambiência mais ampla na qual se enredam a vivência em vários outros
contextos que constituem minha vida cotidiana, me percebi envolvida na
problematização do sentido. Essa questão eu tento discutir no terceiro
capítulo: O que faz sentido? O foco da análise, contudo, se deslocou, no
movimento de meus pensamentos, do “o quê” para “como se produzem os
sentidos”, levando em conta as transformações e alargamentos nos modos
de conhecer e se expressar engendrados com as tecnologias da informação
e da comunicação e priorizando o diálogo com meus referenciais teóricos,
especialmente Foucault, Deleuze, Derrida, Guattari, Bhabha e Certeau, além
de alguns autores que se apropriam de suas idéias para desenvolver
pensamentos direcionados às áreas específicas da comunicação e da
educação.
Ao continuar trilhando por esse caminho que fui construindo e pelo qual fui
sendo tragada sem conseguir me desvencilhar de seus desvios e atalhos,
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deparei-me com a necessidade de pensar as relações entre a sociedade
contemporânea e produção de sentidos, em especial dos sentidos da escola.
Essa relação eu discuto no capítulo quatro, o qual intitulei Cultura,
comunicação, escola, sentidos.
Totalmente perdida em relação aos sentidos da escola nos dias de hoje e
com uma postura bastante hostil em relação à escolarização e às minhas
idas à escola, busquei em outros contextos cotidianos, muitos dos quais não
vividos por mim, distantes no tempo e no espaço, e acessados a partir de
imagens e textos disponibilizados na internet, além de outros textos aos
quais tive acesso por outros meios, sentidos para a educação escolar. Na
condição em que experimentava essa relação com a escolarização e diante
do isolamento que pude sentir nessa prática, que é ao mesmo tempo
conectada com outros e solitária, inventei, na contingência daquele
momento, a possibilidade do encontro presencial com outros como um dos
sentidos possíveis de serem atribuídos à escola. Gosto de dizer que esse
sentido-acontecimento me foi acometido. De qualquer forma, isso me trouxe
força e potência para continuar.
Prossegui discursando sobre a centralidade da idéia de comunicação na
nossa sociedade, destacando a exigência de uma comunicação total, capaz
de solucionar todos os problemas e compreendida unicamente como
transmissão veloz e à distância de dados e informações. No capítulo cinco, A
paranóia da comunicação, discuto a emergência de um possível paradigma
da comunicação e, sob sua égide, a exigência e/ou o direito de acesso às
novas tecnologias da informação nas escolas, bem como aponto para usos
impensáveis e criativos desses meios e recursos em vários contextos
cotidianos da escola Álvaro de Castro Mattos. Para além desses usos, me
proponho a pensar outras práticas comunicativas há muito tempo instituídas
nas escolas e a articulação delas com essas novas tecnologias. Nesse ponto
da tessitura deste trabalho, percebo que as questões engendradas com os
cotidianos da escola ocupam cada vez maior espaço na minha discussão,
convocando autores, idéias, links e dispositivos em contextos diversos e
enredados, que não são únicos, mas possíveis, para abordá-las.
Como sabemos, uma questão leva a outra. Não se trata de um pensamento
que segue um desenvolvimento lógico e sim de um pensamento que vai se
metamorfoseando, se transformando em outras coisas e nos levando para
outros lugares. Deparei-me então com a necessidade de pensar os sujeitos
praticantes da escola. Essa problematização sobre a constituição dos
sujeitos, das formas de subjetividade e dos processos de subjetivação eu
procurei realizar no capítulo seis, que chamei de Eu robô. Apesar de
compreender, com minha orientadora, com Foucault, com Deleuze e com
Guattari, os conceitos de formas de subjetividade e processos de
subjetivação como dispositivos para problematizar a idéia de sujeito como
interioridade e como essência, decidi continuar utilizando o termo sujeito,
compreendido, no entanto, como dobra e como território existencial e
singular.
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Estava ainda escrevendo este sexto capítulo, quando aconteceram pelo
menos três coisas que alteraram, de modo mais significativo, a forma como
eu vinha conduzindo esse trabalho.
A primeira delas foi a leitura de um texto de Vera França que me apresentou
a noção de sujeitos em comunicação, a qual me agarrei e não consegui mais
largar. Esse conceito me acompanhou até o fim da minha pesquisa-narração,
apontando caminhos que eu iria seguir a partir de então.
O segundo acontecimento foi um vídeocabine que realizei na escola para
colher depoimentos de alunos. Trata-se de um procedimento muito simples,
em que utilizamos uma câmera fixa e colocamos as pessoas na frente dela
pra falarem livremente o que quiserem sobre um determinado assunto.
Nesse dia dezenas de alunos passaram pela minha frente. Suas
performances, artimanhas, sorrisos e queixas me encantaram. Esse evento
me potencializou e franqueou minha entrada na escola. Tudo mudou, ou eu
mudei a forma de ver tudo, a partir desse dia. Passei a ver a escola com
outros olhos, outros ouvidos e outros sentimentos. Essa abertura me tornou
uma pessoa requisitada em variados contextos cotidianos da Álvaro de
Castro Mattos e me permitiu transitar com mais liberdade em seus variados
espaços e tempos, realizando outras atividades e intervenções.
O terceiro evento ocorrido foi minha segunda qualificação, as observações
feitas pelos professores que compunham a banca e as sugestões apontadas
para continuidade do trabalho.
A minha nova atitude com a escola, a imersão em suas redes cotidianas de
saberesfazeres e sentidos, mexeu bastante comigo. Do encantamento e da
dedicação passei a uma análise de suas práticas e discursos conduzida,
principalmente, a partir do que foi vivido na e com a escola. Cheguei a
pensar em zerar o trabalho. Começar de novo a partir dali, deletando o que
tinha sido feito até aquele momento. Porém, decidi manter o que já tinha
escrito, com pequenas modificações, acrescentando algumas coisas, tirando
outras e tentando explicar melhor algumas noções e avaliações. Decidi
manter o que já havia sido feito não só para preservar o trabalho que seria
jogado fora ou para não ter em encarar a dureza de começar um novo
trabalho, mas, acima de tudo, para manter meus rastros e mais tarde rever,
através das marcas que deixei, situações e experiências que vivi durante
esse caminhar.
Assim cheguei ao capítulo sete, Currículos: redes cotidianas de
conhecimentos e sentidos tecidas por sujeitos em comunicação. Neste
capítulo procurei trazer as falas e demandas de alunos, professores e da
pedagoga da escola. Tentei discutir também os sentidos da escola
inventados por esses praticantes do cotidiano escolar, bem como apontar os
conhecimentos tecidos nas redes que lá são criadas e circulam, e que estão
enredadas com outras redes tecidas em outros contextos desses praticantes.
Apresento também uma discussão sobre currículos realizada na e com a
escola, contemplando, entre outras coisas, os desafios que a comunicação
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traz para a educação e os desafios que a diversidade apresenta à idéia do
pensamento único.
Outra questão que procurei trazer nesse capítulo foi a noção de redes e suas
implicações epistemológicas e filosóficas, além da utilização do conceito para
dar conta de uma nova dimensão da comunicação e de sua utilização
metafórica para a compreensão de nossos tempos, dos nossos modos de
agir e de pensar.
No oitavo e último capítulo, Currículos tecidos em redes cotidianas por
sujeitos em comunicação na, com a e para além da escola, busco mostrar
como os meios de comunicação potencializam a circulação dos
conhecimentos e sentidos produzidos na escola para além de seus muros
(físicos e/ou simbólicos). Mais do que isso, sugiro que estes conhecimentos e
sentidos produzidos na escola estão, desde sempre, enredados com
conhecimentos e sentidos produzidos em outros lugares. Tento desconstruir
a idéia de que esses meios e recursos operam como ponte para realizar uma
conexão entre mundo e escola e aponto para uma condição que eles
propiciam, uma ambiência, que nos leva a pensar que a disjunção entre
escola e sociedade é uma invenção cultural que remete a uma forma de
perceber e pensar
praticamente difícil de se sustentar no mundo
contemporâneo.
Ao invés de conclusão, preferi encerrar meu trabalho com um texto ao qual
dei o título de Ponto final, no qual abordo a sensação de incompletude e de
impossibilidade de finalização de um texto e, simultaneamente, a
necessidade, por conta dos espaçostempos pré-delimitados e das demandas
da vida, de acabá-lo. É ponto final e pronto, não porque o trabalho acabou
por si mesmo, porque deu conta de tudo que tinha de dar, mas porque temos
o desejo e a necessidade de acabar. É, portanto, uma decisão nossa que
produz essa realidade.
Esta reconstituição do meu caminhar foi feita após o término da escritura da
tese e embora tente ordenar e explicar o processo não pode apagar as
marcas que estão impressas em todo o percurso. Os conflitos, as
desventuras, as paixões e os movimentos que me impulsionaram, me
obstruíram, me potencializaram e me transformaram durante todo esse
tempo.
Eu consegui desconstruir o muro que me separava da escola? Penso que
sim. Mas eu não me iludo, desconstruir e construir muros é uma prática
recorrente, mesmo nessa era das redes, nesses tempos que chamamos de
pós-modernos.
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Capítulo 1
Muro da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Álvaro de Castro
Mattos
“Quando se aponta a câmera para algum objeto ou sujeito, constrói-se um significado, faz-se
uma escolha, seleciona-se um tema e conta-se uma história, cabe a nós, espectadores, o
imenso desafio de lê-Ias".
Ivan Lima (do site http://www.mnemocine.com.br/galeria/rodrigopires/fotosignificado.htm)
Um muro me separa da escola!
Não sei quando, não sei como, não sei o porquê e não sei por quem ele foi
construído. Mas sinto sua presença, o percebo de várias formas, o imagino
frequentemente interrompendo minha vontade e interceptando minha liberdade
de caminhar.
Pensar um objeto não é, exteriormente a ele - e
conseqüentemente, enquanto sujeito isolado dele próprio
-, explicá-lo. Pensá-lo é deixar-me atravessar por ele.
Torno-me, desse modo seu autor e simultaneamente
elevo-o à categoria de obra original; por outras palavras,
desterritorializo-o. (...) Desterrotorializar toda a
territorialização possível é, enfim, pensar. (FADIGAS,
2003:58)
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Quando o muro separa uma ponte
une
Se a vingança encara o remorso
pune
Uma vez erguido, esse muro nos coloca em lados opostos. Aquilo que chamo
de “eu” e aquilo que chamo de “meu” de um lado. Aquilo que chamo de
“escola” e aquilo que chamo de “deles” do outro lado.
Desafiando as inevitáveis
redes cotidianas de saberes,
fazeres e relações, o muro
parece cortar, como um
meridiano, a geografia da
minha rua. De um lado minha
casa, do outro a escola.
Como uma intervenção no
espaçotempo cotidiano em
que vivo, este artefato, feito
de tijolos e cimento, tenta criar
territórios e instituir lugares,
com
suas
leis,
suas
autoridades, suas rotinas,
suas prescrições, seus limites, seus horários, seus calendários.
Muito mais do que separar lugares e
mundos coexistentes, o muro os inventa,
os constitui, os delimita dia após dia.
Assim, ao mesmo tempo em que produz a
disjunção o muro a comunica.
O muro da vergonha nos EUA
Em mais uma iniciativa de natureza fascista, o Senado dos
EUA aprovou nesta quarta-feira, 17 de maio, a construção
de um muro-triplo de 595 quilômetros na fronteira com o
México para impedir o ingresso na “terra da liberdade”
(baita ironia!!!) dos imigrantes das nações saqueadas pelo
próprio imperialismo.
Desde janeiro de 2001, quando o presidente mexicano
Vicente Fox, ex-executivo da Coca-Cola, e George Bush
assinaram um acordo migratório, mais de 2 mil pessoas
foram mortas nesta divisa. No ano passado, foram 441
mortes, sendo 15% mulheres. A mídia burguesa, que
14
acusou o famoso Muro de Berlim de ser responsável pela morte de 800 pessoas em 30 anos, pouco fala
sobre o “muro da vergonha” que separa o México dos EUA. Pelo projeto aprovado no Senado, o muro
expandindo terá detectores de movimentos e iluminação noturna. Seu custo será de US$ 1 milhão de
dólares por quilômetro e percorrerá os Estados da Califórnia, Arizona, Novo México e Texas. Como
alertou o bispo mexicano Gregório Rosa, ele reforçará a “divisão entre o norte e o sul, entre ricos e
pobres. É uma declaração de desprezo a América Latina” (Altamiro Borges - Folha de São Paulo, 23 de
maio de 2006.)
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=22701
Todas as vezes que me proponho pensar a educação é a imagem do muro que
irrompe, como se ele fosse o signo da construção de vários dispositivos de
controle e de técnicas de dominação e segregação, seja por confinamento, seja
por subjetivação.
Muro das lamentações
Muro da discórdia
A imagem do muro é muito forte. Não sei de onde ela veio, mas sinto que ela
se ressignifica e se fortalece no encontro com outros fragmentos-imagensviagens-pensamentos que associam muro e escola.
15
Em 1979, foi lançada a Ópera rock épica The wall,
concebida quase na totalidade por Waters, e que deu
ao Pink Floyd uma renovada aclamação e mais um
single de êxito com a sua incursão na crítica da
pedagogia – Another Brick in the WalI.
O conceito do álbum, tal como a maioria das músicas,
pertence a Roger Waters. A história retrata em ficção
a vida de um anti-herói ("Pink") que é martelado e
espancado pela sociedade desde os primeiros dias da
sua vida: sufocado pela mãe, oprimido na escola, ele
constrói um muro em sua consciência para dividir ele
da sociedade, e refugia-se num mundo de fantasia
que criou para si.
http://pt.wikipedia.org/wiki/The_wall
Just Another Brick In The Wall?
We don't need no education
We don't need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave the kids alone
Hey, teacher leave the kids alone!
All in all it's just another brick in the wall
All in all you're just another brick in the wall
We don't need no education
We don't need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave the kids alone
Hey, teacher leave the kids alone!
All in all it's just another brick in the wall
All in all you're just another brick in the wall
Yes, just Another Brick In The Wall…
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The Wall - o filme
The Wall permaneceu na lista dos álbuns
mais vendidos durante 14 anos.
Aclamado por críticos e fãs como um dos
melhores álbuns do Pink Floyd,The Wall é
conhecido como sendo um clássico do
rock, e os seus mórbidos e depressivos
hinos inspiraram muitos dos músicos rock
contemporâneos.
The Wall foi reeditado em CD em 1994 no
Reino Unido e em 1997 no resto do
mundo. No ano 2000, por ocasião do 20º
aniversário do seu lançamento, foi
novamente reeditado.
http://pt.wikipedia.org
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A imagem do muro, simultaneamente signo, sinal, marca e cicatriz, conduz e
reduz meu pensamento sobre a escola. Dificulta minha aproximação, impondose como uma fronteira que requer muita astúcia e esforço para ser
atravessada.
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem
chegando
Que medo você tem de nós, olha aí
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós,
olha aí
Pesadelo – MPB4
Na impossibilidade de me desvencilhar dessa imagem e na busca desesperada
para sair da imobilidade produzida na minha relação com ela, acabei, como me
convidou Certeau, por inventar um outro uso possível dessa “aparição”,
tomando-a como o fio puxado que teima em desafiar um tecido supostamente
consistente, a partir do qual talvez seja possível desfazer e refazer essa trama.
Muro pintado em Gaza
Muro usado como cartão de aniversário para o amigo
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Muro como lugar de protestos na Palestina
A imagem-muro, assim praticadapensada, funciona, para mim, também como
metáfora e metonímia de uma forma de perceber, contabilizar e comunicar o
mundo que opera separando-o em partes, às quais se pretende conhecer,
conter, disciplinar e controlar.
Desconstruir o muro, nesse caso, passa a ser então desconstruir a fronteira
entre a escola e a experiência da vida e entre o conhecimento científico e a
criação. Desconstruir o muro passa a ser desafiar minhas próprias barreiras em
relação à escola e à escolarização.
Penso que, como um acontecimento, o sentido dessa “parede” e seus efeitos
não se prendem nem ao muro enquanto objeto, nem a mim enquanto sujeitoautor da significação, mas a alguma coisa forjada em um espaçotempo não
identificável.
O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã, olha aí
Pesadelo – MPB4
Faço, então, da luta pela reinvenção dessa imagem-muro, que com Ginzburg
percebo como um índice, uma pista, da separação por mim realizada entre vida
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e escola, o principal desafio da minha pesquisa-experiência-narrativa tecida na
relação com o cotidiano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro de
Castro Mattos e com todos aqueles que foram tornando-se meus intercessores.
“A comunicação praticada na escola”, objeto-pretexto anteriormente formulado
para desencadear esse trabalho, incorporou assim, em meio à experiência
vivida e sentida, mais interrogações que, para além das que propus pensar
inicialmente, acabaram ocupando um lugar central nessa análise do que se
passou e me tocou durante esse caminhar:
Há “comunicação” capaz de reaproximar o que se separou?
Há “comunicação” capaz de fazer entender, de fazer dizer, de fazer negociar,
de fazer trocar, de fazer traduzir, de fazer conviver, de fazer viver com outros?
Há “comunicação” desconectada das disputas pelo poder, pela verdade e pelo
sentido?
Há “comunicação”?
E o que é mesmo “comunicação”?
COMUNICAÇÃO – Filósofos e sociólogos utilizam hoje esse termo para designar o caráter
específico das relações humanas que são ou podem ser relações de participação recíproca ou
de compreensão. Portanto, esse termo vem a ser sinônimo de “coexistência” ou de “vida com
os outros” e indica o conjunto dos modos específicos que a coexistência humana pode
assumir, contanto que se trate de modos humanos, isto é, nos quais reste certa possibilidade
de participação e compreensão. Nesse sentido, a C. nada tem em comum com a coordenação
e a unidade. (ABBAGNANO, 2003:161)
Hein???? Humm!!!!
Capítulo 2
Caminhando e contando
Foi literalmente pela mão de Carlos Eduardo Ferraço e à moda Caetano
Veloso, “caminhando contra o vento, sem lenço sem documento”, mas
com a máquina fotográfica na bolsa e o caderninho e a caneta nas mãos, que
eu entrei, com o “peito cheio de amores vãos” e com o firme propósito de
começar a rabiscar os rumos dessa pesquisa, na Escola Municipal de Ensino
21
Fundamental Álvaro de Castro Mattos, no bairro Jardim da Penha, Vitória,
Espírito Santo, no dia 22 de fevereiro de 2005.
A escola ficava exatamente em frente à minha casa, e esse foi sinceramente o
motivo da minha escolha, mas eu nunca havia entrado lá.
Já era quase noite. Ferraço me apresentou à diretora para que eu explicasse a
proposta da pesquisa que pretendia realizar na escola. Expliquei que me
propunha a pesquisar os usos dos meios de comunicação, mas que ainda não
tinha uma forma bem definida de como fazê-lo. Pretendia desenvolver esse
projeto com a escola.
Essa resposta não surgiu na hora. Já vinha sendo ensaiada desde que
começamos a traçar caminhos possíveis para realizar a pesquisa (ou até antes,
vai saber!), mas confesso que funcionou muito bem naquela conversa. Não só
porque não sabia mesmo o que fazer, como porque estava totalmente
impregnada com a proposta do “com”.
Aprendi e compartilhei com Ferraço que bater o pé na pesquisa com o
cotidiano é uma questão política e epistemológica. Para nós, o cotidiano não é
apenas o locus privilegiado de uma investigação, mas um espaçotempo de
inventar uma forma de fazer ciência (e talvez de fazer comunicação e
educação) que não se dá a partir da clivagem entre sujeito e objeto, mas que
se faz na relação com sujeitos, objetos, intensidades, fragmentos, imagens,
sensibilidades, memórias, que se transformam mutuamente no decorrer da
caminhada, incluindo-se aí, principalmente, o próprio pesquisador.
Se estamos incluídos, mergulhados, em
nosso objeto, chegando às vezes, a nos
confundir com ele, no lugar dos estudos
“sobre”, de fato, acontecem os estudos
“com” os cotidianos. Somos, no final de
tudo, pesquisadores de nós mesmos,
somos nosso próprio tema de investigação.
(FERRAÇO, 2003:160)
E o que pretendemos com uma pesquisa que se diz com o cotidiano? O que é,
afinal, o cotidiano? Ou melhor, o que não é cotidiano?
22
Como locus da investigação, o cotidiano pode ser pensado como o lugar da
vida comum, das rotinas, do “comezinho”, das banalidades, que pra nós têm
sentido de realidade. A vida ordinária a princípio nos parece simples e trivial,
mas em sua complexidade nos permite vivenciar, para além do reconhecimento
do que imaginamos já estarmos acostumados, variadas e inusitadas
experiências, encontros, combinações e invenções que nos constituem como
sujeitos sociais, ao mesmo tempo nômades e localizados no tempoespaço.
Pensar o cotidiano e erguê-lo à condição de espaço e tempo
privilegiado de produção da existência e dos conhecimentos,
crenças e valores que a ela dão sentido e direção,
considerando-o de modo complexo e composto de elementos
sempre necessariamente articulados, implica em não poder
dissociar a metodologia em si das situações estudadas por seu
intermédio. Essa talvez seja uma das forças dessa metodologia,
que não coloca como partes distintas as diversas dimensões
que envolvem a pesquisa, ou seja: a teoria e a prática; os
saberes formais e os saberes cotidianos; o modelo social e a
realidade social; os dados relevantes e os irrelevantes
cientificamente; os observadores e os observados; o conteúdo
e a forma; etc. Ao trabalharmos nessa perspectiva, assumimos
a realidade estudada em sua realidade complexa (MORIN,
1995), revelando seu caráter multifacetado, abdicando de
procedimentos dicotomizadores e redutores de sua riqueza,
com seus ônus e bônus.
(OLIVEIRA, 2001: 41)
Admitir que na sua simplicidade o cotidiano é complexo, coloca para nós
pesquisadores a necessidade de inverter todo o processo aprendido, como
sugere Alves (2001a: 25):
Ao invés de dividir, para analisar, será preciso multiplicar –
as teorias, os fatos, as fontes, os métodos, etc. Mas que
isso, será necessário entre eles estabelecer redes de
múltiplas e também complexas relações.
Para Alves (2001a), do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa
no/do/com o cotidiano se constitui em uma trajetória, na qual – considerando
as idéias de redes de conhecimentos e tessitura de conhecimento em redes –
precisamos realizar alguns movimentos. Para começar ela sugere um
mergulho com todos os sentidos no que desejamos estudar. Ela chama esse
movimento de sentimento de mundo (p.15).
O segundo movimento virar de ponta cabeça (ALVES, 2001a: 15) se configura
numa inversão epistemológica: compreender como limite ao que precisa ser
tecido aquilo que nos habituamos a ver como apoio (teorias, categorias,
conceitos e noções).
Considerando a complexidade do cotidiano, e assim a diversidade, o diferente
e o heterogêneo, Alves (2005a: 15) propõe um terceiro movimento: beber em
23
todas as fontes. Trata-se da necessidade de incorporar fontes variadas, vistas
em outras épocas como indispensáveis ou até mesmo como suspeitas.
A seguir, para comunicar “novos achados”, ela sugere uma outra maneira de
escrever. A esse que é o quarto movimento Alves (2001a: 16) nomeia: narrar a
vida e literaturizar a ciência.
Os movimentos sugeridos por Alves engendram atitudes que nós cotidianistas
assumimos ao mergulhar no cotidiano da escola “pedindo licença para entrar e
agradecendo ao sair” (FERRAÇO, 2005: 14).
Com Ferraço aprendi também que para falar sobre a escola precisamos falar
com os sujeitos que a inventam em suas práticas do dia-a-dia. Segundo ele,
falar sobre os sujeitos das escolas a despeito de se falar com eles, resulta,
quase sempre, em discursos vazios.
Discursos que generalizam o múltiplo e só conseguem ver o
único. Discursos que tentam apagar o plural das escolas, que
tentam pintar seus sujeitos de uma única cor.
(FERRAÇO, 2004: 77-78)
Em uma retomada, segundo ela mesma, crítica em relação às questões
metodológicas-epistemológicas das pesquisas nos/dos/com os cotidianos,
Alves, em um artigo escrito em 2006 e por questões operacionais publicado
com data de 2003, busca compreender o que ela não havia visto antes mas
que já estava há muito colocado:
O que de fato interessa nas pesquisas nos/dos/com os
cotidianos são as pessoas, os praticantes, com as chama
Certeau (1994) porque as vê em atos, o tempo todo. Cabe
assim a pergunta: por que falando sobre isso o tempo todo,
não me dei conta disso? E porque consigo fazê-lo agora?
(ALVES, 2003: 6)
Tentando responder a questão por ela mesma posta, Alves recorre às noções
de virtualidade e acontecimento em Foucault. Ou seja, a história efetiva faz
ressurgir o acontecimento no que tem de único e de agudo em meio ao qual o
virtual se atualiza. A esse quinto movimento, que diz respeito à compreensão
da importância dos praticantes do cotidiano nas pesquisas e que, como ela
mesma explica, só vai aparecer no texto escrito na medida em que a criação
atualiza o virtual a partir da crítica no entrecruzamento de todos os diálogos
estabelecidos após a publicação de seus textos anteriores, Alves (2003) chama
Esse femina. A idéia é homenagear Nietzsche e Foucault, apropriando o termo
Ecce homo à realidade das escolas brasileiras.
Independente das teorias, percebemos que nossa vida cotidiana é café com
leite, feijão com arroz, pão com manteiga, goiabada com queijo. Nosso dia a
dia parece ser marcado pelo com, para além do ou e do e. Trata-se, portanto,
de tudo aquilo que é tecido nas redes de relações com todos os outros: as
pessoas, os objetos, as normas, as imagens, as memórias, as sensações.
24
Nosso cotidiano é, ao mesmo tempo, produto e produtor do que nos tornamos
em determinado momento, incluindo a pesquisa acadêmica e o trabalho na
escola.
E agora? Meu cotidiano passaria a ser também mídia com escola?
Comunicação com Educação?
Dito e feito. A diretora não só me aceitou como foi até seu armário e me
mostrou uma edição de um jornal impresso produzido por alunos e professores.
Foi tudo muito rápido e eu saí de lá sem ter a menor idéia do que iria fazer.
Constatei apenas que a questão da comunicação já estava, antes de minha
ida, colocada na escola.
Voltei lá algumas vezes antes de começar a escrever, mas continuava sendo
muito pouco, ou quase nada, o que sabia sobre o que acontecia comigo, com a
Álvaro de Castro Mattos e com a minha relação com ela. Praticamente todo o
conhecimento sobre a escola que contava para mim, todo o sentido da escola,
vinha das miradas através da janela de casa, misturadas a fragmentos de
memórias e sensações em relação às minhas experiências na infância e na
adolescência como aluna.
l
Lembro, entre outras coisas, da
escola normal, o Instituto de
Educação, no Rio, onde cursei
magistério por insistência do meu
pai (ele dizia que era o sonho da
minha mãe, já falecida). Sinto de
novo a velha frustração de mandar
pro ralo o sonho de ir para o Colégio
Pedro II, imaginado como lugar de
toda liberdade. Reviro o baú e busco
uma velha foto, escondida a sete
chaves. Como é que me sinto?
Se eu fosse eu
25
Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se
eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá
certo. Muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se
torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria, o que faria? Logo de início
se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente
locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente
passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente
eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado.
Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria, se eu fosse eu, não poderia contar. Acho, por exemplo, que por
um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e
confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova do
desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras
da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim
em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também
seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar.
Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti
uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
Clarice Lispector
Je ne suis jamais. Je deviens.
André Gide
Antes de entrar na Álvaro de Castro Mattos, sabia também, e principalmente
por causa da placa no portão e dos uniformes, que era uma escola pública de
ensino fundamental da rede municipal de Vitória, que funcionava de manhã, à
tarde e à noite (pelos movimentos de entrada e saída) e que era cercada por
um alto muro colorido com grafites, atrás do qual pouca coisa se via e se queria
ver.
Graças aos meus ouvidos, eu sabia também que as pessoas de lá cantavam o
Hino Nacional nas quintas-feiras, dançavam quadrilhas em junho, jogavam bola
na quadra todos os dias, demoravam a se organizar ou nunca se organizavam
em fila - porque as professoras gritavam muito ao microfone, e cediam espaço
para reuniões de grupos religiosos em alguns domingos.
Pensei em levantar informações sobre a escola pesquisando nos arquivos da
Prefeitura de Vitória, porém, achei mais interessante começar a tentar
compreendê-la por meio de observações/impressões/sensações e das
percepções de alunos e professores. Essas informações oficiais que eu poderia
obter (até mesmo online), quase todas quantitativas (número de alunos,
funcionários e professores; data de fundação; horários; turnos; salas de aula;
etc.) poderiam ficar para depois e pensei, então, em fazer isso na medida em
que sentisse, e se sentisse, necessidade. Naquele momento, não queria que
26
nada orientasse meu olhar, minha audição, meu olfato, meu paladar e meus
primeiros passos. Acredito agora que, nesse início de caminhada, optei, como
sugeriu Larrosa, por me deixar levar pela experiência e perceber como e o quê,
de imediato, a escola comunicava.
Na primeira visita sozinha à escola pude perceber que a minha presença, como
jornalista e pesquisadora, funcionava como uma forma de interpelação
(intercessão?). Diretora, pedagoga e professores, sem que eu perguntasse
nada, todos tinham alguma coisa que queriam dizer ou queriam saber sobre
comunicação. Experiências, propostas e idéias que aos poucos iam se
entrelaçando com as minhas experiências, propostas e idéias, completando-as,
interrogando-as e transformando-as, na tessitura deste trabalho.
Meu sonho era ser jornalista, mas meu pai não me deixou sair da cidade
onde a gente morava para eu estudar, então acabei fazendo pedagogia, mas
minha filha é jornalista. Para mim a escola é um meio de comunicação que
não sabe usar seu poder. Você veio aqui para ver se estamos usando
corretamente os meios de comunicação? Usamos muitas imagens na
escola, a História, por exemplo, é feita de imagens. Podíamos fazer
uma pesquisa para saber a imagem que os alunos têm dos professores. Eu
adoro as propagandas. Assisto a todas para depois analisar criticamente.
Gente, com licença, mas eu vou ler o jornal, estou tentando fazer isso
desde cedo.
As redes iam se formando, mas ainda me sentia completamente “fora de lugar”,
expressão que tomei emprestado de Edward Said para dar conta desse
sentimento de estranhamento e terror que estava experimentando. Era pior do
que eu pensava. Tudo o que eu queria era algum contato amistoso que
emanasse de casa, algo que abrisse uma brecha no imenso tecido de solidão e
isolamento que eu sentia em torno de mim. (2004: 337).
Mas voltar para casa naquele dia não apaziguou minha aflição, eu continuava
ouvindo a escola, e o pior era que agora não podia mais ignorá-la. Aquela visita
me deslocou de mim. E assim que cheguei, deitei na cama, peguei a agenda e
tentei escrever o que estava sentindo.
Primeiro dia na escola
Essa outra história sobre esse primeiro contato com a escola Álvaro de Castro Mattos não é um
relato ou descrição sobre o que vi ou percebi lá. Também não é uma reflexão teórica ou uma
análise científica, conforme uma concepção clássica de ciência, sobre os discursos e práticas
observados e registrados. É uma história que se propõe subjetiva (“subjetivante”?), nem por isso
menos importante nesse momento em que começo a compor a pesquisa, já que acredito que ela
poderá atravessar todas as outras histórias que serão finalmente alinhavadas no momento da
escritura do trabalho. Essa história começou a tomar forma no momento em que deixei a escola
para trás e atravessei a rua de volta para casa, arrastando comigo um turbilhão de sensações e
lembranças que a ida à escola detonou em mim.
27
A primeira dessas sensações foi de alívio, quando vi que o portão fechado e o muro que cercava
a escola ficaram para trás. Foi alguma coisa do tipo: Ufa, atravessei a fronteira e voltei vivinha e
inteira para o meu lugar!
Doce ilusão rapidamente desfeita! Estou em casa e tento iniciar as primeiras anotações no
caderno, mas não paro de ouvir os gritos das crianças e dos adolescentes que vêm do outro
lado da rua, do outro lado do muro, atravessando todas as supostas fronteiras, entrando pelas
janelas e pelos meus ouvidos até me deixar zonza.
Talvez toda experiência, que não é grito de prazer
ou de dor, seja coligada pela instituição. Toda
experiência que não é deslocada ou desfeita por
esse êxtase é captada pelo “amor do censor”,
coligada e utilizada pelo discurso da lei. Ela é
canalizada e instrumentada. É escrita pelo sistema
social. Por isso, seria necessário procurar, do lado
dos gritos, aquilo que não é “refeito” pela ordem da
instrumentalidade escriturística (CERTEAU, 1994:
242).
Tento me acalmar pensando que o barulho vem do outro lugar, que eu já estou fora. E aí me
vem a interrogação: eu estou mesmo preparada e disposta a enfrentar uma escola? Aquele
mundo, como dizia Freud, meio estranho, mas ao mesmo tempo meio familiar?
Estar em casa já não me conforta, e me vem uma frase que ouvi numa música de Paulinho da
Viola: “voltar quase sempre é partir para um outro lugar”.
Lembro-me também das últimas palavras que ouvi do segurança quando saía da escola: “A
senhora está atrás de vaga? Tem que insistir!”.
Tenho que insistir? Então tá! Vou em frente nessa escritura-pensamento para tentar
compreender o que há de tão estranho na escola. Qual o motivo de tanto desconforto? Na
verdade, não consigo me lembrar de nada que pudesse ter me angustiado tanto. Fui muito bem
recebida. Até mesmo a gritaria dos meninos lá dentro não parecia nada perturbadora como aqui
fora. Parece que o barulho reverbera, ecoa. Olho pela janela e não vejo nada através do muro.
Continuo escutando a gritaria. Se eu mesma vi que os gritos faziam parte das brincadeiras,
porque daqui desse lado eles parecem pedidos de socorro?
De repente um estalo: quem se sente presa dentro de uma escola sou eu! Não há nada de novo,
o que há é tudo de novo, tudo outra vez. E isso vem da minha experiência e também constitui
um certo saber que tenho sobre a escola, a minha escola. Impossível explicar tudo. E como eu
ainda não conheço nenhum dispositivo para espantar fantasmas, as marcas que minhas
experiências deixaram só poderão ser removidas (ou não) a partir das outras experiênciasinvenções-sentidos que ainda estão por vir. E antes que eu me esqueça, depois dessa agonia de
me sentir out-sider (como diz Said), chegou a hora de acabar de vez com esse dentro e fora
cirurgicamente separados. Se só existem dobras, desdobras e redobras, vamos à luta.
28
Apesar das decididas palavras, a coisa não funcionou bem assim. As idas a
Álvaro de Castro Mattos eram quase sempre interrompidas por longos períodos
de ausência, e quase nunca eu tinha vontade de voltar. Foi então, após ler um
texto de Antonio Carlos Rodrigues de Amorim (2005), que tive, de repente, um
impulso para começar a escrever-pensar o que se passava nessa minha
relação com a escola. Rolou um sopapo no cognitivo, como diz Tom Zé.
Toninho e Antunes martelam: Este mundo não é meu! Penso enquanto
escrevo. Escrevo enquanto penso. Um exercício de garimpar, roubar, revirar e
reinventar conceitos e tecer conhecimento, que, com Deleuze, entendo como
atribuição de sentidos.
E assim, à maneira de Deleuze, que sempre partia de um caso singular para
pensar o sentido das coisas (BADIOU, 1997), e sob efeito do fascínio que me
despertou a estética que movimentava fragmentos de frases, idéias e imagens
multiplicando as possibilidades de compor e recompor o texto que havia lido,
eu encontrei na imagem-muro, que me obstruía e me obcecava, um caminho
possível, o imprevisto, o que me tirou do rumo, me abduziu e me deu asas, a
violência que precisava para impulsionar e desterritorializar esse pensamento
que comecei a deixar fluir e, simultaneamente, a perseguir sobre o sentido e o
não-sentido da escolarização.
Entrego-me então à força dos movimentos e deixo-me arrastar pelas redes
cotidianas de saberesfazeres, que, como me ensinou Ferraço (2005),
produzem danças e deslizamentos de significados impossíveis de serem
previstos ou controlados. Como conseqüência dessa impossibilidade, diz ele,
temos que considerar a diversidade de possibilidades para o conhecimento.
Então, como a folha de papel perdida deixou de ser importante para Lispector,
a comunicação praticada na escola deixou de ser a questão emergencial que
se impunha para mim. O sentido da escola e da escolarização a antecede
(tão óbvio e tão obscuro!). Só nos contextos da desconstrução e da invenção
dos sentidos da escola caberia então pensar a comunicação.
Capítulo 3
O que faz sentido?
Que fique muito mal explicado. Não faço força para ser entendido. Quem
faz sentido é soldado.
Mario Quintana
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A ciência em si
Arnaldo Antunes e Gilberto Gil
Se toda coincidência
Tende a que se entenda
E toda lenda
Quer chegar aqui
A ciência não se aprende
A ciência apreende
A ciência em si
Se toda estrela cadente
Cai pra fazer sentido
E todo mito
Quer ter carne aqui
A ciência não se ensina
A ciência insemina
A ciência em si
Se o que se pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
Do avião a jato ao jaboti
Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
Do sono eterno ao eterno devir
Como a órbita da terra abraça o vácuo devagar
Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar
Tanto quanto a experiência quer se abstrair
A ciência não avança
A ciência alcança
A ciência em si
E aí? Alguma coisa começou a fazer sentido? Penso, então, que menos
importante do que buscar compreender o sentido último das coisas é buscar
compreender como as coisas fazem sentido. Conhecer, dizia Deleuze, é criar
conceitos e criar conceitos é inventar significados. Mas isso não é simples,
objetivo, subjetivo e pessoal como pode parecer a princípio. Nem muito menos
intersubjetivo, consensual como sugere a hermenêutica. Também não tem a
ver com uma consciência fenomenológica nem com o inconsciente coletivo.
Muito menos é óbvio como pode parecer para o realismo.
Experimento então pensar o sentido da escola sem nenhuma pretensão de
produzir um texto que se proponha a constituir-se em uma descoberta de um
absoluto universal, uma reflexão e uma comunicação de seu verdadeiro e real
significado, mas apenas uma criação ou recriação de sentido, recreação,
devaneio, com todas as dores e delícias que os desenraizamentos e os
encontros proporcionam, aproveitando os espaços de liberdade de um
pensamento.
30
Mas antes preciso dar uma pausa e pensar como acontece o próprio
pensamento. Isso porque, no momento em que realizo essa escritura ao
mesmo tempo em que penso, me toco que fazê-lo em um computador deixa
esse fluir muito menos sujeito a um desenvolvimento linear, do tipo início, meio
e fim. Já fui e voltei várias vezes. Graças ao dispositivo recortar-colar, já mudei
vários fragmentos deste texto de lugar, para tentar compor assim outras
lógicas, outros sentidos, acompanhando e reorganizando as interrupções, as
desventuras, os enredamentos e as derivas na prática de pensar.
É o que na fabricação da comunicação chamamos de edição. No caos
semiótico da mídia, e acho que também da vida cotidiana, é a edição que cria
uma aparência de linearidade, de coerência, de causa e efeito, de unidade, de
objetividade, de ordem.
A figura do texto "editado" no computador é fantasmática, na medida
em que é menos corporal, mais "espiritual", mais etérea. Ocorre
nesse caso uma espécie de desencarnação do texto. Mas sua silhueta
espectral permanece; e, além disso, para a maioria dos intelectuais
e dos escritores, o programa, o "software" das máquinas ainda se
submete ao modelo espectral do livro. Tudo o que aparece na tela se
dispõe com vistas ao livro: escrita linear, páginas numeradas,
valores codificados das grafias (itálico, negrito, etc.), diferenças
dos corpos e dos caracteres tradicionais. Algumas máquinas de
tele-escrita não o fazem, mas as "nossas" respeitam ainda a figura
do livro, sendo-lhe servis e mimetizando-a; desposam-na de maneira
quase espiritual, "pneumática", próxima do fôlego: como se bastasse
falar para haver impressão. Quanto a saber o que isso muda para a
filosofia, e não apenas (pouco importa, com efeito) para meu
trabalho, indago-me o tempo todo o que aconteceria com Platão,
Descartes, Hegel, Nietzsche e mesmo Heidegger (que no fundo conheceu
o computador, sem conhecê-lo), se tivessem deparado com essa
"coisa", não apenas como um instrumento disponível, mas como um tema
de reflexão. De Pascal, Descartes, Leibniz a Heidegger, passando por
Hegel, os filósofos têm provavelmente meditado sobre a máquina de
calcular, a máquina de pensar, a máquina de traduzir, a formalização
em geral, etc. Mas como teriam interpretado uma cultura que tende,
dessa maneira, a ser dominada, em seu próprio cotidiano, e através
de todo o universo, por tais dispositivos técnicos de inscrição e de
arquivamento? Porque esse é o caso de tudo, das relações do
pensamento à "imagem", à linguagem, à idéia, ao arquivamento, ao
simulacro, à representação. Como deveria ter Platão descrito o que
se chama de o "mito da caverna", levando em conta essas
transformações? Precisaria ele apenas transformar a retórica de sua
pedagogia ou pensar de outra maneira a estrutura ontológica das
relações entre as idéias, as cópias, os simulacros, o pensamento e a
31
linguagem, etc.? (...) Inversamente,
e isso vale para todos os meios de comunicação, como a
discussão é mais aberta e todo mundo pode ter acesso,
uma certa possibilidade crítica pode, ao contrário,
ver-se encorajada e desenvolvida ali
onde as instâncias da avaliação clássica podiam por vezes
desempenhar um papel de censura: a escolha dos editores
ou das máquinas de edição nem sempre é a melhor,
ocorrem recalques, marginaliza-se ou silencia-se. Uma nova
liberação do fluxo pode, de uma só vez, deixar passar
qualquer coisa e dar alento a possibilidades críticas outrora limitadas ou inibidas
pelas velhas máquinas de legitimação - que são também, à sua maneira,
máquinas de edição de texto.
Derrida
www.oglobo.com.br/cultura
A produção maquínica de subjetividade pode trabalhar tanto para o melhor como para o pior.
Existe uma atitude antimodernista que consiste em rejeitar maciçamente as inovações
tecnológicas, em particular as que estão ligadas à revolução
informática. Entretanto, tal evolução maquínica não pode ser
julgada nem positiva nem negativamente; tudo depende de
como for sua articulação com os agenciamentos coletivos de
enunciação. O melhor é a criação, a invenção de novos
Universos de referência; o pior é a mass-midialização
embrutecedora, à qual são condenados hoje em dia milhares
de indivíduos. As evoluções tecnológicas, conjugadas a
experimentações sociais de novos domínios, são talvez
capazes de nos fazer sair do período opressivo atual e de nos fazer entrar numa era pós-mídia,
caracterizada por uma reapropriação e uma re-singularização da utilização da mídia.
(Guattari, 1992: 15-16)
Além de permitir um jogo mais flexível com as palavras e os variados textos, a
produção de discursos no computador, principalmente quando se está
conectado à internet, facilita e incentiva o uso das imagens que circulam
livremente na web para compor possíveis significações. Para além de uma
subjetivação maquínica, encaro esse processo como a constituição de um
entre-lugar (Bhabha) povoado por intervenções imprevisíveis e impossíveis de
serem controladas que afetam e desviam o pensamento. Essa lógica
operacional não se remete, portanto, a uma escolha pessoal, objetiva, subjetiva
e voluntária de um sujeito que captura imagens a seu bel prazer. É que até
certo ponto as imagens se impõem a nós, independente do que seu autor
pretendia significar. As operações e os modos de uso (Certeau) das imagens
(fotografias, desenhos, ilustrações, gravuras, pinturas, tabelas, palavras)
também me instigam a pensar como elas funcionam nos processos de
produção de sentidos.
Numa perspectiva representacional clássica, por exemplo, as imagens,
especialmente as fotográficas, são muitas vezes utilizadas para produzir efeitos
de comprovação de verdade em relação a alguma coisa acontecida e narrada.
32
Como um modo de representação do real que o reproduziria com fidelidade,
com realismo.
Com Philippe Dubois podemos analisar algumas condições a partir das quais
foi atribuída à fotografia uma credibilidade tão singular.
E essa virtude irredutível de testemunho baseia-se principalmente na
consciência que se tem do processo mecânico de produção da imagem
fotográfica, em seu modo específico de constituição e existência: o que se
chamou de automatismo de sua gênese técnica. Se admitimos muitas vezes
com bastante facilidade que o explorador pode relativamente fabular quando
volta de suas viagens e elaborar, portanto, por exemplo para impressionar
seu ouvinte, narrativas mais ou menos hiperbólicas, em que a parcela de
fantasia e de imaginário está longe de ser negligenciável, ao contrário, a
fotografia, pelo menos aos olhos da doxa e do senso comum, não pode
mentir. Nela a necessidade de "ver para crer" é satisfeita. A foto é percebida
como uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessária e suficiente, que
atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra.
http://www.ead.ufms.br/imagemsom/textos/fotografia/verossidubois.doc
Percebo que, não por conta da doxa, mas porque racionalização, percepção e
afetação se sobrepõem, é ainda com essa intenção, à semelhança do que
fazem as mídias, que, grande parte das vezes, utilizamos as fotografias em
nossos trabalhos acadêmicos, em nossas aulas, palestras, exposições e até
mesmo em nossas narrativas cotidianas, para nos reportarmos ao que
“realmente” aconteceu.
“Olha aí, foi bem assim que aconteceu!”
“Veja, o laboratório pedagógico é assim”
33
“Tá vendo a festa dos professores?
Foi desse jeito”.
Reurbanização do Centro de Vitória:
“Olhem como era antes, como foi se
modificando e como é hoje”.
“Vejam nossa excursão à
fazendinha como foi muito
legal!”
“Olha quantas coisas as
crianças aprenderam na
excursão pedagógica!”
34
Realizamos e usamos imagens para (com a ajuda das palavras) registrar,
demonstrar, provar, evidenciar, rememorar, reinventar, reVER...
Sei também, porque aprendi com Certeau (1994), que os destinatários dos
discursos e imagens já fabricadas produzirão em suas práticas de usuários
outros sentidos para além dos previstos e desejados. Essa lógica operatória,
no entanto, pretendo discutir mais adiante.
Dubois, com o propósito de problematizar diferentes posições defendidas pelos
teóricos da fotografia e, principalmente, defender o que ele chama de uma
nova atitude em relação ao “princípio de realidade” dela, põe em perspectiva
três movimentos que nos ajudam a pensar a própria idéia de representação e
que foram por ele organizados a partir da teoria geral de Peirce, segundo a
qual existem três tipos de signos: ícones, símbolos e índices, conforme a
relação que eles se propõem a estabelecer com seu objeto. Ainda de acordo
com Peirce, para significar o signo necessita de um interpretante.
1) a fotografia como espelho do real (o discurso da mimese). O efeito de realidade ligado à
imagem fotográfica foi a princípio atribuído à semelhança existente entre a foto e seu referente.
De início, a fotografia só é percebida pelo olhar ingênuo como um "analogon" objetivo do real.
Parece mimética por essência.
35
2) a fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução). Logo se
manifestou uma reação contra esse ilusionismo do espelho fotográfico. O princípio de realidade
foi então designado como pura "impressão", um simples "efeito". Com esforço tentou-se
demonstrar que a imagem fotográfica não é um espelho neutro, mas um instrumento de
transposição, de análise, de interpretação e até de transformação do real, como a língua, por
exemplo, e assim, também, culturalmente codificada.
3) a fotografia como traço de um real (o discurso do índice e da referência). Por mais útil e
necessário que tenha sido, esse movimento de desconstrução (semiológica) e de denúncia
(ideológica) da impressão de realidade deixá-nos, contudo, um tanto insatisfeitos. Algo de
singular, que a diferencia dos outros modos de representação, subsiste apesar de tudo na
imagem fotográfica: um sentimento de realidade incontornável do qual não conseguimos nos
livrar apesar da consciência de todos os códigos que estão em jogo nela e que se combinaram
para a sua elaboração. Na foto, diz R. Barthes em La chambre claire [A câmara clara], "o
referente adere" em direção a tudo e contra tudo. Diante da imagem fotográfica, não se pode
evitar o que J. Derrida qualifica em La verité en peinture3 [A verdade em pintura] de "processo de
atribuição", por meio do qual se remete inevitavelmente a imagem a seu referente. Deve-se,
portanto, prosseguir a análise, ir além da simples denúncia do "efeito de real": deve-se interrogar
segundo outros termos a ontologia da imagem fotográfica.
É nesse estágio que se situam algumas pesquisas atuais pós-estruturalistas (entre as quais a
presente), que encontraram apoio, por exemplo, em certos conceitos das teorias de Ch. S.
Peirce, em particular na noção de índice (por oposição a ícone e a símbolo), que alguns vêem
como que uma lógica, senão uma epistemologia da qual a imagem fotográfica forneceria um
modelo exemplar.
http://www.ead.ufms.br/imagemsom/textos/fotografia/verossidubois.doc
Pensar a fotografia como um ícone, é para Dubois, encará-la como uma
representação análoga a seu referente. Seus críticos e seus defensores teriam,
assim, em comum a crença que a fotografia é um simples instrumento de uma
memória documental do real, que se opõe à arte, como pura criação
imaginária. O papel da fotografia é auxiliar as ciências em seu esforço para
uma melhor apreensão da realidade do mundo.
Se o discurso do século XIX sobre a imagem fotográfica, é para Dubois, o da
semelhança, no século XX prevalece a insistência na idéia da transformação
do real pela foto, o que ele atribui à onda estruturalista com a denúncia dos
efeitos de realidade. Ao destacar o caráter simbólico da fotografia, essa
perspectiva iria desnaturalizar o discurso da mimese e da transparência,
sublinhando que a foto é eminentemente codificada (sob todos os tipos de
pontos de vista: técnico, cultural, sociológico, estético etc.). Essa nova
abordagem desloca e simultaneamente matem o poder de verdade da foto.
De fato, como se renega então qualquer possibilidade de a fotografia ser simplesmente um
espelho transparente do mundo, como ela não pode mais, por essência, revelar a verdade
empírica, vamos assistir ao desenvolvimento de diversas atitudes que vão todas no sentido de
um deslocamento desse poder de verdade, de sua ancoragem na realidade rumo a uma
ancoragem na própria mensagem: pelo trabalho (a codificação) que ela implica, sobretudo no
36
plano artístico, a foto vai se tornar reveladora da verdade interior (não empírica). É no próprio
artifício que a foto vai se tornar verdadeira e alcançar sua própria realidade interna. A ficção
alcança, e até mesmo ultrapassa, a realidade.
http://www.ead.ufms.br/imagemsom/textos/fotografia/verossidubois.doc
Com Debois, entendo que esses dois tipos de concepção — a foto como
espelho do mundo e a foto como operação de codificação das aparências —
têm em comum a consideração da imagem fotográfica como portadora de um
valor absoluto, ou pelo menos geral, seja por semelhança (ícone) seja por
convenção (símbolo).
A terceira concepção destacada por Debois, considera a foto como procedente
da ordem do índice (representação por contigüidade física do signo com seu
referente), distinguindo-se assim das duas precedentes por implicar que a
imagem indiciária é dotada de um valor todo singular ou particular, determinado
unicamente por seu referente e só por este: traço de um real. Trata-se da
pregnância do real na fotografia, e não, o que equivocadamente possa parecer,
de uma volta ao analogismo mimético.
Esse gênero de consideração, que afirma a transcendência da referência — única, singular,
literalmente inesquecível — além dos códigos e aquém de qualquer efeito simplista de mimese,
vê-se bem que aqui ainda procede, quase intuitivamente, das reações imediatas do espectador
diante da foto.
http://www.ead.ufms.br/imagemsom/textos/fotografia/verossidubois.doc
Pensando com Santaella (2000), o signo indiciário tem mesmo uma relação
existencial com o seu objeto, mas essa relação é bem singular.
O índice é realmente afetado por esse existente; a
correspondência entre signo e objeto é factual; há entre ambos
uma conexão dinâmica, até mesmo espacial; por isso mesmo,
essa relação é efetiva e genuína (só a relação existencial é
genuína, as outras são de razão). Tudo isso pode ser sintetizado
na conexão real que se estabelece entre o signo e seu objeto,
sendo essa conexão aquilo que dá ao índice capacidade e
virtude para funcionar como tal. (122-123)
Essa relação por contigüidade física com o objeto dá ao índice capacidade
para agir como signo, independente de ser interpretado ou não. Isso quer dizer
que o índice é um tipo de signo que emana pleno e verdadeiro sentido? Não,
não é isso. O índice só funcionará como signo quando encontrar um intérprete,
apesar do que, como destaca Santaella, não é o interpretante que lhe confere
esse poder (de signo), e sim sua afetação pelo objeto. (2000: 123). O índice
chama a atenção do intérprete e exerce sobre ele uma influência compulsiva
(ai... o muro!!!!!)
Peirce chegou a dizer que o índice age sobre o sistema
nervoso e, “como um dedo apontado, exerce sobre a
atenção uma força fisiológica real, como o poder de um
magnetizador, dirigindo-o para um objeto particular dos
37
sentidos”. Disse também que o índice força o olhar do receptor a se virar para o objeto,
compelindo o intérprete a ter uma experiência”. (SANTAELLA, 2000: 123)
Caminhando novamente com Debois, podemos pensar então a fotografia como
um índice levado a funcionar como testemunho, que atesta a existência (mas
não o sentido) de uma realidade.
Essa observação faz com que compreendamos que a
lógica do índice que hoje assinalamos no centro da
mensagem fotográfica utiliza plenamente a distinção
entre sentido e existência: a foto-índice afirma a
nossos olhos a existência do que ela representa (o
"isso foi" de Barthes), mas nada nos diz sobre o
sentido dessa representação; ela não nos diz "isso que
dizer aquilo".
http://www.ead.ufms.br/imagemsom/textos/fotografia/verossi
dubois.doc
Pensar a fotografia como um índice não é pensá-la, portanto, nem como uma
representação tal qual espelho de um objeto ou realidade, nem como uma
manipulação livre e deliberada ao bel prazer do manipulador. Trata-se de
considerar a multiplicidade de interpretantes (signos) e interpretações
(atribuições de sentido) possíveis que se co-engendram entre o que é
fotografado que precisa existir), a mirada (e, nas condições atuais, os recursos
tecnológicos que permitem e produzem alteração do referente) do fotógrafo, as
expectativas e experiências culturais dos receptores e a incontrolável variedade
de sentidos que emergem em meio a essas relações, sempre móveis e
cambiantes.
Se a garantia da existência de um objeto não diz respeito à sua realidade, uso,
verdade e essência, parece que voltamos à estaca zero, já que o que nos
interessa é compreender como se produz sentido. Mas não é bem assim,
penso que estamos caminhando... Resta-nos então voltar nossa atenção para
o interpretante, figura que completa a tríade peirceana: objeto – signo –
interpretante. Talvez tenha chegado o momento de tentar compreender a
conexão que vem sendo feita por muitos pesquisadores da Educação entre
Ginzburg e Certeau, ou melhor, entre o signo indiciário e as lógicas operatórias
de usuários.
O interpretante de Peirce, segundo Santaella, não é o intérprete (sujeito,
indivíduo), não resulta, portanto, de uma atividade subjetiva e individual, e
também não tem a ver com interpretação (como descoberta, aprofundamento,
leitura do que está por trás ou nas entrelinhas). Peirce aposta na pragmática e
trabalha nas relações de superfície. O signo, especialmente o índice, quer dizer
“é isto” e não “o que isto quer dizer”. O signo não é dependente do
interpretante, mas ao contrário, o signo é capaz de gerá-lo.
O interpretante é uma propriedade objetiva que o signo
possui em si mesmo, haja um ato particular que a
atualize ou não; é uma criatura do signo que não
38
depende estritamente do modo como uma mente
subjetiva, singular possa vir compreendê-la. Ele não é
ainda o produto de uma pluralidade de atos
interpretativos, ou melhor, não é uma generalização de
ocorrências empíricas de interpretação, mas sim um
conteúdo objetivo do próprio signo. O devir do
interpretante é, pois, um efeito do signo e não apenas e
exclusivamente de um ato de interpretação subjetivo.
