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Copyright © 2013 by Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica – CEPADIC Universidade de Brasília - UnB Discursos Contemporâneos em Estudo ̶ vol. 2, n. 1, 2013 Capa: Newton Scheufler Revisão: André Lúcio Bento, Carmen Lucia Prata da Costa e Denise Macedo Editores/Organizadores Josenia Antunes Vieira (UnB) André Lúcio Bento (UnB) Diagramação Bruno Martins de Souza Conselho Editorial André Lúcio Bento (UnB) Angela B. Kleiman (Unicamp) Célia Magalhães (UFMG) Claudia Gomes Paiva (Cefor - Câmara dos Deputados) Dina Maria Martins Ferreira (UECE) Edna Cristina Muniz da Silva (UnB) Josenia Antunes Vieira (UnB) Maria Carminda Bernardes Silvestre (ESTG-IP Leiria-Portugal) Maria José Coracini (Unicamp) Milton Chamarelli Filho (UFAC) Pedro Henrique Lima Praxedes Filho (UECE) Regina Celan (PUC/SP) Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP) e-mail: cepadic@gmail.com DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS EM ESTUDO Apoio Universidade de Brasília Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação Discursos Contemporâneos em Estudo Volume I Número 2 ISSN 2237-7247 Abril/2013 ISSN 2237-7247 Discursos Contemporâneos em Estudo, Vol. 1, n. 2, 2013 _____________________________________________________________________________ Revista Discursos Contemporâneos em Estudo Vol. 1, n. 2, 2013 Revista do Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília – PPGL/UnB 1. Análise de Discurso Crítica. 2. Teoria da Multimodalidade. 3. Linguistíca Sistêmico-Funcional. I.Título:Discursos Contemporâneos em Estudo. II. Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica. ISSN 2237-7247 _____________________________________________________________________________ SUMÁRIO Artigos: O fantasma estruturalista e a Análise de Discurso Crítica.............................................................. 9 Alexandre Costa (UFG) Ensino do português baseado nos gêneros...................................................................................... 25 Edna Cristina Muniz da Silva (UnB) A semiótica social das cores e das formas tipográficas: conceitos, categorias e aplicações........... 47 Flaviane Carvalho (Universidade de Lisboa) Os reflexos da mercantilização do ensino na formação identitária do professor............................ 67 Josenia Antunes Vieira (UnB) e Denise Silva Macedo (UnB) Hegemonia e insurgência no discurso cinematográfico: o pensamento social crítico.................... 95 Dina Maria Martins Ferreira (UECE) e Tibério Caminha Rocha (UECE) Expressões multimodais de anúncios publicitários para a representação do feminino: implícitos e contextos ............................................................................................................... 107 Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP) A construção do ideal identitário brasileiro pela publicidade governamental: uma análise crítica multimodal...................................................................................................................................... 129 Josenia Antunes Vieira (UnB) e Maria Lílian de Medeiros Yared (UnB) Resenhas: VAN DIJK, T. A. Discurso E Contexto: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012. 330 p. Simone Abrahão Scafuto ............................................................. 151 VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. Neiva Maria Machado Soares...................................................... 155 MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da mídia global: uma introdução crítica. Nova Iorque: Routledge, 2007. 188 p. Izabella da Silva Negrão Trajano............................................................ 161 Editorial Em mais um volume da Revista Discursos Contemporâneos em Estudo, nosso propósito é de contribuir para o debate em torno das representações discursivas na contemporaneidade e da indissociável relação entre o discurso e as construções identitárias, fruto dos mais diversos modos semióticos. No artigo O fantasma estruturalista e a análise de discurso crítica, Alexandre Costa discute a influência estruturalista nas atuais abordagens em Ciências Humanas, o que inclui, na visão do autor, os estudos feitos em Análise de Discurso Crítica. Edna Cristina Muniz da Silva, no artigo Ensino do português baseado nos gêneros, questiona até que ponto o ensino de escrita contribui para que os(as) estudantes se apropriem dos gêneros na condição de recursos que lhes permitam agir e interagir nos mais diversos contextos sociais. A semiótica social das cores e das formas tipográficas: conceitos, categorias e aplicações, artigo de Flaviane Carvalho, o papel exercido pela tipografia e pelas cores na construção de sentidos da primeira página dos jornais portugueses Diário de Notícias, Correio da Manhã e Público. Josenia Antunes Vieira e Denise Silva Macedo analisam aspectos discursivos das identidades dos profissionais da educação, na perspectiva da tecnologização contemporânea, por meio do artigo Os reflexos da mercantilização do ensino na formação identitária do professor. Dina Maria Martins Ferreira e Tibério Caminha Rocha, no artigo Hegemonia e insurgência no discurso cinematográfico: o pensamento social crítico, tratam do discurso cinematográfico na condição de prática social, com vistas à desmistificação da supervalorização estética da cinematografia. O artigo Expressões multimodais de anuncios publicitários para a representação do feminino: implícitos e contextos, de Regina Célia Pagliuchi da Silveira, trata da representação do feminino em textos multimodais publicitários, com vistas a analisar, na composição textual do verbal e do visual (imagens e cores), as formas de difusão da ideologia, instaurada pelo poder. A construção do ideal identitário brasileiro pela publicidade governamental: uma análise crítica multimodal, artigo de Josenia Antunes Vieira e de Maria Lílian de Medeiros Yared interpreta criticamente as relações entre recursos semióticos geradores de sentido, e a construção de representações ideais de uma comunidade, por meio de um vídeo institucional do Governo brasileiro. Este volume contempla, ainda, as resenhas das seguintes obras: • VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012, resenhada por Simone Abrahão Scafuto. • VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008, resenhada por Neiva Maria Machado Soares. • MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da mídia global: uma introdução crítica. Nova Iorque: Routledge, 2007, resenhada por Izabella da Silva Negrão Trajano. É nosso desejo que os artigos e resenhas publicados neste volume promovam e instiguem outros estudos e pesquisas sobre as representações discursivas no mundo contemporâneo. Também desejamos que você, Colega Pesquisador(a), sinta-se motivado para publicar nos próximos números e volumes da Revista Discursos Contemporâneos em Estudo. Josenia Antunes Vieira André Lúcio Bento O FANTASMA ESTRUTURALISTA E A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA Alexandre Costa1 Neste artigo, discutimos a presença e a importância da epistemologia estruturalista e suas consequências teórico-metodológicas para todas as áreas e abordagens da Linguística, inclusive para aquelas que tratam do uso da linguagem. Localizamos sua influência na reflexão de autores das Ciências Humanas em que os estudos do discurso buscam subsídios teóricos e as correntes de pesquisa que se mantêm ainda no escopo dessa herança. Concluímos que a Análise de Discurso Crítica é uma das abordagens que parece manter-se nessa epistemologia. Palavras-chave: Linguística. Epistemologia. Estruturalismo. ADC. Introdução O aparente insucesso da aplicação dos métodos estruturalistas nos níveis superiores ao da frase, no âmbito da Linguística, bem como a “ressaca” de sua transferência maciça a outras ciências sociais causaram uma profunda desvalorização dessa base epistemológica nos estudos da língua e da linguagem. Atualmente, a presença da abordagem estruturalista na Linguística é quase fantasmagórica. Seria preciso avaliar a que aspecto dos procedimentos de exclusão discursiva ela foi conjurada: se ao tabu do objeto, se ao ritual da circunstância ou se ao direito privilegiado ou exclusivo de fala. O certo é que, atualmente, o estruturalismo está na periferia do espaço da vontade de verdade dos estudos linguísticos2. 1 Professor Adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Líder do Grupo de Estudos Críticos e Aplicados ao Discurso Religioso (NOUS – UFG/CNPq). 2 Em sua discussão da exclusão discursiva, Foucault descreve os aspectos do que chama de primeiro procedimento: “Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. Nas páginas seguintes, o autor define a vontade de verdade pela “oposição entre falso e verdadeiro”. Aliás, ele parece fazê-lo em um viés estrutural, o que não é estranho em um livro cujo título é A ordem do discurso (FOUCAULT, 1996, 13-14). 9 Apesar disso, parece que a epistemologia estruturalista e suas consequências teóricometodológicas continuam presentes e ainda são importantes para todas as áreas e abordagens da Linguística, inclusive para aquelas que tratam do uso da linguagem. Isso não apenas porque seja possível localizar sua influência na reflexão de autores das Ciências Humanas em que os estudos do discurso e da enunciação buscam subsídios teóricos, mas, sobretudo, porque dependemos de pesquisas que se mantêm muito próximas dessa herança. Esse é o caso das duas grandes abordagens teórico-metodológicas dos estudos gramaticais, que não são nomeadas explicitamente como estruturalistas: o gerativismo e o funcionalismo. Ambas, na verdade, assumem parcialmente seu viés estruturalista, ainda que em direções explicativas inversas. O gerativismo busca, em suas análises, sistemas linguísticos internos (ou profundos) que são constitutivos da diversidade superficial da linguagem tentando encontrar as estruturas de cada língua e, nelas, a gramática universal. Um exemplo perfeito do continuum entre o estruturalismo e o gerativismo é a seguinte definição da noção de gramática encontrada em um texto de divulgação científica (PERINI, 2006, p. 23, grifo nosso): “[...] chama-se gramática um sistema de regras, unidades e estruturas que o falante de uma língua tem programado em sua memória e que lhe permite usar sua língua”. Neste caso, inclusive, a noção de estrutura está desenvolvida pela metáfora da “programação”, implicando um nível de realidade inconsciente que se manifesta no uso. O funcionalismo, por seu turno, apesar de não estar comumente identificado com a pesquisa de origens profundas para os dados que constrói, funda-se também nas noções de sistema e de estrutura. Essa manutenção da construção de uma realidade interna da linguagem, no entanto, à diferença do gerativismo, adota como perspectiva de análise, a interiorização de estruturas e não a sua exteriorização: [...] [essa abordagem] é funcional porque não separa o sistema linguístico e suas peças das funções que têm de preencher, e é dinâmica porque reconhece, na instabilidade da relação entre estrutura e função, a força dinâmica que está por detrás do constante desenvolvimento da linguagem (NEVES, 2004, p. 3, grifo nosso). As duas abordagens, portanto, constroem modelos estruturais para seus dados e têm de produzi-los com base em recortes empíricos do uso da linguagem. Fazem-no, no entanto, em direções analíticas diferentes, que privilegiam, respectivamente, a estabilidade e a instabilidade estrutural. Por isso, a segunda é o viés mais comum da manutenção do estruturalismo nos estudos da linguagem, ainda que modelos cognitivistas possam estar mais próximos à primeira. Por decorrência, é razoável prever que todas as vertentes da Linguística que se baseiam nas descrições das gramáticas funcionais devam participar, em alguma medida, de sua epistemologia. Desse modo, a constituição de objetos ou níveis de análise que incluem, por exemplo, mecanismos interfrásticos, processos de referenciação, tipos e sequências de texto deveria produzir esse tipo de assimilação. É nesse nível de relação que, aparentemente, 10 encontram-se as pesquisas em Linguística Aplicada, em Linguística Textual e até mesmo em Análise do Discurso. Em outras palavras, se as áreas da Linguística que se concentram no estudo do uso da linguagem valem-se das descrições e de explicações gramaticais funcionais, devem, em alguma medida, incorporar também o viés epistemológico estruturalista. A Linguística Textual, por exemplo, refere-se a si mesma como uma “gramática do texto” que dialogou com a Semântica, passou depois pelas viradas pragmática e cognitivista e chegou, finalmente, à perspectiva sociocognitiva-interacionista. Na última fase, que poderia ser chamada de “virada discursiva”, essa disciplina tenta articular a dialogia bakhtiniana a modelos cognitivos e a descrições gramaticais (KOCH, 2004, p. 32-33, grifo nosso): Dentro desta concepção, amplia-se, mais uma vez, a noção de contexto, tão cara à Linguística Textual. Se, inicialmente, quando das análises transfrásicas, o contexto era visto apenas como co-texto (segmentos textuais precedentes e subsequentes ao fenômeno em estudo), tendo, quando da introdução da pragmática, passado a abranger primeiramente a situação comunicativa e, posteriormente, o entorno sócio-histórico-cultural, representado na memória por modelos cognitivos, ele passa a constituir agora a própria interação e seus sujeitos: o contexto constrói-se, em grande parte, na própria interação. Portanto, na concepção interacional (dialógica), [...] [a] produção de linguagem constitui atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização [...]. O viés estruturalista do trecho citado é reconhecível não apenas porque os elementos linguísticos presentes na superfície textual são analisados com modelos subsidiados pela gramática funcional, mas também pela pressuposição de outras superfícies. A conjugação de tais superfícies parece significar o relacionamento estrutural entre texto, contexto e cognição. Além disso, a tardia assunção da perspectiva interacionista não deve escapar a esse jogo de homologias, sob pena de destruir o modelo dessa dinâmica de instanciações recíprocas dos elementos de cada uma das superfícies: a linguagem estrutura a cognição, que estrutura a interação, que volta a estruturar a linguagem e assim sucessivamente. Nessa linha, a própria noção de dialogia, portanto, apenas pode ser descrita e explicada pelos aparatos teóricometodológicos da Linguística Textual se puder ser estruturada. Assim, ainda que seja possível supor que a virada discursiva dessa disciplina tenha sido unilateral, isso é improvável. Sua relação com as análises do discurso teve de ser produzida com base em uma intercompreensão epistemológica mínima, como a expressa em categorias como posição de sujeito e sistema de enunciados, as quais permitem indicar a presença terminológica do estruturalismo. É sabido que as palavras “posição” e “sistema” constam do vocabulário dessa epistemologia, mas devemos questionar também se, nas análises do discurso, a perspectiva estruturalista é condição de seu uso operacional. Nesse caso, a noção de valor, tão cara à linguística clássica, deveria estar implicada na recuperação 11 dessas categorias teóricas: o valor de um elemento discursivo corresponderia à sua posição em um sistema de diferenças. Na Análise de Discurso Crítica, que incorpora explicitamente as contribuições das linguísticas do texto e da gramática funcional, esse parece ser o caso. Com relação à Análise do Discurso de linha francesa, talvez baste lembrar que seus comentadores têm reconhecido, reiteradamente, a importância do cruzamento das obras de Saussure, de Freud e de Marx com as releituras de Pêcheux, de Lacan e de Althusser, para a formação de seu “solo epistemológico” (GREGOLIN, 2004, p. 13). Além disso, é fartamente conhecida a crítica à sua assunção do efeito de assujeitamento dos agentes sociais pelas estruturas, posição abandonada posteriormente. É importante lembrar, entretanto, que as análises do discurso (quase) sempre se fizeram acompanhar pela também assustadora noção de acontecimento, um limite ontológico da epistemologia estruturalista que será discutido a seguir. Na verdade, a relação entre estrutura e acontecimento, à exceção de abordagens estruturalistas e gerativistas da fonologia e da gramática, não é totalmente estranha a todas as áreas da Linguística, que se pautam pela inclusão do uso da linguagem em sua empiria. Nesse sentido, a reflexão sobre a manutenção do estruturalismo como um dos paradigmas dos estudos linguísticos deve retomar a eventicidade do nosso objeto, o insolúvel reflexo do fantasma estruturalista. A ontologia bakhtiniana e suas indicações epistemológicas: o estruturalismo dialógico Por derivação do que já foi dito, tentaremos agora estabilizar e verticalizar essa discussão epistemológica por meio de uma polêmica hermenêutica da obra de Bakhtin. Nela, encontramos tanto a defesa de uma objetividade inevitável, ainda que precária, quanto a afirmação de uma ética inapreensível, ainda que absoluta. Em outras palavras, buscaremos sustentar que o filósofo russo situa a validade da ética no devir e a do conhecimento na objetividade. A problemática ontológico-epistemológica bakhtiniana, enfrentada transversalmente em diversos textos, foi explicitamente definida pelo autor em Para uma filosofia do ato3. Na obra – escrita antes de todas as outras, mas só revelada e publicada muito mais tarde4 –, o autor parte do princípio de que as atividades culturais (ciência, filosofia, literatura, história etc.) “estabelecem uma cisão entre o conteúdo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histórica do seu ser, a real e única experiência dele”, porque não são capazes de tratar da inalcançável “transitividade e aberta eventicidade do Ser” (BAKHTIN, [1993] s/d, p. 2). A superação do corte entre o teórico e o real único e concreto seria “totalmente sem esperança”, uma vez que o vivido nunca pode ser totalmente objetivado (BAKHTIN, [1993] s/d, p. 28): 3 Neste artigo, utilizamos a fotocópia da edição brasileira inédita, traduzida da edição americana de 1993. Já há, no entanto, uma edição brasileira publicada por Pedro & João Editores (BAKHTIN, 2010). 4 Segundo o prefácio de Michael Holquist, Bakhtin escondera este texto e mais outro, escritos no início de sua carreira, por temor à repressão do stalinismo soviético. No final de sua vida, revelou o segredo a alguns discípulos que encontraram os manuscritos. Apesar de estarem já danificados, foram suficientes para uma compilação que resultou em sua publicação. 12 Reconhecemos como infundadas e essencialmente sem esperança todas as tentativas de orientar uma filosofia primeira (a filosofia do Ser-evento unitário e único) em relação ao aspecto do conteúdo-sentido, ou do produto objetivado, fazendo-se abstração do ato-ação real, único, e de seu autor – aquele que está pensando teoricamente, contemplando esteticamente e agindo eticamente. É apenas de dentro do ato realmente executado, que é único, integral e unitário em sua responsabilidade, que nós podemos encontrar uma abordagem ao Ser único e unitário em sua realidade concreta. Uma filosofia primeira só pode orientar-se em relação a esse ato realmente executado. Ainda que a lógica do raciocínio de Bakhtin seja impecável, merece a pena da paráfrase: o sujeito que existe nos processos do mundo é concreto, único, e sua realidade é a eventicidade permanente. O conhecimento estético ou teórico, qualquer que seja a sua forma, é a contemplação disso: uma abstração que é incapaz de reproduzir a concretude, a unicidade e a transitividade do real. Estabelecido esse axioma, o autor passa a discutir as implicações e os limites do conhecimento objetivo para a definição de um sistema ético. Bakhtin está interessado em desbancar a imaterialidade da ética abstrata e universal de Kant e em afirmar o não álibi na existência, a responsabilidade constitutiva da realidade processual do Ser. Como ele mesmo assume, seu tratamento disso é fenomeno lógico5, uma vez que tal problemática não cabe na objetividade (não se presta à estruturação). Em outras palavras, Bakhtin nos diz que o real, em última análise, é irredutível à sua representação objetiva, sobretudo pela implicação constitutiva dos sujeitos no mundo6. Sem desconsiderar os riscos da afirmação seguinte, diremos que, apesar dessa assunção ontológica, Bakhtin buscará objetivar o real em seus trabalhos subsequentes. Mesmo considerando a transitividade da materialidade espaço-temporal da vida e suas implicações existenciais de enfrentamento do mundo como possibilidade, ele também utilizará princípios de descrição objetiva dos processos da realidade. Nossa leitura do raciocínio do autor, salvo melhor juízo, estabelece uma derivação lógica aparentemente inescapável: se a transitividade do Ser é inapreensível, toda pesquisa objetiva será redutora. Em outras palavras, toda pesquisa científica tratará apenas parcialmente da complexidade, sendo suas demandas de rigor e de validade relativas ao equilíbrio da relação entre as descrições reducionistas e as derivações explicativas do real. Nesse sentido, a abordagem bakhtiniana será relacionada com a discussão subsequente com base nas seguintes derivações axiomáticas: a) A realidade do Ser é sempre o devir, o processo. b) O discurso teórico é sempre uma objetivação parcial dessa realidade. Quer dizer, busca apreender a experiência vivida da subjetividade, em detrimento da objetividade; é, portanto, apenas indicativa de um tipo de experiência que deve ser verificada em ato. 6 Em certa medida, Bakhtin antecipa a polêmica entre existencialistas, marxistas e estruturalistas, à diferença de que ele mesmo ocupa todos os lugares da polêmica! 5 13 c) Todo e qualquer nível de objetivação não está isento em relação às suas limitações, ou seja, deve reconhecer operacionalmente sua precariedade. d) A produtividade de qualquer abordagem objetivante resulta dos níveis e das relações que possam construir para o real, de acordo com seus propósitos. e) Todo dispositivo teórico-metodológico, ou seja, objetivo será sempre mais produtivo quanto menos depender dos aspectos do real que exclui. A transição da impossibilidade da objetivação do devir para o tratamento teórico da linguagem se produz no pensamento bakhtiniano por meio da noção de dialogia ou dialogismo. A constituição da relação de diálogo como fundadora de todos os aspectos e circunstâncias do uso da linguagem é a condição de sua objetivação. Assim, nos trabalhos de Bakhtin, a dialogia é o princípio constitutivo e o modo real de funcionamento da linguagem (e de todo comportamento humano). Na interpretação de Fiorin (2006, p. 167), esta é a base do raciocínio bakhtiniano: Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com ela é sempre mediada pela linguagem. [...] Isso quer dizer que o real se apresenta para nós semioticamente, o que implica que nosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo. Essa relação entre os discursos é o dialogismo. Como se vê, se não temos relação com as coisas, mas com os discursos que lhes dão sentido, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem, uma vez que [está marcado, mesclado, refratado, mobilizado, infiltrado e emparelhado com outros discursos]. Desse modo, os enunciados é que são as unidades reais da comunicação. Deles resultam as palavras e as orações como unidades da língua. Dos sentidos únicos dos enunciados, palavras e orações surgem já como abstrações que produzem a estabilização de significados, inclusive formais, e que constituem a língua. Na perspectiva bakhtiniana, o erro do objetivismo abstrato é saltar a etapa da descrição das singularidades dialógicas, ou desprezá-las, tomando como o real da linguagem as abstrações do sistema linguístico construído. Em outras palavras, é a objetivação das tipologias dialógicas que permite, de fato, a abstração da língua e, mais importante ainda, que condiciona o entendimento do funcionamento da linguagem. Dessas considerações depende a compreensão da perspectiva de objetivação teórica do autor russo, da qual inferiremos a emergência dos conceitos de estrutura e prática em sua obra, por meio de sua definição da noção de gênero discursivo (BAKHTIN, 1997, p. 279-281, grifo do autor): 14 Todas as esferas da comunicação humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana [...]. A utilização da língua efetuase em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Esses três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera da comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. Ainda que o autor frise a relatividade da estabilidade dos gêneros, ou seja, uma instabilidade relativa, sua noção de gênero discursivo pode ser considerada como uma objetivação da real eventicidade dos enunciados. Além disso, em seus princípios de tratamento do objeto, são visíveis certos procedimentos estruturais: a análise por meio da decomposição e da composição, verificadas pela substituição e pela distribuição dos elementos encontrados. De fato, tal tratamento operativo não está totalmente explícito, mas é derivável das categorias de classificação que ele apresenta. A relação que o autor estabelece entre esferas e gêneros, por um lado, e entre gêneros e seus elementos, por outro, parecem estar em conformidade com a clássica explicação de Benveniste7 sobre os níveis de análise linguística. À primeira vista, no entanto, esse reconhecimento seria estranho ao trabalho de Bakhtin, uma vez que ele critica a abordagem saussuriana8. Essa associação poderia parecer uma aberração para muitos pesquisadores bakhtinianos,sobretudo, pelo fato de o estruturalismo ter sido associado a crenças de que a realidade é determinada unilateralmente por estruturas que são sempre redutíveis a outras estruturas mais profundas até o limite de uma Razão Universal, determinante tanto do real, quando da cognição e dada a priori9. No entanto, a coerência entre as considerações ontológicas de Bakhtin e seu uso dos procedimentos estruturalistas na definição da noção de gênero discursivo ancora-se em uma diferença fundamental entre sua abordagem e as abordagens estruturalistas tradicionais. A crítica bakhtiniana ao objetivismo Benveniste (1995; 1989). Ou, mais explicitamente, pela desconsideração da dialogia como princípio constitutivo da linguagem, em todos os seus níveis, mas, sobretudo, pela desconsideração do enunciado como seu elemento fundamental em lugar do signo (a palavra). 9 Essa é a assunção kantiana contra a qual Bakhtin se contrapõe em Para uma filosofia do ato, a qual, em princípio, foi depois assumida pelo mais famoso dos estruturalistas, o antropólogo Lévi-Strauss, e pelo mais proeminente gerativista, Noam Chomsky. 7 8 15 abstrato é relativa à redução do todo enunciativo à sua parte estrutural, que deveria ser obtida pela análise do enunciado concreto e irrepetível. O concreto em Bakhtin é o enunciado e jamais a estrutura. Assim, trata-se de uma divergência ontológica e não epistemológica. Uma vez aceita a fundamentação do que chamamos de estruturalismo dialógico bakhtiniano, a noção de gênero discursivo pode ser desenvolvida mais e mais explicitamente nestes termos: tratar uma esfera social como um sistema (uma estrutura) de gêneros e, disso, compor a sociedade como um sistema de esferas sociais. Ou, noutra direção, analisar uma sociedade como um sistema de esferas sociais, e os sistemas das esferas sociais pelo valor de seus gêneros: pensar em cada gênero como um elemento de uma esfera pelas relações de diferença que estabelece com os outros gêneros da mesma esfera, com sua composição, decomposição e substituição de temas, de estilos e de estrutura composicional. É preciso salientar, ainda uma vez mais, que o estruturalismo bakhtiniano é um modelo explicativo, cujo axioma ontológico prevê a força constitutiva da dialogia derivada da eventicidade que se manifesta nas práticas. Essa é a direção da sua análise estrutural. De acordo com a proposta de Eco, expressa em A estrutura ausente (1997), a abordagem de Bakhtin é uma espécie de estruturalismo metodológico. Nessa acepção, as estruturas não estão dadas desde sempre nem determinam as práticas unilateralmente; são modelos aplicados aos objetos que podem ou não coincidir com a sua realidade ontológica, mas que produzem uma construção compreensiva da empiria. Na abordagem de Bakhtin (1997, p. 282), a relação entre práticas e estruturas é dialógica: “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”. Além disso, apesar de permitir a descrição da sociedade como um sistema de sistemas – de esferas sociais e de gêneros discursivos – Bakhtin está mais preocupado com o processo dialógico do que com a hierarquia estrutural. Mesmo em Marxismo e filosofia da linguagem, quando se refere mais detidamente à questão das classes sociais, é ainda na dialogia10 do signo que se ancoram suas análises, como sugerem as seguintes considerações sobre “a ordem metodológica para o estudo [dos elementos] da língua” (BAKHTIN, 2004, p. 124)11: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. 10 11 16 Dizemos dialógico porque esse termo indica, em Bakhtin, uma relação de responsividade entre todos os elementos da realidade e da linguagem. No entanto, haverá também uma relação dialética constante porque as práticas estão sempre a desestabilizar ou a desconstruir as estruturas, o que significa contraditar sua estabilidade. Novas estruturações sincrônicas são as sucessivas sínteses. E completa: “É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em função das infraestruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua”. (BAKHTIN, 2004, p. 124). Portanto, quando reconhecemos os princípios estruturalistas na teoria de Bakhtin, aceitamos também que ele os instaura para tratar das práticas, por meio da noção de gênero discursivo. Epistemologicamente, Bakhtin constitui procedimentos de objetivação parcial de sua ontologia, resguardando-a pela noção de dialogia. Tomada como princípio constitutivo da linguagem e da vida social, a dialogia ampara-se na assunção de que a unidade real da língua é o enunciado, uma entidade única e irrepetível, um acontecimento: os elos de uma cadeia infinita e imensa de relações responsivas ativas dos sujeitos no processo de comunicação. É possível, então, ler na obra de Bakhtin a antecipação de todos os elementos de uma relação dialética e dialógica entre estruturas e práticas, como se pode inferir da seguinte imagem sobre a dinâmica estruturante (BAKHTIN, 1997, p. 285): “[os] enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso, são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua”. A metáfora das “correias de transmissão” recupera tanto os aspectos estruturais, implicados pela “correia” e por seus “eixos dentados”, como o movimento, inclusive a agência. De forma um tanto simplista, portanto, o modelo de Bakhtin poderia ser condensado no seguinte raciocínio: os enunciados são carregados de implicações subjetivas e eventícias irrecuperáveis, mas sempre se constituem em uma cadeia responsiva imensa e complexa. Essa cadeia acaba por produzir uma estabilidade parcial que se expressa sob a forma de gêneros, os quais, por sua vez, passam a constituir parcialmente os enunciados. Nesse mesmo sentido se formam as esferas sociais, passando também a ter efeitos constitutivos parcialmente estruturantes sobre o devir, ainda que este não esteja completamente subordinado às estruturas que se vão constituindo e desconstruindo nesse processo. Nesse sentido, pode-se dizer que todas as abordagens em Análise do Discurso, em maior ou em menor grau, ecoam os elementos e as relações que Bakhtin define em sua proposta de análise objetiva da comunicação verbal. A dialogia constitutiva dos enunciados, sua materialidade, seu aparecimento em uma imensa rede de retomadas internas e externas, sua definição estrutural por meio de seu valor relacional, já estão, operacionalmente, presentes em sua obra, como se pode ver no trecho seguinte (BAKHTIN, 1997, p. 316, grifo nosso): Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma determinada esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera [...]: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer que um enunciado ocupa uma posição 17 definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado problema, a uma dada questão etc. Não podemos determinar esta posição sem correlacioná-la com outras posições. É por esta razão que o enunciado é repleto de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação verbal. Estas reações assumem formas variáveis: podemos introduzir diretamente o enunciado alheio no contexto do nosso próprio enunciado, podemos introduzir-lhe apenas palavras isoladas ou orações que então figuram nele a título de representantes de enunciados completos. Nesses casos, o enunciado completo ou a palavra, tomados isoladamente, podem conservar sua alteridade na expressão, ou então se modificados (se imbuírem de ironia, de indignação, de admiração etc.); também é possível, num grau variável, parafrasear o enunciado do outro depois de repensá-lo, ou simplesmente referir-se a ele como as opiniões bem conhecidas de um parceiro discursivo; é possível pressupô-lo explicitamente; nossa reaçãoresposta também pode refletir-se unicamente na expressão de nossa própria fala – na seleção de recursos linguísticos e de entonações, determinados não pelo objeto de nosso discurso e sim pelo enunciado do outro acerca do mesmo objeto. Em Bakhtin, a noção de prática está parcialmente indicada em suas definições de enunciado e de gêneros discursivos. A de estrutura, por seu turno, reside no seu relacionamento entre enunciados, gêneros e esferas, vinculadas acima pelo conceito de posição relacional, que equivale a valor e a diferença no estruturalismo. No trecho acima, a indicação da densidade dialógica dos enunciados, seus efeitos de interioridade e de exterioridade na cadeia verbal revela perceptivelmente a antecipação das explicações de Foucault (1996; 2002) sobre enunciados e formações discursivas e de Bourdieu (1997) sobre estruturas estruturadas estruturantes e habitus. Nas seções seguintes, retomaremos apenas as noções de prática e de estrutura, no sentido de estabilizar suas condições de objetividade. Interessa-nos enfatizar que a abordagem estrutural é ainda necessária e produtiva, mesmo diante a incorporação da noção de acontecimento. A noção de estrutura na arqueologia de Michel Foucault A obra de Michel Foucault influenciou de diferentes maneiras as mais variadas áreas das Ciências Humanas. Seus estudos as desestabilizaram não apenas por mostrar certas complexidades de seus percursos constitutivos, mas também pela forte impressão que suas análises causaram sobre as subjetividades de seus pesquisadores. Condenado por seus adversários pelas muitas mudanças teórico-metodológicas de suas abordagens consecutivas, esse autor teve um objetivo constante e atualizado a cada obra. Seja com relação a métodos, a categorias ou mesmo a valores semânticos das terminologias adotadas, seu trabalho é sempre uma crítica 18 da razão, suas racionalidades, seus aparatos e seus sujeitos. Como professor, pesquisador e escritor, sendo quase um arquétipo do sujeito moderno, Foucault faz, permanentemente, uma crítica da crítica (VEIGA-NETO, ano?, 28; 25): “O que o move é, no fundo, uma permanente suspeita; suspeita que se contorce e se volta até mesmo contra sua própria filosofia e sua intensa militância política, como se ele quisesse se libertar até de si mesmo”. Essa suspeição permanente, entretanto, não parece significar que ele negue a necessidade da construção de regimes de verdade, mas sim que trabalhe sobre a desestabilização desses regimes, mesmo que sejam seus. É pela compreensão desse permanente movimento de esquiva que tentaremos apreender o uso da noção de estrutura em sua obra. Contemporâneas do auge do movimento estruturalista, suas primeiras pesquisas históricas e epistemológicas desenvolveram um interesse especial pela crítica do documento, sendo, finalmente, sistematizadas em uma abordagem chamada de arqueologia (FOUCAULT, 2002). Com essa denominação, Foucault se afasta do estruturalismo, cuja aplicação não fora totalmente estranha a seus primeiros trabalhos, como ele mesmo admite. Reorganiza e reinventa seus dispositivos teórico-metodológicos, escapando à pressão de ter de se posicionar no debate entre intelectuais estruturalistas e marxistas12. Não lhe interessa compartilhar o peso do possível caráter ideológico de certas abordagens ligadas ao estruturalismo ontológico. Em sua sistematização arqueológica, Foucault passa a tratar os discursos como práticas e os enunciados como acontecimentos, mantendo, no entanto, um aparente viés estruturalista, visível em uma série de noções como as de formação discursiva, arquivo, sistema, regularidade, positividade, ordem, correlação. Centrando-se na descrição de relações enunciativas muito parecidas com as que já comentamos a respeito do trabalho de Bakhtin, desenvolve-as em um estilo teórico enviesado, mas muito rico em relações temáticas, sempre recuperadas de suas pesquisas anteriores. Nesta seção, retomaremos apenas duas categorias que, uma vez decifradas, permitem mostrar a presença da noção de estrutura na arqueologia de Foucault. A primeira delas, que retoma em certa medida a ideia de esfera social como um sistema de gêneros discursivos e de cadeias de enunciados, é a categoria de formação discursiva (FOUCAULT, 2002, p. 43, grifo nosso): No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, [...] [um] sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. Conforme vimos tratando os aspectos da abordagem estrutural nas discussões precedentes, podemos supor que a noção de formação discursiva não se refere a apenas uma estrutura ou a um quadro de diferenças somente, mas a um conjunto de estruturas dinamicamente correlacionadas. Em outras palavras, Foucault parece querer montar um dispositivo teórico12 Essa situação é comentada por Dosse (1993) e por Gregolin (2004). 19 metodológico que permita fazer o que Bakhtin diz ser impossível: uma estruturação do acontecimento enunciativo. Nessa leitura, a descrição das formações discursivas poderia ser equiparada a uma objetivação do devir, em cuja operacionalização o próprio autor prevê a descrição da formação de cada um dos seus elementos: dos objetos, dos tipos de enunciação, dos conceitos e das escolhas temáticas. É nessa empresa, que terminará por se dar de forma parcialmente circular, incompleta e ambígua, que emergirá o uso de um termo fundamental para os estudos do discurso, a dispersão: a regularidade resultante do relacionamento de descrições estruturais incompletas. A proposta de Foucault, no entanto, só parece incoerente porque ele não a assume explicitamente. Seu objetivo não é absurdo, mas apenas impraticável; só é possível realizá-lo precariamente, por meio do relacionamento disperso de elementos de estruturas diferentes. Essa hermenêutica encontra amparo no exame do segundo conceito selecionado, a categoria de arquivo, marcadamente estrutural (FOUCAULT, 2002, p. 148, grifo do autor): [...] temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. Nesse trecho, os enunciados são definidos, ao mesmo tempo, como “acontecimentos” e como “coisas” o que, nos termos de Bakhtin e de Eco, seria equivalente a eventos do devir permanente e a objetos estruturados13. Nessas condições, sistemas de enunciados seriam sistemas de sistemas: sistemas de objetos, sistemas de modalidades enunciativas, sistemas de conceitos e sistemas de escolhas temáticas. Por decorrência e de acordo com as discussões precedentes, dizer que as práticas discursivas são densas significa reconhecer que elas são estruturadas. Enfim, ao que tudo indica, a noção de arquivo em Foucault parece ser uma metáfora tridimensional para a concepção de uma estrutura de todas as estruturas: o conjunto das séries diacrônicas de todos os sistemas sincrônicos que compõem os sistemas de enunciados. Além disso, nada pode ser mais estruturalista do que equiparar a história a esse móvel tão comum em escritórios, em bibliotecas e em repartições, com suas gavetas organizadas espacialmente, com seus documentos classificados cronologicamente, tematicamente, tipologicamente etc. Um arquivo pode ter o tamanho de quantos móveis se queira imaginar, e a qualidade de quantas ordenações se consiga conceber, interna e externamente14. 13 14 20 Desde que se possa estar em acordo sobre a identidade dos comentários, suas condições e seu domínio de aparecimento e sua possibilidade e seu campo de utilização. A aparente diferenciação desses elementos parafrásticos diz respeito ao caráter enviesado que reputamos ao estilo foucaultiano. É tamanha a grandiloquência figurativa dessa metáfora epistemológica, que não seria estranho que esse conceito tenha sido mais um presente de Borges a Foucault: neste caso, como uma derivação da mítica biblioteca do autor argentino, que conteria todos os livros do mundo jamais escritos. À diferença do estruturalismo ontológico, no entanto, Foucault não quer reduzir tudo o que existe a uma origem estrutural mais profunda, mas o inverso disso. A noção foucaultiana de arquivo é a expansão das relações estruturais ao devir em si mesmo: cada acontecimento seria uma origem possível. Apesar da complexidade do raciocínio, julgamos que as explicações ontológico-epistemológicas de Bakhtin e de Eco, já referidas, permitem entender o que Foucault tenta (não) dizer em sua explicitação teórico-metodológica: um enunciado é um acontecimento singular dentro de uma imensa e complexa cadeia de enunciados; seu estudo se faz pela recuperação e pelo mapeamento, ainda que precário, das relações estruturais dos seus diversos sistemas de produção (suas condições de possibilidade). Assim, apesar do desejo de afastar-se do estruturalismo, uma possibilidade de leitura de sua perspectiva arqueológica é concebê-la como um tratamento estrutural dos acontecimentos discursivos, seja como estruturas discursivas, seja como práticas discursivas estruturadas. A noção de estrutura na Análise do Discurso de Norman Fairclough A obra de Fairclough é profícua na produção de relações transdisciplinares, sempre focadas na integração de modelos teórico-metodológicos dos estudos linguísticos e das Ciências Sociais. Sua apropriação analítica das temáticas contemporâneas é sempre direcionada à interação da linguagem com o poder e à mudança social. Em sua Teoria Social do Discurso (2001), Fairclough apresentou uma conjugação da análise linguística à teoria social, a qual acabou tornando-se paradigmática para o que hoje se conhece como Análise de Discurso Crítica (MAGALHÃES, 2005; 2001). Nessa versão, um modelo analítico tridimensional relacionava o estudo detalhado das propriedades linguísticas dos textos à avaliação das práticas sociais por meio do exame das práticas discursivas. Fairclough considerava que práticas e estruturas sociais relacionam-se dialeticamente. As práticas discursivas eram concebidas como a faceta discursiva das práticas sociais e definiamse como processos de produção, de distribuição e de consumo textuais. Tomadas como foco do trabalho analítico, uma vez que permitiam um acesso bastante direto ao estudo da mudança social pelo exame das mudanças linguísticas, sua análise apoiava-se na abordagem da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985). Nesse modelo examinam-se os efeitos constitutivos das práticas discursivas sobre identidades, sobre relações sociais e sobre sistemas de conhecimento e de crença dos agentes envolvidos nos eventos discursivos. As marcas textuais relativas a elementos como vocabulário, padrões gramaticais e coesivos são associadas à mobilização de gêneros e de discursos e, consecutivamente, às características não discursivas dos espaços comunitários, institucionais e sociais dos eventos. Assim, as relações intertextuais e interdiscursivas estabelecidas e as marcas que produzem nos textos permitiriam avaliar os tipos de relações de poder que as práticas discursivas reproduzem ou transformam. Nesse aspecto, a abordagem de Fairclough refrata as perspectivas de Bakhtin e de Foucault tanto em relação às complexidades que as relações enunciativas podem ter, quanto às características de pulverização das relações de 21 poder que podem ensejar. Tais relações são avaliadas por meio da localização da ideologia, concebida como sentido a serviço do estabelecimento de relações de poder, e da hegemonia, a produção ideológica de consenso, no âmbito do gerenciamento das práticas discursivas. A geração de padrões de uso da linguagem, como viés de análise do caráter das práticas sociais, encontra, na categoria de ordem de discurso, uma tentativa de sistematização mais abrangente das relações sociais por meio do exame dos processos discursivos. Fairclough define uma ordem de discurso como o conjunto total das práticas discursivas de um campo social, seja institucional, seja comunitário, isto é, como a faceta discursiva de uma ordem social. A perspectiva teórico-metodológica dessa primeira sistematização foi, posteriormente, associada a uma reflexão ontológico-epistemológica na qual o autor se refere à vida (natural e social) como “um sistema aberto, em que qualquer evento é governado por ‘mecanismos’ operativos simultâneos” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 19): As várias dimensões e níveis da vida (inclusive nos aspectos físicos, químicos, biológicos, econômicos, sociais, psicológicos, semiológicos e linguísticos) têm suas próprias estruturas distintivas, que possuem diferentes efeitos gerativos sobre os eventos através de mecanismos particulares. Como a operação de cada mecanismo é sempre mediada pela operação dos outros, nenhum mecanismo tem efeitos determinantes sobre os eventos e, por isso, os eventos são complexos e não podem ser previstos de modos simples como efeitos desses mecanismos. É interessante observar que essa reflexão retoma, de certo modo, a assunção da noção de eventicidade de Bakhtin, mas descreve-a em termos estruturais ontológicos. Salvo melhor juízo, não fica claro se as estruturas são pensadas como dadas ou como postas, se são a busca da estruturação do real ou a aplicação de modelos estruturais hipotéticos. Neste momento, entretanto, nosso interesse diz respeito ao uso da noção de prática no trabalho de Fairclough e, como vimos acima, ele a considera como estruturada. Em suma, Fairclough considera que as ordens sociais e as suas práticas, cujas orientações são variavelmente econômicas, políticas, pedagógicas podem ser avaliadas pelo exame de seus aspectos discursivos. Os modos pelos quais os textos são produzidos, distribuídos e consumidos permitem avaliar os tipos de conflitos e de consensos que organizam determinado espaço social. As maneiras pelas quais as cadeias de gêneros são constituídas, mantidas ou transformadas; a regulação dos discursos que são mobilizados, com suas metáforas, implícitos, estilos e vocabulários; e a relação dessas características discursivas a outros fatores não discursivos são formas de mensurar e de avaliar os modos de organização social, seus aspectos ideológicos e hegemônicos. Mudanças sociais estão sempre associadas a mudanças nos usos da linguagem, e o conceito de prática discursiva é o elemento-chave das análises. Não há duvidas, portanto, quanto à manutenção da epistemologia estruturalista nas análises do discurso, de um modo geral, dada a sua referenciação em noções saussurianas, e na ADC, especificamente, que, além das fontes bakhtinianas e foucaultianas, apropria-se ainda 22 de outras da linguística funcional e textual. Não há também, de fato, nenhum caráter militante nesse reconhecimento. Pelo contrário, reconhecer o caráter operacional dessa permanência teórica é apenas uma atitude teoricamente saudável. Sem eliminar outras influências e derivas epistemológicas que constituam as análises do discurso, reconhecer este solo é absolutamente necessário. Referências BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Trad. Carlos Alberto Faraco. Manuscrito. s/d. ______. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 ______. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. ______. Para uma filosofia do ato responsável. 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Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 24 Ensino do português baseado nos gêneros Edna Cristina Muniz da Silva1 Este trabalho é o resultado de uma pesquisa realizada com turmas dos últimos ciclos do ensino fundamental na área de Língua Portuguesa em uma escola militar em BrasíliaDF. Meu objetivo é mostrar que os gêneros2 devem constituir o centro para o ensino de letramentos, baseando-me em teorias críticas e funcionais para o estudo da linguagem. Para compreender a relação entre gêneros e práticas de letramento no contexto desta pesquisa, apoio-me na articulação de três abordagens teóricas: (1) Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 1992/2001; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003); (2) Abordagens teóricas sobre os gêneros (BAKHTIN, 2000; HALLIDAY; HASAN, 1991; EGGINS; MARTIN, 2000; EGGINS, 2004; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Nesta pesquisa, é investigado como os textos são estudados nas aulas de Língua Portuguesa e em que medida o ensino da escrita contribui para que os estudantes se apropriem dos gêneros como recurso para agirem e para interagirem em diversos domínios sociais. Esta pesquisa indica que o ensino de letramentos deve se apoiar no estudo dos gêneros. Uma pedagogia de ensino de letramentos baseada nos gêneros permite o reconhecimento da diversidade do contexto cultural que envolve os textos, conforme as práticas sociais que os demandam. A consciência dos gêneros e das práticas de letramento em que se realizam efetivamente contribui para que noss@s estudantes desenvolvam capacidades para agirem e para interagirem discursivamente em diferentes domínios e práticas sociais. Palavras-chave: Gêneros. Práticas de Letramento. Ensino de Gramática. Aulas de Língua Portuguesa. 1 2 Graduação em Letras-Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade de Brasília (1987). Mestrado em Linguística pela Universidade de Brasília (1995) com o trabalho "A coesão em textos produzidos por alfabetizandos adultos". Estágio de doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2005-2006). Doutorado em Linguística pela Universidade de Brasília (2007) com o trabalho "Gêneros e práticas de letramento no Ensino Fundamental". É professora adjunta do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisa na área de Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa Discursos, Representações Sociais e Textos, com ênfase em Análise de Discurso Crítica e Linguística Sistêmico-Funcional, abordagens teóricas sobre gêneros e letramentos. Atuou como coordenadora do Curso de Letras a Distância (UAB/ UnB) de outubro/2008 a fevereiro/2011. É membro da comissão editorial de Cadernos de Linguagem e Sociedade (Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade ‒ NELIS/UnB) e da revista Discursos Contemporâneos em Estudo (Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica ‒ CEPADIC/UnB). Está realizando pesquisa de pós-doutorado na área da Linguística Sistêmico-Funcional. É Coordenadora de Graduação do Curso de Licenciatura em LetrasPortuguês (noturno). Neste trabalho, emprego o termo “gêneros” como o uso da linguagem nas interações sociais. 25 Introdução A principal motivação para estudar a relação entre os gêneros e as práticas de letramento no ensino, no contexto das aulas de Língua Portuguesa, foi inspirada na minha experiência como professora de Português, em turmas de 5a a 8a série. Por mais que eu me esforçasse, a experiência era frustrante porque os alunos efetivamente não gostavam de ler nem de escrever e, quando o faziam, o resultado era ruim: textos precários quanto à estrutura, ao desenvolvimento do tema e ao uso das estruturas linguísticas, além de serem descontextualizados. Entendo que os gêneros devem constituir a base para o ensino dos letramentos3 nas aulas de Língua Portuguesa no ensino fundamental (de 5ª a 8ª série), tendo em vista que a falta de domínio d@s estudantes4 na leitura e na escrita deve-se ao ensino de língua orientado pela perspectiva da gramática tradicional e ao tratamento dos textos como objetos, sem considerar as práticas sociais em que são produzidos. Os gêneros são modos de (inter)agir discursivamente no curso das práticas sociais e materializam-se semioticamente nos textos, daí a sua relevância para o ensino dos letramentos múltiplos. O ensino da leitura e da escrita com base nos gêneros está no centro das orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino da Língua Portuguesa nos últimos ciclos do ensino fundamental, que apontam para a necessidade de uma didática da língua que reconheça a expansão do uso da escrita na sociedade contemporânea. A evolução dos meios de comunicação eletrônicos criou novas demandas sociais que moldam gêneros e letramentos ao articularem diversos elementos semióticos na criação de textos. São novas formas de leitura e de escrita que estão sendo vivenciadas, as quais a escola não deve ignorar, porque estão promovendo uma mudança profunda nas práticas de letramento5 que associam três tipos de escrita: manuscrito, impresso e eletrônico. Entendo que o texto manuscrito está cada vez menos sendo utilizado, principalmente pel@s noss@s estudantes, que, na escola onde esta pesquisa foi realizada, têm acesso à rede mundial de computadores e aos letramentos digitais, tendo como consequência a resistência dess@s estudantes em participar dos eventos de letramento6 das aulas. O estudo dos gêneros, portanto, associado a práticas de letramento que levem em conta a diversidade de contextos culturais e sociais de domínio público, adquire relevância nas aulas de Língua Portuguesa porque pode contribuir para melhorar o desempenho d@s estudantes na leitura e na escrita, além de instrumentalizá-los com conhecimento especializado sobre a relação entre a linguagem e as práticas sociais7. Nesta pesquisa, o propósito é verificar como 3 4 5 6 7 26 Letramento é um conjunto de práticas sociais inferidas a partir de eventos que são mediados por textos escritos (BARTON; HAMILTON, 1998). Neste artigo, utilizo o termo “letramento” para referir-me à leitura e à escrita. O símbolo @ é utilizado por motivo de economia linguística na designação simultânea do gênero feminino e do masculino nas referências a estudantes e adocentes e, assim, evitou a ocorrência de sucessivos o/a. Práticas de letramento é um conceito que se refere aos modos como são construídos os significados dos textos escritos em contextos culturais e sociais (STREET, 2000; BARTON; HAMILTON, 1998). Eventos de letramento são situações particulares, observáveis, que envolvem a leitura e/ou a escrita de textos (STREET, 2000; BARTON; HAMILTON, 1998). A prática social refere-se à dimensão econômica, política, ideológica e cultural da estrutura social, podendo relacionar-se ao discurso nos eventos sociais (FAIRCLOUGH, 1992/ 2001). os textos são estudados nas aulas e em que medida o ensino da escrita contribui para que @s estudantes apropriem-se dos gêneros como recursos para agirem e para interagirem em diversos domínios sociais. O enfoque teórico utilizado justifica-se em razão das radicais transformações sociais, econômicas e políticas (também denominadas de globalização, de modernidade tardia ou pós-modernidade, de sociedade da informação, de economia do conhecimento, de cultura do consumo), que são parcialmente realizadas por meio do discurso8 . No contexto social contemporâneo, em que a expansão dos meios de comunicação eletrônicos ampliou a utilização de diferentes gêneros nas instituições sociais, torna-se fundamental uma reflexão sobre o ensino de leitura e de escrita nas aulas de Língua Portuguesa, disciplina oficialmente responsável por ensinar a ler e a escrever. As aulas de Língua Portuguesa foram escolhidas como alvo desta investigação porque constituem um espaço em que professores e estudantes falam, leem e escrevem sobre diversos assuntos (e não necessariamente sobre língua e textos), cujos significados são construídos pela leitura e pela escrita. Esses sentidos tanto contribuem para o posicionamento de estudantes e de professores diante das práticas de letramento escolares quanto podem ser contestados pelos estudantes, que participam de outras práticas discursivas na família e na comunidade. A apropriação da função social das práticas de leitura e de escrita é primordial para que @s estudantes questionem os significados construídos na escola, porque estes influenciam o modo como nos representamos e como representamos os outros. Os professores de Língua Portuguesa podem mostrar aos alunos como agir no mundo por meio dos gêneros associados a práticas de letramento contextualizadas. As práticas de letramento em uma sala de aula a caracterizam como uma comunidade de estudantes e de professores que podem utilizar diversos gêneros, motivados, segundo Halliday e Hasan (1991), por três objetivos: aprendizagem e/ou ampliação do repertório dos gêneros dos estudantes; ensino e conscientização dos gêneros; e ensino por meio dos gêneros. Os gêneros podem ser utilizados como ferramentas culturais para estabelecer, para sustentar, para expandir e para resistir a ideias, a informações e a conhecimentos. Nesse sentido, o estudo dos gêneros associado a práticas de letramentos propicia o desenvolvimento da consciência d@s estudantes para o papel ideológico desempenhado pelos textos nas relações sociais, como instrumentos para ação e para interação dos sujeitos nos diversos domínios sociais. Os gêneros constituem uma categoria de estudo muito útil para o ensino de letramentos. O conceito de gênero de Bakhtin (2000, p. 279) tem servido como base para o desenvolvimento de várias abordagens teóricas em diversos campos, como a literatura, a retórica, a mídia e a linguística. As abordagens de gênero adotadas nesta pesquisa aproximam-se da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH 1989, 1995, 2003), dos Novos Estudos do Letramento (STREET 1984, 1993, 1995; BARTON; HAMILTON, 8 Neste trabalho, o termo “discurso” é utilizado no sentido de linguagem como prática social. O discurso é um modo de ação e de representação, que se relaciona dialeticamente com as práticas e com as estruturas sociais: tanto é moldado por essas últimas, como contribui para a constituição das dimensões da estrutura social. Em outras palavras, o discurso é socialmente constitutivo (FAIRCLOUGH, 1992/2001, p. 91). 27 1998; BARTON; IVANIC, 1991; BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000) e da perspectiva sistêmico-funcional (EGGINS; MARTIN, 1998; EGGINS, 2004; HALLIDAY; HASAN, 1991 HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), em que o texto é considerado em seus aspectos oral, escrito e visual. O conceito de discurso de Fairclough (1995, p. 7) – para quem discurso é o uso de linguagem como uma forma de prática social e análise de discurso é análise de como os textos funcionam na prática sociocultural – corrobora sua aplicação na abordagem de gêneros adotada neste trabalho porque inclui a análise da forma, da estrutura e da organização textual nos níveis fonológicos, gramaticais e lexicais, além da análise das estruturas textuais e genéricas. Do mesmo modo, a concepção de letramento como prática social (STREET, 1985; BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000) é basilar a este trabalho porque situa a escrita e o seu significado dentro das práticas sociais e de discursos específicos nas instituições e nas relações de poder que os sustentam. Pressupostos teóricos 1. Análise de Discurso Crítica Ao apresentar o discurso como prática social, Fairclough (1992/2001) situa o discurso em relação à ideologia e ao poder, entendendo que a ideologia tem existência material nas práticas institucionais. A ideologia implica um conjunto de significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. Ou seja, determinados usos da linguagem e de outras formas simbólicas são ideológicos, pois servem em circunstâncias específicas para estabelecer ou para manter relações de dominação. Tradicionalmente, as atividades de leitura e de escrita em aulas de Língua Portuguesa têm-se restringido às formas linguísticas prestigiadas socialmente devido aos gêneros privilegiados na escola, cujo ensino adota a perspectiva dos grupos sociais dominantes, promovendo cada vez mais a exclusão social e cultural. Os professores têm ignorado os gêneros que constituem as práticas dos diferentes domínios e instituições sociais. Um ensino de Língua Portuguesa emancipador deve levar em conta um contexto de práticas sociais nos níveis local e global, que focalize modos de representação variados, associados a tecnologias da informação e de multimídias, que pressupõem o controle de formas de representação cada vez mais significativas, como as imagens e sua ligação com a escrita, por exemplo. De acordo com a Análise de Discurso Crítica, os gêneros são considerados sob uma perspectiva histórica e cultural como configurações textuais ligadas a processos particulares de produção, de distribuição e de consumo, devendo ser estudados como formas retóricas vinculadas a situações sociais que demandam respostas típicas, em uma determinada interação social, a tipos específicos de atividades (FAIRCLOUGH, 1992/2001, 2003). Os gêneros são lugares de tensão entre estabilidade e mudança, uma vez que “gêneros existentes mudam a partir de modificações na situação social na qual exercem uma função ou novos gêneros 28 podem surgir a partir de transformações ostensivas daqueles já existentes” (PAGANO, 2001, p. 87). Isso significa que os textos, na medida em que constituem gêneros específicos, também estão permanentemente ativando outros gêneros. O conceito de gêneros exerce papel relevante para a elaboração de didáticas de letramento engajadas na conscientização dos professores sobre as práticas sociais que privilegiam determinados gêneros para estabelecer e para sustentar relações de dominação e, dessa forma, exercer controle social. Na medida em que a possibilidade de transformação textual, aspecto constitutivo do gênero, caracteriza um processo dinâmico de transformação social, os modelos que caracterizam a construção de novos textos nunca estão acabados, estando sempre sujeitos a novas incorporações que podem gerar mudança e contribuir para a constituição de identidades. 2. Abordagens sobre os gêneros Gêneros referem-se a como os textos se estruturam tipicamente segundo formas recorrentes, híbridas e convencionais, permitindo que os indivíduos estabeleçam relações entre si e façam coisas juntos em contextos sociais e culturais específicos. O conceito de gênero, tradicionalmente construído no campo da retórica e da literatura, tem-se tornado um pressuposto teórico para análise da forma e da função dos discursos institucionais e uma ferramenta para o desenvolvimento do ensino da leitura e da escrita. Para Bakhtin (2000), cada esfera da comunicação humana apresenta um repertório de gêneros, orais e escritos, que se diferenciam à medida que determinada esfera se desenvolve e torna-se mais complexa. Bakhtin fez distinção entre gêneros primários e secundários. Os gêneros primários relacionam-se diretamente à comunicação verbal cotidiana, como os diálogos, por exemplo, e compõem os gêneros secundários, que surgem nas esferas de comunicação mais complexas e desenvolvidas, sendo fundamentalmente escritos, como novelas, artigos científicos, romances. Os gêneros não são simplesmente um conjunto de regras e de convenções, mas modos de entender a realidade e de interpretar o mundo, constituídos de três elementos básicos – conteúdo temático, estilo e construção composicional – que se imbricam no texto em uma configuração determinada pelas especificidades das práticas sociais. As pessoas participam, no seu dia a dia, de redes de práticas sociais que são mediadas pela linguagem e que articulam diversos elementos das estruturas sociais, como as relações sociais, as pessoas e suas crenças, atitudes e história, o mundo material, o discurso. De acordo com Fairclough (2003), o discurso pode figurar de três maneiras nas práticas sociais: (a) como parte de uma atividade social (por exemplo, para exercer a atividade de venda, o vendedor emprega a linguagem de uma maneira particular); (b) como modo de representação da realidade, em que os atores sociais se posicionam diferentemente ao produzirem representações de outras práticas e suas próprias representações no curso das atividades sociais; (c) como modo de ser na constituição de identidades sociais. Os gêneros, modos de interagir discursivamente no curso das práticas sociais, materializam-se linguisticamente nos textos. De acordo com Halliday e Hasan (1991, p. 10), 29 o texto é uma unidade semântica que se realiza linguisticamente em um contexto situacional cujos sentidos são codificados por palavras, por frases e por estruturas. Ou seja, o texto é produto de um processo contínuo de escolha de significados que estão disponíveis no contexto sociocultural e são representados pelo sistema linguístico. Fairclough (2003) entende como gênero o aspecto discursivo convencional de modos de agir e de interagir estáveis, definidos pelas práticas sociais e suas inter-relações no curso dos eventos sociais. Por serem construídos socialmente, fornecem os sinais para que os sujeitos interpretem as particularidades de uma interação comunicativa específica. Todos os membros de uma comunidade se apropriam diferentemente – no tempo e no espaço – dos diversos gêneros e de seus significados, que são construídos e modificados coletivamente o tempo todo no processo contínuo de interação e de colaboração em práticas sociais compartilhadas. Isso ocorre porque parte da ação social implícita no uso ou no reconhecimento de um gênero é política, dado que os gêneros não são utilizados igualmente por todas as pessoas, mesmo que participem da mesma comunidade discursiva (por exemplo, não são todas as pessoas que produzem textos – e mesmo assim, quando produzem, são textos de gêneros específicos e não todos; da mesma forma, também não são todos que leem textos), porque as formas de interação são constituídas por tipos particulares de relações sociais entre os agentes da interação, as quais se diferenciam conforme o poder e a solidariedade (FAIRCLOUGH, 2003). Os gêneros variam quanto à sua estabilização, fixidez e homogeneização. Alguns gêneros – como o artigo acadêmico – são ritualizados. Outros são completamente variáveis – como os textos publicitários. Na época atual, em que passamos por um período de transformações sociais rápidas e profundas, há uma tensão entre a estabilização, a força de consolidação da nova ordem social e o fluxo das mudanças. As transformações sociais decorrentes do processo de globalização produzem mudanças nas inter-relações das práticas sociais e, consequentemente, mudanças nas formas de ação e de interação que levam a mudanças nos gêneros. Por apresentarem diferentes níveis de abstração e de percepção decorrentes do dinamismo das práticas sociais, os gêneros não apresentam terminologia estável, isto é, em algumas situações diferentes, é possível que haja a mesma denominação para gêneros distintos. Nesse caso, cabe verificar o que ocorre efetivamente nas práticas quanto à variedade de atividades que um gênero pode contemplar. Texto e contexto se associam na construção dos sentidos do que é dito ou escrito nos ambientes sociais em que se desenvolvem e são interpretados (HALLIDAY; HASAN, 1991, p. 5). Nesse sentido, toda língua é compreendida em seu contexto de situação e de cultura porque os textos que produzimos sempre desempenham algum papel em algum contexto. Os textos que compartilham o mesmo propósito social em uma cultura também compartilham o mesmo padrão estrutural, ou o mesmo gênero. Investigar os padrões estruturais de diferentes gêneros significa captar a riqueza do repertório dos elementos textuais, que constituem a base para a elaboração de textos coerentes, sensíveis às complexas demandas culturais. 3. Os gêneros e o ensino da gramática De acordo com os relatos das professoras que participaram da pesquisa, percebe-se que as atividades de gramática propostas em sala de aula não se conjugam com leitura e com produção de textos, que são situações significativas de letramento em que a gramática 30 da língua provê as regras para composição dos textos. Também o trabalho com a gramática não leva em consideração a variação da língua em uso nos diferentes contextos sociais. Uma das professoras disse que @s estudantes reclamam das regras da gramática, mas querem aulas em que se ensinem as regras. Isso evidencia que @s estudantes estão reproduzindo o comportamento das próprias professoras, que lhes transmitem regras, rótulos e nomenclaturas gramaticais em grande parte do tempo das aulas, sem reflexão sobre que pessoas e que textos utilizam essas regras. Vejam-se os seguintes fragmentos do relato de uma das professoras: Quanto ao ensino de língua, é um desafio porque os alunos dizem: ‘professora, eu já nasço falando’. Mas você deve diferenciar, deve saber quando deve falar de acordo com a gramática, quando não deve… Quando você pode incluir uma expressão, que antes não existia… Só que muitas vezes eles não entendem isso. Eles acham que a Língua Portuguesa é só regra, que eles têm que decorar, como se fosse matemática. Se você tenta fazer algo diferente de passar regra no quadro, eles não conseguem, assim… eles não querem pegar [...]. Igual o exercício de revisão que nós estávamos passando, né? Um exercício abordando todos os conteúdos… Eles não querem… Eles querem que você dê aquela aula ensinando regras. E eles reclamam das regras, só que eles só querem regras. […] Eles fazem essa distinção, de Língua Portuguesa, assim, do português mesmo gramática, e de quando a gente pede redação, é… produção de texto… Eles veem essa diferença. Eles falam: “ah, produção de texto não é português”. Eles têm essa mania de diferenciar aula de gramática e aula de textos. (Sabrina) (informação verbal). Neves (2006, p. 114) nos mostra que a sociedade está viciada em uma tradição de ensino de língua em que a sistematização das regras gramaticais, a exposição de seus conceitos, as definições, os exemplos e a realização mecânica de exercícios contribuem para o resgate do que é considerado linguagem culta ou padrão. No entanto, o resultado dessa prática é que, de fato, @s estudantes não veem sentido no estudo dessas regras e não sabem como aplicá-las em situações concretas de letramento, conforme os relatos das professoras que participaram desta pesquisa, visto que o ensino da gramática se reduz à exposição da nomenclatura da gramática tradicional. Os trechos a seguir mostram que a professora demonstra não saber o que fazer diante do ensino mecânico de gramática. Em sua fala, deixa transparecer que fatores sociais, como o vestibular, determinam que o ensino de gramática seja da forma como é realizado. Entretanto, ao mesmo tempo, ela tem preocupação com a imagem dos professores de língua que dão aulas de gramática tradicional, revelando que ela própria não vê sentido no ensino descontextualizado de regras gramaticais: Mas eles estão distantes! Você tá falando de sujeito e predicado e eles tão viajando num show que vai acontecer sábado! Numa festa! E aí? Fazer o quê? Você precisa passar o conteúdo […]. Nós saímos da faculdade com 31 esse intuito. Lá eu aprendi a passar o conteúdo! Mas eu chego aqui, eu encontro adolescente que tem mil problemas e aí? O que fazer? […] Porque a sociedade cobra o conteúdo. O vestibular cobra o menino saber e tirar dez, fechando a prova. E ai? Mas existe o lado humano. Existe aquela criança que não é uma máquina. E onde ficamos nós, profissionais, quanto a isso aí? (Esmeralda) (informação verbal) Neves (2006, p. 115-116) chama a atenção para o caráter ritual do ensino da gramática tradicional nas escolas, baseado na rotulação e na classificação das entidades gramaticais; na prévia definição das entidades como algo acabado, inequívoco e absoluto; na taxonomia de categorias alheias aos usos e às funções da língua na construção dos significados do discurso; nos limites da estrutura da oração; enfim, na falta de reflexão sobre o uso da linguagem e na falta de compreensão de que a heterogeneidade é constitutiva da linguagem, pois a língua é um sistema eminentemente variável. A falta da dimensão reflexiva sobre o ensino da gramática tradicional é visível no relato das professoras. Uma delas mencionou o trabalho da gramática com o texto para se referir à prática de análise sintática em fragmentos de texto, em que @s estudantes devem identificar, por exemplo, os sujeitos, os adjuntos adnominais e o predicado. Essa prática ignora o funcionamento da linguagem, o enquadramento dos textos escritos em gêneros, as configurações discursivas e linguísticas moldadas pelos propósitos dos diversos contextos sociais que os usos da escrita apresentam, em que a linguagem é um meio para a realização de atividades e de eventos (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999): Você chega na sala de aula, eu tô dando regras de gramática. Ele (@ estudante) precisa dessas regras, mas faça com que ele entenda isso… É difícil. Pra nós (professoras), é difícil. (Esmeralda) (informação verbal). […] Ás vezes, eu tô ensinando: nesse caso aqui, o verbo é intransitivo. Por exemplo: “Esse pincel está aqui”. Predominantemente, na maioria das vezes, o verbo “estar” fica instransitivo. Certo? Então, eles ficam: mas aí, toda vez… Eles querem criar regras. (Vanessa) (informação verbal). Outra dificuldade que eu vejo também é quando eles […] a gente vai trabalhar gramática com texto. Aí, geralmente você coloca um texto assim: vamos tirar os sujeitos do texto. Aí, eles falam: “professora, mas pra que você tá colocando texto? Coloca frase!”. Realmente, eu vejo assim: na frase, é mais fácil você separar sujeito e predicado do que no texto. Parece que eles têm preguiça […] de ler um texto todinho pra tá interpretando, pra tá analisando... E é muito mais fácil realmente a gente trabalhar com a frase, separar o sujeito e o predicado de uma frase, do que de um texto todo. Eles... parece que se perdem um pouco. (Marta) (informação verbal). 