(SANTAELLA, 2000: 63)
Isso não quer dizer que não existam interpretações singlares, mas sim que a
interpretação de um signo por uma pessoa é uma atitude de observação do
interpretante ou interpretantes (vários possíveis) que o signo é capaz de
produzir. E o interpretante que um signo é capaz de gerar é sempre outro
signo. Penso que Derrida teria concordado com Peirce e considerado essa
hipótese na análise que o levou ao conceito de différance (como adiamento do
objeto e não como diferença), embora tenha lido que ele partiu da lingüística de
Saussure.
O signo porta uma referência ao seu objeto, produz efeitos em uma ou várias
pessoas e esse efeito é o seu interpretante, ou seja, outro signo. Então
vejamos:
Objeto (muro da escola)  Signo indiciário (fotos/imagens desse muro) 
Interpretantes (outros muros, paredão, barreira, separação, disjunção,
proteção, cerceamento, etc. - outros signos indiciários, icônicos ou simbólicos,
Peirce previa essa hibridização)  Conceição (pessoa), que por conta das
experiências, conhecimentos e práticas em que está enredada (saberesfazeres
nessa circunstância possíveis) não gosta de escola, é afetada, nessa condição,
pelos efeitos de alguns desses interpretantes (signos) possíveis. Temos aí,
creio eu, o exemplo de uma operação de usuário (Certeau), de uma lógica
operatória produtora de sentido que não se remete nem a textos prescritivos
nem a singularidades subjetivas (Ferraço), e que é, portanto, pré-individual
e/ou trans-individual (Deleuze).
Se assim for, o deslocamento de um sentido que oprime, reduz e imobiliza e a
produção de outros sentidos em favor da felicidade e da expansão da vida,
pode acontecer com a ampliação de interpretantes (outros possíveis) que
emergem com as redes de conhecimentos (ações, relações, pensamentos,
crenças, etc.) tecidas pelos praticantes do cotidiano (FERRAÇO, 2005).
Quero insistir numa idéia pós-representativa, numa condição de
realidade específica em que um signo fotográfico, por origem, se
torna ele mesmo, um objeto com uma natureza própria. A fotografia
como objeto transformado que comporta na sua formação uma
origem comum a todas as outras - a lógica do traço - mas que por
sua própria condição poética, pulsa internamente com um fim em si
mesma.
Desse platô, observo uma condição desrepresentacional nas
imagens que se constroem no auto-referencial. Nessa medida, a
39
condição significante dos enunciados é produzida por camadas,
mediadas pelos códigos arbitrados pelo ambiente cultural. Coisas
que se dão pela enunciação coletiva dos detalhes. Na maior e na
menor medida da forma, códigos arbitrados por um operador, por
múltiplas convergências, enfim, por conseqüências de uma
atmosfera de impregnação da cognição e das múltiplas faces de
um cotidiano que pode gerar, destruir, ou mesmo simular, mas que
só fabrica suas inter-relações no jogo dessa presença diante da
qual se olha. Mauricius Farina
http://www.studium.iar.unicamp.br/seis/7.htm?main=imanencia.htm
Nesta trilha que vou traçando para pensar como se produzem os sentidos,
preciso considerar ainda um outro tipo de imagens, especialmente pela
intensidade com que elas me afetam. Estou pensando nas imagens sonoras:
vozes, gritos, músicas, ruídos, silêncios, bem como nos estados emocionais,
cognitivos e corporais que elas induzem.
Alguns biólogos-pesquisadores acreditam que, desde bebê, as pessoas
reagem de forma diferente a tipos diferentes de música. Rodrigo Cavalcante
(2006) destaca que pesquisas realizadas na Universidade de Toronto,
confirmam o que muitas mães já sabiam, ou pelo menos suspeitavam: bebês
tendem a permanecer mais calmos quando ouvem uma melodia serena e, por
outro lado, tendem a ficar mais alertas com a aceleração do ritmo da canção.
Ele recorre a Wisnik para compreender como a mudança de ritmo pode
estimular certos comportamentos nas pessoas.
O que está por trás disso é o ritmo do próprio corpo
humano. “O pulso sangüíneo, movimentos dos músculos, o
andar e a respiração funcionam como uma espécie de
base para o tempo musical”, diz José Miguel Wisnik. Ele
diz que os homens tendem a usar o tempo desses
movimentos na composição de músicas. Não é à toa que
as peças musicais usam a terminologia do andar e da sua
velocidade: andante é o caminhar normal; o largo é o andar
em passos lentos; allegro e vivace correspondem àquela
hora em que você está quase engatando uma corrida.
Mesmo na música pop, o caminhar é um padrão
recorrente: é só ouvir a batida de Staying Alive, dos Bee
Gees, embalando os passos de John Travolta para
perceber como a música entra em sincronia com o andar
do ator americano. Além dos ritmos musculares, há
também os ritmos cerebrais. O mais famoso deles é o ritmo
alfa, que opera em torno de 8 a 13 pulsos por segundo,
uma freqüência que corresponde ao estado intermediário
entre a vigília e o sono.
CAVALCANTE
http://www.geocities.com/sensilis2000/Bio_Music, acesso em 2006
40
O que me chamou atenção no trabalho de Cavalcante, foi a advertência em
relação ao poder da música para a concentração e para a manipulação das
emoções humanas, o que, segundo ele, não está apenas despertando o
interesse dos músicos e dos estudiosos da música, mas também de
psicólogos, produtores de filmes e, claro, políticos.
Wisnik (1999), assinala que o ritmo está na base de todas as percepções
humanas. A música funciona, então, como uma forma de “editar” os ruídos e os
silêncios caóticos do mundo, produzindo um som constante e afinado que
diminui o grau de incerteza do universo inseminando nele um princípio de
ordem. Para ele, o ruído é o som do mundo, constituindo-se em freqüências
irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma
ordenação. A música, portanto, aloja a luta cósmica e caótica entre o som e o
ruído. Talvez seja pensando a partir dessa perspectiva que Certeau nos
recomenda escutar os sinais e nos aponta que gritos e ruídos escapam da
ordem escrituraria, e nesse caso, também da fala e da música.
O grito - Edvard Munch foi um pintor norueguês que
se especializou em pintar as emoções. Ele dizia que
não era importante pintar as pessoas, mas sim os
seus sentimentos, a dor, o medo, a surpresa, a
paixão, a compaixão e daí por diante.
"O Grito" é talvez o seu quadro mais conhecido e
mostra uma angustia interior descomunal. Não é só
o personagem central que grita. Toda a natureza,
todo o universo ao seu redor é um grito de
desespero. As cores fortes, a paisagem que parece
movimentar-se e envolver o personagem lembra Van
Gogh, que também foi um artista com marcantes
traços de loucura.
Ronaldo Carneiro Leão
http://www.cyberartes.com.br/indexFramed.asp?pagina=indexCuriosidade.asp&edicao=69
O pulso ainda pulsa
O corpo ainda é pouco
Arnaldo Antunes, Tony Bellotto e Marcelo Fromer
No entanto, em busca de conforto, proteção e segurança, ao tentar dar conta
da complexidade, dos paradoxos, das incertezas, da vida cotidiana, acabamos,
quase sempre, caindo na armadilha de tentar engessar sentidos.
Quando escrevemos, falamos, contamos, narramos e montamos uma
seqüência de imagens (incluindo-se aí as palavras, as memórias, as fotos, os
sons, os movimentos, os desenhos, etc., presentes e ausentes), nós
procuramos editar a vida caoticamente vivida, a experiência. Tentamos dar-lhe
um sentido. Esse esforço nos é exigido porque experimentamos uma quase
41
inapreensível, embora frequentemente sentida, sensação de caos, de nãosentido (que não é ausência de sentido, mas talvez multiplicidades possíveis, e
aí o nada e o tudo se tocam, se hibridizam).
O não-sentido, do ponto de vista da comunicação e da educação, é quase
“in/m”: indizível, incomunicável, impraticável, impensável, incompreensível,
inquietante, inaceitável, insuportável, insustentável, impessoal, incorpóreo,
imaterial, inegociável, incontrolável, impossível...
Talvez seja por isso que estamos sempre tentando criar sentido, seja lá qual
for, para dizer, para comunicar, para praticar, para pensar, para compreender,
para aquietar, para aceitar, para sustentar, para personalizar, para corporificar,
para materializar, para negociar, para controlar, para buscar possíveis...
E talvez seja exatamente enquanto dizemos, comunicamos, praticamos,
pensamos, compreendemos, nos aquietamos, aceitamos, suportamos,
personalizamos, corporificamos, materializamos, negociamos, controlamos e
buscamos possíveis, que inventamos e vislumbramos, temporariamente, os
sentidos.
Nunca sou senão aquilo que acredito ser – e isso varia sem cessar,
de modo que, frequentemente, se eu não estivesse aqui para
aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da tarde. Nada
poderia ser mais diferente de mim do que eu mesmo. É unicamente
na solidão que por vezes o substrato me aparece e que atinjo uma
certa descontinuidade essencial; mas então me parece que minha
vida se entorpece, que pára, e que eu vou, literalmente deixar de
ser.
(GIDE, 1983: 63)
Começo a entrever o que chamarei de “tema profundo” de meu
livro. É, será, sem dúvida, a rivalidade entre o mundo real e a
representação que nós fazemos dele. A maneira pela qual o mundo
das aparências se impõe a nós e aquela pela qual tentamos impor
ao mundo exterior a nossa interpretação particular fazem o drama
de nossa vida. A resistência dos fatos nos convida a transpor nossa
construção ideal para o sonho, a esperança, a vida futura, na qual
nossa crença se alimenta de todas as nossas mortificações atuais.
Os realistas partem dos fatos. Bernard é um realista. Receio não
poder entender-me com ele.
(GIDE, 1983: 182)
André Gide publicou os Moedeiros Falsos em 1926 e, segundo Ubiratan
Machado, que escreveu o Roteiro de Gide, incluído na edição do livro em
português, ele teve extraordinária receptividade entre os jovens inquietos de
Paris dos anos 20, os quais viviam um intenso sentimento de frustração e
rebeldia, enquanto emergiam para a vida em meio ao ruído da I Guerra
Mundial. Terminado o pesadelo, tudo lhes parecia sem sentido. Penso que,
como aqueles jovens, nós ainda procuramos desesperadamente por um
42
sentido, mas nada agora pode ser como antes. O conflito destroçara tudo.
(MACHADO in GIDE 1983: VII)
Gide me leva a pensar que, para nos certificarmos que estamos e que
continuaremos vivos, precisamos inventar sentidos. Ele me leva a pensar
também que se sentir deslocado, abduzido, desterritorializado, nos proporciona
uma condição de não-sentido, de continuidade, que entendo, com Bataille
(2004), como um momento de abertura e conexão com o tudo e o nada, um
êxtase, uma fusão, um orgasmo, uma sensação de morte. Como seres
descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente em uma aventura
ininteligível, nós, segundo Bataille, suportamos mal a individualidade perecível
que somos e, ao mesmo tempo em que queremos aumentar a duração da vida,
temos obsessão por uma continuidade perdida. Seria o gozar e o temer esse
entorpecimento da vida, esse desenraizamento do eu e do meu, esse tocar o
além de si, esse deixar de ser e de ter, que nos impulsionaria numa busca
desesperada pelo controle da situação a tentar aprisionar os acontecimentos e
engessar os sentidos?
Como é doce permanecer no desejo de exceder, sem ir até o fim, sem
dar o passo. (...) das duas coisas uma: o desejo nos consumirá ou seu
objeto deixará de nos queimar. Só o possuímos com a condição de que
o desejo que ele nos provoca se apazigúe pouco a pouco. Mas antes a
morte do desejo do que a nossa! Nós nos satisfazemos com uma
ilusão. A possessão de seu objeto nos provocará, sem morrer, o
sentimento de ir até o fim do nosso desejo. Não apenas isso,
desistimos de morrer, nós o anexamos a nossa vida durável.
Enriquecemos nossa vida em lugar de perdê-la.
(BATAILLE, 2004: 222)
Ciro Marcondes Filho diz que, em Lógica do Sentido, Deleuze vincula o
acontecimento ao sentido. Não que o acontecimento tenha sentido, ele é o
sentido. O acontecimento estaria para além da manifestação (a fala), da
designação (o do que se fala) e da significação (o que se fala). O
acontecimento sobrevoa todas as descrições que se fazem sobre ele. O
acontecimento é distinto das diferentes ocorrências singulares e situa-se num
campo transcendental impessoal e pré-individual, que nada tem a ver com o
campo empírico.
As ocorrências singulares podem ser aprisionadas em sua efetuação
momentânea (quer dizer, no momento presente em que se encarna no
indivíduo); contudo, uma contra-efetuação libera o Acontecimento puro outra
vez, fazendo sobrevoar, ficar livre. Por isso, Deleuze fala em acontecimento e
“Acontecimento”, sendo este último a instância de ligação (ou Uno) onde todos
os acontecimentos se comunicam. Ele é essa passagem de uma dimensão
para outra.
Acontecimento, para nós, é “acontecimento mágico”, num sentido
semelhante ao do evento mágico de Deleuze, que vem da mistura dos
43
corpos e lhes atribui sentido. O sentido aparece de um só golpe, quando
coisa e palavra, dentro e fora se atritam.
Ciro Marcondes Filho
http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/espiral/ciberia21.htm - 2006
Bem, na ambigüidade do texto de Marcondes Filho (para mim a melhor
qualidade de todos os textos) aproximo-me, como Deleuze, para tentar pegá-lo
pelas costas e tirar dele o que ele não disse, mas é possível dizer com seu
pensamento: o acontecimento não tem sentido, é o sentido, mas é também o
não-sentido e, por isso, seus possíveis. O Acontecimento seria assim uma
espécie de pluralidade metafísica, que se inscreve no lugar de uma ontologia
do sujeito? Muito complicado isso! Vejamos em que pode nos ajudar Rui
Magalhães.
Pensar significou sempre, na tradição metafísica, uma análise de representações. A
questão consistia no grau de profundidade dessa análise, no ponto em que a análise
se iniciava e no modo como o sujeito procedia perante essas representações. O ponto
de partida era, necessariamente, o sujeito (ou, pelo menos, uma identidade), mesmo
quando o sujeito não era, ainda, uma categoria epistemológica. (...) Deleuze, não
apenas discute a legitimidade deste lugar central ocupado pelo sujeito, como
considera que caracterizar o pensamento como a relação entre um sujeito e um
objecto significa reduzi-lo a um ponto de partida que não é mais do que uma
transposição do senso comum, do modo comum de experienciar os acontecimentos.
(...) Deleuze afirma que o que distingue uma filosofia crítica de uma filosofia não
crítica reside no seu ponto de partida; em vez de se basear na imagem do
pensamento, como o faz a filosofia não crítica, a filosofia crítica «tomaria como ponto
de partida uma crítica radical da imagem e dos "postulados" que ela implica. Ela
encontraria a sua diferença ou o seu verdadeiro começo, não num acordo com a
imagem pré-filosófica, mas numa luta rigorosa contra a imagem, denunciada como
não filosofia». (...) O objectivo de Deleuze é o de constituir um transcendental que não
reconstitua a imagem do empírico.
http://www.humanas.unisinos.br/info/laercio/Projeto/Deleuze...Multiplicidade.
htm (2006)
E então? Continuamos, ao que me parece, com uma metafísica. Que mais tem
a nos dizer Rui Magalhães?
O Campo Transcendental real (como o arquivo em Foucault) não pode ser
pensado como cópia do real (e nisso Deleuze tem plena razão) mas também
não pode ser pensado como ‘lugar’ das singularidades pré-individuais, mas
antes como um espaço instável (em termos temporais e espaciais) constituído
por imagens e fragmentos.
O que há é um sistema de imagens, as suas fracturas, os seus restos e as
relações e não relações entre tudo isso. Eis porque todas as tentativas de
Deleuze são condenadas ao fracasso se por fracasso entendermos a
constituição de uma metafísica. Só pode haver uma ontologia do acontecimento
em relação ao regime de imagem/fragmento/fractura/resto. A imanência pura é
uma ilusão de não transcendência, é o ponto de fuga que permite constituir uma
ontologia alternativa, mas igualmente instalada no ideal. A isso é preciso opor o
44
real que é o espaço onde todas as ontologias e todas as metafísicas se
encontram, se confrontam, originando filosofias.
O campo transcendental real, enquanto domínio de intensidades, abriria,
segundo Deleuze, a possibilidade de um outro pensamento não limitado pelas
categorias nem pela representação.
http://www.humanas.unisinos.br/info/laercio/Projeto/Deleuze...Multiplicidade.htm
Admito, então, que cairemos na armadilha de acabar chegando a uma
metafísica, ou pelo menos a uma ontologia qualquer, sempre que insistirmos
em explicar e entender o que “é” e “qual a origem” de alguma coisa,
principalmente se essa coisa for o acontecimento.
Por outro lado, se pensarmos o acontecimento como um fora caótico e
incorporal, onde, nos limites dos corpos, fragmentos, restos de imagens,
intensidades, atravessamentos e fluxos, pré-individuais e pré-objetivos se
encontram, se chocam, se atritam produzindo sentidos possíveis e impossíveis
de serem previstos e controlados, começamos a suspeitar que o acontecimento
só pode se dar com o cotidiano, com a própria vida, e que, como ensina
Ferraço, qualquer pretensão de engessamento dos sentidos é sumariamente e
todo tempo violada pelos movimentos das redes cotidianas de saberesfazeres
tecidas pelos praticantes, que arrastam e desviam prescrições sociais e
singularidades subjetivas.
O nosso contato cotidiano com o mundo acontece na superfície das coisas e
de suas imagens, no encontro de singularidades nômades e anônimas,
impessoais e pré-individuais, dinâmicas e mutantes. A significação é então
possível pelo acontecimento que a envolve, ela emerge no meio dele, em meio
a ele.
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,
entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem
como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nessa conjunção força suficiente
para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde você vai? De onde você
vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou
repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa
concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático,
simbólico...). Kleist, Lenz ou Büchner têm outra maneira de viajar e também
de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem
terminar. Mas ainda é a literatura americana, e já inglesa, que manifestaram
este sentido rizomático, souberam se mover entre coisas, instaurar uma lógica
do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular o fim e o começo.
Elas souberam fazer uma pragmática. É que o meio não é uma média; ao
contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não
designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal
que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas
margens e adquire velocidade no meio.
(DELEUZE & GUATTARI, 1995:37)
45
Não evoluo, VIAJO.
Fernando Pessoa
Se concordamos com esse posicionamento, o sentido da escola não pode ser
um sentido único e absoluto, abstraído ou pré-existente aos movimentos das
redes de relações, conhecimentos e sentidos que se constituem todo o tempo
entre as praticas e os praticantes do cotidiano, forjados, como em um rizoma,
em meio a atritos entre corpos, incorporais, fragmentos, restos de textos e
imagens, cacos de memórias, pulsações, choques e encontros. Escola
pensada como a casa vazia, um lugar sem ocupantes habitado por ocupantes
sem lugar, onde o movimento engendra acontecimentos e produz sentidos.
E como operam as redes cotidianas de saberesfazeres? Como elas são tecidas
nas práticas cotidianas? Como com elas se tecem em e tecem os
acontecimentos e sentidos?
Talvez, possamos agora começar a pensar em comunicação e em educação, e
principalmente nos modos como essas práticas engendram a tessitura de
sentidos tornando-se, assim, possíveis. Mas que comunicação? Que
educação? Uma comunicaçãoeducação que escapa da intencionalidade e da
objetividade e que se realiza com acontecimentos que rompem a ordem e
introduzem
o
novo?
Trans-subjetiva?
Trans-objetiva?
Uma
educaçãocomunicação para além dos textos prescritivos e das singularidades
subjetivas (FERRAÇO)?
Que Certeau nos ajude a tornar essa questão tratável!
De um lado, a análise mostra antes que a relação (sempre social) determina seus
termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar
onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes
contraditória) de suas determinações relacionais. De outro
lado, e sobretudo, a questão tratada se refere a modos de
operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito
que é o seu autor ou seu veículo. Ela visa uma lógica
operatória cujos modelos remontam talvez às astúcias
multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados, e que, em todo caso,
é ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente.(1994:38)
E que Deleuze nos proteja!
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os
signos são objeto de um aprendizado temporal, não de
um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma
matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a
serem decifrados, interpretados. (2003:4)
A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de
signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre nenhuma
verdade, não se aprende nada, senão por decifração e interpretação. Mas a
pluralidade dos mundos consiste no fato de que esses signos não são do
46
mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifrados
do mesmo modo, não têm com o seu sentido uma relação idêntica. (2003:5)
Assim, a tarefa do aprendiz é compreender por que alguém é “recebido” em
determinado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos
obedecem esses mundos e quem são seus legisladores e seus papas.
(2003:5)
Primeira “profecia” de Deleuze:
O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a “substitui”, pretende valer
por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensamento e ação, e se
declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e vacuidade, embora não se
possa concluir que esses signos sejam desprezíveis. O aprendizado seria
imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles. Eles são vazios,
mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, com que um formalismo
que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos mundanos são
capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo sobre nós
o efeito das pessoas que sabem produzi-los. (2003:6)
Segunda “profecia” de Deleuze:
Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos
vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentirosos que não
podem dirigir-se a nos senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos
mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes
dão sentido. (2003: 9)
Terceira “profecia’ de Deleuze:
As qualidades sensíveis ou as impressões, mesmo bem interpretadas, não são
ainda em si mesmas signos suficientes. Não são mais signos vazios,
provocando-nos uma exaltação artificial, como os signos mundanos. Também
não são signos enganadores que nos fazem sofrer, como os do amor, cujo
verdadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São signos
verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum,
signos plenos, afirmativos, alegres. Signos materiais. (2003.12)
Quarta “profecia” de Deleuze:
Ora, o mundo da Arte é o último mundo dos signos; e esses signos, como que
desmaterializados, encontram seu sentido numa essência ideal. Desde então, o
mundo revelado da Arte reage sobre todos os outros, principalmente sobre os
signos sensíveis; ele os integra, dá-lhes o colorido de um sentido estético e
penetra no que eles tinham ainda de opaco. (...) É por essa razão que todos os
signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias,
47
são aprendizados inconscientes das próprias artes. No nível mais profundo, o
essencial está nos signos da arte. (2003: 13)
Pensando com Deleuze (como me é possível): como corpos sem órgãos,
vibramos e respondemos aos signos que chocam-se com nossos corpos como
ondas nos impelindo à ação e forjando a emergência dos órgãos (faculdades) à
ela correspondentes. Esses órgãos (faculdades), então, situam-se em nossos
corpos, como um esboço intensivo, despertados pelas ondas que lhe provocam
o uso involuntário.
Sensibilidade involuntária, memória involuntária, pensamento
involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem
órgãos a signos de diversas naturezas. (2003:173)
Entendo com isso que, em nossos corpos sem órgãos, sensibilidades,
memórias, pensamentos, enfim, potências intensivas, possíveis e imprevistas,
forjam-se quando nos deixamos tocar pelos signos, os quais seriam, eles
próprios, acontecimentos.
Aterrissando no cotidiano, volto a Certeau, para buscar ajuda a essa tentativa
de compreender como o sentido acontece em nossa vida “comezinha”
atravessada, todo o tempo, por práticas diversas, por intensidades diversas,
signos e acontecimentos que nos violentam com a exigência de uma atividade
leitora.
Ela insinua as astúcias do prazer e de uma reapropriação do texto do
outro: aí vai caçar, ali é transportado, ali se faz plural como os ruídos do
corpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produção é igualmente
uma “invenção” da memória. Faz das palavras as soluções de histórias
mudas. O legível se transforma em memorável: Barthes lê Proust no
texto de Stendhal; o espectador lê a paisagem de sua infância na
reportagem de atualidades. A fina película do escrito se torna um
remover de camadas, um jogo de espaços. Um mundo diferente (o do
leitor) se introduz no lugar do autor.
Essa mutação torna o texto habitável, à maneira de um apartamento
alugado. Ela transforma a propriedade do outro em lugar tomado de
empréstimo, por alguns instantes, por algum passante.(1994:49)
48
Cartaz convocando para
reunião do Conselho de
Escola, confeccionado com
fragmentos de frases
encontráveis no discurso
pedagógico e imagens
recortadas de revistas. Em
práticas como esta, produz-se
textos tomando-se como
empréstimo fragmentos de
textos e de imagens de
outros.
Com os signos da arte, aqueles que transformam todos os outros, Paulinho da
Viola nos faz sentir, poeticamente, como acontecem operações combinatórias
que produzem sentido e que carregam marcas dos praticantes do cotidiano:
Vem
Quando bate uma saudade
Triste
Carregado de emoção
Ou aflito quando um beijo já não arde
No reverso inevitável da paixão
Quase sempre um coração amargurado
Pelo desprezo de alguém
É tocando pelas cordas de uma viola
É assim que um samba vem
Quando o poeta se encontra
Sozinho num canto qualquer do seu mundo
Vibram acordes, surgem imagens
Soam palavras, formam-se frases
Mágoas
Tudo passa com o tempo
Lágrimas
São as pedras preciosas da ilusão
Quando surge a luz da criação no pensamento
Ele trata com ternura o sofrimento
E afasta a solidão
Com meus grifos tomo fragmentos da poesia de Paulinho da Viola para me
reinventar com esse pensamento-tessitura-criação, deixando-me levar num
processo de autopoiese, do modo como defende Guattari (2000).
49
Capítulo 4
Cultura, comunicação, escola, sentidos...
Pra começar
Quem vai colar
Os tais caquinhos
Do velho mundo
Pátrias, Famílias, Religião
E preconceitos
Quebrou não tem mais jeito
Agora descubra de verdade
O que você ama...
Que tudo pode ser seu
Se tudo caiu
Que tudo caia
Pois tudo raia
E o mundo pode ser seu
Pra terminar.
Quem vai colar
Os tais caquinhos
Do velho mundo...
Cartão Postal comprado
no Cine Estação
Botafogo,
Rio de Janeiro.
50
Como Marina Lima e como o cartunista que criou esse desenho, temos, muitas
vezes, a sensação de que tudo a nossa volta está se esfacelando rapidamente.
O que parecia fazer sentido agora não parece fazer mais. O mundo ficou
grande demais, aberto demais, fluído demais, imagético demais, ficcional
demais, fragmentado demais, inseguro demais, incerto demais, efêmero
demais, apressado demais, individualista demais, hedonista demais, intenso
demais.
Tudo ultimamente tem parecido excessivo. Tudo é muito tudo! Excesso de
informação, excesso de possibilidades, excesso de promessas de felicidade,
excesso de probabilidades, excesso de signos, excesso de mercadorias,
excesso de necessidades, excesso de sedução.
Consumo excessivo. Narcisismo excessivo. Competição excessiva.
Ao mesmo tempo em que as coisas parecem sobrar em relação ao tempo, ao
espaço, à nossa vontade e às nossas condições para desfrutá-las, sentimos
sempre faltar alguma coisa. Falta de dinheiro, falta de solidariedade, falta de
segurança, falta de confiança, falta de assistência, falta de responsabilidade,
falta de ética, falta de compreensão, falta de liberdade, falta de criatividade,
falta de sinceridade, falta de lealdade, falta de humildade, falta de tranqüilidade.
Paradoxos desses tempos pós-modernos (embora nem tão pós-modernos
assim!).
Penso que Durkheim se fosse vivo talvez dissesse que nos encontramos em
uma situação de extrema anomia e que esse é o motivo de toda infelicidade na
Terra. Vivemos em um mundo onde tudo parece ter perdido a legitimidade, já
que a todo tempo desfazemos ou ao menos não nos prendemos mais às
referências, às verdades, aos absolutos, às certezas. E, aparentemente, ainda
não compreendemos o que se pôs em seus lugares.
http://www.soundrebel.org/imagenes/noticias/traspirock.j
pg
51
Vou enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que
compreendo o mundo, ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo.
Fernando Pessoa
Não Faz Sentido
Eric Bispo
Mesmo não querendo perceber
A liberdade falsa
De viver em vão...
Esconder-se em frente à TV
O muro que te cerca, te mantém numa vida de nada... uma vida de nada...
Diante da informação
Diante de tanto poder
Bytes de desinformação
A vida sem viver!
NÃO FAZ...
Sentido algum...
Sentado em algum lugar
Prisão do ser comum
Mesmo não querendo perceber
A liberdade falsa
De viver em vão...
Esconder-se em frente à TV
O muro que te cerca, te mantém numa vida de nada... uma vida de nada...
Diante da informação
Diante de tanto poder
Bytes de desinformação
A vida sem viver!
A vida assistida na segurança de uma sala de estar...
O entretenimento da mídia
E a fome insaciável da compra.
Onde esta você?
Com seu dinheiro, suas vontades
Onde esta você?
Onde esta sua liberdade!
NÃO FAZ...
Sentido algum...
52
Como pensar o(s) sentido(s) da escola nessa ambiência de falta de sentido?
Como pensar nos sentidos, se nos acostumamos a buscar e a acreditar que a
realidade está só onde encontramos o sentido?
Talvez pudéssemos tentar começar exatamente por esses inúmeros signos
que a vida contemporânea nos emite, perguntando-lhes:
O que quer uma criança? Do que precisa uma criança?
53
Ainda não tenho respostas. Do que precisa uma criança?
54
Ainda não sei e insisto! Do que precisa uma criança?
55
Por que está tão difícil responder? Do que precisa uma criança?
56
E de que mais as crianças precisam?
57
Talvez nunca consigamos proporcionar às crianças o que elas precisam para
viver, ou pelo menos para sobreviver. Talvez estejamos até lhes oferecendo
apenas o que elas não precisam, ou pelo menos o que não precisavam até a
algum tempo...
58
Lembro de uma crônica escrita por uma de minhas alunas, do curso de
publicidade, para a aula de Comunicação e Educação. Ela soube imaginar,
melhor do que eu, como pode se sentir uma criança nesse mundo capitalista
constituído com a exigência da informação, do consumo de seus produtos e do
uso de suas tecnologias.
A criança do futuro
O menino acordou. O dia estava quente, o céu nublado, a paisagem cinza era o que ele via da
janela do seu quarto. Não tinha que estudar nesse dia então ele podia se permitir ficar deitado
mais um pouco na cama e ler seu livro preferido. Era um livro grande com muitas figuras. Na
verdade o “livro” pertencia a sua avó e não era um livro, mas um encarte publicitário de uma
escola que funcionou nas redondezas há uns 50 anos mais ou menos. Ela ia jogar o encarte no
lixo para reciclagem mais o menino quis ficar com ele, em sabia direito por que.
As cenas pareciam tão mágicas para o menino que, apesar de sua avó garantir serem
verdadeiras, ele mal podia acreditar que tivesse existido um local como aquele um dia.
Salas de aula repletas de crianças, todas na mesma idade, sentadas em carteiras
escolares iguais e enfileiradas paralelamente. Um homem simpático sorrindo de forma
até paternal para os alunos, como se todos fossem um pouco seus filhos – minha avó
59
fala que ele era professor. Um grande quadro pendurado na parede. Neste quadro palavras
escritas com um objeto branco. A letra era bonita, uma tal de cursiva toda cheia de voltinhas.
Lá no fundo da sala tinha uma menina com a mão levantada e o dedo indicador apontado para
cima. Porque será que ela está fazendo aquilo? O pai lhe disse que
pesquisou no banco de dados de seu flutuador móvel e descobriu que este
era o sinal para pedir uma bebida chamada cerveja. Ele achou a
informação um pouco confusa, depois perguntaria para sua avó.
Em outra foto apareciam jovens praticando esportes ao ar livre, outros
comendo, outros apenas sentados conversando.
Ao fechar o encarte o menino sonhou em ter alguém com quem compartilhar estas coisas,
alguém com quem pudesse conversar, trocar idéias, perguntar coisas que podem parecer
bobagens para os adultos mas que outro menino de sua idade entenderia. Queria ter a
companhia de alguém em carne e osso. Estava cansado de conversas pelo computador, de
brincadeiras virtuais, cyber festas e outras novidades tecnológicas que surgiam todos os dias
para entreter as crianças em seus lares. Mas isso jamais aconteceria. A violência e a poluição
impõem muitas dificuldades às pessoas para saírem de casa. Lazer, amigos, trabalho, compras,
tudo é feito pela Rede.
Irmãos, nem pensar. As pessoas agora só têm um filho. Quando têm. Filho dá muito trabalho,
toma muito tempo, dá muita despesa. As crianças são educadas em casa pelos próprios pais.
Existem muitos recursos para isso – equipamentos que permitem vivências virtuais de História,
geografia, Física, Química. Jogos de computador que estimulam o raciocínio matemático.
Programas educativos para campo de ensino, e são muitos, milhares. Ele mesmo já tem uma
preferência, quer ser biólogo especialista nas patas traseiras das formigas doceiras da Patagônia
Argentina. É uma área muito concorrida, mas, enfim, é disso que ele gosta, por isso seus
estudos são todos dirigidos para esse fim.
Ele acha muito bom ter acesso a todos esses recursos, mas, muitas vezes, sente falta de brincar
com crianças da sua idade. Ahhhh! Como ele sonha em entrar no
“mundo do encarte”. Sua avó diz que as crianças da sua época
ficariam encantadas pele tecnologia a que tem acesso e que ele
deveria ser muito agradecido por tudo que tem. Ela diz que na época
dela tinha racismo, diferenças sociais gritantes, as crianças iam para
a escola enquanto os pais trabalhavam fora, as pessoas não sabiam
das coisas como agora. Mesmo ouvindo tudo isso, ele continua
achando muito difícil viver nesse mundo, principalmente para uma
criança.
Gabriela Carvalho Schuler, 30 de março de 2006.
Para além de toda informação e tecnologia, continuamos produzindo, cada vez
mais, desigualdades. Entretanto, começo a perceber que em alguns lugares
ainda estão acontecendo algumas coisas importantes, onde se pode sentir,
sobretudo, a presença do outro. Talvez sejam algumas daquelas ilhas de
estabilidade...
60
Impressiono-me como signos silenciosos e visuais (sorrisos, feições, acenos,
movimentos corporais, gestos) emitidos pelas crianças das fotos me afetam
provocando uma sensação de leveza e até de alegria ao pensar a escola.
Trago, então, as fotos que fizemos na EMEF Álvaro de Castro Mattos e, de
repente, ao vê-las, me surpreendo com o mesmo sorriso no canto dos lábios.
Uma espécie de conexão, de comunicação diferente estabeleceu-se nesse
vácuo. Uma comunicação entre signos? Um novo sentido, que se interpõe com
outros sentidos, na iminência da ausência do outro, do abandono, do
isolamento?
61
não cabemos em mim ou em
você
como toda gente tem que não
ter cabimento
para crescer
Arnaldo Antunes
Deixo registradas neste texto, antes de deletar da minha vida e do meu PC, as
premissas de Anísio Teixeira que me deixaram engasgada logo no início do
curso de doutorado.
A democracia progressiva e livre exige homens conscientes, bem informados e
capazes de resolver os seus problemas. A escola mais do que informar e ensinar,
deve preparar a criança para ser boa, serviçal, operante e forte.
Uma fala que, apesar de parecer estranha, é bem consoante com o projeto de
urbanização e industrialização do Brasil, com a emergência do rádio, com a
transformação do jornal e do cinema em meios que comunicação que se
pretendiam de massa e com o posicionamento de muitos intelectuais de sua
época, que, como ironiza Renato Ortiz (2001), experimentavam um
modernismo sem modernização.
Maria Immacolata Vassalo Lopes (1997) conta que foi entre os anos 30 e 50 do
século passado que constitui-se o mercado cultural no Brasil. Seria quando
ganham realce os processos políticos-culturais do nacionalismo e do
populismo. A industrialização exigia um ethos urbano, que se caracterizava por
um estilo de vida específico e por um “clima mental” distinto do que era
predominante em áreas não urbanas. O projeto de desenvolvimento implicava
na assimilação desse clima. Os meios de comunicação de massa, de acordo
com ela, desempenhariam dois papéis nessa época: efeito-demonstração do
estilo de vida urbano e agência de socialização (subjetivação?) antecipada.
Acreditamos que, de acordo com a proposta de Teixeira, esse deveria ser, para
ele, também o papel da escola.
62
À época do governo militar, as mídias e as indústrias culturais brasileiras
experimentaram um período de grande crescimento (e, até onde eu me lembro,
a escola pública também, apesar de tudo...), especialmente nos anos 70.
Segundo Vassalo Lopes, o governo militar aprofundou o projeto
desenvolvimentista associado ao capital internacional iniciado em 1956, no
governo de Juscelino Kubitschek.
Esse processo (...) é parte integrante das articulações globais do
capital transnacional que repõem, em outras bases as questões
econômicas, mas também políticas e culturais, da dependência e da
autonomia dos países periféricos. (1997: 22-23)
Conforme a abordagem de Vassalo Lopes, o governo militar teria conseguido a
proeza de combinar dois aspectos, não necessariamente antagônicos, mas que
funcionaram a contento para a administração, apesar dos incontáveis prejuízos
sociais: a organização de um Estado autoritário e o desenvolvimento
econômico. Esse processo, segundo a pesquisadora, trará conseqüências
importantes para o setor cultural no Brasil.
Paralelamente à expansão do mercado material interno, o Estado
implanta a infra-estrutura tecnológica do sistema de
telecomunicações (sistema de satélite, Telebrás, Embratel) e sistema
básico de microondas (possibilidade de integração nacional por TV
em cores – 1972), que permite pela primeira vez falar
adequadamente na consolidação de um mercado cultural nacional.
(1997: 23)
O mercado cultural passa a ser então um lugar privilegiado de mediação do
Estado nas suas relações com a sociedade civil. Nem apocalíptica, nem
integrada, Vassalo Lopes nos adverte que este fato não deve induzir à
constatação equivocada sobre a ausência de conflitos e contradições. Para ela,
o que caracteriza o mercado cultural brasileiro nessa fase é sua organização
pelo Estado e sua produção em base industrial.
O avanço da indústria cultural vai acontecer então em bases de concentração
regional (as redes estão localizadas praticamente no eixo Rio - São Paulo) e
dos oligopólios (a maioria das empresas do setor tende a possuir diversos
veículos de comunicação). Ainda assim, o desenvolvimento da indústria cultural
brasileira, segundo a pesquisadora, desmentiu os prognósticos realizados
pelos teóricos, ou seja, a inescapável situação de dependência da produção
cultural dos países centrais.
O mercado interno (programas de TV, discos, cinema, publicidade e revistas)
se expandiu na década de 80, substituindo os produtos importados. Essa
produção nacional, realizada a partir do investimento de capital estrangeiro, se
organiza conforme o modelo transnacional que rege o setor da comunicação de
massa e passa a redefinir a posição do país no mercado de cultura, não mais
em uma situação colonial.
63
Para Vassalo Lopes, a indústria cultural brasileira é complexa, avançada e
dinâmica, porém a participação das classes populares nesse processo tem sido
escamoteada e simplificada.
Contrapondo-se a essa “transparência” de usos do massivo há a
opacidade e as ambivalentes formas com que as classes
subalternas incorporam o massivo aos seus modelos de vida e às
suas concepções de mundo. Formas como refuncionalizações,
resistências, cumplicidades, dominações, conflitos, deformações,
etc. Aqui não há familiaridades e o modo cultural do “outro” exige
instrumentos adequados para ser captado e entendido. (1997:27)
Com Bhabha (1998) e Certeau (1994) podemos pensar que, se há
ressignificações, resistências, conflitos, cumplicidades e refuncionalizações
na recepção (não só dos conteúdos e formas midiáticas,
como também dos conteúdos e formas escolares), as
condições para isso estão na ambigüidade, na
ambivalência e na contingência das práticas complexas
e paradoxais dos que estão na posição de usuáriosreceptores e também na ambigüidade, na ambivalência
e na contingência das práticas complexas e paradoxais
dos que estão na posição de emissores (ambas as
posições não são fixas, mas alternantes, superpostas e
enredadas com relações muito mais amplas, para além
de uma ação educativa-comunicativa específica), gerando entre-lugares em
que emergem, das negociações, traduções e combinações, diferentes pontos
de vista e posicionamentos entre os praticantes da cultura. Estes espaços
possibilitam uma comunicação-educação que se realiza por meio do encontro
e que não visa o consenso. Certeau me convida a pensar que a escola pode
se constituir em um desses muitos entre-lugares possíveis, dos quais nos fala
Bhabha.
O poder cultural não está mais localizado em uma escola. Ele infiltra-se em
qualquer teto e qualquer espaço, com as telas da televisão. Ele “personalizase”. Introduz por toda parte os seus produtos. Faz-se íntimo. Isso muda a
posição da escola. No passado, representante do estado pedagogo, ela tinha
como contrapartida e adversária a família, que exercia o papel de um
controle. Todas as noites, a volta das crianças para casa permitia um
reajustamento familiar com relação à cultura ensinada na escola. Atualmente,
a escola encontra-se em uma situação praticamente inversa: com relação à
família invadida pela imagem televisiva, ela pode se tornar o lugar de controle
onde se aprende o modo de utilização de uma informação até então fornecida
fora da escola. No passado, a escola era o canal da centralização. Hoje, a
informação unitária vem pelo canal múltiplo da televisão, da publicidade, do
comércio, dos cartazes etc. E a escola pode formar um núcleo crítico onde os
professores e os alunos elaboram uma prática própria dessa informação
vinda de outros lugares. (CERTEAU, 1995-38)
64
Capítulo 5
A paranóia da comunicação
De acordo com Kraepelin, a Paranóia é uma entidade clínica
caracterizada, essencialmente, pelo desenvolvimento insidioso de um
sistema delirante duradouro e inabalável, mas, apesar desses delírios, há
uma curiosa manutenção da clareza e da ordem do pensamento, da
vontade e da ação.
Ballone GJ - Psicoses - in. PsiqWeb, Internet, disponível em:
http://www.psiqweb.med.br/psicoses.html atualizado em 2002.
Susanne Langer observa que certas idéias surgem com tremendo
ímpeto no panorama intelectual. Elas solucionam imediatamente
tantos problemas fundamentais que parecem prometer também
resolver todos os problemas fundamentais, esclarecer todos os
pontos obscuros. Todos se agarram a elas como um “abre-te
sésamo” de alguma nova ciência positiva, o ponto central em termos
conceituais em torno do qual pode ser construído um sistema de
análise abrangente. A moda repentina de tal grande idée, que exclui
praticamente tudo o mais por um momento, deve-se, diz ela, “ao fato
de todas as mentes sensíveis e ativas se voltarem para explorá-la.
Utilizamo-la em cada conexão, para todos os propósitos,
experimentamos cada extensão possível de seu significado preciso,
com generalizações e derivativos”. (GEERTZ, 1989:3).
O “abre-te sésamo” ao qual se refere Geertz, a palavra mágica que em certo
momento parecia explicar e solucionar todos os problemas era “cultura”.
Explorada, criticada, estendida, deslocada, generalizada e ressignificada, a
idéia de “cultura” (e seus derivativos) foi definitivamente incorporada ao nosso
repertório e ainda vem sendo usada, com as mais variadas interpretações e
nos mais diversos contextos, para explicar o mundo, bem como para alimentar
e para apaziguar, às vezes até para conter, quase todos os nossos conflitos e
desvios cotidianos.
65
Expressões como “diferença cultural”, “falta de cultura”, “capital cultural”
“cultura de massa”, “cultura institucional”, “herança cultural”, “choque cultural”,
“códigos culturais”, “políticas culturais” e “diálogos entre culturas”, entre tantas
outras, habitam nossos discursos, nossas lutas e nossos projetos, tentando dar
conta ao mesmo tempo das nossas similitudes e das nossas diferenças, das
nossas fronteiras e das nossas travessias, da nossa necessidade de
compartilhar sentidos e da impossibilidade de um entendimento total.
Mais recentemente, a aposta em uma mundialização da cultura, e por tabela
em uma identidade planetária, prometia nos levar a comprovar definitivamente
a eficácia do conceito para resolver todos os conflitos do planeta. Entretanto, e
paradoxalmente, no contexto da globalização, com a reivindicação do direito à
diferença cultural, a idéia generalizada de “cultura” deixa de ser uma solução e
passa a ser um problema para a homogeneização em escala mundial. A
palavra perde seus efeitos mágicos, ideológicos e mercadológicos e, nesta
condição/aplicação que visa homogeneidade e consenso, passa a ser, cada
vez mais, substituída por outra: a bola da vez é a palavra “comunicação”.
Profeta (antecipador e/ou agenciador?) de nossa pós-modernidade
tupiniquim, Chacrinha já anunciava lá pelos idos dos anos 80: “quem não se
comunica, se trumbica”. E parece que nós todos aprendemos a concordar
com ele. Foi mais ou menos nesse período que os cursos de Comunicação
Social começaram a se multiplicar no Brasil. A arte virou tecno-ciência, a zona
foi se tornando organizada e as práticas comunicativas foram se tornando
coisa de comunicólogos profissionais.
Com o desenvolvimento das mídias e das tecnologias da informação, no
contexto da globalização do mercado e da transnacionalização do capital, uma
exigência de comunicação total (veloz, informacional, em fluxos, à distância,
objetiva, que torna tudo visível, mas de forma espetacular) iniciada com o
surgimento dos meios de comunicação foi intensificando-se e invadindo quase
todos os espaços e tempos de nossas vidas e, ao mesmo tempo, tendo o
reconhecimento de sua eficácia reduzido à transmissão e à recepção, agora
planetária, de dados e conteúdos, ou seja, de informações.
Nas últimas décadas, a idéia de “comunicação” (e seus derivativos), cada vez
mais associada à divulgação de informações, parece ter se tornado a nova
chave para diagnosticar e solucionar todos os problemas da humanidade.
Outras expressões tornaram-se, então, corriqueiras no nosso dia a dia: “o que
falta é comunicação”, “tudo se resolve com comunicação”, “a comunicação é
a alma do negócio”, “tudo comunica”, “comunicação organizacional”,
“assessoria de comunicação”, “meios de comunicação”, “redes de
comunicação”, “vasos comunicantes”, “ações comunicativas”, “políticas de
comunicação”. Todo mundo acha que precisa e todo mundo quer se
comunicar.
66
Essa foto veiculada por email circulou na web em
2005, com o título:
Computador na Escola
Pública.
Na composição, a máquina
de escrever ocupa o lugar
do teclado, a TV do monitor
e o ferro de passar do
mouse.
A ironia e o simulacro
sinalizam que a presença e
a ausência do computador
na escola não podem mais
ser ignoradas (ESTEBAN,
2001).
“Comunicação” virou ideologia, tecnologia, mercadoria, paradigma, conforme
seus variados e combinados usos e interpretações. Não é raro nos depararmos
com a expressão “sociedade da comunicação” (bem como outras expressões
associadas à lógica operacional e ao regime semiótico das mídias: “sociedade
de controle”, “hiper-realidade”, “idade mídia”, “era da informação”, etc.) para
nomear e atribuir significados à contemporaneidade.
A sociologia, as ciências econômicas,
políticas e jurídicas, parecem, no atual
estado das coisas, insuficientemente
armadas para dar conta de uma tal
mistura de apelo arcaizante às
tradições culturais e entretanto de
aspiração à modernidade tecnológica
e científica, mistura que caracteriza o
coquetel subjetivo contemporâneo.
(GUATTARI, 1992:14)
É perceptível que a ambiência comunicacional instituída pela agenda das
mensagens midiáticas e pelos modos de subjetivação que as tecnologias da
comunicação e informação engendram, modificou nossa vida cotidiana em
suas diversas dimensões, produzindo reordenamentos culturais. Outras formas
de relações sociais (como as audiências compartilhadas de rádio e televisão e
os grupos do “orkut”, chats e msn) e de subjetividade (como o ouvinte, o
telespectador e o internauta) articulam-se às formas agora ditas “tradicionais”
67
(a escola, a família, o trabalho, o aluno, o pai, a mãe e o professor, por
exemplo).
Os computadores e o orkut
fazem parte do cotidiano dos
praticantes da escola Álvaro de
Castro
Mattos, eles estão
presentes, estão lá e cá. Mas,
que práticas e processos são
engendrados com os usos
desses recursos e tecnologias?
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lvaro de Castro Mattos
descrição: Essa comunidade e para todos, assim como eu, jah
estudaram nessa maravilhosa escola, q e o Alvaro de
Castro Mattos...
categoria: Alunos e Escolas
dono: Fabrício Amorim
tipo: pública
fórum: não-anônimo
idioma: Português
local: Brasil
criado em: 16 de Julho de 2005
membros: 263
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quem lembra do prof. Lys Paulo de geografia??
††Flávia††
Alguem da época de 1984-1987?
Marcos
quem lembra da professora de (ciencias)Margarete.
Carla
Andrea
Quando voce estudou no Alvaro???
Fabrício
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2000
Fabrício
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orkut in english | Sobre o orkut | Privacidade | Termos de uso
Entre uma
multiplicidade de usos
possíveis, os alunos
da oitava série
pesquisam na
Internet, durante uma
aula de Artes,
informações sobre
artistas
contemporâneos e
imagens de suas
obras. Além das
pesquisas, eles
copiam e colam
imagens dessas obras
no programa paint,
onde interferem nelas,
melhor dizendo, onde criam outras imagens a partir delas.
68
Outras operações de usuários (Certeau) das
tecnologias da informática são inventadas
e/ou praticadas no laboratório pedagógico,
criado para dar apoio a alunos com
“deficiências visuais”. A escola ACM tem três
alunos como tipos diferentes de problemas de
visão, e as alternativas encontradas pela
professora que coordena o laboratório buscam
se adequar a essas singularidades. Para
Fernanda, que é totalmente cega, livros e
textos
são
escaneados,
jogados
no
computador, convertidos por meio de um
programa específico para o sistema braille e
depois impressos em uma impressora
especial.
Fernanda tem 13 anos, está na sétima série e estuda no ACM desde a
primeira. Além do computador, a professora do laboratório cria outros materiais
exclusivamente para ela. Fernanda me disse que não tem dificuldades, que
está feliz e que se sente muito bem na
escola. Ela adora ler e já leu mais de 100
livros.
Natália é outra aluna usuária do
laboratório. Ela tem, segundo a professora,
uma visão bem limitada, ou seja, enxerga
muito
pouco.
Natália
está
sendo
alfabetizada em sala comum, mas conta
com a ajuda do computador. Para isso, a coordenadora do laboratório inventou
um teclado especial. Ela e desenhou e recortou letras e números bem grandes
em pedaços de papel e colou em cada tecla, de modo que Natália pudesse
enxergar. Na hora da escrita, o computador é configurado com uma fonte
também grande. Natália está alfabetizada e o ACM tem um computador tão
diferente, que, no mundo inteiro, não existe nenhum igual.
Muniz Sodré (1996, 2002) chama a intervenção da “telemática” (palavra que os
teóricos franceses usam para dar conta da hibridização das telecomunicações
com a informática) nas nossas instituições e relações cotidianas de
midiatização. Trata-se, segundo ele, de uma forma diferente de relação, uma
69
“tecnointeração” que se processa por meio de e com o telefone, o computador
e os meios de comunicação, entre outros recursos comunicacionais.
Quando fiz essa fotografia no refeitório da escola Álvaro de Castro Mattos, a televisão estava
desligada, mas as crianças resolveram ligar o aparelho para tirar a foto. Eles realizaram um
roteiro para me mostrar os meios de comunicação na escola. Quando ligaram o aparelho, a TV
estava sintonizada no SBT então eles mudaram de canal e botaram na TV Globo, para “sair bem
na foto” (expressão muito usada para nos gabarmos quando “nos demos bem”, quando fomos
bem vistos, bem avaliados em alguma ocasião). Mesmo com, e apesar de, toda a encenação ali
criada, o menino preferiu olhar para a câmera a olhar para a TV. Desvio em relação ao que foi
por eles previsto e/ou integração à lógica da visibilidade agenciada pelas mídias? Provavelmente
“tudo ao mesmo tempo agora”. Não basta ver, é preciso ser visto! Só quem é visto e é
reconhecido “existe”? Já que é assim, também quero sair na foto, melhor, quero “sair bem na
foto”. Porque não? “Sou visto, logo existo!”. Mas não foi só isso, terminada a foto, as crianças
desligaram a TV e correram para o pátio para jogar bola: – “A gente pode ficar vendo TV na hora
do recreio, mas a gente prefere brincar, televisão a gente vê em casa, quando está sozinho!”.
Uma história sobre usos da TV e do vídeo no ACM
Essa eu não presenciei. A história me foi contada pela professora de Geografia com uma
expressão de perplexidade e desânimo. Ela me disse que estava trabalhando o tema
industrialização com as sétima e oitava séries. Depois de quatro aulas expositivas e da leitura do
livro didático, exibiu para os alunos na sala de vídeo o filme Tempos Modernos, de Charles
Chaplin (EUA, 1936).
A seguir a professora disse ter aplicado uma avaliação, na qual solicitava uma crítica do filme.
70
Trata-se do último filme mudo de Chaplin, que focaliza a vida urbana nos Estados Unidos nos
anos 30, imediatamente após a crise de 1929, quando a depressão atingiu toda sociedade
norte-americana, levando grande parte da
população ao desemprego e à fome.
A figura central do filme é Carlitos, o
personagem clássico de Chaplin, que ao
conseguir emprego numa grande indústria,
transforma-se em líder grevista
conhecendo uma jovem, por quem se
apaixona. O filme focaliza a vida na
sociedade industrial caracterizada pela
produção com base no sistema de linha de
montagem e especialização do trabalho. É
uma crítica à "modernidade" e ao
capitalismo representado pelo modelo de
industrialização, onde o operário é engolido
pelo poder do capital e perseguido por suas idéias "subversivas".
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=181
A professora contou que ficou horrorizada com os textos produzidos pelos alunos. “- Os meninos
não sabem interpretar, não sabem fazer uma crítica, não conseguem fazer associações...”.
Infelizmente ela já tinha devolvido os trabalhos e por isso não pôde me mostrar. Fiquei curiosa e
pedi que ela me dissesse como foram os comentários. Segundo me contou, foram do tipo: “Achei
legal, tem a ver com um monte de coisa que a gente vê hoje”: gostei, não gostei e por aí vai, sem
que houvesse uma análise do conteúdo do filme, uma associação com o que estudaram nas
disciplinas. Um texto pelo menos ela guardou bem:
- Achei uma merda. Filme preto e branco e ainda por cima mudo.
A professora, com razão, estava muito preocupada, e não me ocorreu na hora nada que
pudesse ajudá-la a pensar e compreender a situação. Horas depois, ao lembrar a história, me
veio o trocadilho: Talvez a dificuldade esteja em pensar tempos modernos enquanto vivemos
outros contextos nesses tempos pós-modernos. Como lidar com essa condição?
Piririm, piririm, piririm
Alguém ligou pra mim! Quem é?
(Eles cantam, melhor, a gente canta, com Bola de Fogo)
E o celular, hein? Ainda dá para imaginar a vida sem ele?
71
Na tentativa de reorganizar, normatizar ou
de produzir comportamentos desejáveis na
escola, foi realizada uma campanha pela
disciplina. Os cartazes da campanha foram
feitos no computador e depois de
impressos colados nas paredes.
Mas o que me chamou atenção foi a
necessidade de refazer as normas na
escola. A resistência, como disse Foucault
(1995), não é a negação, a recusa das
normas, ela as antecede. É a possibilidade
da liberdade, da invenção, de fazer de
outros modos que leva à instituição de
normas. Se foi proibido o uso de celular, isso aconteceu porque ele já estava
lá, freqüentando as aulas com a garotada. Sem querer, neste momento, avaliar
que comportamentos são mais adequados, o modo de funcionamento da
normatividade está colocado. Celular, bola, chiclete e comida nas
dependências da escola não pode mais! Pelo menos para os alunos. O que
não quer dizer que eles aceitaram as restrições passivamente, sem
problematizá-las, sem negociá-las. A pedagoga foi intimada pelas crianças a
também parar de mascar chiclete.
Para além da constatação da
vigência do modelo disciplinar
(Foucault - 1987), posto em
prática em instituições fechadas
em plena pós-modernidade, me
ocorreu que esse modelo se
articula com o controle a céu
aberto, por modulação, via
recursos e tecnologias da
comunicação e da informação,
como advertiu Deleuze (1992).