32 O excerto acima demonstra que o ensino de língua pautado na análise de frases e de orações recortadas de textos e de falas extraídos de seus contextos sociais de uso é sem propósito, usando os termos empregados por Neves (2006, p. 125), visto que “a gramática de uma língua em funcionamento não se faz de regras absolutas, com condições autônomas de aplicação” (NEVES, 2006, p. 128). Neves propõe que o ensino da gramática deve conduzir à reflexão sobre o funcionamento da linguagem e que estudar gramática significa o exercício da língua em uso, como em contextos socioculturais em que as pessoas leem e escrevem. Uma professora relatou que seus estudantes fazem distinção entre o que seja aula de Língua Portuguesa e aula de produção de texto. Os estudantes não percebem que a gramática da língua provê as regras para a produção de textos e que os sentidos são construídos e negociados nas interações sociais. Isso ocorre porque há um entendimento generalizado, baseado na perspectiva estruturalista, de que a gramática da língua é uma dimensão separada do contexto sociohistórico que determina como os textos são produzidos nas práticas sociais: Eles fazem essa distinção, de Língua Portuguesa, assim, do português… mesmo gramática, e de quando a gente pede a redação, é… produção de texto… eles veem essa diferença. Eles falam: “ah, produção de texto não é português”. Eles têm essa mania de diferenciar aula de gramática e aula de textos! (Sabrina) (informação verbal). A língua é um recurso de que nos valemos para construir os sentidos dos textos que produzimos, lemos e ouvimos. Quando falam, leem e escrevem, as pessoas produzem textos. De acordo com a abordagem sistêmico-funcional, o texto é definido como uma instância de língua que realiza algo em um contexto de situação, seja na forma escrita, seja na forma falada ou combinando múltiplas semioses (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 3-5). Entender o texto da perspectiva sistêmico-funcional implica relacioná-lo ao seu contexto de cultura e de situação e ver a linguagem como um sistema semiótico que é estruturado léxicogramaticalmente. O texto medeia a interação dos participantes – escritores e leitores – em um contexto de situação, encapsulado no próprio texto mediante uma relação sistemática entre o contexto social e a organização funcional da linguagem. As aulas observadas evidenciam que @s estudantes reagem mecanicamente quando são solicitados a identificarem os termos da oração. No contexto de situação dessas aulas, geralmente a professora propõe exercícios de gramática, em que @s estudantes devem apenas identificar a classificação de termos da oração. Trata-se de exercícios que foram passados para serem feitos em casa e, na aula, a professora os corrige. Essas aulas constituem, então, eventos de letramento que se fundamentam basicamente na descrição gramatical dos elementos constituintes da oração, o que é entendido pela sociedade como uma prática que contribui para a aprendizagem dos letramentos, embora os resultados escolares demonstrem o contrário. Isto é, @s estudantes têm bastante dificuldade para a leitura e para a produção de textos escritos porque não reconhecem que as estruturas léxico-gramaticais são instrumentos para expressar os significados funcionais de um texto e dos gêneros que realiza. 33 No exemplo a seguir, extraído de uma aula de Língua Portuguesa, a professora declara que @s estudantes sempre querem criar regras com base nos conteúdos gramaticais apresentados. Ao explicar o verbo intransitivo e o verbo de ligação, a professora focaliza apenas o aspecto formal sem reflexão sobre que significados o emprego dessas estruturas constroem. Agora, falando de aula de gramática, se é que pode falar assim, que não seja produção de texto, é… às vezes eu tô ensinando: “Nesse caso aqui, o verbo é intransitivo”. Por exemplo, “Esse pincel está aqui”. Predominantemente, na maioria das vezes, o verbo “estar” é o quê? Eles dizem: é verbo de ligação. Isso eles já entenderam bem. Aí... mas vamos ver um caso que não é? “Esse pincel está aqui”. Aqui é lugar. Então, “estar fica intransitivo. Certo?” Então, eles ficam: mas aí, toda vez… Aí, eles querem criar regras. “Toda vez que terminar com letra o vai ser isso.” Aí, na falta de regras… Quando a gente fala assim: “Não pode generalizar, depende do contexto, tal...”. Quando você fala isso, eles: “Então, toda vez que terminar na letra o vai ser o caso” tal.... Eles mesmos querem criar regras. (Marta) (informação verbal). As considerações da professora no trecho acima evidenciam uma visão de aprendizagem que desconsidera a intuição d@s alun@s sobre a gramática dos textos, quando ela diz que eles querem criar regras com base em generalizações que, segundo ela, não procedem. No seu discurso, a professora pratica as generalizações descontextualizadas, mas prega a contextualização das regras gramaticais. No trecho seguinte, a professora acredita que usar os temas do cotidiano que agradam @s estudantes é o caminho para que se interessem pelo descontextualizado estudo de conteúdos gramaticais. A escolha de temas triviais como instrumento para análise sintática tem constituído uma representação ideológica do uso da língua, porque há uma aparente busca de contextualização do estudo gramatical, embora prevaleça a manutenção das descrições gramaticais sem preocupação com os significados que as escolhas léxico-gramaticais produzem no discurso. O foco do estudo da língua permanece o mesmo: a análise sintática de frases dissociadas dos gêneros que as produziram ou que podem produzi-las. Mas, eu, vendo ontem, que eles tavam falando… eu acho que eles ficaram muito eufóricos por causa da festa sábado. Então, ontem eu tive que dar uma revisão, e o assunto era a festa. Eu aproveitei o assunto “a festa” e comecei a escrever as frases, assim, as coisas que eles falavam: “ah, professora, fulana ficou com ciclano”. Aí, eu colocava os dois lá… “E aí, qual que é o sujeito aqui e qual que é o predicado?” Aí, eles ficaram ligados. Eu aproveitei isso do dia a dia deles, como vocês estão falando aí, que eles estão mais interessados no que está acontecendo no dia a dia, pra trabalhar. Então, assim, eles falaram: “Não sei quem veio com a 34 mãe e com o pai…”. E eu fui pegando tudo isso e trabalhando frases do que tava acontecendo realmente, que eles tavam interessados em falar e trabalhando sujeito e predicado e tipos de sujeito. Pegando realmente o que tava acontecendo no dia a dia. Que eu querer brigar com eles para ensinar uma coisa e eles tavam querendo falar da festa, ia ficar difícil. Então eu aproveitei, dei a revisão, usando o que eles tavam falando. O que eles tinham vivenciado ali, o que eles queriam falar, que era bem interessante. (Marta) (informação verbal). Todo mundo quis contar uma fofoca. E, dessa fofoca, nós aprendemos alguma coisa. Talvez... eu creio que tenham aprendido alguma coisa, porque chamou mais a atenção. Não sei se a atenção era saber o que tinha acontecido na festa ou realmente ali, na hora a explicação. Mas eu vi que eles prestaram mais atenção. Por isso, se tornou interessante: era uma coisa que eles... eles estavam falando. Eles que estavam discutindo, e eu só entrei ali mesmo com a gramática, né? De tá mostrando o sujeito, o predicado, os tipos de sujeito… E ficou engraçado. A gente começou a rir, porque, às vezes, eu perguntava: “Quem é o sujeito aqui?”. “Ih, professora, era aquele sujeito. Aquele!” “Mas, quem é aquele sujeito?” Então, assim, ficou uma aula engraçada. Foi interessante. Então, eu acho que dá pra gente trabalhar o dia a dia. (Marta) (informação verbal). De acordo com a fala da professora Marta, uma boa aula é aquela em que @s estudantes prestam atenção ao que ela diz. Em outras palavras, para satisfazer o conceito que a professora tem do que seja uma boa aula de Língua Portuguesa, seus estudantes devem prestar toda atenção às suas explicações sobre o que é sujeito e predicado, responder aos exercícios em que lhes é exigido apenas identificar essas funções gramaticais e ainda ficarem muito felizes com isso. O vocabulário utilizado pela professora para se referir aos estudantes evidencia sua preocupação em agradá-los: “Eles ficaram muito eufóricos por causa da festa sábado”, “Aí, eles ficaram ligados”, “[...] que eles estão mais interessados no que está acontecendo no dia a dia”, “[...] e trabalhando frases do que tava acontecendo realmente, que eles tavam interessados em falar e trabalhando sujeito e predicado e tipos de sujeito”, “[...] pegando realmente o que tava acontecendo no dia a dia”. A professora posiciona-se como centro, em que o mais importante é @s estudantes seguirem a sua regência, como se ela estivesse dirigindo um espetáculo e, ao mesmo tempo, fosse a atriz principal, em que o estudo da língua é o que menos importa. Observe-se o emprego das palavras “só” e “mesmo”, no trecho a seguir, com o sentido de minimizar o valor do estudo da gramática: “era uma coisa que eles, eles estavam falando, eles que estavam discutindo, e eu só entrei ali mesmo com a gramática, né?” Essa situação deixa transparecer a contradição e o conflito por que passa a professora em sua busca por um ideal de aula de Língua Portuguesa interessante e “contextualizada”9, 9 O termo “contextualizada” foi empregado nos relatos das professoras para se referirem a um ensino da língua que faça sentido, principalmente para @s estudantes. 35 em que o estudo das estruturas linguísticas seja instrumento para as práticas de letramento desenvolvidas em sala de aula. No entanto, isso não acontece porque as atividades de escrita das aulas não se relacionam com as práticas sociais. @s estudantes têm consciência disso, por isso, não valorizam as atividades de identificação de termos na oração. Com suas atitudes, a professora demonstra ignorar esse fato e procura justificar-se e valorizar seu papel social como professora usando a linguagem d@s estudantes como matéria-prima para a análise sintática descontextualizada, abstraída dos sentidos construídos nos textos. Os professores de língua precisam conscientizar-se de que o centro das análises deve ser os gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais, pois eles constituem a instância social em que a língua concretiza as práticas sociais. O texto escrito é um dos elementos do discurso e, por isso, não pode constituir o foco isolado do trabalho com a língua. Os professores de língua precisam constantemente fazer reflexão sobre as próprias práticas de ensino de gramática associada aos letramentos. Precisam compreender que os textos têm função social e constituem as práticas sociais, as quais atendem a demandas particulares; que a gramática do texto está relacionada ao contexto de situação segundo o qual os textos se configuram em termos de gênero, de estrutura textual e gramatical. Parece que a ausência dessa dimensão reflexiva leva as professoras a se sentirem perdidas no ensino dos letramentos e, em razão disso, ficam preocupadas com a sua imagem profissional, apresentando comportamentos de autovalorização para sustentarem o seu poder na interação com @s estudantes. 4. Gêneros, textos e contextos Os gêneros não estão igualmente disponíveis e acessíveis a qualquer tempo e lugar porque as pessoas participam de práticas sociais específicas e não de todas. As práticas sociais articulam o discurso, as ações, as crenças, as atitudes e as histórias das pessoas nos eventos sociais que, por sua vez, são moldados pelas práticas sociais, as quais definem modos de agir. Por essa razão, é indicado que os professores do ensino fundamental, além de levarem para o espaço da sala de aula textos de gêneros que alcançam propósitos sociais diversos, focalizem a descrição do contexto de cultura e do contexto de situação dos textos que seus estudantes leem e escrevem para capacitarem-nos à leitura e à escrita dos textos que circulam nos diferentes espaços públicos e institucionais. Nesta pesquisa, a professora Marta (6ª série) desenvolveu algumas atividades de letramento em torno de textos, como carta de leitor, resenha crítica, notícia de jornal, poema e gêneros narrativos com base nas orientações fornecidas pelo livro didático, que apresenta as características estruturais dos gêneros. No entanto, nas atividades, não foram considerados o contexto cultural e o contexto de situação em que esses gêneros são criados ao solicitar que @s estudantes produzam esses textos. Analiso, em seguida, o modo como a professora Marta desenvolveu atividades de linguagem em torno da carta de leitor, porque ela apoiou-se unicamente no livro didático para analisar os outros textos mencionados em seu relato. Na unidade sobre carta de leitor, o livro didático apresenta algumas cartas de leitor extraídas de jornais e de revistas e, em seguida, há algumas perguntas que induzem @ estudante a perceber as características desse gênero: 36 a) A carta de leitor é um gênero textual que permite o diálogo dos leitores com o editor (a pessoa responsável pela revista ou pelo jornal) ou dos leitores entre si. Por meio dela, os leitores podem reclamar, solicitar, discutir, discordar, elogiar, etc. b) Entre as cartas lidas, duas fazem elogios e, ao mesmo tempo, pedidos. Quais são elas? c) E qual das cartas faz uma crítica à revista ou jornal? Que crítica é feita? d) Que leitor dialoga com outro leitor?10 A última pergunta propõe que @s estudantes se reúnam em grupo para fazerem a síntese sobre as características de uma carta de leitor com base nas respostas às outras questões. Logo a seguir, há duas propostas para a produção da carta de leitor. Na primeira proposta, é apresentada uma reportagem sobre o hábito de ver televisão. Ao final dessa apresentação, vem o comando para o exercício: Imagine que você tenha lido essa reportagem no jornal e queira se manifestar em relação a algo que lhe tenha chamado a atenção. Escreva então uma carta para o editor responsável pelo jornal ou à jornalista que assinou a matéria. Você pode, por exemplo, manifestar-se em relação ao tema, comentando-o, relatando experiências próprias, etc. E também em relação ao enfoque dado ao tema, elogiando ou criticando o tratamento dispensado ao assunto pelo jornal ou pela jornalista que assina a reportagem11. O texto é a expressão da linguagem em uso nas práticas sociais, da linguagem que é funcional (HALLIDAY; HASAN, 1991, por isso ocorre em dois contextos – o de situação e do de cultura. Ao apresentar exemplos de carta de leitor e mostrar as características da linguagem e da sua estrutura, o livro didático sugere uma relação entre o gênero e o contexto de situação desse gênero. Entretanto, a primeira proposta para criação de um texto simula o contexto de situação, porque @s estudantes precisam “imaginar” que leram a reportagem do jornal e recebem a orientação de que podem “manifestar-se em relação ao tema, comentando-o, relatando experiências próprias, etc.”, ou seja, eles podem fazer o que precisam fazer de fato para realizarem o gênero carta de leitor. O contexto de situação – que se refere ao que está acontecendo ou ao que aconteceu, à expressão de um ponto de vista e às semioses empregadas para a criação do texto – foi completamente desconsiderado. Portanto, ao propor a simulação 10 11 CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos. São Paulo: Atual, 6ª série, p. 96. CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos. São Paulo: Atual, 6ª série p. 96. 37 desse contexto para a criação de um texto, o livro didático conduz @s estudantes à produção de sequências de orações descontextualizadas de uma situação real de uso e não a um conjunto de significados unidos em torno de um propósito. A segunda proposta para a criação de uma carta de leitor desenha uma sequência de atividades significativas para que @s estudantes escrevam um texto autêntico: Reúnam-se com seus colegas de grupo e escolham uma revista ou um jornal que queiram ler. Pode ser um jornal do bairro, da cidade ou do Estado; uma revista que trate de música, de esportes, de cinema, etc. Escolham nesse veículo de comunicação uma matéria que seja interessante e que, segundo o ponto de vista de vocês, mereça comentários, quer positivos, quer negativos, ou ainda as duas coisas.Escrevam então uma carta à revista ou jornal, comentando a matéria.12 Para criar textos que realizam gêneros, é essencial que @s estudantes compreendam o contexto social e cultural dos grupos sociais que usam a linguagem para agir e para interagir no mundo. Valer-se das variáveis do contexto de situação – campo, relações e modo – é um recurso útil para a descrição da variedade de linguagem que ocorre no contexto de situação que ancora a criação de qualquer texto. Explorando o campo de uma situação, professores e estudantes podem identificar palavras e estruturas para a construção de significados sobre a experiência desse contexto; explorando as relações sociais, podem identificar palavras e estruturas que constroem as relações interpessoais e a expressão dos pontos de vista e assim construir significados interpessoais; explorando o modo do discurso, podem identificar palavras e estruturas que organizam os significados experienciais e interpessoais em um texto oral, escrito ou visual organizado quanto ao fluxo das informações que veicula na elaboração dos significados textuais e adequado ao contexto de situação e ao contexto de cultura. No estudo sobre a notícia, a professora basicamente seguiu as orientações do livro didático, que apresenta os elementos da estrutura do gênero e as características da linguagem, induzindo @s estudantes a identificá-los, estimulados pelas perguntas de um questionário breve. Na última questão, @s estudantes são solicitados a sintetizarem o que aprenderam sobre a notícia. Na sequência, o livro propõe a elaboração de uma notícia com base na leitura de jornais e de revistas e na conversa com pais, com professores, com colegas e com vizinhos sobre o assunto escolhido; e, depois, fornece orientações sobre as características da linguagem que @s estudantes devem usar. A proposta do livro didático ignora as práticas sociais que envolvem a produção de uma notícia. No dia a dia, os jornalistas vão atrás dos fatos no momento em que acontecem e das informações relativas ao tópico da notícia, vivenciando-os antes de redigirem o texto que será publicado em algum jornal ou revista. Entretanto, @s estudantes devem criar textos tendo 12 38 CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e projetos. São Paulo: Atual, 6ª série, 2011, p. 96. como referencial apenas a estrutura do gênero, o modo de utilizar a linguagem e a situação na qual aquele texto ocorre. A dimensão do contexto de situação, que remete às práticas sociais, para a elaboração do texto é obscurecida: Ao escrever sua notícia, siga estas instruções: a) Faça um planejamento. Leia jornais e revistas, depois, converse com seus pais, professores, colegas e vizinhos sobre o assunto escolhido, procurando obter o maior número possível de informações. b) Tenha em mente o leitor de seu texto: escreva com simplicidade, na ordem direta (sujeito, verbo e complementos); sempre que possível, empregue uma palavra em vez de duas ou mais; use frases curtas, com duas ou três linhas no máximo, e parágrafos com poucas frases; empregue o vocabulário comum; evite palavras difíceis, termos coloquiais, gírias, superlativos e adjetivos desnecessários; procure responder às perguntas que um leitor gostaria de fazer: o quê?, quem?, quando?, onde?, como?, por quê?. As pessoas produzem textos para fazerem coisas no processo da construção dos significados nos eventos sociais. Assim sendo, uma notícia é um texto cujos contextos de cultura e de situação requerem que o jornalista vivencie os fatos antes de relatá-los, além de obter informações com as pessoas que participaram do acontecimento para redigi-la em linguagem apropriada. Em outras palavras, é preciso reunir os elementos do contexto de cultura e de situação para criar textos atrelados a situações reais. A unidade do livro didático sobre a caracterização e a produção de uma notícia ignora a perspectiva segundo a qual é representada a realidade retratada no texto. Os gêneros são modos de agir e de interagir discursivamente, nos quais os discursos constituem modos de representação do mundo material, social e mental. Como elementos das ordens de discurso nas práticas sociais, os gêneros figuram nos textos em termos de ação, de representação e de identificação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 28). No gênero notícia, além da análise dos contextos de cultura e de situação e da estrutura do gênero, há que se examinar de qual perspectiva a realidade é representada e de que maneira diferentes discursos estruturam o mundo. Olhar os textos da perspectiva da sua representação implica verificar que elementos dos eventos sociais estão incluídos ou excluídos, em qual extensão e qual a proeminência dos elementos incluídos. Esses elementos referem-se às atividades; às pessoas e suas crenças, seus desejos, seus valores, suas histórias, suas relações institucionais e interpessoais; aos meios, ao tempo e ao espaço, às línguas e a outros tipos de semioses (FAIRCLOUGH, 2003, p. 136). Os textos também representam as identidades de seus autores por meio de processos textuais de identificação, como a modalidade e a avaliação, isto é, o modo como o falante faz julgamentos sobre as probabilidades e as obrigações envolvidas naquilo que está dizendo. No estudo do gênero notícia, cabe verificar como a modalidade sinaliza a factualidade, os graus 39 de certeza ou de dúvida, de generalização, de possibilidade, de necessidade, de permissão e de obrigação. Como os repórteres expressam sua avaliação, seus valores e julgamentos em relação às situações narradas, às pessoas e às coisas apresentadas como desejáveis e indesejáveis, boas e ruins, nas quais acreditamos ou não (FAIRCLOUGH, 2003, p. 165-173). As propostas do livro didático para a elaboração de uma carta de leitor não levam em consideração a perspectiva interpessoal, que é típica na produção textual desse gênero. Observemos as instruções que o livro dá aos estudantes: Sigam essas instruções: a) Anotem e discutam os aspectos da matéria merecedores de comentários, bem como os argumentos que vão fundamentar o ponto de vista de vocês – por que gostaram ou por que não gostaram, etc. b) Redijam o texto atentos à estrutura desse tipo de carta. Deixem claro, desde o início, qual é a data do jornal ou o número da revista em que foi publicada a matéria sobre a qual estão opinando. Identifiquem a matéria pelo título e/ ou pelo nome do jornalista que a assina. c) Apresentem suas opiniões de forma firme, mas educada, sempre fundamentando com bons argumentos. Se estiverem fazendo uma crítica negativa não deixem de elogiar os pontos positivos e vice-versa. d) Tenham em vista o leitor de sua carta, que será primeiramente o jornalista ou o editor e, se ela for publicada, o leitor do jornal ou revista – criança, jovem ou adulto. Procure adequar a linguagem ao perfil desses leitores. O item c) das instruções contraria o contexto de cultura e de situação na criação de textos do gênero carta de leitor. As pessoas que enviam essas cartas a jornais e a revistas fazem críticas a alguma matéria publicada nas últimas edições e posicionam-se a favor ou contra, apresentando sua avaliação, seus julgamentos, seus valores e suas crenças sobre reportagens ou notícias. O item d) parece-me inadequado, pois, como @ estudante de 6.ª Série, cujo modo de usar a linguagem é próprio da sua idade, pode utilizar uma linguagem que não pratica, uma vez que não vivencia as práticas sociais que demandam um gênero direcionado a adultos? Isso, porém, não significa que @s estudantes não sejam capazes de refletir sobre essa linguagem e mesmo de exercitarem o seu uso. Tudo isso ultrapassa o simples reconhecimento dos elementos constituintes do gênero, que é relacionado à prática de letramento em foco nas aulas. A prática de textos nas aulas de Língua Portuguesa constitui uma representação de eventos sociais que passam a ser recontextualizados quando @s estudantes simulam a prática de gêneros em situações cujas práticas serão imaginadas. A recontextualização envolve diferenças no modo como um evento social é representado em diferentes redes de práticas sociais e diferentes gêneros, afetando a representação abstrata e concreta dos eventos sociais, o modo como são avaliados, explicados, legitimados e em que ordem são apresentados. 40 Considerações finais Os gêneros são modos abstratos, reconhecidos socialmente, de usar a língua. Baseiamse na suposição de que os aspectos linguísticos de um grupo similar de textos dependem do contexto social em que foram criados e são usados, que aqueles aspectos podem ser descritos de modo a relacionar um texto a outros parecidos e às escolhas e restrições dos seus produtores. A língua é constitutiva das realidades sociais, uma vez que é por meio do uso recorrente de formas convencionais que os indivíduos desenvolvem relações interpessoais, participam de grupos sociais e realizam coisas. As relações interpessoais estão no centro do uso da língua, significando que cada texto bem-sucedido revelará a consciência do escritor sobre o contexto sócio-histórico da sua criação e os leitores que fazem parte desse contexto. Os gêneros, portanto, são os efeitos da ação dos agentes sociais individuais, que agem tanto nos limites da sua história quanto das restrições de contextos particulares, e com um conhecimento dos tipos genéricos existentes (KRESS, 1989, p. 10). De acordo com Hyland (2003), o ensino de língua com base nos gêneros repousa na ideia de que os letramentos são recursos da comunidade que se realizam nas relações sociais, são situados e múltiplos e posicionam-se em relação às instituições sociais e às relações de poder que os sustentam. Dito de outra forma, a escrita – usada de muitos modos nos diversos contextos sociais – e os gêneros estão associados a usos que regulam o acesso das pessoas a grupos sociais que possuem prestígio e influência. Essa questão do acesso e da produção de textos valorizados socialmente é central às noções de poder e de controle na sociedade moderna. Isso implica que professoras/es de Língua Portuguesa precisam refletir sobre os gêneros que devem ser ensinados porque o ensino de determinados gêneros é um meio de levar @s estudantes a obterem acesso aos modos de comunicação que são investidos de capital cultural13 nas comunidades profissionais, acadêmicas e sociais. A escolha estratégica dos gêneros levados para as aulas pode instrumentalizar @s estudantes para que participem de novos domínios sociodiscursivos. 13 Em Os três estados do capital cultural, Pierre Bourdieu trata desse conceito: "A noção de capital cultural impôsse, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais" (BOURDIEU, 1998, p. 73). Em outras palavras, "[...] na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar" (BOURDIEU, 1998, p. 42). Isto é, a posse de certo capital cultural e de um ethos familiar predisposto a valorizar e a incentivar o conhecimento escolar seriam importantes elementos para se alcançar um sucesso acadêmico. Neste sentido, crianças mais abastadas e com maior acesso aos bens culturais seriam aquelas que teriam as maiores chances de obter um bom desempenho escolar (SETTON, 2005). 41 Na escola, as práticas de letramento baseadas nos gêneros podem ser instrumentos para a construção coletiva do conhecimento. Quanto mais for possível definir as dimensões ensináveis dos gêneros, melhor eles serão apreendidos pel@s estudantes. O ensino de Língua Portuguesa nas turmas de ensino fundamental que participaram desta pesquisa baseou-se em um número bastante reduzido de gêneros presentes nas práticas de letramento das aulas, nas quais textos foram lidos. Muitos exercícios gramaticais foram feitos de forma descontextualizada e, portanto, sem sentido. Isso significa que, no contexto cultural das aulas observadas, professoras e estudantes pouco leram e escreveram e, quando o fizeram, as atividades de letramento não tiveram um propósito social. Os textos foram trazidos para as aulas para transformarem-se apenas em objetos de leitura, em realização de exercícios gramaticais e em interpretação de texto. A fim de mudar sua prática docente para o ensino significativo de letramentos, as professoras precisam compreender que os textos concretizam gêneros, que fazem parte de atividades sociais concretas. Os gêneros medeiam diferentes padrões de interação e têm determinado formato em razão do papel que exercem nas instituições sociais. Nesse sentido, é recomendado que @s professoras/es de Língua Portuguesa no ensino fundamental façam reflexão sobre que tipos de textos e de gêneros seus estudantes estão lendo e escrevendo e quais os seus propósitos sociais. Quando se apropriam dos gêneros, as pessoas desenvolvem os tipos de conhecimento especializado (BAZERMAN, 2005, p.67) que as habilitam a participarem ativamente da sociedade. Analisar criticamente os diversos letramentos, fundamentando-se na perspectiva social do letramento (STREET 1995; BARTON 1994; BARTON; HAMILTON 1998; BARTON; IVANIC, 1991; BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000), capacita @s estudantes a identificarem os sentidos além do texto, bem como os interesses subjacentes aos significados. Entender os letramentos como elementos das práticas sociais na análise dos gêneros implica verificar que papel o letramento desempenha nas práticas institucionais e as quais propósitos está servindo. O letramento constitui práticas que se impõem pelo uso dos gêneros do poder, cujo domínio possibilita o acesso das pessoas a conhecimentos especializados e a serviços, permitindo que elas se relacionem com instituições que nem sempre lhes são familiares. A abordagem dos gêneros como propósito social (EGGINS; MARTIN, 2000; EGGINS, 2004), associada à perspectiva sistêmico-funcional para a análise de textos (HALLIDAY; HASAN, 1991; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), propicia a professores e a estudantes a consciência de que as estruturas linguísticas dos textos relacionam-se ao contexto cultural e social em que foram criados e em que são usados. Essas abordagens teóricas enfatizam o desenvolvimento do conhecimento sobre o controle exercido por textos que constituem as práticas de letramento dominantes nas diferentes instituições (STREET, 1984, 1995). Entretanto, a transmissão descontextualizada de tipos textuais e de seus aspectos gramaticais não conduz a uma avaliação crítica das práticas de letramento e dos gêneros a elas associados no contexto das aulas de Língua Portuguesa. Ao contrário, pode estar a serviço da reprodução não crítica das práticas de letramento autônomo, criticadas por Street (1995). As pedagogias baseadas nos gêneros (HYLAND, 2003, p. 25) supõem que o domínio de tipos textuais “poderosos” pode levar @s estudantes ao desenvolvimento intelectual e cognitivo, à realização profissional, ao acesso aos bens culturais da humanidade e à mobilidade social. 42 Nessa linha de raciocínio, o modelo freireano teoriza o “empoderamento” como abertura aos espaços sociais para as pessoas marginalizadas, a fim de que articulem seus interesses nas instituições baseadas no controle da tecnologia dos textos escritos (FREIRE 1983). De modo geral, os professores que focalizam as regras e a correção gramatical desejam que seus estudantes aprendam a usar a língua culta. Essa forma de olhar para a linguagem obscurece a diversidade do uso da linguagem, além de considerar todos os outros usos como não padrão. Em vez de conceber a gramática em termos de regras que prescrevem o modo como a linguagem é estruturada, a abordagem sistêmico-funcional pensa a gramática como um modo de descrever padrões da linguagem e as funções que esses padrões desempenham, estudando a gramática de textos nos contextos de cultura e de situação que os demandam. Esta pesquisa buscou conhecer como os gêneros relacionam-se às práticas de letramento nas aulas de Língua Portuguesa e ao ensino da gramática. As entrevistas cumpriram a função de criar oportunidade para as professoras falarem de suas práticas docentes e de suas inquietações. As observações das aulas foram significativas para que eu pudesse vivenciar a experiência de várias aulas de Língua Portuguesa, de 5ª a 8ª série. As informações obtidas por meio desses métodos de coleta de dados permitiram-me compreender que ensinar Língua Portuguesa no ensino fundamental ainda é um desafio, porque as professoras não dispõem de recursos teóricos e metodológicos que lhes forneçam sustentação para o ensino dos letramentos. Uma pedagogia de ensino de letramentos demandados por diferentes práticas sociais, associada ao uso de gêneros, instrumentaliza discursiva e gramaticalmente professores e estudantes para que reconheçam a diversidade do contexto sócio-histórico que envolve os textos, conforme as práticas sociais que os demandam. Os professores de Língua Portuguesa precisam reconhecer as convenções dos diferentes gêneros sem, no entanto, serem prescritivos e normativos. Isso pode ocorrer quando apresentam aos seus alunos listas sobre as propriedades dos diferentes gêneros. É importante compreenderem que modos particulares de usar a linguagem são modos de estruturar o conhecimento e as relações interpessoais. Quando as pessoas usam a linguagem, estão se valendo dos recursos de uma língua – o português brasileiro, por exemplo – e fazem isso sempre por meio dos gêneros, que são cultural e socialmente construídos. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. M.E.G. Pereira. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000. BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language. Oxford, Cambridge: Blackwell Publishers, 1994. BARTON, D. ; HAMILTON, M. Local literacies. Londres and Nova Iorque: Routledge, 1998. BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Orgs.). Situated literacies: reading and writing in context. Londres, New York: Routledge, 2000. 43 BARTON, D. & IVANIC, R. Writing in the community. Newbury Park, Londres, Nova Delhi: Sage Publications, 1991. BARTON, D; HAMILTON, M. Local literacies. Londres and Nova Iorque: Routledge, 1998. BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. 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O referencial teórico é o da Semiótica Social (HALLIDAY, 1978; HODGE; KRESS, 1988), que concebe o uso de cada modo semiótico como determinado pelo contexto, produzindo, assim, significados socialmente e culturalmente situados. A metodologia é baseada nos sistemas paramétricos da tipografia (VAN LEEUWEN, 2006) e das cores (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002; VAN LEEUWEN, 2011). Os resultados sugerem a convergência de propósitos comunicativos contraditórios no Diário de Notícias, a ênfase ao consumo e também ao monitoramento das instituições sociais no Correio da Manhã e o valor atribuído pelo Público à cobertura mais crítica e diversificada das notícias. Palavras-chave: Semiótica Social. Tipografia. Cores. Design. Imprensa. Introdução A nova ordem social estabelecida pelo progresso do consumo e das tecnologias multimídia tem demandado a criação de novos tipos de design, de layouts e de variedades nos usos das cores e das formas tipográficas no âmbito da comunicação social. Contudo, é preciso também desenvolver e tornar acessíveis conceitos, técnicas e convenções, para que possamos compreender e empregar adequadamente esses novos tipos de recursos e de possibilidades de trabalho comunicativo. 1 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa. Investigadora do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL) e membro da Sociedade Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM). É autora de capítulos de livros e de revistas acadêmicas com publicações centradas nos estudos em semiótica social, em multimodalidade e em literacia visual aplicados aos discursos e às representações da mídia. E-mail: flavianefc@ hotmail.com. 47 Tendo em conta essa demanda, este artigo visa a contribuir para as pesquisas sobre cores e tipografia à luz do quadro teórico-metodológico da Semiótica Social por meio de um estudo de caso feito sobre o layout da primeira página das edições de 23 de fevereiro de 2008 dos jornais portugueses Diário de Notícias2, Correio da Manhã3 e Público4, considerados como de maior referência e/ou mais vendidos no país.5 Semiótica social das cores e tipografia: enquadre teóricometodológico O trabalho de Hodge e Kress (1988), intitulado Social semiotics, marca o início dos estudos em Semiótica Social aplicados a textos multimodais ao considerar todos os demais modos semióticos que acompanham o modo verbal. Com base nas críticas lançadas à semiótica tradicional, quais sejam, a omissão dos usos e das funções sociais dos sistemas semióticos e a falta de uma prática analítica convincente que auxilie na descrição e na interpretação das estruturas e dos processos por meio dos quais os significados sociais são construídos, Hodge e Kress (1988) propõem uma nova abordagem, fundamentada pela concepção de Halliday (1978) de linguagem como Semiótica Social, cujo foco está centrado nas funções sociais da linguagem. Ao ressaltar o caráter multifuncional da linguagem, Halliday (1978) identifica três tipos amplos de significado, ou melhor, três metafunções principais, sempre realizadas simultaneamente em toda forma de comunicação: a metafunção ideacional (referente ao tipo de atividade em curso ou à experiência representada acerca da realidade), a metafunção interpessoal (concernente com o tipo de relação estabelecida entre os participantes) e a metafunção textual (relativa ao modo com que o texto organiza, de forma coesa e coerente, as mensagens). Dessa perspectiva, Hodge e Kress (1988, p. viii) estabelecem duas premissas básicas. Uma delas diz respeito à consideração da dimensão social para entender a estrutura e o processo da linguagem. A outra premissa reside no fato de que nenhum modo semiótico pode ser estudado isoladamente, uma vez que o significado é composto pela integração dos vários modos semióticos em uso em um determinado tipo de texto ou evento social (visual, sonoro, gestual, etc.) para além da escrita. Este artigo centrar-se-á nos estudos sobre os modos semióticos relativos às cores e à tipografia, já referidos inicialmente, e cujas categorias serão descritas a seguir. 2 3 4 5 48 De periodicidade diária, o Diário de Notícias foi fundado em 1864, com uma circulação anual média de aproximadamente 30.658 exemplares. Em termos de leitores abarca, predominante, o público masculino, compreendendo uma faixa etária entre 21 a 29 anos, cuja classe social é a média-média. Fonte: Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010. Fundado em 1979, o Correio da Manhã tem periodicidade diária, com uma circulação média anual de aproximadamente 129 mil exemplares. Em se tratando do perfil dos leitores, prevalece o público masculino, abrangendo uma faixa etária entre 25 a 34 anos, cuja classe social é a média-média e média-baixa. Fonte: Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010. A primeira edição do Público estreou nas bancas em 1990. O jornal tem periodicidade diária, com uma circulação média anual de aproximadamente 34.239 exemplares. Prevalecem os leitores de sexo masculino, de idade compreendida entre 25 a 34 anos, de classe social média-alta e média-média. Fonte: Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010. Este artigo consiste em um recorte da tese de doutorado de Carvalho (2012). A abordagem sociossemiótica das cores Em sua obra The language of colour, van Leeuwen (2011, p.1) define a Semiótica Social da cor como uma abordagem do modo como a sociedade utiliza a cor com propósitos de expressão e de comunicação – mais especificamente, sobre o modo como a manipulação de pigmentações e escalas de cores são usadas a fim de expressar sentimentos, comunicar ideias e promover a interação social. A forma e o significado das cores devem levar em conta, segundo van Leeuwen (2011), as características materiais e perceptíveis das cores, bem como seu esquema, interpretados com base em seus respectivos significados potenciais e no contexto em que são configurados. Com efeito, o termo significado potencial, criado por Halliday (1978), refere-se aos potenciais usos de um objeto, com base nas suas características perceptíveis, que têm se tornado parte do conhecimento de uma determinada cultura. Recursos semióticos como a cor podem, portanto, ter um significado potencial teórico composto por todos os seus usos anteriores e um significado potencial real constituído por todos os usos no passado e no presente que são então conhecidos e considerados relevantes pelos usuários de tais recursos em um contexto específico. Esse conceito também abrange outros usos, ainda não descobertos e que, no futuro, poderão ser percebidos em função das novas necessidades e interesses criados em contextos que ainda não vieram à tona (VAN LEEUWEN, 2011, p. 59) – o que cria condições para que haja mudança e/ou inovação semiótica. As características das cores são classificadas por van Leeuwen (2011) como paramétricas, isto é, um sistema que articula o significado com as características materiais do significante. Do mesmo modo, o significado potencial das cores e dos esquemas de cores baseia-se em suas características materiais. Nesses termos, a cor opera como um recurso semiótico que, assim como os outros modos, é metafuncional em seus usos na produção culturalmente localizada dos signos (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002, p. 343). A cor pode funcionar de maneira ideacional ao ser usada para denotar indivíduos, lugares e coisas específicas em classes e em ideias mais gerais sobre o mundo. As cores das bandeiras, dos uniformes, dos mapas e dos logotipos de marcas, por exemplo, distinguem e demarcam suas respectivas identidades. A cor também pode ser utilizada para transmitir significados interpessoais, realizando atos de cor e, assim, fazendo coisas para si ou para os outros, tais como impressionar ou intimidar o espectador com um endereçamento de poder, alertar contra perigos pelas pinturas em tonalidade laranja, ou mesmo relaxar indivíduos hostis e agressivos por meio do uso do rosa em ambientes fechados (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002, p. 348). A cor frequentemente desempenha a função textual ao promover coesão, criando unidade e coerência entre os elementos, bem como ao realizar a coordenação de cores, ou, em menor escala, diferenciando elementos entre si. 49 Nesses termos, as análises levam em conta as categorias formuladas por Kress e van Leeuwen (2002) e por van Leeuwen (2011), nomeadamentebrilho, saturação, pureza, modulação, diferenciação e temperatura6, sistematizadas abaixo pela Figura 1: Figura 1 – Sistema paramétrico das cores, adaptado de van Leeuwen (2011). A escala de brilho manifesta-se em um continuum que abrange desde a luminosidade máxima (branco) até a luminosidade mínima (preto). A escala de saturação realiza-se por meio de um continuum que engloba desde a intensidade máxima do sentimento ou da emoção proporcionada pela concentração da cor (saturação máxima) até a sua diluição máxima, em que sentimentos e emoções são neutralizados (saturação mínima). A escala de pureza configurase em um continuum que se estende desde a pureza máxima trazida pelas cores primárias até o hibridismo máximo. A escala de modulação desenvolve-se através de um continuum que compreende desde as cores totalmente moduladas (modulação máxima) e com ricas texturas até as cores planas e homogêneas (modulação mínima). A escala de diferenciação manifesta-se por meio de um continuum que abrange desde o uso da monocromia até o uso maximamente variado da paleta de cores, isto é, a policromia. A escala de temperatura, por seu turno, realizase em uma escala que compreende desde o azul (cor fria) até o vermelho (cor quente). Além das cores, as formas e os estilos tipográficos são apontados por van Leeuwen (2006) como uma importante fonte de significados potenciais. Isto ficará evidenciado na seção seguinte. A abordagem sociossemiótica da tipografia Segundo Graddol (1997, p.80), o design tipográfico deve necessariamente estar em consonância com o tipo de propósito comunicativo presente em cada fragmento textual. Sob essa ótica, a tipografia e as palavras tendem a influenciar o posicionamento do leitor de diferentes formas. Por esta razão, conhecer a história e a estrutura dos principais grupos de letras é de fundamental relevância, a fim de que se possa explorar adequadamente o significado potencial dos diferentes conjuntos tipográficos disponíveis aos designers e aos produtores de texto. 6 50 Minha tradução de brightness, saturation, purity, modulation, differentiation, temperature, respectivamente. Ressalto que ainda não foi estabelecido um consenso no âmbito acadêmico para a tradução em português dos referidos termos, ficando, neste caso, sob a minha responsabilidade. Em geral, a tipografia moderna tem realizado a seguinte distinção: de um lado, aspectos tradicionais modelados pela impressão clássica romana, caracterizada por suas linhas decorativas ou serifas; de outro, a impressão simples, geométrica e sem serifas, típica da era industrial. Enquanto a primeira modalidade tipográfica baseia-se nos modelos de escrita manual, ensejando valores associados à cultura, à história e à agência humana, a segunda modalidade encontra-se associada à sociedade industrial, buscando produzir variedades tipográficas utilitárias e adequadas a textos de informação impessoais e objetivos, como cabeçalhos, títulos e epígrafes (GRADDOL, 1997). Para além das formas das letras, a tipografia integra-se a outros significados semióticos de expressão a fim de cumprir a tarefa da comunicação. Em decorrência disso, van Leeuwen (2006) assinala que os significados construídos pela tipografia, assim como pela cor, podem ser ideacionais, interpessoais ou textuais. A tipografia pode realizar a função ideacional ao representar ideias, ações e qualidades, sobretudo, significados concernentes à identidade, criando um determinado perfil ou determinada personalidade para o seu usuário. No que tange aos significados interpessoais, a tipografia pode permitir ao indivíduo estabelecer interações e expressar atitudes em relação ao que está sendo representado, seja por demandas explícitas, seja pelo mecanismo da persuasão. A tipografia pode, ainda, realizar significados textuais, demarcando elementos ou unidades de um texto e expressando o grau de similaridade ou de diferença entre as partes informacionais dos textos. Em Towards a Semiotics of Typography, van Leeuwen (2006) apresenta uma primeira tentativa de identificar os aspectos distintivos das formas tipográficas que, uma vez combinadas a outras características, tais como cores, textura, tridimensionalidade e movimento e utilizadas em um contexto específico, podem realizar uma série de significados potenciais, configurados pelas seguintes categorias: peso, expansão, inclinação, curvatura, conectividade, orientação e regularidade7. O peso corresponde ao grau de negrito empregado na letra. A expansão está relacionada com a experiência de espaço entre os tipos gráficos. A inclinação refere-se à diferença entre a tipografia cursiva e a tipografia ereta e, em alguns casos, com a inclinação das letras para a direita ou para a esquerda. A curvatura está relacionada com a ênfase à angularidade ou à curvatura das formas das letras. A conectividade refere-se ao grau em que as formas das letras encontram-se conectadas ou desconectadas umas às outras. A orientação concerne à direção dos tipos gráficos, que pode ter uma dimensão horizontal precisamente por serem achatados; ou alargados, em direção vertical. A regularidade, por fim, está relacionada com os contrastes entre tipos gráficos regulares e irregulares. A Figura 2 traz a sistematização dessas categorias: 7 Minha tradução de weight, expansion, slope, curvature, connectivity, orientation e regularity, respectivamente. Como ainda não foi estabelecido um consenso no âmbito acadêmico para a tradução em português dos referidos termos, a responsabilidade fica, neste caso, a cargo meu. 51 Figura 2 – Sistema sociossemiótico das formas das letras, adaptado de van Leeuwen (2006). A seção seguinte ilustra a aplicação da grelha aqui apresentada por meio de um estudo de caso feito do layout da primeira página dos jornais portugueses referidos na introdução do presente trabalho. Os significados sociossemióticos das cores na primeira página dos jornais Diário de Notícias, Correio da Manhã e Público Diário de Notícias As análises da primeira página da edição do Diário de Notícias de 23/2/08, baseadas no sistema sociossemiótico das cores, são apresentadas a seguir: Figura 3 – O sistema de cores no Diário de Notícias de 23/2/2008. 52 De modo geral, a primeira página do Diário de Notícias pode ser caracterizada pela presença de um grau considerável de diferenciação, haja vista a pluralidade de cores das fotografias. Ademais, o topo da página parece receber elevado brilho em relação aos demais setores da capa do jornal devido à intensidade da luminosidade verificada nesse domínio em função do emprego das cores quentes amarelo e vermelho. Este alto grau de brilho evocado pela presença dessas fortes tonalidades acaba por suscitar emotividade e envolvimento, além de direcionar a atenção do leitor para a grande reportagem e para a promoção apresentadas pelo jornal. A tonalidade expressiva e estimulante do vermelho é frequentemente destinada às ações do governo (“Governo divulga os cursos do desemprego”), bem como à voz do jornal associada a tais chamadas. Nesta chamada, a voz do jornal “Lista dos 43 diplomas do ensino superior com pior saída profissional no País” aparece em vermelho, conferindo, assim, destaque, saliência e atenção ao referido relato, em geral associado às chamadas de cariz polêmico concernentes a determinados feitos do governo. Cumpre ainda destacar a chamada referente à revista Notícias Sábado [NS’], sobreposta a um fundo de tonalidade alaranjada. Em função das propriedades estimulantes dessa cor de temperatura quente, as representações da revista e da promoção acabam por despertar positivamente o interesse do leitor, sugerindo originalidade, conforto e prazer (HELLER, 2007). Em contrapartida, nota-se também o emprego da cor branca na chamada referente à revista, conferindo-lhe equilíbrio e suavidade, haja vista seus efeitos de pureza, de leveza e de neutralização. O mesmo efeito também pode ser observado na promoção “DVD Grátis”, em que o branco age no sentido de atenuar a força e a saliência provocadas pelas cores vermelha e amarela, de alta temperatura. Em se tratando do peso visual da tipografia gótica empregada no logotipo do jornal, o uso do branco parece, em termos positivos, transmitir a sensação de leveza, de equilíbrio e de harmonia. Entretanto, em termos negativos, pode vir a sugerir certo elitismo e distanciamento. No que diz respeito à escala de temperatura, observa-se a aplicação contrastiva da tonalidade quente vermelha e da tonalidade fria azul, bem como da cor quente laranja e da cor neutra branca, sugerindo, assim, certo equilíbrio dinâmico. Dessas cores são engendrados pontos de tensão e de relaxamento na página. Desta maneira, enquanto o vermelho e o laranja encontram-se associados ao calor, à energia, à saliência e ao primeiro plano, o azul e o branco correspondem ao frio, à calma, à distância e ao segundo plano. O contínuo quente-frio pode estar associado, ainda, aos contrastes sedativo/estimulante, aéreo/terrestre, longe/próximo, leve/pesado (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002). Esse equilíbrio dinâmico também fica sugerido na intercalação entre os títulos de chamadas configurados por meio da cor preta e dos títulos de cor vermelha. No que tange à pureza, pode-se observar uma opção, por parte do jornal, que oscila entre a adoção de cores puras e híbridas. Por um lado, o periódico recorre às cores puras para a sua confecção habitual, nomeadamente o vermelho, o azul e o amarelo – o que, em termos ideacionais, codifica os significados associados ao ideal de simplicidade e de organização da sociedade. Por outro lado, as cores laranja e rosa, classificadas como híbridas, tendem a figurar nas chamadas da revista Notícias Sábado e na publicidade do Banco Nacional Português [BPN], respectivamente. Estas são associadas às ideologias da contemporaneidade, reproduzindo uma realidade social dominada por mudanças, por incertezas e pela presença cada vez mais forte do consumismo. 53 Ademais, nota-se o predomínio da modulação nas imagens das chamadas da página. Ao passo que as chamadas relativas à grande reportagem, frequentemente associadas à problematização de questões sociais, apresentam baixa modalidade naturalística8, pois prevalece a saturação de cores e de sombras nas imagens, ou cenários de fundo sutilmente desfocado – muitas vezes não correspondendo, portanto, à realidade –, possivelmente no sentido de despertar os sentidos do leitor, as chamadas de destaque, geralmente de âmbito internacional, são mostradas com alta modalidade naturalística, haja vista a minúcia de detalhes na representação dos participantes e do cenário, em que primeiro e segundo planos figuram bem articulados e precisamente focalizados, construindo, assim, verdades mais perceptuais e realísticas aos leitores. Correio da Manhã A primeira página da edição do Correio da Manhã de 23/2/2008, analisada com base no sistema sociossemiótico das cores, é apresentada abaixo: Figura 4 – O sistema de cores no Correio da Manhã de 23/2/2008. Em linhas gerais, a primeira página do Correio da Manhã mostra-se dotada de um grau elevado de brilho, em decorrência dos jogos de luz configurados através da intensidade das cores branca, alaranjada e vermelha, em contraste com os excessos de negrito empregado nas fontes dos títulos das chamadas apresentadas. Para além disso, a primeira página do jornal tende a representar os acontecimentos de modo bastante saliente e com saturação de cores, acabando por 8 54 No padrão naturalístico, a modalidade é definida pelo grau de congruência entre a representação visual de um objeto e aquilo que normalmente visualizamos deste a olho nu (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996). expressar os eventos com intensidade de sentimentos e de emoções. Isto pode ficar sugerido com o apelo desmedido à policromia, notadamente por meio do recurso ao vermelho e ao alaranjado e também pelo uso excessivo de imagens e de letras grandes e negritadas, conferindo, à página, uma aparência extravagante e carregada de uma gama de significados. No que concerne à escala de temperatura configurada na primeira página, a composição tende a aproximar-se das cores quentes, precisamente do vermelho, associado ao calor, à energia e ao primeiro plano, representando dinamismo, força e emoção. No caso do logotipo do jornal, pode-se notar que, enquanto o fundo de cor vermelha atrai a atenção do leitor de modo estimulante e ativo, as letras dispostas em cor branca parecem conferir-lhe certo equilíbrio e suavidade. O vermelho é utilizado, ainda, nos antetítulos da maior parte das chamadas, bem como nas informações adicionais à chamada mostradas sob a forma de um carimbo e talvez sugerindo a necessidade e a importância de se registrar os acontecimentos relatados, tais como as ações do governo com implicações negativas para certos setores da sociedade (“Governo trava carreiras”). Levando-se em conta a associação da cor vermelha a significados ligados à impetuosidade, à proximidade e à tangibilidade, a maioria das chamadas da primeira página do Correio da Manhã, uma vez dotadas de pinceladas desta cor, acaba competindo pela atenção do leitor. Ao passo que as promoções e as ofertas do jornal são apresentadas de maneira estimulante e alegre por meio da tonalidade quente alaranjada, a maior parte das outras publicidades exteriores ao Correio da Manhã (“totoloto”, “cofersan”) são frequentemente apresentadas sobre um fundo de tonalidade azul, cor fria e cujas propriedades podem conferir-lhes certa carga de distanciamento. Cabe ainda mencionar que o uso da cor branca nas letras de alguns títulos, bem como de tonalidades pastéis e acinzentadas no fundo de algumas chamadas da página, talvez sirva para atenuar o teor de saturação resultante do excesso de cores configuradas na página. As presenças da tonalidade acinzentada como fundo e da cor branca nos títulos das chamadas tendem a neutralizar e a equilibrar a emoção, a energia e a força da tonalidade vermelha empregada nos antetítulos, em determinadas palavras dos blocos de textos e no logotipo do jornal. Ademais, observa-se o efeito de conexão estabelecido pela rima visual configurada entre o fundo alaranjado das chamadas das promoções (“colecção esqueleto humano” e “medalhas imagens da paixão”) da revista Vidas e do caderno Sport. Dado o caráter estimulante e extrovertido da tonalidade alaranjada, o Correio da Manhã, ao representar o futebol, as ofertas e as promoções de produtos com esta cor, parece sugeri-los como assuntos divertidos, originais e, também, dignos da atenção do leitor. Ressalte-se, ainda, que o emprego da tonalidade rosa na representação da revista Vidas a enseja como um veículo frívolo e direcionado, sobretudo, para o público feminino, tendo em vista os valores culturalmente associados no ocidente a esta cor, relacionada com a feminilidade, com o romantismo e com o artificial (HELLER, 2007, p. 214). Em se tratando de pureza, pode-se apontar para a coexistência de cores puras e híbridas na primeira página do referido jornal, seja pela ocorrência das cores primárias vermelho, azul, amarelo e, ainda, o cinzento, seja pela utilização recorrente de cores híbridas, tais como variações do azul, do rosa, do alaranjado e do vermelho empregadas em algumas chamadas. Nesse sentido, o Correio da Manhã parece apresentar uma identidade híbrida, pois, ao mesmo 55 tempo em que tende a valorizar a simplicidade na apresentação das notícias, também se mostra alinhado às ideologias da contemporaneidade, que têm concebido positivamente a ideia de hibridismo e de inconstância da realidade e dos valores. Cumpre assinalar que as imagens das chamadas figuradas na página do Correio da Manhã geralmente possuem baixa modulação por conta da quase ausência de sombras, de detalhes e, muitas vezes, de contextualização ou de cenário, sendo percebidas, portanto, de modo básico e simplificado. Exceção disso são as chamadas com imagens de destaque do jornal – especialmente relacionadas a punições e a acusações efetuadas pela polícia e pelo Judiciário – que, ao aparecerem contextualizadas e com nitidez e exatidão de detalhes, com cores e com perspectiva, acabam sendo experenciadas pelo leitor como altamente perceptuais e reais. Público As análises baseadas no sistema paramétrico das cores da primeira página da edição do Público de 23/2/2008 são apresentadas a seguir: Figura 5 – O sistema de cores no Público de 23/2/2008. No layout da primeira página do Público, o topo da página aparece dotado de um grau considerável de brilho em decorrência do teor acentuado de luminosidade e também do equilíbrio entre claro (referente às cores empregadas nas letras das chamadas) e escuro (relativo às cores utilizadas nas imagens reproduzidas). Além disso, é possível perceber um significativo teor de saturação vinculado aos cadernos e aos suplementos especiais do jornal (P2, Fugas, Digital), haja vista a intensidade máxima dos efeitos emocionais sugeridos pelas cores vermelho e alaranjado, expressando, desta forma, afeições e sentimentos passíveis de serem suscitados nos leitores. 56 Cumpre sublinhar ainda o uso da cor azul nas letras da representação do “Livro Os Lobos/Hoje por mais 25€”, tonalidade fria que acaba por sugerir a referida chamada como distante e sem expressividade frente ao leitor. Nesse sentido, o Público parece contrapor-se à tendência observada no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, ao passo que, nestes dois jornais, a promoção de um produto é apresentada como dotada de saliência e de brilho e, por conseguinte, como carregada de emotividade e de proximidade do leitor; naquele, a promoção é mostrada com neutralidade aparente e distanciada do leitor, ou seja, menos importante se comparada aos demais jornais. Em se tratando do logotipo, observa-se que o “P” em vermelho figura com ímpeto e com imponência, parecendo mais próximo e tangível ao leitor, captando-lhe a atenção em primeiro lugar. O emprego da cor vermelha saturada na composição visual do logotipo do jornal pode, ainda, associá-lo a um posicionamento ideológico libertário e de contestação política, haja vista a associação histórica desta cor com os partidos revolucionários de esquerda (HELLER, 2007). Paralelamente, o nome do jornal (“Público”), disposto em sentido vertical e na tonalidade branca, parece equilibrar e suavizar os estímulos incitados pelo vermelho do “P”. Em termos de temperatura, na composição da primeira página do Público, especialmente no cabeçalho da página, há uma tendência para o uso das cores quentes, tais como vermelho e amarelo, associando o jornal ao calor, à vivacidade e ao primeiro plano. No entanto, cabe sublinhar o fato de que as chamadas acompanhadas por grandes fotografias não apresentam altos teores de saturação de cores e, assim, podem não captar, de imediato, a atenção dos seus leitores. Quanto à escala de modulação, observa-se a prevalência no topo da página de baixa modalidade naturalística na apresentação dos eventos reportados – de âmbito nacional e/ou internacional e de interesse público para a sociedade portuguesa e/ou mundial –, por meio da apresentação de participantes desprovidos de contextualização ou de imagens mais gerais e/ ou sem precisão de detalhes. Em contrapartida, no que tange às chamadas com fotos grandes em destaque, com temáticas pertencentes a variados âmbitos, tais como política, cultura ou conflitos internacionais, verifica-se o uso de alta modalidade naturalística em virtude do detalhamento na apresentação dos participantes e do cenário, sob condições específicas de iluminação, de foco e de perspectiva, proporcionando, ao leitor, a percepção mais realista e verídica dos acontecimentos. No que concerne aos recursos de diferenciação, a primeira página do Público pode ser caracterizada como equilibrada e harmônica, dotada de um teor regular de diferenciação e permeada por tênues rimas visuais entre as chamadas. Na seção superior da página, a rima visual entre as chamadas se dá por meio dos antetítulos em vermelho e dos títulos em alaranjado. Em função dos efeitos, da atratividade e do estímulo visual engendrados por tais tonalidades quentes, pode-se inferir que o jornal parece conferir alto grau de saliência, de originalidade e de importância às chamadas deste domínio, com frequência, de cariz social, econômico, tecnológico, cultural, ecológico. Em relação a este domínio, cumpre destacar, ainda, o papel importante desempenhado pela cor cinzenta, contribuindo para atenuar as cores quentes empregadas, visto que é tida como uma cor de compensação. Quanto aos demais espaços da página, a rima visual entre as chamadas é estabelecida por meio da tonalidade alaranjada utilizada nos antetítulos das chamadas e do ponto vermelho 57 verificado no início do texto de cada uma das chamadas, atribuindo-lhes, assim, uma dose sutil de relevância, de estímulo e de ineditismo. Com relação à escala de pureza, pode-se verificar a coexistência entre o uso de cores levemente híbridas, como é o caso das variações de laranja e de lilás, apontando para um mundo de ideologias em transição, e de cores puras, como é o caso do vermelho presente no logotipo do jornal, sugerindo sua essência e univocidade. Por fim, é possível perceber também a configuração de rima visual entre as indicações de páginas e de seções pela tonalidade acinzentada nelas empregada – provavelmente funcionando como um recurso técnico de sumarização padronizada dos principais eventos reportados pelo jornal. Os significados sociossemióticos das formas tipográficas empregadas na primeira página do Diário de Notícias, no Correio da Manhã e no Público Diário de Notícias A primeira página do Diário de Notícias pode ser caracterizada pelo emprego de três tipos de fontes estruturalmente distintas, quais sejam, a gótica, a serifada e a sem serifas, construindo, desse modo, significados ideacionais diferentes, híbridos, correlacionados ou, até mesmo, contraditórios. As análises baseadas no sistema de formas tipográficas da edição do Diário de Notícias de 23/2/2008 são apresentadas a seguir: Figura 6 – O sistema de tipografia no Diário de Notícias de 23/2/2008. 58 Com relação ao logotipo do jornal, verifica-se a configuração da tipografia gótica, cujo excesso de ligaduras e de conectividade entre as letras, bem como o peso visual decorrente dos ornamentos enviesados da fonte resultam em dificuldades de legibilidade e associamse à escrita caligráfica. A curvatura angular das letras do logotipo pode também transmitir a ideia de masculinidade ou de abrasividade e evidencia irregularidades através de uma aparente distribuição aleatória de características específicas, tais como variações em tamanho, em peso, em orientação e em inclinação. Por ter sido utilizada na Europa em larga escala durante toda a Idade Média, o uso desta letra no logotipo pode remeter à ideia de vínculo do jornal com o passado, de apelo à tradição e, até mesmo, de posição conservadora (HEITLINGER, 2006). Ao assentar-se na tradição e na antiguidade, a mensagem suscitada pelas letras góticas do logotipo do Diário de Notícias pode ser lida, ainda, como “o jornal possui tradição há anos” ou “é digno de aprovação há muito tempo” ou, em nível ideológico, “este veículo defende e/ou alia-se à manutenção do status quo político-social”. Quanto aos títulos das demais chamadas, da grande reportagem do jornal, das chamadas com imagem de destaque, da revista e das promoções, nota-se o uso da fonte sem serifa, semelhante aos estilos Frutiger, Helvética e Myriad, originalmente criadas no final do século XX. De modo geral, essas fontes oferecem excelente visibilidade em decorrência de sua aparência funcional, suave e fluida, com formas harmônicas e racionalmente construídas (HEITLINGER, 2006). Ressalte-se também que, no caso da grande reportagem, seus respectivos antetítulos apresentam-se em itálico e, por isso, com tênue orientação para cima e inclinação para a direita, transmitindo a sugestão de dinamismo e de estatuto elevado conferidos a esse formato jornalístico. Cumpre assinalar que o Diário de Notícias tende a recorrer às fontes com serifas, nomeadamente a Times New Roman, a fim de representar os títulos das chamadas associadas à política nacional e ao sistema judiciário, bem como todos os blocos de textos dispostos na primeira página. Levando-se em conta que as fontes com serifas estão relacionadas com a atividade intelectual e cultural dos indivíduos (HEITLINGER, 2006, p. 241), pode-se inferir que o jornal parece evidenciar um dúbio posicionamento e/ou propósito comunicativo: se, por um lado, o jornal usa uma tipografia que sugere tradição e conservadorismo, haja vista o emprego de letras góticas na confecção do seu logotipo, por outro, a representação da revista, de suas promoções e de grande parte dos títulos das chamadas figuram em formas tipográficas similares devido ao uso de fonte sem serifas, sinalizando dinamismo, fluidez e modernidade. Contudo, o jornal mostra-se também amparado pelos valores clássicos e intelectuais pela semelhança tipográfica estabelecida com o uso da tipografia com serifas na confecção dos textos das chamadas. Além disso, ao apresentar os títulos das chamadas sobre a política nacional e o sistema judiciário por meio da tipografia com serifas, em uma relação de similaridade tipográfica, o Diário de Notícias parece, em termos interpessoais, sugerir tais eventos ao leitor como dotados de mais poder, de mais prestígio e de mais seriedade. Para além da rima tipográfica, pode-se verificar, em termos de significados textuais, a configuração de espaços em branco e uma orientação harmoniosa e precisa entre as letras e as chamadas dispostas na página, sugerindo equilíbrio, regularidade e estabilidade. Em linhas gerais, é possível notar um equilíbrio entre a condensação e a expansão entre os tipos gráficos, embora a página apresente uma quantidade significativa de conteúdo. Isso pode ensejar, no 59 nível interpessoal, que a página proporciona, ao leitor, certo espaço para “respirar” e maior fluidez para a leitura das informações da página. Cabe ainda apontar para a predominância, na página, de uma tipografia de formas arredondadas e circulares, bem como o teor considerável de negrito empregado nos títulos das chamadas afiguradas na página. Tais características possuem um potencial de significados ideacionais: no primeiro caso, os aspectos indicados estão fundamentados na experiência ocidental de produzir formas arredondadas, que demandam um controle de movimento mais gradual e fluido, proporcionando, ao leitor, a sensação de conforto e de tranquilidade. No segundo caso, tende a sugerir a asserção e a substancialidade das informações. Correio da Manhã Em se tratando da primeira página do Correio da Manhã, é possível verificar, tanto nas chamadas jornalísticas, quanto nos anúncios promocionais, a predominância de uma tipografia ausente de serifas, similar às formas da fonte Helvética, conforme demonstram as análises baseadas no sistema de formas tipográficas da primeira página do Correio da Manhã indicada abaixo: Figura 7 – O sistema de tipografia no Correio da Manhã de 23/2/2008. Nesse sentido, os tipos gráficos empregados no layout e no logotipo do jornal em questão podem ser caracterizados como comerciais, funcionais, fluidos e modernos (HEITLINGER, 2006). A carga excessiva de negrito utilizada nas chamadas da primeira página resulta no aumento do peso visual e, consequentemente, no aumento da saliência, o que faz a página parecer excessivamente saturada de informações. Ideacionalmente, o excesso de negrito pode significar, de maneira positiva, coragem e ousadia e, de modo negativo, falta de reflexão. 60 Cabe comentar, ainda, sobre o peso visual e os efeitos sugeridos pelo uso da caixa alta nos títulos de maior destaque na página, nos antetítulos das chamadas, na revista Vidas e nas promoções. No nível interpessoal, o jornal parece, por um lado, alertar e impactar o leitor para as notícias de teor problemático e também relacionadas a acusações, a investigações e a punições. Por outro lado, o jornal tende a atrair a atenção do leitor para as chamadas jornalísticas e, ao mesmo tempo, à revista e às promoções figuradas no cabeçalho que, por estarem presentes neste domínio, são dotadas, inclusive, de maiores prestígio e valor. Em termos de expansão, prevalece uma disposição tipográfica próxima e condensada entre as letras, parecendo fazer uso máximo de um espaço limitado, reforçando a ideia de saturação de informações e de peso visual da página. Além disso, os tipos gráficos condensados e o peso visual acentuado podem ser tomados como dispostos em espaços exíguos, restringindo o movimento do olhar e o ato de reflexão do leitor. No que diz respeito à orientação dos tipos gráficos figurados na primeira página do Correio da Manhã, observa-se a predominância de letras estendidas na direção vertical, o que pode sugerir ao leitor agilidade, instabilidade e, também, falta de espaço. Em relação ao logotipo, pode-se notar certa orientação horizontal por ser relativamente achatado, podendo sugerir preguiça, inércia e autossatisfação. Além da orientação vertical dos tipos gráficos da página, pode-se perceber a configuração geral de um tipo de inclinação ereta, cujos significados potenciais podem sugerir mecanicismo, impessoalidade e produção em massa, correspondendo, assim, aos conceitos sugeridos pela estrutura das formas da tipografia sem serifas adotada pelo jornal. A desconexão externa prevalece entre as formas e o tamanho das letras, sobretudo, pelo uso de tipografia desprovida de serifas, sugerindo uma ideia de atomização e de irregularidade entre os elementos informacionais dispostos na primeira página do jornal. Exceção a isso é a conexão estabelecida entre as letras do logotipo do jornal Correio da Manhã, haja vista a interposição e o alto grau de proximidade entre as letras, o que pode apontar para uma identidade integrada, porém, dotada de certa informalidade. Paralelamente, a curvatura arredondada e circular das letras, bem como o prolongamento angular do segundo “R” da palavra Correio, sugerem o logotipo como orgânico, pessoal e informal, sobretudo, em função do considerável grau de conectividade entre as letras. Cumpre sublinhar, ainda, a configuração de semelhanças tipográficas entre as informações promocionais/publicitárias e as jornalísticas pela similaridade estabelecida pelas formas das letras sem serifas, cujo significado potencial está diretamente ligado à era industrial e à lógica comercial. Nesse sentido, o Correio da Manhã parece representar gêneros de caráter publicitário ou promocional – que, teoricamente, deveriam ocupar uma posição secundária e diferenciada em relação às notícias – com o mesmo valor das chamadas eminentemente jornalísticas. 