Parece
loucura,
mas
percebemos
quase
que
imediatamente os mecanismos
por meio dos quais a vigilância é exercida na escola com vistas à
homogeneização e à ordem, pelo menos em suas dependências, como os
horários, calendários, prazos, uniformes, normas, rotinas, inspeções, lugares
pré-determinados, etc. No entanto, demoramos mais a nos dar conta dos
artefatos oferecidos pelo mercado e que usamos cotidianamente para, todo
tempo, controlarmos uns aos outros, como o celular, o oktut, o msn, o bip, o email, as câmeras de segurança, a moda, a camiseta da oitava série, isso sem
falar nos rastreadores de carros e pessoas, web-camêras e outras coisitas
mais.
O fato de constatar a presença desses mecanismos não significa aceitarmos
que estamos sujeitados a eles, mas sim que é partir dessa condição que
podemos pensar uma outra estética de existência. Ah! Só para terminar essa
72
intervenção: a escola proíbe o celular, exige o cumprimento do uniforme e das
tarefas solicitadas pelo professor,
tanto em casa como na sala de
aula,
num
caderno
bem
caprichado,
mas
faz
sua
campanha no computador com
ilustrações que destacam o que é
proibido e ainda convoca o aluno a
se manter “conectado”. Essas são
as ambivalências dos discursos da
autoridade (Bhabha, 1998) que
acabam constituindo entre-lugares
em que se forjam desejos,
entendimentos e sentidos diversos.
Paradoxos de uma sociedade
complexa!
Duas histórias sobre usos de celulares
Foi a pedagoga do turno vespertino (5ª a 8ª) quem me contou. A primeira delas
aconteceu na sala de aula de uma turma de sétima série, matutino, no primeiro semestre
de 2006. Segundo ela, houve uma briga entre um aluno e um professor. O menino contou
aos pais, que o teriam orientado a provocar outra discussão e gravar em vídeo pelo
celular sem que o professor notasse. E assim foi feito. No dia seguinte pai, mãe e filho
levaram a gravação à direção que convocou o Conselho de Escola. Ainda de acordo com
a pedagoga, “não houve conseqüências para o professor” porque o Conselho considerou
a gravação um “ato ilícito”. A família foi repreendida e concordou em voltar pra casa sem
registrar queixa, deixando tudo como estava. Tentei conversar sobre a tal briga, o conflito
em questão. Mas a pedagoga preferiu não entrar em detalhes, pois o problema ético a
ser debatido tinha sido o uso indevido e ilícito do celular.
A outra história se passou no banheiro feminino, no segundo semestre de 2006,
envolvendo dois meninos e uma menina também da sétima série, mas do turno
vespertino. Segundo conta a lenda que correu a escola toda (e eu cheguei a ouvir muitas
fofocas na época, embora não tivesse presenciado a cena), a menina teria sido
encontrada nua pela faxineira que foi limpar o banheiro, enquanto um dos meninos tirava
fotos. Apesar dos boatos, a pedagoga me contou que a menina não estava nua e sim de
shortinho e sutiã. Foram todos levados à coordenação e, depois de alguma resistência e
diante da evidência (o celular foi confiscado como prova do crime), eles admitiram que
faziam fotos para botar no Orkut. Os pais foram chamados e os três foram suspensos.
Apesar da proibição e da vigilância, os celulares estão por toda parte, com os pequenos
e com os grandes. São aparelhos de todos os tipos e alguns até bastante sofisticados. A
pedagoga me disse que os celulares só não são tolerados na sala de aula, pois a escola
entende a necessidade dos alunos se comunicarem, especialmente com a família.
73
Ainda que tenha ficado claro para mim as relações e disputas de poder colocadas nas
decisões tomadas nas duas situações anteriormente narradas, observo que inventar
modos de lidar com usos imprevisíveis, mas possíveis, de artefatos e tecnologias de
comunicação e informação é prática cotidiana dos alunos e educadores da escola, que
assim vão negociando, instituindo e desconstruindo normas, valores e procedimentos.
A mediadora da sala de informática, por exemplo, negociou com a escola a assinatura do
velox (eles ainda utilizam o link da prefeitura para entrar na internet), que deve começar a
operar neste segundo semestre de 2007. Ela me disse que pretende discutir e
experimentar com os alunos modos interessantes de usar o orkut, o msn, blogs e
fotologs.
Marc Augé (2004) vale-se de sua trajetória como antropólogo para inventar o
conceito de “cosmotecnologia”, através do qual ele procura discutir a condição
contemporânea em que o ordenamento e o sentido do mundo parecem ser
produzidos na ambiência cotidiana das redes de comunicação.
Como explicar o que é “cosmotecnologia”? Bem, precisamos partir da idéia de
“cosmologia”, que, segundo Augé, constitui o conjunto das representações do
universo, do mundo e da sociedade que os membros de um grupo constroem
com o propósito de apontar a todos os pontos de referência para conhecer
seus lugares, saber o que lhe é possível e impossível, autorizado e proibido.
Estes pontos de referência podem escrever-se materialmente no espaço,
gravar-se em utensílios e instrumentos da vida cotidiana, ou eventualmente na
própria carne. Os mitos desenvolveriam estas cosmologias e os ritos as
aplicariam. As vidas humanas, em princípio, se ordenariam sobre o modelo
assim definido.
De qualquer forma, apesar de não midiatizados, penso que os modos de
funcionamento das cosmologias, como os explicitados por Augé, dependem
também de algum tipo de comunicação. Vejamos o que observei na escola
Álvaro de Castro Mattos.
A sinalização e organização dos
espaços
buscam
criar
referências que tentam instituir
e comunicar a ordenação da
ocupação de lugares e as
formas de relações permitidas.
74
Temos aqui dois exemplos de demarcações de territórios. Lugares
diferenciados para meninas e meninos, como no caso dos banheiros feminino e
masculino, e para professores e alunos,
cujos lugares estão delimitados pelo uso
do risco no chão da quadra. Podemos
pensar
essas
marcações
como
tentativas de comunicar a ordenação do
espaço.
Para Augé, quanto mais forte for a
adesão a esses modelos menor será a
liberdade, mas maior o sentido; os
indivíduos não teriam outra escolha a
fazer a não ser o que lhes foi prescrito
ou assinalado; saberiam o que têm de
fazer e o que não devem fazer. Seu
mundo careceria de liberdade, mas
estaria pleno de sentido.
De acordo com o antropólogo, desde o
século XVIII ruímos esse mundo. As
religiões nos dão sentido (seu próprio
sentido) para conceder liberdade, ou
seja, a privatizam. A ciência não nos
reconforta, ao contrário nos confronta
com a evidência de nossos limites.
Ao contrário, as aplicações da ciência, as tecnologias, sem dúvida porque seu
desenvolvimento depende de programas e decisões políticas e econômicas,
pretendem facilitar a gestão da vida cotidiana, rodear-nos de evidências fáceis
e artefatos que funcionam como uma segunda natureza: a cosmologia
tecnológica, a “cosmotecnologia”.
A cosmotecnologia, diferente das cosmologias tradicionais, é, segundo Augé,
induzida – mais que expressada – pelos seus instrumentos, na medida em que
as mensagens que esses transmitem e a imagem que difundem não cessam
de reforçá-la.
As cosmologias são reconfortantes, nos tranqüilizam, mas para isso tentam
aniquilar o acontecimento (mortes, epidemias, guerras, etc.) a partir de meios
de interpretação que os integram na ordem do comum. É necessário encontrar
os culpados, não para castigá-los, mas para restabelecer a ordem quebrada.
Em nossa época os meios de comunicação e informação, compara Augé,
procuram tratar o acontecimento da mesma maneira, buscando descobrir uma
cadeia de causas que explicam sua aparição, mostrando, ao mesmo tempo,
que ele está controlado, que não voltará a produzir-se, pelo menos nas
mesmas condições.
75
Podemos assim imaginar o que é essencial para a felicidade no mundo
contemporâneo: a televisão, que ordena o tempo, e a viagem, que ordena o
espaço. Apesar dessa aparente evidência, Marc Augé reconhece que o
indivíduo que apenas consome, transmite, comunica e recebe informações,
que reage às evidências das imagens e às imagens do presente, o indivíduo
sorridente das imagens publicitárias ou dos programas televisivos de
variedades, não existe e não pode existir. Entre as lembranças infiéis e
projetos incertos, a ignorância do que é e a espera do que lhe depara no
futuro, a individualidade, como a felicidade, é uma hipótese, jamais verificada
por completo (AUGÉ, 2004 - a tradução é minha).
Porque estão conscientes disso, considera ele, os indivíduos lutam contra a
solidão, tentam viver o dia a dia com tenacidade e perseverança, com um tipo
de empenho que expressa alguma coisa como um desejo de felicidade e de
sentido.
Augé adverte que o sentido do qual pode falar o pesquisador é o sentido que
percebem os demais e o sentido que percebem os demais é a maneira em que
percebem sua relação com os outros. Há sentido se tal relação pode formularse, se está instituída. Assim, indícios observados na organização do espaço,
na constituição das pessoas e nas maneiras de tratar com os acontecimentos
aludem às relações de sentido e funcionam como chamada à ordem social.
AGENCIAMENTO E RESISTÊNCIA
Pois bem, a esse respeito, gostaria de contar uma história que vivenciei na
Escola Álvaro de Castro Mattos, quando pude perceber e, simultaneamente,
interceder para que essa chamada à ordem, quando ela não faz sentido, nem
sempre seja acatada ou necessária, pondo-se em seu lugar uma autoorganização.
Era dia do estudante e as pedagogas do turno da tarde decidiram organizar
uma apresentação do coral formado por alunos do noturno para comemorar a
data. Tudo preparado. O pessoal do coral bem ensaiado e bem vestido, ou
melhor, vestido de preto, para dar um ar mais solene à ocasião. Som testado,
microfone ligado, organizadores a postos. Que viessem as professoras com
suas crianças, mas que viessem em ordem! Ordem, silêncio e calma eram as
mensagens comunicadas insistentemente ao microfone. Os lugares onde
deveriam se acomodar também eram indicados. Todos deveriam sentar no
chão, atrás da linha amarela traçada na da quadra. Pequenos sentados na
frente, os maiores atrás.
E lá vieram eles, “zoando” uns aos outros e fazendo uma tremenda “zoeira”.
Pela primeira vez o barulho não me incomodou, muito pelo contrário. O barulho
indefinido de gritos, gargalhadas, cochichos e outros ruídos inclassificáveis, era
o sinal mais perceptível do contentamento e da expansão da potência da
liberdade que os invadiam ao se sentirem fora do controle da sala de aula. Sem
76
parar de falar e gritar, alguns vinham correndo e outros, ao contrário,
caminhavam bem devagar para não acompanhar as filas, logo desfeitas,
organizadas pelos professores.
Pouco a pouco eles foram se acomodando no chão da quadra. Os pequenos
na frente, os maiores... ah, os maiores foram bem mais difíceis de controlar!
- Genteeeeee, silênciooooo! 8A, 8B, vamos sentar atrás do risco amarelo,
senão não podemos começar.
Primeiro eles sentaram num palco de alvenaria que não estava sendo utilizado.
- Genteeeee, vamos descer daí, senão a gente não pode começaaaaar.
Depois de muitos apelos eles se acomodaram na quadra, atrás de uma linha,
mas não da linha amarela como havia sido determinado. Eles encontraram
outra linha e acabaram ficando de lado e até de costas para o lugar em que o
coral iria se apresentar.
Como já havia se perdido muito tempo, mas muito tempo mesmo, com essa
tentativa de organização, decidiu-se começar a apresentação e considerar que
os meninos já estavam no lugar em que deviam ficar. A minha função nessa
história toda era fazer as fotos, não só para a minha pesquisa, mas também
para a memória da escola. Vejamos
então o que eu consegui captar.
Como já havíamos visto antes,
pequenos na frente, sentados atrás da
linha amarela que os separava da
pedagoga e dos artistas, ou seja, do
coral que iria se apresentar. Logo que
vi aquela formação pensei: puxa vida,
é a escola que forma o público, mas o
público da mídia, o público do
espetáculo. Aqui essas crianças não
estão praticando a escola como um espaço público, em que elas seriam os
atores, mas sim um espaço de público, em que se inscrevem apenas na
posição de espectadores. Mas felizmente essa é uma situação que não
acontece sempre e quando acontece dura pouco.
77
Agora vamos ver a mesma situação por
outros ângulos. Pequenos na frente,
maiores atrás, mas muito atrás, lá no
fundão da quadra. Dá pra ver? Aliás, os
adolescentes sempre reclamam que os
professores discriminam a galera do
fundão, o que é até compreensível,
porque eles não são moleza não. Mas, de
qualquer forma, as negociações estão
acontecendo o tempo todo e, de uma
forma ou de outra, eles estão aí, sentados
na quadra. De uma forma ou de outra
mesmo, alguns de frente para o
coral, outros de lado e outros até de
costas.
O coral começou a cantar e a
maioria dos alunos a acompanhar.
Não todos, mas a maioria.
Conforme a apresentação ia prosseguindo e
engatando uma seqüência de músicas
folclóricas e pouco conhecidas das crianças,
sempre antecedidas de alguma explicação
didática, o interesse foi diminuindo e o
público começou a se desconfigurar.
E eu ali, sentada no chão, no meio das
crianças, estava achando tudo lindo! Não havia nem passado pela minha
cabeça que uma suposta desordem
pudesse estar colocando o evento em
xeque.
Todo mundo parecia estar gostando.
Não ouvi ninguém reclamar. Ali, na
platéia, a garotada estava se
divertindo como podia. Ora ouvindo e
prestando atenção na música, ora
conversando com os colegas, ora
mudando de lugar, ora rindo, ora
escrevendo, ora lendo, ora brincando,
ora zoando, sem parar...
No dia seguinte fui à escola acertar detalhes de uma oficina sobre meios de
comunicação que eu iria ministrar para alunos, professores e pais, incluída na
programação da semana do estudante, e fiquei sabendo que a atividade talvez
78
fosse cancelada porque a bagunça do dia anterior tinha provocado a
necessidade de uma reflexão sobre a validade da programação. Ouvi com
espanto os comentários.
- Eu fiquei até com vergonha. O coral, você, todo mundo vendo aquela
desorganização toda!
- Pois é, não vale a pena organizar nada não. Parece até que eles queriam é
que não tivesse nada programado, pra eles ficarem aí soltos, pra brincar...
Tentei pensar antes de falar alguma coisa. Primeiro pensei: pode ser até que
eles não quisessem nada programado mesmo, que quisessem ficar soltos,
correr, gritar, brincar, e o pior (ou melhor, não sei!) é que eu não achava nada
estranho nisso. Era uma espécie de transgressão necessária para dar vazão à
energia contida na concentração necessária ao regime da sala de aula. Mas aí,
me veio à cabeça um discurso que achei mais oportuno, e cuidadosamente
falei:
- Olha gente, as fotos estão aqui comigo. Vamos olhar juntas, mas eu não
achei que tivesse havido bagunça, não achei que tivesse acontecido nada
demais, nada que justifique essa preocupação. Sei que vocês entendem mais
disso do que eu, mas olhando as fotos eu fiz outra análise. Vamos ver?
79
- Então gente? Olhando essas fotos
vocês acham que isso é bagunça?
Eles estão até muitos organizados!
Do modo deles, é claro. Sei lá. Pra
mim parece mais auto-organização!
Funcionou como uma “deixa”, todo mundo tirou um peso das costas e
emergiram várias interpretações.
- É, olha só, os maiores pra lá, os menores pra cá; meninos com
meninos, meninas com meninas; tem
também menino com menina, mas da
mesma idade; tem gente até fazendo o
dever de casa!
Aproveitamos a situação e conversamos
sobre a teoria do caos, sobre as
oportunidades
desperdiçadas
ou
aproveitadas, os ruídos, os “atratores” e a
impossibilidade, e até mesmo a inutilidade, da
imposição da ordem autoritária, do sentido
único.
80
Foi tão proveitosa a conversa que, além da oficina ter sido mantida, eu fui
incentivada a incluir o assunto da ordem e do caos na conversação. E assim
foi, num sábado de manhã, que uma sala cheia de professores discutiu
comunicação, educação e o meu projeto de pesquisa.
Voltando à Augé e aproveitando o episódio acima narrado, faço minhas a
interrogação e a resposta dele: O que é uma imagem? É o substituto das
pessoas. Imagem exterior dos Outros, que é a única coisa que se conhece
deles (2004: 89). Com Rincón (2002) acrescento que, em nosso atual entorno
audiovisual, as imagens, provavelmente tontas, estúpidas, banais,
odiosas, óbvias e torpes, são tudo o que temos para significar.
Viver na paisagem audiovisual é marcar a subjetividade a partir de e segundo
os usos de imagens que realizamos. Em conseqüência disso, Rincón propõe
que para compreendermos a paisagem audiovisual temos que encontrar
formas flexíveis, estratégias adaptativas e discursos nômades que permitam
explicar um universo habitado pela diferença, pela pluralidade e pela perdida
aura da originalidade.
Concordando com Rincón, devo discordar, pelo menos em parte, do
desenvolvimento do pensamento de Augé. Segundo o antropólogo, a imagem
do outro substitui cada vez mais o interesse em conhecê-lo e identificá-lo como
pessoa. O turismo, a propaganda, a televisão, os novos meios de comunicação
marcam o conhecimento ou o esforço do conhecimento pela imagem e pela
ilusão de acreditar conhecer. Meu sentimento de mundo, entretanto, me diz
que isso não é um privilégio da experiência midiática, é uma condição de
possibilidade do conhecimento que acontece todo o tempo na nossa vida
cotidiana apesar de nossa vontade e necessidade de conhecer.
Entendo até que as atuais tecnologias da informação e da comunicação hiperdimensionam os deslocamentos, os dezenraizamentos, os simulacros, as
reconstituições, modificando condutas, costumes, formas de cognição e
sensibilidades. Penso inclusive que esse excesso, essa hiper-realidade, nos
possibilitou olhar para trás e desconfiar de outros modos mais sutis de
“imaginar” que nos levaram à ilusão de conhecer. Acredito, no entanto, que se
tentarmos sair das aparências, da superfície, do que se vê, do que se ouve, do
que se toca, do que se sente e do que é possível pensar e significar para
buscar alguma coisa mais profunda como a essência das pessoas e das coisas
nós não encontraremos nada.
Além disso, não creio que seja necessário, desejável e possível identificar o
outro. Conhecer o outro não é identificá-lo (como uma coisa classificável,
definitiva e acabada), mas apenas viver com ele, constituir-se com ele, deixarse tocar por ele, produzir sentido com ele, comunicar-se com ele, conviver. As
formas de viver com outros, no entanto, foram, sem dúvida, ampliadas.
Penso, portanto, que a imagem (não como representação, mas talvez como
signo capaz de gerar sentidos) e a presença do outro não são excludentes,
penso até que se sobrepõem. Uma é condição de existência da outra. O que
conhecemos efetivamente do outro além do nosso sentimento do outro, da
81
nossa percepção do outro, dos signos que nos são emitidos pelo outro e por
nós semantizados, do sentido que atribuímos ao outro, da forma como nos
deixamos afetar pelo outro, da relação que estabelecemos com o outro? É
claro que não se trata de conviver com pessoas de papel ou espectros
formados por microondas, mas apenas de reconhecermos que nossas relações
se estabelecem sempre na superfície entre os corpos e os signos.
Munis Sodré (2002) defende que os meios de comunicação e os hiper-meios
implicam a emergência de um “bios virtual”, uma “terceira natureza”, ou seja,
na ampliação por meio da telemática dessa superfície de contato com o outro,
e também de reconhecimento do outro. Para ele, essa condição caracteriza-se,
no contexto da globalização de capitais e informações, por uma teledistribuição
de pessoas e coisas, em que o nomos da contemporaneidade não caberia
mais na metáfora da rede, e sim na velocidade e na fluidez dos processos. A
charge abaixo procura dar conta de como, de uma forma ou de outra, as
tecnologias da comunicação modificam modos de vida, forjando valores,
interesses, desejos, necessidades, modos de cognição e de relações sociais
nos dias atuais.
Charge de Amarildo publicada em A Gazeta no dia 19 de
junho de 2006, após a vitória da seleção brasileira de
futebol sobre a Austrália por dois a zero, na Copa do
Mundo.
http://www.chargeonline.com.br
Sodré destaca que a idéia de comunicação, antes associada à vinculação
social, ao ser-em-comum, estaria atualmente associada à aceleração do
processo circulatório de produtos informacionais. Para ele, o desenvolvimento
dos sistemas e das redes de comunicação transforma radicalmente a nossa
82
vida cotidiana, incluindo-se aí as mudanças nas relações de trabalho, as novas
formas de sociabilização, o lazer, o exercício do poder e a subjetividade,
instituindo o infocontrole, a datavigilância e a espionagem global. É o que
Sodré chama de novo tipo de “formatização da vida”, implicando em uma outra
dimensão da realidade e, portanto, em outras formas de perceber, pensar e
contabilizar o real.
A comunicação instantânea, simultânea, global e à distância, institui o “tempo
real” como o agora e o espaço virtual como o aqui, tornando possíveis novos
regimes de visibilidade pública. No lugar da idéia de “representação”
simplesmente (com recursos de linguagem e conceitos) forja-se a idéia
“representação apresentativa”, que, para ele, instaura a cultura do simulacro.
Dessa forma, o espaço público tradicional animado pela política e pela
imprensa escrita é afetado, devendo agora interagir com o espaço público
virtual, simulativo, telerreal. Na articulação entre esses espaços, que
constituem a realidade cotidiana contemporânea, se constituem e se
movimentam os sujeitos.
Para Augé (2004) as mídias instituem uma agenda sobre o que devemos
pensar e fazer, um veículo
reforça e retro-alimenta o
outro, numa tautologia, cuja
finalidade principal é exercer
sobre nós uma ação
tranqüilizadora por aniquilar
o potencial dos
acontecimentos.
A escola Álvaro de Castro Mattos decorada para a Copa do Mundo.
As imagens e mensagens envolvem o planeta, o rodeiam, o cercam,
registrando acontecimentos que não existiriam sem elas, ao menos
não em tal escala, expressando a exigüidade de nosso espaço e
suscitando em nós a sensação de plenitude de sentido; aí radica seu
papel cosmológico: contam tudo, dão conta de tudo, explicam tudo,
mas essa totalidade só remete a elas mesmas, como o mito remete
ao mito. Estas tautologias, estas redundâncias, são por natureza
tranqüilizadoras; nos submergem no mundo do mesmo, nos
protegem do acontecimento e da contingência, nos impõem a
83
evidência do presente. (AUGÉ, 2004: 126 – minha tradução, com
todos os riscos de erro)
Augé admite a existência de vida para além da mídia, contudo, para ele como
para Sodré (2002), a midiatização está irremediavelmente incorporada ao
nosso cotidiano. O antropólogo destaca um acontecimento que vivenciou
durante a Copa do Mundo em 1998 na França, quando após a final vitoriosa
para a seleção francesa o povo foi às ruas comemorar. Era como se a tela não
bastasse para conter tanta felicidade. Foi um instante estranho, os
comentaristas esportivos falavam e ninguém os escutava. As pessoas estavam
nas ruas e os demais existiam. Um momento de felicidade ambíguo, distante
da televisão, mas desencadeado por ela. Como estamos percebendo isso e
como estamos nos virando nessa condição? O próprio Augé e o cartunista que
criou a charge reproduzida na página a seguir, nos dão algumas pistas.
Não é fácil determinar se são
felizes por causa da televisão ou
apesar
dela;
com
ela
conseguem, e sem dúvida
teriam
dificuldade
para
consegui-lo sem ela. Ela se
imiscui em sua relação, em sua
intimidade. Porém eles a iludem
parcialmente a cada dia, no
trabalho, e a cada ano, quando
saem em férias. (AUGÉ, 2004:
23-24, tradução minha, com
risco de erros)
A
D
Disponível em: http://www.chargeonline.com.br/
A charge de Iotti, publicada do jornal Zero Hora, de 19/06/2006, nos convida a perceber as
astúcias e as táticas (CERTEAU) desencadeadas nas práticas pela sobrevivência por aqueles
que nos acostumamos a considerar apenas como público passivo e consumidor. Entre as
mensagens da torcida aos jogadores (e também às câmeras de TV, porque no final das contas
é a elas que os torcedores visam), uma se destaca, não só por ironizar o “fenômeno”, mas
especialmente porque pode funcionar para trazer algum ganho ao torcedor. Outro cartaz me
chamou atenção: “Galvão fica quieto”. Trata-se sim de uma tautologia, um veículo referindo-se
ao outro, mas também ironizando outro, ou seja, as mídias prescrevem sobre o que devemos
pensar, mas não o que e como devemos pensar.
Como temos visto, assim como outras instituições sociais, também as escolas
estão afetadas pelas agendas e pelas lógicas de operação das redes
comunicacionais. Professores, alunos, funcionários, gestores e pais
estabelecem relações por meio dos ou com os meios e tecnologias da
comunicação e da informação. De acordo com Martín-Barbero, a singularidade
84
do mundo contemporâneo “passa pelos espaços virtuais que em outros
tempos, teciam os sonhos e as representações, e agora tecem também as
redes de comunicação” (2004: 261)
Independente de suas necessidades ou vontades, as
escolas vêm sendo pressionadas pelos administradores
globais da política e do mercado a trabalharem com
parafernálias tecnológicas que até bem pouco tempo lhe
eram estranhas.
Apenas 5% da população mundial acede à Internet
Apenas 5% da população mundial têm acesso à Internet, denunciou,
ontem, o presidente da comissão nacional da UNESCO, José
Sasportes, considerando que no desenhar de uma sociedade que se
diz de informação é urgente alargar este valor.
http://tribulandia.blogspot.com/archives/2005_04_01_tribulandia_archive.html
Charge: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/index2.asp?edi=310
Claro que essa aceleração atual é enganosa, pois encobre aquele longo processo que da
revolução industrial, a das máquinas, conduziu à dos signos, a cibernética, e desta à
informática, a revolução eletrônica, à digital. De todos os modos é a rapidez de sua
difusão que nos coloca em uma situação nova,
caracterizada por dois traços: a ausência de vínculos entre
tecnologia e heranças culturais, o seu “se instalar”, não em
qualquer região e país como elemento exógeno às
demandas locais, isto é como dispositivo de produção em
escala planetária, como conector universal no global; e
num segundo lugar sua forte incidência na divisão
internacional do trabalho, transtornando de uma só vez as
condições de produção e as relações centro/periferia ao
efetuar uma rearticulação das relações entre países
mediante uma descentralização que hibrida as culturas.
(...) Então isso significa que nossa inserção na nova mundialidade técnica não pode ser
pensada como um automatismo de adaptação socialmente inevitável mas, bem melhor,
como um processo densamente carregado de ambigüidades, de avanços e de
retrocessos.
(MARTÍN-BARBERO, 2004: 262-263)
MIDIATIZAÇÃO: A ORDEM É INCLUIR
A globalização e a midiatização reconfiguram também o sentido de cidadania,
que passa a ter contornos mundiais, o que possibilita a formação de redes a
partir de interesses políticos e sociais de grupos marginalizados e/ou
estigmatizados, mas também a formação redes a partir de interesses
mercadológicos. Em quase todos os casos, a ordem, quase nunca
questionada, é “incluir”. Mas incluir em quê?
85
A inclusão digital, ou seja, o acesso às tecnologias da comunicação e da
informação vem sendo defendida, assim como o acesso à educação pública,
como um direito de todos, o que, a essas alturas, tornou-se incontestável,
porém esse direito é, ao mesmo tempo, o reconhecimento da exigência de
comunicação e de informação que o gera e, pior do que isso, sua garantia
tornou-se uma das principais medidas da “qualidade” da educação na
contemporaneidade.
Os organismos internacionais vinculados ao desenvolvimento social, as
autoridades governamentais, as corporações de telecomunicações, os
fabricantes de equipamentos, as organizações não governamentais e os
movimentos sociais, estão todo o tempo, através das mídias discursando em
favor da inclusão digital como direito cidadão e como fator de desenvolvimento.
86
Em junho de 2006, a Rede Gazeta, o maior conglomerado de comunicação do
Estado, realizou em parceria com a Secretaria Estadual de Educação (Sedu), o
3º Seminário de Inclusão Digital do Espírito Santo, com o tema “Sociedade da
Informação – Conhecimento e Desenvolvimento. Por ocasião do evento, os
veículos da rede (emissoras de TV, emissoras de rádio, dois jornais e
jornalismo online) deram ampla cobertura ao tema, agendando, assim, a
urgência e a relevância de se discutir a questão, não só para professores, mas
para toda a sociedade. Para além da crítica do uso instrumental das mídias
pelas estruturas do poder e do mercado, o que precisamos considerar
atualmente é que as mídias fazem parte, e até constituem, essas estruturas.
Vejamos, por exemplo, o que o site da Prefeitura Municipal de Vitória, destaca
no espaço em que contabiliza os números da SEME – Secretaria Municipal de
Educação (2006).
Seme em Números
Confira as principais estatísticas da Secretaria Municipal de Educação:
Educação Infantil - CMEI
Matrícula inicial e número de turmas
Número de alunos com necessidades especiais
Número de professores por escolaridade
Número de computadores e mesas pedagógicas
Ensino Fundamental - EMEF
Número de alunos com necessidades especiais
Número de computadores e laboratórios de informática
Matrícula Inicial
http://www.vitoria.es.gov.br/secretarias/educacao/numeros/seme_em_numeros. htm
87
Na página da SEME, mais destaque do que essas estatísticas (segunda
chamada no alto à esquerda do site – junho de 2006), só mesmo o perfil da
Secretária de Educação, Marlene de Fátima Cararo (primeira chamada).
A autorização para o ensino de informática e/ou o reconhecimento do direito
(e/ou da exigência?) à informatização das escolas da Rede Municipal de Vitória
foram promulgados com um decreto da Câmara de Vereadores do Município,
que data de dezembro de 1998.
LEI Nº 4789
Institui o ensino de informática nas escolas da Rede Pública Municipal.
O Prefeito Municipal de Vitória, Capital do Estado do Espírito Santo, faço saber
que a Câmara Municipal aprovou e eu sanciono na forma do Art. 113, inciso III,
da Lei Orgânica do Município de Vitória, a seguinte Lei:
Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a instituir
o ensino de informática nas escolas da Rede Pública Municipal, a ser ministrado no
primeiro grau.
Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
Palácio Jerônimo Monteiro, em 10 de dezembro de
1998.
Luiz Paulo Vellozo Lucas
Prefeito Municipal
Ref. proc. 443.5407/98
/ccmt
http://www.vitoria.es.gov.br
A introdução dos equipamentos e do ensino de informática nas escolas
municipais de Vitória, obviamente, não deve ser pensada fora do contexto da
globalização dos mercados, da transnacionalização do capital, da
mundialização da cultura e da miditiazição das sociedades e dos projetos para
a área do Ministério da Educação.
Também não podemos pensar a utilização das tecnologias da comunicação e
da informação nas escolas sem considerar as polêmicas e os debates travados
na academia entre aqueles que defendem, aqueles que rejeitam e aqueles que
ponderam e relativizam seus usos na Educação.
88
Para além dos interesses políticos e econômicos locais, articulados aos
interessantes mais amplos dos administradores dos recursos globais (Yúdice,
2004), tanto no que se refere aos lucros imediatos com a venda de
equipamentos como em relação à necessidade de formar públicos e futuros
consumidores, também não podemos desconsiderar a disputa de poder que
vem se travando entre especialistas dos campos de conhecimentos e práticas
da Comunicação e da Educação em busca da hegemonia na gestão da área de
interseção que se forja, a “Educomunicação”.
De qualquer forma, passados oito anos da promulgação da lei, a Secretaria de
Educação de Vitória exibe com orgulho em seu site (Junho de 2006) os
números do processo de informatização das escolas de ensino fundamental.
Unidade de Ensino
Adão Benezath
Adevalni S. Ferreira de Azevedo
Alberto de Almeida
Álvaro de Castro Mattos
Alvimar Silva
Anacleta Schneider Lucas
Aristóbulo Barbosa Leão
Arthur da Costa e Silva
Castelo Branco
Ceciliano Abel de Almeida
Éber Louzada Zippinotti
Edna de Mattos Siqueira Gáudio
Eliane Rodrigues dos Santos
Elzira Vivacqua dos Santos
Francisco Lacerda de Aguiar
Heloísa Abreu Júdice de Mattos
Irmã Jacinta Soares de Souza Lima
Izaura Marques da Silva
José Áureo Monjardim
José Lemos de Miranda
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Lions Vitória Centro
Marechal Mascarenhas de Moraes
Maria José Costa Moraes
Marieta Escobar
Mauro Braga
Moacyr Avidos
Neusa Nunes Gonçalves
Orlandina D’Almeida Lucas
Otto Ewald Junior
Padre Anchieta
Prezideu Amorim
Prof. Maria Stella de Novaes
Prof. João Bandeira
Prof. Vercenílio da Silva Pascoal
Rita de Cássia Oliveira
São Vicente de Paulo
Suzete Cuendet
Tancredo de Almeida Neves
UFES
Zilda Andrade
Profª Regina Maria Silva
Quantitativo de Laboratório de
Internet
computadores
Informática
1
15
X
X
23
X
31
X
X
22
X
X
10
X
X
25
X
X
24
X
X
23
X
X
11
X
14
X
X
22
X
X
11
X
X
23
X
X
25
X
X
24
X
X
10
X
X
23
X
X
23
X
X
12
X
X
24
X
X
1
23
X
X
26
X
X
23
X
X
24
X
15
X
X
13
X
X
8
X
X
24
X
X
25
X
X
23
X
X
15
X
X
2
11
X
X
23
X
X
9
X
X
24
X
X
22
X
X
12
X
X
25
X
X
1
89
Paulo Roberto Vieira Gomes
Ronaldo Soares
1
-
Só um ano depois e a reboque da autorização para o ensino de informática,
dentro do mesmo contexto, chegou a vez da “velha” e “renovada” imprensa
comercial garantir oficialmente seu espaço na sala de aula.
LEI Nº 4863
Dispõe sobre a introdução da leitura de Jornais e Revistas como atividade
curricular do ensino fundamental nas Escolas da Rede Municipal.
O Prefeito Municipal de Vitória, Capital do Estado do Espírito Santo, faço saber
que a Câmara Municipal aprovou e eu sanciono, na forma do Art. 113, inciso III,
da Lei Orgânica do Município de Vitória, a seguinte Lei:
Art. 1º. Fica autorizado o Poder Executivo
Municipal, através da Secretaria Municipal de Educação a incluir como atividade
curricular, a leitura de jornais e revistas.
Parágrafo único. A inclusão referida no “caput”
será realizada de acordo como os procedimentos estabelecidos pela legislação
federal e estadual e ficará condicionado à disponibilidade de carga horária, sem
prejuízo de suas atividades curriculares normais.
Art. 2º. As despesas da execução da presente Lei
correrão por conta das dotações orçamentárias próprias.
Art. 3º. O Poder Executivo regulamentará a
presente Lei.
Art. 4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
Palácio Jerônimo Monteiro, em 16 de abril de 1999.
Luiz Paulo Vellozo Lucas
Prefeito Municipal
90
http://www.vitoria.es.gov.br
Além dos computadores, revistas e jornais, outros meios, recursos, tecnologias
e lógicas da comunicação de massa, independente de alguma legislação
específica, também estão presentes nas escolas da rede pública municipal de
Vitória.
Uma análise dessas presenças foi realizada por meus alunos de Publicidade e
de Jornalismo, que se surpreenderam ao realizar visitas (em 2006) a diversas
escolas da PMV com o propósito de debater o uso dos meios de comunicação
na educação. Abaixo alguns dos registros fotográficos feitos na Álvaro de
Castro Mattos com a perspectiva resultante das discussões promovidas por
futuros produtores da indústria da comunicação e da informação.
Logo na entrada, a placa com o nome da
escola chamou atenção. Ela obedece a uma
padronização, uma programação visual que
busca produzir e garantir publicamente a
unidade, a assinatura e a identidade da rede,
constituída
por
unidades
escolares
heterogêneas, com arquitetura, tamanhos,
tipos de construção, recursos, professores,
diretores e condição sócio-econômicacultural dos alunos e das comunidades bem
diferenciados.
É a “marca” que informa (e conforma) aos
moradores, aos estrangeiros, aos cidadãos,
aos evadidos, aos marginalizados e aos
eleitores da cidade que as escolas da
Prefeitura estão por todos os lugares.
É o “símbolo” que permite a identificação de cada uma das escolas como
pertencente ao sistema municipal de educação.
Ainda na linha “comunicação chapa-branca”, o
olhar dos estudantes de comunicação foi
atraído pela placa de inauguração da reforma
e ampliação da escola, concluída em
dezembro de 1998.
Lá estão cravados os
nomes do prefeito, da
secretária de Obras e da
secretária de Educação responsáveis pela obra.
91
Entre
outras coisas, a placa funciona como propaganda política da administração da
época.
Essa, aliás, é uma estretégia que ao que tudo indica deve funcionar bem. Uma
outra placa informa sobre nova reforma e uma revisão elétrica e hidráulica,
realizada em 2002 e, é óbvio sob outra administração. O prefeito e o secretário
de Educação da época também deixaram seus nomes marcados nas paredes
da escola.
Ao percorrerem as dependências da escola nossos pesquisadores-detetives
foram atrás das pistas, dos índicios, que pudessem atestar a presença e o uso
dos meios e recursos comunicacionais nos diversos contextos cotidianos da
instituição.
O aparelho de som foi flagrado
num canto da coordenação
pedagógica, onde em alguns
momentos de descontração
e/ou de pesquisa escuta-se
música e notícias.
Devido à portabilidade e à
multifuncionalidade do aparelho
(rádio, CD e cassete) ele pode
eventualmente ser encontrado
em outros lugares também,
como nas salas de aula e na
sala dos professores.
Além do som, a sala das
pedagogas está equipada
com outros recursos para a
produção de comunicação e
informação.
Em um computador para uso
exclusivo da coordenação são
confeccionados e arquivados
cartazes, manuais, informes e
circulares.
Um mural fixado à parede
funciona como suporte para
todo tipo de comunicados.
Telefone e fax também compõem os
recursos mínimos necessários para o
sistema
de
comunicação
da
administração escolar sediado na
coordenação pedagógica, mas que
não se limita a ela.
92
Temos aqui um outro recurso
fundamental para a rede de
comunicação da escola: o
sistema de sonorização.
O sistema de som é muito
utilizado na entrada dos alunos
tanto na hora do relaxamento,
quando se ouve música, como
pelas
pedagogas
para
a
organização das filas.
É utilizado também para a
execução do Hino Nacional,
todas às quintas-feiras, nas festas e em diversas ocasiões especiais.
Temos ainda os televisores, no
refeitório,
na
sala
dos
professores e na sala de vídeo,
que conta também com um
aparelho de videocassete.
No pátio um telefone público
para
resolver
qualquer
problema de comunicação dos
alunos com a família ou
qualquer outra pessoa. Mas é
preciso ter o cartão.
93
No laboratório de informática computadores conectados à Internet para uso dos
alunos e professores.
No mais, revistas,
livros, cartazes e
avisos.
Além da Álvaro de Castro Mattos, os
estudantes de comunicação visitaram
escolas municipais e estaduais em
Vitória e em outros municípios do
Estado. Em quase todas as escolas
visitadas foi registrada a presença de
meios e recursos de comunicação.
Interessante
é
observarmos
a
multiplicidade
de
olhares
e
94
posicionamentos dos alunos, e em alguns casos de educadores por eles
entrevistados, sobre essa presença e modos de uso.
Reproduzo a seguir alguns trechos dos relatórios de pesquisa dos alunos de
publicidade e jornalismo sobre os meios de comunicação na escola.
- A escola demonstra uma grande criatividade em utilizar o seu espaço para comunicar-se com
os alunos de maneira simples e direta. Foram observados murais no pátio com informativos dos
últimos acontecimentos e novidades que acontecerão, placas indicando o que cada ambiente
representa, como, por exemplo, o auditório, série das salas, coordenação, banheiro feminino e
masculino, além do informativo educativo que prega a importância da preservação do extintor de
incêndio. (...) O alarme da escola informa a hora de entrar e formar fila na quadra de esporte,
onde ocorre um momento de reflexão com música tocada nas caixas de som. (...) Cada evento
escolar é registrado pela câmera filmadora e fotográfica que a escola possui. (...) Isso demonstra
que mesmo sem uma grande estrutura financeira e pedagógica, e com um pouco de criatividade
e força de vontade, a escola através de seus funcionários consegue se comunicar muito bem
com os pais e alunos, além de fornecer uma infra-estrutura básica para que os alunos também
aprendam a se comunicar, não importando o meio.
Cyntia, Juliana, Marielle, Rafael e Suélli – EMEF Éber Louzada Zippinotti – Jardim da Penha,
Vitória.
Liza, Júlia, Monique, Heloyse e Carolina – EMEF José Lemos de Miranda - São Pedro, Vitória.
- A escola possui 22 computadores, 3 televisores de 29”, 2 vídeos-cassete, 4 rádiogravadores, 3 murais de recado, 4 retro-projetores, 1 caixa amplificadora com microfone, 2
mimeógrafos, 1 episcópio, 1 máquina de fotocópia, 1 aparelho de fax, 1 telefone, 1 orelhão
e 3 impressoras. A escola possui também assinatura dos jornais A Gazeta e A Tribuna e
de revistas como Nova Escola, Ciência Hoje das Crianças e Ciência Hoje. A biblioteca
dispõe de um acervo literário, didático e para-didático. O acervo multimídia conta com
uma coleção de DVD com assuntos pedagógicos para o professor e para alunos,
enciclopédias em DVD, fitas de vídeo, entre outros. O uso desses equipamentos é
praticamente diário entre professores, entretanto, são valorizadas também as aulas
expositivas em sala de aula. Nas reuniões de planejamento interno os professores são
incentivados a utilizar os meios de comunicação sempre que a técnica for a mais indicada
para o estudo de determinado conteúdo.
Lucas Monteiro – EEEFM Zumbi dos Palmares – Cidade Continental, Serra.
- Ao contrário do que se pensa, as escolas da rede pública de ensino de Vitória possuem todos
os meios de comunicação de uma escola particular, inclusive com programas de computadores
modernos. A escola que visitamos conta com assinatura dos jornais A Gazeta e A Tribuna,
cartazes informativos, um retro-projetor, mural nas salas e nos corredores, mesa de som com
microfone, DVD, duas televisões, telefone, fax, biblioteca, aparelho de som, 20 computadores
com acesso à internet e uma rádio funcionando.
Edna, Verônica e Érika – EEEFM Maria José Costa Moraes – São Pedro, Vitória.
- A escola precisa considerar a questão dos meios de comunicação como parte integrante
do processo educativo integral do novo aluno-cidadão, visando construir uma sociedade
democrática. O primeiro meio de comunicação encontrado na escola foi o mural que
95
aparece no pátio (sendo para toda a escola), na sala dos professores e nas salas de aula.
No mural do pátio são colocadas informações sobre tudo que está se passando no
mundo. No mural da sala dos professores são colocadas informações de cursos
importantes para a formação e avisos de reuniões e festas da escola. Os murais das salas
de aula passam informações que dizem respeito a cada turma. O quadro negro é um dos
meios de comunicação mais importantes da escola, pois é nele que os professores
passam as matérias e tarefas que os alunos devem estudar. Os alunos recebem livros,
com fotos e exemplos sobre as matérias, que em um quadro negro nunca poderia ser
passado. O livro é um meio de comunicação muito importante, pois com ele o aluno pode
estudar em casa. A escola possui um avançado laboratório de informática para preparar
melhor os alunos para o mundo moderno. Tem um auditório com TV, vídeo e som, onde
os alunos assistem vídeos educativos e ouvem músicas que complementam as aulas e as
apresentações dos trabalhos escolares. A escola tem também uma rádio interna, que
transmite recados nas salas de aula, onde têm caixas de som, e músicas na hora do
recreio. Os alunos passam mensagens uns para os outros.
Lílian Sperandio EEEFM Irmã Maria Horta – Praia do Canto, Vitória.
- A escola fica num antigo colégio alugado pela prefeitura de Vitória para funcionar como anexo
da escola Padre Anchieta em dezembro de 2005. O prédio está em obras (abril de 2006) e
totalmente sem recursos para atender aos alunos. Nosso grupo foi atendido pela pedagoga
Rossiene Santos. A escola não tem biblioteca ainda e dispõe apenas de uma TV e um DVD. O
anexo não possui nenhum computador para os alunos, mas a escola Padre Anchieta possui uma
sala de informática com 20 computadores e acesso à internet, porém, segundo a pedagoga
Rossiene, tanto a internet quanto os computadores são muito mal utilizados pelos professores
que fazem com que os alunos usem lápis e papel para anotar tudo que aprendem na aula de
informática. (...) Um exemplo usado pela pedagoga para passar a dificuldade para usar objetos
de comunicação, foi uma iniciativa que a escola teve para comemorar não apenas o dia, mas o
mês do índio, quando os trabalhos deveriam mostrar a influência do índio em nossa cultura, e
como a cultura do índio foi esmagada pela cultura portuguesa, além de mostrar a realidade do
índio hoje, com teatro, colagens, maquetes, danças típicas e redações. Porém, só havia um som
para os ensaios de teatro e dança, as colagens foram feitas de revistas que os próprios
professores trouxeram e casa e as maquetes feitas todas com materiais pagos pelos alunos.
Nenhuma máquina fotográfica para registrar esse momento e criar um jornalzinho interno,
nenhuma filmadora para fazer um telejornal da escola, nenhum recurso para que o aluno possa
mostrar que sabe muito mais que 2 + 2 = 4.
Alexandra, Ângelo, Marileide, Rômulo – Anexo da EMEF Padre Anchieta – Ilha de Santa Maria,
Vitória.
- Na escola que visitei, além do velho quadro negro os alunos contam com outros meios
de comunicação para aprender. Os professores podem exibir vídeos educativos,
documentários e filmes para os alunos utilizando a sala de TV, que conta com uma
televisão, um vídeo e um DVD fixos, ou com um dos três kits, contendo TV, DVD e vídeo,
que são móveis e podem se levados até a sala de aula ou pátio, de acordo com a
necessidade de cada aula. Nessa escola até as paredes falam, através de grafites feitos
pelos alunos durante atividade escolar. Os murais são usados para avisos internos e
externos, e também para exposição de alguns trabalhos escolares. O computador não
poderia faltar: as vinte máquinas do laboratório são ligadas à internet e podem ser
utilizadas pelos alunos durante as aulas de informática e também para pesquisa, digitação
96
e diagramação de trabalhos escolares. Mesmo com todas as facilidades da internet os
alunos não abandonam a biblioteca. Lá eles viajam pelos livros, revistas e jornais
oferecidos pela escola, que ficam sempre a disposição para consultas ou empréstimos. O
Micro Syestem foi acoplado a uma mesa de som e várias caixas de alto falantes
espalhadas por todas as salas, pelo corredor e pátio, se transformando em rádio interna,
que além de tocar estilos de música escolhidos pelos alunos e funcionários também serve
para divulgar normas internas e avisos aos alunos. A rádio interna é utilizada ainda na
hora da execução do Hino Nacional. Segundo o direto Diocival Marchiori, “é preciso que
todos os estabelecimentos de ensino invistam nos aparatos de comunicação para que o
estudo não fique defasado.”
Rosivanita Santos – EEEM Emir de Macedo – Bairro Araçá, Linhares.
- Uma prova de que a educação com forte apelo informativo só dará bons resultados é a matéria
extraída do site do IBGE: “A Síntese dos Indicadores Sociais, elaborada pelo IBGE, mostra que o
aumento da escolaridade feminina reduz a fecundidade e a mortalidade infantil”. (...)
Encontramos na escola que visitamos alunos uniformizados e um pátio limpo com uma enorme
área de lazer. A pedagoga Margareth foi quem nos recebeu educadamente e logo disponibilizou
uma funcionária para que nos acompanhasse por um tour pela escola. Na chegada uma música
alta chama atenção. São 15 horas e as crianças estão no recreio, uma mesa enorme dá suporte
a uma feira de livros que acontece no horário recreativo. É a radio escola que embala as
brincadeiras da garotada. A rádio surgiu de um projeto da professora de música da 7ª e 8ª
séries. Lá os alunos fazem as pautas e as notícias não são censuradas. Pelos corredores estão
espalhados cartazes informativos, trabalhos de diferentes turmas e um painel onde o aluno
deposita sua dúvida, reclamação ou elogio. Mais a frente nossa guia Márcia apresenta a
biblioteca. Na escola existem duas bibliotecas, uma para crianças da pré-escola e outra para os
mais grandinhos, ambas climatizadas. As aulas de informática iniciam-se na 1ª série e a sala
conta com computadores modernos e ar condicionado. Nos corredores encontramos avisos
sobre aulas de inglês e italiano, que são dadas duas vezes por semana aos alunos. Vira e mexe
nos perguntamos se aquela era mesmo uma escola municipal e como a resposta era positiva
acreditávamos estar em um outro país.
Carolina e Janaína- EMEF UFES – Campus Universitário, Goiabeiras, Vitória.
- A escola possui um auditório onde os professores têm a sua disposição um aparelho de
TV, um DVD e um Data Show, que são utilizados em palestras e apresentações culturais.
O karaokê é utilizado como forma de entretenimento em programações especiais. Na
escola existe também um sistema de sonorização interna, com microfone e caixas de
som, que é usado para repassar aos alunos eventuais comunicados. As visitas à
biblioteca e ao laboratório de informática são feitas uma vez por semana de acordo com
um cronograma. Nesses espaços os alunos podem fazer trabalhos e pesquisas. No
laboratório de informática os alunos têm acesso à internet sendo monitorados por um
professor. A escola possui um jornal online Chamado O Pan. Podemos perceber que a
escola procura construir sua história e mantê-la viva através do tempo, registrando os
momentos dos alunos através de imagens de vídeo e fotografias. Também procura manter
os alunos informados através da internet e das assinaturas doe jornais e revistas.
Fernanda e Gardênia – EMEF Padre Anchieta – Ilha de Santa Maria, Vitória.
97
- Os meios e as ferramentas de comunicação utilizadas na escola são:
→
Telefones – meios e processos dialógicos de comunicação, com retorno midiático
direto (tipo conversacional). A escola possui uma linha com extensão para todos os
telefones.
→
Internet/computadores – meios e processos difusos, com retorno possível previsto
ou com seletividade avançada pelo usuário. A escola possui uma sala de informática
com vinte computadores novos, um computador na sala dos pedagogos, um na
secretaria, um na biblioteca (que não funciona) e dois na sala de vídeo (que não
funcionam).
→
Televisão/vídeo/aparelhos de DVD – meios difusos e diferidos, sem retorno imediato
de respostas. A escola possui uma sala de vídeo que é equipada com uma televisão
de vinte e nove polegadas, um aparelho de DVD e um vídeo. No auditório a escola
tem uma televisão que não funciona.
→
TV interativa – meios e processos difusos de comunicação, com retorno possível
previsto. A escola possui a antena parabólica da “TV ESCOLA” que é voltada para
as escolas públicas. Nela também existem canis do Governo.
→
Aparelhos de som – meios e processos difusos e diferidos, sem retorno imediato de
respostas. A escola possui três aparelhos de som portáteis disponíveis para todas
as turmas e dois na coordenação para uso dos professores e coordenadores caso
seja necessário. O aparelho de som que está no auditório não está funcionando.
→
Revistas e jornais – meios e processos difusos e diferidos, sem retorno imediato de
respostas. A escola recebe diariamente um exemplar do jornal A Gazeta e do jornal
A Tribuna, além de possuir assinatura da revista O Professor.
→
Ferramentas de apoio na comunicação:
1.
Microfones: um microfone sem fio e dois com fio no auditório.
2.
Caixas de som – espalhadas por toda a escola: pátio, entrada, quadra e todas as
salas.
3.
Retro-projetor – muito utilizados pelos professores nas salas de aula.
4.
Tela de retro-projetor – localizada no auditório.
5.
Máquina fotográfica – possui uma.
6.
Filmadora – possui uma, mas está com defeito.
7.
Murais – onde os alunos expõem trabalhos (comunicação visual).
8.
Eventos artísticos e comemorações – teatro, danças, festas, etc.
9.
Bilhetes, cadernos de recados e reuniões – utilizados para a comunicação com os
pais.
10.
Máquina de xérox – a escola possui duas, uma na sala dos pedagogos que está
quebrada e uma na secretaria.
A escola possui recursos de comunicação, embora em quantidade mínima. Encontramos vários
aparelhos com defeito e sem previsão para concerto, pois a escola depende de uma autorização
da prefeitura para poder utilizar a verba destinada a esses fins específicos denominados
“consumo”. (...) Com esse trabalho, tivemos oportunidade de compreender as condições em que
as escolas públicas de Vitória se encontram e de ter contato com as dificuldades enfrentadas
pelos professores para colocar em prática as ferramentas de ensino contemporâneas.
Karina, Marco Antônio, Ronaldo e Tahíza – EMEF Eber Louzada Zippinotti – Jardim da Penha,
Vitória.
Em boa parte desses relatórios os estudantes descrevem usos unidirecionais
dos meios de comunicação, em que as informações são difundidas de um
98
transmissor para receptores anônimos, passivos e subservientes.
Comunicação como instrumento, como ferramenta, seja nova ou antiga.
Essa é a lógica que predomina ainda no pensamento comunicacional e
educacional, embora sua efetivação seja impossível. De qualquer forma,
tendemos a pensar e até a exigir uma conduta, uma forma de relação social e
política, em que uns ensinam, outros aprendem; uns falam, outros escutam;
uns produzem, outros consomem; uns mandam, outros obedecem. Os meios
de comunicação, nessa perspectiva, instrumentalizam essas relações. Essa
forma de comunicação midiática que acredita e busca induzir o consenso, a
uniformidade e a hegemonia não nos interessa. Mas não basta problematizar
as formas de operação e os conteúdos das mídias, precisamos problematizar
também a lógica, as informações disseminadas e a forma de comunicação que,
muitas vezes, está na base das relações de poder e da transmissão de
conhecimentos/sentidos praticadas no cotidiano da escola.
No
site
http://humortadela.uol.com.br/charges/charges_arquivo_146.html
encontrei algumas charges, como as reproduzidas abaixo, que tentam
apreender, através da crítica bem humorada, como estamos percebendo,
apreendendo, questionando, nos adaptando, recusando e inventando modos
de vida possíveis nos diversos contextos de nosso cotidiano com a presença e
com a ausência dos meios e tecnologias da comunicação e da informação.
São novas roupagens
para questionamentos a
velhos problemas. Ao
mesmo
tempo,
são
ironias que se constituem
no deslocamento de
velhas soluções para
novos problemas.
99
É mais ou menos dessa forma que operam as lógicas de produção das
invenções cotidianas.
Como a religião e a ciência que
prometeram e não puderam cumprir, a
comunicação (com suas promessas
de tudo facilitar também não vai dar
conta de realizar: felicidade, melhoria
da qualidade de vida, ética, igualdade,
segurança,
saúde,
justiça,
democracia, proteção, solidariedade.
Pelo menos não para todos.
Nunca tivemos tantos meios para nos
comunicarmos e nunca estivemos tão
sós e ensimesmados. Nunca tivemos
tantos mecanismos de vigilância e
segurança e nunca nos sentimos tão
ameaçados. Nunca tivemos tantas
ofertas e opções de lazer e
divertimento e nunca estivemos tão
entediados. Nunca tivemos tanto acesso ao conhecimento produzido e
100
acumulado e nunca tivemos tantas incertezas. O que está acontecendo? O
mundo está ao contrário e ninguém reparou!
Felizmente, percebemos sim essa nossa condição e por meio da ironia, da
paródia, da mímica, estamos nos alertando mutuamente e inventando formas
de criar outras realidades, usando para isso inclusive os próprios recursos e
meios que questionamos.
Assim como a mídia, a escola não é unicamente lugar de docilização,
disciplinarização e controle, mas é lugar também de liberdade, de criação, de
resistência a esses processos de formatização da vida e da subjetividade.
Como já vimos, independente de suas necessidades ou vontades, as escolas
vêm sendo pressionadas pelos administradores globais da política e do
mercado a trabalharem com parafernálias tecnológicas que até bem pouco
tempo lhes eram estranhas. Mas elas o fazem, contudo, sem abrir mão de
formas a elas mais familiares de comunicar.