61 Público O layout da primeira página do Público parece ter uma identidade visual consideravelmente demarcada, sobretudo, devido à escolha da fonte tipográfica Times New Roman, bem como pela expressividade do logotipo do jornal. Ao fazer o uso praticamente integral desse tipo de letra, o Público enseja-se como um jornal voltado para eventos e acontecimentos de cunho intelectual e cultural, requerendo, desse modo, um considerável exercício crítico e reflexivo dos seus leitores. Além disso, a tipografia regular, dotada de expansão mediana entre as letras, com pouca inclinação e contraste, representa os eventos da página de maneira coerente, harmônica e padronizada. Paralelamente, no que diz respeito à curvatura, as formas arredondadas e fluidas da fonte Times New Roman podem acalmar o leitor, transmitindo a sensação de suavidade e de organicidade. A representação tipográfica referente à oferta do livro Os lobos também merece ser assinalada por conta do uso de uma fonte semelhante ao estilo Courier ─ também pertencente à família das fontes Times ─, cujo significado ideacional remete à escrita das antigas máquinas de escrever, além de propiciar, ao leitor, boa legibilidade devido à força das hastes de suas letras. Desse modo, o livro é promovido pelo jornal com valor e com visibilidade, resvalando em conceitos que transmitem significados de vitalidade, de impacto, de estabilidade e de massividade. Cabe salientar que, nas páginas analisadas do Público, o peso visual atribuído às informações constrói significados de âmbito ideacional e interpessoal. Desta perspectiva, o grau acentuado de negrito utilizado no “P” do logotipo do jornal pode sugerir, ideacionalmente, ousadia, altivez, asserção, solidez e substancialidade. Ademais, a orientação vertical e voltada para cima da informação textual “Público”, configurada no logotipo, pode sinalizar agilidade, bem como busca de aspiração ou de perfeição. Tais significados ideacionais tendem, no nível interpessoal, influenciar positivamente as atitudes do leitor frente ao jornal. Do mesmo modo, eventos de cariz social, econômico, político e cultural, dotados de interesse público e social, também recebem elevada carga de negrito, o que os faz mais assertivos e substanciais. Em consequência disso, acabam orientando o interesse dos leitores a fim de valorizar e de problematizar informações com tais temáticas e enfoques, na maioria das vezes, de interesse na esfera pública. Vale ressaltar que as chamadas situadas no cabeçalho do Público são, em sua totalidade, configuradas com o uso do negrito, habituando os leitores a valorizar e a privilegiar a diversidade de informações de relevância social e cultural. Em menor grau, pode-se também notar uma considerável carga de peso expressa nos antetítulos das chamadas presentes no restante da página, estimulando o leitor a prestar atenção em todas as chamadas apresentadas pela página. A conectividade regular entre as letras predomina na primeira página do Público não apenas por conta das semelhanças das formas e dos tamanhos dos blocos de textos, mas também da rima tipográfica estabelecida entre as chamadas jornalísticas em função do emprego da fonte Times New Roman, cuja conexão externa entre as letras serifadas pode sugerir, ainda, plenitude e integração entre as informações apresentadas na página – o que reforça, mais uma vez, a identidade, a coerência e a padronização do jornal. A seguir, são apresentadas as análises baseadas no sistema de formas tipográficas da primeira página da edição do Público de 23/2/2008: 62 Figura 8 – O sistema de tipografia no Público de 23/2/2008. Comentários finais Neste trabalho, pretendeu-se mostrar as possíveis contribuições das cores e da tipografia para a construção de significados sociossemióticos, bem como testar a aplicabilidade das categorias apresentadas por meio de um breve estudo de caso com base na análise do layout da primeira página dos jornais portugueses de maior representatividade no país. Em se tratando do Diário de Notícias, a análise das cores que constituem a sua primeira página aponta para uma composição visual de policromia e de temperatura equilibradas, com significativos graus de brilho, de saturação e de modulação destinados às reportagens, à revista NS’ e aos produtos oferecidos pelo jornal. Ademais, os elevados níveis de brilho e de pureza configurados pela cor branca das letras do logotipo do Diário de Notícias podem suscitar limpeza e ordem por um lado e, por outro, elitismo e distanciamento. Quanto à tipografia predominante, a análise aponta para a confluência de três estilos tipográficos distintos em sua primeira página – o que revela também propósitos comunicativos distintos, tais como informar com seriedade, informar por meio de estratégias publicitárias e informar pelo apelo à tradição –, cujas formas e categorias tipográficas se mostram, entretanto, dotadas de regularidade, propiciando boa legibilidade. Cabe assinalar, ainda, a ideia de dinamismo e de movimento sugerida em seu cabeçalho em virtude da sutil inclinação para a direita das letras, que constituem a chamada da grande reportagem e o logotipo do jornal. Em relação ao Correio da Manhã, é possível notar a configuração de uma composição visual de policromia e de saturação excessivas, com cores quentes e híbridas atribuídas à revista Vidas, ao caderno Sport e às promoções e aos produtos oferecidos pelo jornal. Além disso, percebe-se um significativo teor de modulação destinado, amiúde, a chamadas polêmicas ou 63 preocupantes. O logotipo do jornal, cujo nome aparece em branco e encontra-se imerso em um quadro vermelho de elevada temperatura, engendra um equilíbrio dinâmico no qual oscilam conceitos ligados à simplicidade versus excitação, força e indisciplina, respectivamente. De maneira geral, a análise da forma tipográfica sobrepujante na primeira página do Correio da Manhã aponta para um excessivo peso visual, com negritos utilizados de forma irregular e aleatória em palavras, em títulos e em trechos de textos que, aliados ao significativo grau de condensação entre as letras, fazem, da página, uma página caótica, informal e com pouco estímulo à reflexão acerca dos eventos reportados. Cabe ainda mencionar que a curvatura arredondada e a orientação horizontal das letras do logotipo do jornal transmitem uma sugestão de conforto e de comodismo, por um lado. Por outro, o prolongamento apresentado por um dos “R” pode ensejar a ideia de ludicidade ou de rebeldia. A análise das cores que constituem a primeira página do Público, por sua vez, indica uma composição visual de policromia e de temperatura regulares, com elevado grau de brilho, temperatura e saturação conferidos aos cadernos e aos suplementos especiais do jornal, valorizando o aprofundamento e a pluralidade da cobertura dos fatos e dos acontecimentos. Em relação ao seu logotipo, cujo nome aparece em branco e encontra-se imerso em uma letra “P” de cor vermelha com alta temperatura, verifica-se a criação de uma espécie de equilíbrio dinâmico em que oscilam conceitos vinculados à ideia de ordem, de clareza e de elitismo versus força e contestação, respectivamente. Paralelamente, a primeira página do Público parece transmitir a sensação de equilíbrio, de sobriedade e de organização, tendo em conta a regularidade das formas e do estilo tipográfico utilizado, possibilitando a leitura atenta e agradável de suas notícias. Além disso, o elevado teor de peso atribuído ao cabeçalho da página composto, sobretudo, por cadernos e por suplementos especiais, torna-lhes mais salientes e, consequentemente, dotados de acentuada relevância. A orientação vertical do logotipo pode apontar, ainda, para conceitos ligados à altivez e à busca de aspiração. Tais resultados permitiram verificar e confirmar a aplicabilidade da grelha metodológica ora apresentada, pois ela revelou aspectos importantes acerca do perfil e dos propósitos comunicativos dos jornais analisados com base na análise dos significados sociais produzidos pelas cores e pelas tipografias configuradas em seus layouts de primeira página. Referências CARVALHO, F. F. 2012. 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A tecnologização que nos cerca no dia a dia invade cada discurso, incluindo as instituições da educação superior, em particular, as do ensino superior privado. Para começar a entender essas mudanças no discurso, é pertinente iniciar com algumas considerações sobre o lugar dos professores e de sua identidade, reflexo das novas práticas discursivas presentes no discurso da educação superior no Brasil. Concluímos que as novas práticas discursivas, inclusive as publicitárias, revelam a venda de cursos, cujo propósito principal é o de ser um produto barato, de rápido consumo e de fácil circulação, afetando a identidade do professor, que também se transforma em produto. Palavras-chave: Mercantilização. Educação. Professor. Identidade. Tecnologização. 1 2 Atua em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Sociedade, na linha de pesquisa Discursos, Representações Sociais e Textos, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento. Desde 1991, é professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Doutorado e do Mestrado, da Universidade de Brasília. Atualmente, é Professor Associado. Em sua formação, realizou Pós-Doutoramento, pela Universidade de Lisboa, (2001), patrocinado pelo CNPq. É Doutora em Linguística Aplicada pela PUC/RS (1986). Dirige, desde 2005, o Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (CEPADIC), do qual é sócia fundadora. Autora de vários livros, capítulos e artigos em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento. E-mail: josenia.unb@ gmail.com. Doutoranda em Linguística pela UnB. Graduada em Letras/Inglês, Especialista em Revisão de Textos e Especialista em Docência no Ensino Superior. Coordenadora de Língua Portuguesa e línguas estrangeiras no Instituto de Educação Heloisa Marinho. Professora de Leitura e Produção de Texto. Pesquisadora do Cepadic (Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica). Editora Executiva da RP3 − Revista de Pesquisa em Políticas Públicas. Autora de artigos sobre Análise de Discurso Crítica e Multimodalidade em periódicos nacionais. E-mail: denisesmacedo@ yahoo.com.br. 67 Introdução Este artigo pretende discutir os reflexos da mercantilização do ensino no discurso e na formação da identidade do professor da educação superior brasileira. Tal discussão dar-se-á à luz das contribuições da Análise de Discurso Crítica (ADC), pois as transformações do discurso e das práticas discursivas provocaram profundas alterações na educação e, consequentemente, na identidade do professor. Para isso, contribuíram as mudanças no mundo e na atualidade brasileira, cuja tecnologização dominante nos circunda no dia a dia e invade todo o discurso, incluindo, aí, o discurso das instituições de ensino superior, em particular, as do ensino privado. Com o intuito de compreendermos melhor o contexto dessas mudanças discursivas rumo à mercantilização do ensino e vice-versa, ou seja, as mudanças sociais rumo à mercantilização do discurso educacional e, inclusive, da identidade do professor, temos de refletir sobre essas transformações frente à globalização na pós-modernidade. Nesse novo cenário de novas práticas sociais e discursivas no âmbito educacional, cria-se a nova identidade do professor. Esta investigação se preocupa com os discursos e seus reflexos e não com a realidade profissional na qual trabalham os professores. Assim, o estudo busca, pela ADC, revelar os efeitos da mercantilização da educação no Brasil contemporâneo na construção da identidade do professor. A pós-modernidade como agente transformador do discurso Se a modernidade trouxe a máquina a vapor, revolucionando aquela época, a pósmodernidade, ou a modernidade tardia como prefere Giddens (1990), legou-nos o computador. E o percurso do conhecimento, que fora lento e gradual em todo o período da modernidade, explodiu celeremente na pós-modernidade. O progresso, que levou séculos para ser conquistado, a sociedade da informação alcançou-o em menos de 30 anos. A compressão e a velocidade do tempo no espaço são uma das grandes características da pós-modernidade. O tempo muda a sua característica principal, mas se eterniza em sua efemeridade, como diz Castells (2002). Mas o que é o pós-moderno? Featherstone (1990/1995) faz interessantíssima observação ao afirmar que falar em pós-modernidade é sugerir uma interrupção da modernidade envolvendo “a emergência de uma nova totalidade social, com seus princípios organizadores próprios e distintos” (FEATHERSTONE, 1990/1995, p. 20). Ele retoma Baudrillard (1983), para quem novas formas de tecnologia e de informação tornam-se fundamentais para a passagem de uma ordem social produtiva, a modernidade, para uma reprodutiva, a pós-moderna, “na qual as simulações e modelos cada vez mais constituem o mundo de modo a apagar a distinção entre realidade e aparência” (FEATHERSTONE, 1990/1995, p. 20). Ele retoma também Lyotard (1986), cujo interesse específico está nos efeitos da computadorização da sociedade. Tais conceituações-chave – totalidade social, transformações na ordem socioeconômica, princípios organizadores próprios e distintos, ordem reprodutiva e computadorização da sociedade –, características destes tempos, refletem-se nos discursos deste mesmo tempo. 68 Todos esses avanços e mudanças na sociedade contemporânea trouxeram mudanças fundamentais no discurso. Houve, sem dúvida nenhuma, e há forte tecnologização deste, que não poderia ficar imune a todas essas mudanças discursivas. Se, de um lado, presenciamos as mudanças no contexto da economia e da política internacional, de outro, a própria linguagem registra, em forma de discurso e de práticas discursivas, o mundo circundante. Essa assertiva nos leva a um conceito muito caro à Análise de Discurso Crítica (ADC) – ciência que investiga o discurso definindo-o como um momento de toda prática social: a relação dialética entre linguagem e sociedade. Afirmar que a relação entre discurso e sociedade é dialética é dizer: ambos se moldam e são moldados um pelo outro. Por causa desse processo de mão dupla, Halliday (1986) diz que o texto e, por extensão, o discurso, é o canal primário de transmissão de cultura; ele age sobre e reflete o ambiente social, o que é possível porque esse mesmo ambiente é uma construção social (MACEDO, 2013, p. 69). Passaremos a examinar, portanto, como essas mudanças sociais têm influenciado o discurso. Para isso, convém passar os olhos pela história recente da sociedade da informação, que teve seu apogeu na década de 1970, sem nos esquecermos, no entanto, de que a década de 1960 foi a antevéspera da grande explosão da sociedade informacional. Um bom exemplo desse fenômeno é a nação americana que, no estado da Califórnia, abrigou a construção desde o primeiro computador Apple até os ultramodernos e sofisticados computadores de hoje. Sociedades da informação e discurso O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) do Brasil (2000) reconhece que o conhecimento se tornou hoje, mais do que no passado, um dos principais fatores de superação de desigualdades em um país. Segundo essa instituição pública, a nova situação tem reflexos no sistema econômico e político, uma vez que a soberania e a autonomia dos países passam mundialmente por uma nova leitura. Para o MCT, a manutenção dessa soberania e dessa autonomia, essencial a qualquer nação, depende nitidamente do conhecimento, da educação e do desenvolvimento científico e tecnológico. Segundo o ministério, esse desenvolvimento da chamada sociedade da informação está sendo gestado em diversos países. Para o MCT, o advento da sociedade da informação é o fundamento de novas formas de organização e de produção em escala mundial que redefine a inserção dos países na sociedade internacional e no sistema econômico mundial. Por isso, esse ministério defende que, “na era da Internet, o Governo deve promover a universalização do acesso e o uso crescente dos meios eletrônicos de informação para gerar uma administração eficiente e transparente em todos os níveis” (MCT, 2000, p. v). Dessa forma, para o ministério responsável pela tecnologia nacional. Alavancar o desenvolvimento da Nova Economia em nosso País compreende acelerar a introdução dessas tecnologias no ambiente empresarial brasileiro, objetivo de um dos mais ambiciosos programas do Avança Brasil: o Programa Sociedade da Informação (MCT, 2000, p. v). 69 A finalidade substantiva desse programa é lançar os alicerces de um projeto estratégico, de amplitude nacional, para integrar e coordenar o desenvolvimento e a utilização de serviços avançados de computação, comunicação e informação e de suas aplicações na sociedade. Essa iniciativa permitirá alavancar a pesquisa e a educação, bem como assegurar que a economia brasileira tenha condições de competir no mercado mundial (MCT, 2000, p. v). De forma mais didática, o MCT explica que assistir à televisão, falar ao telefone, movimentar a conta no terminal bancário ou pela internet, verificar multas de trânsito, comprar discos, trocar mensagens com o outro lado do planeta, pesquisar e estudar são hoje atividades cotidianas no mundo inteiro. Ao nos adaptamos a essas novidades, passamos a viver na Sociedade da Informação, “uma nova era em que a informação flui a velocidades e em quantidades há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e econômicos fundamentais” (MCT, 2000, p. 3). Portanto, ao falarmos de sociedade de informação, não podemos nos furtar de examinar esse poder político que ensejou o desenvolvimento dessa mesma sociedade. Sabemos que o Estado pode promover o desenvolvimento de uma nação, contê-lo ou até mesmo sustá-lo. Se os Estados Unidos investiram em tecnologia na educação, a China antiga, a mãe do conhecimento milenar, descobriu a pólvora, o papel e muitas outras coisas importantes. Contudo, mesmo sendo a detentora de relevantes conhecimentos, paralisou no tempo, e a sua epopeia de descobertas e de conquistas não se repetiu nas questões da tecnologia e da informação. Afortunadamente, foi na Ásia que, sem contar com um percurso brilhante no mundo dos descobrimentos e das invenções, o Japão ultrapassou a corrida tecnológica e hoje reina de modo absoluto no mercado sofisticado da informação. O Estado esteve presente na história das duas grandes potências. Na China, o Estado entravou o desenvolvimento nacional no âmbito da informação e da tecnologia. Desse modo, a China pode ter muitas glórias passadas, as quais devemos respeitar, mas, no campo dos avanços tecnológicos, o Japão, uma nação com destacada liderança internacional no mundo da informação, deve todo o seu avanço ao Estado, que financiou e incentivou as grandes pesquisas da área, como reporta muito bem Giddens (2002). A América do Norte, mesmo não tendo o mesmo passado da China, legou-nos a internet. Hoje, graças ao Departamento de Defesa americano, o mundo comunica-se em tempo real. Essa conquista marcou a participação do Estado americano nas conquistas tecnológicas e ensejaram o início das primeiras redes de comunicação mediadas por computador. Deve-se, à participação indireta do Estado ao lado de grandes universidades da Califórnia, como Stanford e University of California and Los Angeles (UCLA), e aos cérebros de professores e de alunos, dos think-tank (os pensadores-tanques) do conhecimento de ponta dos inventos tecnológicos, o avanço da ciência da informação, que garantiu, para os americanos, a liderança dessa sociedade informacional. 70 Esse âmbito mundial, inclusive o brasileiro, retrata a importância da política, da economia e da tecnologia no surgimento das sociedades de informação. Nesse sentido, no paper Discurso e Transição na Europa Central e Oriental (2010), Norman Fairclough, Professor Emérito do Departamento de Linguística da Universidade de Lancaster e considerado o criador da Análise de Discurso Crítica (ADC) lida também com o papel do discurso nessas sociedades. Com foco na tentativa romena de construir sua economia com base no conhecimento e sua sociedade da informação, Fairclough argumenta que a linguagem e o discurso no processo de transição na Comunidade Econômica Europeia e em outros lugares do mundo são amplamente reconhecidos nas pesquisas sociais. Para ele, processos de transição são constituidos por estratégias que têm caráter parcialmente material, como vimos acima, e parcialmente discursivo: transições incluem discursos que representam e que imaginam, que simplificam e que condensam realidades econômicas, políticas, sociais e culturais complexas. Assim, tendo as sociedades da informação como pano de fundo, importa observar como esse cenário ou contexto (na linguagem hallidayana) altamente tecnologizado influencia um dos pilares de qualquer sociedade: a educação e, em especial, a identidade do professor. Para tal observação, lançamos mão dos conceitos faircloughianos (2001a) de tecnologização e de comodificação. Tecnologização do discurso: uma nova tendência No Capítulo 7 do livro Discurso e mudança social (2001a), Fairclough discute a mudança de caráter internacional ou transnacional em progresso nas ordens do discurso contemporâneas. Para tanto, ele aborda as tendências principais dessas ordens discursivas, entre elas, a tecnologização e a comodificação do discurso. Inicialmente, deve-se ter claro que toda alteração nas tecnologias de uma sociedade implica construção hegemônica de novos discursos com novas ordens do discurso no âmbito das instituições e das organizações públicas e privadas. Entretanto, essas mudanças nas práticas discursivas não são pacíficas e, ao serem construídas, deixam um rastro de mudança. O resultado mais visível dessas mudanças está no léxico do discurso, fenômeno nomeado por Fairclough como tecnologização do discurso. Tecnologização do discurso é a expressão de mudanças acentuadas na linguagem, mudanças essas que refletem, diretamente, a vida em sociedade e a cultura de determinado grupo social. Fairclough (2001a) a define como a constituição de sistemas de especialidades cujos domínios são as práticas discursivas das instituições públicas (como vimos acima, no caso do MEC) e a relaciona à tendência, das sociedades modernas, cada vez mais mercantilizadas, ao controle cada vez maior da vida das pessoas, nas instâncias públicas e privadas. A tecnologização do discurso, segundo Fairclough (1992), sintetiza, nos textos, as mudanças nas práticas discursivas, combinando-se às mudanças nas práticas culturais. Essas mudanças no discurso, especialmente no trato das questões universitárias, também foram estudadas por Fairclough (2001b), que examinou a mercantilização do discurso nas universidades públicas inglesas. Reporto aqui o que esse analista do discurso afirma sobre o assunto: 71 O caso que vou focalizar é a mercantilização das práticas discursivas nas universidades britânicas contemporâneas; estou me referindo à reestruturação da ordem do discurso no modelo de organização de mercados mais centrais. Ao que parece, pode parecer excessivamente introspectivo para um acadêmico analisar universidades como exemplo de mercantilização, mas não acredito que seja; as mudanças recentes que afetam a educação superior são um caso típico e, sem dúvida, um bom exemplo de processos de mercantilização e comodificação no setor público em geral (FAIRCLOUGH, 2001b, p. 47). Fairclough (2001b), nesse estudo, concentrou-se em alguns gêneros discursivos que são usuais no discurso acadêmico, como os prospectos que são destinados à chamada de novos alunos, os anúncios para cargos acadêmicos e um extrato de seu próprio curriculum vitae. Diz ele ainda sobre o seu estudo: A mercantilização das práticas discursivas das universidades é uma dimensão da mercantilização da educação superior num sentido mais geral. As instituições de educação superior vêm cada vez mais operando (sob pressão do governo) como se fossem negócios comuns competindo para vender seus bens de consumo aos consumidores (FAIRCLOUGH, 2001b, p. 47). Assim é que todas as alterações no segmento de uma cultura ficam registradas nas suas práticas culturais e, sobretudo, nos seus eventos discursivos. A tecnologização do discurso acontece em todas as áreas, mas é mais nítida nas instâncias do mercado, nas mídias e, principalmente, no discurso governamental e institucional. Fairclough (2001b) também fala sobre essas mudanças: as instituições estão fazendo mudanças organizacionais importantes que estão de acordo com um modo mercadológico de operação, tais como a introdução de mercado ‘interno’ ao tornar os departamentos financeiramente mais autônomos, o uso de abordagens ‘gerenciais’ em, por exemplo, avaliação e treinamento de pessoal, a introdução de planejamento institucional, e a maior atenção que é dada ao mercado. Tem havido também pressão para os acadêmicos verem os alunos como ‘clientes’ e dedicarem mais energias ao ensino e ao desenvolvimento de métodos de ensino centrados no aprendiz (FAIRCLOUGH, 2001b, p.48, grifo nosso). 72 No Brasil, de igual modo, as mudanças nas práticas discursivas ocorrem de modo natural, entretanto, essa práxis tem sido acelerada por meio de encontros, de cursos e de reciclagens visando à uniformização desse discurso. Não é incomum treinamentos de todos os funcionários de determinado ministério ou órgão do governo ou de empresa privada com o propósito de uniformizar a prática discursiva e de buscar a eficiência no alcance e na realização de objetivos e de metas. A pretensão com essas práticas é estabelecer um discurso comum para atender o cliente, o consumidor final, o público-alvo (léxico tecnologizado das novas práticas discursivas), buscando desempenho cada vez maior e melhor na interação com o sujeito desse consumo. Essas mudanças no discurso, com o intuito de homogeneizar as práticas discursivas, visam à obtenção de melhores resultados nas transações comerciais e nas relações interpessoais. Todas essas alterações são frutos da tecnologização do discurso. Como exemplo de tecnologização do discurso, temos, no Brasil, a implantação da ISO 90003. Com esse programa de qualidade total, as empresas governamentais e as privadas passaram por rigoroso treinamento com características altamente homogeneizadoras, cujo propósito é o alinhamento com o mercado internacional. As empresas públicas e as mistas estão empenhadas em conquistar novos consumidores. Os usuários de qualquer serviço público passam a ser considerados clientes. O discurso contempla e incorpora, em seu léxico, expressões típicas do mercado privado. Fairclough (2001b) atribui, à tecnologia do discurso, cinco características: 1. o surgimento de peritos em tecnologia do discurso; 2. a mudança no policiamento das práticas discursivas; 3. a concepção e a projeção de técnicas discursivas descontextualizadas; 4. a simulação discursiva com fundamentos estratégicos; 5. a pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas. Com relação ao surgimento de peritos em tecnologia do discurso, Fairclough (2001b) declara que existem manipuladores e especialistas persuasivos em discurso. Para que os especialistas de fato possam ser chamados de tecnólogos do discurso, devem apresentar qualificações distintas, como a de serem ligados a determinadas áreas do saber que, por essa razão, qualificam as suas intervenções, atribuindo-lhes veracidade, ao mesmo tempo em que as legitimam pelo uso em seus espaços discursivos. 3 A expressão ISO 9000 designa um grupo de normas técnicas que estabelecem um modelo de gestão da qualidade para organizações em geral, qualquer que seja o seu tipo ou dimensão. A sigla “ISO” refere-se à denominação de igualdade, pois o sistema prevê que os produtos detenham o mesmo processo produtivo para todas as peças. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ISO_9000>. Acesso em: 21 set. 2013. 73 Esses especialistas são, em geral, cientistas sociais, peritos ou consultores com acesso a informações privilegiadas. Também pela notoriedade de seu conhecimento, quando utilizam rotineiramente certa prática discursiva, fazem escola, sendo as suas práticas discursivas repetidas por outros sujeitos. O tecnólogo em discurso, pelo seu conhecimento na área, pode dar inestimável contribuição, quer oferecendo cursos, seminários, entrevistas, quer prestando consultorias sobre determinadas práticas discursivas, como o discurso político, publicitário, midiático, entre outros. A mudança no policiamento das práticas discursivas é outra característica da tecnologização do discurso defendida por Fairclough (2001a). É verdade que toda prática discursiva sofre policiamento constante. Hoje em dia, entretanto, esse policiamento se estendeu para fora das instituições e se transformou em um policiamento transinstitucional. Os tecnólogos do discurso exercem posição de policiamento particular, apoiando-se em seu conhecimento científico e em seus títulos acadêmicos, dos quais lhes advém certo poder. Também o fato de serem peritos externos garante-lhes certa isenção em seus julgamentos, conferindo-lhes grande poder para interferir, formulando e reformulando as práticas discursivas de qualquer instituição. Um bom exemplo desse procedimento é quando um especialista do discurso valida técnicas de escrita muitas vezes descontextualizadas, mas passíveis de serem utilizadas em qualquer contexto, como é o caso da configuração das propagandas das instituições superiores que serão mostradas neste artigo. Outra característica da tecnologização do discurso é a simulação discursiva com fundamentos estratégicos, conforme defende Fairclough (2001a). A prática do simulacro é largamente usada no discurso com o intuito de gerar certa aproximação entre os sujeitos. Desse modo, a simpatia demonstrada pelo sujeito com maior poder na entrevista, por exemplo, é o típico caso de simulação discursiva. Segundo Fairclough (1992, p. 265), a simulação e a informalidade nas questões de simetria de poder institucional são amplamente usadas pelos sujeitos que estão no poder. Tal prática discursiva gera um espaço para lutas de poder nesse tipo de discurso, pois essa mudança não se sustenta nas práticas reais de conversação, gerando certa contradição. A pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas é outra marcante característica da tecnologização do discurso. No momento em que a instituição homogeneíza suas práticas discursivas, criando normas discursivas em diferentes campos institucionais, ela fortalece a ideia de que a tecnologização do discurso ajuda a manter a coesão do discurso de poder institucional que favorece os laços nos vínculos dialógicos de trabalho, além de facilitar e de acelerar a comunicação como um todo. Consequentemente, se o sujeito desconhecer esse universo discursivo, se não o dominar, certamente desfrutará de menor poder nas instâncias das lutas diárias. A tecnologização do discurso, que se manifesta pela alteração das ordens do discurso, implica intervenção consciente na prática discursiva. A respeito de como são constituídas e de como se alteram as ordens de discurso, Fairclough (2001a) declara: A ordem do discurso de um domínio social é a totalidade de suas práticas discursivas, e as relações (de complementaridade, inclusão/ exclusão, oposição) entre elas – por exemplo nas escolas, as práticas discursivas de sala de aula, da avaliação escrita, da área recreativa, 74 e da sala dos professores. E a ordem do discurso de uma sociedade é o conjunto dessas ordens de discurso mais ‘locais’, e as relações entre elas (p. ex., a relação entre a ordem do discurso da escola e as de casa ou da vizinhança). As fronteiras e segregações entre e dentro das ordens de discurso podem ser pontos de conflito e contestação (BERNSTEIN,1990), abertas ao enfraquecimento ou fortalecimento, como parte de conflitos e lutas sociais mais amplas (FAIRCLOUGH, 2001a, p. 3). Fairclough (1996, p. 76) afirma que a tecnologização do discurso ocorre em redes e em práticas discursivas institucionais reunindo três domínios específicos: a pesquisa de práticas discursivas de instituições e de locais de trabalho, a modelagem de práticas discursivas em conformidade com metas e com objetivos institucionais e o treinamento dessas práticas discursivas resultantes da modelagem. Desse modo, a tecnologização do discurso influencia a construção de novos gêneros, pois a sua atuação passa pela prática social e pelas práticas discursivas. As tecnologias do discurso atuam como uma forma de poder; como um recurso de fiscalização, de policiamento e de dominação. Contudo, tais procedimentos podem ser aceitos de modo passivo, ou recebidos com resistência ou, ainda, podem ser rejeitados. A tecnologização do discurso tem provocado relevantes mudanças nos gêneros do discurso. Entre eles, destacamos o gênero dos outdoors, nos quais encontramos mais de uma linguagem constituindo-os como gênero híbrido. Além da imagem e das cores, a tecnologização utiliza um modo especial de organizar a informação. Passa pela argumentação e pela persuasão, tornando a publicidade, por meio de outdoors, um gênero de prestígio, dando suporte para o discurso comodificado da educação que, dia a dia, torna-se mais naturalizado e lugar comum. Nesse contexto, os cursos superiores privados, mais que os cursos estatais, têm amplo arsenal publicitário para travar verdadeira batalha com a concorrência. O embate envolve desde cartazes, de panfletos, de prospectos, de malas diretas, de outdoors até a luta travada corpo a corpo na disputa pelos futuros alunos. Nesses casos, entram as entrevistas individuais, as orientações vocacionais e as palestras nas escolas com terminalidade no segundo grau. Um parêntese para a comodificação do discurso Para Fairclough (2001a), comodificação refere-se ao processo pelo qual os domínios e as instituições sociais cujo propósito não seja produzir mercadorias no sentido econômico restrito são organizados e definidos em termos de distribuição e de consumo de mercadorias. Para ilustrar esse conceito, Fairclough cita as referências aos setores das artes e da educação, como indústrias destinadas a produzir, a comercializar e a vender mercadorias culturais e educacionais a seus clientes ou consumidores. Fenômeno antigo, já observado por Marx, a comodificação pode ser entendida como a colonização de ordens de discurso institucionais e societárias por discursos associados à produção de mercadoria. 