Lá estão o vídeo, a TV, o computador, a máquina de fotografar, a máquina de
filmar. E lá continuam valendo também os bilhetinhos, os cartazes, a fofoca, o
grafite, os torpedos, o auto-falante, o lápis e o papel, o giz e o quadro negro, as
tintas e os pincéis, as camisetas das oitavas séries, os recados e os desenhos
na porta dos banheiros, os cochichos, a cola, a pichação, os murais.
Lá estão também a arquitetura e os rituais que comunicam como devem ser
significados e ocupados os tempos e os espaços, apesar de que quase nunca
são obedecidos: a arrumação das salas de aula, as atividades nas quadras e
nos pátios, os calendários, os horários das aulas, os muros, os banheiros
femininos e masculinos, as filas na entrada e na saída, o manual do aluno, as
festas, os campeonatos esportivos.
Lá estão presentes ainda outras formas de comunicar que não se materializam
em objetos e espetáculos: as vozes, os corpos, os gritos, as gargalhadas, as
lágrimas, os gestos, os sons, os silêncios, os olhares, as cores, os cheiros, os
sabores.
E
assim, deslocando, combinando e recriando
fragmentos e restos desses meios e
recursos, lá se engendram redes cotidianas
de
saberesfazeres tecendo diversas redes de
comunicação com lógicas operacionais
múltiplas,
contraditórias,
dinâmicas,
mutantes,
escorregadias,
desviantes,
complexas,
paradoxais,
originais
e
singulares, com as marcas dos praticantes
da
escola.
Na
escola, o cartaz informal escrito à mão
funciona bem para organizar as escalas
entre as turmas para o jogo de futebol na
quadra. Os informes do Sindicato são
“oficializados” com a escrita formal no
computador.
101
As mesmas paredes da Álvaro de Castro Mattos que abrigam os chamados
para a luta sindical, funcionam como espaço também para a comunicação dos
Governos Federal, Estadual e Municipal.
Disputam ainda espaços nas paredes da escola os desenhos e as pinturas
realizados nas aulas de arte, os cartazes e os murais desenvolvidos nas salas
de aula para as mais diversas disciplinas, os
avisos
da
102
coordenação e da direção, os cartazes para divulgar os projetos especiais, os
mapas e os recados, além de outros variados, paradoxais, ambíguos,
contraditórios, diferentes, fragmentados e mutantes tipos de comunicações,
tanto na forma como no conteúdo (como na formaconteúdo) tornando
impossível se controlar, prever, manipular ou determinar sentido e
comportamento únicos.
que
importa
o sentido
se tudo
vibra?
Alice Ruiz
Em meio a tantas práticas comunicativas, são a pichação na parede e o texto
no quadro negro que se distinguem, como se tivessem sido escritos em uma
língua estrangeira, alheia à escola. Como uma mímica, usando o spray ou o
quadro e o giz, eles inscrevem a marca de suas diferenças, “uma arte de
combinar indissociável de uma arte de utilizar” (CERTEAU, 1994: 42).
103
É como “a fala da rua”, a comunicação do dia-a-dia, proveniente da experiência
e de um saber tácito em apropriar-se como é possível das ferramentas
disponíveis para realizar uma performance comunicativa, se colocar em relação
e ação para enfrentar e tentar resolver as situações cotidianas. Uma forma de
falar e de escrever, de narrar e produzir textos que inscreve sua diferença em
relação à ordem do discurso “culto”, do discurso dos letrados.
“favor não deixar as crianças Riscar as mesas colaboram com linpeza”;
“pasei aqui”.
Essa ‘estrangeirice’ em relação às formas de uso de nossa língua e gramática
causa arrepios nos escolarizados, gera preconceitos lingüísticos e deixa os
professores de saia justa, mas, apesar de sua complexidade, não pode deixar
de ser problematizada. Para isso, conto com a ajuda do subcomandante
Marcos e do Exército Zapatista da Libertação Nacional.
A história deste país é uma história de equívocos.
Mas, até agora, são eles os que sempre erram e nós somos o equívoco e quem
paga por eles.
Se equivocaram há 500 anos dizendo que nos descobriam. Como se o outro
mundo que nós éramos tivesse ficado perdido. Como se nós fossemos os que
estavam sendo procurados e não os que procuravam. Como se nós estivéssemos
quietos e eles fossem os que se mexiam.
Se equivocaram quando seus grandes sábios discutiam se tínhamos razão e
sentimento ou se éramos animais que eram muito pouco parecidos com eles.
Se equivocaram chamando de "civilizar" a ação de destruir, de matar, de
humilhar, de perseguir, conquistar, submeter.
Se equivocaram quando matar um indígena era chamado de "evangelizá-lo". Se
equivocam hoje quando chamam este assassinato de "modernizá-lo".
Para eles, nossas histórias são mitos, nossas doutrinas são lendas, nossa
ciência é magia, nossas crenças são superstições, nossa arte é artesanato,
nossos jogos, danças e roupas são folclore, nosso governo é anarquia, nossa
língua é dialeto, nosso amor é pecado e baixaria, nosso andar é arrastar-se,
nosso tamanho é pequeno, nosso físico é feio, nossa maneira de ser é
incompreensível.
Para olhar-nos, eles olham para trás e para baixo.
Para eles, reconhecer-nos é reconhecer eles mesmos como superiores.
Para eles, ver-nos é ver-nos submissos.
Para eles, olhar-nos é mandar em nós.
Para eles, dar-nos um lugar é apontar-nos o túmulo, a prisão, o
esquecimento.
Eles, os que estão acima de nós que estamos embaixo.
Ontem eles nos "civilizaram" e hoje querem nos "modernizar".
Eles nos dizem que o mundo deles é melhor.
104
Que devemos abandonar a nossa terra, nossa casa, nossa história.
Que devemos ir à terra deles e viver debaixo dela.
Que devemos viver na casa deles e servir nela.
Que devemos ser parte de sua história e morrer nela.
Eles nos oferecem isso: viver debaixo dos seus pés, obedecer à sua vontade,
morrer no esquecimento...
(...) Eles querem que nossas derrotas sejam perpétuas.
Eles querem que nossas vitórias sejam derrotas.
Quando são eles os que perseguem, prendem e matam, é a lei. Quando somos nós é
crime.
Quando eles governam é democracia. Quando nós governamos é anarquia.
Quando eles exigem é justiça. Quando nós exigimos é rebelião.
Quando eles mandam é paz. Quando nós mandamos é guerra.
Quando eles falam é pra atender. Quando nós falamos é pra tampar os ouvidos.
Quando eles mandam é a estabilidade. Quando nós mandamos é um terremoto.
Seus meios de comunicação emitem um chiado, mas não para nós. E sim para
eles mesmos. Dizem e se dizem: que idiotas são estes indígenas e estão
sozinhos! Que fortes nós somos e quantos somos! Contam isso a seu favor
porque a porta que fecham é a que os deixa de fora.
Não cabemos no mundo deles, a não ser que sejamos mudos, quietos, mortos.
Temos que falar se queremos ser a cor da terra que somos. Temos que nos
mexer, temos que viver.
Para falar, mexer e viver, precisamos de nós mesmos, não deles.
Para falar, nos mexemos.
Para mexer, nos falamos.
Para viver, nos mexemos e falamos.
Para falar e mexer, vivemos.
Que o dinheiro trema porque falamos. Que trema porque nos mexemos, que
trema, enfim, porque vivemos.
No fim das contas, ao viver, falar e mexer, é isso que gritamos: somos nós
mesmos!
E somos nós mesmos com todos, e com todos
devemos ser reconhecidos.
Porque, apesar deles, com todos, todos teremos...
Democracia!
Liberdade!
Justiça!
Comunicado divulgado pelo Exército Zapatista de
Libertação Nacional (de Chiapas, México).
http://www.imediata.com/SIM/zapatistas.html
Foto: http://zeztainternazional.ezln.org.mx/
Armand Mattelart (2002) lembra que o subcomandante Marcos diz que IV
Guerra Mundial será uma guerra semiótica. Segundo Mattelart, “é importante
refletir sobre essas palavras, pois atualmente nos vemos obrigados a usar uma
língua sobre a qual não temos controle. O problema para nós, portanto, é o de
construir e reconstruir uma linguagem que possa corresponder ao nosso
projeto de reconstrução do mundo”.
105
No século XVII, no era do iluminismo, falava-se muito numa linguagem
universal. E construíam-se línguas universais. Hoje, obviamente, a
linguagem universal é a informática.
(MATTELART, 2002 - http://www.uff.br/mestcii/mattelart1.htm)
A guerrilha semiótica que vem sendo travada pelos neo-zapatistas, bem como
outras e variadas formas de relações comunicativas cotidianas, nos leva a
pensar, parodiando Certeau, que as práticas comunicacionais não são apenas
o fundo noturno da atividade social. Ao contrário, estão no cerne da sua
constituição. Nesse contexto, muda não só a noção de cidadania, mas o
próprio estatuto do sujeito.
Processos comunicativos põem em cena indivíduos investidos de um
novo papel: sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. Mas
que sujeito é este do qual estamos falando?
(FRANÇA, 2006a: 61)
Só para a gente ter uma idéia da complexidade e da dificuldade que é tentar
compreender esses sujeitos da/em comunicação, que são os mesmos sujeitos
da/em educação, reproduzo a seguir o perfil de uma aluna (15 anos) da Escola
Álvaro de Castro Mattos, por ela mesma inventado e disseminado no orkut.
Encontrei-a na comunidade formada por alunos, ex-alunos e professores da
escola.
106
quem sou eu: ★`·..·´★`·..·´★`·..·´★`·..·´★`·..·´★`·..·´★`·..·´★
Bºm eu s* @$§im!! mud0 O m&u p&rfil t0d0§ 0s d!@$
uashua
\*/Bºm @ch0 q &u sºu mu!t0 @mig@!
Sºu f@l@d&ir@\*/ ///§¬¬§\\\ \*/
\*/\*/\*/\*/\*/ \0/\*/\*/\*/\*/
@mº m&u§ @m!gº$!
&u t&nhº m&u§ $!gn!f!¢adº!
@> amiga!
£> legal*
!> implicante rsrs
n> notavel @@
&> especial \o/
Qu&rº q @s p&ssº@§ $@!b@m q s& n@0
gº§t@m d& m!m fºd@-s& !
@@@@@@@@@@\*/@@@@@@@@@@@
Pº!$ &u @mº qu&m m& @m@!!
@@@@@@@@ s0u um@ m&n!n@ : @m!g@
, l&g@£, cºmp@nh&!r@, c@r!nhºs@, &§trºv&rt!d@, @l&gr&
, r!sºnh@, p@£h@ç@..
Pg p@r2 @£gu&m q m& cºnh&ç& cºm0 &u s0u pºi§ n@o $&!
&§p£!¢@ !
Ah.. amo tentar anda na praga do meu Sk8 huauhueha eh
foda .. cada tombao! uheuhuae
um@ ¢º!§@ &u t& d!g0 q m& f@z&r f&l!z ?? cºl0c@ &$§@
mu§!¢@ pr@ m!m ºuv!r
mu$!¢@ §2Fatale (vagando na escuridao!)
Não... não sei mais se quero viver assim,
vagando na escuridão.
Com a alma afogada na solidão.
Não posso me enganar...
Vivendo assim, não sei se eu posso.
Não sei se consigo voar...
Tão alto que eu possa esquecer,
107
interesses
108
paixões: musica , familia , amigos...meu coraçaozin,meu
sk8(aprendendo a anda uahsua apenas aprendiz), minha lan,
telefone, radio,tv, meu pc, meu..., iorguht
,escola,lorena miguxa do S2,Erika primuxa do meu coraçao,
os mlks da lan, as ninas da escola ,shows , minha cadeira da
escola a do canto!, minha cama , meu quarto, meu
travisseiro,e uma pessoa !
esportes: volei, futsal, basquete S2,sk8,nataçao
atividades: sair com os amigos ,ir no xops,i no cinema,joga volei, futsal,e
tudo
um pokin menos ler livros ...
livros: os treis porkinhos , branca de neve, sitio do pica paau
amarelo, bruxinhas..
kkk
te parece a coisa q mais odeio é le!
sahsuhau
música: †slipknot†
†cpm 22†
†pitty†
†charlie brown jr†
†detonautas roque clube†
†silverchair†
†good charlotte†
†B5†
†MxPx†
†dead fish†
†system of a down†
†marylin manson†
†limp bizkit†
†nirvana†
†the vines†
†nightwish†
†my chamical romance†
109
contato
cidade: vitória
estado: ES
código
29047
postal/CEP:
país: Brasil
Uma análise ontológica e psicológica e antropológica e sociológica nos
possibilitaria muitas interpretações e tipificações a partir desse “exemplar” de
sujeito contemporâneo. Pura perda de tempo, como ela mesma disse, seu
perfil muda todo dia. De qualquer forma, nossa menina mutante, deixou muitas
pistas que sinalizam uma vontade de permanência, de pertencimento, de
territorialização, de compreensão, de família, de amizade, de vínculos, que não
lhe parece incompatível com a vontade de se diferenciar, de mudar
frequentemente e de voar.
Me chamou atenção também a relação das coisas que ela disse que são suas
paixões: música , família , amigos...meu coraçaozin, meu sk8 (aprendendo a
anda uahsua apenas aprendiz), minha lan, telefone, rádio, tv, meu pc, meu...,
iorguht, escola, lorena miguxa do S2, Erika primuxa do meu coração, os milks
da lan, as ninas da escola, shows , minha cadeira da escola a do canto!
minha cama , meu quarto, meu travesseiro e uma pessoa !
Suas atividades favoritas: sair com os amigos, ir no xops, i no cinema, joga
volei, futsal, e tudo um pokin menos ler livros ...
Os gostos, as preferências, as atividades, os hábitos cotidianos da jovem
incluem o uso dos meios e tecnologias de telecomunicação (TV, rádio,
telefone, computador, iorguht [orkut], cinema, lan (house), mas incluem
também, e preferencialmente, a presença encarnada e concreta do outro
(família, amigos, miguxa, primuxa, ninas da escola e uma pessoa), além de
objetos pessoais (minha cama, meu quarto, meu travesseiro, minha cadeira da
escola, a do canto!).
Ela gosta de tudo um pouquinho, menos de ler livros. Interessante ela ter
frisado “ler livros”, porque ela lê textos (não sei onde, mas lê,
provavelmente no computador) e lê músicas, inclusive as cita para
tentar “ver-se e dizer-se”, e provavelmente, lê também imagens e
sinais, por meio dos quais também se expressa e se comunica.
O que na escola essa menina gosta? Os amigos? A cadeira no
canto, ou seja, um lugar que pode considerar seu?
Será que podemos a partir daí pensar os desafios e as possibilidades da
educação nos dias atuais?
Como lidar com a linguagem da internet,
suas
simplificações,
abreviações,
recriações, sua despreocupação com as
regras gramaticais e com a ortografia?
110
Como lidar com o desinteresse pela leitura de livros e com as necessidades de
outras leituras (de sons, de imagens, de signos)?
Através das músicas fica um apelo:
Não... não sei mais se quero viver assim,
vagando na escuridão.
Com a alma afogada na solidão.
Não posso me enganar...
Vivendo assim, não sei se eu posso.
Não sei se consigo voar...
Tão alto que eu possa esquecer,
que um dia esqueci de viver...
Não sei se consigo voar...
De um jeito que faça valer,
se a vida é pra se viver...vou viver.
Ei pai, olhe para mim
Pense de novo e converse comigo
Eu cresci de acordo com seus planos?
Você acha que eu estou perdendo meu tempo
fazendo as coisas que eu quero fazer?
Mas dói quando você desaprova tudo
E agora eu dou duro para ser bem sucedido
Eu só quero te deixar orgulhoso
Eu nunca vou ser bom o bastante para você
Eu não posso fingir que eu estou bem
E você não pode me mudar
Como pode a escola inserir-se na complexidade das mestiçagens –
de tempos e memórias, imaginários e culturas – ancorada
unicamente na modernidade letrada e ilustrada, quando em nossos
países a dinâmica das transformações que penetram na cultura
cotidiana das maiorias provém basicamente da desterritorialização e
das hibridizações que agenciam os meios de comunicação de
massa?
(MARTÍN-BARBERO, 2002: 351)
Ferraço (2005) nos sugere considerar a diversidade de possibilidades que se
colocam no cotidiano para o conhecimento, para o currículo e para a formação
continuada dos educadores. Para isso, ensina, o foco deve estar nas relações
que se estabelecem entre os sujeitos cotidianos. Ele propõe que, no lugar da
idéia de dificuldade de aprendizagem ou de “ensinagem”, defendamos a idéia
de possibilidades de conhecimento.
111
Quais as possibilidades de conhecimento que estão
ou não colocadas, que não são fixas nem únicas, e
que se encontram relacionadas às condições de
sobrevivência, para cada um dos sujeitos cotidianos?
Por conseqüência, quais as possibilidades de
conhecimento que estão ou não colocadas, e que
também não são fixas nem únicas e que se encontram
relacionadas às condições de vida, para o coletivo dos
sujeitos de uma determinada comunidade escolar?
(FERRAÇO, 2005: 19)
Trata-se, portanto, de compreendermos que há diferentes possibilidades de
conhecimento para os alunos (e para professores também) que precisam ser
consideradas e ampliadas ao pensar e realizar os currículos escolares.
Os meios e recursos de comunicação midiática, inclusive o Orkut, estão
colocados e também precisam ser considerados. A diretora e uma das
pedagogas da escola Álvaro de Castro Mattos já estão conectadas na
comunidade virtual “Jah estudei lah!!!!” criada por ex-alunos, e que já conta
com mais de 300 membros entre ex-alunos, alunos e educadores. A internet,
para alguns estudiosos da comunicação, é a realização da metáfora das redes,
possibilitando a ampliação das relações entre pessoas, interesses, idéias,
associações, etc.
Entre os tópicos de discussão estão a proposta do I Encontro dos ex-alunos, a
abertura da escola aos sábados e domingos, a participação nos Jogos
Estudantis Municiais de Vitória, elogios a professores, comentários sobre
cantar o Hino Nacional, opiniões sobre a merenda, recordações sobre as
queimadas e sobre um filme realizado por alunos, entre outros temas.
Interessante também, ao observar o perfil dos alunos e ex-alunos da escola,
conforme descrito por eles mesmos no Orkut, é que a questão e/ou a crise do
sujeito, que ainda promove polêmica e divergência nas discussões
acadêmicas, é abordada por eles com tranqüilidade e até com uma certa
ironia, que põe em xeque qualquer pretensão a essencialismos. Vejam
algumas das respostas que encontrei na comunidade da escola à questão
quem sou eu colocada pelo Orkut.
quem sou eu: ñ sei dizer, mais quem me conhece sabe q eu sou gente
boa...
112
quem sou eu: dificil... vou tentar:
gosto-> sair em boa companhia, comer porcaria, filmes...
mais filmes, tv, internet, esportes, musica mais musica clips...
etc etc e etc.
nao gosto-> gente falsa, mentira, lugar cheio, lugar fechado,
gente q empaca.. etc etc etc.
quem sou eu: ????? rsrsrs
quem sou eu: [ ]ON
[x]OFF
Oi galera meu nome
é Mirela Anne sou
muito legal, =)=)=) TENHU 13 anossss
bagunçeira,doida,simpática,extravangante,nervosa as
vezes,bonita kkk,e mais o que vcs acharem, bom eu sou
carioca mais moro em vitória ES , amo muito meus amigos,
minha família,o ballet,jiu-jitsu,o teatro e tudo que
faço,agradeço aos que me adicionaram, um super beijo da
mimi!!e A não leio mensagens grandes!!
quem sou eu: (Censurado)
quem sou eu: ...?
quem sou eu: .(.....\\............./.....)
. \\....\\.......... /...../
...\\....\\........./..../
....\\..../´¯.l.¯`\\./
..../... l.....l..(¯ \\
...l......l.....l...\\...\\
...l......l´¯.l´¯.l \\...\\
...\\......` ¯..¯ ´....//
....\\_..............._//
quem sou eu: O cara q está na foto.
quem sou eu: Sinto muito não sei me descrever
eu sou apenas alguem
ou ate mesmo ninguem
as vezes alquem invisivel
eu sou uma metamorfose ambulate
sou maluca total
sou cowgirl fora da lei
113
Acho que não sei quem sou.
Só sei do que ñ gosto.
E definitivamente,
ñ gosto de me descrever.
...................................
I -=§ Bjs, thau.... §B- D
quem sou eu: Eu sou lívia...
e vc???
Sô meio retardada...mas sei até q ponto... simpática...
extrovertida...alegre...adoro minhas amizades e amo fazer
novas...
quem sou eu: †Sem Scrap não vou adicionar. Tenho que saber quem é a
pessoa que me adicionou!
†Sou a Hannah, mais conhecida como Lady Hellsing.
†Nada mais a dizer...
†Se voce quizer entrar na comunidade que eu fiz para o
Marilyn Manson, (MANSON- SENSUALIDADE PERVERSA)
Ta aki o link:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=6276952
†E se quizer entrar na minha comunidade:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=14177582
†Bom...Só isso!
†Blood Kisses!†
†By:Lady Hellsing†
quem sou eu: ♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥~♥
[b]Eu:[/b]
Bom meu nome eh Deborah
mais mt gente me chama de Beba
uma otaku fan de animes
meu gosto pra musika eh MPB
alem disso axo q as pessoas de hoje em dia deveria ouvir
esse tipo de musika q no caso eh nossa cultura brasileira^^
xD
eu soh baka com mt orgulho
tenhu dois migos hentais>>Mokona e Andreia(minha anjinha
;D)
114
nas horas vagas eu gosto de desenhar mexer no pc fazer
gif...
--'
adoro meus migos e tudo mais xD
bjux para todos ;*
[b]status[/b]
(x)online
( )offline
( )Ausente
quem sou eu: essa eu dexu pa vcs responderem
quem sou eu: ¨♡•*´¨`*•.¸ღ¸.•*´¨`*•.¸♡•*´¨`*•.¸ღ¸.•*´¨`*•.¸♡¨
"Se eu contar, você vai dizer que eu tô me achando;
Se eu não contar, você vai dizer que eu sou marrenta.
Então faz assim, pensa o que você quiser que pra mim tanto
faz.!!"
¨♡•*´¨`*•.¸ღ¸.•*´¨`*•.¸♡•*´¨`*•.¸ღ¸.•*´¨`*•.¸♡¨
quem sou eu: Eu SoU Eu brunin nao sou la essas coisas mais
eu amo todos vcs amigas aii
e os mano sao tudo parceiruuuuu
por isso eu sou bruninn....
huahuahuahauhuh
quem sou eu: ___Só mais uma demente por ai!___
quem sou eu: Gosto de sair com meus amigos,não vivo sem meu
celular,não consigo passar dois dias sem sair de casa nem
que seja pra ir a padaria,adoro ouvir músicas,E COMUNISTA
DE CORAÇÃO...Bem, se quiser saber quem eu sou de
verdade...me adicione.
ah....se for add deixa scrap!!!!
e tbm "DEEEEEEETTEEEESSTOOOOOO Q DEIXEM
CARTÃO(e capitalistas...mas isso é pessoal)!!!!"
so isso....
quem sou eu: esse da foto ai...
_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/
115
"Quando a última árvore tiver caído,
...quando o último rio tiver secado,
...quando o último peixe for pescado,
...vocês vão entender que dinheiro não se come."
(Greenpeace)
_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/_/
quem sou eu: ...Não sei descrever...
Só sei que sou .... há eskece...
quem sou eu: ____________________________________
Oi!!! eu tenho 15 anos xD.
eu adoro Harry Potter e Rock.
(....\...Harry../....)
.\....\.Potter /..../
..\....\.4EVER/..../
...\.../´¯.|.¯`\../
.../... |....|.... (¯ `\
..|.....|´¯.|´¯.|\....\
..\......` ¯..¯ ´....../
...\_ ............ _./´
quem sou eu: hum so me conheçendo msm para saber como eu sou!ae eu
naum tenho 18 anos naum, e sim 12!hehe!
estouu apaiixonadaaa!!
quem sou eu: uma pessoa
quem sou eu: Eu?? humm..uma menina ‫ک‬τγℓ ‫ع‬
quem sou eu: ♥εïз pow eh mesmo qm sou eu???
boa pergunta!!!! bom qn conhese add e deixa scrap!!!
♥εïз BjO εïз♥
A internet, embora guarde uma estreita vinculação com o consumo e com o
passeio (constituindo os viajantes digitais), tem, para Dreifuss (2003), um
significado muito mais profundo e perturbador, uma vez que chega ao
âmago dos padrões de vivência e às indagações sobre a existência. Para
os internautas, a comunicação através das fronteiras midiáticas e territoriais
está se tornando uma experiência possível e necessária, cotidiana e
rotineira (p. 118). Ele defende que a mundialização, via, tecnologias da
informação, tem a ver com a total possibilidade de comunicação de novidades
e registro da memória para/com seus remetentes, destinatários e testemunhas,
e alerta para os paradoxos desse processo.
116
Homogeneização, particularismos, denominadores comuns e
singularidades, através de megaespaços societários e pólos
gravitacionais culturais; visão de desestatização e projeção de núcleos
culturais; singularização de demanda e necessidades e universalização
de propostas e ofertas, através (e a despeito) da americanização e da
europeização, ou das variadas projeções asiáticas e islâmicas. Por
outro lado, são reforçados os sensos de identificação comunal e
comunitária e as condições para a emergência de indagações sobre a
identidade, assim como se indaga sobre a possibilidade de uma ética
universal permeando as particularidades. Desta maneira, em
concomitância com processos e movimentos de homogeneização e
denominação comum (rotinas e continuidades, tradições e
convencionalismos), descortinam-se múltiplos cenários atravessados e
constituídos por reações, contradições e reafirmações excêntricas,
expressas e configuradas pelas singularidades locais, regionais e
nacionais, e pelas particularidades étnicas e religiosas. Cenários
marcados pelas especificidades que os registros civilizatórios impõem.
(DREIFUSS, 2003: 126-127)
Para Mártín-Barbero (2003), é entre os jovens urbanos que se fazem visíveis
as mudanças mais desconcertantes de nossas sociedades contemporâneas.
Os pais não constituem mais os padrões de comportamento e a escola não é
mais o único lugar legitimado do saber.
Os jovens experimentam uma empatia cognitiva feita de uma grande
facilidade na relação com as tecnologias audiovisuais e informáticas e
de uma cumplicidade expressiva: com seus relatos e imagens, suas
sonoridades, fragmentações e velocidades, nos quais eles encontram
seu idioma e seu ritmo. Pois diante das culturas letradas, ligadas à
língua e ao território, as eletrônicas, audiovisuais, musicais ultrapassam
essa adstrição, produzindo novas comunidades que respondem a
novos modos de perceber e de narrar a identidade.
(MARTÍN-BARBERO, 2003: 66)
Com Ferraço (2005) pensamos que a escola se insere no movimento de
ampliação das possibilidades de conhecimento em meio às redes cotidianas
de praticantes. Isso inclui também a internet, onde podemos encontrar vários
sites e fóruns de discussão criados por praticantes para discutir o uso das
tecnologias da comunicação, e da própria rede de computadores, na
educação.
Entre muitos desses espaços, destacamos aqui o blog. O desenvolvimento
do lúdico no ciberespaço (http://ludiconacibercultura.blogspot.com/) criado
pela pedagoga Vanessa dos Santos Nogueira, uma geminiana de 25 anos,
117
moradora de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, com a finalidade
de instituir um espaço para trocar experiências, links, projetos e atividades
desenvolvidas no ciberespaço para auxiliar no processo de ensino
aprendizagem. Vanessa e seus alunos vêm experimentando modos de uso
dos meios e tecnologias da comunicação e se propõe a discuti-las pela internet
com outros colegas, argumentando em defesa do uso pedagógico do orkut,
das salas de bate-papo e de outras comunidades virtuais.
O conceito de comunidade vem evoluindo com o tempo,
comunidades não são mais só um conjunto de seres vivos que
habitam o mesmo espaço geográfico e ao mesmo tempo. Hoje com o
fenômeno da globalização a nossa cultura vem sofrendo alterações,
proximidades intelectuais passam a ser mais importantes que a as
proximidades físicas.
Nas comunidades virtuais o tempo e o espaço não são mais barreiras
para a comunicação mundial, ter o sentido de pertencimento passa a
ser característica básica para se formar qualquer tipo de comunidade.
Nas comunidades tradicionais as pessoas estão limitadas ao espaço
geográfico onde nasceram, hoje com a diversidade de conhecimento
e informação que a realidade virtual proporciona é possível escolher
o tipo de cultura que se quer conhecer.
Essa alteração no cenário social provoca uma mudança de
percepção temporal e geográfica humana. É possível hoje uma
comunicação interativa com pessoas de diversos lugares do mundo
com interesses em comum, esse encontro acontece no ciberespaço
(ambiente gerado em três dimensões através de computadores
conectados a internet). O ciberespaço cria uma realidade virtual onde
não existem só informações, o desenvolvimento tecnológico trouxe
junto novas formas de socialização, com essas ferramentas é
possível criar vínculos afetivos, de amizade e profissionais.
Temos como exemplos de comunidades virtuais a Wikipédia,
enciclopédia construída somente com colaboração de usuários da
internet. O orkut, gazzag, beltrano, multiply são redes de amigos que
oferecem diversas formas de interação entre os usuários. O Modlle e
o Twiki são sofwares livres para construção de escrita colaborativa. O
AulaNet, e-Proinfo, WebCT, Teleduc são ambientes de ensino online. Dentro desses ambientes virtuais onde se formam as
comunidades existem diversas formas de comunicação síncrona e
assíncrona como: fórum, e-mail, blogs, flogs, listas de discussão,
chats conforme os interesses e necessidades dos integrantes de
cada comunidade.
As comunidades virtuais possibilitam aos indivíduos manifestarem
suas individualidades e formar vínculos por afinidades, compartilhar
experiências com um acesso rápido a informação e a comunicação.
Assim o ciberespaço com todas possibilidades que oferece deve ser
utilizado para aproximar pessoas. Quando se consegue um emprego,
conclui um curso, conquista uma amizade entre pessoas que se
conheceram no mundo virtual, percebemos que toda essa tecnologia
está a serviço do ser humano.
118
http://ludiconacibercultura.blogspot.com/
Ela criou inclusive uma comunidade no próprio orkut, além do blog, para
ampliar essa possibilidade de trocas de experiências.
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=1492269
Uso pedagógico do Orkut
descrição: Comunidade criada para discutir as possibilidades de utilizar
o Orkut na escola, de como aproveitar todas as ferramentas
que ele oferece!
Sintam-se a vontade para criar novas questões no forum!
Para entrar em contato:
snvanessa@hotmail.com
categoria: Alunos e Escolas
dono: ღ ಌ Vαиe ‫کک‬α ღ ಌ ღ ಌ ღ ಌ ღ ಌ
tipo: pública
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25/04/2006 - 03:56
Não são as receitas ou as dicas de Vanessa que são importantes, mas sim a
compreensão de que a internet pode se constituir em mais um espaçotempo
para a formação de educadores (e de alunos), como um modo de ampliar as
possibilidades de conhecimento, o que significa ampliar as redes de
saberesfazeres existentes (FERRAÇO, 2005: 21).
Apenas como exemplificação das possibilidades que se abrem com as
variadas formas de uso da internet, vejamos uma das discussões promovidas
no blog de Vanessa sobre o uso do Orkut na escola.
119
Autor
Mensagem
karin
Enviada: Dom Dez 18, 2005 11:25 am Assunto:
orkut na escola
Como sao evitados excessos no uso do orkut durante a aula?
Há um tempo especifico para uso do orkut e depois continua
com outro conteudo no laboratorio? Adorei o projeto gostaria de
Registrado em: Dec mais informaçoes pode me ajudar?
18, 2005
Mensagens: 3
Localização:
caraguatatuba
Voltar ao Topo
Vicente
Enviada: Sex Dez 30, 2005 8:22 am
..orkut...
Olá karin!
Assunto:
Registrado em: Oct
10, 2005
você sabe que ultimamente vivo pensando em como utilizar o
Mensagens: 12
orkut no laboratório de informática?
Pois é, mas acredito que ainda não descobri a melhor forma, na
verdade gostaria de ter um "caminho das pedras", porque o
envolvimento que os alunos tem com esse ambiente e a
motivação em saber se há um novo scrap, se envontrou um
novo amigo.... isso deve ser apropriado por nós, de alguma
forma! sei que não estou te dando dicas, mas saiba que eu
também fico bastante angustiado em não saber -ainda- como
usar o orkut pedagogicamente.
talvez partindo da criação de uma comunidade da escola em
que você trabalha e revezando o "dono", depositando a
responsabilidade na organização e divulgação dos foruns,
animando a comunidade.... é mais ou menos por aí que penso
em usar... estou me organizando para experimentar isso em
2006.. quem sabe dê certo?
abraço
vicente
Voltar ao Topo
Visitante
Enviada: Dom Jan 15, 2006 7:10 pm
Vicente boa tarde,
Assunto:
obrigada por ter respondido a minha mensagem , continuarei
pesquisando se achar alguma informaçao entrarei em contato
um abraço
Voltar ao Topo
120
Visitante
Enviada: Qui Jan 19, 2006 9:39 am Assunto: vai
um link
tem uma comunidade no orkut q fala tb disso:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=1492269
adriane
adriane_halmann@yahoo.com.br
Voltar ao Topo
Vanessa
Enviada: Dom Abr 09, 2006 8:46 pm
Olá!!!
Assunto:
Registrado em: Sep
23, 2005
Mensagens: 4
Localização:
Santana do
Livramento/RS
Aqui vcs podem convefir um projeto que deu certo e utilizou o
Orkut como ferramenta.
http://br.geocities.com/snvanessa/casa.html
a escolha do orkut como ferramenta surgio após a criação da
comunidade citada pela adriana.
Um abração
Vanessa
Vamos conferir o projeto que, segundo a pedagoga Vanessa “deu certo”?
Valorizando a nossa cidade e a interação virtual
Objetivos:
* Proporcionar aos alunos um contato mais intimo com a arquitetura antiga da cidade;
* Ampliar com o auxilio do ambiente orkut, o espaço de discussão em fóruns virtuais, dando
maior movimento e * Interrelação entre alunos e pessoas diferentes, alimentando assim o
conhecimento;
* Desenvolver o raciocínio, a criatividade, o diálogo e a pesquisa virtual;
* Desvelar os diferentes estilos arquitetônicos;
* Ampliar o conhecimento da história da arte;
* Valorizar a arte como manifestação básica do ser humano;
* Cultivar o senso de preservação do patrimônio histórico-cultural, valorizando as diversas
manifestações artísticas que o compõe;
* roduzir um trabalho que possa desenvolver os potenciais artísticos e as múltiplas inteligências.
Justificativa:
Considerando o grande interesse de nossos alunos pela arte e as diversas inteligências e
habilidades evidenciadas nesta turma, nada melhor do que partir da pesquisa, e da pesquisa
para a prática, visando uma melhor e mais consistente aprendizagem.
Também para desvelarmos o olhar dos nossos alunos que são acostumados com imagens de
todos os tipos no nosso dia-a-dia, e que, muitas vezes não sabem olhar com criticidade o que
lhes é oferecido como produto de consumo.
A arte nos envolve o tempo todo. Mais ainda, diante das modificações de comportamentos e
tendências provocadas pelas novas tecnologias de informação e procurando adotar uma prática
pedagógica que enfatize a interação criativa, o espírito crítico e o julgamento de imagens e
121
valores, procurando ajudar os nossos alunos a desenvolverem a competência de aprender com
autonomia, condição fundamental para a vida na sociedade atual.
A utilização do ambiente orkut, vem para promover um metodologia colaborativa de trabalho
embassada numa matriz humanizante.
Clientela envolvida:
Alunos da 7ª série.
Professores responsáveis:
Dionéia de Macedo
Vanessa Nogueira
Duração:
Aproximadamente um trimestre.
Procedimentos gerais:
Parte 1 - Na sala de aula
Estudo de textos e imagens sobre a história da arte brasileira dos períodos colonial e barroco,
dando ênfase a arquitetura. Organização em pequenos grupos e escolha voluntária de prédios
históricos ou antigos da cidade.
Parte 2 - No laboratório de arte
Realizar desenhos, colagens, pinturas e maquetes que representem os elementos estéticos dos
períodos estudados e das casas pesquisadas.
Parte 3 - Pesquisa de campo
Procurar dados referentes a construção e registro de proprietários na prefeitura e no cartório de
registro de imóveis. Entrevistar os donos das casas e seus moradores. Fotografar a casa interna
e externamente. Construir vídeos.
Parte 4 - No laboratório de informática
Ver os trabalhos realizados pelos outros grupos nos anos anteriores;
Organizar e transferir os dados da pesquisa em forma de apresentação no power point;
Criar uma comunidade da turma e do projeto Essa casa tem história no orkut;
Participar ativamente de fóruns no orkut.
Parte 5 - Culminância
Realizar uma apresentação para a escola, dos trabalhos realizados. Publicar nos meios de
comunicação e na página da escola.
Colaboradores:
Pais dos alunos da 7ª série.
Avaliação:
Os alunos serão avaliados pela participação e comprometimento com o trabalho, e, pelo
trabalho produzido.
Para além de um uso instrumental dos recursos e meios de informação, o que
está em jogo e se coloca como um desafio da comunicação à educação é a
122
constituição de um ecossistema comunicativo no qual o que emerge é
outra cultura, outro modo de ler, de pensar e aprender (MARTÍNBARBERO, 2004: 341). Portanto, outras possibilidades e condições de se
constituir sujeitos.
Que deslocamentos epistemológicos e institucionais estão exigindo os novos dispositivos de
apropriação cognitiva a partir da interface que enlaça as telas dos lares de televisão com as
dos escritórios de computador e as lúdicas dos videogames? O que sabem nossas escolas, e
inclusive nossas faculdades de educação, sobre as profundas modificações na percepção do
espaço e tempo que vivem os adolescentes, inseridos em processos vertiginosos de
desterritorialização da experiência e da identidade, e capturados numa contemporaneidade
que confunde os tempos, debilita o passado e exalta o não-futuro fabricando um presente
contínuo: feito por sua vez das descontinuidades de uma atualidade cada dia mais
instantânea, e do fluxo incessante e embriagador de informações e imagens? Está a
educação dando atenção a essas interrogações? E, se não o está fazendo, como pode
pretender ser hoje um verdadeiro espaço social e cultural de apropriação de conhecimentos?
(MARTÍN-BARBERO, 2004: 339)
De acordo com Parente (2004:93) “as máquinas infocomunicacionais estariam
engendrando profundas transformações nos dispositivos de produção de
subjetividades”. Para ele, o espaço, os acontecimentos e as pessoas são cada
vez mais condicionados pela telecomunicação, constituindo outras condições
práticas e teóricas da experiência.
Se vivemos a época do homem dividido, do homem sem
qualidades, ou sem essência, é porque operamos cada vez mais
como uma ilha de edição não-linear. Quando falamos e pensamos,
nossas falas e pensamentos já não exprimem uma essência que
neles se exterioriza: eles são como que colagens que apenas
indicam os padrões das redes que nossas articulações tecem.
(PARENTE, 2004: 95)
Capítulo 6
123
Eu, robô?1
Numa sociedade cibernética, submetidos a uma dieta pesada
composta por informações de todo tipo, somos educados a
encararmo-nos como metáforas de computadores.
Guilherme Corrêa
Como eu acerto tudo que a professora pergunta, meus
colegas ficam bravos comigo e me chamam de “computador”.
Aluna da sétima série do ACM
Presente no cotidiano, a tecnologia faz parte da cultura. A invenção da escrita
dissociou tempo e espaço e possibilitou a comunicação a distância. A
imprensa ampliou a difusão do conhecimento. As informações chegaram a
leitores distantes do autor. A evolução registrou som e imagem. Fotografia,
rádio, cinema, televisão e imprensa incorporaram-se à vida diária. Tecnologias
modernizam-se, ganham memória, mobilidade. O telefone continua
importante; transforma-se, desempenha novas funções. A informática permite
usar o computador como suporte de televisão, rádio, Internet, imprensa.
Comunicar-se e inserir-se profissionalmente significa saber ler, escrever,
calcular, utilizar terminal eletrônico, secretária eletrônica, endereço eletrônico,
fax, microcomputador. São novas formas de comunicação, de acesso e
produção de conhecimento. Abrem-se espaços de diversão e aprendizagem.
(SEED – Secretaria de Educação a Distância – Ministério da Educação –
Programa TV Escola, desenvolvido em conjunto com o Centro de Formação
de Professores da UnB: http://www.cform.unb.br/paginas/tv_escola/guia7.htm
Uma das mais importantes questões do nosso tempo é justamente: onde termina o
humano e onde começa a máquina? Ou, dada a ubiqüidade da máquina, a ordem não seria
a inversa?: onde termina a máquina e onde começa o humano? Ou ainda, dada a geral
prosmicuidade entre o humano e a máquina, não seria o caso de se considerar ambas as
perguntas simplesmente sem sentido? Mais do que a metáfora, é a realidade do ciborgue,
sua inegável presença em nosso meio (“nosso”?), que põe em xeque a ontologia do
humano. Ironicamente, a existência do ciborgue não nos intima a pensar sobre a natureza
1
Operação de uso do título do filme Eu, robô, de Alex Proyas.
124
das máquinas, mas, muito mais perigosamente, sobre a natureza do humano: quem
somos nós? (SILVA, 2000: 12-13)
O mundo tem mudado muito ultimamente. Ninguém acredita
mais naquele sujeito totalmente autônomo, racional,
iluminado, reflexivo, senhor do pensamento e da ação. Hoje
esse cara é quase sempre rechaçado e, na melhor das
hipóteses, considerado muito suspeito. Pretensioso, aquele
tipo acreditava que era o centro do mundo, que podia prever
e controlar todas as coisas.
No entanto, a imagem da subjetividade humana legada pelo cogito - “penso,
logo existo” - dominou o pensamento ocidental por alguns séculos. Para
Santaella (2004), a noção de sujeito e de subjetividade dela derivada foram
forjadas no cartesianismo. O sujeito castesiano, de acordo com Silva (2000), é
o fundamento da idéia moderna e liberal de democracia e está no centro da
própria idéia moderna de educação. Eu diria que de comunicação também.
Será que o sujeito das Luzes evaporou-se no ar como o amor inventado de
Cazuza?
O NOSSO AMOR A GENTE INVENTA
PRA SE DISTRAIR
E QUANDO ACABA A GENTE PENSA
QUE ELE NUNCA EXISTIU
O que nós vamos fazer agora que não acreditamos mais na existência desse
sujeito inventado?
Quem o substituiu?
Quem é - se é que ele existe - o atual sujeito da educação? Ou melhor, que
tipo de sujeito estamos inventando?
O que mudou, se é que mudou, foi o homem ou foram nossas concepções
sobre o homem? E mais, ainda é possível separar nosso discurso sobre o que
fomos e somos do que nos tornamos?
ANTES DE EXISTIR COMPUTADOR EXISTIA TEVÊ
ANTES DE EXISTIR TEVÊ EXISTIA LUZ ELÉTRICA
ANTES DE EXISTIR LUZ ELÉTRICA EXISTIA BICICLETA
ANTES DE EXISTIR BICICLETA EXISTIA ENCICLOPÉDIA
ANTES DE EXISTIR ENCICLOPÉDIA EXISTIA ALFABETO
ANTES DE EXISTIR ALFABETO EXISTIA A VOZ
125
ANTES DE EXISTIR A VOZ EXISTIA O SILÊNCIO
Arnaldo Antunes
Manual do Aluno da
Escola Álvaro de Castro
Mattos (2005).
- Você não precisa
sonhar
em
ser
o
Ronaldinho do futebol
nem a Sandy da música.
- Você deve lutar para
ser o melhor VOCÊ
possível.
- Pois você é muito
especial!
- Deus tem planos para
você!
- Seja persistente...
- Seja humilde...
- Ame a Deus...
126
O que pode, o que não
pode? Quem é e quem
não é o quê? Quem sou
eu? O que é meu? Qual
é o meu lugar no mundo?
Direitos, deveres,
explicações. Tantas
propostas, tantos
agenciamentos, tantas
incertezas, tantas idéias,
tantas possibilidades,
tantos possíveis...
Para tentar apreender os
caminhos e descaminhos do sujeito, não em sua essência, mas em sua ação,
em sua produção, em sua invenção, sigo pistas de Muniz Sodré. Ele afirma que
todas as sociedades constroem regimes de visibilidade de si mesmas, nos
quais criam espaços para encontros de cidadania.
Na realidade, toda e qualquer sociedade constrói (por pactos
semânticos ou semióticos), de maneira mais ostensiva ou
mais secreta, regimes auto-representativos ou de visibilidade
pública de si mesma. Os processos de comunicação, as
instituições lúdicas, os espaços urbanos para os encontros
da cidadania integram tais regimes. (SODRÉ, 2002: 16)
Com Foucault, penso que esses regimes de visibilidade operam não como
representação tal qual espelho, mas, articulados a práticas sociais,
econômicas, políticas, institucionais e culturais, como um processo constituinte
da produção, fabricação, invenção de uma forma de ver o mundo e de uma
forma de estar no mundo nos limites do possível e do necessário. Acho que é
isso que ele quer dizer com uma atitude filosófica, uma ontologia crítica de nós
mesmos que não é uma teoria, uma doutrina ou um saber que se acumula,
mas uma via em que a crítica do que somos é, ao mesmo tempo, “análise
histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem
possível” (2005: 351).
Nos rastros de Sodré e Foucault e no encalço do sujeito contemporâneo, trilhei
pela internet em busca de imagens-mundo que pudessem ser usadas como
indícios para pensarmos os sentidos para a ação e invenção humanas no
127
planeta Terra que podem estar sendo com elas forjados. Encontrei formas
sugestivas de significar o mundo, como o globo, a Globo e a globalização.
Talvez essas imagens nos digam algumas coisas sobre modos possíveis de se
tornar sujeito em um determinado
tipo de mundo pensadopraticado.
Começo, agenciada pelas imagens
que encontrei, pela Terra segundo a
geografia
descrita
por
Dante
Alighieri em A Divina Comédia
(1321), ilustrada por Helder Rocha e
disponibilizada
na
internet
(http://www.stelle.com.br/pt/index_da
nte.html). No hemisfério superior
está Jerusalém e, segundo o site, o
mundo conhecido no século XIV. No
hemisfério inferior há um grande
oceano com uma única ilha no seu
centro
onde
desponta
uma
montanha tão alta que alcança os
céus.
Na imaginação ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme. Ilha
ou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe
concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos e
até uma data bastante próxima. E, mais precisamente oceânica: espaço infinito,
incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma
esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem
caminho.
(FOUCAULT, 2002: 205)
Conforme o site, a Divina Comédia pode ser uma fonte original e acessível
para a cosmovisão medieval, ou, ao menos, para o conhecimento do mundo
clássico traduzido pela cosmosivão de um homem da Idade Média. Escrita em
italiano, a obra é um poema narrativo rigorosamente simétrico e planejado que
narra uma odisséia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, descrevendo cada etapa
da viagem com detalhes quase visuais. Dante, o personagem da história, é
guiado pelo inferno e purgatório pelo poeta romano Virgílio, e no céu por
Beatriz, musa em várias de suas obras.
Trago a cosmovisão da Idade Média para esse pensamento genealógico, a
convite de Najmanovich. Ela me alerta para que a “modernidade não desceu do
céu de pára-quedas, ou emergiu adulta do oceano” (2001: 11). Da mesma
forma, a mentalidade moderna não é, para ela, um sistema homogêneo em que
impera uma racionalidade pura.
É o nome genérico de uma rede complexa de idéias,
conceitos, modos de abordagem, perspectivas
intelectuais, estilos cognitivos, modalidades de intelecto128
ação e atitudes valorativas, sensíveis e perspectivas que
caracterizam uma época ampla.
(NAJMANOVICH, 2001: 11)
Essa complexidade que foi chamada no Ocidente de modernidade é forjada em
condições variadas de produção de conhecimentos, que se tecem com
possíveis fragmentos de saberes, práticas, lendas, narrativas, crenças,
imagens, sensibilidades e memórias pertencentes ao arquivo (Foucault, 2005)
fabricado num determinado momento e recebido desde a Antigüidade.
Assim sendo, Descartes (apontado como criador do personagem-modelo
sujeito racional) não empreendeu suas meditações num mundo abstrato e não
inventou uma filosofia a partir do nada, mas sim na Terra e num contexto
histórico peculiar. Conforme Najmanovich, reinava no tempo dele uma
atmosfera de desconcerto e desordem por conta das fissuras no sistema
aristotélico-tomista como modo de perceber e significar o mundo, portanto de
conhecer. O conhecimento da astronomia, na época, tinha uma importância
central, pois constituía o núcleo da cosmologia medieval. A transformação
desse espaço implicava transtornar todas as relações que organizavam a
experiência do mundo e lhe davam sentido.
Relógio de 24 horas mostrando a passagem
do tempo, como descrita por Dante no seu
poema. O céu representa as constelações da
primavera (semana santa de 1300). No relógio
do tempo estão representes também os
signos na astrologia, o céu, o inferno e o
purgatório. Ilustração de Helder da Rocha.
Foucault tem um entendimento
bastante interessante sobre o saber
medieval, quando conhecer dava
acesso
à
semelhança
e
a
semelhança permitia conhecer (2005:
11). Conhecer por similitudes seria,
segundo ele, compreender ou atribuir
sentido por conveniência, emulação,
analogia e simpatia. Uma episteme na qual signos e similitudes, bem como
microcosmo e macrocosmo, se enrolavam reciprocamente.
Esse saber devia acolher simultaneamente e no mesmo plano magia e
erudição. Acreditamos facilmente que os acontecimentos do século XVI
eram constituídos de uma mistura instável de saber racional, de noções
derivadas das práticas de magia e de toda uma herança cultural, da qual
a descoberta de textos antigos havia multiplicado os poderes de
autoridade. Assim concebida, a ciência dessa
época parecia dotada de uma estrutura frágil; ela
129
seria apenas o lugar liberal de uma confrontação entre a fidelidade aos
Antigos, o gosto pelo maravilhoso e uma atenção já despertada sobre
essa soberana racionalidade na qual nos reconhecemos. E essa obra
trilobulada se refletiria no espelho de cada obra e de cada pensamento
partilhado... Na verdade, o saber do século XVI não sofre de uma
insuficiência de estrutura. Vimos, pelo contrário, o quanto são meticulosas
as configurações que definiam o seu espaço. É esse rigor que impõe a
relação entre magia e erudição – não conteúdos aceitos, mas formas
convenientes. O mundo está coberto de signos que é preciso decifrar.
(FOUCAULT, 2005: 27)
Conhecer seria, portanto decifrar. “A adivinhação não é uma forma concorrente
de conhecimento; ela dá corpo ao próprio conhecimento” (FOUCUALT, 2005:
27-28).
Najmanovich acredita que a emoção básica sobre a qual se construiu o
pensamento cartesiano foi o temor ao caos, o desejo de extirpar o erro, a
procura da certeza, a necessidade de garantias. Para ela, Descartes tornou-se
protagonista de uma transformação experimental do sujeito, cuja existência
deveria ser idêntica a seu pensamento. O esforço racional e metódico é o que
deve ser exigido e levado em conta para produção no Ocidente de novo
homem que não se deixaria enganar por suas ilusões. E essa produção não foi
levada a cabo de uma hora para outra, nem, apesar de sua pretensão,
universalizou-se por todo o planeta.
O cosmos moderno foi fruto de um imenso trabalho social,
caracterizado pela transformação das formas de vida, que incluiu
os estilos de conhecimento, as pautas de sua legitimidade, no
contexto de uma verdadeira mutação da experiência, que abarcou
desde as formas de perceber e de pensar até as de narrar e de
explorar, sem excluir as formas de sentir e de atuar no mundo.
(NAJMANOVICH, 2001: 60-61)
Nessa longa produção da modernidade, as Luzes constituíram um
acontecimento, ou um conjunto de acontecimentos, que, segundo Foucault
(2005: 335), determinou, pelo menos em parte, o que somos, pensamos e
fazemos hoje.
Num detalhado trabalho de desconstrução do texto de Kant “Qu’este-ce que les
Lumières? (O que são as Luzes?), publicado no periódico alemão Berlinische
Monatsschrift, em 1784, Foucault destaca que a novidade desse texto está “na
reflexão sobre a ‘atualidade’ como diferença na história e como motivo para
uma tarefa filosófica particular” (2005: 341). Foucault reconhece naquele texto
um ponto de partida para o que ele chama de “atitude de modernidade”,
freqüentemente tratada como época histórica.
130
Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha
voluntária que é feita por alguns; enfim uma maneira de pensar e sentir, uma maneira
também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência
e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos
chamavam de êthos. Conseqüentemente, mais do que querer distinguir o “período
moderno” das épocas “pré” ou “pós-modernas”, creio que seria melhor procurar
entender como a atitude de modernidade, desde que se formou, pôs-se em luta com
as atitudes de “contramodernidade”.
(FOLUCAULT, 2005: 341-342)
Nessa atitude de modernidade, conforme Foucault, o valor do presente é
indissociável da obstinação de imaginá-lo de modo diferente e transformá-lo,
não o destruindo, mas captando-o no que ele é. Em Baudelaire (Le peintre de
la vie moderne) Foucault encontra ajuda para caracterizar a atitude de
modernidade como um modo de relação do homem não só com o presente,
mas como um modo de relação que é preciso estabelecer consigo mesmo, é
tomar a si mesmo como objeto de elaboração complexa e dura.
O homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que parte para descobrir a si
mesmo, seus segredos e sua verdade escondida: ele é aquele que busca inventar-se
a si mesmo. Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe
impõe a tarefa de elaborar a si mesmo.
(FOUCAULT, 2005: 344)
Ao destacar essa atitude, Foucault não pretende resumir a complexidade do
acontecimento histórico que marcou o fim do século XVIII, mas sim enfatizar o
enraizamento nas Luzes de um tipo de “interrogação filosófica que
problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser
histórico e a constituição de si próprio como sujeito” (2005: 344-345). Mais do
que isso, Foucault nos convida a reativar um ethos filosófico que se caracteriza
como crítica permanente de nosso ser histórico.
Esse êthos filosófico pode ser caracterizado como uma atitude-limite. Não se trata de
um comportamento de rejeição. Deve-se escapar à alternativa do fora e do dentro; é
preciso situar-se nas fronteiras. A crítica é certamente a análise dos limites e a
reflexão sobre eles. Mas, se a questão kantiana era saber a que limites o
conhecimento deve renunciar a transpor, parece-me que, atualmente, a questão
crítica deve ser revertida em uma questão positiva: no que nos é apresentado como
universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto
das imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a
forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem
possível. (...) E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da
forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá
da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer
ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos. Ela não busca tornar possível a
metafísica tornada enfim ciência; ela procura fazer avançar tão longe e tão
amplamente quanto possível o trabalho infinito da liberdade.
131
(FOUCAULT, 2005: 347-348).
Assim, Foucault, sem renunciar à sua concepção de sujeito como forma
constituída historicamente, concebe os processos de subjetivação como
ensaio, como processo estético e ético que busca produzir modos de existência
inéditos. Com ele (1995) aprendemos também que a subjetividade não é uma
interioridade e não está localizada no indivíduo, ao contrário, os processos de
subjetivação se engendram numa conjuntura histórica, cultural e política. Isso
nos permite pensar que as novas tecnologias da comunicação e da informação
no contexto da globalização do mercado e da transnacionalização do capital,
são contingentes na produção de subjetividades contemporâneas, assim como
são contingentes para o exercício do poder e para o trabalho infinito da
liberdade.
- Na simplicidade das coisas está o segredo e a felicidade da vida. Temos que começar a andar
na contramão daquilo que está instituído.
- Não vamos pensar no aluno ideal. O aluno ideal a gente só vai encontrar na rede Globo.
- Vi uma imagem da natureza e fiquei pensando nas crianças. Será que elas já viram uma
cachoeira? A natureza está ficando pra trás. Onde vai parar essa tecnologia?
Falas de professoras do ACM, conversando sobre possibilidades de ensino,
aprendizagem e formação dos alunos.
Vejamos então mais algumas imagens-mundo capturadas na internet e as
possíveis relações homem-mundo e homem-consigo mesmo que, atreladas a
determinados contextos históricos, elas sugerem.
Temos aí metáforas da relação com o mundo e
do conhecimento-invenção de mundo a partir da impressa e do conhecimento
arquivado e fabricado por meio da escrita e posto em circulação por meio do
livro, da enciclopédia, das revistas e dos jornais (o que, segundo Sodré – 2002
-, requer um sujeito com competência analítica, racional, dedutiva, voltada à
132
interpretação dos fenômenos); a partir das redes de televisão e de informática
que comprimem o espaço e o tempo tornando tudo visível e acessível aqui e
agora ao alcance da mão (o que sugere, também de acordo com Sodré – 2002
-, um alto grau de indiferenciação entre o homem e sua imagem, um aumento
das margens de indecibilidade e uma postura cognitiva exploratória diante da
lógica caótica, do regime semiótico indiciário e dos afetos e sensações que
presidem os jogos discursivos da mídia); a partir da globalização dos
mercados, da transnacionalização do capital e da midiatização da experiência,
com seus valores como fluidez, fragmentação, equivalência e bricolagem (o
que pode ser pensando, com Sodré – 2002 -, como nova qualificação cultural e
consolidação do ethos do consumo); da união e confraternização global em
torno de “patrimônios da humanidade”, como os esportes, especialmente o
futebol; e até da busca pela solidariedade planetária promovida pelos
movimentos sociais e organizações não-governamentais interconectados
(pensando com Castells – 2002 -, a Internet como um meio de comunicação
que constitui a forma organizativa de nossa sociedade, que constitui a
sociedade em rede em que vivemos).
Mas do que metáforas, são apostas, são perspectivas que se chocam e se
hibridizam na configuração da complexa e paradoxal “atitude pós-moderna” e
que possibilitam a configuração das também complexas, híbridas e paradoxais
subjetividades contemporâneas.
De acordo com Santaella (2005) Deleuze criou conceitos que rompem com as
modalidades dominantes de pensar e representar a subjetividade. São
conceitos inseparáveis de novos perceptos (novas maneiras de ver e escutar) e
de novos afectos (novas maneiras de sentir). Ao contrário da subjetividade
essencializada do sujeito cartesiano, Deleuze desenhou subjetividades
múltiplas, heterogêneas, fluídas, em movimento, continuamente produzidas e
capazes de afetar e de serem afetadas.
Os sujeitos, assim pensados, se constituem a partir de “agenciamentos” que
metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à medida que expandem suas
conexões: eles são nada mais e nada menos do que as cambiantes conexões
com as quais são associados.
Pelo menos uma das imagens anteriores, do símbolo da Globo, me remeteu a
uma explicação metafísica e metafórica sobre o sentido da vida, os direitos e
os deveres dos sujeitos, associada a um regime de compreensão/invenção do
mundo na imanência de uma ambiência e de um ethos midiático, que ouvi na
escola Álvaro de Castro Mattos.
Várias professoras conversam no pátio sobre religião, fé, vida, morte e
reencarnação. Para melhor defender sua crença, uma delas valeu-se da
seguinte analogia:
133
Pra mim, a nossa vida aqui nesse mundo é
como se fosse na Rede Globo, cada um já
vem com seu papel. Se o “diretor”, o cara lá
de cima, gostar, se a gente fizer tudo
direitinho, a gente volta com um papel
principal, melhor. Mas, se a gente fizer tudo
errado, a gente volta com um papel pior.
Quando ouvi a explicação, pensei imediatamente na influência da televisão na
vida das pessoas. É evidente que isso está colocado, mas o que esse
agenciamento produz? Ao que tudo indica produz um comportamento ajustado
às expectativas sociais, às expectativas da modelagem midiática, às
expectativas do sistema. Mas, prestando mais atenção ao que a professora
disse, penso tratar-se, acima de tudo, de uma atualização, na contingência de
uma ambiência televisiva, de um agenciamento muito mais antigo e
transcendental, que não se rendeu ainda nem mesmo a atitude de
modernidade caracterizada por Foucault. Nessa tradução, o diretor da Rede
Globo de Televisão ocupa o lugar de Deus, mas nessa negociação de sentido,
não é o Diretor da Globo nem Deus quem determina o comportamento da
professora e sim o seu desejo de conseguir um “papel melhor”. Neste caso não
é nem a possibilidade da felicidade imediata prometida pelo consumo e pela
adesão ao modelo que as celebridades midiáticas prescrevem que a move,
mas ela almeja ainda uma felicidade eterna. Isso me faz pensar na
complexidade de nossos tempos e na diversidade de lógicas que o habitam.
O que é fazer tudo direitinho? Como podemos conseguir um “papel melhor”
conforme os mandamentos da “Vênus Platinada”?
Tá ligado? Estar em sintonia com as ondas do rádio e da TV, em dia com as notícias, online
na web, conectado às hiper-mídias e às novas tecnologias, plugado dia e noite, por dentro da
moda e dos últimos lançamentos do mercado, exercer cidadania planetária, ter endereço
eletrônico, cartão eletrônico e senhas de acesso são algumas das atuais exigências para que
a gente seja considerado um cidadão civilizado, um cidadão atualizado, um cidadão reciclado,
um cidadão midiatizado, um cidadão qualificado, isto é, um cidadão globalizado.
Eu cidadão do mundo! Livre para zapear e escolher a melhor programação num variado
cardápio de produções regionais, nacionais e internacionais disponibilizadas por dezenas de
canais de TV por assinatura. Livre para navegar pela internet, criando meu próprio percurso em
busca apenas de diversão, de informações e de relações que interessam exclusivamente a mim
e que podem melhorar a minha performance social e profissional.
Com o controle remoto à mão, o telespectador navega por canais
abertos e pagos, entrecortando programas e intervalos comerciais até
localizar os favoritos. A telenavegação importa a possibilidade de
134
individualizar o ato de ver TV, em função de conceitos e preferências
subjetivos. O zapeador usufrui da prerrogativa de se mover a qualquer
instante, dando vazão à metáfora do sedentário-nômade – que se
transporta para toda parte, através das projeções de monitores e telas,
sem precisar sair do lugar onde está. E não se trata, propriamente, de
privilégio para as classes A e B, pois, de cada dez televisores existentes
no Brasil, sete ou oito são equipados com controles remotos.
(MORAES, 1998: 235)
O mundo todo ao meu alcance, o mundo inteiro na minha tela! A TV e o computador são
minhas janelas para o universo, janelas-telas sempre abertas para a novidade e a diversidade
seguras, assépticas e protegidas de qualquer contaminação física ou desgaste emocional. Tudo
à distância. Guerras, tráfico, atos terroristas, celebrações, manifestações, multidões, corrupção,
descaso, negligência, espetáculos, romances, traições, assassinatos, delações, vitórias,
avalanches, epidemias, terremotos, explosões estrelares, maremotos, furacões, frustrações,
miséria, erotismo, esoterismo, horror, bizarrices, excentricidades, celebridades, viagens que me
causam frisson, me impactam, mas não me ameaçam, não me afetam. Tudo se equivale. É
como assistir um filme. Afinal passa rápido e não se passa comigo, mas com os outros. Ainda
bem!
Socorro, nao estou sentindo
Nada
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Nao vai dar mais pra chorar
Nem pra rir
Socorro, alguma alma, mesmo
Que penada,
Me empreste suas penas
Ja nao sinto amor nem dor,
Ja nao sinto nada
Socorro, alguem me de um
Coração,
Que esse ja nao bate nem apanha
Por favor, uma emocao pequena,
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta,
Tem tantos sentimentos, deve ter
Algum que sirva
Socorro, alguma rua que me
De sentido,
Em qualquer cruzamento,
Acostamento,
Encruzilhada
Arnaldo Antunes
Posso até chorar, rir, temer e torcer, mas pelo que acontece com os outros, com as desventuras
dos outros, com as aventuras dos outros, sem suar, sem sangrar, sem gozar, sem que me
toquem, sem que me arranhem. Continuo intacto. Se me aborrecer, se me indignar, se me
entediar, eu mudo de canal ou de link e fico na minha, viajo sem sair do lugar, sem precisar me
135
envolver, ajudar e participar. Esse voyeurismo me dá uma sensação de poder (como se eu
estivesse no panóptico, vejo sem ser visto) e uma impressão de individualidade, de privacidade,
de liberdade. Não preciso de nada e de ninguém. Continuo desencarnado. Não sou mais alma,
não sou mais consciência, não sou mais mente, não sou mais razão. Agora sou fluxo,
intensidade etérea teletransportável como ondas em freqüências moduladas e cabos de
fibra ótica.
A imbricação entre televisão e informática produz uma aliança
entre velocidades audiovisuais e informacionais, entre inovações
tecnológicas e hábitos de consumo: “um ar de família vincula a
variedade das telas que reúnem nossas experiências laborais,
caseiras e lúdicas”, atravessando e reconfigurando as experiências
da rua e até as relações com o nosso corpo sustentado cada vez
menos em sua anatomia e mais em suas extensões
tecnomidiáticas: a cidade informatizada necessita de corpos não
reunidos, mas sim interconectados.
(MARTÍN-BARBERO, 2004: 294)
Me sinto livre porque acho que posso escolher. Tenho centenas de amigos com quem me
encontro em ambientes virtuais e aprendi que posso escolher com quem e quando vou me
relacionar sem ser confrontado. Só depende da minha necessidade, do meu desejo, da minha
vontade. Entro e saio do orkut, do chat, do msn, do e-mail e só falo com quem eu quero, só
respondo se me der na telha,
porque não tem ninguém ali em carne e
osso na minha frente para me
olhar no olho, para que eu possa ver no
rosto a decepção e a ansiedade,
para me lembrar que eu devia ter
compromisso,
consideração,
solidariedade. Já me acostumei tanto
com essa forma de agir que, sem
perceber, me comporto da mesma forma
quando estou nos ambientes que as pessoas chamam de reais. Tenho uma câmera de
vigilância e um interfone na porta de casa e finjo que não estou, sempre que posso, para evitar
contatos imediatos de primeiro grau com sujeitos encarnados. Também não atendo o telefone e
o celular se a conversa com a pessoa cujo número aparece na bina não for sobre trabalho ou
algum assunto para mim absolutamente indispensável. Em caso de dúvida, deixo tocar e depois
aciono a secretária eletrônica. Além disso, não preciso fazer nenhum esforço de memória,
tenho tudo (mensagens, recados, textos, documentos, vídeos, fotos, etc...) no arquivo do meu
PC.
Não preciso mais sair de casa para me divertir, baixo filmes, músicas, livros e até faço compras e
cursos pela internet e, em alguns casos pelo telefone. O celular tem ainda mais vantagens, tira
fotos, se eu não estiver com minha câmera digital, envia torpedos, me informa quem telefonou e
guarda na agenda os números dos meus contados para que eu não precise memorizar. Se por
um absurdo qualquer for inevitável sair de casa eu levo meu laptop ou meu ipod para ter
minimamente o que me é imprescindível à mão.
Ao contrário do que pode parecer não me considero solitário. Vejo todo momento, através de
minhas janelas-telas, muitos rostos conhecidos, jovens, saudáveis, alegres e bonitos, sempre
amáveis, sorrindo para mim, piscando o olho para mim, me contando seus segredos com uma
surpreendente cumplicidade e me oferecendo coisas incríveis que são as chaves para a
felicidade. Estão sempre me olhando (mesmo sem me ver), se dirigem a mim e me chamam de
você e, não importa o que eu faça, estão sempre inflando meu ego, me empurrando para frente,
levantando meu astral, incentivando meu narcisismo com palavras do tipo: Você pode! Só falta
você! Não saia daí, a gente volta já! Fique com a gente!O importante é que você se sinta
136
bem! Você merece o melhor! Tudo por você! Agora você pode ter tudo que sempre quis!
Os melhores preços só para você! Você decide. Vem pra Caixa você também. Vem! Na tela
da TV, no meio desse povo, a gente vai se ver na Globo.
Daqui prá frente nova vida eu terei
Sempre a meu lado bem feliz eu serei
Eu me amo , eu me amo
Não posso mais viver sem mim
Ultraje à Rigor
Apesar dos apelos freqüentes ainda não consegui entrar na Caixa e nem me ver na TV. Mas
tudo bem, afinal eu prezo acima de tudo, como já disse, minha individualidade e privacidade.
No rádio, no computador e na TV tenho companhia o tempo todo com a vantagem de não
precisar dar satisfações a ninguém, de não precisar criar vínculos com ninguém, de não ter que
dividir nada com ninguém, de não ter que compartilhar nada com ninguém, de não precisar ter
intimidade com ninguém, de não precisar dar nada a ninguém. Dessa forma, tenho controle
(remoto) total sobre o que é só “meu” e não preciso pensar em quem sou “eu”. Até porque eu
reconheço todas as celebridades da mídia, mas não sou conhecido de e reconhecido por
ninguém. Se eu sou feliz? Não sei. Não tenho tempo para pensar nisso é só me distrair com
alguma coisa e pronto, está tudo bem!
Tenho liberdade para escolher o que vou consumir, quem eu quero ser e com quem e com o quê
vou me conectar. Só não sou livre para não consumir, para não ser alguma coisa e para
não me conectar. Mas isso não faz diferença. Ou faz?
Para um número incalculável de professores e estudantes desse país, assim
como para muitas outras pessoas, isso faz sim muita diferença. Essa é apenas
uma faceta-limite de uma complexa e multifacetada “atitude pós-moderna”, mas
que não pode ser simplesmente descartada na medida em que tende a imporse, na contingência de nosso tempo, sobre as demais. O direito de não
consumir, de não ser alguma coisa programável, localizável ou identificável, de
não estar ligado a uma prótese tecnológica rastreadora e informacional, de não
ter um encosto eletrônico, de não estar conectado, não está de forma alguma
assegurado. Muito pelo contrário, os sem senha-de-acesso são os “excluídos”
mais cobiçados, são o alvo predileto das mais diversas, complexas,
contraditórias e paradoxais políticas de “inclusão”, “terapêuticas pedagógicas” e
“ações pela cidadania” propostas e/ou implementadas por pesquisadores,
gestores e atores da educação, da comunicação, do mercado, da
administração pública, das organizações não-governamentais e das
associações transnacionais, nesse momento em que caminhamos para a
convergência total das mídias.
Temos direito e, ao mesmo tempo, obrigação de ter acesso às novas
tecnologias da informação? Não faz mais diferença. No mundo capitaneado
pela elite global dos negócios da indústria cultural (BAUMAN, 2003), não há
mais lugar para os descamisados, quero dizer, para os desconectados.
137
Considere-se, portanto privilegiado se você já está incluído ou se, ao menos,
faz parte de um grupo com potencial para a inclusão digital, porque os
famintos, os miseráveis, os abandonados, os doentes, os inválidos, os
improdutivos, os analfabetos, os indesejáveis, os desvalidos de todo tipo, nem
vão existir mais, serão como as baratas de Kafka, vão morrer por não poder
mais se comunicar.
Mas que ninguém se iluda, somos todos até certo ponto zumbis, mortos-vivos
com e sem conexão e vivos que se fazem de mortos para não serem
totalmente capturados pelas redes de informação, e continuamos vagando
entre os buracos negros da cosmotecnologia, nos não-lugares da telerrealidade
para nos desviarmos da racionalidade informacional instituindo nas redes
entre-lugares com as marcas dos ocupantes. Falamos, tentamos falar, mas
nem sempre conseguimos nos ouvir.
O problema é que a gritaria dos massmidiólogos pragmáticos nos
tem tornado surdos à palavra que se ergue desde o silêncio de
nossas culturas pobres. Estas culturas falam um idioma que
desconhecemos quase por completo e para cujo aprendizado
nosso sofisticado instrumental é freqüentemente mais um obstáculo
que uma ajuda.
(MARTÍN-BARBERO, 2004: 104-105).
Com Martín-Barbero admito que a massimidiatização é mais uma aposta
teórica, além de um discurso que muito interessa aos administradores e
operadores do mercado das telecomunicações (que assim se fortalecem), do
que uma possibilidade concreta, embora pudesse vir a sê-lo se aderíssemos
plenamente ao seus projetos. A homogeneização e o consenso, nem sequer
podem ser garantidos pela ação e vontade das mídias, que como instituições
também complexas e híbridas, abrigam uma variedade de posicionamentos e
atitudes forjados nas negociações com outras instituições, outras
manifestações, outras lógicas, outras rotinas, que são sua condição de
credibilidade e, ao mesmo tempo, configuram sua ambigüidade.
De qualquer forma, a ambiência da comunicação e da informação é
incontestável e é em meio a ela que nos movemos atualmente, é também na
relação com os meios, recursos, lógicas e tecnologias da telemática que nos
constituímos sujeitos.
Santaella (2004) utiliza o conceito de dobra de Deleuze para
explicar os processos de subjetivação como modificação dos
limites que nos sujeitam, para nos reconstruir com outras
experiências, com outra delimitação. Pensar os processos de
subjetivação em termos de dobra implica despojar o sujeito de toda
identidade e de toda interioridade e, ao mesmo tempo, reconhecer
a possibilidade de transformação e de criação que elas deixam abertas.
138
Assim, o sujeito está sempre em construção, com capacidade de afetar e ser
afetado, por estar enredado em uma cadeia de conexões entre humanos,
artefatos técnicos, dispositivos de ação e pensamento. O dobrar, desdobrar e
redobrar substitui o essencialismo.
Para Santaella (2004) podemos então pensar os sujeitos como
“agenciamentos” que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à medida
que expandem suas conexões: eles são nada mais e nada menos do que as
cambiantes conexões com as quais são associados. Nos tempos atuais é
quase impossível não estar conectado a algum meio de comunicação e de
informação. O que não significa de forma alguma que sejamos robôs. Podemos
nos sentir, na pior das hipóteses, como uma espécie de Marvin.
Marvin é o robô depressivo do filme de ficção
científica e humor O Guia do Mochileiro das Galáxias
(2005). Ele foi construído com a tecnolgia “Genuína
Personalidade Humana”. Além de uma depressão
crônica, Marvin é pessimista, mas inteligente:
“conversei com o computador principal e ele me
odeia”, diz ele com desprezo.
http://img148.imageshack.us/img148/6591/excluidashgg63ng.jpg
E desse jeito, nos tornamos todos ciborgues.
Tomando o ciborgue como uma metáfora, uma ironia e uma ficção que pode
mudar o mundo, Haraway (2000) nos propõe uma política ciborgue que permite
vislumbrar um campo muito mais aberto, uma atitude ciborgue em favor do
prazer da confusão de fronteiras.
Assim, meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas, potentes
fusões e perigosas possibilidades – elementos que as pessoas
progressistas podem explorar como um dos componentes de um
necessário trabalho político. (...) de uma outra perspectiva, um mundo de
ciborgues pode significar realidades sociais e corporais vividas, nas quais
as pessoas não temam sua estreita afinidade com animais e máquinas,
que não temam identidades permanentemente parciais e posições
contraditórias. A luta política consiste em ver a partir de ambas as
perspectivas ao mesmo tempo, porque cada uma delas revela tanto
dominações quanto possibilidades que seriam inimagináveis a partir do
outro ponto de vista. Uma visão única produz ilusões piores do que uma
139
visão dupla ou do que a visão de um monstro de múltiplas cabeças.
(HARAWAY, 2000, 50 – 51)
Eu, pelo menos por enquanto, fecho com ela: Prefiro
ser uma ciborgue a uma deusa. Essa atitude, de
acordo com Haraway significa recusar uma metafísica
anticiência, uma demonologia da tecnologia e assim
abraçar a tarefa de reconstruir as fronteiras da vida
cotidiana em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas
as partes (2000: 108).
Essa não é, contudo, uma tarefa fácil. É uma atitude possível, uma aposta, um
modo de ação política, uma estética de existência, uma tecnologia de si, um
estilo de vida, uma arte de viver, um processo de subjetivação, uma forma de
saída dos dualismos, das categorizações, das hierarquizações.
Trata-se de uma micropolítica de fronteiras contra a macropolítica dos
conjuntos binários, como propôs Deleuze (1992).
Franco Berardi (2002), em um texto dedicado a Félix Guattari, problematiza a
sociedade pós-mídia, dialogando sobre os paradoxos da rede com o
psicanalista.
A primeira vez que ele me falou nestes termos, pensei que estivesse brincando comigo. Mas
depois ele começou a se explicar. E me falou — estávamos no início dos anos 80, talvez no
verão de 82 - que não era o caso de temer o predomínio da televisão sobre os fluxos da
comunicação social. De fato, segundo Guattari, os progressos da informática tornariam possível
uma larga difusão de combinações rizomáticas. "Relações bidimencionais e multidirecionais
entre coletivos de enunciação pós-midiática", dizia ele. Estas combinações, assim como seus
modelos relacionais, iriam infectar o sistema televisivo centralizado, para depois perturbar e
desestruturar todas as formas hierárquicas estatais e econômicas.
Félix estava descrevendo claramente a utopia da rede, rizoma proliferante de cérebros e de
máquinas. Aquela utopia se encarnou na tecnologia, na cultura, inclusive na imprensa. Mas
como todas as utopias, naturalmente, não é pacífica. Assim, trava-se uma guerra no contexto do
devir pós-midiático. É a guerra interminável entre o domínio e a liberdade. No transcorrer dos
anos 90, o rizoma desenvolveu-se, mas foi contaminado por vírus semiotizantes de natureza
centralizadora e hierarquizadora. A penetração da publicidade, do business, da televisão na rede
telemática foi um dos aspectos dessa infiltração. Outro aspecto foi a imposição da propriedade
140
intelectual do software. Mas a complexidade do sistema rizomático não pode ser reduzida
definitivamente pela ação de nenhum projeto redutor. Nesse sentido, a profecia pós-midiática de
Félix Guattari segue sendo desmentida a cada dia e a cada dia confirmada pela dinâmica
incessante do domínio e da liberdade.
Mas o ponto filosoficamente mais importante da profecia pós-midiática de Félix Guattari está
aqui: Félix nos compele a perguntar o que quer dizer mediatização, e em que medida a
mediatização envolve, incomoda, reprime, apaga a nossa singularidade corpórea. Nós estamos
presos no emaranhado midiático porque isto torna possível uma expansão da nossa
experiência, mas este emaranhado corre o risco de continuamente paralisar, imbecilizar, destruir
a nossa singular sensibilidade.
A luta fundamental do tempo que corre é aquela que consiste em ritualizar continuamente a
singular sensibilidade do nosso existir. É esta a batalha pós-midiática.
Disponível em: http://www.rizoma.net/interna.php?id=218&secao=intervencao. Acesso em 2006.
Com Barros (1997) destaco o caráter heterogêneo da subjetividade
contemporânea, apesar da homogeneização de que é objeto através da
massmediatização. Segundo ela, são infinitas as possibilidades de se produzir
subjetividades em ruptura com as modelizações capitalísticas. Precisamos
então compreender subjetividade como processo, como ruptura de equilíbrios
estabelecidos, como criação e reapropriação dos componentes de
subjetividade produzindo singularidade em “zonas não garantidas” em que
práticas sociais escapam da modelização e da serialização (BARROS, 1997).
Esse processo, portanto, não é do tipo recipiente, ou
seja, em que depositariam coisas exteriores que
seriam interiorizadas. A subjetividade é manufaturada
como qualquer outro tipo de usina na sociedade
industrial. Subjetividade, portanto, produção.
(BARROS, 1997: 64)
Martín-Barbero acrescenta que é a partir da assunção da tecnicidade midiática
como dimensão estratégica da cultura que a escola pode insesir-se nos
processos de mudança que atravessam nossa sociedade (2000: 351). Para
ele a escola pode interatuar com os campos de experiência, como a
desterritorialização das subjetividades, hibridações da ciência e arte, das
literaturas escritas e audiovisuais.
Essa aposta é compartilhada, ainda que com interesses diferentes, também
pelo Ministério da Educação, por movimentos sociais, por muitos teóricos da
educação e da comunicação e pela prática cotidiana de muitos professores e
alunos na Escola Álvaro de Castro Mattos. Com Deleuze, penso que a
potência dessa experiência dependerá do que ela souber criar, dos
espaçostempos que souber inventar nesse ambiente impregnado pela lógica
da informação e da produção em série.
141
O que me interessava eram as criações coletivas, mas que as
representações. Nas “instituições há todo um movimento que se
distingue ao mesmo tempo das leis de dos contratos”.
(DELEUZE, 1992: 209)
Não é de um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente
que precisamos, mas de grupos de usuários.
(DELEUZE, 1992: 210)
A única oportunidade dos homens está no devir
revolucionário, o único que pode conjugar a vergonha ou responder
ao intolerável.
(DELEUZE, 1992: 211)
Também os movimentos artísticos são máquinas de guerra.
(DELEUZE, 1992: 212)
ACORDEM RAIMUNDOS
Em uma das minhas primeiras visitas à escola deparei-me com um painel que
me chamou muito a atenção, resultante de uma dessas experiências que
buscam de certa maneira inventar um novo espaçotempo no mundo
contemporâneo, problematizando o agenciamento e/ou o dispositivo do gênero
e da sexualidade e as desigualdades aí forjadas. Como não acompanhei o
processo, limito-me aqui a pensar apenas como o painel afetou-me, levandome a buscar conexões entre a produção de subjetividade e o cotidiano da
142
escola. Era um trabalho desenvolvido pela professora de Artes a partir de uma
leitura do vídeo “Acorda Raimundo”, que eu não tinha visto e nem mesmo
sabia do que tratava.
Assim que olhei o mural percebi uma desconstrução, ou pelo uma
problematização, das identidades de gênero e sexuais. Não sei se foi assim
que funcionou o processo de “interpretação” do vídeo com as crianças, mas foi
assim que as imagens criadas por elas, resultantes de hibridizações,
bricolagens e combinações de fotos de revistas, me tocaram. O título “Não
queremos a inversão dos papéis, queremos respeito” me pareceu
contraditório, ou quem sabe paradoxal, na medida em que mantém divisão
social das pessoas por gênero e mantém a noção de papéis por ela atribuídos
e distribuídos. A idéia de respeito, embora necessária, na minha avaliação é
ainda insuficiente para dar conta da questão uma vez que baseia em
identidades/diferenças (fixas e estáveis, embora atualizáveis) discursivamente
e culturalmente produzidas. No entanto, as imagens criadas parecem
problematizar e complicar esses papéis, essas identidades, essas
formatizações e esses lugares que se supõe instituídos.
143
As imagens e as frases escritas pelas crianças comportam muitas leituras
possíveis e imprevisíveis.
Homens ou mulheres?
Homens e mulheres
Papai!
Impossível saber como isso funcionou na cabeça de cada uma das crianças
que participou ou que apreciou o trabalho.
É que o conceito, creio eu, comporta duas outras dimensões, as do percepto e
do afecto. É isso que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são
percepções, são pacotes de sensações e de relações que sobrevivem aqueles
que os vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são devires que
transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro). (...) O afecto, o
percepto e o conceito são três potências inseparáveis, potências que vão da
arte à filosofia e vice-versa. (DELEUZE, 1992: 171)
De qualquer forma, saí atrás de informações sobre Acorda Raimundo, pois
achei que deveria saber do que o vídeo trata.
Acorda Raimundo... Acorda!
Sinopse: E se as mulheres saíssem para o trabalho enquanto os homens cuidassem dos
afazeres domésticos? Essa é a história de Marta e Raimundo, uma família operária, seus
conflitos familiares e o machismo, vividos num mundo onde tudo acontece ao contrário.
Direção: Alfredo Alves
Elenco: Paulo Betti, Eliane Giardini, José Mayer, Zezé Mota.
Tipo: Ficção
Formato: Vídeo (Betacam)
Ano Produção: 1990
Origem: Brasil (RJ)
Produtora: CETA-IBASE, Iser Vídeo
144
Prêmios: Melhor vídeo de ficção, Festival de Havana, 1991. Melhor vídeo nacional, Júri Técnico,
Jornada de Cinema e Vídeo do Maranhão, 1991. Melhor vídeo nacional, Júri Popular, Jornada
de Cinema e Vídeo do Maranhão, 1991.
Informações disponíveis nos sites:
http://www.curtagora.com/filme.asp?Codigo=1282&Ficha=Completa
http://www.canalimaginario.com.br/index.php?&MMN_position=1:1
Na sala de espera das unidades
básicas de saúde de Campo Largo
(PR), as equipes de saúde têm
exibido o vídeo “Acorda, Raimundo,
Acorda”, a partir do qual discutem,
de maneira participativa, como são
construídos os papéis sociais de
homens e mulheres e as
desigualdades advindas disso. Esse
trabalho facilita a reflexão sobre as
conseqüências dessas
desigualdades para a saúde e para
a vida das pessoas, e de como
encontrar alternativas para mudar
essa situação.
http://www.reprolatina.net/website_portugues/html/iniciativas/index_iniciativas.asp
História de uma família operária, na qual Raimundo e Marta que vivem seus conflitos, numa
relação em que predomina o machismo. Se a mulher saísse para o trabalho, como o homem
cuidaria da rotina doméstica? O enredo apresenta o casal em cenas bem-humoradas, num
mundo onde tudo acontece ao contrário.
http://www.mec.gov.br/seed/tvescola/gradecurso4.shtm
Percorrendo diversos sites, encontrei muitas experiências realizadas em
escolas, movimentos sociais, ong’s e outras instituições a partir da exibição do
vídeo, recomendado pelo Ministério da Educação e pelo Centro de Mídia
Independente, e produzido pelo IBASE.
"Um país não muda pela sua economia, sua política e nem
mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura."
(Betinho - 1993)
Criado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1981, o Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) é uma instituição de
utilidade pública federal, sem fins lucrativos, sem vinculação religiosa e a
partido político. Sua missão seria, de acordo com o site, a construção da
democracia, combatendo desigualdades e estimulando a participação cidadã.
145
Acima de tudo, de forma radical e simples, democracia para o Ibase é
cidadania ativa, participativa, de sujeitos sociais em luta, nos locais em
que vivem, agindo e construindo – com igualdade na diversidade – a
sociedade civil, a economia e o poder.
Entre os temas e campos de atuação que o Ibase julga prioritários
estão o processo Fórum Social Mundial, Alternativas democráticas à
globalização, Monitoramento de políticas públicas, Democratização da
cidade, Segurança alimentar, Economia solidária e Responsabilidade
social e ética nas organizações.
O público para o qual suas ações estão direcionadas é composto por
movimentos sociais populares; organizações comunitárias;
agricultores(as) familiares e trabalhadores(as) sem terra; lideranças,
grupos e entidades de cidadania ativa; escolas, estudantes e
professores(as) da rede pública de ensino fundamental e médio; rádios
comunitárias e experiências em comunicação alternativa;
formadores(as) de opinião nos meios de comunicação de massa;
parlamentares e assessores(as); gestores(as) de políticas públicas.
http://www.ibase.org.br/
Não tenho como dizer se os Raimundos acordaram, nem para o quê
acordaram, penso até que é impossível medir isso, afinal, como ensina
Deleuze, o sujeito nasce nas queixas tanto quanto na exaltação (1992: 189).
Pessoalmente gostei dos resultados do trabalho, pelo menos a questão do
gênero e da identidade sexual tornou-se complexa e questionável.
As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode
ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao
qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio, adulto macho,
habitante das cidades... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um
devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo
mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado de um devir minoritário que o
arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo.
(DELEUZE, 1992: 215)
Pois bem, apesar do devir minoritário, não podemos desconsiderar que os
saberes e poderes dominantes prescrevem sim posições de sujeito, incluindose aí as aprendizagens relativas às performances sociais de gênero e
sexualidade.
Logo após fotografar os murais, me virei para trás e percebi que tinham
crianças em volta de mim. Eram dois meninos e duas meninas. Perguntei se
eles queriam tirar fotos com os cartazes e eles disseram que sim. Pedi então
que posassem para mim.
146
Os dois meninos correram primeiro, se colocaram à frente do mural,
esboçaram um sorriso, demonstraram
certa impaciência e ansiedade (observem
a mão crispada do menino de blusa
branca) e deram o sinal para que eu
fotografasse.
Eis aí, à esquerda, o clique!
Assim que eles saíram vieram as
meninas. Encostaram-se na parede
e uma colocou o braço sobre o
ombro da outra, que logo se
aconchegou sobre no corpo da colega. Ficaram ali serenamente até que eu
batesse a foto.
Fiquei pensando sobre o movimento (natural?) das crianças, as identificações
por sexo (espontâneas?) e as condutas (de acordo com os gêneros?). Será
que a experiência provocada pela escola teria sido vã? Perguntei-me, mas
bem sei que não há resposta que caiba nessa indagação. Sei o que a postura
dessas quatro crianças me comunica, mas, como disse Deleuze, comunicar é
diferente de criar.
Pareceu-me que as meninas conseguiram criar um espaço afirmativo de
liberdade, solidariedade e afeto entre elas, que não tem nada a ver com
submissão ou recusa ao masculino, e que não é permitido aos meninos. Como
será que eles se sentem nessa condição? Quem perde e quem ganha com
isso? Qual o sentido dessa conduta? Que processos de subjetivação estão
sendo engendrados nesse momento?
Pode-se com efeito falar de processos de subjetivação quando se
considera as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as
coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na
medida em que, quando acontecem, escapam tanto dos saberes
constituídos como dos poderes dominantes. Mesmo se na seqüência
eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes.
Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma
espontaneidade rebelde. (...) Mais do que de processos de
subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de
acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisa que os
147
suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um
instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é
preciso agarrar.
(DELEUZE, 1992: 217-218)
Fiz as fotos e ía saindo da escola quando percebi o movimento na quadra, bem
em frente ao mural. Mais uma vez observei a divisão de lugares e
possibilidades por sexo.
Meninos jogando bola e meninas assistindo na arquibancada. Não sei se isso
tem alguma importância, se é apenas uma questão de gosto (gosto não é
aprendido?), mas a sensação de lugares pré-estabelecidos me incomodou de
novo.
148
Concentrei
então o foco
no aramado
que isolava a
quadra.
De novo um
muro!
Anoitecia.
Saí um tanto
desesperançada e fui
embora para
casa.
Passaram-se uns dias e voltei à escola. Olhei para a quadra e me surpreendi.
Lá estava, treinando com os meninos,
uma aluna da sétima série na época
(2005), Daiane, 14 anos, a dona da
bola. Daiane, nome de princesa e
postura de atleta, fez questão de posar
para mim.
A professora de Educação Física me
contou que ela jogava muito bem e era
respeitada pelos meninos. “Ninguém
tira onda com ela”.
Daiane era a única menina a fazer parte
da seleção de futebol da escola que
participou dos jogos estudantis da Rede
Municipal. Pela primeira vez, em 2005,
a Prefeitura permitiu a inscrição de
times mistos.
Nem tudo está perdido, pensei.
149
Tempos depois me deparei com a galera do vôlei. Todo mundo participando na
boa.
Entretanto, é importante destacar que esses acontecimentos não se encadeiam
em uma seqüência linear e histórica, e também não estabelecem entre si
relações de causa e efeito, como pode a princípio parecer devido à ordem do
discurso (FOUCAULT). São acontecimentos que se sobrepõem, se chocam,
se atritam, agenciamentos que se articulam ou não no cotidiano da escola,
tornando possível a emergência de processos de subjetivação para além das
formas de subjetividades prescritas. São operações de usuários que produzem
desvios, burlas, e invenções, mas que quando capturamos já se esvaíram,
desapareceram. Isso não significa, porém, que não precisamos forjar, inventar
espaçostempos de mediação, além de valorizar aquelas já colocadas
operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas
tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de
“táticas” articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano (CERTEAU, 1994: 41).
CERTEAU defende que muitas práticas cotidianas, inclusive o consumo e o
uso dos meios e tecnologias da comunicação maciça, são do tipo tática. De
forma mais geral, uma grande parte das maneiras de fazer produzem vitórias
do “fraco” sobre o mais “forte”, constituindo pequenos sucessos, artes de dar
golpes, astúcias de “caçadores”, achados que provocam euforias, tanto
poéticos quanto bélicos.
Porque capturá-las e explicitá-las se a invisibilidade faz parte de sua lógica
operatória?
150
Talvez por que ao explicitá-las elas já se desvaneceram, já se transformaram
em outras coisas, mas deixaram sua marca e sua proposta de insubmissão.
Talvez para que não acreditemos mais na homogeneidade nem na
possibilidade de homogeneização. Talvez para nos incentivar a seguir em
nossas lutas e a confiar em nossos dispositivos de batalha.
Talvez para celebrar a diferenciação e a multiplicidade como características do
vivo.
Talvez para saudar a incessante criatividade e
inventividade como característica da atividade social.
Talvez porque, como ensinou uma amiga, acreditar
(inclusive no que não nos salta aos olhos) faça parte
do princípio da fé que nos leva adiante.
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no
mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos. É o
que vocês chamam de pietás. É ao nível de cada tentativa que se
avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão
a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.
(DELEUZE, 1992: 218)
SUJEITOS EM COMUNICAÇÃO
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e brigitte bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
151
Sujeito em comunicação não é a mesma coisa do que sujeito da comunicação,
expressão corrente, naturalizada e que se refere tanto aos produtores e
receptores de informação como às formas de subjetividade supostamente
concernentes à contemporaneidade.
Sujeito em comunicação, segundo França (2006) significa algo mais específico
do que um enunciador de discursos e um leitor de textos, e nomeia um sujeito
enredado numa teia de relações (p. 76). De acordo com a professora, são as
relações que constituem esse sujeito: a relação com o outro, a relação com o
simbólico. Com Foucault e Larrosa (2000) eu acrescento: em relação consigo
mesmo.
Com respeito à experiência de si, podemos encontrar em Foucault dois
deslocamentos. Um deslocamento pragmático, que poderíamos definir
como uma atenção privilegiada às práticas que a produzem e a medeiam.
Um deslocamento historicista, que consistiria na consideração dessas
práticas de um ponto de vista genealógico. (...) Há um enlace entre
“subjetividade” e “experiência de si mesmo”. A ontologia do sujeito não é
mais do que a experiência de si que Foucault chama de “subjetivação”. Há
um sujeito porque é possível traçar a genealogia das formas de produção
dessa experiência. (...) É a experiência de si que constitui o sujeito, o eu
enquanto si mesmo. (LARROSA, 2000: 55)
Essa possibilidade de se constituir em relação, de acordo com Fausto Neto
(1995), é conferida ao sujeito por meio da linguagem, operação que possibilita
nomear-se a si próprio, a construir o tu como outro e a construir a realidade, o
mundo. Dessa forma, a capacidade do sujeito de inscrever-se enquanto tal
decorre de um trabalho que introduz aquele que fala na sua própria fala
(p.197). A linguagem, portanto, funciona como “condição de produção” para a
constituição do sujeito. Mas que tipo de sujeitos podem ser produzidos nos
“jogos de linguagem” e nas relações comunicativas consigo mesmo, com o
outro e com o mundo? Uma viajem pela literatura infantil pode tornar essa
questão ainda mais complexa.
"Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de
costume. Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me
levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente.
Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Afinal, quem sou eu?’ Ah! este é o grande
enigma!” E começou a pensar em todas as crianças da sua idade que conhecia, para ver se
poderia ter sido trocada por alguma delas.
"Ada, com certeza que não sou", disse, "porque o cabelo dela tem cachos bem longos e o meu
não tem cacho nenhum; é claro que não posso ser Mabel, pois sei todo tipo de coisas e ela, oh!,
sabe tão pouquinho! Além disso, ela é ela, e eu sou eu, e... ai, ai, que confuso é isto tudo! Vou
experimentar para ver se sei tudo que sabia antes. Deixe-me ver; quatro vezes cinco é doze, e
quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete é... ai, ai! Deste jeito nunca vou chegar a vinte!
152
Mas a Tabuada de Multiplicar não conta: vamos tentar Geografia. Londres é a capital de Paris, e
Paris é a capital de Roma, e Roma é...não, está tudo errado, eu sei. Devo ter sido trocada pela
Mabel! Vou tentar recitar ‘Como pode...’’’, e de mãos cruzadas no colo, como se estivesse dando
lição, começou a recitar, mas sua voz soava rouca e estranha e as palavras não vinham como
costumavam:
Como pode o crocodilo,
Fazer sua calda luzir,
Borrifando a água do Nilo,
Que dourada vem cair?
Sorriso largo vai nadando,
E de manso, enquanto nada,
Os peixinhos vai papando
Co’ a bocarra escancarada!
"Tenho certeza de que estas não são as palavras certas", disse a pobre Alice, e seus olhos se
encheram de lágrimas de novo enquanto continuava "Afinal de contas, devo ser Mabel, e vou ter
que ir e viver naquela casinha apertada, e não ter nenhum brinquedo com que brincar, e oh!
muitíssimas lições para aprender! Não, minha decisão está tomada: se sou Mabel, vou ficar aqui!
Não vai adiantar nada eles encostarem suas cabeças no chão e pedirem ‘Volte para cá,
querida!’. Vou simplesmente olhar para cima e dizer: ‘Então quem sou eu? Primeiro me digam;
aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; se não, fico aqui embaixo até ser outra pessoa’...
Mas, ai,ai!” exclamou Alice numa súbita explosão de lágrimas, “queria tanto que encostassem a
cabeça no chão! Estou tão cansada de ficar assim sozinha aqui!”
As aventuras de Alice no País das Maravilhas
LEWIS CARROLL
Larrosa (2000) defende que, para Foucault, o ver-se e o dizer-se vão em
paralelo, destacando assim a potencialidade de linguagem para fixar a posição
do falante como sujeito ou para constituí-lo como tal. São esses
posicionamentos, essas posições discursivas, as que literalmente
constroem o sujeito (p.66). O funcionamento do discurso, por sua vez, é
inseparável dos dispositivos materiais nos quais se produz, ou seja, das
práticas sociais nas quais se fala e se faz falar, e nas quais se fazem coisas
com o que se diz. Assim, as práticas sociais produzem, ao mesmo tempo, o
sujeito que vê e as “coisas” visíveis. As práticas de ver e de dizer remetem
aos dispositivos nos quais emergem e se realizam.
O sujeito, o eu, da auto-interpretação narrativa (ver-se e dizer-se) não se
constitui, portanto, em uma reflexão não mediada sobre si mesmo. A
autoconsciência não é interioridade nem acesso privilegiado, pois a narrativa,
como modo de discurso, já está estruturada e pré-existe ao eu que conta
a si mesmo. É por isso que, para Larrosa, a narrativa não é o lugar da irrupção
da subjetividade, da experiência de si.
153
A construção e a transformação da consciência de si dependerá, então,
da participação em redes de comunicação onde se produzem, se
interpretam e se medeiam histórias. Dependerá desse processo
interminável de ouvir e ler histórias, de contar histórias, de mesclar
histórias, de contrapor algumas histórias a outras, de participar, em
suma, desse gigantesco e agitado conjunto de histórias que é a cultura.
A constituição narrativa da experiência de si não é algo que se produza
em um solóquio, em um diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em
um diálogo entre narrativas e textos. (...) A consciência de si não é algo
que a pessoa progressivamente descobre e aprende a descrever
melhor. É antes, algo que se vai fabricando e inventando, algo que se
vai construindo e reconstruindo em operações de narração e com a
narração.
(LARROSA, 2000: 70 – 71).
Compreender como se produzem os sujeitos, em que as relações de poder se
imbricam intensamente com as relações de comunicação e com as
capacidades que nos são exigidas, nos possibilita não só saber quem somos e
como vivemos, mas, talvez, recusar o que somos e imaginar e construir o que
queremos ser.
Foucault (1995) afirmou que o sujeito constituiu o tema geral de sua pesquisa e
que se ele envolveu-se com a questão do poder foi para escrever a história de
como o ser humano tornou-se sujeito em nossa cultura, pois enquanto o sujeito
humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente
colocado em relações de poder muito complexas (p. 232).
Para explicar as especificidades das relações de poder Foucault adverte que é
preciso distingui-las das capacidades objetivas (ação sobre as coisas) e das
relações de comunicação (ação sobre o outro). O que caracteriza as relações
de poder é, então, a ação sobre a ação do outro, visando a governabilidade, o
controle e a condução de uma situação. Apesar das especificidades de cada
um desses três tipos de relação, Foucault explica que eles estão sempre
imbricados uns nos outros, apoiando-se reciprocamente e servindo-se
mutuamente de instrumento (1995: 241).
As relações de poder, portanto, estão fortemente enredadas com as relações
de comunicação e com as capacidades objetivas exigidas pelas formas de
comunicar. O que está sendo disputado é, principalmente, o poder de
significar. A ação sobre a ação de significação visa o governo do outro e seu
enquadramento, adestramento, assimilação e controle.
Larrosa destaca que a história das formas nas quais os seres humanos
construíram narrativamente suas vidas é também a história dos dispositivos
que fazem os seres humanos contarem-se a si mesmo de determinada forma,
em determinados contextos e para determinadas finalidades.
154
Para França (2006), as discussões contemporâneas promovem a inserção da
comunicação no cerne do processo de construção do sujeito. Os debates, no
entanto, não se referem ao sujeito em comunicação, mas à comunicação na
constituição dos sujeitos. Ela explica que o sujeito em comunicação não é um
sujeito no singular, mas no plural, em relações mediadas discursivamente.
Trata-se, portanto, de uma dupla injunção, de uma triangulação. Tal apreensão
produz o enquadramento lógico para entender sua natureza, seja sua constituição.
São sujeitos interlocutores – sujeitos que falam um com o outro, produzidos nos e
pelos laços discursivos que os unem.
(FRANÇA, 2006a: 77)
Os sujeitos em comunicação encontram-se em uma situação de co-presença e
mútua afetação. São sujeitos “constituídos na relação e pela presença do
outro, a partir da capacidade de construção de gestos significantes e de
projeção dos movimentos e expectativas recíprocas” (FRANÇA, 2006: 78).
A ação que constitui os sujeitos em comunicação, segundo França, é,
portanto, “a ação de afetar e ser afetado pelo outro através de materiais
significantes”.
Analisar os sujeitos em comunicação é, simultaneamente, achar nos textos as
marcas que os interpelam e no posicionamento e falas desses sujeitos a maneira
como eles respondem, atuam, produzem. (...) É nesse movimento que os sujeitos
(agentes e pacientes dos processos comunicativos) ganham existência – e é onde
podem ser apanhados. (FRANÇA, 2006: 86)
Pensar sujeitos em
comunicação não é
pensar a “comunicação
entre sujeitos fixos,
acabados
e
individuados” (SALES,
2007). Com Deleuze,
Sales explica:
... só podemos falar de pessoa ou de sujeito a partir de um fundo nãopessoal, não-subjetivo, e que é, contudo, potencialmente capaz de gerálos, de conformá-los. Porém, não há sujeito teleológico, este nunca é
completo, está sempre por se constituir, em função de um resto perene,
155
sempre excessivo, a alteridade que o assoma indefinidamente. Relevante
aí é a chamada individuação, espécie de campo processual e intensivo
que se forma em função de razões que precisaremos investigar, e que
desencadeia continuamente um processo de gênese, de atualização,
sempre por divergência, e que, em última instância, diz respeito à própria
geração de sentido. (SALES, 2007: 3)
A comunicação acontece então entre singularidades pré-pessoais e préindividuais, móveis e anônimas, pré-subjetivas e pré-objetivas, que, segundo
Sales, são forças, intensidades, energia. Cada um de nós, nesta perspectiva, é
habitado por uma profusão de tais singularidades, em distribuição e
redistribuição contínua, desatando e atualizando pontos sensíveis variados, ou
seja, produzindo sentidos (2007: 6).
Para Sales, em Deleuze só há forças em relação, ou seja, são as relações que
fazem as forças existirem enquanto tal.
De qualquer maneira, segundo a processualidade apontada, a
comunicação não é propriamente entre sujeitos, não se trata de “um
encontro com alguém”, mas sim de agenciamentos, acoplamentos,
engates entre intensidades sempre nômades e díspares, tomadas
segundo mecanismos complexos (...). Se insistirmos em um sujeito,
será na condição de tomá-lo como mutante, inconstante, um sujeito
que, ao contrário de pré-existir, se dá mais como efeito de um tal jogo
de forças. (2007: 6)
Esses sujeitos em comunicação, praticantes do cotidiano escolar, imprimem
diferentes sentidos sobre a, na e com a escola e, por efeito, sobre o, no e com
o currículo. Que sentidos são esses e como se produzem?
As coisas não têm sentido em si, mas em função das forças que se
apropriam delas e que constituem signos. Estas forças, múltiplas e
variáveis, afirmam paradoxalmente a constelação potencial de sentidos
que dizemos implicados nos signos. Produzir sentido é explicar,
segundo forças que se encontram e se agitam, virtuais sentidos já
enrolados, envolvidos, nos signos que se nos apresentam. É importante
ainda que observemos: estes sentidos potenciais e heterogêneos são
também pontos de vista, que dizem respeito tanto a um sujeito quanto a
um objeto que vão se formar a partir do campo de individuação em
instauração. Há aí um perspectivismo que insiste em religar – por
divergência – o que se costuma pôr em separado: sujeito e objeto se
formam concomitantemente e referem o mesmo conjunto de forças
colocadas em relação.
(SALES, 2007: 10)
156
Podemos pensar, então, que as relações que se constituem nas práticas
comunicativas, cada vez mais ampliadas pelos suportes tecnológicos, esses
“entres” que se forjam com as práticas dos sujeitos em comunicação,
possibilitam a emergência de conhecimentos e sentidos, que instituem, ao
mesmo tempo, sujeitos em constante processo de subjetivação, e, portanto, de
invenção de si, e instituem mundo em permanente transformação e invenção.
De acordo com Parente (2004), com as novas tecnologias da comunicação e
da informação, especialmente a visualização computacional, entramos no
campo da experiência do possível e do virtual. Nesse contexto, a simulação
emerge como um instrumento de pensamento completamente diferente da
lógica e das narrativas.
Assim, ao mesmo tempo em que os indivíduos são inteligentes por possuírem
capacidades como perceber, lembrar, aprender, imaginar e raciocinar, é
preciso considerar que a inteligência possui dimensões coletiva ou social e
técnica ou tecnológica.
É impossível exercermos nossa inteligência independentemente
dos sistemas semiológicos – línguas, linguagens e sistemas de
signos e notações-, bem como dos meios – fala, escrita, livro,
fotografia, cinema, multimídia, redes telemáticas – e dos
instrumentos formais – narrativas, lógicas e ideografias dinâmicas –
que herdamos culturalmente.
(PARENTE, 2004: 103).
Ainda segundo Parente, a verdade sobre qualquer coisa
não existe foram das redes em que circula.
157
Capítulo 7
Currículos: redes cotidianas de conhecimentos e
sentidos tecidas por sujeitos em comunicação
Mas há dias em que nada faz sentido
E o sinais que me ligam ao mundo se desligam
Eu sei que uma rede invisível irá me salvar
O impossível me espera do lado de lá
Eu salto pro alto eu vou em frente
De volta pro presente
Sozinho no escuro nesse túnel do tempo
Sigo o sinal que me liga à corrente dos sentimentos
Onde se encontra a chave que me devolverá
O sentido das palavras ou uma imagem familiar
Túnel do Tempo - Frejat
O currículo é complexo e simples ao mesmo tempo. Tá
aí o tempo todo, nas coisas da vida.
Professora de Geografia do ACM
Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos ou
afiliação são produzidos performaticamente.
(BHABHA: 19989: 20)
De repente, numa tarde ensolarada em junho de 2007, alguma coisa de muito
especial aconteceu. Essa coisa me afetou profundamente, me pegou de
surpresa, me deixou atordoada, me deslocou dos meus pensamentos e dos
discursos dos quais me servia e do modo que eu os usava para pensar a
escola, a educação, a comunicação, o saber, o poder, os sentidos e a própria
vida. Enfim, o que se passou naquele dia me deixou literalmente passada. A
sensação que eu tinha era a de que eu não sabia nada, e, ao mesmo tempo,
de que eu sempre soube de tudo, mas que esse tudo até então não me
interessava.
- Essas informações aí fora (TV, internet) falam desse mundo e
aqui na escola a gente aprende como viver nesse mundo, pra
158
gente depois não ficar desesperado por aí, sem saber o que
fazer. (aluna da 5ª série)
Uma atividade por mim prevista para complementar minha pesquisa, planejada
com ajuda das pedagogas do turno vespertino da escola, escapou totalmente
da minha intenção, da minha expectativa, ganhou outros e variados contornos
e transformou-se num acontecimento imprevisível, cujos enredamentos e
desmembramentos não sei medir, controlar, apreender, capturar, nem encerrar
completamente nas palavras.
- A escola serve pra quando a gente crescer a gente ter um
emprego bom, pra gente ganhar mais, porque hoje em dia está
difícil viver no Brasil. (aluno da 7ª série)
Pára tudo! É quase um começar de novo. Eu me deixei tocar e mudei, e, com
isso, tudo em volta mudou. Naquele dia me acometeram sentidos radicalmente
outros para coisas, pessoas, atitudes, práticas e palavras. Sentidos sentidos,
não apenas pensados. Isso não significa que percebi, encontrei, descobri ou
revelou-se para mim o sentido da escola. Não foi isso. Apenas deixei-me
envolver nas redes de relações ali constituídas, em meio às quais conflitos,
acordos, invenções, traduções, negociações e performances produzem
sentidos que, mesmo provisórios e movediços, nos possibilitam criar vínculos e
modos possíveis de pensar o mundo e conviver com outros.
Esse acontecimento, que moveu tantas redes trançadas com saberes, fazeres,
valores, convicções, palavras, imagens, memórias, apagamentos, signos,
crenças, feridas, lutas, medos e esperanças só poderia se engendrar com o
cotidiano na escola (e em nenhum outro lugar, não-lugar e/ou entre-lugar da
educação), tecido por, entre e com sujeitos em comunicação, por intermédio de
mediações com recursos, práticas e usos de comunicação, afetando e sendo
afetados, uns pelos outros, com materiais significantes (FRANÇA, 2006).
- A escola é importante pra.... O que eu vou falar?
Alguém me dá uma idéia aí?
- Que a escola é interessante.
- A escola é o lugar que te prepara pra você poder crescer.
- Tentar evoluir?
- Pra você crescer, ser alguém na vida.
- É mesmo.
(três alunos da 7ª série)
O acontecimento indizível se deu, emergiu, explodiu, se impôs e se fez
acreditar, durante a realização de um vídeocabine, em que se pretendia ouvir
alunos sobre os sentidos, as possibilidades e os possíveis da escola e da
escolarização. Eu já tinha recolhido narrativas de alguns professores,
interpelados sobre esses mesmos assuntos por uma das pedagogas da escola.
Também já tinha presenciado reuniões e conversas informais entre eles, mas,
na minha aposta, tudo que tinha ouvido e lido se resumia a discursos
pedagógicos que visavam à produção de uma determinada fôrma de
subjetividade e, assim, de uma determinada realidade.
159
Produzir um vídeocabine é um procedimento bem simples. Sua utilização é
mais freqüente na realização de documentários ou de programas comunitários,
em que se busca “dar voz” ou trazer à tona as narrativas das pessoas comuns
que protagonizam a vida cotidiana. Para sua realização precisamos de uma
câmera de vídeo e um lugar (sala, cabine, um canto qualquer) onde as pessoas
possam entrar, sozinhas ou em grupo, e colocarem-se em frente à câmera para
falar o que desejarem sobre um assunto proposto.
Assim, no dia 12 de junho de 2007,
das duas às cinco e meia da tarde, me
instalei na sala das pedagogas com
Marcelo Castanheira, meu colega, exaluno, cinegrafista e agora também
professor do curso técnico superior
em áudio-visual que funciona na
escola
técnica
estadual
Vasco
Coutinho, em Vila Velha - ES. Marcelo
trouxe e operou a câmera de vídeo
profissional da TV da Faesa,
faculdade de Comunicação Social
onde ambos havíamos trabalhado, eu
como professora, ele como técnico da TV.
Deixei sobre a mesa caderno, lápis, borracha, uma caixa de lápis de cor e uma
caixa de canetas hidrográficas cedidos pela escola. A idéia era criar um espaço
mais descontraído, para que as crianças e adolescentes não precisassem ficar
estáticos, duros e olhando o tempo todo para a câmera.
A participação dos alunos foi voluntária e aleatória. Entrei nas salas de aula,
pedi licença aos professores, contei o que estava fazendo e perguntei quem
queria participar. Muitos se ofereceram. Combinei com os professores que eles
organizassem a ida dos alunos à sala de gravação, entre dois e cinco de cada
vez.