75 Para ilustrar essa tendência, Fairclough (2001a) pesquisa exemplos do discurso educacional. Nessa investigação, ele identifica a lexicalização de cursos e de programas de estudo como mercadorias ou como produtos que devem ser comercializados aos clientes. Assim, o discurso educacional comodificado é dominado por um vocabulário de habilidades. Fairclough (2001a) defende que tais expressões mercantilistas podem ter efeitos claros sobre, por exemplo, a elaboração e o ensino de cursos, bem como sobre o esforço e o capital investido. Entre essas palavras e expressões está o conceito de habilidade, que, por um lado, tem implicações ativas e individualistas e, por outro, tem implicações normativas, passivas e objetificadoras. Ele adiciona que a comodificação do discurso educacional é também uma questão de gênero de discurso, uma vez que as ordens do discurso educacional são colonizadas pelo gênero publicitário. Como resultado, proliferam tipos de texto que conjugam aspectos de publicidade com aspectos de outros gêneros do discurso, como a mescla entre publicidade e regulamentos financeiros. Para Fairclough (2001a), é importante desenvolver pesquisas sociais mais amplas dos processos de mudança social e cultural que afetam as organizações contemporâneas. Entre elas, ele se refere àquelas relacionadas à educação, alvo da polarização entre práticas tradicionais, para ele, inaceitáveis, e novas práticas promocionais e mercantilizadas, igualmente inaceitáveis. Nessa mesma linha de pensamento, Vieira (2009) discute as mudanças no discurso, mais especificamente no que concerne à educação brasileira, com enfoque nas transformações das práticas discursivas que ensejaram profundas alterações no discurso educacional. Ela defende que, para tais transformações, contribuíram principalmente as mudanças no mundo globalizado e a mercantilização da educação brasileira, além dos reflexos da tecnologização, que invadiram o discurso das instituições de ensino superior, em particular, das instituições privadas. Lançando um rápido olhar sobre alguns aspectos da história da educação brasileira, Vieira (2009) chega à tendência do ensino no Brasil contemporâneo, concluindo que, hoje, empresários altamente competitivos buscam uma fatia do mercado promissor em que se converteu a educação. Como resultado, ela aponta o recrutamento, no passado, inexistente, de alunos, agora, promovido por eficientes e atraentes campanhas publicitárias. Para ela, o ensino virou objeto de desejo do mercado capitalista. Com isso, o currículo esvaziou-se das disciplinas formadoras do caráter e da cidadania, sobrepujadas pelas necessidades contemporâneas e pela necessidade de cortar gastos. O lucro tornou-se a meta. Já nessas primeiras conclusões de Vieira (2009), vemos se estabelecer um diálogo entre o pensamento dessa linguista e o de Fairclough em três aspectos: a crescente mercantilização da educação, a contribuição da tecnologia para essa mudança e a colonização das ordens do discurso educacional pelo gênero publicitário, a que Vieira se refere como eficientes e atraentes campanhas publicitárias. A educação como bem de mercado Para entendermos como a educação se transformou em bem de mercado, é essencial que nos reportemos ao período pós-Segunda Grande Guerra, tempo em que os Estados Unidos, sob os auspícios de um capitalismo extremamente exacerbado, conquistaram a hegemonia 76 mundial após o fim da Guerra Fria. Notadamente, o aumento desse poder marcante tem sido nas áreas econômica, política, social e cultural, com ênfase na esfera educacional. Nesse sentido, nossa convivência com poderes hegemônicos, como o dos americanos, incita-nos a buscar uma identidade que nos diferencie nesse contexto global. Uma vez que não possuímos a liderança nas áreas acima, devemos nos notabilizar pela diferença. Tememos, porém, não possuir tempo suficiente para isso, tendo em vista que as mudanças em curso no ensino superior deixam-nos apreensivos e soam como uma ameaça. A educação, um dos pilares da ideologia liberal, com as discussões em andamento na Organização Mundial de Comércio (OMC), incorre em grave perigo de transformar-se em mais uma mercadoria no setor de serviços. Assim, a educação está na iminência de perder o seu caráter de bem social para se transformar apenas em um serviço do setor terciário. Como um legado legítimo, a educação terminou, no primeiro dia de 2005, considerando que os países-membros da OMC concordaram com a inclusão de todos os serviços no acordo por eles firmado, entrando aí a educação. Passemos a considerar as consequências do que aconteceu. A equivalência da educação a qualquer outro tipo de serviço poderá atentar contra a soberania e a cultura de muitos países, inclusive, a do Brasil, além de significar um assalto comercial à educação superior brasileira, haja vista que perderemos a propriedade da educação, particularmente a de nível superior e, junto com ela, a identidade nacional, tendo em vista que estaremos receptivos à incorporação de uma identidade transnacional. Vale destacar que a formação de nível superior, própria da pós-modernidade, do capitalismo tardio (FAIRCLOUGH, 2001a), constitui direito do cidadão. Contudo, especialmente no caso brasileiro, é fundamental chamar a atenção para a reforma da educação superior. Entendemos que existe atualmente, na educação, um processo perverso que está mais preocupado com o aspecto mercantil e gerencial do ensino do que com o aluno propriamente dito. Assim, sob o impacto de forte globalização e de mercantilização pela qual passa o ensino, o Governo Federal tem demonstrado certa resistência para essas negociações com a OMC. Diante desses fatos, a mudança de nossa identidade na educação superior brasileira deve-se à adoção de novo paradigma mercantil que acentua a ênfase no lucro e no consumo de mercado, como defende a essência do capitalismo. Isso traz preocupações de toda ordem, entre elas, a de como lidar com essa nova realidade da educação no Brasil. A ameaça de perda de traços da identidade particular em função de nova identidade transnacional, ao lado da proposta de tratar a educação como um serviço é algo próximo que não pode ser desconsiderado e que carece de medidas possíveis para o seu enfrentamento. No artigo Diploma com sabor de Big Mac, Macedo, Perfeito e Silveira (2002) discutem, no jornal Campus, uma das consequências dessas mudanças: a equivalência de diplomas, a validação de títulos estrangeiros e a certificação de competências que passariam a obedecer a legislações internacionais de importação e de exportação. Tal fato equivale a dizer que qualquer universidade estrangeira poderia, em tese, oferecer seus cursos no Brasil. Na matéria, os autores relatam como surgiu essa discussão. Segundo o assessor da Universidade das Nações Unidas, Marcos A. Dias, ela surgiu em 1998, quando a Organização 77 das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) promoveu, em Paris, uma conferência mundial sobre o tema. Segundo ele, as 180 delegações presentes aprovaram o documento da Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI, que definia a educação como um serviço público baseado nas necessidades sociais. Assim, a OMC criava, sigilosamente, uma proposta diferente da aprovada em Paris, defendendo a tese de que o ensino superior é um serviço comercial. O alcance dessa declaração é de que qualquer grupo ou instituição estrangeira poderá vir para o Brasil e implantar um pacote educacional. O perigo imediato desse projeto é o reconhecimento oficial da mercantilização da educação. Passaríamos a oferecer cursos com logomarca de grandes e famosas instituições, os quais não estariam projetados com base em diferenças multiculturais. O único ponto comum desses cursos seria o conhecimento. As singularidades de cada cultura, suas necessidades e anseios, não seriam considerados. Nesse contexto, os países em desenvolvimento estariam sujeitos a tornarem-se verdadeiras fábricas de diplomas cuja qualidade dos cursos nem sempre seria a mais adequada para a sua realidade. No Brasil, já estão ocorrendo essas investidas dos diplomas enlatados de outros países. Os mais comuns têm sido os cursos oferecidos por algumas universidades da Europa, como é o caso de algumas instituições de Portugal e da Espanha, principalmente nas áreas de Direito e de Educação. O Ministério de Educação e Cultura (MEC) reage dizendo que não validará tais diplomas, mas, mesmo assim, inúmeros cursos de mestrado e de doutorado têm sido oferecidos por instituições internacionais. Qual é a saída? Se essas ofertas tornarem-se legais, podemos fazer muito pouco no momento, mas, ainda assim, podemos buscar respaldo na própria lei. Cremos que, se leis internacionais, baseadas em leis de reciprocidade, regulam tais ofertas, podemos também oferecer cursos lá fora. Além disso, resta-nos também a alternativa de levar a sério a revalidação desses cursos para que não sejam reconhecidos títulos de doutores e de mestres que, pelas facilidades, validem a incompetência e o despreparo. Nesse sentido, vale ainda mencionar que muitos países da América Latina, entre eles, o Brasil, desenvolveram, nas últimas décadas, cursos de pós-graduação altamente especializados e bem-estruturados que em nada ficam a dever a programas internacionais de pós-graduação. Ao contrário, atendem com mais especificidade às nossas necessidades locais e regionais. Assim, de modo consciente, devemos reagir a essa usurpação dos nossos direitos na educação superior. Enquanto as universidades federais pouco fazem no sentido de coibir essas mudanças na educação superior, as universidades privadas esbanjam nova cara em propagandas extremamente agressivas, direcionadas ao recrutamento de novos alunos. Jamais vemos campanhas de captação de alunos por parte das universidades federais, como cartazes, outdoors, panfletos entre outros. Elas não carecem de mais alunos. O seu objetivo não é o lucro, nem aumentar os dividendos. Abaixo, podemos ver um tímido movimento da Universidade de Brasília no sentido de usar algum recurso midiático. Esta imagem consta do site institucional da UnB, no link Estude na UnB: 78 Fonte: UnB, 2013. Em contrapartida, as instituições particulares gastam expressivas somas de seus orçamentos para atrair cada vez mais alunos para os seus cursos. A caça a clientes (alunos) tem sido intensa. As instituições privadas não medem esforços para alcançar esse propósito. A competição em torno da inovação e do diferencial no ensino é traduzida por campanhas desenvolvidas nos jornais, nas ruas e, principalmente, na interação face a face. Fonte: UNICEUB, 2013. 79 Um exemplo emblemático (embora com foco no ensino básico, e não no superior) dessa penetração estrangeira por meio de logomarcas de grandes e famosas instituições globais, e não locais, é o sistema Uno Internacional. Esse sistema, que se situa como parte do Grupo Santilhana, descreve-se como um sistema integrado por um conjunto de empresas que desenvolvem suas atividades na área de educação e promete oferecer aos países latinoamericanos soluções inovadoras para a educação do século XXI (UNO, 2013). Esse sistema tem apoio do Prisa (Promotora de Informações S.A), cujos acionistas são, entre muitos outros, o Banco Santander e a BBVA Bolsa. Como multimarcas parceiras desse sistema, chamados “nossos aliados” estão a Apple, a organização não governamental WWF, os canais de TV Discovery Kids, Animal Planet, entre outros, em sua maioria, americanos. Fonte: UNO, 2013. Nessa nova configuração das práticas discursivas, cabe o questionamento: o que está acontecendo com as identidades profissionais dos acadêmicos e com as identidades coletivas das instituições? O que se espera desse profissional em termos de autonomia, de competência, de conhecimentos, de cultura? Já no ano de 1872, o jovem professor de Filologia Clássica da Universidade da Basileia Friedrich Nietzsche sonhava com uma educação e, logo, com professores que formassem e não apenas que profissionalizassem. Panfletário da adesão à figura do mestre, Nietzsche (2003) alertava que uma voz (a do professor) que nos inspire respeito e admiração pode nos guiar na via da verdadeira cultura. Contudo, estes tempos da globalização, ao que tudo indica, deslocam o professor do lugar de referência para o lugar da simples mediação entre aluno e conhecimento. As consequências dessa alternância discursiva – guia/referência x mediador – é o que veremos a seguir. A identidade do professor no novo quadro da educação brasileira Um dos pontos preponderantes para o enfrentamento de uma sociedade mediada deve ser a preocupação com a construção da sua identidade. Segundo Thompson (2002), nas sociedades modernas, a natureza do eu, do self, em um mundo mediado, torna-se mais reflexivo e aberto. Concordamos com Thompson quando ele declara que os indivíduos dependem cada vez mais dos próprios recursos para construir uma identidade coerente para si mesmos. (...) o processo do self é cada vez mais alimentado por materiais simbólicos mediados, que se expandem num leque de opções disponíveis e enfraquecem – sem destruir – a conexão entre a formação e o 80 local compartilhado. Esta conexão é enfraquecida à medida que os indivíduos têm acesso a formas de informação e comunicação originárias de fontes distantes, que lhes chegam através de redes de comunicação mediada em crescente expansão (THOMPSON, 2002, p.181). Giddens (2002), por sua vez, diz que as mudanças nas sociedades modernas projetam um novo tipo de self que gera outros tipos de intimidade. As formas mediadas de comunicação aceleram essas transformações da intimidade. A interação mediada, por telefone ou por internet, constrói e solidifica um novo self que tem de aprender a filtrar, nas avalanches de informações mediadas, aquelas que efetivamente são significativas para si. Em suma: o homem contemporâneo deve tornar-se mais reflexivo. Nesse sentido, vejamos como as identidades dos profissionais da educação de instituições privadas de ensino superior, os professores, são definidas e repensadas por eles mesmos. Para que possamos compreender essas mudanças, é pertinente iniciarmos com algumas considerações sobre o lugar dos professores no novo quadro da educação superior no Brasil. O trabalho investigativo sobre a prática pedagógica de professores requer considerar, por um lado, que a racionalidade do sistema educacional atual não existe como unidade isolada, mas no âmbito dos centros escolares. Do mesmo modo, os professores não existem em sentido geral, pois apenas nas comunidades educativas eles colaboram entre si, como membros de uma comunidade na qual profissão e política têm vida concreta. Por outro lado, a descentralização educativa obriga a parcelar o corpo docente. Cada vez mais numerosas, as instituições particulares de ensino superior têm rompido as estruturas de organização das associações profissionais como unidades reivindicatórias diante de sua entrada cada vez maior do mercado na educação, o que tem roubado, subtraído, a capacidade de racionalização dos professores para outorgá-la aos consumidores. Na ideologia do mercado, quem manda não é a ciência, mas o gosto do consumidor, uma vez que o professor também se converteu em produto determinado pelo mercado. As antigas metáforas do professor intelectual, do professor definidor do currículo, do professor autônomo, independente, político-crítico foram substituídas pela nova ordem do discurso: a mercantilização do ensino. Com ela, o professor referência se torna professor mediador, pais e alunos se tornam clientes, colaboradores pedagógicos são substituídos por multimarcas internacionais, consultores viram coachs, conhecimento é substituído por informação e, de formador, passa a ser utilitário. A situação atual do mercado provoca mudanças no conceito de conhecimento que enseja novas práticas discursivas. É preciso atentar para o fato de que essas metáforas são construídas, intencionalmente, pelos construtores das políticas da educação e não pelos professores. Estes não têm uma profissão em ascensão na sociedade atual, nem nos países mais desenvolvidos, nem naqueles em desenvolvimento, grupo em que se inclui o Brasil (não é politicamente correto falar, na atualidade, em povos subdesenvolvidos). Ao mesmo tempo em que a profissão de professor não se encontra em ascensão, a mercantilização das práticas discursivas das universidades alcança uma dimensão que toma conta de toda a educação superior. As faculdades privadas 81 têm, cada vez mais, operado sob a permanente pressão do governo e dos mercados, como se fossem negócios comuns competindo para vender seus bens de consumo aos consumidores. De acordo com Woodward (2000), a construção da identidade é construída tanto no plano simbólico, como no social. A formação da identidade profissional do professor de instituições privadas de ensino superior passa por modificações e por transformações globais. A interação entre fatores econômicos e culturais provoca mudanças nos padrões de produção e de consumo e traz uma convergência cultural que pode levar a identidades normatizadas e partilhadas em diversas partes do mundo. Fairclough (2013) diz: A globalização pode talvez ser melhor vista não apenas como o desenvolvimento e a institucionalização de uma escala global, mas como a mudança nas relações entre a escala global e outras escalas (por exemplo, a escala local – cf. literatura sobre ‘glocalização’, como Robertson, 1992). Escalas de quê? Escalas de produção econômica e no consumo, as escalas de governança, escalas de prática cultural, e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2013, p. 4)4. É comum o discurso de que “você tem de ser o melhor produto”. No caso dos professores, estes têm de esforçar para se tornar semelhante a determinados produtos e marcas para que possam ser vendido. Ser professor hoje requer uma identidade adestrada para se conformar às exigências da empresa e do mercado em que atua. O bom professor, nesse contexto, não deve ser crítico, não deve pensar, deve, sim, ser como um funcionário de uma lanchonete de fast-food; deve ser apenas simpático, dar sempre razão para o cliente; deve saber o número e a cor do produto pedido. Em contrapartida, o professor que passar disso está fora do padrão da instituição superior e terá de ser demitido. De igual modo, no anúncio do IESB, instituição privada de ensino superior da cidade de Brasília, entre os serviços a serem oferecidos pela instituição à sua clientela (novos alunos) estão “os melhores: mestres, doutores, ministros e grandes referências”, todos alinhados na mesma escala de importância da “infraestrutura completa”, o que confirma a nova metáfora: a do professor produto. 4 82 Globalization can perhaps best be seen not just as the development and institutionalization of a global scale, but change in the relations between the global scale and other scales (eg the local scale – cf literature on ‘glocalization’ such as Robertson 1992). Scales of what? Scales of economic production and consumption, scales of governance, scales of cultural practice, and so forth. Fonte: IESB, 2013 83 Outro anúncio que segue a mesma tendência é o da Faculdade Icesp, que oferece “estrutura específica” e “professores altamente qualificados”: Fonte: ICESP, 2013. A tecnologização do discurso segue a tendência do discurso de alguns especialistas ou tecnólogos e não se importa de romper a tradição discursiva. De certo modo, confronta-se com a prática social. Na verdade, a práxis discursiva está representada nas práticas sociais e, quando ela ocorre, a prática social é desprezada em função das mudanças pretendidas. O que queremos dizer é que a tecnologização do discurso intervém na prática social, pensando no consumo e no consumidor final, confrontando-se com a prática social e com a cultura, alterando-a. Em verdade, a tecnologização age como rolo compressor, escondendo valores, lutas de poder, assim como a verdadeira simetria e a dissimetria das relações de poder presentes no discurso. Sob essas influências, as identidades dos profissionais da educação passam por modificações, pois, ao lado do fenômeno da tecnologização do discurso, temos a forte mercantilização do ensino, na qual temos o aluno como consumidor final e o professor como parte dos serviços a serem oferecidos a esse consumidor final, como vimos nos exemplos anteriores das propagandas de instituições privadas de ensino superior ao colocarem em pé de igualdade seus “professores altamente qualificados” com as “instalações modernas”. A formação das identidades profissionais: a ótica do professor As mudanças do mundo contemporâneo não têm desempenho solo; vêm acompanhadas de profundas mudanças que nos induzem a uma nova leitura. Castells (2002) fala de uma nova sociedade, a sociedade em rede. Vejamos o que ele diz: 84 As funções e os processos dominantes, na Era da Informação, organizam-se, cada vez mais, em torno de redes e isto representa o auge de uma tendência histórica. As redes constituem a nova morfologia das sociedades e a difusão da sua lógica modifica substancialmente as operações e os resultados dos processos de produção, experiência, poder e cultura. Embora a organização social, sob a forma de rede, tenha existido noutros tempos e lugares, o novo paradigma da tecnologia de informação fornece as bases materiais para a expansão da sua penetrabilidade em toda a estrutura social (CASTELLS, 2002, p. 605). O que Castells diz sobre o poder dessa nova sociedade informatizada é verdadeiro, e a instância em que essa presença é mais palpável é no discurso, o qual é perpassado por toda a modificação lexical que o mundo novo da Era da Informação requer e registra com prodigalidade nos eventos discursivos. Castells (2002, p. 607) diz que a morfologia da rede é também uma fonte extraordinária de reorganização das relações de poder e declara: Firmas de negócios e, cada vez mais, organizações e instituições, organizam-se em redes de geometria variável cuja interação supera as tradicionais diferenças entre empresas e pequenos negócios, atravessando setores e espalhando-se por diferentes agrupamentos geográficos de unidades econômicas. (...) essa evolução para as de gestão e produção em rede não implica o fim do capitalismo. A sociedade em rede, nas suas várias expressões institucionais é, por enquanto, uma sociedade capitalista. Para, além disso, pela primeira vez na história, a forma capitalista de produção modela as relações sociais em todo o planeta (CASTELLS, 2002, p. 607). Nesse sentido procuramos nos depoimentos de professores de instituições privadas de ensino superior suas impressões acerca de seu papel desempenhado dentro dessas instituições. É possível perceber que todos os depoimentos registram, fortemente, a sensação desses professores de se sentirem como uma mercadoria que faz parte do pacote. A busca pela titulação já não representa crescimento pessoal e profissional, mas sobrevivência financeira. Também se revelam exigências acerca do comportamento que os docentes devem apresentar em relação aos alunos, quais os critérios aplicados pela instituição para considerar o professor um bom profissional e quais procedimentos caracterizam as práticas em sala de aula. 85 Depoimento 1 A relação do professor com a instituição de ensino superior é bastante delicada em alguns pontos. Primeiramente, o professor é considerado bom quando não causa problemas, ou seja, quando tem ‘jogo de cintura’ para não causar problemas para os alunos e, consequentemente, para a instituição. Não causar problemas é não ser excessivamente rígido ou exigente, não ser inflexível com relação aos problemas do aluno (faltas, dificuldades na entrega de trabalhos, baixo rendimento e outros) e não levar suas dificuldades com os alunos para a instituição, mas resolvê-las. Esses pontos são indireta e recorrentemente mencionados em reuniões e em trabalhos coletivos, para que fique claro para o docente como deve proceder. Quando o professor corresponde a essa expectativa, ele é bem-visto e considerado um bom profissional. Ao contrário, se não corresponde a esses aspectos, é malvisto e pouco recomendado (informação verbal)5. Depoimento 2 Não sou sentimental, mas me deu vontade de contar uma história: comecei a dar em aulas [em instituições particulares] em 1992, assim que terminei minha graduação na UnB. Todas as esperanças e anseios de um jovem professor de 22 anos. Logo, porém, percebi que minha euforia era barrada pelo descaso de empresas que viam a educação como um negócio e que tratavam o professor como um qualquer. Naquela época, após ficar sem receber meu salário por alguns meses, decidi que iria me preparar para não ser tratado com aquele descaso e, então, entrei para o mestrado na UnB em 1994, passando em primeiro lugar no concurso. Sempre dando aula, terminei o mestrado com louvor. Logo depois aumentei minha carga em cursinhos pré-vestibulares e passei no concurso da Fundação Educacional do DF-FEDF, mas veio de novo o problema. Alguns cursinhos não pagavam, atrasavam. Ninguém fazia nada, e a gente ia se contentando com o descaso. Decidi então deixar de dar aulas. Fui trabalhar no Banco Mundial com educação, mas não aguentei um ano e fiz concurso para professor substituto da UnB e voltei a dar aula. Lá fiquei por dois anos e, quando saí, já estava no doutorado na UFRJ, buscando criar uma situação em que meu trabalho fosse reconhecido e respeitado. Hoje, depois de quatro anos de doutorado (estou terminando, tendo ele me custado um casamento, muito esforço para trabalhar em Brasília em duas empresas e estudar no Rio bancando a ponte área do meu bolso, o que me rendeu uma dívida com bancos que pago até hoje), de novo alguém me diz que eu não mereço respeito e que não devo ser pago por meu trabalho. Cansei (informação verbal)6. 5 6 86 Entrevista concedida em: março de 2004. Entrevista concedida em: março de 2004. Depoimento 3 Sou professor de Língua Portuguesa em uma instituição de ensino superior há treze anos, e isso tem sido uma luta titânica por vários fatores. Tenho recebido muitos alunos com problemas de alfabetização. Na sua grande maioria, não são letrados formalmente, pois leem, mas não sabem o que leem ou leram, não discutem, não aplicam, não extrapolam às suas vidas. Apresentam-se com um discurso naturalizado – pela sociedade e pela escola – sobre o que é estudar a Língua Portuguesa. Percebe-se baixa autoestima em relação ao próprio idioma. Tenho questionado a política governamental para o ensino de Língua Portuguesa, os conteúdos programáticos de instituições dos ensinos fundamental, médio e superior, os conteúdos que me foram [e ainda] são passados, o que ensino e até minha postura como educador. E me pergunto sempre – apesar de algumas respostas terem sido delineadas anteriormente – o que terá acontecido a esse estudante, que cursou, no mínimo, onze anos de Língua Portuguesa padrão e ainda não tem domínio da modalidade prestigiada da linguagem, já que a escola está aí para ensiná-la. Tenho pensado em resolver essa deficiência dos discentes que se me apresentam, vindos de um vestibular que se aplica para constar, mas, na realidade, muitas instituições privadas – que em Brasília já passam de 70 – querem é ver as salas cheias, dentro de uma concorrência acirrada por alunos, e dinheiro, e entram em uma produção em série de profissionais, não necessariamente preparados. Essas instituições mostram-se distantes dos problemas que abrigam e dos padrões ideais, ou pelo menos próximos ao ideal, mostrando-se incapazes de lidar com a adversidade e com a heterogeneidade dos fenômenos de língua que perpassam o social (informação verbal)7. Foucault (1971) fala que a vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se em uma base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora e os laboratórios hoje. Para ele, essa vontade de verdade, apoiando-se em uma base e em uma distribuição institucionais, tende a exercer, sobre os outros discursos, uma espécie de pressão e certo poder de constrangimento. Ele pensava na maneira como as práticas econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente até como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificarse em uma teoria das riquezas e da produção. Daí a inquietação de Foucault face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; em face dessa existência transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence. Inquietação por, na atividade discursiva, quotidiana e banal haver poderes e perigos que sequer adivinhamos. O próprio Foucault pergunta “mas o que há assim de tão perigoso por 7 Entrevista concedida em: março de 2004. 87 as pessoas falarem, qual o perigo de os discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?” (FOUCAULT, 1971, p. 2). Ele não responde, mas supõe que “em toda a sociedade, a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade” (FOUCAULT, 1971, p. 2). Para Foucault, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos nos assenhorar. Por isso, para ele, A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo (FOUCAULT, 1971, p. 12). Por isso, apesar desse jogo de tensões que sustenta os discursos sociais dialeticamente, defendemos que o professor deve se assenhorar do próprio discurso, do próprio papel na sociedade e na formação de cidadãos críticos. Assim, ele poderá oferecer certa resistência, como veremos a seguir. É hora da resistência Apesar de toda essa tendência à homogeneização cultural, a globalização pode incitar a resistência e a reafirmação de identidades locais. Nesse sentido, a reportagem intitulada Mcdonaldização do Ensino: universidades e escolas adotam o modelo da fast-imbecilização trata da importação, por parte de universidades e de escolas brasileiras, dos processos de controle operacional da empresa global McDonald: racionalizar para produzir resultados, os quais são avaliados em termos de quantidade, e não de qualidade. Com base no livro de Ritzer, The Mcdonaldization of society, Alcadipani e Bresler (2000), autores desse artigo, testemunham como essa racionalização típica da sociedade norte-americana invadiu instituições brasileiras, suportada pela busca do lucro e da manutenção das relações de poder. Nesse cenário, segundo o artigo, os professores viram produto; os alunos viram clientes; os donos de cursinhos e de escolas públicas viram empresários (alguns, ricos); os diretores e os reitores se orgulham de gerenciar organizações educacionais como se fossem corporações; os ombudsmen entram nas instituições educacionais, privilegiando as reclamações individuais e esvaziando as coletivas; o vestibular se torna mera burocracia; os debates dão lugar a um consenso mudo; a ideia da cartilha da alfabetização permanece em várias disciplinas; e os planos das áreas acadêmicas são calcados em pontuações, o que aumenta a pressão para docentes e discentes publicarem. 88 Apesar desse cenário de emergência que os autores chamam de escolas-lanchonetes, esses mesmos autores apontam uma esperança nos jovens que, mesmo estudando em instituições formatadoras, demonstram capacidade de refletir e de criticar, resistindo à coisificação e à quantificação das pessoas. Por isso, eles defendem que é essencial desmistificar a transmissão da técnica, dando lugar a uma formação mais ampla, capaz de incentivar a relfexão, a crítica e a invenção. Portanto, é hora da resistência. Cursos de graduação e de pós-graduação devem ser oferecidos com base em suas qualidades acadêmicas, como organização curricular e corpo docente, programas de pesquisa, nível de publicações e prestígio institucional e não por serem rápidos como café instantâneo, baratos, como feira popular e descompromissados como um convite para um dia no parque. Ao falar em resistência, fazemos nossas as palavras de Rajagopalan (2002), que, com propriedade, diz: Não há sentido em falar em resistência sem se referir, no mesmo ato, a forças coercitivas que, num dado momento histórico, estejam atuando sobre um sujeito, acuando-o de forma cerrada com intuito de sufocálo, esmagá-lo ou, no mínimo, domesticá-lo ou neutralizá-lo. Isto é, a resistência é sempre resistência a algo, via de regra uma força opressora poderosa demais para ser repelida de uma só vez (RAJAGOPALAN, 2002, p. 204). A questão da resistência desperta cada vez mais interesse na discussão da chamada empowerment education, que trata da possibilidade de criar condições para que educadores que atuam em situações marginais desenvolvam formas de resistência para o enfrentamento das injustiças sociais a que os alunos estão sujeitos. Fairclough defende também essa resistência nos seguintes termos: Acredito que a análise de discurso é um recurso importante, embora relativamente negligenciado, (…) a análise do discurso também tem a capacidade de ser um recurso para aqueles engajados em lutas dentro das instituições. Para muitos membros de instituições de educação superior, por exemplo, as mudanças dramáticas da última década têm sido profundamente alienantes; contudo sua capacidade de resistir a elas tem sido enfraquecida por sua relutância em recorrer a práticas e estruturas que têm sido amplamente criticadas pela esquerda e pela direita e que tem sido o alvo da mudança (FAIRCLOUGH, 2001b, p. 69). 89 Entendemos que uma maneira saudável de resistência a essas nefastas mudanças no discurso da educação seria procurar desenvolver condições favoráveis para esses sujeitos que, fortalecidos pelo desenvolvimento de uma consciência crítica, estariam em condições de competir por um espaço legítimo na sociedade. Estamos no início de novo milênio e no meio de um turbilhão de mudanças. Nesse sentido, podemos falar de uma nova ordem do discurso, a ordem do discurso das mídias – o poderoso discurso midiático. Quem não estiver preparado criticamente para lidar com esses novos discursos não terá como opor resistência a esses momentos críticos que estamos vivendo. A Unesco, por meio da publicação A criança e a mídia: imagem, educação e participação, organizada por Cecília Von Felitzen e Ulla Carlsson, traz excelente contribuição para a discussão do preparo da criança para o enfrentamento da força das mídias, pois a informação flui de forma cada vez mais livre, e a nova ordem possibilita que pessoas de todo o mundo compartilhem sons e imagens. Para podermos lidar com todas essas mudanças no mundo da informação, os sujeitos do discurso têm de estar preparados. A esse respeito, Felitzen (1999) declara: Naturalmente, a educação para a mídia e a participação das crianças na mídia não são os únicos meios de criar um ambiente melhor para a mídia e certamente não constituem o único meio de criar condições sociais mais razoáveis para as crianças. Ao contrário, também são necessários esforços importantes da parte da mídia - na forma de, por exemplo, auto-regulamentação e produção de programas de rádio e TV de alta qualidade, que satisfaçam as várias necessidades infantis (FELITZEN, 1999, p. 20). Kumar (2002, p.285), sobre a questão da educação para a mídia hoje, afirma: A educação para a mídia ainda tem que se firmar como tema de aprendizagem nos sistemas de educacionais formais tanto dos países industrializados como dos não industrializados. As autoridades escolares públicas e privadas, embora estejam preocupadas com o crescimento e influência da mídia de massa, não vêem necessidade em sobrecarregar os alunos com um novo assunto, cujo conteúdo e metodologia não se encaixam nas práticas educativas tradicionais. As tentativas vigorosas da UNESCO, por mais de uma década, para promover o assunto nos vários níveis de educação, tiveram muito pouco sucesso, exceto alguns países do Ocidente (especialmente Austrália, Grã- Bretanha e Canadá) e na América Latina (KUMAR, 2002, p. 285). 90 Outra maneira de opormos resistência a esse discurso contrário à excelência da educação em todas as instâncias do ensino fundamental ao ensino superior é preparamos um currículo que permita um ensino que enseje o preparo do aluno para lidar com as mídias e com a multimodalidade do discurso contemporâneo. Os sujeitos do discurso, quer adultos, quer crianças, devem estar preparados para um mundo multimodal, povoado de imagens, de sons, de movimentos, de gestos, para poderem desvendar discursos. Quem não souber lidar com esse tipo de discurso estará em séria desvantagem, pois facilmente poderá ser manipulado por toda sorte de informação que use recursos semióticos em discursos multimodais. A resistência efetiva é saber interpretar criticamente a natureza desses novos discursos. O que nos resta fazer com a emergente força da imagem no momento atual de nossa história é voltarmo-nos para a educação como um meio legítimo de transformar as classes populares em verdadeira massa crítica de nossa sociedade. Afinal, a efetiva e completa ação cidadã deve passar pelo papel de desconstrutora da ação alienadora da imagem para uma avaliação crítica de tudo o que vemos. Aprender a tratar com o excesso de informações do mundo mediado das sociedades modernas é outro portentoso recurso de resistência. Conclusão Por fim, as publicidades apresentadas no artigo revelam que foram concebidas com o propósito de vender imagens de cursos, cujo propósito principal é o de ser um produto barato, de rápido consumo e de fácil circulação. A preocupação com a titulação dos docentes que ministram tais cursos foi mencionada apenas para valorizar a oferta dos cursos, o que aponta para uma nova identidade dos professores apenas mais uma mercadoria, um mero produto no mundo do consumo. De igual modo, também não servem para a chamada de alunos-clientes atributos como qualidade de ensino, grades curriculares especiais e contemporâneas que contemplem as necessidades locais e que atendam à nossa cultura regional, ao mesmo tempo em sintonia com o discurso global. A discussão do tema não se esgota aqui e poderia ser ainda amplamente aprofundada, mas, para os propósitos do artigo, entendemos que chamamos a atenção para o fato de que a educação brasileira se tornou mais uma mercadoria na sociedade mediada do mundo contemporâneo. Acreditamos que a profundidade, a relevância e a abrangência do assunto possa provocar a atenção de outros pesquisadores. Referências ALCADIPANI, R; BRESLER R. 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Petrópolis: Vozes, 2000. 93 HEGEMONIA E INSURGÊNCIA NO DISCURSO CINEMATOGRÁFICO: O PENSAMENTO SOCIAL CRÍTICO Dina Maria Martins Ferreira (UECE)1 Tibério Caminha Rocha (UECE)2 Este estudo tem por objetivo fomentar discussões sobre a importância do discurso cinematográfico como prática social, haja vista os efeitos de sentido construídos na sociedade. Nossa argumentação visa à desmistificação da supervalorização estética da cinematografia em prol de sua avaliação crítica, já que não podemos negar o seu papel de (re)produção de representações da sociedade, que, muitas vezes, naturalizam interpretações de mundo; marcas ideológicas, partícipes do construto de sentidos, são, muitas vezes, veículos alegóricos que camuflam as representações sociais que ali se manifestam, sejam em seu roteiro, sejam em sua mise-en-scène. Nosso objeto em foco, o filme Clube da Luta é, aqui, apresentado como um veículo de contestação do modelo de cultura do consumo socialmente construído. A narrativa fílmica é analisada a partir da hipótese de que a ficção está ao alcance da representação do cotidiano vivido e, como tal, uma prática social, enquanto construção social da realidade. A trilha retórica e argumentativa se organiza em torno de pressupostos conceituais de Adorno e Horkheimer (cf. ADORNO, 1987) sobre a indústria cultural, aliados à visão crítica de Thompson (1995) a respeito dos meios de comunicação de massa; teia em que se articulam os estudos da significação discursiva e situacional propostos pela pragmática contemporânea. Palavras-chave: indústria cultural; prática social; ideologia; representação social. 