Gravei com todos que pude, até terminar o tempo. Algumas turmas ficaram de
fora. O número de alunos por turma também não foi controlado: de algumas
vieram mais, de outras vieram menos. Eles fizeram filas para entrar, mas
mesmo assim houve briga na sala de espera. Uma aluna da sétima série
chegou a ser enviada para a coordenação.
Uns entraram sozinhos, alguns em duplas, outros em grupo. A escolha e a
organização foram feitas por eles mesmos. Uns inibidos, outros exaltados,
alguns levando tudo muito a sério, outros na brincadeira. Eu fiquei sentada
numa mesa ao lado e fiz intervenções quando julguei necessário.
E lá vinham eles desatando a falar. Logo quando ouvi as primeiras falas me
assustei: achei os discursos muito fluentes e articulados. Estranhei também o
repertório (vocabulário e expressões) e os posicionamentos. Tudo diferente do
que eu, sei lá porque, imaginava. Cheguei a sentir uma resistência minha em
acreditar no que estava ouvindo. Perguntei até se eles tinham ensaiado,
160
mesmo sabendo que nenhum deles havia sido indicado ou impedido de falar
por qualquer pessoa da escola.
- Essa escola foi a melhor escola que eu estudei.
Tá mudando minha vida essa escola. (aluno da 5ª
série)
E eles foram entrando e saindo, uns e outros, com
algumas divergências e muitas coisas em comum.
Convencida de que estavam falando o que queriam,
tentei encontrar outras explicações para me
confortar e não desabar do alto das minhas idéias
pré-concebidas. Pensei primeiro que estavam
reproduzindo discursos dos professores, da
pedagoga, da diretora. É a escola produzindo
fôrmas de subjetividade que convém à ordem social vigente! Mas só essa
teoria não me bastava. Era isso e mais
alguma coisa. Cheguei a perguntar a
alguns a profissão dos pais.
- A escola ajuda no seu futuro
profissional, educacional, no seu lar e
filhos. (aluna da 5ª série)
Ainda relutante pensei: estão com medo
de falar o que sentem e serem
repreendidos. Não mintam – pedi podem falar tudo que vocês acham, todo mundo quer ouvir vocês. Queremos
mesmo saber o que vocês pensam porque isso vai nos ajudar a pensar a
escola.
Eles não estavam nem aí pro meu espanto: é isso mesmo que a gente acha. E
continuavam falando com a mesma tranqüilidade.
- Eu prefiro sempre ficar na
escola, porque se eu não ficar
na escola eu vou sair da escola
e não volto mais. A escola vai
me dar um futuro bom, pra eu
ficar forte e firme. (aluna da 5ª série)
Aí tem! Comecei a fazer perguntas e pedir
respostas mais detalhadas. Talvez nas entre
linhas... O que será que está por trás?
Demorou a cair a ficha. Só depois de algum
tempo, daquela euforia toda, daquele entra e sai, comecei a me contaminar por
aquele clima, me deixar afetar por aquela emoção e me deixar envolver
naquela esperança. Lembrei-me de Parente (2004): quaisquer sentidos,
161
como qualquer verdade, não existe fora das redes em que são criados,
em que são negociados, em que são transformados e em que circulam!
Que razões levaram aqueles alunos a estar ali? FRANÇA (2006), ao analisar a
participação dos homens ordinários nos programas populares de TV, me
ajudou a achar um modo possível de pensar essa presença e essa
performance.
Não é possível (tampouco necessário) precisar as razões que os levaram a estar ali,
muitas vezes numa posição de chacota (ganho material, quinze minutos de fama?).
Estando ali, dois outros aspectos nos parecem mais relevantes para nossa análise: em
primeiro lugar, sua aquiescência. Independente das razões que os motivaram, ir ou não
ir foi uma escolha, em alguns casos até uma conquista. Tendemos a pensar nas
pessoas que vivem em situação de carência como desprovidas de vontade e de
intenções; este é um preconceito a mais de que são objeto. Por mais que lhes faltem
condições de implementação, é um equívoco imputar-lhes automaticamente uma
capacidade de arbítrio. Destacamos portanto, como fator de interesse e de reflexão esta
escolha de ir ao programa – o que significa a presença de um cálculo de ganho, de uma
dose de satisfação.
Em segundo lugar, é preciso atentar não apenas para o papel que foram chamados a
desempenhar, mas para seu desempenho de fato. Sua performance, desenvoltura,
domínio de cena, possibilidade de verbalização não se comparam com a dos
apresentadores. Mas se essa presença, pautada pelo programa (pela instância de
produção), carece de autonomia na definição de papéis, é enquanto atuação,
desempenho concreto dos atores que ela ganha de fato realidade. Ou por outra, os
papéis ganham uma realidade nova quando encarnados, na maneira como são
atualizados e se dão a ver. Observando o desempenho dos sujeitos nos casos
estudados, alguns aspectos se destacam: uma certa incorporação prévia da
performance midiática, uma exploração e busca de ganho próprio, a presença de
deslizes e ruídos.
(FRANÇA, 2006c:146–147)
Pensando por essa perspectiva, considerei que as crianças souberam
“performar esse desepenho”, e sabiam também que ele era “uma
performance”. Da mesma forma, e ao mesmo tempo, souberam também
aproveitar esse momento de visibilidade e desempenho como “uma
oportunidade para tirar algum proveito pessoal” (FRANÇA, 2006c: 147) e
coletivo. O que estava em jogo era uma forma de negociação, já que
combinaram entre si algumas reivindicações: aumentar o tempo do recreio,
mais atividades artísticas e esportivas, construção de uma piscina, uma
bibliotecária em tempo integral, música na hora do recreio e palestras sobre
assuntos de seus interesses,
como sexo, violência e drogas,
entre outras coisas. Sobre essas
questões vamos tratar mais
adiante. Por enquanto, ficamos
com os sentidos da escola.
- A escola é muito importante
porque nós aprendemos muitas
162
coisas interessantes nela. Coisas da vida, coisas sobre o
mundo. (texto coletivo escrito por quatro alunas da 5ª série)
O que mudou para mim de fato foi sentir a escola como “lugar” (espaço
ocupado, conforme Muniz Sodré, ou espaço praticado, conforme Certeau) e
também como “entre-lugar” (conforme Bhabha), onde os acontecimentos ali
engendrados constituem seus próprios sentidos e suas próprias teorias. Eu
dialogava com vida na escola a partir de discursos. Agora eu tento dialogar
com os discursos a partir da vida na escola. Esses sujeitos que habitam,
praticam e inventam a educação, em comunicação comigo e consigo próprios,
me entrelaçaram em suas “redes de subjetividades, saberesfazeres e
sentidos”.
Depois que passei e entrar desarmada, assim como eles, não precisei mais
pedir licença para ficar. Passei a freqüentar a escola ACM com mais
constância, fui chamada a contribuir nas atividades, transitei livremente por
seus espaços, entrei e saí das salas de aula sem me sentir uma intrusa,
chamei as pessoas pelo nome, tomei café da garrafa “100 açúcar” na sala dos
professores sem precisar pedir permissão, fiquei muitas vezes de papo-furado
com eles, comi a merenda no refeitório e até me diverti com os gritos e a
correria na hora da entrada e do recreio. Nas tramas das redes que ali se
constituíam, passei a compartilhar, desconstruir e co-engendrar outros sentidos
para a escola.
Aprendi com a população do ACM que a escola produz e desconstrói
incessantemente seus próprios sentidos! Mais do que isso, aprendi, percebi,
senti, inventei com eles que escola é, acima
de tudo, um entre-lugar para se inventar,
apesar das diferenças e dos conflitos, uma
vida no presente mais esperançosa e feliz.
Ou seja, aparentemente falando do futuro,
conforme os discursos pedagógicos e
institucionais que ouvem, as crianças
estavam na verdade, negociando um
presente melhor para elas. Além disso, me
convenci que fazer uma pesquisa no, do e com o cotidiano para depois
escrever um texto defendendo o que se faz em uma escola pública faz muito
163
sentido. No entanto, os sentidos produzidos na escola, como já vimos, não
existem fora das redes em que são criados e circulam. Com este trabalho,
busco então ampliar essas redes e os espaços em que elas circulam.
Com Parente (2004), aprendi que a noção de redes vem sendo tão utilizada em
diversos campos teóricos e práticos que temos a impressão de que estamos
diante de um novo paradigma relacionado a “um pensamento de relações em
oposição a um pensamento das essências” (2004:9). Para pensarmos
currículos como redes de conhecimentos e sentidos, precisamos nos aventurar
um pouco mais nessa noção.
A FIGURA DAS REDES: EPISTEMOLOGIA, DIMENSÃO DA
COMUNICAÇÃO E SACO DE METÁFORAS
- A escola serve pra gente aprender um monte de
coisas novas, a ler, a escrever e um monte de coisas
mais, tipo navegar pela internet, essas coisas...(...) No
futuro eu quero ter todas as coisas que eu sonhei e ser
feliz.
Aluna da primeira série
- Eu gostaria muito que aqui na escola tivesse
natação. Eu gosto muito aqui da escola, eu
gosto dos deveres, a comida aqui é deliciosa, eu
gosto de desenhar na aula de artes, eu gosto da
informática, eu gosto de ver vídeo, eu gosto das
aulas de educação física, eu gosto de todas as
professoras... A escola serve pra dar sabedoria
pros alunos. Aqueles que não poderiam estar
aqui podiam estar.
Aluna da quinta série
- Nós somos todos diferentes, mas temos
todos os mesmos direitos e deveres. O
racismo vem com a escravatura.
Aprendemos a ser racistas em casa, com
a família. Na escola também, com alguns
amigos. A História do Brasil, de certa
forma, também é racista.
- Na televisão também. Nas novelas, os
negros são empregados ou então
ladrões.
Alunas da 8ª série
- Eu acho a escola muito boa, muito
bem organizada, tem bons professores,
164
só que eu acho que deveria ter mais
eventos, e deveria ter aulas de teatro
aqui.
Aluna da 6ª série
- A escola é boa por causa da
educação, mas o que a gente quer
mesmo, no recreio, é futebol, porque
não pode trazer bola. E também mais
aulas de informática, porque as que têm
são só agendadas e só da pra fazer
trabalho, podia ter jogos também.
Aluno da 5ª série
- A gente veio para a escola para
aprender, porque ficando na escola a
gente pode se tornar um grande
trabalhador, mas às vezes a escola
quer nos ensinar a respeitar os outros,
mas não tem respeito. Tem alguns
diretores aqui que não têm respeito e
ainda querem nos ensinar respeito.
Aluna da 5ª série
- Como é que eu combato o preconceito
lá com o aluno? Combatendo os
preconceitos aqui como esse meu
grupo. E eles não são portadores de
preconceitos? Claro que são. A gente
sempre vai ter um preconceito ou outro.
E eu não posso obrigar um adulto que
trabalha comigo, na marra, a crer no
que eu acredito.
Pedagoga do vespertino, 5ª a 8ª séries
Cada aluno/aluna e cada professor/professora que entra no espaçotempo
escolar carrega consigo a rede de subjetividade que é. Ou melhor dizendo,
traz consigo as múltiplas redes nas quais vive, com seus diferentes
processos de conhecer e com vários conhecimentos nelas criados, quer
tenhamos ou não olhos para ver, ouvidos para escutar, boca para saborear,
nariz para cheirar, pele para tocar, essa complexa situação.
(ALVES, 2001b:12)
De acordo com Alves (2001b), a expressão “tecer conhecimento em rede” é
uma forma metafórica e possível para indicar como o conhecimento foi criado
nos diversos contextos cotidianos do viver humano.
A noção de redes, no entanto, para além de (ou simultaneamente a) seus usos
como metáfora, vem segundo Parente (2004), e como também defende Alves
165
(2001b), constituindo um novo paradigma associado a um pensamento das
relações, que, entre outros campos e contextos teóricospráticos, apresenta
implicações na discussão de questões filosóficas, epistemológicas e cognitivas,
bem como enfatiza uma nova dimensão da comunicação na constituição do
tempo e do espaço e da produção de subjetividades e do capital.
Para Musso (2004) a polissemia do conceito e o excesso de seus usos
metafóricos é uma prova de seu poder e de sua complexidade. “A rede é um
receptor epistêmico ou um cristalizador, eis porque se tornou, atualmente, o
lugar de noções outrora dominantes, como o sistema ou a estrutura” (MUSSO,
2004:17).
Conforme o pesquisador, a idéia de rede já existia na mitologia, no imaginário
da tecelagem (caça, pesca e tecido) e do labirinto. Na Antigüidade, a medicina
de Hipócrates associava a metáfora da rede ao organismo humano. Até o fim
do século XVIII o termo continuaria restrito à linguagem dos médicos, além do
sentido original proveniente da tecelagem. A ruptura com esse uso se daria na
virada para o século XIX, com o estudo dos cristais e a “formação de uma
ciência generalizada das formas e das redes” (MUSSO, 2004:20). A idéia de
rede passa a ser pensada como um conceito para tornar-se operacional. De
dada ela se tornaria construída.
A rede aparece, no início, como uma forma observada ou
imaginada na natureza enquanto “efeito de rede” identificável
sobre ou dentro do corpo, como um vínculo invisível de lugares
visíveis. Tal é a metáfora fundadora que corre de Hipócrates a
Bichat e que é encontrada na cibernética de Norbert Wiener: o
cérebro ou a circulação sanguínea são paradigmas de rede.
(MUSSO, 2004:21)
Ainda de acordo com Musso, a epistemologia do organismo-rede é elaborada
por Saint-Simon. O organismo, como forma superior de organização,
representa o paradigma do toda totalidade complexa e racional. A
complexidade do ser vivo é mensurável segundo a combinatória das redes que
a compõe. “A rede é lugar visível e vínculo invisível” (2004: 24). Para Musso, a
contribuição de Saint-Simon, ao usar a lógica da rede para elaborar uma
ciência política, foi definir a circulação na rede (sanguínea ou estatal) como
condição da mudança social. Com a ênfase na necessidade de circularcomunicar, “a construção de redes de comunicação torna-se um objetivo de
utilidade pública”, pois a “sociedade precisa de uma meta-ligação que a
unifique” (MUSSO, 2004: 26).
A polissemia da noção de rede, conforme Musso, recorre desses estilhaços da
noção e de seus variados usos. O conceito se desvaloriza em pensamento e
supervaloriza-se em metáforas, sendo cada vez mais convocado nos discursos
e representações contemporâneas. As atuais significações tendem a designar,
principalmente, um modo de raciocínio (conceito e tecnologia do espírito) e um
modo de organização do espaço-tempo (matriz técnica e saco de metáforas).
Por fim, Musso acredita que o desenvolvimento das redes técnicas de
comunicação opera como uma fonte regeneradora da noção de rede. A
166
internet, rede das redes planetárias, poderia ter reativado os mitos recorrentes
veiculados pela idéia de rede, especialmente o da interconexão e da ligação
sem limite.
Assim, a rede tornou-se o fim e o meio para pensar e realizar a
transformação social, ou até mesmo as revoluções de nosso
tempo. O imaginário da rede é uma simples ideologia, ou seja,
uma maneira de fazer a economia das utopias da transformação
social. Paradoxo: enquanto Saint-Simon forjou esse conceito
para pensar a mudança social, ele se tornou um meio de não
mais pensar nisso. Esse é o próprio da fetichização. A rede
passou do estágio de conceito ao de percepto, ou mesmo de
preceito.
(MUSSO, 2004:37)
Concordo com Musso que a noção de rede tornou-se para muitos um fetiche.
Um modo, às vezes até simplório, de tratar a complexidade social, e todos os
conflitos que ela comporta, como uma coisa dada, contra a qual não devemos
nos indignar e na qual não devemos, nem podemos, interferir. De qualquer
forma, existem outros usos nesse saco de metáforas, que associam a idéia de
rede a uma totalidade aberta, com base numa lógica das conexões, sempre
capaz de crescer por todos os lados e em todas as direções, provocando
modificações. Kastrup (2004) evoca o conceito de rizoma, criado por Deleuze
e Guattari (Mil Platôs, 1995), para defender a noção.
A rede é como uma encarnação, uma versão empírica e
atualizada do rizoma. É já um campo visível de efetividade,
onde ocorrem agenciamentos concretos entre os elementos
que a compõem. (...) Como rizoma, a rede articula elementos
heterogêneos como saberes e coisas, inteligências e
interesses, onde as matérias trabalham fora do controle dos
métodos.
(KASTRUP, 2004: 84-85)
Parente (2004) reconhece que as redes são por demais reais e sempre
tiveram o poder de produção de subjetividade e do pensamento. Entretanto,
ele defende que as redes tornaram-se uma espécie de paradigma e de
personagem principal das mudanças que estão em curso exatamente quando
as tecnologias da comunicação e da informação passaram a exercer um papel
estruturante na atual ordem mundial.
Segundo ele, as máquinas
infocomunicacionais estão engendrando profundas transformações nos
dispositivos de produção de subjetividades.
Um dia, os teóricos e historiadores da comunicação
vão se dar conta de que pensar em rede não é apenas
pensar na rede, que ainda remete à idéia de social ou
à idéia de sistema, mas é sobretudo pensar a
comunicação como lugar da inovação e do
acontecimento, daquilo que escapa ao pensamento da
167
representação. Neste dia, a comunicação terá se
tornado, para além de suas tecnologias, fundamento.
(PARENTE, 2004: 92)
Isso significa que, para ele, concordando com Guattari, as novas tecnologias
resultam em um processo de, ao mesmo tempo, enriquecimento e
empobrecimento, singularização e massificação, desterritorialização e
reterritorialização, potencialização e despotencialização da subjetividade em
sua dimensão auto-referencial. Conforme Parente, as tecnologias da
informação e da comunicação levam-nos a perceber que a complexidade dos
processos cognitivos deriva não apenas da riqueza dos nossos sentidos e
faculdades, mas também dos objetos, suportes, dispositivos e tecnologias que
nos circundam e compõem uma rede sociotécnica de grande complexidade.
Se quisermos compreender como certas visões de
mundo se impõem e se tornam dominantes, como nos
apegamos às coisas, aos procedimentos, a certos
comportamentos, devemos analisar o processo de
transformação do mundo em informação nas redes,
sejam elas quais forem. A verdade sobre Deus, a
verdade sobre a natureza e uma certa tendência na
arte não existem fora das redes em que circulam, como
se fossem fenômenos que falariam por si só.
(PARENTE, 2004: 105)
Assim
pensando,
é
impossível compreender
os sentidos, os saberes,
os fazeres e os valores
criados,
refutados
e
efetivados na Escola
Álvaro de Castro Mattos
sem levar em conta os
usos das informações e
as
tecnologias
que
circulam nas redes lá
constituídas, obviamente
enredadas com outras
redes constituídas em
outros
contextos
cotidianos de todos os
sujeitos que praticam a escola.
168
Alunos da 5ª série assistem ao filme “Uma noite do museu” como atividade complementar da
aula de História.
No entanto, a atenção que aparentemente pareciam estar dispensando ao que se passava na
tela era constantemente dispersada por qualquer movimento ou brincadeira paralela,
especialmente quando alguém entrava ou saía da sala. Observar de perto essa condição me
levou a problematizar o tão propagado “o fascínio da TV” sobre as crianças e os adolescentes.
É evidente que os meios e recursos comunicacionais transformaram as subjetividades e os
modos de cognição. Mas pensar em rede e pensar nas redes tecidas cotidianamente por
sujeitos em comunicação é compreender que o agenciamento das mídias se articula, se
fortalece ou se desvanece na combinação e na concorrência com vários outros agenciamentos
nas contingências da vida de cada pessoa ou grupo social em determinado espaçotempo.
169
OS SENTIDOS DA ESCOLA TECIDOS POR SUJEITOS EM COMUNICAÇÃO
- Pra mim a escola serve
pra ensinar. Por que a
gente tá aqui?
Porque tem muita gente
analfabeta porque não
tem escola. Pra mim a
escola serve pra educar
a gente.
(aluna da 5ª série)
- Eu acho que a escola é
importante para gente
aprender muitas coisas
e também porque
gera emprego pra muitas pessoas e aprendizagem pra
gente. (aluna da 6ª série)
- Eu acho que na escola a gente aprende as matérias,
mas também aprende a compartilhar as coisas, a
amizade, então eu acho que a escola também serve pra
isso, pra ter mais harmonia, pras pessoas se
conhecerem melhor. (aluna da 5ª série)
- Pra mim a escola é mais
diversão, pra mim não ficar em casa
à toa, sem fazer nada. Porque se eu
ficar em casa eu vou ficar à toa
mesmo. Aqui é mais, assim, um meio
de estudar, aprender. (aluno da 8ª série)
- A escola pra mim é tipo uma casa
que ensina a gente a ler e a
escrever. Tem gente que vai pra
escola e acha que a escola é só brincadeira. Pra mim a escola
não é só brincadeira, a escola é muito importante. (...) Porque
no meu futuro eu vou fazer faculdade e pra passar eu tenho
que estudar esse ano. (aluna da 4ª série)
- O melhor da escola é poder estudar, é conhecer gente nova.
O melhor de tudo, na verdade, é a gente
aprender e poder ensinar às outras crianças.
Porque a gente aprende várias coisas que
outros gostariam de aprender. (aluno da 5ª série)
- Na escola a gente se sente mais livre do que
em casa porque está entre amigos.
(aluno da 7ª série)
170
- O bom dessa escola é que ela atende às pessoas especiais,
pessoas que não enxergam, pessoas que têm deficiência
física, pessoas que têm problemas mentais e um monte de
outras coisas. Por isso que eu adoro o colégio. (aluno da 5ª série)
- É muito bom ter a escola pra ter uma aprendizagem melhor,
pra ser mais fácil pra gente poder arranjar trabalho, porque sem
o estudo a gente não tem nada. (aluna da 6ª série)
São múltiplos, efêmeros, contraditórios, cambiantes e tecidos em conexão com
outras redes de significação os sentidos atribuídos pelos alunos à escola, mas,
quando nos deixarmos arrastar por eles, quando nos perdemos em meio a
eles, nos sentimos impregnados de otimismo e esperança. É como estar no
“além”, habitar um espaço intermédio e poder “tocar o futuro em seu lado de
cá”, como propõe Bhabha: Nesse sentido, então o espaço intermédio “além”
torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora (1998: 27).
Ao elogiar e reconhecer a importância da escola, muitas vezes repetindo o
discurso dos professores, das pedagogas, da diretora, dos pais, da mídia, etc.,
as crianças não estão apenas reproduzindo suas falas. Elas estão partilhando
e inventando sentidos, mas também traduzindo, se apropriando, negociando e
criando outros sentidos e possibilidades para suas vidas, não no futuro, mas
no presente. Aceitam as regras do jogo, mas não deixam de jogar e querem
vencer. Não se trata de subordinação, nem de insubordinação, mas de
aproveitar a oportunidade, a ocasião, para reivindicar seus interesses e instituir
práticas para inventar uma vida cotidiana mais feliz, mesmo em um lugar ou
em uma sociedade que as oprime. Pois cada elogio ou reconhecimento vem
acompanhado de um questionamento, sugestão, denúncia velada e
reivindicação, iniciadas por expressões como “mas”, “só que podia”, “também
gostamos’, “a gente queria”, etc.
Pensando com Ferraço (2004), defendo que não podemos atribuir a esse ou
aquele sujeito da escola, no singular, a autoria do que está sendo tecido por
todos e, portanto, pertence a todos, ainda que nós pesquisadoresnarradores
não tenhamos como escapar de nossas versões particularescoletivas dos
acontecimentos. Essa escrita particularcoletiva, no entanto, inscreve e institui o
entre-lugar onde ela foi forjada, com defende Bhabha.
Público e privado, passado e presente, o psíquico e o social,
desenvolvem uma intimidade intersticial. É uma intimidade que questiona
as divisões binárias através das quais essas esferas da experiência social
são frequentemente opostas espacialmente. Essas esferas da vida estão
ligadas através de uma temporalidade intervalar que toma a medida de
habitar em casa, ao mesmo tempo que produz uma imagem do mundo da
história. Este é o momento de distância estética que dá à narrativa uma
dupla face (...).
(1998: 35)
171
Pensando ainda sobre a produção de narrativas, tanto a minha como as dos
alunos da EMEF ACM, concebo-a, como Certeau, como uma construção de
frases próprias com um vocabulário e sintaxe recebidos, que, contudo, coloca
em jogo uma apropriação, ou reapropriação, da língua por locutores;
instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece
um contrato com o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de
relações (1994: 42).
Essa lógica operatória (Certeau) encontra-se em muitas outras práticas
cotidianas e comporta os recursos da mímica e da tradução que, na
perspectiva daqueles que estão numa posição subalterna em uma
determinada relação, como defende Bhabha, produzem uma negociação
complexa que caracteriza a articulação social da diferença em embates que
podem ser tanto consensuais como conflituosos. Diferença como processo
contínuo e transformador.
Bhabha, assim como Certeau, aposta na performance política da invisibilidade
do homem ordinário. Para ele, trata-se de um movimento anti-dialético da
instância subalterna, que assim se produz como uma semelhança (e não
similitude) e ao mesmo tempo ameaça por sua indecibilidade, subvertendo
qualquer ordenação, binária ou negadora, de poder e signo; ele adia o
objeto do olhar... (1998: 91).
- Na escola a gente é disciplinado.
- A gente aprende a viver em
comunidade.
- Porque tem gente que não
conhece pessoas e quando
vem pra escola conhece mais
gente.
- Têm pais que chegam e não
falam nem alô com o filho
direito em casa, vai direto
dormir. Que trabalha de dia,
chega e não fala nem direito
com o filho e o aluno tem um
pouco de dificuldade de aprender. Na escola a gente aprende
um pouco de educação, mas não é só na escola que a gente
tem que aprender, mas também em casa, com o amor dos
pais.
- O que é ser disciplinado pra você?
- É você não ter aquela atitude que os outros têm aí fora;
enganar, roubar, mentir, várias coisas.
172
(conversa com três alunos da 6ª série)
Nessa tessitura de sentidos traduzidos, deslocados, inovados, ampliados e
vividos com os alunos nas redes cotidianas que atravessam a Escola Municipal
de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos, a escola, segundo a minha
amarração (edição) de suas narrativas, serve para:
- Ensinar e aprender as matérias, a conviver com os outros e a ter educação.
Estudar pode não ser muito bom, mas é necessário. Ser educado é ser
companheiro, ajudar os outros, ter respeito pelos professores e pelos idosos,
preservar a natureza, não ter preconceitos, ter responsabilidade, não roubar,
não matar, não enganar, não mentir, compartilhar e dividir. A escola tem que
educar porque muitos pais não educam em casa. Aprender as matérias e ser
educado é importante para conseguir um bom emprego e ter um futuro melhor.
Ter amigos também é muito importante porque um pode ajudar o outro e a
vida fica mais divertida. A escola é lugar também de esperança, de “tocar o
futuro do lado de cá” (Bhabha), de diversão, de brincadeiras, de
cumplicidades. O professor é muito importante porque ensina, explica matéria,
dá conselhos, dá atenção, conversa e incentiva os alunos a irem pra frente. A
escola é um lugar de liberdade porque se está entre amigos e, assim,
podemos conversar coisas que não podemos falar com os pais, mas seria bom
discutir com os professores assuntos como sexualidade, drogas e violência.
Na escola todos são diferentes uns dos outros e isso é bom porque a vida tem
mais graça, mas conviver com as diferenças não é fácil. Na sala de aula tudo é
tranqüilo, mas na saída tem muita briga por causa das diferenças. Na escola
se aprende como viver nesse mundo e se aprende a ser feliz.
- Pra mim a escola... a gente vem mais pra estudar, pra
aprender coisas novas, pra conhecer pessoas diferentes.
- É melhor do que ficar em casa não fazendo nada. A gente
vem pra escola pra encontrar os amigos e pra estudar também.
173
(alunas da 8ª série)
As redes de sentidos e significados que vêm sendo tecidas com os alunos se
enredam com as redes de sentidos e significados trançadas pelos professores
de 5ª à 8ª série, conforme manifestados nos questionários da avaliação
institucional realizada e analisada pela pedagoga, mas as ultrapassam, ou
seja, as alargam e expandem as possibilidades já colocadas.
Vejamos como os professores do turno vespertino (5ª à 8ª) responderam à
questão: O que é a escola e para que ela serve?
- A escola é um ambiente no qual se deve disponibilizar áreas
diversas do conhecimento. Deveria ser mais democrática e
trabalhar as diversidades de habilidades e competências.
- É uma ambiente de conhecimento e socialização.
- Escola: nome para ser preservado e guardado como “boa”
lembrança. Espaço este que precisa ser visto como “Espaço
Alternativo”, onde se aprende, se ensina e se troca experiência,
que sirva para melhor convivência.
- Escola é troca, é aprendizado, é crescimento, é apoio.
- A escola tem o papel de preparar o aluno para uma vida
social, mas tem feito papel de pai e mãe muitas das vezes. A
sociedade tem trocado os papéis, pois acha que professor tem
obrigação de educar e cuidar.
- É um dos vários espaços/tempos onde se ensina e se
aprende. Entretanto, acho que esse fazer deve ser
sistematizado, mesmo que dialogado. Para mim, a escola serve
para possibilitar esse aprendizado.
- Para socializar, formar cidadãos críticos, trabalhando os
aspectos cognitivo, afetivo e motor.
- Local de formação de cidadãos críticos, através da construção
de conhecimentos.
- Fazer do aluno um ser crítico, capaz de ter uma visão mais
crítica do mundo que o cerca.
- A escola pra mim é o segundo lar, em que dispõe de ações
concretas e reais em relação à família e ensino-aprendizagem
do aluno.
Em que as redes de significados e sentidos tecidas pelos alunos alargam as
redes de significados e sentidos tecidas pelos professores? Acima de tudo em
otimismo, esperança e no processo de diferenciação impulsionado com as
mímicas, que segundo Bhabha (1998) são cópias deformadas (em processos
de tradução e negociação) e por isso instituem outras coisas. Segundo o autor,
é dessa forma que o novo emerge no mundo.
174
Os professores expressaram, da forma que puderam e que acharam
conveniente, suas opiniões sobre o que a escola deveria ser, mas eles não
tinham idéia do modo pelo qual suas palavras, seus posicionamentos e suas
atitudes vinham sendo apropriadas, usadas, aceitas, recusadas, praticadas,
mascaradas, traduzidas e negociadas pelos alunos que buscavam acima de
tudo, a oportunidade de serem felizes, escapar do controle e expandir suas
vidas.
Para Bhabha, a mímica é ao mesmo tempo um efeito e uma estratégia, que
opera como um “acordo irônico” para a tensão entre, por um lado, a visão
panóptica da dominação e a demanda pela identidade e, por outro, a
contrapressão, a mudança e a diferença. Resultado de um processo defeituoso
de mimese, por conta de um desejo de um outro reformado e reconhecível, a
mímica transforma o sujeito, supostamente subordinado, em uma semelhança
e em uma ameaça, pois sua presença é sempre parcial (virtual e incompleta),
pois, “para ser eficaz, a mímica deve produzir continuamente seu deslizamento,
seu excesso, sua diferença” (1998: 130).
Ao analisar os discursos dos alunos sobre os sentidos da escola, podemos nos
precipitar e concluirmos que só há mimese dos discursos pedagógicos,
midiáticos e familiares, mas podemos também, nos fixar nas mímicas, nos
deslizamentos e nas suas diferenças. Isso porque, nas narrativas deles a
escola serve para ensinar e para aprender conhecimentos e atitudes
desejáveis, mas...
- As partes boas da escola são os livros, que quando você lê parece uma
viagem que você vai pra outro mundo (...), as coisas que não gosto na escola é
que as pessoas xingam, falam um monte de besteiras (...) tirando isso, eu
gosto muito da escola. (aluna da 5ª série)
- Eu acho os professores muito legais, a diretora também, mas eu acho que só
está faltando um pouquinho de reforço na educação, eu acho que precisa um
pouquinho... sabe... dar matéria mais difícil.
(aluna da 5ª série)
- Eu acho que a educação da escola boa, tem bons
profissionais, só que falta reformas, porque muitas coisas os
alunos destroem às vezes e é muito difícil manter a escola
sempre organizada, porque faltam também condições
financeiras. (aluna da 5ª série)
- Eu gosto da diretora, porque ela foi a melhor diretora
que eu já tive, e eu acho que está faltando educação, que
podia ter mais ensino, por causa que os garotos não têm
respeito mais com as meninas, eu acho que está faltando
um pouquinho de limites pra eles. (aluna da 5ª série)
175
- Tem escola que têm pessoas que não tratam a gente muito bem. Parece
que... tá na escola pra ser educado, mas parece que não têm educação.
Pessoas arrogantes, eu acho que isso não é muito legal não. (aluna da 5ª série)
- A escola é boa, por causa da educação, mas o
que falta no recreio, que a gente quer ter
mesmo, é futebol. Porque a gente não pode
trazer bola senão ela toma.
(aluno da 5ª série)
- Eu gosto de ficar na fila, eu sou obediente,
mas quando o pau quebra, eu sou mais dura,
eu sou mais nervosa, eu sou mais nervosa
ainda.
(aluna da 5ª série)
- Nós ficamos muito alegres aqui. Tem dias que a gente não quer nem ir
embora, mas tem dias que a gente quer ir embora rapidinho!
(aluna da 6ª série)
- A escola podia ter aula de música, aula de teatro. Porque das matérias tem
muito, mas aula de arte e de educação física tem pouco.
(aluno da 6ª série)
- Eu acho que a escola tem que debater mais a
moralidade aqui dentro. Todo mundo chega
aqui e xinga, seu zé não sei o quê! Fica
fazendo usos do corpo, agredindo verbalmente
e machuca a gente por dentro, no coração.
(aluno da 6ª série)
- Seria muito
bom
que
viessem professores novos pra cá. Que
tivesse a escola aberta aos sábados, com
aulas de música, teatro, dança, xadrez, por
que ía tirar muita gente das ruas. (aluna da 6ª
série)
- Podiam dar aulas sobre puberdade, sobre sexualidade. Porque não se pode
falar dessas coisas aqui?
(aluno da 7ª série)
176
Talvez seja por isso que, apesar de discursar em favor da importância da
escola, os professores mostravam
um
certo
desânimo
quando
discutiam as possibilidades reais
colocadas no dia a dia da Álvaro de
Castro Mattos, seja nas conversas
informais na hora do cafezinho, nos
encontros para formação continuada
e, até mesmo, nas respostas ao
questionário
de
avaliação
institucional.
As queixas eram principalmente em
relação ao barulho interno e externo;
ao desinteresse, às conversas paralelas e às faltas dos alunos; à dificuldade
de comunicação com as famílias; à falta de espaço e tempo para o coletivo se
reunir para discutir outras possibilidades, especialmente em relação à
formação continuada; e à falta de tempo para leitura e planejamento das aulas,
entre outras.
A maioria dos professores, em sua auto-avaliação, considerou muito boa a sua
prática na sala de aula, mas admitiu precisar melhorar no que se refere à
atenção dada aos alunos.
- Atendimento mais individualizado.
- Ser menos preocupada, querer resolver o problema dos
outros.
- Convívio com os alunos extra-sala.
- Preciso relaxar mais, ter mais paciência, sou muito de cobrar
resultados.
- Atenção individual aos alunos, conversando mais
detalhadamente com cada um, analisando as dificuldades.
- Ser mais tolerante com alguns por entender que muitos
passam por dificuldades emocionais.
- Conhecer a fundo as deficiências mais complexas.
Em relação às ações da pedagoga, os professores desejam, entre outras
coisas:
- Agilizar aulas fora da escola.
- Promover palestras sobre assuntos do interesses dos alunos
como sexo, drogas, profissionalização.
- Realizar dinâmicas com os alunos para que eles possam
refletir sobre a necessidade de ter mais responsabilidade.
177
- Sugerir atividades.
- Estabelecer uma ponte entre os professores na tentativa de
viabilizar a interdisciplinaridade.
Conversei com a pedagoga sobre as expectativas dos professores. Ela me
disse que algumas coisas realmente ela podia fazer, mas ainda não fez.
Outras não dependem só dela, como agilizar aulas fora da escola. Em relação
a promover debates sobre sexo e sexualidade, uma reivindicação
especialmente dos alunos da 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries, a pedagoga me disse que
falar sobre esses assuntos é tarefa para os pais, porque quando eles são
debatidos na escola sempre tem reclamação das famílias, especialmente das
mais conservadoras.
- A gente só pode falar de xoxota, peru é pílula. Se falar de
prazer vem logo reclamação!
E agora? Chegamos a um impasse. Os alunos acham que essa é uma
questão que gostariam muito de discutir na escola, por que não se sentem à
vontade para falar sobre sexo com os pais.
O que eles gostariam de debater?
- Tipo assim, a importância de usar a
camisinha, essas coisas, pra gente
saber mais sobre isso.
- Eu acho que devia
falar sobre sexo.
Porque na escola do
meu amigo tinha uma
menina que tinha
AIDS
e
estava
grávida, eu
acho que a
gente devia
falar sobre isso.
- Sobre a sexualidade, porque tem gente que não
está sabendo direito.
- Você vai conversar com sua mãe sobre essas
coisas, tá doido?
- Tem gente que conversa com a mãe, mas eu não tenho
intimidade com a minha mãe para isso.
178
- Eu acho que eles acham que isso é assunto pra conversar em
casa.
- Mas eu não quero falar em casa sobre isso.
- A gente queria que a escola falasse sobre
sexualidade.
- Não ensinar sobre sexualidade, é informar sobre
as doenças e ensinar a gente a se prevenir.
- Eu acho que eles podiam fazer
debates sobre sexualidade, trazer
ginecologias,
porque
nós
adolescentes somos meio idiotas. Na
escola a gente pode falar sobre isso
livremente, porque com os pais a
gente não se sente à vontade.
- Não dá pra falar com os pais da
gente, então seria bom debater na
escola, porque hoje em dia você sabe
como tá, né?
A questão da sexualidade, pensada por Foucault como política do sexo, mas
também como estética de existência, está presente em múltiplas redes de
relações cotidianas na escola: nas reivindicações manifestadas nas falas de
alunos e professores; nas trocas de confidências na hora do recreio e da
entrada; nos insultos e agressões em meio às brigas por outros motivos
quaisquer; nas práticas de alunos dentro e fora da escola que são
comunicadas aos pais e resultam em suspensões ou que viram lendas, boatos
e fofocas que povoam corredores e salas de aula; na utilização das quadras
esportivas; no acesso a atividades extra-sala, como as aulas de dança e
futebol; nos livros didáticos; nos trabalhos e cartazes; e nas apresentações
realizadas por alunos nas festas; e na insistência em usar shorts curtos e
roupas diferentes e sexys, entre outras coisas. É, portanto, uma questão que,
independente de qualquer prescrição da SEME ou deliberação da escola, faz
parte do currículo. De qualquer forma, demandas como essa nos dão pistas
para problematizar:
Qual o papel da escola?
O que se aprende na escola?
Qual o melhor lugar e a melhor forma para se aprender?
Qual a importância do professor?
Quando as aulas são mais interessantes?
O que os alunos gostam mais na escola?
O que eles não gostam?
179
O que mais a escola poderia oferecer?
O que os alunos gostam de fazer quando não estão na escola?
Quais as possibilidades colocadas pata alargar os conhecimentos e a vida?
É evidente que nunca teremos todas as respostas, mas isso não significa que
não devemos considerar essas questões. Além disso, muitas coisas que os
alunos disseram na entrevista ao vídeocabine me surpreenderam. Coisas que
problematizam afirmativas teóricas, discursos de autoridades educacionais,
narrativas midiáticas, expectativas de pais, críticas às escolas e preocupações
de educadores.
 Na escola se aprende muitas coisas.
 O melhor lugar para se aprender é na sala de aula, com o professor,
caderno, lápis, quadro negro e giz.
 As melhores aulas são aquelas em que o professor brinca e conversa
com a gente. É muito mais divertido.
 O professor é muito importante. Ele explica, ajuda, dá conselho,
incentiva.
 As melhores coisas são o recreio, as aulas de arte e as aulas de
educação física (pra descontrair). Na hora do recreio se aprende a ser
feliz.
 Na hora do recreio queremos jogar futebol, mas os coordenadores
tomam as nossas bolas. Já perdemos várias.
 Informática é bom, poderia ter mais aulas de informática, mas na hora
de aprender as matérias a gente se distrai muito.
 Só temos aula de informática quando a professora consegue agendar.
As aulas agendadas são só pra fazer trabalhos. Podia ter jogos
também.
 Muitas vezes quando estamos conversando com os amigos na sala de
aula nós estamos discutindo sobre as matérias. Podia ter mais debates
e trabalhos em grupo.
 É preciso ter disciplina e mais vigilância para evitar a bagunça e a
violência. As agressões verbais machucam o coração.
 Fazer bagunça é bom, mas nessa escola não dá pra fazer bagunça. A
gente leva ocorrência. E levar ocorrência e suspensão é muito ruim.
 A gente gosta da hora do recreio e da saída, porque a gente pode
conversar com os amigos. A gente conversa sobre várias coisas.
Principalmente sobre namoros e programas de TV. Na aulas podiam
falar sobre essas coisas também.
 As melhores coisas para fazer quando não se está na escola são:
brincar, jogar bola, andar de bicicleta, andar de patins, soltar pipa, sair e
ficar no computador. TV, às vezes, dependendo.
 No computador a gente fica no MSN e no Orkut. O computador vicia.
 É melhor fazer amigos na escola do que na internet, porque lá as
pessoas mentem.
 Gostaríamos que na escola tivesse aulas de dança, mais esportes –
principalmente futebol -, música, teatro e espanhol. Mais eventos.
 Gostaríamos de discutir na escola assuntos como sexo, droga,
violência, profissões, economia, televisão e outras coisas que
acontecem no mundo.
180
PORQUE O QUADRO NEGRO É BRANCO?
Uma outra forma que encontrei para tentar perceber o que os alunos pensam,
esperam, desejam e se angustiam em relação à escola foi pedir a eles que
escrevessem num papel, sem se identificar, as perguntas que gostariam de
fazer à escola mas que não tinham coragem de fazer. A idéia foi de Ferraço e a
ocasião foi uma tarde em que a professora de educação física precisou faltar e
a pedagoga me pediu para ficar com as turmas durante as aulas dela. Foram
cinco tempos, numa tarde de sexta-feira, quando passaram por mim as turmas
5A, 5B, 6A, 7A e 8A. Ou seja, todas as turmas de 5ª à 8ª do turno vespertino.
Ao todo, 110 alunos participaram da atividade.
Longe das câmeras, os alunos
foram direto às questões que
os
incomodavam,
sem
rodeios. As perguntas, na
minha avaliação, não eram
perguntas, ou seja, não eram
questões,
mas
sim
problematizações. As mais
recorrentes se referiam à
obrigatoriedade do uso de
uniforme; à proibição de boné,
celulares, balas e chicletes em
sala de aula; aos direitos
considerados desiguais para
professores e alunos; às aulas de inglês em horário diferente das aulas
normais; e à proibição de jogar bola, de namorar e de “ficar” nas dependências
da escola. Muitas dessas questões já estavam devidamente colocadas nos
cartazes da campanha pela disciplina e é impossível saber o que condicionou o
que. A maioria delas se dirigia às regras, procedimentos, condições e modos
de funcionamento da escola. Outras questões operavam como perguntas
menores, e nos ajudam a pensar os sentidos de procedimentos e discursos
que se naturalizaram na escola.
Por que a escola não tem piscina?
Por que a escola não pode colocar a aula de inglês no horário normal das
outras aulas?
Por que o recreio não pode ser maior?
Por que não tem campo de futebol na escola?
Por que muitas vezes os alunos não têm liberdade de expressão?
Eu queria saber por que a escola não é reformada, o lanche é uma merda e a
quadra também é uma merda?
Eu gostaria que a escola tivesse curso de artesanato e outros mais.
181
Por que nós não podemos escolher o que fazer nas aulas de educação física?
Por que nós não podemos ir ao banheiro quando queremos?
Por que nós não podemos usar a secretaria para tirar xerox?
Por que não pode usar boné?
Por que não pode atender o celular na sala?
Por que a biblioteca não abre todos os dias?
Por que os alunos usam uniformes e os professores não?
Por que quando a gente vai à coordenação resolver um problema a Dona Ana
não resolve?
Por que não pode fazer sexo na escola?
Por que a professora não dá aula de sexo?
Por que não pode comer na aula?
Por que não pode chupar bala ou chiclete na aula?
Por que tem aula 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª e não pode ter no sábado e no domingo?
Por que não pode namorar na escola?
Por que os banheiros das meninas e dos meninos são separados?
Por que não pode jogar bola na escola?
Por que não pode sair da sala com uma gata e ir ao banheiro com ela?
Por que tem que vir de uniforme pra escola?
Por que a escola não deixa as meninas virem de roupa sexy?
Por que a professora não dá o castigo de meninas e meninos quando brigam
de fazer 69?
Por que não pode usar short curto na escola?
Por que não tem muitos passeios na escola?
Por que não tem mais aulas esportivas na escola?
Por que não pode trazer brinquedos para a escola?
182
Por que não melhoram as aulas?
Por que tem um monte de gente metida?
Por que não botam mais aulas de leitura na informática?
Por que não pode vir do jeito que quiser para a escola?
Por que a direção não empresta a bola de futebol?
Por que não pode dobrar o short na escola?
Por que o lanche da escola piorou?
Por que não pode conversar na aula?
Por que não pode matar aula?
Por que não pode “ficar” na escola?
Por que não pode brigar na escola?
Por que não pode dormir na aula?
Por que o professor pode faltar e o aluno não pode?
Por que o aluno não pode chegar atrasado?
Por que existe dever de casa?
Por que o banheiro da escola é precário?
Por que a cozinha cheira mal?
Por que a gente não tem um “banquete” como os professores?
Por que o manual existe?
Por que existe reprovação?
Por que existe nota?
Por que existe prova?
Por que tudo é proibido?
Por que a aula é tão longa e chata?
Por que a cantina não abre na sexta-feira?
183
Por que as coisas da cantina são tão caras?
Por que os computadores e a internet da escola são lentos?
Por que todos os funcionários da escola são chatos?
Por que não pode ir embora depois do 4º horário?
Por que não temos uma sala própria para fazer bagunça?
Por que o short do uniforme é grande?
Por que a gente num vai embora cedo todos os dias?
Por que não pode ouvir música na aula?
Por que os professores atendem o celular na sala e os alunos não podem?
Por que os professores podem chegar atrasados e os alunos não?
Por que a gente toma ocorrência?
Por que quando não fazemos o dever de casa perdemos pontos?
Por que TODOS os funcionários da escola são chatos, menos a tia que limpa a
escola?
Por que o guardinha é MUITO TARADO?
Por que nós não podemos usar o short do jeito que nós queremos?
Por que a biblioteca não deixa nós (os alunos) trabalharmos na hora do
recreio?
Por que nós não podemos usar a roupa mesma que os professores?
Por que não pode ajudar (os alunos) quando nós estamos fazendo dever
durante a aula?
Quando vai ser a reforma da escola?
Por que quando os alunos reclamam de alguma coisa raramente são ouvidos?
Por que quando reclamamos de algo que é verdade eles dão esporro?
Por que não pode usar mp3 e mp4 na escola?
Por que existe professor?
Por que não pode fazer rebelião?
184
Por que não pode trazer mina pra escola?
Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Por que eu não posso quebrar o Mateus cabeça de ovo?
Por que os professores pegam tão pesado da 5ª à 8ª série?
Por que não temos mais fim de semana do que aula?
Por que as aulas não têm menos tempo?
Por que a escola é chata?
Por que as escolas têm regras chatas?
Por que a escola EXISTE?
Por que não pode trazer bola de futebol para a escola?
Por que não pode trazer roupa diferente?
Por que não é batido um sinal para cada duas séries saírem para o recreio,
para que os “grandes” não fiquem na frente?
Por que é obrigatório vir de uniforme mesmo que esteja sujo?
Como é o sistema de notas da professora de arte?
Por que não consultam a gente antes de fazer eventos ou coisa assim?
Por que os professores quando vão fazer mapa de sala não colocam os alunos
em ordem de tamanho?
Por que Dona Ana e o Ricardo não são mais rigorosos e tacam uma ocorrência
em quem faz bagunça em sala?
Por que as meninas não podem usar roupa decotada?
Por que não pode namorar nas dependências do colégio?
Por que não pode trazer ZOO pra escola?
Por que tem assassinato na escola?
Por que a maioria das pessoas são fofoqueiras?
Por que os meninos são difíceis?
Por que nós não podemos ser presidentes?
185
Por que algumas pessoas não gostam de estudar?
Por que existe pessoa com deficiência?
Por que existe “viaduto”?
Por que os alunos não podem tomar banho depois da educação física?
Por que não tem armário pra guardar nossas coisas?
Por que o uniforme não muda todo ano?
Por que não tem ar condicionado nas salas?
Por que não colocaram aulas de dança da 1ª à 8ª série?
Se as pessoas melhorarem na escola vocês prometem reservar um lugarzinho
na semana para dar um passeio legal?
Por que não consultam a gente para fabricar o uniforme horroroso, ridículo,
que não dura nem um dia?
Por que a aula de história dá sono?
Por que não pode escrever na lousa a lição no lugar do professor? (assim eles
descansam)
Por que não tem mais aulas esportivas na escola, tipo: karatê, natação, judô,
espanhol, ginástica olímpica e só?
Por que não vendem coisas mais nutritivas na cantina da escola?
Por que não levam os alunos para uma colônia de férias?
Por que a informática não abre na hora do recreio?
Por que as aulas de português são bagunçadas?
Por que os alunos não têm transporte exclusivo?
Por que os deficientes não têm sua própria sala?
Por que dia de segunda-feira tem que trazer todos os livros?
Por que só tem professor na escola?
Por que o almoço é só macarrão?
Por que os alunos da 6ª não tiveram passeio?
186
Por que o estudante não tem passe-livre?
Por que na hora do recreio não tem som?
Por que os professores não usam uniformes?
Por que não temos aulas diferentes?
Por que só o banheiro dos professores tem higiene (sabonete, papel)
Por que na escola não temos um jornal de informações da escola?
Por que na escola não tem programação incluindo mais a família?
Por que não podemos ir à sala de informática sem os professores?
Por que não temos aulas extras (moda, teatro, dança)?
Por que não temos uma cantina decente, com filas retas?
Por que não temos rádio da escola?
Eu queria fazer aula de natação.
Eu queria fazer aula de tênis.
Eu queria fazer aula de capoeira.
Por que não poder correr?
Por que não dão camisinha?
Por que não tem sexologia para adolescentes?
Por que não existe camisa-de-força?
Por que as meninas menstruam?
Por que nós gozamos?
Por que na sala de aula não tem computador?
Por que no sábado e domingo a escola não abre para fazer atividades e jogos?
Por que nos feriados nós não passeamos?
Por que às vezes vocês não atendem a gente?
Por que quando brigam com um brigam com todos?
Aonde aqueles remédios foram parar?
187
Por que o banheiro só fica limpo na festa da cultura?
Por que no banheiro não tem papel?
Por que às vezes vocês faltam?
Quem era Álvaro de Castro Mattos?
Por que não tem muitos livros na biblioteca?
Antes a escola era um museu, porque ela virou uma escola?
Por que não temos aula de espanhol, italiano e latim na escola?
Por que não consertam o telhado da quadra?
Por que a escola não dá caderno todo dia?
Por que quando o aluno chega atrasado primeiro ele tem que ir para a
coordenação para depois ir para a sala de aula?
Por que o tênis é obrigatório?
Por que não pode usar corretivo em prova?
Podemos ter aula de informática toda semana?
Por que não podemos entrar no Orkut e no MSN na escola?
Por que Dona Ana não me escuta e tira as colméias de abelhas e
marimbondos que tem na escola?
Quais são os investimentos da escola com as verbas públicas?
Por que a pedagoga pode mascar chiclete nas dependências da escola?
O que vocês fazem com o dinheiro da cantina?
Por que nos uniformes novos não tem o nome da nossa escola?
Por que nos banheiros dos alunos não têm sabonete, toalhas?
É verdade que a escola foi um museu?
É verdade que a escola foi o primeiro prédio público?
Por que aqui na escola não tem que pagar multa cada vez que nós xingamos?
Quando irá começar a reforma que o prefeito prometeu?
188
Por que não tem aula de 1ª à 8ª série à noite para crianças?
Por que não tem mais aulas de internet por semana?
Por que o professor de português tem a língua grande?
Por que não tem aula no domingo?
Por que a professora de geografia é brava?
Por que estão destruindo a Mata Atlântica?
Por que os professores brigam com a gente?
Por que tem aula de matemática?
Por que não tem aula de educação física 5 vezes na semana?
Por que o professor de português não ensina espanhol?
Por que não pode andar de bicicleta na escola?
Por que todos os uniformes são iguais?
Por que as provas são difíceis?
Por que todos os uniformes são ridículos?
Quando uma pessoa se machuca, porque a escola não leva para o hospital?
Por que o banheiro é tão sujo?
Por que a professora de educação física não dá esportes legais?
Por que ela manda as meninas dançarem ao invés de jogar bola?
Por que não pode brincar de vôlei na hora do recreio?
Por que os professores não são brincalhões?
Por que algumas pessoas são grosseiras?
Por que não podemos ir à sala de informática na hora do recreio (informática
liberada: MSN, Orkut, flogão, e-mail)?
Por que a crueldade com animais e pessoas?
Por que várias pessoas largam animais na rua?
Por que nós rimos quando uma coisa que nós não devíamos fazer passa?
189
Por que o mundo está assim, todo poluído?
Por que os chineses têm olhos espichados?
Por que nas escolas em vez de usar cadernos não usamos notebook?
Por que existem emos?
Por que em vez de ter aula não tem informática?
Por que no Brasil não existe super-herói?
Por que nas aulas de informática não pode entrar no MSN e no Orkut?
Por que não pode beijar na boca?
Por que quando a gente esquece o caderno a professora não acredita?
Por que minha mãe não me compreende?
Por que a escola não dá aula de instrumentos musicais?
Por que a diretora não fica na escola?
Por que os professores não recebem um salário maior?
Por que arroz não pode ser cozido na panela de pressão?
Por que não tivemos passeio na fábrica de chocolates Garoto?
Por que a aula não dura 30 minutos?
Por que o recreio não dura 1 hora?
Por que não temos 4 aulas de educação física na semana?
Por que a professora não gosta de falar de sexo?
Por que não somos bem tratados pela equipe da manhã? Somos tratados que
nem cachorros.
Por que a diretora não cumpre com o que ela fala?(acabar com os mosquitos e
consertar os banheiros)
Por que a escola não leva os alunos ao cinema?
Por que a escola não possui auditório e piscina?
Por que a biblioteca não tem livros decentes?
190
Por que a escola não escuta os alunos?
Por que quando tem comida boa não pode repetir?
Por que não há direitos iguais para alunos e professores?
Por que os alunos mudam de sala e não os professores?
Por que é proibido beijos na escola?
Por que a escola não oferece aulas de educação sexual?
Por que a escola nunca responde as nossas perguntas?
Por que o quadro negro é branco?
Por que não tem calça e blusa de frio?
Por que tenho que fazer dever de casa se moro em apartamento?
Por que os alunos não podem ter conta na cantina?
Por que o manual dos alunos só pode ser entregue aos pais ou responsáveis?
Por que é difícil a gente ir ao jardim da escola?
Por que na educação física não tem coisas diferentes como brincadeiras?
Quando a escola vai exterminar os mosquitos da sala de artes?
Por que os meninos não têm estrias e celulite?
Por que os alunos não podem usar boné, óculos escuros, mp3 e roupas
diferentes?
Por que na escola é proibido usar touca de frio?
Por que os professores mentem sempre nas reuniões?
Por que os coordenadores não se responsabilizam pelas nossas coisas?
Por que as cozinheiras tratam a gente mal?
Por que algumas serventes fumam na escola se é proibido?
Por que o uso de calça jeans não é liberado?
Por que o professor não deixa beber água e ir ao banheiro depois do recreio?
Por que não tem mangá na biblioteca?
191
Por que não tem mais atividade fora da escola?
Por que todos os nossos “porquês” a escola finge que não escuta e não
responde?