1 2 Pós-Doutorada pela Université Paris V, Sorbonne e pela Unicamp; membro da ABRALIN, ALED, GT ANPOLL e CEAQ (Centre d’Études sur les Actuels et le Quotidient, da Université Paris V, Sorbonne); desenvolve estudos na área de de Análise do Discurso Crítica, em Pragmática e Linguística Aplicada; autora do livro Políticas em Linguagem: perspectivas pragmáticas (2006), Não pense, veja, o espetáculo da linguagem no palco do Fome Zero (2006), Discurso Feminino e Identidade Social (2009, 2a. ed.), Imagens: o que fazem e significam (2010), entre outros; dinaferreira@terra.com.br Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada /UECE; desenvolve pesquisas na área da Análise do Discurso Crítica e da Pragmática, com ênfase em representação social e ideologias; tiberiocaminha@ gmail.com 95 Considerações iniciais A partir de 1923, com a publicação do Manifesto das Sete Artes3 pelo teórico e crítico de cinema italiano Ricciotto Canudo, o cinema passou a ser designado de “a sétima arte”, por reunir em um todo os elementos básicos que constituem o corpo de cada uma das artes precursoras, que se sujeitam a seguinte classificação: 1. Música (som), 2. Dança (movimento), 3. Pintura (cor), 4. Escultura (volume), 5. Teatro (representação) e 6. Literatura (palavra) (Gimello-Mesplomb, 2011). O poder de historiar e registrar acontecimentos também caracteriza o cinema como uma forma de arte, tornando-o parte irredutível do contexto social, pois é aí que o conceito de arte é redefinido como um modo particular de prática ao lado da produção, consumo, linguagem etc. A arte é, então, destituída de sua posição em um patamar privilegiado, prerrogativa concedida anteriormente às classes abastadas, e restituída em um lugar de cultura comum, ordinária, por intercambiar significados comuns, que rodeiam os corredores do cotidiano da vida ordinária. Dirigida por David Fincher em 1999, a adaptação para as telas do best-seller Clube da Luta (1996), de Chuck Palahniuk, torna evidente a possibilidade de a cinematografia funcionar como veículo de contestação de padrões preestabelecidos e de emulação de um pensamento social crítico. A narrativa do filme Clube da Luta gira em torno de um trabalhador assalariado anônimo de classe média incapaz de adequar-se tanto ao estilo americano de vida quanto à cultura do capitalismo. Na tentativa de expurgar o desconforto que sente em relação ao mundo, o protagonista decide experimentar a vida fora dos padrões considerados pelo senso comum como normais, fundando um clube privado de lutas em parceria com o vendedor de sabonetes anti-social Tyler Durden. Através de personagens complexos e de um roteiro com conteúdo irônico e mordaz de difícil digestão, o filme instiga a audiência a pensar sobre o modelo de sociedade consumista em que vivemos. Percurso histórico-conceitual Estabelecendo uma correspondência baseada em graus de semelhança, diferença e relação entre o cinema e as outras artes, a cinematografia destaca-se por ter a capacidade discursiva sincrética de agregar esferas codificadoras diversas, tais como imagem em movimento (daí a categorização cinema, em grego skiné), fala (e legendas, quando é o caso), som, tanto na esfera temporal quanto na espacial ‒ cuja forma de representação, muitas vezes, reflete-se na experiência cotidiana. Porém, segundo Vernet (1995), a grandeza avaliativa de tais paralelismos está na dialética entre o realismo cinematográfico e o realismo de outros tantos modos de representação (outras artes), e não apenas em relação ao mundo real ‒ aí a abordagem valorativa de uma sétima arte atribuída à indústria cinematográfica. 3 96 Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte de Canudo ocorreu em 1912, mas só foi publicado em 1923, no entanto, Canudo já tinha publicado em Paris, 1911, o artigo “La naissance d’un sixième art. Essai sur le cinématographe”. Com o advento do Centro de Estudos Culturais Britânicos4, em Birmingham, os estudos culturais, até então focados nas condições de que significados de âmbito social são produzidos pela cultura, ganham novo fôlego, porquanto introduz no campo dos Estudos Culturais a teoria do cinema: demonstrou-se que esta tinha interseções com metodologias procedidas de outras disciplinas, tais como a semiótica, a psicanálise, a linguística e a antropologia, ampliando, assim, o campo de pesquisa a respeito dos processos das práticas culturais. O próprio conceito de cultura foi redefinido “como o processo que constrói o modo de vida de uma sociedade: seus sistemas para produzir significado, sentido ou consciência, especialmente aqueles sistemas e meios de representação que dão às imagens sua significação cultural” (TURNER, 1997, p. 48). E sendo o cinema considerado um ‘produto’5 cultural, pode ser analisado como uma estrutura complexa, cuja composição excede os limites impostos pela própria forma fílmica, pondo sua construção ao alcance da representação – “o processo social de fazer com que imagens, sons, signos, signifiquem algo” (Ibidem, idem). Neste sentido, a indústria cinematográfica passa a ser considerada como um exercício de influências em instâncias sociais, uma vez que toda representação é uma prática de significação que (re)produz cultura (HALL, 1997). O conteúdo sociocultural da cinematografia, articulado por meio de um sistema de códigos semióticos e/ ou linguísticos, passa então a dar vazão a questionamentos voltados à representação, à (des) construção de identidades, à produção ideológica do consumo e outros tantos . No que tange a questões referentes à produção do consumo no discurso cinematográfico, tal produção atua em um nível ideológico, inconsciente ou conscientemente, pois as práticas sociais são motivadas por um tipo específico de interesse e subjetivação, ou seja, a relação entre texto (discurso cinematográfico, no caso), sociedade e cultura está imbricada de considerações ideológicas. Para que entendamos a prática cultural como efetiva em uma determinada sociedade, é necessário também observá-la atuando em círculos invisíveis, naturalizados e ‘pseudo’ desinteressados, o que nos remete de novo ao modus operandi da ideologia. Daí a dificuldade de dissociar cultura de ideologia, pois, mesmo que a esta não assuma forma material ‘mostrada’, seus efeitos são perceptíveis nas manifestações culturais. Circunscrevendo o cinema ao conceito de meio de comunicação de massa, no livro Ideologia e Cultura Moderna (1995), Thompson chama a atenção para o sentido do termo ‘massa’. Segundo o autor, (...) o termo “massa” não deve ser tomado em termos estritamente quantitativos; o ponto importante sobre comunicação de massa não é que um determinado número ou proporção de pessoas receba os produtos, mas 4 5 Em 1964, pesquisadores britânicos oficializam a criação do Centre for Contemporary Cultural Studies (hoje conhecido como a disciplina Estudos Culturais), na Universidade de Birmingham, para investigar questões culturais sob a perspectiva histórica, criando um novo campo de pesquisa sobre os fenômenos comunicacionais em sociedade. No entanto, já havia trabalhos precursores, tais como E.P.Thompson (1963) The Making for the English Working Class. Outro autor destacado desse centro é Stuart Hall (Representation: cultural representations and signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage, 1997), que procurou mostrar a importância do estudo da ideologia para se compreender a estrutura social de poder, sustentando que a comunicação social era produtora e reprodutora de ideologias. Usamos o termo produto entre aspas simples, para chamar a atenção que a noção de cultura não se estabelece como um produto fixo e acabado em si mesmo, e sim por uma contínua prática social. 97 que os produtos estão, em princípio, disponíveis a uma pluralidade de receptores (THOMPSON, 1995, p. 287). No senso comum, ao nos referirmos às grandes audiências através do termo ‘massa’, poder-se-ia estar sugerindo que o todo-massa seja constituído por aglomerações de indivíduos passivos e indiferentes, ou seja, como se coletividade tivesse uma acepção fundamentalista, senão essencialista e fixa. No entanto, Thompson (Ibidem) nos alerta sobre o fato de quão ilusória é tal interpretação, pois ela cria a falsa consciência de que, mesmo que as mensagens construídas/transmitidas pela indústria do cinema sejam acessíveis a um público relativamente amplo, não existem audiências, sejam quais forem, particulares ou massivas, pequenas ou especializadas, que não ocupem seus lugares em seus contextos sócio-históricos. O dito todo-massa não anula a subjetividade da significação nem a capacidade de interação, ou seja, o público interpreta sentidos e intenções construídas no discurso fílmico, em um processo ativo: subjetiva a significação, integrando-a a outras esferas de atividade do cotidiano vivido. Ilustrando algumas interações observadas pelos pesquisadores: no filme Clube da Luta, espectadores ao final do filme comentam: Que filme ruim, violento! Por que tanto sangue?; no filme Beleza Americana6, alguns sentem mal-estar, uns conscientemente por se refletirem em um cotidiano de aparência burguesa, outros apenas clamam por uma diversão mais leve, tipo filme de amor com happy end. Conscientemente ou não, a interação com o cotidiano e suas representações aí se presentificam. Perspectivas da indústria cultural cinematográfica Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987)7 reprovam as nomenclaturas “cultura de massa” ou “cultura popular”, pois, ainda que habituais, tais expressões reforçam a crença de que tais tipos de cultura tratam-se de manifestação da arte popular, emergindo ‘naturalmente’ das próprias massas. A expressão “indústria cultural” foi, justamente, trazida à luz por tais autores na intenção de não só evitar a ambiguidade de sentido que permeia as expressões mencionadas anteriormente, mas também de intervir na acepção de que o discurso fílmico, por exemplo, seja um produto audiovisual adaptado ao processo que eles chamaram de “mercantilização de formas culturais” por uma empresa capitalista. Em uma sociedade de consumo, em que o homem utiliza para satisfação das próprias necessidades e desejos tanto bens materiais quanto signos, a unicidade da arte é banalizada pela demanda dos tempos modernos e a cultura é transformada também em mercadoria (ANDRADE, 2000). Uma vez que a grande arte caiu sob o peso da linguagem do comércio, da produção e do consumo e sua razão vinculada à consumação das massas, a indústria cinematográfica transformou a esfera cultural, consequentemente, em um campo de lutas hegemônicas. É 6 7 98 Beleza Americana, filme dirigido por Sam Mendes, de 1999, premiado com Oscar, justamente pela intenção crítica de uma representação da sociedade americana burguesa. Referimo-nos a ambos os pensadores Horkheimer e Adorno, mesmo que a referência bibliográfica esteja em publicação de autoria de Adorno, porquanto o texto trabalha o tempo todo com o pensamento de ambos. Daí quando do uso de ambos os nomes se colocar na referência o “cf.” importante enfatizar que o sistema ideológico em que a cultura se insere não é estável, ou seja, grupos, gêneros e classes competem entre si, motivados por interesses contrários, pela dominância ininterruptamente – daí podermos entrever o processos de resistência. Assim, através da reprodução constante de fórmulas prescritivas, o cinema passou, também, a servir de instrumento de dominação, que age por meio do convencimento, alienando o pensamento crítico e autônomo das massas (ADORNO, 1987). De acordo com o raciocínio de Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987) determinados gêneros cinematográficos exerceriam a função de simular à realidade nas telas, reduzindo a nada a importância do papel da memória social do homem, e de favorecer aos interesses das classes dominantes, impedindo a urgência de um momento de transição em seu meio “pela difusão de informação e de conselhos, e de padrões aliviadores de tensão” (Ibidem, p. 291). Hipoteticamente, a repetição exagerada de um modelo estandardizado de roteiro não se trataria, então, de uma questão de falta de criatividade, mas sim de uma tentativa de manutenção da ordem social através de um ‘produto’ cultural, e consequente empobrecimento de sentidos, o que faria o público espectador digerir apenas o montante de informação que a indústria cultural disponibilizaria. Ainda que houvesse espaço para transformações e inovações no cinema, estas teriam que se encaixar em um jogo de intenções, tendo sempre em vista as necessidades do produtor e não a do consumidor. A hipótese de que a indústria cinematográfica induz à apatia social e sustenta as relações de dominação exemplifica o poder de persuasão e dissuasão do discurso cinematográfico, mas se nos ativermos apenas a esta visão simplista e conservadora apresentada por Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987), a gama de possibilidades que tal meio oferece ao homem ficaria bastante restringida. O cinema é, também, um lugar para a insurgência de um pensamento social crítico. A interpretação desses pensadores sobre a natureza da indústria cultural nos serve de advertência para uma faceta dos meios de comunicação de massa que as próprias massas ignoram. No entanto, a suposição de Thompson (1995), de que há audiências específicas constituídas por receptores ativos, aponta para a ampliação deste conceito em relação ao papel do consumidor crítico e autônomo do produto midiático. A questão da ideologia ressurge não apenas sob o caráter de “deformadora da realidade”, mas também como “forma autônoma, aliada a práticas sociais concretas – simbólicas e imaginárias – que podem transformar indivíduos em sujeitos ativos e participantes dos processos sociais, culturais e políticos” (BORELLI, 1995, p. 75). Os processos ideológicos atrelam-se ao skiné, imagem em movimento, construindo significações e subjetivações através de um sistema de representações, dando vazão à nova abordagem dos estudos críticos do cinema sugerida por Vernet (1995), visto que a união entre ideologia e cinema põe em evidência a existência de relações entre o discurso cinematográfico e a sociedade e entre registro e acontecimento, assim como introduz uma possibilidade de rupturas com a tradição sociocultural “imposta” ao público receptor. 99 O discurso cinematográfico apresenta dimensão ideológica à medida que se estabelece uma correlação entre as impressões deixadas no roteiro e na mise-en-scène com as próprias condições socioculturais de produção do filme. Tal dimensão ideológica se insere, de fato, na formação identitária do espectador de forma explícita ou subliminar, porquanto os modos de construção dos sentidos do discurso sincrético (no caso o cinético) ‒ linguagem sonora, gestual e corporal e representação visual ‒ interagem com o indivíduo espectador. Interpretamos, assim, que as condições de produção de sentidos refletem o próprio contexto sociocultural situado; o cinema, sendo uma prática social com construções ideológicas, constrói sua reflexibilidade cultural por intermédio das relações entre o seu produtor e a sociedade, ambos no universo do situatedness. Clube da Luta: representação e ideologia A adaptação do best-seller Clube da Luta (1996), de Palahniuk, para as telas reproduz a visão de mundo particular do diretor estadunidense Fincher (1999). Essa percepção de mundo é a interpretação da sociedade pelo indivíduo, mas ao fazermos tal afirmação tornase necessário esclarecermos que a experiência e as percepções individuais são orientadas pelo modo de vida e pelas práticas coletivas; em outras palavras, a representação parte do imaginário social para alojar-se na consciência individual (MOSCOVICI, 2010). Por tratar-se de uma construção social, e como tal não apenas individual, pois a visão de mundo retratada em Clube da Luta traça correlações de elementos tanto da realidade do diretor quanto do espectador – representação, regulação, produção, identidade, consumo etc. ‒, o sentido do filme só pode ser determinado através da análise dos significados partilhados entre o produtor e o consumidor. Nesses termos, a mensagem transmitida pelo filme Clube da Luta, que serve de ponte de informações entre a produção e a massa consumidora, é articulada dentro de um sistema de trocas simbólicas, onde é determinante que o autor e o receptor tenham categorias de percepção e avaliação de mundo análogas para que sejam efetivas (BOURDIEU, 1996). O que é importante aqui é a permuta de visões de mundo, conhecimentos e crenças comuns, entre pessoas inscritas em um mesmo contexto histórico-social, mesmo que a comunicação estabelecida entre o cinema e o público espectador não obedeça aos parâmetros de uma situação dialógica de conversação usual. É essencial tomarmos em consideração a linha de pensamento traçada anteriormente para a compreensão do fato de que a construção do personagem principal, como um narrador anônimo, dá margem para que a questão da representação social (re)produzida no filme seja apreciada a partir de outros pontos de vista, não apenas como um ideário inerente de Fincher. A falta de uma identidade específica torna implícita a relação existente entre o protagonista do Clube da Luta e o indivíduo que pertence às ‘massas’, ou seja, o anti-herói da trama pode servir de referência para qualquer sujeito que veja, sinta ou julgue o mundo a partir do mesmo contexto situacional. 100 Esse ‘qualquer sujeito’, o protagonista em um contexto situacional, é interpretado pelo ator Edward Norton, [...] um trabalhador assalariado anônimo em uma companhia de automóveis de classe média. De acordo com as regras de conduta de seu meio social, o protagonista veste-se de um modo tradicional, senão formal,que se adéqua ao vestuário habitual de escritório. Uma vez que o estilo de vida do Narrador [representação individual/modo de identificar] não pode contrastar com seu ambiente de trabalho [representação coletiva/ identificação relacional8] – o que configuraria uma contradição social –, o personagem mora em um condomínio residencial no centro da cidade, de cômodos com utensílios e móveis condizentes com seu poder aquisitivo, ou capital econômico (ROCHA, 2013, p. 92). Inferimos, então, que a intenção do diretor seria de que o personagem representasse nas telas de cinema a figura do homem comum da classe média americana cujo estilo de vida não o dissociasse do coletivo. Embora a perspectiva em foco seja a de Fincher – pois não é nossa proposta negar a autoria –, a problemática da construção identitária do protagonista apresenta-se propositalmente ambígua em termos de ‘quem’ Norton está representando no discurso cinematográfico – se é uma instituição, o espectador ou o diretor. Uma vez que a falta de clareza na mensagem da narrativa fílmica é intencional, podemos concluir que a responsabilidade pela interpretação de sua significação cai sobre o público receptor. Seguindo a conjunção lógica de argumentos de Thompson (1995), ainda que Clube da Luta seja um produto da indústria cultural disponível para o consumo das grandes massas, o filme encontrou o seu público nas audiências pequenas e especializadas, que conseguiram se ‘identificar’ com a representação que se vê nas telas e, consequentemente, capturar o sentido do filme ‒ crítica à sociedade de consumo. 8 Segundo a definição de Ramalho e Resende, “a identificação relacional diz respeito à identificação de atores sociais em textos em termos das relações pessoais, de parentesco ou de trabalho que têm entre si. Esse tipo de identificação é ‘relacional’ no sentido de que depende das relações sociais e das posições em que os atores ocupam” (2011, p. 131). 101 Convém, aqui, lembrarmos de que Clube da Luta é um filme de difícil compreensão para o espectador que tem o hábito de consumir as produções típicas do cinema de Hollywood, ‒ representação de sistemas de previsibilidades da realidade ‒, devido ao conteúdo intelectual elaborado implícito de sua narrativa, que corrói progressivamente paradigmas naturalizados. De acordo com Kellner (2001, p. 135), Deve-se notar, porém, que o cinema de Hollywood enfrenta severas limitações no grau com que pode preconizar posições críticas e radicais em relação à sociedade. Trata-se de um empreendimento comercial que não deseja ofender as tendências dominantes com visões radicais, tentando, portanto, conter suas representações de classe, sexo, raça e sociedade dentro de fronteiras preestabelecidas. Por abordar temas tabus que transgridem regras sociais básicas, como violência, terrorismo, sexo e drogas, e por questionar um sistema de valores já cristalizado na cultura, a prática do consumo, o filme em si selecionou o seu próprio público. Esta hipótese é confirmada pelo status de cult movie que Clube da Luta alcançou no ano de seu lançamento em DVD, independente da fama ou do reconhecimento no circuito comercial. Turner (1997, p. 100) nos dá uma ideia do processo de identificação do público com o filme: Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o público não comparece aos cinemas iludidos por campanhas publicitárias falsas ou enganosas. Uma frase geralmente usada pelos produtores refere-se ao filme “que encontra o seu público”, e esta é a descrição mais precisa do que realmente acontece. A justificativa de Fincher para a violência explícita em profusão no corpo do filme é a tentativa de alertar as grandes audiências para os perigos de um sistema social capitalista e consumista que insiste em impor, de maneira direta ou indireta, normas de conduta e estilos de vida para que o homem se encaixe no modelo de sociedade em vigor. Tal violência é uma metáfora, senão uma alegoria, que o diretor utiliza para ilustrar a negação e a insatisfação do indivíduo contemporâneo em relação à cultura do consumo propagada pelos próprios meios de comunicação de massa. Entendemos o discurso fílmico Clube da Luta como uma alegoria, pois se trada de um tecido retórico discursivo que constrói uma dialética entre o sentido ‘literal’ e o ‘figurado’, dialética de virtualizações de sentido. Melhor explicando, o que chamamos de sentido ’literal’ seria o aspecto classificatório primeiro, explícito, de ser o filme apenas uma narrativa de violência (para alguns, até de pertencer à categoria de um filme de ação), mas que, no entanto, aí não se fixa, pois implicita e projeta um sentido mais profundo (chamado de figurado) que nos empurra para a representação de uma sociedade corrosiva e corroída pela necessidade do consumo. Ratificando, o sentido (a) ‘literal’ estaria para um filme interpretado apenas como um espelho da violência, que remete ao sentido (b) o figurado – discurso crítico contra 102 a hegemonia de uma sociedade de consumo. Mas ao também designarmos o filme como metafórico, não estamos jogando fora sua tessitura alegórica, pois poderíamos afirmar que um discurso alegórico é alimentado por metáforas. Ou seja, sendo o filme uma alegoria, por sua própria natureza, ‘con-figura’ e ‘re-con-figura’ – se mostra (figura) junto (com) a algo e de novo (re) se mostra (figura) junto (com) a algo –, e sendo o filme constituído por metáforas, o mesmo movimento complexo se dá na constituição metafórica que continuamente alarga e expande sentidos9. Ambas tessituras se retro-alimentam na construção de uma crítica social anti-hegemônica: se a violência é a corporificação das lutas e conflitos presentes no imaginário social, o Clube da Luta é emancipação do, resistência ao e insurgência contra o mal-estar da sociedade. Segundo Turner (1997, p.76), a função da narrativa pode ser tomada em consideração apresentando duas possibilidades distintas ao homem: “A primeira é que a narrativa pode ser uma propriedade da mente humana, como a linguagem; a segunda é que a narrativa talvez desempenhe uma função social essencial que a torna indispensável para as comunidades humanas”. Ainda, de acordo com a argumentação desse autor, o papel da narrativa do filme Clube da Luta é resolver simbolicamente a questão da inclusão e exclusão social determinada pela prática do consumo, que não pode ser resolvida no mundo real, pois é tida na consciência das massas como consequência natural da existência do homem – uma problemática social menosprezada por já estar interiorizada, senão naturalizada, no conceito de cultura. Em vista disto, o discurso cinematográfico em foco procura dar vazão a uma nova interpretação de sentido do mundo através de uma representação social crítica. Como se pode notar, não seria correto resumirmos o conteúdo do Clube da Luta como somente um filme que faz apologia à violência, existe muito mais de forma subjacente. A intenção do filme contradiz a hipótese sugerida por Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987) de que o papel da indústria cultural seria apenas o de proporcionar entretenimento ao público que consome o produto midiático, alienando a consciência das massas “sem oferecer ao consumidor as condições necessárias ao pensamento crítico” (ANDRADE, 2000, p. 36), e de que trabalharia a favor da manutenção de relações de dominação. Ao contrário, a proposta do filme Clube da Luta é fomentar a discussão a respeito da inadequação do ser humano frente à nova realidade chamada pós-moderna, mas que estimula sentimentos primitivos, como o do individualismo e o da agressividade. Com efeito, o tema central do romance escrito por Palahniuk (1996), e posteriormente, adaptado para as telas por Fincher (1999), faz parte de uma série de fatores que reforçam, formam ou alteram as representações em atividade no seio da sociedade. As transformações que tais representações sofrem, motivadas pela fluidez do panorama social, afetam diretamente às esferas de atividade humana, incluindo o campo cultural. Nesses termos, podemos inferir que é a instabilidade das representações sociais que confere o caráter temporal da indústria cultural, indispensável à sua própria sobrevivência, reiterando continuamente a união entre representação e cultura. 9 Apontamos a diferença entre alegoria e metáfora: a metáfora não se constitui por comparação e sim por equivalência, enquanto a alegoria permite a comparação entre sentidos: sentido literal (a) que dá lugar ao sentido figurado (b); mas ambas se ancoram no sentido ‘figurado’. 103 No contexto do filme Clube da Luta, a representação social adquire o status de representação ideológica (FISKE apud CURRAN; GUREVITCH, 1996), pois os equipamentos de cinema, por exemplo, a câmara de vídeo, excedem a função básica de registrar e historiar a realidade. O discurso cinematográfico não pode ser reduzido a códigos linguísticos e semióticos da realidade, porquanto (re)produz uma representação da visão de mundo (e a de Fincher) que é indissociável de intenções ideológicas. Neste aspecto, os sentidos em atividade na película do filme, que fazem relação com a representação da sociedade capitalista e com a crítica à cultura do consumo, não são reificados pelo poder inato da indústria cinematográfica de reproduzir a experiência e o conhecimento cotidianos, pois as marcas ideológicas explícitas e implícitas não desaparecem de suas representações, mesmo que sublimine o seu caráter crítico através da alegoria. Logo, nos posicionamos a favor da afirmação de Soares (2007), quando o autor diz que a representação que se vê nas telas de cinema não é da realidade, mas da própria ideologia. Considerações Finais A partir dessa reflexão, pusemos em destaque alguns aspectos que consideramos indispensáveis para uma compreensão da prática social que reside no discurso fílmico, estabelecendo uma analogia entre a concepção de meio de comunicação de massa de Thompson (1995) e a interpretação de indústria cultural de Adorno e Horkheimer (cf. ADORNO, 1987). Visamos esclarecer que forma da narrativa do filme Clube da Luta desempenha uma função no interior da própria sociedade que o produziu, pondo-se em resistência à hegemonia conservadora, assim como à sua política e à sua cultura; e por meio de cenários estratégicos reivindica a não-manutenção de relações de dominação ideológica (GRAMSCI, 1971). No entanto, para alguns desavisados, a aparente manutenção das relações de dominação se legitima pela então nomeada prática discursiva dos meios de comunicação de massa como subterfúgios para a própria sustentação. Tal argumentação acomoda o nosso objeto em foco dentro do conceito de filme de cunho liberal formado por Kellner (2001, p. 136): [...] filmes liberais podem ser interpretados como contestações à hegemonia conservadora, e não apenas como pusilânimes variações da mesma ideologia dominante. Dessa perspectiva contextualista, a crítica da ideologia implica uma análise ideológica no contexto da teoria social. A interpretação política dos filmes, portanto, pode propiciar a compreensão não só dos modos como o filme reproduz as lutas sociais existentes na sociedade americana contemporânea, mas também da dinâmica social e política da época. Essa teia argumentativa objetivou desmitificar a crença popular de que o produto final da indústria cinematográfica tem, tão somente, em vista o preenchimento da lacuna de tempo ocioso do dia a dia vivido. As grandes audiências podem até conferir, inconscientemente, 104 uma neutralidade de intenções no que é apreciado nas telas de cinema, mas, sob um viés crítico, ratificamos que não há atos desinteressados na produção cinematográfica, uma vez que a própria falta de intencionalidade de certos gêneros de cinema mascara uma manifestação ideológica proposital. Debord (1997, p. 24) ilustra nossa colocação ao explicar como se dá o processo de dissimulação da ideologia por meio do contexto midiático: A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Mesmo que aceitemos a existência de um público-massa, ancorado no espaço da alienação, há sempre espectadores críticos e ativos à espreita, capturando o conteúdo ideológico das representações sociais (re)produzidas em películas fílmicas, como no caso da Clube da Luta, que dão margem à quebra de valores instituídos por uma classe dominante, valores estes inerentes tanto à sociedade quanto à condição de existência do homem. Seria imprudente de nossa parte, aqui, afirmarmos que o território em que se assenta o discurso cinematográfico já foi resolvido e explorado in totum, pois os fenômenos sociais não são estáticos, mas sim processos em contínua equivalência com suas representações (re)produzidas em cena. Referências ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. (Trad. Amélia Cohn) In: COHN (Org.), Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. 5. ed. São Paulo, T. A. Queiroz, 1987. ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fim do mundo: imaginário e teledramaturgia. 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Clube da Luta (Fight Club), direção de David Fincher (1999), roteiro de Jim Uhls, produção da 20th Century Fox, 1999, 139 minutos; adaptação da obra de Chuck Palahniuk Fight Club. 106 EXPRESSÕES MULTIMODAIS DE ANUNCIOS PUBLICITÁRIOS PARA A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO: IMPLÍCITOS E CONTEXTOS Regina Célia Pagliuchi da Silveira* (PUC/SP) Este artigo, situado na Análise Crítica do Discurso tem por tema a representação do feminino em textos multimodais publicitários, objetivando examinar, na composição textual do verbal e com o visual (imagens e cores), as formas de disseminação a ideologia, instaurada pelo poder. Justifica-se o tratamento dado, pois com a pós-modernidade e as mudanças sociais resultantes do aparecimento das altas tecnologias, os textos multimodais passam a ocupar lugar importante nas interações discursivas. Anteriormente, os textos eram preferencialmente verbais e, quando construídos com outras semioses, projetavam significações fixas para o visual, diferentes dos textos multimodais que hoje, compostos pelo inter-relacionar do visual e da cor com o verbal, exigindo outras estratégias de produção e processamento da informação. Logo, faz-se necessário analisar de forma crítica a multimodalidade textual, para a representação do feminino que é uma questão social importante, no Brasil. Desde que se entenda que todas as formas de conhecimento são representações mentais, construídas no e pelo discurso, são postuladas três categorias analíticas, a saber: Sociedade, Cognição e Discurso. Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, a respeito do feminino, entendendo-o como uma construção social por discursos públicos e eventos discursivos particulares; tal construção é perpassada pela cultura, valores sócio-cognitivos transmitidos de pai para filho, e pela ideologia imposta pelo poder (valores sócio-cognitivos que atendem aos próprios interesses do poder). A construção textual é vista pela seleção e combinação de fontes diferentes, para a composição co-textual; e pela projeção de diferentes contextos para a complementação sêmica das expressões textuais. Palavras-chave: anúncios publicitários; contextos e texto multimodal; sociedade, discurso e cognição; análise crítica do discurso. * Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1974); professora titular do Departamento de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: regcpf@osite.com.br 107 Este artigo está situado na Análise do Discurso Crítica (ADC) e tem por tema a relação texto e contexto para a representação do feminino em anúncios publicitários multimodais. Tem-se por objetivos: 1. Examinar a seleção e a combinação de expressões visuais e verbais, dispostas em anúncios publicitários brasileiros para representação do feminino; 2. Verificar os contextos e suas funções, na produção/compreensão de textos multimodais (visual e verbal). Tem-se por pressuposto que toda construção textual e a produção de sentidos são elaboradas cognitivamente pelo processamento da informação, na memória de trabalho das pessoas, acessando formas de conhecimento sociais e individuais armazenadas na memória de longo prazo. Sendo assim, é necessário inserir a categoria Cognição junto às categorias Sociedade e Discurso. O material analisado é constituído de anúncios publicitários brasileiros multimodais impressos. As análises realizadas objetivaram examinar as relações cotextuais entre imagens, cores e expressões verbais, assim como os contextos de sua produção discursiva, para a representação do feminino, no texto. Os resultados apresentados participam de uma pesquisa mais ampla a respeito das representações ideológicas e culturais do feminino em diferentes discursos. Tem-se por ponto de partida que sexo e gênero são noções complexas que durante muito tempo foram consideradas sinônimas. Conforme Cháneton (2009), é partir de 1964 que Robert Stollel, apresenta uma diferença entre essas duas noções. Sexo é uma noção ligada à Biologia, definida por gens e hormônios; ao passo que o gênero está relacionado à Sociologia e à Psicologia Social, sendo construído socialmente. Em outros termos, sexo compreende homem e mulher e gênero, o masculino e o feminino que são representações sociais, construídas no e pelo discurso. Assim, desde que se entenda que a ideologia e a cultura guiam essas representações, a pesquisa, que vem sendo realizada, justifica-se, pois é necessário analisar de forma crítica tais representações, para verificar os valores ideológicos contidos nelas, já que eles propiciam a manifestação de crenças sociais preconceituosas, relativas a questões sociais, como a do feminino. Por outro lado, justifica-se essa pesquisa, pois a mudança social ocorrida com o fenômeno da globalização pôs em uso privilegiado os textos multimodais, principalmente os produzidos com o verbal e o visual (imagens e cores). Em geral, o letramento esteve direcionado para o texto verbal; por essa razão, o texto multimodal apresenta dificuldades para a sua compreensão, durante a leitura. Sendo assim, urge investigar a produção desses textos. Kress e van Leewen (1996), preocupados com a multimodalidade, ao tratarem da mudança social ocorrida, durante a globalização, definem o texto multimodal como um produto do discurso, visto como uma ação, que combina o verbal com imagens e cores em uma semiose. Anteriormente, os textos construídos com imagens e cores apresentavam um significado prescrito, como, por exemplo, as placas de trânsito. Com a mudança social, os textos multimodais são colocados em uso por modos semióticos que se inter-relacionam de várias formas; assim, as representações verbais e visuais podem se equivaler, completar-se 108 ou mesmo se contradizer. Logo, há uma natureza simbólica nas representações existentes nesses textos, decorrentes de relações providas pelos recursos semióticos que precisam ser investigadas. Em outros termos, tais representações não são reais, pois o significado criado por um determinado recurso falseia a realidade, na medida em que é uma representação dela, decorrente das intenções e valores ideológicos de quem as representou e em qual situação. Dessa forma, as características gramaticais sintáticas das imagens combinadas com as do verbal são consideradas seleções significativas dentro do conjunto de possibilidades disponíveis nos sistemas gramaticais. Além disso, essas relações gramaticais funcionam ideologicamente, pois as representações contidas nelas são significativas e contribuem para a reprodução de relações de dominação, que a ADC objetiva denunciar. Considerações teóricas: Análise do Discurso Crítica A ADC analisa textos concretos, curtos e longos de interação social e caracteriza-se por uma visão crítica própria e específica para focalizar a relação existente entre a linguagem e a sociedade, além da relação existente entre a própria análise e as práticas sociais e discursivas analisadas. Dessa forma, a ADC focaliza, de modo multi e transdisciplinar, as relações entre sociedade e discurso, tendo por ponto de partida a dialética entre o social e o uso intencional da linguagem: toda mudança nas práticas de linguagem é guiada por mudanças sociais que, ao mesmo tempo, são modificadas pelas práticas de linguagem que vêm sendo postas em uso, pela referida mudança social. A visão crítica está centrada em problemas sociais e busca analisá-los tanto em relação aos elementos das práticas sociais quanto aos das práticas discursivas, responsáveis pela produção de textos; logo, analisar o discurso de forma crítica requer teorização e descrição tanto dos processos e das estruturas sociais que dão lugar à produção de um texto quanto das estruturas sociais e os processos com os quais os indivíduos ou os grupos sociais, como sujeitos históricos, criam sentidos em sua iteração com os textos. Para uma visão crítica, três conceitos são importantes, a saber: poder, história e ideologia. Sendo assim, a ACD reconhece a contribuição de todos os aspectos do contexto comunicativo aos significados do texto. (cf. Wodak, 2003) A ACD apresenta-se com diferentes vertentes, entre elas, a sócio-histórica, a semiótica social e a sócio-cognitiva. Em geral, a visão crítica dessas diferentes vertentes dá atenção à intertextualidade para analisar a significação ideológica do modo sistemático pelo qual os textos se transformam em outros textos. Este artigo está fundamentado, transdisciplinarmente, na vertente Semiótica Social e na sócio-cognitiva para tratar da dialética do social e o individual ao examinar os recursos semióticos (o que pode ser dito e feito por imagens e por imagens e cores, além de como as coisas que as pessoas dizem e falam com imagens podem ser interpretadas) e de que forma esses recursos manifestam, textualmente, as interpretações da experiência e as formas de interação social, a partir de uma visão analítica crítica do feminino, no Brasil. 