Por que não tem uma sala para cada turma?
Por que os bimestres não valem 10?
Por que não aprendemos mais sobre a cidade de Vitória?
Por que a escola não pode ter um programa na sala de computação para
trocar idéias, como se fosse mensagens, com outras escolas?
Por que o computador da escola não fica livre para todos os sites?
Por que a pedagoga vem para a escola com cheiro de cigarro incentivando os
alunos a fumar?
Por que não tem mais NOA?
Por que na escola tem preconceitos?
Por que não pode trazer câmera digital para a escola?
Por que tem pessoas tímidas?
Por que nós temos que estudar tantas horas?
Por que nós temos que estudar tantos dias?
Por que na sala nós temos que sentar em filas?
Por que as escolas particulares são muito caras?
Por que o governo não investe em educação?
Por que existe ocorrência, suspensão, expulsão?
Por que tem reuniões de pais?
Na minha avaliação, a maior parte das perguntas aponta para uma insatisfação
com relação às normas e os procedimentos da escola e/ou em relação à forma
como elas são elaboradas e impostas, mas também apontam para um
processo constante de negociação, para além de um confronto. Aceitamos
“estudar” e nos “comportar”, mas queremos contrapartidas, ou seja, instituímos
outras práticas que nos fazem mais felizes. Outras questões demonstram a
importância, talvez excessiva até, que os adolescentes dão à questão da
sexualidade, tratada de forma superficial pela escola. Outros questionamentos
192
sugerem alguns desafios que a comunicação e a tecnocultura trazem à
educação, como as que se referem aos meios e suportes das
telecomunicações (mangás, computadores lentos, internet, MSN, Orkut,
câmera digital, cinema, jornal, rádio e notebook) e as problemáticas por eles
agendadas (poluição, crueldade com animais, investimento em educação,
destruição das florestas, salários dos professores, etc.). Outras perguntas
(“menores”, conforme Deleuze), que soam como desabafo ou brincadeira, nos
remetem a alguns conceitos, procedimentos ou convicções sobre a escola que
naturalizamos, que nos parecem tão óbvios e que às vezes pensamos que não
precisamos mais pensar sobre eles.
Por que muitas vezes os alunos não têm liberdade de expressão?
Por que não pode vir do jeito que quiser para a escola?
Por que o manual dos alunos é entregue aos pais?
Por que existe reprovação?
Por que existe nota?
Por que existe prova?
Por que tudo é proibido?
Por que quando os alunos reclamam de alguma coisa raramente são ouvidos?
Por que quando reclamamos de algo que é verdade eles dão esporro?
Por que existe professor?
Por que as escolas têm regras chatas?
Por que a escola EXISTE?
Por que quando brigam com um brigam com todos?
Por que a professora não gosta de falar de sexo?
Por que a escola não escuta os alunos?
Por que a escola nunca responde as nossas perguntas?
Por que o quadro negro é branco?
Por que tenho que fazer dever de casa se moro em apartamento?
Por que não temos aulas diferentes?
193
De uma maneira geral, me parece que, pelo menos naquele momento, para os
alunos da EMEF ACM a questão do conhecimento escolar (as matérias, como
eles dizem) é a que menos importava. Suas preocupações, indignações e
problematizações foram deslocadas ou alargadas para questões, ao mesmo
tempo mais amplas e mais localizadas, ligadas ao controle e à liberdade,
embora me pareça que os alunos desejavam o tempo todo tanto o limite como
a experimentação e a expansão, e assim, um conhecimento de si e do mundo
que não fosse compartimentado e disciplinar. Qual a medida, qual o momento,
qual o modo de estabelecer as condições para essa vivência é o que a escola
tenta cotidianamente e precisa construir.
E como não há como separar as redes de sentidos, subjetividades e
saberesfazeres tecidas pelos sujeitos que praticam o cotidiano escolar do
conhecimento que é produzido e circula na escola, já estamos falando também
da tessitura de currículos.
É possível conhecer a escola um pouco melhor e assim poder falar sobre suas
potencialidades?
Neste enfoque metodológico, assumimos que não existe um único,
mas diferentes caminhos. Caminhos percorridos por cada sujeito
na diversidade de ações, representações e interações
realizadas/vividas. Caminhos complexos, acidentais, plurais,
multidimensionais, heterárquicos, fluidos, imprevisíveis, que se
abrem e se deixam contaminar, permanentemente pelas ações,
pensamentos e imagens do mundo contemporâneo, enredando
representações, significados e pessoas. Uma complexidade que
não se esgota nunca e que, apesar de estar em todo lugar, não se
deixa capturar. No máximo, ser vivida e com alguma dose de sorte,
ser sentida.
(FERRAÇO, 2001:103)
Com efeito, como nos ensina o próprio Ferraço (2005), para pensar e discutir
currículo e possibilidades de conhecimento na escola, nós temos que
problematizar a idéia de currículo como prescrição e tomar como referência
fragmentos de complexidade das redes vividas no cotidiano escolar tecidas
pelos sujeitos praticantes. Eu acrescento, por sujeitos praticantes e em
comunicação.
194
Considerando as relações estabelecidas entre os sujeitos da EMEF Álvaro de
Castro Mattos e entre eles e os diferentes contextos de vida vivida por cada
um, e reconhecendo minha interferência nessas redes de relações e sentidos,
me proponho a pensar os currículos tecidos na escola e as redes de
saberesfazeres lá existentes, bem como as possibilidades de conhecimento
(FERRAÇO, 2005) que já estão colocadas.
DISCUTINDO CURRÍCULOS NA E COM A ESCOLA
Cada forma nova de se ensinar, cada conteúdo trabalhado, cada
experiência particular só podem ser entendidos junto ao conjunto de
circunstâncias que os torna possível, o que envolve a história de
vida dos sujeitos em interação, sua formação e a realidade local
específica, com as experiências e saberes anteriores de todos,
dentre outros elementos da vida cotidiana.
(OLIVEIRA, 2005:47)
Como disse a professora de Geografia,
o(s) currículo (s) está (estão) em todo
lugar, nas coisas da vida. Saberes e
fazeres diversos, múltipos e enredados
nas nossas práticas do dia-a-dia, que
engendram conhecimentos e ações no
momento e conforme o modo pelos quais
nos encontramos e nos relacionamos
com eles. O currículo que conta é
praticado
(Oliveira),
vivido,
realizado/inventado (Ferraço). Se efetua
no modo pelo qual esses saberes e
fazeres acontecem em nós e para nós,
como nos adaptamos, nos apropriamos,
negociamos
com
eles
e
assim
inventamos sentidos, nos produzimos e
produzimos mundo e conhecimento/sentimento de mundo. Inventamos
sentidos que nos orientam, que nos apontam direções.
195
- Eu gosto muito dessa escola, eu estou
aqui desde a primeira série. Eu até já
me acostumei, porque antes, quando
eu chegava, eu tinha medo porque eu
não conhecia ninguém, mas agora está
tudo tranqüilo.
(aluna da 6ª série)
- Têm pais que chegam em casa e nem
falam alô direito com o filho, vão direto
dormir porque trabalham o dia inteiro. Ao o
aluno tem um pouco de dificuldade de
aprender. Não só na escola a gente tem
que aprender, mas também em casa, com
o amor dos pais, a ajuda.
(aluna da 6ª série)
- Eu não sou japonesa. Eu sou mestiça. E
eu não gosto dos dias que não tem aula e
que está chovendo. Porque não dá pra
fazer nada. Se a energia acabar então só
dá pra desenhar.
(aluna da 1ª série)
Fazendo história em quadrinhos se
aprende o quê? A escrever, a desenhar, a
imaginar, a criar, a se expressar, a se
apropriar de expressões, a se comunicar,
a calcular, a utilizar tempos e espaços, a
inventar situações felizes e desejáveis, a
fortalecer e criar relações, a se apropriar
de fragmentos de outras histórias e de
memórias, a traduzir, a negociar e a
hibridizar discursos, a ironizar e assim
criticar
situações
indesejáveis
ou
paradoxais, a forjar ações possíveis para
tornar melhor a própria vida e a vida dos
outros também, além de milhares de
outras coisas impossíveis de serem
medidas, percebidas ou controladas.
Não se trata, assim, repito, de organizar um currículo, mas de fazer
emergir muitos currículos já existentes, Criar alternativas de
196
organização curriculares que, em vez de buscar silenciar as
experiências em curso, ajudem na legitimação de espaços/tempos
variados e múltiplos. Esta nos parece ser a função de um currículo
oficial: dar sentido às experiências curriculares que realizamos em
nossas escolas – sentido de uma experiência tecida coletivamente
por sujeitos que recriam sua própria prática na atividade de
praticar.
(MACEDO, OLIVEIRA, MANHÃES, ALVES (org.), 2004: 57-58)
Somos todos iguais. Viu? Ninguém é perfeito. Eu sou um craque! Seria essa uma oportunidade
para dizer-se e constituir-se?
Fazer amigos, brincar, voltar
pra casa, comer, rezar e
dormir. Expressão,
simulação ou invenção da
vida cotidiana?
197
Tanto faz. Em qualquer um dos casos é uma oportunidade de criar uma história, uma
compreensão e um sentido para a vida.
Até filosofar é permitido: nascer, crescer, ter seu próprio galinheiro e virar coxinha. Vida, morte e
transformação com muito humor.
A oficina de quadrinhos foi desenvolvida pelo professor de português, com as
turmas de 5ª série. Mas o que a gente vê aqui é só português? Poderia ser
matemática? Poderia ser também história,
geografia, ciências e artes? Tem a ver com lógica,
linguagem, código, imagem, comunicação e
pensamento? Tem a ver com ética, estética,
política, cidadania, filosofia, religião? É educação?
Dá pra separar?
Na oficina de quadrinhos se inventam sentidos, que
tecem conhecimentos, que instituem modos de vida,
que apontam direções, que impulsionam práticas,
que constituem processos de subjetivação, que
produzem
realidade.
É
conhecimento,
autoconhecimento, processo de subjetivação e
currículo!
Como avaliar conhecimentos tecidos por sujeitos
praticantes e em comunicação durante o processo
198
de produção e apreciação de trabalhos como esse, sem atentar para os
contextos com os quais esse processo está enredado?
É impossível precisar quantas discussões, práticas e posicionamentos
puderam ser forjados e negociados nesse processo, embora não só nele - é
óbvio -, mas que estão também enredados com outras discussões, práticas e
posicionamentos tecidos em outros contextos cotidianos dos alunos e
professores, inclusive na própria escola, como as questões da ecologia, da
apropriação do espaçotempo da cidade, da convivência, do direito à igualdade
e à diferença (e aí, embutida, do biopoder), da amizade, da fé e da família,
entre outras.
Podemos então, com Amorim (2005: 123) compreender e defender currículos
como espaços de encontros das diferenças, de desdobramentos em comummúltiplo, divergente, desfigurante. Podemos também pensar currículos como
redes de saberes, fazeres, sentidos e subjetividades criadas no cotidiano,
como Alves, Oliveira e Ferraço. Podemos finalmente problematizar a idéia de
currículo apenas como prescrição, documento a ser seguido, e considerar a
pluralidade de caminhos e de processos em sua efetivação.
Conversando com os professores e com a pedagoga da EMEF ACM, pude
perceber que a percepção dessa condição de efetivação dos currículos
propostos não é novidade para a escola, pois as apropriações e as
refuncionalizações do que foi previsto e prescrito sempre aconteceram, muito
embora seja isso que quase sempre se quis e se quer evitar. Reproduzo abaixo
entrevista que fiz com a pedagoga do turno vespertino, de 5ª à 8ª série da
escola, na qual emergem as várias ambigüidades e dispositivos présignificantes que o pensamento e a fala, dela e meus, podem comportar.
Como é que acontece a criação do currículo na escola?
Existem as diretrizes nacionais, que são planejamentos feitos pelo Mec e enviados às
secretarias de educação e que contem previsões nacionais para o currículo. O plano decenal de
educação da SEME é em cima desse plano do Mec. E a SEME tem um trabalho feito de
diretrizes curriculares feitas por área com os próprios profissionais da sala de aula, coordenado
por uma equipe, mas esses profissionais é que trabalharam o plano. A escola vai se adequando
dentro dessas diretrizes curriculares. O currículo da escola foi feito por uma equipe em 2002, se
não me engano, e vem sendo reformulado anualmente. Só que eu acho que essa reformulação,
essa avaliação do currículo que a gente executa não vem sendo muito legal, feita de uma forma
muito legal. Na verdade falta espaço para discussões mais profundas. Por exemplo, a gente usa
o rodízio de salas, e ao usar o rodízio de salas algumas mães questionam, e nós não discutimos
isso ainda profundamente. Você responde a mãe quando ela te pergunta, mas isso dentro do
grupo, profundamente, não foi um ponto de discussão. Por exemplo, as normas disciplinares, a
gente as tem, faz a revisão anual delas junto com os alunos, porque eles são perguntados sobre
elas, mas na verdade, um processo de discussão não foi formado. Então, eu acho que falta
muito espaço na escola para que a gente desenvolva melhor essas coisas. Os nossos
mecanismos de avaliação, eu coloco em xeque. Não sei se eles são os melhores, não sei se
agente está fazendo dentro de uma forma legal, a gente está fazendo, mas de verdade eu não
tenho segurança de que seja legal.
199
Como acontece esse processo?
Existe o plano decenal, mas cada gestão política que entra tem diretrizes partidárias, políticas,
então ela já faz uma adequação desse plano decenal obrigatório para a sua concepção política.
Então, já há uma primeira adequação nível de SEME, e daí emanam-se diretrizes para trabalho
que vêm para a escola através das reuniões de área. Quem faz a grade é a escola, em cima da
sua realidade e necessidade. Nós, por exemplo, usamos o inglês fora da grade. A grade tem 25
horas semanais, cinco tempos por dia em cinco dias. Desses 25, nós temos mais três de inglês,
que são em horário invertido. A gente fez essa opção para aumentar aulas de história, geografia
e ciências. Matemática e português, eu não vou dizer que são intocáveis, porque não são, há
uma oscilação de escola para escola. Mas, a herança cultural que nós temos nos diz que
português e matemática devem ter uma carga maior. Isso já foi escrito, na 5692, mas a 9394 não
fala nisso, a lei é omissa, e o Mec não soltou nenhuma portaria obrigando que a carga horária de
português e matemática seja maior. A avaliação e reelaboração são sempre no final do ano e a
SEME aprova. Nós levamos em consideração os profissionais que temos, o número de alunos e
o número que salas, os espaços que dispomos. Ou seja, a estrutura disponível conta mais ou
tanto quanto o que a escola avalia como necessidade das disciplinas.
Como são pensados os conteúdos programados?
Existem as diretrizes curriculares feitas pelos professores, mas eles têm total liberdade. Tem a
questão do livro didático, que vem do Mec. Então, uma vez adotado o livro lá em Brasília, o
professor, nessas diretrizes dele, ele tem que fazer uma adequação. De repente, ele consegue
que algum conteúdo possa estar à frente, e o livro está lá atrás. Ele não tem que seguir o livro
todo. Ele tem que seguir a ele. Ele pode pular. Nunca houve, eu tenho 35 anos de magistério,
nunca ouvi dizer que alguém tivesse sido penalizado por não seguir as diretrizes curriculares.
A avaliação dos conteúdos fica mais a cargo do professor, porque a experiência vai mostrando a
ele o que ele pode andar mais rápido e o que ele pode até suprimir. Nós tivemos esse ano uma
peculiaridade em matemática. Desde que eu cheguei aqui, nós não tínhamos sentido ainda a
necessidade do ensino de tabuada. Este ano houve necessidade. Eles não sabiam o mínimo
necessário para desenvolver nenhum raciocínio matemático. Então a professora, além de estar
cobrando a recuperação paralela, está trabalhando a tabuada da forma tradicional mesmo.
Questões trazidas pelos pais e pelos alunos são consideradas?
Todos os segmentos fazem a avaliação. Foi um questionariozinho de marcar “x” para os alunos
e para o segmento de pais, que é muito fraco. Você convoca para isso e vêm 25 num universo
de 400. Já com os alunos, é feito com todos os alunos. Eles avaliam tudo, a merenda, o
tratamento no portão, banheiros e o currículo. Fica aberto, se eles quiserem podem interferir.
Nunca houve um caso de aluno que interferisse, mas se ele quiser interferir ele pode.
Vocês buscam estabelecer uma relação entre os conhecimentos, conteúdos, previstos no
currículo e as demandas da vida cotidiana dos alunos e professores?
Conhecimento nunca é demais. E eu sou de uma época que para você conhecer umas coisas
você deveria ter conhecido outras antes. Por exemplo, grande parte dos professores, por causa
da máquina (de calcular), acham que a tabuada não deve ser ensinada mais. Mas aí, faltam
requisitos para operar a matemática. Eu acho que os conteúdos são necessários. Você
entenderia a história política atual se você não soubesse todo o contexto histórico?
200
Esses conhecimentos fazem sentido para a continuidade dos estudos ou para a qualidade
de vida das pessoas?
Os dois. Eu acho que a gente foi restringindo o currículo e, de certa forma, foi ensinando menos
o papel político de cada um. O aluno de antigamente sabia melhor seu papel político. Hoje ele
sabe menos. Porque as coisas são muito operacionalizadas, muito tecnicistas, e isso reduz todo
o pensamento humano, toda filosofia.
A realidade dos alunos é pensada a partir de que condição?
Principalmente a sócio-econômica. A grande diferença entre a escola pública e a escola
particular é que a escola particular recebe alunos mais bem informados. Muito mais bem
informados. Muito mais rapidamente informados do que o da escola pública. Porque o da escola
pública não tem jornal em casa, não tem revista em casa, tem a TV aberta, em alguns casos a
TV a cabo, e alguns poucos computadores.
Como vocês avaliam esse nível dos alunos?
Eu classificaria como classe média. É o filho do trabalhador que está aqui.
E quais seriam as principais necessidades deles?
Talvez seja a questão da informação mesmo.
E a questão dos pais, que você disse que são muito ausentes?
Há uma coisa assim por parte da família. Eu quero que vocês eduquem, mas não saiam dessa
faixa de educação que eu estou prevendo que vocês vão dar.
Os alunos me disserem que gostariam de discutir a questão da sexualidade na escola,
porque eles não têm liberdade para falar sobre esse assunto com a família. O que a escola
pode oferecer para as crianças nessa condição, meninos de classe média, filhos de pais
trabalhadores que têm pouco tempo ou disposição para conversar?
Eu acho que o eixo ainda é a família, não pode ser a escola. Por isso que eu fui contra a escola
de tempo integral, porque senão a gente vai acabar abraçando uma obrigação que não é nossa.
Existem casos da mãe mandar o remédio com um bilhetinho para a escola ministrar. Então o
papel da família está sendo ocupado mesmo pela escola. E aí eu acho muito perigoso.
Parece que as crianças não estão conseguindo fazer um link entre o que elas aprendem
nas disciplinas e as necessidades cotidianas delas. Como lidar com isso?
Aonde eu atuo, eu tento ter, primeiro, unidade de pensamento. Porque você imagina esse
universo que é a escola, professores, mais pedagogo, mais coordenador, mais diretor, mais
secretaria, mais portão, mais cozinha, todos influenciando, todos com formações diferentes, com
experiências de vida diferentes, formando a cabeça de uma criança. Então, a gente tem que
manter um mínimo de unidade de pensamento e de ações. E aí fica muito complicado, a gente
briga muito internamente, para chegar o mais próximo que seja dessa unidade. E depois tem o
201
embate com a família, porque é outro universo, e o pai sempre quer se colocar na posição de
adverso, ele não é o mais um na escola.
Os alunos trouxeram para mim questões como o preconceito racial, sexual, sócioeconômico, a necessidade de liberar mais o corpo, porque eles querem mais aulas de
educação física, aulas de dança, mais esportes e etc. Você acha que isso tudo compõe o
currículo?
Claro que sim. E aí que eu acho que fica muito complicado. Porque se a gente tivesse um
professor generalista, que desse história, geografia e ciências, e um para dar matemática e outro
para dar português, já diminuiria bem a questão, mas são oito pessoas disputando esse espaço
nessa cabeça. Aqui que eu acho que é o trabalho da unidade que você vai fazer, de um eixo.
Porque como é que eu combato o preconceito lá com o aluno? Combatendo os preconceitos
aqui como esse meu grupo. E eles não são portadores de preconceitos? Claro que são. A gente
sempre vai ter um preconceito ou outro. E eu não posso obrigar um adulto que trabalha comigo,
na marra, a crer no que eu acredito.
Esses assuntos atravessam a discussão do currículo?
Com certeza. E permeiam muito a sala de aula. Só que aí o aluno entende que deveria parar de
estudar a gramática para se discutir isso, o que eu sou contra. A gente tem que discutir isso
dentro da gramática. Isso passa também pelos temas transversais que o Mec estabeleceu. Isso
já foi mais latente, hoje em dia é mais escancarado. E ainda tem aquele problema. A mãe quer
que o filho tenha instrução sobre sexualidade, mas a instrução que está no livro. Se você chamar
as meninas para discutir o prazer sexual, ela te põe na cadeia.
Quais são as possibilidades e os limites da escola?
Eu acho que a escola está muito tolhida pela violência. Ela não pode se abrir mais. A violência
está entrando na sala de aula. E isso restringe muito a escola. A gente teve que recuar muito,
até no currículo, por causa da violência. A gente teve que retroceder, que se recolher. Aí o
ensino fica internético, às vezes livresco, porque o livro é muito pouco usado dentro da escola, e
aos conhecimentos das pessoas que estão ali.
Ao analisar a entrevista, algumas questões, de imediato, me chamaram
atenção. A primeira delas, principalmente por conta o ângulo que escolhi para
pensar os currículos, foi a presença efetiva e/ou a ausência sentida de
recursos, de meios e de práticas de comunicação no cotidiano da escola. A
informação tornou-se, na fala da pedagoga, como em vários discursos teóricos
da comunicação e da educação, matéria prima essencial para a produção de
conhecimento. Nesse contexto, as mídias são consideradas os maiores
fornecedores, atuando como distribuidores acelerados e em profusão dessa
matéria prima. Por essa perspectiva, não descartável, mas insuficiente, a
democratização da educação passa pelo acesso de todos, não só à escola,
mas também às redes digitais e analógicas de comunicação. A incorporação
dessas tecnologias e meios à vida cotidiana e a naturalização desse processo
também podem ser destacados com o uso de palavras relacionadas ao campo
das mídias para dar conta de questões que se acontecem em outros contextos,
como: “ensino internético”, “estabelecer um link” e “aluno mais rapidamente
informado”.
202
A seguir, me detive na questão, que parece estar na contramão da anterior, da
linearidade, do etapismo e da construção do conhecimento, do tipo “tijolo por
tijolo num desenho lógico”, defendida pela pedagoga e defendida por tanto
tempo em várias teorias da educação e da cognição. Esse pensamento implica
na seleção e organização dos conteúdos a serem ensinados e cobrados e na
manutenção, sem discussão, da hierarquização de saberes e disciplinas e na
naturalização de procedimentos como seriação, reprovação, prova e atribuição
de notas, entre outros.
- A herança cultural que nós temos nos diz que português e matemática devem
ter uma carga maior.
- E eu sou de uma época que para você conhecer umas coisas você deveria
ter conhecido outras antes.
É nessa medida que eu considero que “perguntas menores” feitas pelos
alunos, que conflitam com e não apenas reproduzem as falas dos professores,
podem contribuir para a desconstrução, no sentido de “desnaturalização”,
desses procedimentos/hábitos. Não se trata de simplesmente abolí-los, mas
talvez de repensar sobre eles.
- Porque existe reprovação?
- Porque existe nota?
- Porque temos tantas aulas das matérias e tão poucas de informática, artes e
educação física?
- Porque a professora não gosta de falar de sexo?
- Porque não podemos ter acesso livre ao laboratório de informática?
- Porque existe professor?
Outra questão a ser discutida a partir dessa conversa é a “necessidade da
unidade de pensamento”, a necessidade do uno, do universal e por
conseqüência do consenso em torno de alguma verdade (absoluta ou
produzida). A busca da unidade parece continuar se impondo, apesar do
reconhecimento da diversidade de pensamentos e práticas presentes do
cotidiano da escola.
- Aonde eu atuo, eu tento ter, primeiro, unidade de pensamento. Porque você
imagina esse universo que é a escola, os professores, mais pedagogo, mais
coordenador, mais diretor, mais secretaria, mais portão, mais cozinha, todos
influenciando, todos com formações diferentes, com experiências de vida
diferentes, formando a cabeça de uma criança. Então, a gente tem que manter
um mínimo de unidade de pensamento e de ações. E aí fica muito complicado,
a gente briga muito internamente, para chegar o mais próximo que seja dessa
unidade. E depois tem o embate com a família, porque é outro universo, e o pai
sempre quer se colocar na posição de adverso, ele não é o mais um na escola.
203
O interessante, contudo, é a compreensão de que é impossível controlar as
redes de saberesfazeres que se constituem na escola e a atravessam, embora
pudesse parecer desejável. É também importante a percepção de que
assuntos da vida não estão necessariamente separados dos conteúdos das
disciplinas. Da mesma forma, é interessante a incerteza em relação às
decisões tomadas e às avaliações feitas. São essas ambigüidades, essas
brechas abertas nos discursos e práticas das autoridades que nos mostram
que as estruturas não são definitivas e determinantes, constituindo entrelugares em que a mímica, a tradução e a negociação podem instituir o
hibridismo e a diferenciação como processo contínuo.
-. Então, eu acho que falta muito espaço na escola para que a gente
desenvolva melhor essas coisas. Os nossos mecanismos de avaliação, eu
coloco em xeque. Não sei se eles são os melhores, não sei se agente está
fazendo dentro de uma forma legal, a gente está fazendo, mas de verdade eu
não tenho segurança de que seja legal.
- E eles não são portadores de preconceitos? Claro que são. A gente sempre
vai ter um preconceito ou outro. E eu não posso obrigar um adulto que trabalha
comigo, na marra, a crer no que eu acredito.
- Só que aí o aluno entende que deveria parar de estudar a gramática para se
discutir isso [sexualidade], o que eu sou contra. A gente tem que discutir isso
dentro da gramática.
- Então, uma vez adotado o livro lá em Brasília, o professor, nessas diretrizes
dele, ele tem que fazer uma adequação. De repente, ele consegue que algum
conteúdo possa estar à frente, e o livro está lá atrás. Ele não tem que seguir o
livro todo. Ele tem que seguir a ele. Ele pode pular. Nunca houve, eu tenho 35
anos de magistério, nunca ouvi dizer que alguém tivesse sido penalizado por
não seguir as diretrizes curriculares.
Essa simples entrevista poderia provocar inúmeras outras discussões,
dependendo das questões e concepções que interessam e incomodam a cada
um. A mim, para finalizar essa parte, interessa discutir porque a idéia de
currículo como documento e prescrição ainda emerge e se mantém em pauta
sempre que o assunto é currículo.
Se o currículo que conta é o que é praticado e tecido cotidianamente com as
redes de saberesfazeres que estão colocadas na escola, porque então a nossa
preocupação com o documento, o programa, a prescrição? Porque precisamos
falar disso? Considerar isso? Talvez porque os acontecimentos imprevisíveis
ainda nos assombram e nós ainda continuamos querendo o tempo todo
controlá-los ou evitá-los. Talvez porque acreditamos que algumas coisas que
estão presentes nas redes de saberesfazeres permanecem submersas e
precisam de um empurrãozinho para emergir. Discutir o currículo prescritivo,
nesse caso, não tem por objetivo a elaboração de uma nova proposta
curricular, mas trata-se apenas um recurso para nos fazer pensar o que foi
204
silenciado e abafado, mas que está presente nos movimentos cotidianos da
escola.
Desse modo, entendo que o movimento hoje necessário não é fazer
uma proposta curricular em rede, mas sim fazer emergir as tantas
redes trançadas cotidianamente nas nossas escolas e que na maioria
das vezes ficam submersas, se assim posso me expressar. Se cada
proposta curricular até agora desenvolvida, como vimos, tem como
função principal a organização e o controle da experiência pedagógica
e queremos discutir justamente a maneira como estas propostas têm
sido encaminhadas até o presente, não faz sentido propor algo
estruturado. Sabemos que qualquer alternativa incorporará,
necessariamente, as inúmeras dificuldades da homogeneização que se
encontra no horizonte do discurso pedagógico instituído. Esse discurso,
materializado em nossas práticas curriculares e em nosso aparato
jurídico-institucional, como já vimos, é apenas um dos muitos fios com
os quais são tecidas as redes de atuação no cotidiano da escola.
(MACEDO, OLIVEIRA, MANHÃES, ALVES (org.), 2004: 57)
Em 2007, a escola ACM promoveu duas reuniões com os professores para
discutir, avaliar e repensar seu currículo. A primeira aconteceu na noite do dia
cinco de junho. Após uma exposição em power point baseada no livro
Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo, de Tomaz
Tadeu da Silva, a pedagoga (turno matutino) solicitou aos professores que
formassem grupos para construir “a nossa organização curricular” além de
elencar os temas mais significativos para serem aprofundados com as turmas.
Alguns professores participaram com entusiasmo dos debates sobre a
apresentação, mas todos se negaram a apontar os temas alegando que não
havia tempo suficiente para reflexão. Alguns deles questionaram com os
colegas ao lado que os próprios alunos já haviam indicado temas, mas a
escola preferia continuar ignorando.
Os debates situaram-se principalmente em
torno das transformações rápidas pelas quais o
mundo passa, das novas necessidades do
mercado de trabalho e da profissionalização
dos alunos, das novas tecnologias da
informação e do distanciamento da escola em
relação a elas, das dificuldades de
aprendizagem e do desinteresse dos alunos
em relação às disciplinas, da teorização
apresentada e da necessidade de se voltar a valorizar as coisas simples da
vida.
- O Brasil ainda não chegou ao período crítico.
Essas teorias pós-críticas para mim são ficção.
- As escolas particulares formam gerentes.
Organizam os currículos para isso. E a escola
pública?
205
- Eu trouxe o caderno de empregos do jornal
para a gente analisar o perfil do funcionário
que o mercado deseja, para a gente não ficar
na contramão da realidade.
- Mas é preciso que os alunos queiram.
Nossos alunos não querem, não se
interessam.
- A diferença entre a escola pública e a
particular é a condição do aluno. Infelizmente,
filho de pobre dificilmente sai da pobreza.
- Não vamos trabalhar com o aluno ideal. O
aluno ideal a gente só vê na Rede Globo.
- Não se trata só de tecnologia, mas de
conhecimento e ação. Como vamos discutir
com nossos alunos ética, cidadania e
economia se não sabemos nada disso?
- E existe conhecimento verdadeiro? Só é
verdadeiro até que se prove o contrário.
- Nem tudo é tecnologia. Nos debates que a
gente vê na TV, a gente vê as pessoas
falando da necessidade de se voltar às coisas
simples e naturais.
Após exaustivos debates e insistentes tentativas para que os professores
preenchessem o formulário com as sugestões de temas a serem explorados, a
reunião acabou sem que se chegasse a conclusão alguma (entendida como
consenso) e sem que nenhum formulário fosse preenchido. É muito comum
nessas reuniões pedagógicas se avaliar a produtividade do encontro pelas
conclusões a que se chegou. Eu, contudo, penso ao contrário. A reunião foi
produtiva pela poeira que levantou. Pelos pensamentos, não individuais e não
subjetivos, mas pré-individuais e pré-subjetivos, que foram acometidos e
passaram a circular ampliando as redes de saberesfazeres daqueles
professores.
A segunda reunião para discutir currículo
aconteceu no dia três de agosto de 2007,
com a participação de Carlos Eduardo
Ferraço, que começou sua apresentação,
também em power point, perguntando: O que
entendemos por currículo?
206
Ele mesmo respondeu: Tudo que acontece na escola, inclusive o uso que
fazemos da proposta curricular.
Ferraço disse aos professores que é preciso alargar a idéia de currículo para
além do documento escrito e da visão tradicional que, a partir da etimologia da
palavra, concebe currículo como caminho, percurso ou rota para a cidadania,
sempre adiando para o futuro o direito e a possibilidade de ser cidadão. Ele
explicou também que, de acordo com essa visão, é impossível dissociar
currículo de conteúdo a ser apresentado para estudo, ou seja, de uma
prescrição curricular.
De acordo com ele, “o fato de uma escola não ter uma proposta curricular não
quer dizer que ela não tenha um currículo”. “Toda escola tem um currículo
sendo tecido”, afirmou. Ferraço destacou que é preciso pensar “currículo como
redes de saberes e fazeres que são tecidas e compartilhadas na complexidade
do cotidiano escolar pelos sujeitos encarnados que praticam esse cotidiano”.
Esse encontro foi, sem dúvidas, mais
descontraído que o primeiro. Um professor, a
pedido dos colegas, chegou a fazer a
representação de uma cena da peça de teatro
”Terça insana”. Após a apresentação de Ferraço,
os comentários dos professores soaram como
desabafos.
- Professor, eu me senti contemplada com a sua
fala.
- O professor não tem voz. O sistema não ouve os
professores. Os PCNs caem de pára-quedas feito
bombas em nossas cabeças.
- Apesar de tudo isso a escola não mudou, continua
a mesma. Não evoluiu.
- A gente sabe que é assim que acontece (risos).
Mas que decisão temos que tomar para nossa
escola fazer algo novo?
- Podemos começar a pensar por esse dado: a
maioria dos nossos alunos não são daqui.
Trabalhamos com um padrão ideal: de família,
uniformes, material, dever de casa, etc. Essa
família que a gente pensa que o aluno tem porque
estamos em Jardim da Penha (bairro classe média)
existe?
- Seguimos esse sistema buscando a aprovação de
nossos alunos no vestibular. Por isso quero o
currículo escrito e as normas a serem seguidas
207
para que a coisa ande, mas eu sei que os sem-terra
têm currículos em rede e estão entrando na
faculdade.
- O currículo em redes exigiria um sistema diferente
e enfraqueceria o comando. Seria preciso que
fosse proporcionada a gente a possibilidade de
viver outras experiências.
- A visão que o pai e o aluno têm da própria escola
é que a educação é o divisor de águas, que ela vai
melhorar a vida das pessoas.
- Os alunos gostam da escola sim, mas só por
causa dos colegas. Eu não acredito que alguém
pode gostar da escola do jeito que ela é. Eu ensino
um monte de coisas só porque está no currículo.
Por exemplo, tem professor que não consegue
corrigir uma prova sem o padrão de respostas. Ele
são sabia corrigir sem o padrão, não decorou e só
pediu na prova porque tinha que pedir.
- Eu acho que nossos alunos falam pouco, eles não
têm liberdade para falar, não têm espaço para isso.
- Eu gostei muito, foi uma provocação. Como minha
prática vai influir na vida do meu aluno?
Talvez a expressão desse professor possa traduzir o efeito desse segundo
encontro: provocação, pois apesar das dúvidas e solicitações, não existem
receitas e nem propostas estruturadas. Assim como acontece com os alunos, a
recepção dos professores em relação ao que foi dito só pode acontecer como
mímica, tradução e negociação, enredadas em sentidos engendrados em
vários contextos de suas vidas cotidianas. Ainda assim, concordou-se que
poderia se criar instrumentos para ajudar a encontrar pistas sobre as
possibilidades de se ampliar essas redes, envolvendo os sujeitos encarnados
praticantes do cotidiano da escola. Até o momento em que encerrei essa
pesquisa tais instrumentos ainda não haviam sido criados, mas as questões
levantadas por professores e alunos já estavam circulando pelos vários
contextos cotidianos da escola, ampliando as provocações.
ESTAMOS FAZENDO DO CURRÍCULO UM ESPAÇO DE DIMINUIÇÃO DO
OUTRO?
Esta problematização que trago agora foi agendada por
múltiplas experiências e sentimentos por mim vividos dentro e
fora da escola Álvaro de Castro Mattos. Entre elas, destaco a
contribuição da professora Janete Magalhães Carvalho, não só
com seu artigo Pensando o currículo escolar a partir do outro
208
que está em mim (2005), mas principalmente com sua atitude cotidiana junto
aos alunos do programa de pós-graduação em Educação da UFES.
Parto também de observações, conversas e questões levantadas pelos
próprios alunos da escola. Como as perguntas anônimas:
- Por que na escola tem preconceitos?
- Por que existem pessoas com deficiências?
- Por que não têm turmas separadas para os especiais?
- Por que a professora de educação física manda as meninas dançarem e os
meninos jogarem bola?
- Por que existe “viaduto”?
E como algumas conversas informais que tive com alunos no pátio:
- Eu não sou japonesa. Eu sou mestiça.
- Racismo é ridículo. Todo preconceito é ridículo! O racismo veio do
capitalismo.
(aluna da 8ª série)
- O racismo veio da história. Os europeus se achavam superiores aos negros
africanos. O racismo veio da escravatura, porque eles ficavam achando que os
negros eram escravos.
(aluna da 8ª série)
- O machismo também é ridículo. A cada cinco minutos
uma mulher é agredida em casa no Brasil.(...) Quando a
gente está fazendo educação física os meninos sempre
ficam com a quadra maior. Isso não tem nada a ver. A
gente também tem direito de jogar futebol.
(aluna da 8ª série)
- Mas têm meninas que são preconceituosas com os
meninos também. Quando tinha dança aqui na escola
tinham uns meninos que queriam fazer e as meninas não
deixavam.
(aluna da 8ª série)
- As matérias que a gente estuda na escola ajudam a compreender isso.
Desde o início da humanidade que o homem sempre foi superior a mulher,
dizem que o homem se desenvolveu, quando somos todos de uma mesma
raça. Aprender ajuda a não continuar desse jeito.
(aluna da 8ª série)
209
- Eu vou falar a verdade, você vê aonde aparece muito negro, só nessas
novelas de escravos, por que no resto das novelas... ou o negro é pobre, mora
na favela, ou é ladrão ou é escravo.
(aluna da 8ª série)
E ainda como conversas que tive com alunos na sala de aula, como essa com
estudantes da 8ª série:
Como se resolve casos de preconceitos aqui na escola?
- Quando tem uma briga assim, por causa de algum preconceito, a sala fica
sem falar com a pessoa. Ou então dá briga lá fora, dá porrada. Só que depois
a galera começa a conversar de novo.
A escola não interfere?
- Quando o caso é sério a escola comunica aos pais e leva para
o Conselho de Escola.
- A escola tenta prevenir, mas no outro dia está tudo do mesmo
jeito.
E como se poderia resolver isso então?
- Com aulas educativas, palestras, textos sobre esse assunto...
- Mas o problema é que todo mundo acha chato uma palestra. Ninguém presta
atenção.
- A gente podia debater mais essa realidade. Ver vídeos sobre essas coisas.
A questão da diversidade e, com ela a aceitação ou a recusa do outro, parece
atravessar todos os espaçostempos da escola: as salas de aula, as quadras
esportivas, as brincadeiras no recreio, as fofocas, as festas e até os apelidos.
“Grandão” é um menino bem magro e baixinho, quase raquítico, da primeira
série. “Andorinhas” é um garoto que mora num bairro (com esse nome) e que
é mais pobre do que o bairro onde a escola está situada. “Emos”
são duas alunas da oitava série que vestem roupas (quando não
estão de uniforme) e adereços (pulseiras de couro, cintos de
tachinhas, etc.) “diferentes”, gostam de músicas românticas e têm
aparência mais ou menos andrógina. “Japonesa” é a aluna da
primeira série com olhos puxados, descendente de asiáticos e de
brasileiros e que se autodenomina “mestiça”. “Negão” é o rapaz de
pela negra da 8ª série. “Free Willy”, a garota gorda que passa
correndo no pátio.
Os apelidos são muito comuns entre as crianças e os adolescentes. Um modo
de identificação e conhecimento do outro cuja lógica operacional se aproxima
da lógica do estereótipo que, seja por eufemismo, metáfora, metonímia,
hipérbole ou antítese, quase sempre remete a um conhecimento simplificador
210
da complexidade que constitui cada pessoa. E como destaca Carvalho (2005),
Bhabha nos alerta para a necessidade de questionar o modo de representação
da alteridade enquanto regimes de verdades produzidos sobre o outro.
Para Bhabha (1998) o estereótipo é uma forma de conhecimento e de
identificação paradoxal, que vacila entre o que está sempre “no lugar”, já
conhecido (o que conota fixidez, ordem imutável), e algo que deve ser
ansiosamente repetido (o que conota perturbação, repetição demoníaca). A
abordagem de Bhabha (que ele chama de analítica da ambivalência) não
procura analisar se um estereótipo produz uma imagem falseada, positiva ou
negativa, em relação à “realidade” ou a “verdade” de um determinado sujeito ou
grupo social (nação, raça, etnia, sexo, etc), a medida em que esse tipo de
abordagem afirma a “origem” e a “unidade da identidade”. O autor desloca seu
foco para os “processos de subjetivação” tornados possíveis através do
discurso estereotipado, o que poderia explicar um repertório de posições de
poder e resistência, dominação e dependência, que constrói o sujeito da
identificação. Só assim, afirma, é possível compreender a ambivalência
produtiva do objeto desse discurso: “aquela, alteridade que é ao mesmo tempo
um objeto de desejo e escárnio, uma articulação da diferença contida dento da
fantasia de origem e da identidade” (1998:106).
Bhabha questiona o estereótipo como estratégia do modo de representação da
alteridade no discurso. Para esse questionamento, torna-se relevante a
constatação de lugares contraditórios e diversos no interior do próprio sistema
textual que constrói as diferenças, o que torna problemática a nomeação e o
posicionamento dos dois lados da fronteira (o que nomeia e o que é nomeado).
O estereótipo, portanto, não é capaz de oferecer um porto seguro de
identificação, não apenas pela possibilidade de leituras contraditórias e
equivocadas em outros tempos ou lugares, mas pelo processo de identificação
que lhe é inerente (ambivalente, complexo, contraditório, ansioso e afirmativo
ao mesmo tempo). Uma forma de representação que reúne medo e desejo do
outro, ataque e defesa.
A ambivalência do estereótipo não remete apenas a sua forma de operação e
circulação discursivas (fixidez presumível e repetição necessária), mas as
próprias condições de construção de modo complexo de identificação cultural
e psíquica da alteridade que lhe constitui. Para Bhabha, o estereótipo é um
aparato (dispositivo), uma estratégia de governabilidade, que “apóia-se no
reconhecimento e repúdio de diferenças, com a função estratégica de criar um
espaço para povos sujeitos, através da produção de conhecimentos em termos
dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de
prazer/desprazer” (1998:111).
O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa
representação de uma dada realidade. É uma simplificação
porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao
negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro
permite), constitui um problema para a representação do
sujeito em significações de relações psíquicas e sociais.
(BHABHA, 1998: 117)
211
O processo de estereotipar é, para Bhabha, complexo e paradoxal porque
deve, ao mesmo tempo, ocultar a produção discursiva da diferença e tornar
visível o objeto da discriminação. A visibilidade do outro é ao mesmo tempo um
ponto de identificação e um problema para o fechamento no interior do
discurso. Há a ameaça do retorno do olhar. O ato de reconhecimento e recusa
da “diferença” é sempre perturbado pela questão de sua reapresentação ou
construção. O estereótipo é, objetivamente, impossível. Por isso, não é uma
questão de imagem verdadeira ou falsa. É um texto muito mais ambivalente de
projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento,
sobredeterminação, culpa, agressividade, mascaramento e cisão de saberes
oficiais e fantasmáticos para construir posicionalidades e oposicionalidades.
Concordando com Bhabha, Carvalho (2005) nos convida a pensar o currículo
escolar a partir dos processos e produtos que estão em circulação nas práticas
discursivas engendradas no trato da questão da diferença na prática escolar
curricular.
Essa questão, segundo ela, envolve a problemática da contribuição que a
educação escolar e os educadores são chamados a dar na superação das
dificuldades derivadas da presença de pessoas e grupos com diferenças de
classe social, raça, gênero, etc., marginalizados ou não, em sociedades
complexas.
Na maior parte das teorias e discussões a respeito do currículo, o debate
acerca da relação entre atendimento às diferenças e escola assume a
perspectiva da educação multicultural ou intercultural, que, a meu ver, não dão
conta da diferenciação como processo, como singularização, como devir.
Tanto na sua forma crítica como na humanista-liberal, a idéia de multi e de
inter culturalismo, preservam a perspectiva da identidade (e da diferença como
seu pólo negativo), da originalidade e da rigidez das formas de subjetividade e
das formas culturais, bem como impulsionam a produção de discursos e
práticas que produzem não a diferença, mas “o diferente” como algo que pode
ser conhecido, classificado, categorizado e hierarquizado, ou seja, enquadrado
em uma escala de valores.
A compreensão da questão da multiplicidade, da diferença como processo e
devir, presente (e muitas vezes combatida) na escola é alguma coisa bem mais
complexa do que isso. A tentativa de enquadramento dos sujeitos em formas
de subjetividade categorizadas (por mais que se tenda a variar e aumentar o
número de categorias), bem como a exigência do reconhecimento, do respeito
e da tolerância com o “diferente”, não dá conta da discussão e das práticas que
potencializam a diferenciação, a singularização e a multiplicidade.
Silva (1999) destaca que a escola geralmente pune o preconceituoso, mas
deixa intactos as práticas e os discursos (inclusive nos livros didáticos, nos
conteúdos e nas formas de apresentação das disciplinas, nos rituais escolares
e datas festivas) que produzem os preconceitos e a inferiorização de modos de
existência não formatizados, reconhecidos e aceitos. Com isso, assegura o
autor, os currículos multicilturalistas deixam de ser políticos e passam a ser
212
folclóricos. A escola Álvaro de Castro Mattos, além de punir o preconceituoso
com advertência escrita ou verbal na coordenação ou em Conselho de Escola
– dependendo da gravidade do problema, planeja discutir as diferenças nas
atividades programadas a partir dos temas transversais escolhidos pelos
professores (quando isso ocorre) e, principalmente, na ocasião de seu
principal evento anual, a “Festa da Cultura”.
A Festa da Cultura é aguardada com ansiedade pelos alunos, pais e
professores e acontece sempre no final de junho ou início de julho,
substituindo as antigas festas juninas ou festas de quadrilhas. A intenção é
contemplar a diversidade e minimizar a idéia, considerada pela escola
pejorativa, de festa à caipira.
Na Festa da Cultura são apresentados vários números
de
danças
representativas
de
variadas
formas
de
manifestações
culturais: samba,
forró, pop, etc.,
sem esquecer a
quadrilha,
exaustivamente
ensaiadas e privilegiando, a cada ano,
um tema previamente escolhido.
Na festa de 2007, o tema foi “Direitos Humanos”. As canções escolhidas
falaram sobre direitos da mulher, direitos das crianças, preservação da
natureza, direito à educação e desigualdade
econômica e social. Os preparativos envolvem
toda a escola e incluem atividades nas salas de
aula relacionadas aos temas previstos, bem como
os ensaios e a preparação dos cenários e da
decoração, que é desenvolvida nas aulas de artes.
Para o dia do evento são vendidos ingressos (que
custaram cinco reais) que devem ser adquiridos
por todos os alunos e pelos membros de suas
famílias. Cada aluno deve levar ainda um prato de
doces ou salgados para ser vendido nas
barraquinhas que são alugadas, assim como as
mesas e as cadeiras de plástico. O dinheiro
arrecadado vai para despesas extras da escola e para a programação (viagem
ou festa) dos formandos.
Alguns alunos não puderam ou não quiseram participar da festa, e durante os
ensaios ficavam brincando na quadra. Segundo eles me contaram, seus pais
não permitiram que eles participassem por questões financeiras: teriam que
gastar dinheiro com as roupas, com o ingresso e com as comidas. Conversei
sobre isso com a pedagoga da escola. Ela me disse que quase todas as
213
fantasias eram improvisadas ou tinham um custo baixo, mas confirmou que
mesmo assim as famílias de algumas crianças não tinham condições de gastar
dinheiro com a participação do filho no evento.
Na ocasião dos ensaios, me aproximei das crianças que brincavam num canto
da quadra porque não iam participar da festa. Como eu estava com a câmera
fotográfica na mão, os meninos me pediram para fazer fotos. Entreguei a
câmera a eles e disse que poderiam fotografar o que quisessem, mas que só
teriam dez minutos, porque eu tinha que ir embora. As fotos tiradas pelas
crianças que não iriam participar da festa são essas que vocês vão ver a
seguir.
214
215
216
217
Ao tentar analisar essas imagens, obviamente levando em conta minhas
possibilidades e limites de interpretação, me prendi ao objeto mais fotografado
e que me remete à constante busca do outro, do encontro com o outro, do
conhecimento do outro, da representação do outro. Ou seja, o tema, a
questão, a problematização que a festa tentava colocar em pauta, estava
presente também naqueles que, presumivelmente, estariam fora dela e,
portanto, da discussão. Seja através do olhar, seja por meio da câmera
fotográfica, o foco é o mesmo: o outro.
Esta constatação me levou a pensar na relação eu/outro e na noção de
representação e imagem a partir de Bergson (1999). Segundo esse autor, é
falso reduzir a matéria, e assim também o outro, à representação que temos
dela. Da mesma forma é falso fazer da matéria algo que produziria em nós
representações, mas que seria de uma natureza diferente dessas
representações. A matéria, para ele, é um conjunto de “imagens”.
E por “imagem” entendemos uma certa existência que é mais do que
aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do que
aquilo que o realista chama uma coisa – uma existência situada a meio
caminho entre “coisa” e a “representação”.
(BERGSON, 1999: 2-3)
218
Bergson nos desafia a pensar que o objeto diante nós, que nós vemos e
tocamos, só existe para o nosso espírito, ou melhor, só existe para um espírito.
Ou seja, esse objeto é bem diferente daquilo que percebemos, ele não tem a
cor que nosso olho atribui, nem a resistência que a nossa mão encontra nele.
Muitas vezes acreditamos que o outro é tal qual nós percebemos, e, como o
percebemos como imagem, pensamos que podemos fazer dele próprio uma
imagem. No entanto, ensina Bergson, entre as várias imagens que constituem
nosso mundo “uma prevalece sobre as demais, na medida que a conheço não
apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante
afecções: é meu corpo” (1999: 11).
Pensando assim, conhecemos por percepções e por afecções, entre estímulos
que recebemos de fora e movimentos que vamos executar. Bergson, embora
possa parecer a princípio, não separa corpo e espírito ou consciência, e nem
dentro e fora. “É o cérebro que faz parte do mundo material e não o mundo
material do cérebro” (1999: 13). Meu corpo produz modificações nas imagens
exteriores e as imagens exteriores produzem modificações na imagem que
chamamos de meu corpo. Dessa forma, o outro é uma imagem e a percepção
desse outro é uma imagem relacionada à ação possível de meu corpo.
Exterioridade e interioridade são para o autor relações entre imagens. “O
espírito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve
a ela na forma de movimento, em que imprimiu sua liberdade” (1999:291).
Outra noção que convoco para pensar a produtividade das imagens
produzidas pelas crianças excluídas da festa é a de produção biopolítica a
partir do conceito de multidão (HARDT & NEGRI, 2005). A produção biopolítica
da multidão tende a mobilizar o que compartilha em comum e o que produz em
comum. Embora heterogênea, a multidão produz um interesse comum. E todos
participam dessa produção, mesmo aqueles que estão à margem, fora do
sistema econômico de produção, porque produzem subjetividade e produzem
interesses comuns, num movimento espiral constituído em comunicação e
cooperação. A produção biopolítica, segundo os autores, não cria só bens
materiais, mas também relações, e por conseqüência formas de vida.
Apesar da infinidade de mecanismos e hierarquias e subordinação, os pobres
estão constantemente expressando uma enorme força de vida e produção.
Para compreendê-lo é necessária uma inversão de perspectiva. É verdade que
precisamos reconhecer e protestar contra as maneiras como um número cada
vez maior de pessoas em todo o mundo se vêem privadas de renda,
alimentação, abrigo, educação e cuidados de saúde adequados – em suma,
reconhecer que os pobres são vítimas da ordem global do Império. Mais
importante ainda, precisamos reconhecer que os pobres não são apenas
vítimas, mas também agentes poderosos. Todos aqueles que se vêem
“destituídos” – sem emprego, sem comprovação de domicílio, sem casa – estão
na realidade excluídos em parte. Quanto mais de perto observarmos as vidas e
a atividade dos pobres, mais constataremos como são enormemente criativos e
fortes e mesmo, como tentaremos demonstrar, o quanto fazem parte dos
circuitos de produção social e biopolítica.
(HARDT & NEGRI, 2005: 175-176)
219
A Festa da Cultura da escola já é um evento social e político para a
comunidade do bairro de Jardim da Penha. Em 2007, a festa contou com a
presença do prefeito de Vitória, João Coser, da secretária municipal de
educação, de deputados, vereadores e membros da associação de moradores
do bairro, além de moradores, alunos, ex-alunos e suas famílias. Houve superlotação e o espaço disponível quase não foi suficiente para comportar tanta
gente, o que acabou gerando pequenas e grandes brigas para se conseguir
um lugar onde aconteciam as apresentações e nas filas para comprar comida
ou bebida. Depois da festa, a equipe da escola decidiu que na próxima edição
vai restringir a quantidade de ingressos e aumentar o controle na entrada.
A Festa da Cultura, apesar dos pequenos problemas
foi bonita de se ver e mais uma vez encheu de
orgulho os estudantes, professores, coordenadores,
diretores e os pais dos alunos da escola.
A turma da primeira série (vespertino) apresentou uma
coreografia para uma canção que falava sobre o direito de toda
criança à educação. Para reafirmar que esse direito é para
todos, a aluna cega foi colocada no centro do círculo, com um
livro no colo.
A turma de segunda série de vespertino levou para o espetáculo
o samba enredo da Portela de 2005:
NÓS PODEMOS: OITO METAS PARA MUDAR O MUNDO!
Portela hoje abraça o mundo
Num amor profundo pela fraternidade
O samba é o porta-voz
E nós podemos desatar os nós
Da desigualdade
E vem... num sorriso de criança
A esperança em cada coração
E nesse dia de folia, faz a sua profecia
Liberando a emoção
Um mundo sem fome
Sem dor e sem guerra
Quem viver verá (bis)
O manto da paz cobrindo a terra
O que há de ser será
Ensinando a viver a vida, como ela é
Respeitando os direitos da mulher
Dando a juventude um novo amanhã
Saúde, corpo e mente sã
Combater o HIV
E toda epidemia que aparecer
Ver o bem vencer o mal
A ONU e o samba, parceria ideal
Pro desenvolvimento mundial
A mensagem da Portela
É pra toda humanidade (bis)
Vamos semear amor
Pra colher felicidade
220
Preservar a natureza
A ambigüidade dos discursos usados na discussão dos direitos humanos pode ser percebida
também na canção apresentada pelos alunos da primeira série do turno matutino. A canção
escolhida para falar/defender os direitos das crianças, Direito dos baixinhos, da Xuxa, sugere
práticas diferenciadas para meninos e meninas.
DIREITO DOS BAIXINHOS
Toda criança tem que ir a uma escola
A uma escola, a uma escola
Pras meninas uma boneca
E pros meninos uma bola
Criança não pode dormir na rua,
Dormir na rua, dormir na rua
Tem que tomar banho de sol
E não banho de lua
Como passarinho tem seu ninho
Criança tem que ter muito carinho
A gente não quer mais viver sozinho
Respeite todos os direitos dos baixinhos
Ser criança é alegria
E o mais lindo verso de uma poesia
Ser criança é alegria
É o renascer de cada novo dia
Baixinhos unidos
Jamais serão vencidos
Toda Criança é o coração da natureza
Da natureza, da natureza
No presente uma esperança
E no futuro uma certeza
Criança tem que ter felicidade,
Felicidade, felicidade
Tem que tersorriso no olhar
E os sonhos da idade
As músicas da Xuxa, aliás, fizeram sucesso na Festa da Cultura. A turma da 4ª série apresentou
América Geral.
“Toda América
Será América
América geral
Uma América
Mais América
De norte, sul, central
Minha América, nossa América
América igual
Oh América !
Faz América
221
De um sonho ser real
América geral!”
Um belo momento foi a apresentação da criançada da 3ª série, que além de uma coreografia,
encenou/discutir o trabalho infantil, para apresentar da canção Criança não trabalha, de Arnaldo
Antunes e Paulo Tatit.
CRIANÇANÃOTRABALHA
Lápis, caderno, chiclete, peão
Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria,
Tambor, gritaria, jardim, confusão
Bola, pelúcia, merenda, crayon
Banho de rio, banho de mar,
Pula sela, bombom
Tanque de areia, gnomo, sereia,
Pirata, baleia, manteiga no pão
Giz, merthiolate, band aid, sabão
Tênis, cadarço, almofada, colchão
Quebra-cabeça, boneca, peteca,
Botão, pega-pega, papel papelão
Criança não trabalha
Criança dá trabalho
Criança não trabalha
Além das apresentações destacadas aconteceram várias outras: valorização dos esportes como
222
forma de promover a união entre os povos; outras músicas da Xuxa, versando sobre crianças; e
duas quadrilhas, uma das 7ª e 8ª séries da manhã, e outra da 7ª e 8ª séries da tarde.
Não se pode negar que as letras das canções apresentadas sugerem uma
leitura preferencial, mais ou menos dirigida. Elas têm um enderaçamento,
visando atingir um público idealizado ou idealizável. Isso é fácil de perceber se
compararmos as letras das canções da Xuxa com a da canção de Arnaldo
Antunes. Contudo, o enderaçamento da mensagem muitas vezes erra o alvo
ou deconhece suas expectativas. Independente disso, o agendamento da
indústria cultural sobre o agendamento da discussão dos temas escolhidos e
discutidos na ocasião pela escola ficou constatado. No entanto, não é
perceptível de forma tão evidente a multiplicidade de usos possíveis desses
agendamendos e a variedade de modos como eles foram trabalhados,
apropriados, articulados com outros agenciamentos e compreendidos durante
todo o processo de preparação e apresentação da festa.
Algumas questões paralelas e/ou derivadas que emergiram durante esse
processo eu pude acompanhar e relato aqui com a intenção de apontar a
complexidade das redes de relações, saberesfazeres e sentidos que se
engendram nas praticas cotidianas e que são tecidas por sujeitos em
comunicação e não produzem consenso, mas contradições, afiliações,
resistências, traduções, mímicas, negociações e, em consequência,
diferenciações e multiplicidades.
Pois bem, apesar de ter como foco o multiculturalismo, a diversidade cultural
(vista geralmente como formas de ser e formas culturais rígidas, fixas e
originais que convivem no mesmo espaçotempo sem se afetarem mutuamente)
o ponto alto da Festa da Cultura na escola ainda são as quadrilhas. E a disputa
pela preferência do público deixou o clima tenso entre o pessoal da manhã e
da tarde durante os dias que antecederam o evento. As duas quadrilhas
tentaram inovar, mais acabaram fazendo uma apresentação, até certo ponto,
bem parecida. A idéia era apresentar uma quadrilha brega, com roupas,
coreografias e um mix de músicas/trilha para a encenação que remetessem ao
tema. O brega, teria nesse caso, conotação do que é cafona, popular, de mau
gosto e fora de moda, e por isso mesmo provoca o riso e a diversão.
Um aluno da manhã tomou a frente da quadrilha do seu turno. Escolheu as
músicas, escreveu o roteiro do casamento na roça, seleciou os atores e
ensaiou e dirigiu o pessoal. À tarde, a mesma função ficou a cargo de uma
professora.
A rivalidade estava colocada e, por causa dela, todo mundo estava com os
nervos à flor da pele. Quem copiou quem? Quem vai fazer o quê? Além dos titi-tis de bastidores, espionagens e especulações, um certo dia a coisa
esquentou com uma briga na quadra por causa dos horários reservados para
os ensaios de cada grupo.
E é quando o bicho pega que os preconceitos adormecidos explodem pra todo
mundo ver. O menino que liderava a quadrilha da manhã, assumidadamente
223
gay, teria sido agredido por causa da sua sexualidade, segundo me contou
uma aluna do turno da tarde que presencicou a confusão.
- Tem muitos preconceitos nessa escola. Tipo assim, teve um menino aqui
ontem, que os meninos ficam implicando com o jeito dele, com o jeito que ele
se veste, a própria professora fica implicando, imitando ele. Isso também vem
dos professores. Por exemplo, se eu tenho 14 anos e me assumo como
homossexual isso é problema meu. Ninguém tem que me imitar, ninguém tem
que ficar dando apelidinho.
Enquanto ela me contava a história, chegou uma colega de turma, uma menina
negra. Ela parou para escutar a conversa e ficou me olhando com cara de
quem queria falar. Então eu perguntei se ela achava que havia preconceitos na
escola. Um pouco tímida, ela me respondeu:
- Tem muito preconceito na escola sim. Eles ficam zoando as pessoas, o jeito
que elas se vestem. Ontem, um garoto da manhã não quis tocar na menina só
porque ela era morena. Eles começaram a discutir por causa do ensaio da
quadrilha e isso deu a maior confusão. Agora ela quer processar o garoto por
racismo.
Fui conversar com o menino que, conforme as histórias das garotas, tinha sido
vítima de um preconceito por conta da sua sexualidade e autor de um
preconceito racial. Vítima ou algoz? Provavelmente tudo ao mesmo tempo
agora. Ele se queixou, principalmente, da atitude da professora e negou que
tenha sido racista.
- Tem muito preconceito nessa escola, principalmente por parte dos
profissionais. Eu fui até vaiado pela professora. Eu não agi de uma forma
racista. Eu acho que os professores deviam se reunir e discutir isso. Os alunos
também não têm maturidade para discutir essas coisas.
Sem a menor pretensão de resolver a questão, mas com o propósito de
provocar a discussão sobre o problema fui ouvir a pedagoga da escola. A
pergunta foi feita na entrevista que fiz com ela, e a resposta, já conhecida
porque consta da entrevista na integra, eu vou repetir aqui para que possa ser
pensada nesse contexto.
- Como é que eu combato o preconceito lá com o aluno? Combatendo os
preconceitos aqui como esse meu grupo. E eles não são portadores de
preconceitos? Claro que são. A gente sempre vai ter um preconceito ou outro.
E eu não posso obrigar um adulto que trabalha comigo, na marra, a crer no
que eu acredito.
Conferi a apresentação das quadrilhas e pude perceber que a complexidade
ao tratar a questão das diferenças, sejam elas quais forem, é ainda maior se
levarmos em conta a diversidade de práticas, posicionamentos e performances
em relação às questões de gênero, raça, orientação sexual, idade e classe
social, entre outras.
224
A quadrilha do turno da tarde,
organizada pela professora, se
apresentou primeiro. Na trilha
sonora uma seqüência de hits
populares, músicas, que segundo
a indústria fonográfica, são
dirigidas às classes D e E, além
de alguns sucessos dos anos 80
e 90.
A
coreografia
pouco
se
diferenciava das que estamos
acostumados
a
ver
nas
quadrilhas tradicionais. A indumentária variava entre “vestidos de caipira”
estilizados, chapéus de palha, calças com remendo e roupas e acessórios
considerados bregas e facilmente encontrados nas ruas, lojas e camelôs nos
bairros de periferia.
Um fato, contudo, me
chamou
atenção.
Na
quadrilha da professora,
bem como em várias
danças
apresentadas
pelas outras turmas, os
pares
se
formaram
livremente. Até porque
nem sempre as turmas
têm o mesmo número de
meninas
e
meninos.
Assim, em alguns casos
meninas dançam com
meninas
e
meninos
dançam com meninos,
seja
encenando
uma
performance relativa ao que
é atribuído e esperado do
sexo
representado
(masculino ou feminino), ou
não, como aconteceu na
apresentação da turma da
terceira série.
A última e mais esperada
apresentação foi a quadrilha
da sétima e oitava séries do
turno matutino, liderada e
organizada
pelo
garoto
envolvido na confusão em
torno das denúncias de preconceitos sexual e racial.
225
A trilha sonora, a
coreografia
e
a
indumentária pouco se
distinguiram
da
apresentação anterior.
Mas o número trazia
alguns “aditivos”.
A
quadrilha
começou
com o casamento na
roça.
O
rapaz,
assumidamente
gay,
optou por representar o
noivo, e levou a platéia
ao
delírio
quando
entrou no local da
apresentação pilotando
sua moto com os faróis
acesos.
Outro fato atiçou minha
curiosidade. Coincidência ou
não, havia o mesmo número
de rapazes e moças e todos
os pares eram formados por
uma menina e um menino.
Por fim, uma pitada de
provocação.
Em
um
determinado momento da
dança, o locutor anuncia uma
atração
especial,
uma
surpresa. Toca a música “I
will survive”, de Glória Gaynor
(considerada um hino gay) e
entra um garoto (que segundo os colegas não é gay) vestido de mulher com
orelhinhas de Mickey. A galera foi novamente ao delírio.
Quem representa quem? Que formas/fôrmas de subjetividade são prescritas,
assumidas e/ou ressignificadas e refuncionalizadas nessas práticas
cotidianas? Que processos de subjetivação são desencadeados nesses
momentos? Que modos de existência podem ser inventados a partir das
apropriações, recusas, afiliações, traduções, mímicas, encenações,
combinações e negociações que emergem nesse movimento em que são
tecidas redes de sentidos e subjetividades? Masculinidade, feminilidade,
homossexualidade e heterossexualidade podem ser pensadas e praticadas
como performances e não mais como essências que caracterizariam e
identificariam os outros, reduzindo-os a apenas um aspecto suas complexas e
paradoxais singularidades. Performances que podem ser experimentadas por
todos. Papéis a serem desempenhados, esperados, formatizados e que
podem ser trocados, rejeitados, aceitos, inventados, hibridizados, ou seja, uns
desempenhando papéis atribuídos a outros e nessa dinâmica transformando226
os. Modos de existência metamorfoseados, engendrando uma multiplicidade
de possíveis que não podem se reduzir a identidade e a diferença (como seu
negativo ou oposto) originais, fixas e estagnadas.
Em relação a essa questão, a problematização que fica é a seguinte: o
problema não é o diferente nem a diferença, mas a norma ou a tentativa de
normatizar, normalizar, classificar e enquadrar as diversas singularidades em
categorias reconhecíveis, para assim atribuir valor (positivo ou negativo) aos
múltiplos e mutantes modos de existência.
Como a educação se posiciona em relação a essa questão? Na minha
avaliação, a EMEF Álvaro de Castro Mattos, de uma maneira geral e oficial,
conforme a enunciação de seus administradores, atua a partir de uma
perspectiva multiculturalista, crítica, liberal e humanista simultaneamente, que
pensa a diferença como uma peculiaridade de alguns indivíduos, que por
motivos vários e independente de suas vontades, não são como os outros,
mas merecem respeito e tolerância. As diferenças são pensadas a partir das
grandes categorias como gênero, cor, idade, orientação sexual, condição física
e condição sócio-econômica, tendo como referência os padrões do momento
de normalidade. O diferente é chamado de “especial”. A diferenciação como
processo e característica de todo ser vivo não é discutida na escola, embora
esteja presente e seja percebida como tal.
Nessa dinâmica de discriminação e opressão, em que consideramos cada vez
mais categorias como sexualidade, cor, religião, gênero e idade, entre outras,
muitas vezes a questão da classe social parece ter sido abandonada. Contudo,
no cotidiano da escola em que realizei essa pesquisa, a condição sócioeconômica do aluno é motivo de muita discriminação, ainda que sempre
articulada com outras dinâmicas de produção dos diferentes.
A Álvaro de Castro Mattos é uma escola pública situada num bairro de classe
média da cidade e recebe muita atenção dos políticos especialmente em
períodos de eleição. Em relação a outras escolas públicas, podemos arriscar a
afirmar que ela tem uma condição privilegiada, com mais facilidades para obter
recursos financeiros. Apesar disso, ao contrario do que muitos imaginam, os
alunos da escola não são em sua maioria moradores do bairro e nem
pertencentes apenas à classe média.
Conforme levantamento realizado pela secretaria da escola em 2007, do total
de 671 alunos matriculados no ensino fundamental diurno, apenas 173 moram
em Jardim da Penha. Entre os 498 restantes, 403 residem em outros bairros
do município de Vitória, como Maruípe (132), Itararé (45), Andorinhas (42)
Praia do Canto (39), São Pedro (20), Praia do Suá (19), Consolação (16) e
Goiabeiras (14), entre outros.
Outros 95 alunos da EMEF ACM moram em outros municípios: Serra (87),
Cariacica (6) e Vila Velha (2). Alguns deles precisam pegar dois ônibus e
levam mais de uma hora para chegar à escola.
227
Em relação à Jardim da Penha, alguns desses bairros, como Itararé,
Andorinhas, São Pedro e Consolação, e municípios como Serra e Cariacica,
são considerados carentes, bregas, periféricos. O preconceito e a segregação
(deliberada ou não, como quando não podem participar de uma festa ou uma
excursão) relacionados aos alunos moradores dessas regiões e/ou alunos
pobres também está presente na escola, como pude constatar em minhas
observações e em alguns depoimentos de professores e alunos.
- Na escola tem crianças pobres, mas elas são educadinhas. (...) Na sala todo
mundo trata elas igual, mas quando sai da escola dá muita briga. (...) Porque
uns falam: ah, pobrezinho! E aí eles ficam nervosos, não falam nada, ou então
partem pra briga.
(aluno da 2ª série)
Em face às questões narradas, julgo necessária a distinção entre a diversidade
cultural - definida como uma categoria - e a diferença cultural - definida como
um processo. Como afirma Bhabha:
A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura
como objeto do conhecimento empírico – enquanto a diferença
cultural é o processo da enunciação da cultura como ‘conhecível’,
legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação
cultural. Se a diversidade cultural é uma categoria da ética, da
estética ou da etnologia comparativas, a diferença cultural é um
processo de significação através do qual enunciados sobre ou
em uma cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção
de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. A
diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e
costumes pré-dados; mantida em um enquadramento temporal
relativista, e dá origem a noções liberais de multiculturalismo, de
intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. (1998: 63)
Propomos pensar a escola como um entre-lugar com uma condição de
fronteira. Para Bhabha, viver na fronteira é viver simultaneamente em
espacialidades e temporalidades diferentes no presente da vida cotidiana, por
isso mesmo é viver além... (do tempo linear e do espaço homogêneo, portanto,
vazios). Não é viver a partir de um princípio (origem como destino fatal), nem
visando um fim (futuro previsível), numa linearidade progressiva e evolutiva
sem contratempos, em que uma etapa substituiria a outra. É viver num meio,
em meio a várias temporalidades (do tipo meio isso, meio aquilo, meio aquilo
outro...).
Segundo ele, o afastamento de categorias conceituais e organizacionais
básicas (classe e gênero, por exemplo) resulta em uma consciência das
posições de sujeito (raça, gênero, geração, local institucional, localidade
geopolítica, orientação sexual) que habitam qualquer pretensão à identidade.
228
O que é politicamente crucial, para o autor, é passar além das narrativas de
subjetividades originárias e iniciais para focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.
Esses momentos ou processos são os entre-lugares que “fornecem o terreno
para a elaboração de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos
de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de
definir a própria idéia de sociedade” (1998:20).
Nos entre-lugares se formam sujeitos nos excedentes da soma das “partes” da
(representação da) diferença.
Os termos do embate cultural, seja através do antagonismo ou da
afiliação, são produzidos performaticamente. A representação da
diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços
culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição.
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade
aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação
histórica. O ‘direito’ de se expressar a partir da periferia do poder e do
privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é
alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as
vidas dos que estão na ‘minoria’. O reconhecimento que a tradição
outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencarnar o passado,
este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na
invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a
uma identidade original ou a uma tradição ‘recebida’. Os embates de
fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem
consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de
tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e
o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas
normativas de desenvolvimento e progresso. (1998:21)
Bhabha propõe ainda que se pense a cultura não como epistemologia, mas
como enunciação. Se o epistemológico tende para a reflexão de seu objeto
empírico, o enunciativo tenta repetidamente reinscrever e recolocar a
reivindicação política de prioridade e hierarquia culturais na instituição social da
atividade de significação. O enunciativo busca subverter a razão do momento
hegemônico e recolocar lugares híbridos, alternativos, de negociação social.
O que é notável no foco teórico dirigido ao presente enunciativo como
estratégia discursiva liberatória é sua proposta de que as identificações
culturais emergentes são articuladas na extremidade liminar da
identidade (...) propõem formas de subjetividade contestatórias que são
legitimadas no ato de rasurar as políticas da oposição binária – as
polaridades invertidas de uma contra-política (Gates). Há uma tentativa
de construir uma teoria do imaginário social que não requeira um
sujeito que expresse uma angústia de origem (West), uma autoimagem única (Gates), uma afiliação necessária ou eterna (Hall).
229
(1998:249).
Pensando com o autor, sugiro que considerar as perguntas dos alunos,
perguntas menores, perguntas de estrangeiros em relação ao discurso das
autoridades educacionais, pode ser um meio para alargar o pensamento sobre
a educação e os currículos.
O elemento estrangeiro, segundo Bhabha, revela o intersticial que insiste na
superfície têxtil e se torna o elemento estável de ligação, a temporalidade
indeterminada do intervalar, que tem que participar de condições pelas quais o
novo entra no mundo. O elemento estrangeiro destrói também as estruturas de
referência e a comunicação do sentido original, não simplesmente negando-o,
mas negociando a disjunção em que temporalidades culturais sucessivas são
preservadas no mecanismo histórico e ao mesmo tempo negadas. O que a
agência da estrangeiridade produz é a tradução.
A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É
antes a linguagem in actu (enunciação, posicionalidade) do que
a linguagem in situ (énoncé, proposicionalidade).
(1998:313)
A tradução, como um modo de comunicação assim defendido, não é fonte de
consenso, mas de heterogeneidade.
Com Bhabha, Carvalho (2005) sugere a passagem da perspectiva multicultural
para uma perspectiva fundada em processos dialógicos baseados no
reconhecimento das incompletudes mútuas.
Observa-se, entretanto, que a produção de um currículo escolar que
considere e incentive a alteridade, ao contrário do que a retórica fácil
pode induzir, implica um complexo processo de reestruturação da cultura
e da organização da escola em todas as suas dimensões. Envolve,
portanto, um complexo processo de produção de diferentes relações
pedagógicas e sociopolíticas no âmbito do currículo concebido e
praticado.
(CARVALHO, 2005: 110)
Uma conversa que tive com três alunos da 8ª série (de pele branca, se é que
se pode dizer assim), interferindo diretamente, com minhas provocações, para
problematizar pensamento que se produzia a cerca da questão
identidade/diferença, pode exemplificar a complexidade dos modos como se
dão apropriações de informações (materiais significantes ou pré-significantes –
como prefere Carvalho) em meio às redes de conhecimentos e sentidos
tecidas por sujeitos em comunicação.
Eu: - O que vocês acham do racismo?
Aluna A: - Ridículo.Toda forma de preconceito é ridícula.
230
Aluna B: - Eu acho ridículo esse negócio de cotas para
negros. Nós somos todos iguais.
Eu: - Nós somos mesmos todos iguais os somos todos
diferentes?
Aluna C: Nós somos todos diferentes, mas todos nós temos
direitos e deveres iguais.
Eu: - E de onde vem o preconceito então?
Aluna A: Do capitalismo.
Aluna C: Veio também... tipo...porque os negros africanos
nasceram num lugar de clima quente e os europeus num
lugar de clima frio. E depois, o que aconteceu, os europeus
se achavam superiores aos africanos. E o racismo veio com
a escravatura, porque os europeus ficavam achando que os
negros eram escravos e tal.
Eu: - E como é que se aprende a ser racista?
Aluna A: - Na família.
Aluna B: - Com a educação que a gente tem.
Eu: - Na escola também?
Aluna B: - Também, com os amigos.
Eu: - A história do Brasil é racista?
Aluna C: - De uma certa forma é. Até hoje acontece muito
preconceito. Desde os escravos. Eu acho muito feio usar
uma pessoa como escravo. Se você trabalha, você tem que
receber. Se você trabalha você tem que ter seus direitos.
Eu: - E o que vocês acham do machismo?
Aluna B: - Também é ridículo. A cada cinco minutos uma mulher é agredida em
casa no Brasil. Eu acho que nada se resolve com a violência.
Aluna A: Tem gente que acha que a mulher só serve pra lavar roupa e arrumar
a casa.
Eu: - Como a escola pode contribuir para mudar essas coisas?
Aluna C: - A escola pode nos influenciar a pensar a igualdade.
Eu: - Vocês acham que meninos e meninas são tratados da mesma forma
na escola?
231
Aluna C: - Eu acho que às vezes eles são machistas.
Aluna B: - Na aula de educação física, os meninos sempre ficam com a quadra
maior. Os meninos também não deixam a gente jogar futebol. Quando a gente
quer jogar futebol eles ficam implicando. Ficam dizendo que a gente é perna de
pau.
Eu: - São programadas atividades diferentes para meninos e meninas?
Aluna B: - Às vezes. Na educação física, se vai ter jogo, os meninos jogam
com os meninos e as meninas jogam com as meninas. Ficam achando que os
meninos vão machucar a gente ou que eles vão ser melhores do que a gente.
Aluna C: - É mais tem uma meninas que são preconceituosas com os meninos
também.
Aluna B: - Quando tinha dança aqui na escola, tinham uns meninos que
queriam fazer e as meninas não deixavam. Isso é ridículo. Qual é o problema
de um menino fazer aula de dança?
Eu: - E nas matérias que vocês aprendem na escola, como história,
ciências, geografia, se aprende a ser racista e machista ou se aprende a
combater essas coisas?
Aluna B: - Se aprende a combater, porque você vê a história, desde o início da
humanidade sempre o homem foi superior a mulher. Eles sempre dizem que o
homem se desenvolveu. Tá, mas nós somos uma mesma raça.
Eu: - Então estudar história ajuda a combater ou a aprender isso?
Aluna B: - A gente aprende que não deve continuar, porque se o mundo está
como está foi por causa das coisas que aconteceram.
Eu: - Isso que vocês disseram é uma coisa interessante. A história muitas
vezes valoriza o homem e não a mulher, o branco e não o negro. Isso
vocês perceberam nas discussões em sala de aula ou é uma observação
de vocês?
Aluna B: - Em sala de aula e pensando também. Se eu acho que tem alguma
coisa errada eu falo com os meus amigos que isso não está certo, porque se o
mundo está assim é por causa do que aconteceu. Por exemplo, hoje tem muita
fome lá na África e muita esbaldação nos Estados Unidos.
Eu: - Então, quando a gente estuda história, embora isso dependa
também dos livros, mas geralmente a gente aprende que a origem da
civilização foi na Europa, só o Egito que escapa disso. A história
universal é praticamente a história da Europa. Não aprendemos a história
da África, a história da Ásia. E nem todo mundo percebe, como vocês
perceberam, que a história é escrita pelo homem branco, Que ela é
232
escrita pelo homem e não pela mulher. Como vocês perceberam isso. O
professor alertou, durante as aulas para isso?
Aluna A: - A gente percebe e eles também alertam.
Aluna C: - Eles falam também que se a humanidade está assim foi por causa
dos outros homens de antigamente que fizeram assim. E até hoje tem
preconceitos. E os próprios negros têm preconceitos em relação a si mesmos.
Porque se você é negro e diz que não é, você está sendo preconceituoso
consigo mesmo. Eu não acho certo as negras que têm cabelo crespo, que é a
naturalidade, fazer chapinha. Eu acho que isso é muita coisa, não que tenha
que separar, mas que cada um tem o seu. Não têm que tentar ser igual
aquelas mulheres de cabelo liso Está mais do que certo as negras que não
querem alisar o cabelo. Eu acho que elas têm que ser elas mesmas. Do jeito
que a gente nasceu a gente tem que ser.
Eu: - Mas porque que você acha isso?Não é da natureza querer estar
sempre se transformando?
Aluna C: - Sim, mas eu acho que cada um tem que ter orgulho da sua raça, da
sua cultura.
Aluna B: - Por exemplo, se eu fosse africana, eu teria orgulho das minhas
origens, eu não ia querer mudar.
Eu: - Mas, você sabe qual é sua raça?
Aluna B: - É...raça? É... caucasiana (risos).
Aluna C: - Eu não sei. Eu sou descendente... eu sou uma mistura. Cada um
aqui é.
Aluna B: - Eu sou descendente de italiano e de espanhol.
Eu: - Vocês já são uma mistura. Será que alguém nesse mundo não é uma
mistura? Será que alguém pode dizer que tem orgulho da sua raça?
Existe raça pura?
Aluna B: - Não.
Aluna C: - Ah, mas se eles nasceram desse jeito, eles tem que ser assim.
Eu: - Eu acho que eu entendi o que vocês querem dizer. É que não deve
ter um padrão único a ser seguido.
Aluna B: - É isso. Vamos dizer, não tem seguir o modelo europeu porque as
artistas de cinema são brancas. Eu vou falar a verdade, onde é que você vê
muitos negros? Só nessas novelas de escravos, porque no resto das novelas
ou ele é pobre e mora na favela, ou ele é ladrão ou é escravo. É muito difícil
aparecer um negro como um juiz, um protagonista de uma novela.
233
Capítulo 8
Currículos tecidos em redes cotidianas por sujeitos em
comunicação na, com a e para além da escola.
Nesse último capítulo, volto ao meu ponto de partida: o muro. Os sentidos e os
conhecimentos produzidos na escola ultrapassam os muros físicos construídos
para isolá-la e protegê-la dos movimentos das ruas, dos outros e variados
contextos da nossa vida cotidiana? É possível se pensar em uma “aula sem
paredes”, como antevia metaforicamente McLuhan (1974)?
Em um artigo escrito originalmente em 1960 e publicado no livro “Revolução na
comunicação” (1974), Marshall McLuhan defendia que os mass medias
(imprensa, rádio e televisão), operavam como “auxiliares audiovisuais do
ensino”, embora o pensamento educacional ainda
considerasse o livro como norma e os outros meios como
incidentais. Para ele, o desenvolvimento dos novos meios
de comunicação de massa trouxe como desafio a destruição
do monopólio do livro como auxiliar de ensino e, com isso,
abriu brechas nas paredes da aula.
234
Hoje, em nossas cidades, a maior parte da aprendizagem ocorre
fora da sala de aula. A quantidade pura e simples de informações
transmitidas pela imprensa, revistas, filmes, rádio e televisão
excede, de longe, a quantidade de informações transmitidas pela
instrução e textos escolares.
(McLUHAN,1974: 17)
Autor do conceito-fetiche “aldeia global”, McLuhan, já naquela época,
ultrapassou a idéia de ensino e “auxiliares de instrução” e concebeu os meios
de comunicação como “novas linguagens dotadas de novos e excepcionais
poderes de expressão” (1974:18), que, para além da fala e da escrita, nos
ajudam a recuperar a compreensão intensa da linguagem facial e do gesto
corporal. McLuhan destaca que o livro e a aula tradicional são invenções
culturais e propõe que, diante dos desafios colocados pelos novos meios, a
“tarefa educativa não é fornecer, unicamente, os instrumentos básicos da
percepção, mas também desenvolver a capacidade de julgamento e
discriminação através da experiência social corrente” (1974:19).
Contudo, a contribuição importante que o autor traz para o pensamento sobre
a escola e os currículos que estou tentando desenvolver, foi advertir que é
uma ilusão supor que exista uma diferença básica entre entretenimento e
educação. Para ele, o que agrada ensina mais eficientemente.
As idéias de McLuhan revolucionaram o pensamento comunicacional no Brasil
na década de 70. Por incrível que pareça, elas chegaram a vários cursos de
comunicação das universidades brasileiras rapidamente e prevaleceram até a
dominância das teorias críticas da Escola de Frankfurt, quando foram, aos
poucos deixadas de lado. Contudo, algumas noções desenvolvidas pelo autor
permaneceram diluídas nos discursos da comunicação, mesmo fora do
contexto em que foram desenvolvidas. Entre elas, a noção de que “os meios
de comunicação de massa são extensões dos mecanismos de percepção
humana” (1974: 219).
As novas comunicações não são métodos para nos
relacionarem com o antigo mundo “real”; são o mundo
real e remodelam à vontade o que resta do mundo
antigo.
(McLUHAN, 1974:220)
Em outras palavras, como defendemos desde o início desse pensamento, as
novas tecnologias, meios e recursos de comunicação não são exteriores à
escola, ainda que tenham sido desenvolvidas em outros contextos. Elas estão
lá, fazem parte do cotidiano escolar e da tessitura dos currículos, independente
de sua presença física e das operações de uso e suas diversas lógicas,
porque fazem parte das redes de saberesfazeres e sentidos, nas quais estão
enredados os praticantes da escola e que são tecidas por sujeitos em
comunicação.
McLuhan, pelo menos a época em que escreveu esse artigo que se dirigia à
educação escolar, não considerou as transformações que seriam coengendradas com as novas tecnologias da informação e especialmente com a
235
internet, muito embora tenha defendido em outros trabalhos a idéia de “aldeia
global” como metáfora para a sociedade contemporânea, na qual passa a ser
possível se intercomunicar diretamente com qualquer pessoa em qualquer
lugar do planeta. McLuhan pensava a televisão, transmitida via satélite, como
o veículo de comunicação de massa internacional. Em seus últimos
pensamentos, ao final da década de 70, ele considerou os computadores
como extensão do sistema nervoso e de todo corpo humano.
Da morte de McLuhan, em 1980, para cá as coisas mudaram aceleradamente.
Assmann destaca que com as redes digitais “estamos vivendo uma efetiva
imersão num enredamento, que transforma profundamente a relação
comunicativa entre os serem humanos” (2005:7).
Entenda-se bem: o computador isolado já se tornou um objeto obsoleto. Hoje
o computador só faz sentido como nó de acesso a essa vasta redificação
planetária. E como tal passou a ser entendido pela quase totalidade de seus
usuários. Essa imersão nas redes digitais passou a ser uma experiência
concreta até mesmo das crianças, que têm acesso a um computador ligado à
rede mundial de computadores. O computador isolado deixou praticamente
de existir e, junto com sua desaparição, desapareceram muitos aspectos da
anterior experiência de aprender.
(ASSMANN, 2005: 9)
Assmann acredita que os bolsões não atingidos pela expansão das redes
digitais estão diminuindo rapidamente e entende que nossos atuais desafios
são entender as novas formas de construção do conhecimento e descobrir o
caráter criativo das experiências do aprender imersas nas redes digitais.
Em minha experiência com a EMEF Álvaro de Castro Mattos, pude perceber
que em quase sua totalidade, de uma forma ou de outra, as crianças e os
adolescentes que estudam lá têm acesso, reduzido ou intensivo, às redes
digitais de comunicação. Alguns têm acesso em casa, outros só na escola,
mas a vontade e a necessidade desse acesso estão colocadas. A participação
nessas redes, que pode ser acessada dentro e fora da escola, poderia ser
considerada uma forma de ultrapassagem dos muros (físicos e simbólicos) e
um modo para problematizar disjunções como dentro/fora e global/local, que
embora não seja o único, gostaria de destacar por sua variedade de usos e
complexidade.
Como já discutimos em capítulos anteriores, alunos,
professores, coordenadores, pedagogos e diretora da
escola fazem usos variados e imprevisíveis do
computador e da internet, que vão desde a simples
utilização do editor de textos para criar mensagens,
até a imersão na internet para fazer pesquisas para os
trabalhos propostos pelas disciplinas, bem como
criações artísticas nas aulas de artes. Para além
dessas práticas, demandadas pela escola, os sujeitos
em comunicação praticantes do cotidiano da ACM
fazem outros usos da rede mundial de computadores.
Entre eles, a criação de uma comunidade no Orkut - uma rede mundial de
236
relacionamentos - para discutir assuntos relativos à escola e reafirmarem ou
criarem laços entre indivíduos que, independente do espaçotempo de sua
ligação com a escola, mantém vínculos com ela.
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lvaro de Castro Mattos
descrição: Essa comunidade e para todos, assim como eu, jah
estudaram nessa maravilhosa escola, q e o Alvaro de
Castro Mattos...
categoria: Alunos e Escolas
dono: Fabrício Amorim
tipo: pública
fórum: não-anônimo
idioma: Português
local: Brasil
criado em: 16 de Julho de 2005
membros: 263
fórum
tópico
autor
quem lembra do prof. Lys Paulo de geografia??
††Flávia††
Alguem da época de 1984-1987?
Marcos
quem lembra da professora de (ciencias)Margarete.
Carla
Andrea
Quando voce estudou no Alvaro???
Fabrício
FILME "DROGA DE VIDA",FEITO PELA 8º SÉRIE DE
2000
Fabrício
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tópico: Quem gostava de almoçar no
refeitório!!!!
Mostrando 1-10 de 13
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Quem gostava de almoçar no refeitório!!!!
14/12/2005 13:13
Acho que todos gostavam do rizoto de frango e de uma sopa
de macarrão em bolhinhas... rsrsrs cara que irado lembrar
dessas paradas.
Alvaro de Castro Mattos
15/12/2005 06:39
(263 membros)
nossa!! boto feh que quando era rizoto de franqo a fila era
mt grande!! :D
Roberto
Jenniffer
quando tinha chocolate quente com biscoito era iraduu
dimais! akelas canecas de plastico q a galera ficava batendo!
:D nossa.. que epoca boa di mais! ;D
arroz doce 15/12/2005 14:08
Ahhhh!!! Eu também sou da épóca aí dos meninos!!! Mas o q
eu mais gostava era quando tinha arroz doce especial com
leite condensado(pelo menos era o q eles diziam e olha q só
tinha em eventos especiais). Uma delícia!!!
Morro de rir quando lembro q num podia devolver o prato
com comida, tinha q comer na marra!!!
Legal mesmo relembrar!!!!!
16/12/2005 04:13
Elton
Nossa!!!
Aquele rizoto fez história no ACM!!!
Eu adorava!!!
16/12/2005 18:59
Eu boto feh que a historiade nao poder deixar comida no
prato era mt engraçada mesmo! #) aeuauehaeuhhua...
eventos especiais eh o q há! :D... sempre tinha alguma coisa
diferente! #)
Roberto
Bem lembrado galera!!! 26/12/2005 12:29
A fila do refeitório era pior do que fila do INSS quando era
risoto de frango mas como eu gosto mesmo é de chama-lo
de "canja de galinha"... Caramba! Não era brincadeira não!
Eu me lembro que a fila atravessou a escada que ia pro
segundo andar e já tava indo parar na secretária.
Leandro
Me lembro tb de como a galera ficava quando ia bater o
recreio e já tinha acabado a atividade dentro de aula... era
todo mundo na porta esperando bater o sinal pra ir pro
refeitório...
já até tirei vantagem disso.. quando fui da lendaria 7ª A (que
ganhou tudo no interclasse) a sala ficava do lado da cozinha
ai nós quase sempre eramos os primeiros da fila... que
previlegio heim!
sim 31/12/2005 07:05
Po bem lembrado quando comia sopa de macarrao e risoto
de frango!!!Chegava em casa e nem almocava!!!!Muito bom
ne!!!!
Saudades desse epoca!!!!
Clarissa
Debora
NOSSA 07/01/2006 05:01
CARACA LAURO
C FALOU TUDO.
ATE HJ ME DA AGUA NA BOCA QDO LEMBRO DO TAL RISOTO
DE FRANGO.
ACHO QUE VOU COMER LA UM DIA PRA RELEMBRAR RSSS
SERA QUE TA SENDO FEITO AINDA?
21/01/2006 18:14
só passava lá quando tinha um lanche especial ou risoto de
arroz hehehe era uma briga na fila quando tinha lanche
especial e fila chega ate na coordenacao
††Flávia††
01/03/2006 18:57
*** Lívia ***
Bom galera!!!
Eu queria dar duas noticias: uma infeliz e uma feliz!
a infeliz e q a comida naum está tão boa como era!!!
Agora eles nem fazem rizoto...
O macarrão eh sem sal...
essas coisa...
Mas tem mingal d aveia... as vezes tem arroz doce... tem
238
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O que há de novo
tópico: Queimada...
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Queimada... 24/01/2006 19:38
karak lembrei de uma epoca muito dez que
passei no ACM.
Era a epoca da minha 5ª ou 6ª serie que a
galera saia da aula e ia diret o pra quadra
pequena(que eu nem sei se eh mais pequena)
jogar queimada!!
Algumas figuras eu naum esqueço ate hoje, tem
gente que nem me conhece mas eu lembro
direitinho.
Vamo ver quem lebra disso!!
Mostrando 1-10 de 10
Alvaro de Castro
Mattos
(263 membros)
Antonio
soh pra ser mais especifico... 24/01/2006 19:59
A galerinha que passou por lah nos a nos de 97
ou 98 que de ve se lembra mais...
Antonio
hum... 25/01/2006 10:34
Lembro exatamente...
Concordo plenamente com Antonio,
oh época boa neh?!
Larissa
29/01/2006 11:03
concordo com o antonio, caraca Thiago e Tulio
eram que jogava mais forte todos tinham medo
deles rsrs principalmente do thiago nossa amava
jogar queimada tbm era dessa turminha
††Flávia††
Fabrício
? ....
LepreChaUn
verdade 19/02/2006 11:48
thulio era o mais monstro, ele jogava mto forte
eram pocos os q aguentava a bolada dele,
demorei mt tempo p aguentar...
tenho saudade daquela epoca...
Pow 21/02/2006 14:56
Nem lembro não ...
tipo...lembro q tinha queimada ...
e pow antonio era uma série na minha frente ...
e a galera q postou são de epocas bem mais
velhasss...
aê antonioo se vc lembrar ...
eu era uma série anteriorr a vc..e era
conhecidoo na escola td por DU GEL...
se lembrar de mim..fala aÊ..
Luiz... 21/02/2006 20:56
Vc estudava à tarde?
Antonio
01/04/2006 16:06
Minha nossa, queimada era a grande se nsação
da escola!! Eu era tão ruizinha que doía, mas
jogava todo dia!!!!!
Jéssica
239
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tópico: quem lembra do prof. Lys Paulo de
geografia??
Mostrando 1-10 de 17
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huahuauhuahuuh 23/01/2006 21:07
O camarada era carrasco mermo...
Mas eu tamem achava ele gente boa.
Alvaro de Castro Mattos
Antonio
(263 membros)
Sempre me amarrei nele. 26/01/2006 15:49
Eu me amarrava nele, o cara era foda...
Agora q fim deu ele? Continua la?!
Leonardo
28/01/2006 08:50
Elton
Ótimo professor!!!
Muitos não gostavam dele (só a galera da bagunça)
Graças a ele e aos demais professores muitos alunos
entraram no Cefet (*) muitos sem fazerem cursinho
eu lembroOoO 28/01/2006 14:51
um dos melhores q eu jah tive...
Victor
eu..( aff ) 03/03/2006 10:45
po aquele prof ele e muito nervoso e gente boa.
°o.O=|jöñyz¡ñ|=
LEMBRO!!! 05/03/2006 09:39
Como o tempo passa!!! Fui da primeira turma dele!!! Apesar
de rigoroso,tinha uma competência daquelas para ensinar!!!
Ele ainda dá aulas no museu???
Jenniffer
***Lele Pink
Eu lembro... 08/03/2006 18:51
Naum tem como se esquecer dele neh..
Além deu ainda ter aula com ele toda a semana, ele eh
super gente boa..
Bom, um Otimo professor e um dos pokos que axo que
naum tem como ninguem se esquecer..
=]
01/04/2006 16:03
Você tem aula com ele onde, Pink? No Álvaro mesmo?
Jéssica
O LYS PAULO É LEGALZIM MAIS AS VEZEWS ELE É
CHATO 06/04/2006 19:43
ISSO AWE!
† Hannah
Cortat
17/04/2006 20:07
Fabrício
SEM DÚVIDA, LYS PAULO É UM DOS MELHORES PROFºS
QUE O ACM JÁ TEVE.O CARA É MUITO INTELIGENTE,
ENSINA MUITO GEOGRAFIA,E ESTA SEMPRE PRONTO A
RESPONDER SUAS DUVIDAS.DE VEZ EM QUANTO VEJO ELE
NA LOJA ONDE TRABALHO,E É DOS POUCOS PROFºS QUE
SE LEMBRAM DO ALUNO!
VALEU LYS PAULO, TER ME ENSINADO A SENTIR PRAZER EM
ESTUDAR GEOGRAFIA...
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tópico: Quem gostava de cantar o hino
nacional?
Mostrando 1-6 de 6
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Quem gostava de cantar o hino nacional?
16/12/2005 19:07
ahahahaa... era mt legal todo mundo em fila separado por
turmas todas as quintas-feiras e ficava um dando pedala
robinho no outro! (Imagina se nessa epoca existisse esse
termo?)ahhahahahah
Alvaro de Castro Mattos
(263 membros)
Roberto
Elton
Leticia
Leandro
isso quando nao chovia e tinha todo mundo ir pro refeitorio
pra cantar o hino la!#)
HINO 18/12/2005 09:55
Vc lembra né cara!!!
Todo mundo em fila, uma sala subindo de cada vez sendo
que havia um(A) professor(A) que ficava com cada uma
turma e nos conduzia até a sala!
As filas das turmas começavam no pé da escada (entrada) e
terminavam onde hoje é a quadra coberta
FALA SERIO... 24/12/2005 12:31
Cantar o hino era a hora mais irada pq a gente zuava tudo lá
na escola. hauhahuahhaua
mais era xato pq a gente tinha q fikr em fila.
E pra formar a fila! 26/12/2005 12:21
Cara! era muito comédia... nós tinhamos que estender o
braço pra frente pra dar a distância entre vc e o colega da
frente... sempre rolava um tapa no "pédoreia", o que
normalmente chamamos hj de pedala robinho.
03/02/2006 19:43
poh era chato, mas zuavamos muito, lembro que tinha prof a
gildete que mascava o chiclete na hora do hino heheehehe
muito louco
††Flávia††
eu tenhu q canta! 12/02/2006 12:15
tipow
eu estudo lah to na 8ºserie
toda quinta feira eh a msms coisa...
o hino..
eh mt xato!
ninguem merece!
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O que há de novo
tópico: quem lembra da professora de
(ciencias)Margarete.
Mostrando 1-6 de 6
Alvaro de Castro
Mattos
(263 membros)
Carla
Andrea
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quem lembra da professora de
(ciencias)Margarete. 03/02/2006 11:26
Ela era uma carrasca,o mulherzinha e sempre com
o nariz em pe,,,,,,,,rsrsr,passei umas com ela,ela
me deixou de recuperancao,so na materia
dela........
05/04/2006 06:43
Toninho
Eu lembro bem da fera .. mas eu gostava dela ...
kkk ... uma colega nossa ( que a Margareth
puxava o maior saco) roubou uma prova dela uma
vez ...foi uma festa.
Patricia
Eu lembro... 08/04/2006 17:05
Que legal, achar pessoas que estuadaram comigo
há tanto tempo... Sempre amei ciências,gostava
muito desta professora,só tirava notão na matéria
dela.
21/05/2006 13:29
Poliana
ELa eu nao sinto falta nao, rs Era so ler o livro e
fazer os deveres, e mania de pega o caderno pra
olha todo dia grrrrrrrrr
Professora de Ciências 23/05/2006 12:46
Claro que me lembro, ela era muito boa por sinal.
Marcos
25/05/2006 18:29
eu tinha um medo dela! rs..
mas, era uma boa profª..
Juliana
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Esses e outros fóruns de discussão nos possibilitam acompanhar as práticas
de usuários, as operações de praticantes (Certeau, 1994) e os saberesfazeres
e sentidos da escola com elas engendrados. A participação nessas
comunidades me faz pensar também como os usos da internet podem alargar
as redes tecidas cotidianamente pelos sujeitos que se constituem e constituem
a escola tecendo redes de relações e comunicação mediadas, neste caso,
pelas tecnologias digitais da informação, mas que não substituem outras
242
tecnologias de comunicação. Ao contrário, se articulam com elas para produzir
outras coisas, outros possíveis, outros modos de compreender e expressar o
mundo, que, criados nesse entre, nessas relações, não se reduzem à soma
das partes e se assemelham mais ao que é inventado a partir da combinação
contingente dos seus restos, fragmentos e excedentes.
Enquanto lia esses depoimentos, algumas falas incidiram sobre mim,
capturando-me nessas redes, operando com forças e potências que
produziram sentidos outros sobre a escola, seus procedimentos, suas práticas,
suas possibilidades. Sentidos-acontecimentos com defende Deleuze, que
acontecem aos corpos e se manifestam na linguagem. Escola não mais
unicamente como lugar de docilização e disciplinarização dos corpos. E sim
escola como entre-lugar de resistências, conflitos, apropriações, invenções,
multiplicidades, mímicas, traduções, negociações e, por conseguinte, de
alargar a vida e a experiência, na relação com os outros (outras pessoas,
objetos, textos, imagens, pensamentos, práticas, etc.).
Isso não significa que as tecnologias, meios, recursos, suportes e/ou
plataformas da comunicação e da informação conectam a escola ao mundo ou
o mundo à escola. Escola e mundo, como tempoespaço de criação e
existência, são indissociáveis, embora uma série de práticas (procedimentos,
hábitos, normas e discursos) tivesse tentado por muito tempo efetuar essa
separação. Não falo, portanto, de ponte, mas de uma condição que torna
quase impossível não se perceber esse enredamento. Ou seja, uma
contingência, uma ambiência, em que o paradigma das redes se impõe e nos
convoca a pensar a educação dessa forma. Como explica Assmann:
Isto significa que as tecnologias da informação e da comunicação se
transformaram em elemento constituinte (e até instituinte) das nossas
formas de ver e organizar o mundo. Aliás, as técnicas criadas pelos
homens sempre passaram a ser parte de suas visões de mundo. Isto não é
novo. O que há de novo e inédito com as tecnologias da informação e da
comunicação é a parceria cognitiva que elas estão começando a exercer na
relação que o aprendente estabelece com elas. Termos como “usuário” já
não expressam bem essa relação cooperativa entre ser humano e as
máquinas inteligentes. O papel delas já não se limita à simples
configuração e formatação, ou se quiserem, ao enquadramento de
conjuntos complexos de informação. Elas participam ativamente do passo
da informação ao conhecimento.
(2005: 19)
O que Assmann defende é que está acontecendo “um ingresso ativo do
fenômeno técnico na construção cognitiva da realidade” (2005:19), ou seja, a
emergência de modos de conhecer anteriormente inexistentes.
Para além do que dizia McLuhann, as novas tecnologias não podem mais ser
vistas apenas como instrumentos para aumentar o alcance dos sentidos
(braços, visão, etc.), o que elas fazem é ampliar o potencial cognitivo do ser
humano e possibilitar mixagens cognitivas complexas e cooperativas.
243
Nas entrevistas e conversas informais com os sujeitos da escola e nas
perguntas anônimas que os alunos da escola fizeram, pude perceber que essa
condição pode estar colocada, mas que não é compreendida dessa forma.
Alunos e professores disseram ver de maneira separada entretenimento e
educação, na maior parte das vezes pensada como instrução e/ou
disciplinarização.
Mesmo quando defendem os usos dos meios de comunicação em suas
práticas educativas, eles compreendem ou expressam a utilização desses
meios como instrumentos para o ensino e defendem sua utilização de forma
adequada à disciplina, à matéria, ao conteúdo que está sendo “passado” –
palavra muito usada e que conota uma visão de educação/comunicação como
transmissão de informações.
Paradoxalmente, querem acesso livre à internet, ao Orkut, ao MSN, ao e-mail
e a outros produtos e serviços disponibilizados na rede. Os alunos dizem
acreditar que através das mídias eles têm acesso a essas informações, mas
asseguram que na escola eles podem discutir essas informações. A maior
parte defende a importância do professor e da aula tradicional, com caderno,
lápis, quadro-negro e giz. O professor é para a maioria uma peça fundamental:
ele ajuda a entender, incentiva e cobra. No computador e na televisão eles se
distraem, se desconcentram, asseguram. Na internet existe muita mentira,
queixam-se. A maioria confia no professor, mesmo quando o critica. Como na
fala de uma aluna da quinta série, “a escola nos ensina como viver nesse
mundo, que é pra gente não ficar desesperado por aí, sem saber o que fazer”.
E como viver nesse mundo? Perguntei. Ela me respondeu:
- Saber preservar a natureza, ajudar sempre aos outros que precisam da
nossa ajuda, assim.
Achei essa resposta importante, porque de certa forma ela dá conta do que eu
pude ver, ouvir, perceber, sentir e expressar sobre o que vivi na escola Álvaro
de Castro Mattos. Com toda a complexidade, os conflitos, as relações de força
e as diferenças, o encontro com o outro, a comunicação com o outro, enfim, a
vida com o outro, me pareceu ser alguma coisa produzida em comum, sem
desconsiderar a heterogeneidade e as singularidades.
As lógicas e os modos operacionais de
perceber e expressar o mundo empregados
pelas mídias, ainda que enredadas com
outras lógicas, já fazem parte do cotidiano da
escola.
No trabalho ao lado, a professora para
incentivar o interesse pela disciplina, propôs
aos alunos que entrevistassem pessoas da
comunidade para descobrir como elas usam a
matemática. As respostas foram “publicadas”
244
no cartaz produzido num formato muito usado no jornal impresso, conhecido
como “fala povo”.
Para
promover
a
participação dos pais e o
interesse deles pela vida
escolar dos filhos, a escola
montou um sistema bem
parecido
com
algumas
práticas de comunicação
organizacional. Ou seja,
estratégias
que
visam
garantir a participação dos
“coloboradores” (não somos
mais
funcionários
nem
trabalhadores)
das
empresas.
Assim, para pegar os boletins com as notas dos filhos, os pais recebiam um
papel com várias indicações de salas, com o nome do professor de cada
disciplina e um lugar reservado para a assinatura de cada um deles. Os pais
deviam passar em todas as salas e conversarem com os professores sobre o
filho. Só depois disso teriam direito a obter a assinatura deles. Ao final da
maratona, e com o papel/formulário devidamente preenchido com as
assinaturas, poderia passar na mesa da pedagoga para, enfim, receber o
boletim dos seus filhos.
Como obrigação, exigência, recurso, dever, direito, possibilidade ou condição
da educação, a comunicação está inserida nos cotidianos da escola.
Os novos meios, recursos,
lógicas e tecnologias das
infocomunicações
são
irreversíveis e transformaram
nossos modos de existência,
ao mesmo tempo em que nós
os
produzimos
e
os
transformamos, e ao que tudo
indica de uma forma cada vez
mais acelerada.
Os usos desses meios,
recursos e tecnologias são
impossíveis
de
serem
controlados, produzem novas formas de subjetividade, desencadeiam
possíveis processos de subjetivação e modos de relações sociais. Ampliam
nossas possibilidades de conexão e modificam nossas formas de conhecer e
expressar o mundo. Eles nos desafiam a pensar a escola, os currículos, os
hábitos, as crenças generalizadas e naturalizadas sobre a pedagogia e a
245
educação. Da mesma forma, como destaca Assmann, nos “oportunizam novas
formas de criatividade investigativa e redacional” (2005:8).
A comunicação, assim defendida, nos desafia a pensar a partir de outro lugar a
educação. Trata-se apenas de mais um lugar a partir do qual se pode olhá-la educação desde a comunicação - sem, contudo, diminuir a complexidade e as
incertezas que nos atormentam. Muito pelo contrário, a educação pensada a
partir da comunicação nos leva a considerar que a única certeza que podemos
ter é que são inevitáveis a mudança, a transformação cada vez mais acelerada
e a metamorfose, que como ensinar Assmann, “sugere o trânsito, o
entrelaçamento sucessivo de formas que se encadeiam num único processo”
(2205:8).
E já que estamos falando em metamorfose, eu que não quero acabar como a
barata de Franz Kafka, que morreu porque não conseguia se comunicar,
desejo continuar sendo e defendo que todos nós sejamos sujeitos em
comunicação. Uma comunicação que nos permita afetar e ser afetados
mutuamente, conviver, viver com outros, como os peixinhos dessa historinha e
como os alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro de Castro
Mattos.
246
247
Ponto final
Escolhi “ponto final”, no lugar de conclusão, (in)conclusão ou considerações
finais porque acredito que esse termo dá conta da sensação de incompletude,
da impossibilidade de finalização de um texto e, simultaneamente, da
necessidade, por conta dos espaçostempos pré-delimitados e das demandas
da vida, de acabá-lo. Em alguns momentos temos que colocar um ponto final
nas coisas, mesmo que não tenhamos conclusões definitivas, parciais ou
temporárias a respeito delas. Aliás, penso que nunca teremos conclusões
definitivas a respeito de nada e também que não precisamos tê-las. A única
coisa que sei agora, e mais do que sei sinto, é que quando escrevemos sobre
alguma coisa não estamos mais a vivendo. Porque se a estamos vivendo não
podemos contar. É viver e pronto. Caso contrário, é ponto final e pronto. E é
ponto final não porque acabou por si mesma, mas porque temos o desejo e a
necessidade de acabar. E como é assim, esse texto acabou para mim, que
tinha que escrever, e acabou pra vocês, que têm que lê-lo. É, portanto, uma
decisão nossa que produz essa realidade.
Porém, apesar da nossa vontade de poder, esforço de edição e tentativa de
controle, todo texto, assim como o tempoespaço da vida, não é linear e cíclico,
nem tem começo, meio e fim, como pode parecer. O que pode ter acabado pra
248
mim e para vocês continua para os outros. E como me ensinou Arnaldo
Antunes: outros, outras coisas.
O texto é aberto e coletivo. Texto é fluxo, é movimento, é vida. Cada texto está
cheio de materiais pré-significantes e repleto de virtualidades. O texto não
obedece à ordem do ponto final e não se deixa aprisionar. Texto não é só
ponto. Texto é composto por fluxos e linhas, é novelo, é emaranhado, é rizoma,
com suas multiplicidades, com seus possíveis, com suas brechas, com links
para outras coisas, com as marcas de outros textos, com os hipertextos que o
compõem, atravessam e excedem.
Como vários outros, esse texto está cheio de idas e vindas, euforias e
decepções, calmarias e turbulências, invenções e desconstruções, memórias e
projeções, prazeres e desprazeres. Esse texto, por fim, está ainda cheio de
provocações, de problematizações, de imperfeições e de vacúolos, que
convidam a todos que o leram a fazerem os mais variados usos dele tornandoo sempre inacabado e constantemente metamorfoseado, como os meus
pensamentos e a minha própria vida.
Referências:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
ALVES, Nilda. Sobre Movimentos das pesquisas nos/dos/com os
cotidianos. In. Teias: Rio de Janeiro, ano 4, nº 7-8, jan/dez 2003.
______. Romper o cristal e envolvermo-nos nos acontecimentos que se
dão: os contatos cotidianos com a tecnologia. In: LEITE, Márcia & FILÉ,
Valter (orgs.). Subjetividade, tecnologias e escolas. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
______. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas
das redes cotidianas. In. OLIVEIRA, I. B. & ALVES, N. Pesquisa no/do
cotidiano das escolas: sobre as redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A,
2001a.
______. Redes cotidianas de conhecimentos e valores nas relações com a
tecnologia. In: Congresso AS REDES COTIDIANAS DE CONHECIMENTO E
TECNOLOGIA. Rio de Janeiro, UERJ; 2001b.
249
AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Silêncio, apagamento e
hospitalidade: professor/a na casa vazia da outra escola. Texto
apresentado no III Seminário Internacional As Redes de Conhecimento e a
Tecnologia: professores/professoras, imagens e sons. Sessão de Comunicação
Encomendada. Junho de 2005.
______. Photo grafias, escritascotidiano e currículos deformação. In.
FERRAÇO, Carlos Eduardo (org.). Cotidiano escolar, formação de professores
(as) e currículo. São Paulo: Cortez, 2005.
ASSMANN, Hugo. Apresentação. In. ASSMANN, Hugo. Redes digitais e
metamorfose do aprender. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
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ASSMANN, Hugo. Redes digitais e metamorfose do aprender. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2005.
AUGÉ, Marc. ¿Por qué vivimos? Por una antropología de los fins.
Barcelona, Espanha: Gedisa, 2004.
AZEVEDO, Joanir Gomes de. Itinerâncias da pesquisa. In. GARCIA, Regina
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BAULMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
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______. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
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Autonomia – Arnaldo Antunes
Cabimento - Arnaldo Antunes
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Pra começar – Marina Lima
Miséria - Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sérgio Britto
O macaco – Arnaldo Antunes
O nosso amor - Cazuza
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Quando bate uma saudade – Paulinho da Viola
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