109 Segundo Fairclough (2005), a transdisciplinaridade compreende um diálogo entre disciplinas ou teorias e métodos que conduz a um desenvolvimento para os pares selecionados, por meio de um processo de apropriação de cada um deles da lógica do outro como recurso para o seu próprio desenvolvimento. Dessa forma, entende-se que as práticas sociais, as discursivas e a produção textual entram na ação discursiva pelos processos cognitivos que constroem as formas de conhecimento sociais e individuais. A ADC está relacionada à escola de Frankfurt que tem por ponto de partida o marxismo e a perspectiva hallidayana da linguagem. No que se refere ao marxismo, a ADC aborda o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder, para situá-lo como prática social. Fairclough (1992) situa o discurso em uma perspectiva de poder como hegemonia que é vista como foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/subordinação, que assumem formas econômicas, políticas e ideológicas. No que se refere à perspectiva hallidayana da linguagem, a ADC entende a linguagem humana como um sistema de construção de significados, em uso funcional na interação comunicativa. Para Halliday (1985), a linguagem satisfaz as necessidades humanas e é organizada funcionalmente, respeitando-as e não de forma arbitrária. Por entender que toda linguagem se organiza por um propósito (uma função), o autor estabelece para os componentes funcionais da língua três metafunções: a ideacional, a interpessoal e a textual. Para a ADC, o texto é produto do discurso. Fairclough (2001) distingue três elementos, relativos aos efeitos constitutivos do texto, decorrentes do discurso: 1. a construção de identidades sociais e de posições para sujeitos sociais e o eu; 2. a construção das relações sociais entre as pessoas; e 3. a construção de sistemas de conhecimento e crenças. Esses três elementos correspondem respectivamente às funções da linguagem postuladas por Halliday (1985): 1. identitária, relativa aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso; 2. relacional, que diz respeito a como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas; e 3. ideacional, relativa ao modo pelo qual os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relações. É acrescida, ainda a função textual, relativa a como as informações são trazidas ao primeiro plano ou relegadas a um segundo, apresentadas como conhecidas ou como novas e selecionadas como tema/comentário. Em breve síntese, com suas vertentes, a ADC busca dar conta da construção de significados tanto como atividade sócio-cognitiva quanto como produção de signos socialmente motivados. A respeito da vertente semiótica social A vertente semiótica social da ADC objetiva tratar da organização de textos multimodais e de seus efeitos constitutivos, propondo uma nova perspectiva semiótica, diferente da tradicional. Para esta vertente, há uma inter-relação, perpassada pela ideologia, 110 entre Sociedade e Discurso, de forma que as mudanças sociais produzem mudanças nos discursos e vice-versa; por isso, a partir da década de 1990, ocorre o privilégio dos textos multimodais sobre os verbais, havendo, também, mudança no acesso ao público que além da mídia passa a ser, devido às altas tecnologias, também individual e preferencialmente realizado pelas redes sociais, devido à rapidez e por estarem fora da censura. Os textos multimodais são complexos. Antes, ao se articular o verbal com outras modalidades, estas apresentavam significações fixas para seus significantes textuais, como por exemplo, as placas de trânsito e as indicações de direção; assim, os letrados focalizavam o verbal para a produção de sentidos. Com as mudanças sociais, os textos multimodais são construídos com diferentes semioses inter-relacionadas, de forma que uma se projeta na outra, modificando-se e construindo significações não fixas para seus significantes textuais. Kress e van Leewen (1996) propõem uma gramática do design visual, com suas categorias analíticas para a modalidade linguística e a modalidade visual. Nessa gramática, os autores consideram que a comunicação não ocorre apenas entre pessoas de um mesmo grupo social e, por essa razão, é preciso que uma teoria da multimodalidade forneça explicações no caso das mensagens que exprimem valores e crenças dos outros grupos. Assim, ao tratarem das imagens, os autores entendem que elas se baseiam em padrões de realidade construídos cultural e historicamente e não na correspondência objetiva entre imagem visual e o mundo. Logo, as imagens representam as relações entre pessoas, lugares e as coisas em um complexo conjunto de relações existentes entre as imagens e aqueles que as observam. Para analisar esse conjunto complexo, Kress e van Leewen propõem quatro estratos: a. o discurso: os discursos desenvolvem-se em contextos sociais específicos que podem ser públicos ou não; por exemplo, contexto familiar e contextos institucionalizados (ex: publicidade, jornal). Os discursos podem ser realizados de diferentes maneiras: um discurso sobre conflito étnico pode ser realizado como parte de uma conversa em um bar ou como um documentário de TV; b. o design: são maneiras de realizar discursos em contextos determinados, para conceituar a forma dos produtos e dos eventos semióticos, conforme os propósitos e a concepção de quem será a audiência. Assim, um mesmo design pode ser realizado de formas diferentes, segundo o seu contexto de produção; c. a produção: é a articulação na forma material dos produtos ou eventos para a produção real do texto que exige outros conjuntos complexos de habilidades, como as técnicas, artísticas, manuais e visuais. Neste estrato, a preocupação situa-se nas fontes que possibilitam a produção semiótica; d. a distribuição: é o acesso ao público pela reprodução dos produtos e dos eventos semióticos. A distribuição não acrescenta sentido ao produto multimodal, mas é o facilitador das funções pragmáticas de preservação e difusão, pois quanto maior e eficiente for o meio de difusão, maior será o consumo pela audiência e, assim, maior disseminação ideológica. Para Kress e van Leewen (2001), o grau em que a intenção e a interpretação se tornam compatíveis, dependerá do contexto. 111 Para os autores, a Semiótica Social objetiva uma análise crítica dos textos multimodais para mostrar “o que é” que está contido nas imagens situadas espacialmente no texto; dessa forma busca responder as perguntas: 1. como as pessoas são representadas? 2. como as pessoas representadas relacionam-se ao observador? 3. como o verbal equivale, complementa ou contradiz o que é captado pelos sentidos, articulando as imagens, as cores e o verbal? Em outros termos, objetiva, com uma visão analítica crítica, a descrição dos recursos semióticos e o exame da forma desses recursos que manifestam, textualmente, as interpretações da experiência e as modos de interação social. No que se refere ao verbal, de forma geral, os semioticistas sociais críticos, a partir da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985), preocupam-se com o potencial ideológico do sistema de categorização das representações implícitas em determinados vocábulos, ou seja, com as maneiras particulares de “lexicalizar” a experiência e o modo pelo qual as estruturas gramaticais linguísticas organizam esses vocábulos em estruturas frasais. No que se refere ao visual, esses semioticistas contribuem para o entendimento dos modos semióticos, nos atuais textos multimodais. Segundo Kress e van Leeuwen (2001) os modos semióticos inter-relacionam-se por três sistemas de significação: o valor funcional, a saliência e a moldura. Estar atento a esses modos propicia conferir os diferentes valores e os distintos eventos contidos na sintaxe textual, pela relação entre o verbal e o visual, para a representação de pessoas e de coisas do mundo. A Semiótica Social, embora apresente diferenças para seus pesquisadores, segundo Kress e van Leeuwen (2001), deve satisfazer a três requisitos, para ter uma visão crítica, ou seja: 1. representar e comunicar aspectos relevantes das relações sociais que intervêm na comunicação; 2. representar e comunicar os feitos, estados de coisas e de percepções que o produtor quer comunicar; e 3. tornar possível a produção de mensagens que tenham coerência, interna no texto, e, externamente, com aspectos relevantes do entorno semiótico, o “contexto”. A respeito da vertente sócio-cognitiva Segundo essa vertente, é necessário postular a inter-relação entre três categorias, para uma análise crítica do discurso: Sociedade, Cognição e Discurso. Van Dijk é o maior representante desta vertente. Segundo o autor (1997), há uma inter-relação entre essas categorias analíticas, de tal forma que uma se define pela outra, pois todas as definições necessárias para uma análise crítica do discurso decorrem das cognições sejam as individuais, situadas na memória episódica ou autobiográfica, sejam as sociais, na memória social. Dessa forma, segundo a vertente sócio-cognitiva, tem-se por pressuposto que a interação comunicativa pelo discurso decorre das formas individuais e sociais de representação mental do que acontece no mundo, ou seja, formas de conhecimento construídas nos e pelos discursos públicos institucionalizados e por eventos discursivos particulares e manifestadas em textos, produtos do discurso. Logo, toda a produção/compreensão discursiva perpassa pela cognição. 112 Sendo assim, entende-se que: A Sociedade é definida por grupos sociais, sendo que cada qual é uma reunião de pessoas que têm objetivos, interesses e propósitos em comum. Dessa forma, a estrutura social é vista como um conjunto de papéis sociais (participantes das práticas sociais) selecionados pelos interesses dos membros do grupo, para serem representados, dependendo das situações discursivas. Por exemplo, há grupos sociais ancorados no “trabalho” que selecionam os papéis, entre outros, de professor-aluno, padre-fiel, empresário-funcionários, industrialempregados. Mas, há grupos sociais ancorados na “exploração do outro”, apresentando-se pela marginalidade das leis que regem a sociedade atual, de forma a selecionar, por exemplo, os papéis de traficante-drogado, prostituta-cliente, assaltante-vítima. Logo, as práticas sociais variam dependendo de sua estrutura social, devido aos papéis sociais selecionados pelos objetivos, interesses e propósitos do grupo social. Estes guiam o ponto de vista para focalizar o mundo e, a partir daí, representá-lo mentalmente, como forma de conhecimentos sociais. Como os grupos sociais diferem entre si por terem pontos de vista diferentes, esses grupos estão em constante conflito, pois suas condutas sociais decorrem de suas próprias crenças, em um determinado momento histórico. A Cognição compreende as formas de conhecimento do grupo social, que em seu conjunto compõem o marco das suas cognições sociais, que são construídas mentalmente, a partir do ponto de vista selecionado pelo grupo. Como o ponto de vista decorre dos objetivos, interesses e propósitos do grupo social, esse, ao ser projetado para focalizar o que acontece no mundo, projeta ao mesmo tempo um conjunto de valores que passam a compor a representação cognitiva, como forma de conhecimento avaliativo, as crenças. Sendo assim, é a partir do que é focalizado pelo ponto de vista (propósitos) que se maximizam ou minimizam e até se cancelam certas propriedades do que é focalizado, de forma a construir conhecimentos que são crenças sociais perpassadas pela ideologia e pela cultural. Estas guiam a construção de formas de conhecimento individuais, decorrentes de experiências pessoais. Dessa forma, todas as formas de conhecimento são crenças por serem construídas com valores culturais e ideológicos, decorrentes do ponto de vista projetado, guiado pelos propósitos. Segundo Silveira (2009), a ideologia e a cultura são conjuntos de valores contidos nas crenças sociais. A diferença entre elas é que a cultura compreende um conjunto de crenças cujos valores são construídos socialmente pelo vivido e experienciado pelas pessoas; por exemplo, formas de se alimentar, dormir, vestir, cumprimentar e festejar datas. Essas crenças são transmitidas dinamicamente de pai para filho, pois a cada problema social novo a ser resolvido, no cotidiano, ocorre a mudança desses valores, embora tenham raízes sociais históricas. A ideologia origina-se na cultura e é um conjunto de valores, selecionados e modificados pelo poder, a fim de atender a seus próprios interesses, ao impor, intra e extragrupalmente suas crenças, para a discriminação do outro, pois os participantes do poder têm amplo acesso ao público. Logo, os grupos sociais diferenciam-se entre si por terem crenças diferentes. É, pelos discursos públicos e institucionalizados, que o poder constrói crenças extra-grupais, ou seja, uma unidade imaginária, também designada memória social, que identifica uma nação, em seu contexto histórico. 113 Desde que as formas de conhecimento são construções mentais, elas são produzidas e armazenadas na memória das pessoas. Kintsch e van Dijk (1983) tratam das estratégias de compreensão discursiva, a partir do modelo de memória por armazéns que diferencia a memória de curto prazo, a de médio prazo e a de longo prazo. A memória de curto prazo é sensorial e dá entrada para a informação que será processada pela memória de trabalho, situada entre a memória de curto prazo e de médio prazo. A memória de trabalho transforma as expressões textuais em sentidos secundários e globais, de forma recursiva, a partir de inferências e explicitações de implícitos textuais. Para tanto, recorre a conhecimentos armazenados na memória de longo prazo, ativando-os para a memória de trabalho, a partir de um contexto cognitivo, ancorado em um modelo de situação. A memória de longo prazo comporta dois armazéns: o social e o individual. O armazém social, também designado memória semântica, arquiva as representações construídas socialmente, pelos discursos, em sistemas de conhecimentos distintos. Há pelo menos três sistemas gerais de conhecimento: o enciclopédico, conhecimentos de mundo; o simbólico, conhecimentos de códigos semióticos, tais como os visuais (imagens e cores) e os de línguas; e o interacional, conhecimentos de esquemas interacionais comunicativos, tais como atos de fala, gêneros textuaisdiscursivos e quadros enunciativos. Todos eles são perpassados pela cultura e pela ideologia. Tais sistemas organizam as representações mentais tanto no armazém social quanto no individual. Na memória de longo prazo social estão as formas de conhecimento construídas socialmente, por discursos institucionais, como os da família, da igreja, do Estado, da empresa. Tais discursos são perpassados pela cultura e ideologia; esta é imposta aos membros do poder, para dominar a mente das pessoas, pela discriminação de, por exemplo, raças, gêneros, profissões, nações. A memória de longo prazo individual armazena as formas de conhecimento construídas por experiências individuais, sendo, portanto, autobiográfica. Os conhecimentos sociais guiam os individuais, mas estes, progressivamente, modificam os sociais, devido a modificações sofridas para resolver, socialmente, problemas novos. Segundo Kintsch e van Dijk, é a ativação dos conhecimentos sociais e dos individuais que explica as razões de nenhum texto ter a mesma leitura nem para o mesmo leitor, em momentos diferentes, nem para leitores diferentes, ainda que haja um certo consenso de leitura entre eles, devido aos conhecimentos sociais. A memória de médio prazo armazena, durante certo período de tempo, os sentidos produzidos durante o processamento da informação, modificando-os para a construção dos sentidos mais globais que serão armazenados na memória de longo prazo, como formas de conhecimento social ou individual. O Discurso é definido como uma prática social, selecionada pelo grupo social, cujos textos produtos estão em uso. Van Dijk (1997), ao inserir a categoria Cognição na inter-relação das categorias Sociedade e Discurso, para a ADC, afirma que todas as formas de conhecimento são construídas no e pelo discurso. 114 Há discursos públicos e eventos discursivos particulares. Os discursos públicos são definidos como prática social e esquematizadas por um contexto discursivo mental que se define por participantes, suas funções e suas ações. Para van Dijk, há três categorias, para analisar de forma crítica os discursos públicos: Poder, Controle e Acesso. Cada uma dessas categorias está relacionada extra-textualmente a contextos. Estes se diferenciam dos elementos expressos no texto, cuja construção coesiva intratextual é designada “cotexto”. Logo, o “contexto” é visto como o entorno fora da sequência dos elementos presentes no produto textual. Cada uma das categorias Sociedade, Cognição e Discurso agrupam seus próprios contextos, que são selecionados pelo produtor do texto para combiná-los no produto textual. Na compreensão, os conhecimentos armazenados na memória de longo prazo são ativados para inferir e explicitar significados contextuais. Van Dijk (2012), a fim de explicar as razões das pessoas não produzirem a mesma leitura de um texto, propõe que os contextos são construídos por conhecimentos individuais, os autobiográficos, embora eles sejam guiados pelos sociais. Textos multimodais publicitários e contextos, na representação do feminino Segundo a teoria da multimodalidade, os textos multimodais produzem sentidos múltiplos, pois são produzidos com diferentes semioses. Segundo Kress e van Leeuwen (1996), ao tratarem da semiose visual, os sentidos podem ser realizados pelas línguas e pela comunicação visual. Essas realizações, necessariamente, não se sobrepõem, pois algumas coisas podem ser expressas tanto pelo visual quanto pelo verbal; mas, outras, só pelo visual ou pelo verbal. A título de exemplificação: anúncios publicitários multimodais da Duloren Foram selecionados três textos de campanhas publicitárias da marca Duloren, publicados em momentos históricos diferentes. 115 Texto (1)- campanha da Duloren: contexto histórico Reveillon Fonte: http://www.stopper.blogger.com.br/2003_11_01_archive.html A MG criou para a Duloren, famosa marca de lingeries, uma campanha, veiculada em dezembro na qual a chamada principal é “Prá começar bem o ano, em vez de pular ondinha, eu pulo a cerca” Texto (2) - campanha da Duloren: contexto histórico eleições de 2010 116 Fonte: http://solembrandoque.wordpress.com/2010/09/30/eleicoes-inspiram-publicidade-da-duloren/ Texto (3) - campanha da Duloren: contexto histórico da pacificação da comunidade do Morro do Alemão, cidade do Rio de Janeiro Fonte: http://colunistas.ig.com.br/consumoepropaganda/2012/03/13/du-loren-reestreia-no-complexo-do-alemao/ A composição espacial dos textos exemplificados A distribuição espacial do verbal e do visual define a composição do texto multimodal. Kress e van Leeuwen (1996) têm por ponto de partida a gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985) e, assim, eles propõem as seguintes categorias, para a análise dessa composição: • o “dado” e o “novo”: os textos, que usam o posicionamento das fontes selecionadas no eixo horizontal, consideram, espacialmente, a direita e a esquerda. Os elementos da esquerda são apresentados como o “dado” (o conhecido socialmente) e os da direita, como o “novo” (desconhecido); • o real e o ideal: os textos que usam o posicionamento das fontes selecionadas consideram espacialmente, no eixo vertical, o real (embaixo) e o ideal (em cima). • o valor da informação no centro ou na margem: quando essa seleção ocorre, esse tipo de composição significa que o que é representado no centro é o núcleo da informação e os elementos, que ficam às margens, dependem do central. • a saliência: dar saliência a elementos cria uma hierarquia de importância entre eles, pois focaliza, em tamanho maior, um elemento da composição; por isso, a hierarquia da 117 saliência ancora os demais elementos que compõem o texto, tendo a função principal de integrar os elementos selecionados, na representação do tema textual. No Texto (1), o verbal expressa crenças das cognições sociais, modificadas pela intenção do produtor (cf. van Dijk, 1997): “Prá começar bem o ano, em vez de pular ondinha, eu pulo a cerca”, para representar, metonimicamente, por expressões linguísticas, uma mudança nas crenças sociais: a infidelidade feminina. Expressa, ainda, a imagem com a qual a Duloren quer caracterizar a sua marca: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”, logo abaixo da designação da marca: “Duloren”. O visual expressa o ritual realizado por “mães de santo”, na praia, no momento da passagem de ano (crença social); e a infidelidade feminina pela imagem de uma moça branca, com expressão sorridente, semi-nua, tendo metade das pernas e pés apagados, com roupas íntimas (calcinha biquine e soutien) de luxo, de cor “rosa choque”, com rendas, (relação metafórica com o biquine) da Duloren, em posse de sedução, entre dois rapazes: a moça está de braço dado com o da frente que está distraído observando os fogos de artifício; e abraçada pela cintura pelo de trás que está seduzido por ela, que aceita seu assédio. O céu está iluminado pelos fogos de artifício e embaixo, a praia e as ondas do mar. Este texto está composto, em sua distribuição espacial, pela combinação dos eixos (horizontal e vertical) com a saliência. No eixo horizontal, à direita, no fundo as mães de santo saltando ondas do mar e a marca da Duloren com a imagem que quer informar o “novo” para o interlocutor: “Duloren, você não imagina do que uma Duloren é capaz”. A saliência expande o conteúdo de “capaz”, pois traz em tamanho maior e quase centralizada a imagem da infidelidade feminina, representada pela moça branca, delgada, sedutora e dois rapazes: o da frente, distraído, sem notar o assédio de sua companheira, sendo traído, representado pelo verbal “pular a cerca” e o casal de trás, o assediador (o rapaz de trás, abraçando a moça) e a infiel (ela aceita o assédio), vestida com uma Duloren (roupa íntima), em lugar público. Logo, <<uma Duloren é capaz de propiciar a você uma nova e instigante aventura amorosa, ao mesmo tempo que você mantém a sua relação atual, segura, antiga e monótona.>> Sendo assim, os demais elementos dispostos no texto, relativos ao reveillon na praia, tornam-se dependentes do triangulo amoroso, saliente e centralizado, representados pelo verbal (“pular ondinhas” e “pular a cerca”): no fundo, a avenida beira-mar com os prédios iluminados; à margem direita, as baianas e as ondas do mar; à margem esquerda, um casal saltando ondas do mar. No eixo vertical, em cima o céu iluminado por belos fogos de artifício é o ideal que atrai a atenção do antigo parceiro; embaixo, o trio amoroso, é a concretização da infidelidade feminina, cuja razão é a moça tornar-se sedutora e elegante, vestindo uma lingerie “cor rosa choque”, cor da sedução. No Texto (2), o verbal expressa: “Eleições 2010”, “Senhores candidatos o brasileiro precisa mesmo é de uma boa renda”, para representar, metonimicamente, por expressões linguísticas, uma mudança nas crenças sociais: mulher ocupar o cargo de presidente brasileiro; assim, a promessa política de uma “boa renda” econômica para garantir o bem-estar dos eleitores é ressemantizada e “boa renda” é o que enfeita as lingeries de luxo, com “lycra”, metonimicamente representando o feminino na presidência. 118 O visual expressa uma urna eletrônica, situada em uma cabine eleitoral, que representa, metonimicamente, pela imagem, os turnos eleitorais de 2010, no Brasil; expressa, ainda, a beleza e elegância femininas, pela imagem de uma moça branca sofisticada, com expressão indiferente de olhos fechados, com posse de modelo e de sedução, semi-nua, com as pernas e pés apagados, vestida com roupas íntimas de luxo brancas (calcinha biquine e soutien), terminadas com rendas brancas e coloridas. O fundo é de cor neutra acinzentada. Este texto está composto pela centralização com saliência, em tamanho maior, da imagem da moça que representa o feminino da mulher branca pela beleza elegante e sofisticada. Os demais elementos dependem do centro. A margem direita está composta no eixo vertical, pela expressão verbal do “novo”: em cima, o ideal: “Senhores candidatos, o brasileiro precisa mesmo é de uma boa renda”; embaixo, o real: “Duloren, você não imagina do que uma Duloren é capaz”. A saliência centralizada situa o conteúdo de “renda”, que abrange duas áreas semânticas: a econômica = maior ganho e a de acessórios = enfeite caro de roupas femininas. Na margem esquerda, o “dado”: a metonímia da urna em uma cabine eleitoral, que representa as eleições de 2010, para presidência da república e governadores e que mantém relação com “Senhores candidatos, o brasileiro...”. No Texto (3), o verbal expressa: “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”, para representar, metonimicamente, por expressões linguísticas, uma mudança nas crenças sociais: quem pacifica é a polícia, mas quem domina é o rebolado sensual da negra carioca que é a representação racial do feminino. O visual expressa uma mulher negra, em roupas íntimas, sem rendas (cinta calça e soutien), com expressão indiferente no olhar (olhos abertos e fixos no interlocutor do texto) e no corpo, a posição de rebolado, segurando nas pontas dos dedos, com displicência, o quepe de um policial. Ela tem no pescoço, um cordão que sustenta o símbolo do infinito. No chão, está largado, com os olhos fechados e expressão de cansaço, um soldado vencido, com a camisa aberta, mostrando o peito; no fundo, na parte alta, de um lado o recorte de um lixão e do outro, o recorte de casas pobres da comunidade; embaixo do morro, edifícios altos da cidade do Rio de Janeiro. Este texto está composto, também, pela centralização com saliência, em tamanho maior e projetado, da imagem de uma moça negra robusta, com o corpo cheio de curvas e bonita, em atitude de desafio e posição de vencedora, segurando com as pontas do dedo o quepe do policial vencido, desmaiado no chão; ela está com cabelos esvoaçantes, com o símbolo do infinito no pescoço e vestida com uma Duloren branca, representação modificada do imaculado pela sensualidade, que é saliente em relação às demais cores das figuras que compõe o cenário da favela do Morro do Alemão. Dessa forma, os demais elementos estão dependentes dela: no fundo (em cima do morro, o lixão e as moradias; embaixo, os prédios a beira mar). Dessa forma a figura da moça expande a expressão “dominar”, pelo poder arrasador da sensualidade da mulher negra carioca. No eixo horizontal, à direita, o “novo”, representado na sua composição vertical: no alto, o ideal, situa-se o verbal “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”, sobre imagens esfumaçadas do morro (a pobreza) em relação aos prédios, à beira-mar (a riqueza); embaixo, o real, um soldado descomposto, desmaiado e vencido pela força sensual da mulher negra. À esquerda, o “dado”, o morro e o lixão. 119 Seleção das fontes e combinação semiótica do verbal com o visual As fontes são selecionadas de paradigmas que compõem as partes do texto multimodal e podem ser vistas como interagindo e afetando umas às outras, conforme são combinadas na composição do todo (texto produto). É interessante observar que a noção de seleção, para a ACD, não implica a consciência do sujeito-produtor, devido à disseminação da ideologia, que instaura a dominação pelo Poder. No Texto (1), as fontes são selecionadas de um paradigma festivo do reveillon brasileiro, guiado por rituais de religião afro-brasileira e um paradigma de relações amorosas entre homens e mulheres. - paradigma social festivo: a fonte selecionada é comemoração do reveillon que tem, na praia brasileira, a influência religiosa afro-brasileira. Para essa comemoração, foram selecionados casais e mães de santo, todos vestidos de branco. À meia-noite, soltam fogos espetaculares, os casais pulam sete ondas, para dar sorte no ano que entra, e as mães de santo entregam, nas águas do mar, flores para Iemanjá, a rainha do mar. A seleção da fonte, nesse paradigma, completa pelo visual o conteúdo sêmico da expressão verbal “pular sete ondinhas”, cujo morfema diminutivo complementa, também, pela inserção de um certo tom irônico. - paradigma de relações amorosas entre casais: a fonte selecionada é a infidelidade, que nas cognições sociais é atribuída ao masculino, mas que no texto (2) está modificada pela projeção no feminino, representada pela saliência visual do triângulo amoroso, originado pelo uso de uma lingerie Duloren, cor “rosa choque” e não branca; assim, representa-se o feminino: pela sedução causada pelo uso de uma Duloren e pela aceitação do assédio de outro parceiro. A seleção dessa fonte tem a intenção de completar pelo visual o conteúdo sêmico do verbal “pular a cerca” que representa os limites do compromisso amoroso, nas cognições sociais. No Texto (2), as fontes são selecionadas de dois paradigmas: um político, do qual é selecionada a eleição para presidência de 2010, com os candidatos Dilma e Serra, no segundo turno; o outro, um paradigma social da mulher, do qual são selecionados a beleza e a elegância da mulher branca, ancoradas no luxo. A seleção dessas fontes tem a intenção de completar pelo visual o conteúdo sêmico do verbal “senhores candidatos, o brasileiro precisa mesmo de uma boa renda” = << o brasileiro precisa mesmo de uma mulher presidente>>, metonimicamente representada, por “uma Duloren”, ou seja, pela elegância e beleza devido às suas roupas íntimas, terminadas luxuosamente com rendas caras e de excelente qualidade, como é uma Duloren. No Texto (3), há seleção de fontes em dois paradigmas, de cognições sociais típicos da cidade do Rio de Janeiro: um paradigma policial: seleção do poder do policial para garantir a paz da população, usando o seu uniforme, enquanto está em serviço, principalmente, nas 120 favelas que se situam em morros, onde se escondem os bandidos que dominam o tráfico de armas e de drogas; e um o paradigma dos moradores das comunidades: seleção do poder de sedução sensual da mulher negra sobre o masculino. A seleção dessas fontes tem a intenção de completar pelo visual, o verbal “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”. “Pacificar” é complementado pela figura do policial; “dominar”, pela figura da moça negra, em atitude de desafio olhando diretamente nos olhos do interlocutor, com a aparência de vencedora, em pose de rebolado, com o quepe do policial nos dedos e o policial desalinhado, desmaiado no chão. A relação entre o visual e o verbal é complementada com “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = << quem domina as forças pacificadoras das comunidades dos morros do Rio de Janeiro é o poder de sedução sensual da mulher negra, reforçado e ampliado pelo uso de uma Duloren”. Os contextos no anúncio publicitário Desde que se insira a categoria Cognição às categorias Sociedade e Discurso, todos os contextos são entorno do texto produto, enquanto formas de representação mental, ou seja, formas de conhecimento sociais e individuais. Dessa forma, os sentidos produzidos são dependentes dos contextos ativados da memória de longo prazo para a memória de trabalho, a partir da percepção de como o texto multimodal está composto, a fim de serem produzidos os sentidos. Nos textos exemplificados, são prováveis pela sua composição, os seguintes contextos: Contexto social Este contexto é formado pelos grupos sociais, selecionados de fontes que compõem as cognições sociais. No Texto (1), as identidades dos papéis sociais do compromisso amoroso são modificadas, pois o feminino é representado pela infidelidade, que ocasiona o triângulo amoroso pelo “pular a cerca”; o papel social do masculino, nesse compromisso é mantido: o machismo, pelo assédio do membro externo da relação e pela segurança do membro interno. As identidades religiosas afro-brasileiras são mantidas: a mãe de santo tem a função de estabelecer relações entre o humano e o divino; os crentes têm a função de seguir as mães de santo, em rituais específicos: no reveillon, elas oferecem flores a Iemanjá; os crentes pulam sete ondas. A representação do feminino pela infidelidade é ideológica, pois tem valor negativo extra-grupal na sociedade brasileira cujas raízes históricas situam-se no discurso eclesiástico; embora, no grupo minoritário das feministas, a mulher tenha tanto direito de ser infiel quanto o homem. 121 No Texto (2), nas identidades sociais do grupo político, o papel do masculino é ocupado pelo feminino, para representar a presidência brasileira, embora os papéis de candidatos e eleitores sejam mantidos, conforme as cognições sociais. O papel de eleitor é representado pelo visual, cabine de votação com sua urna eleitoral. No Texto (3), - as identidades sociais dos dois grupos sociais estão modificadas. No policial, o papel do soldado é de dominar a marginalidade (traficantes de armas e drogas), no morro carioca. Esse papel está modificado, pois o policial é representado como dominado. No grupo social dos moradores de comunidades, o papel da mulher negra está modificado, pois a sua função de ser protegida pelo policial é representada como pela do dominador (o poder da sensualidade negra que atrai os olhares masculinos pelo rebolado de seu corpo flexível, robusto e curvilíneo, das passistas, rainha de bateria e porta-bandeira, nas escolas de samba). Contexto discursivo O discurso publicitário, visto como uma prática social que, segundo a vertente sóciocognitiva, defini-se por um esquema cognitivo que é organizado pelas categorias Poder, Controle e Acesso, cada qual com seus participantes, funções e ações. O discurso publicitário tem seu contexto discursivo ancorado na ação de anunciar um produto novo, sendo ela modalizada pelo propósito de transformar o interlocutor em consumidor. O Poder é representado pelos donos da empresa que tomam a decisão de anunciar seus produtos. Nos textos exemplificados, os donos da empresa Durlorem que decidem anunciar as suas lingeries, para vender mais no mercado. Para tanto, contratam uma agência de publicidade. O Controle é representado pelos participantes da agência de publicidade que têm por propósito produzir o anúncio publicitário que propicie a maior venda do produto anunciado. Para tanto, recorrem à pesquisa de mercado (marketing) a fim de saber o que falta para os consumidores do produto anunciado. Dessa forma, os participantes especialistas, que executam as ordens do poder, produzem o anúncio, guiados por três exigências: criar a necessidade de consumo, prometer que o consumo do produto anunciado satisfaz essa necessidade com pouco custo e em pouco tempo. O Acesso é representado pelos participantes que distribuem o anúncio para que ele tenha acesso à audiência selecionada para ser atingida (auditório universal ou particular). É o acesso ao público que garante, ao poder, a realização das funções pragmáticas de preservação e distribuição, de forma a garantir maior disseminação ideológica. Os anúncios selecionados foram publicados em revistas de grande circulação e continuam sendo divulgados pela Internet. Contexto cognitivo O contexto cognitivo é composto pelas crenças sociais da audiência, de forma a produzir um entorno relativo às identidades sociais e suas relações entre as pessoas. No Texto (1), segundo as cognições sociais, ideologicamente, a infidelidade masculina é representada 122 com valor positivo, devido ao machismo brasileiro e a infidelidade feminina, com valor negativo, propiciando a sua discriminação social. Nesse texto, há, portanto, uma relevância, com alto grau de informatividade, que obriga o interlocutor a mudar o seu contexto cognitivo que vinha sendo construído com os conhecimentos sociais ativados da memória de longo prazo: o verbal e o visual representam a infidelidade feminina, ocasionada pelo uso de uma Duloren que dá, à mulher, o poder de atração. Dessa forma, o contexto cognitivo cria o entorno para definir os modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso: a função textual de tema (a infidelidade feminina, como o “novo”) e comentários (uma Duloren é capaz de dar o poder de sedução à mulher, tornando-a sensual e atraente para satisfazer seu desejo de relação amorosa nova e instigante). No Texto (2), conforme as crenças sociais ativadas, para compor o contexto cognitivo, nas identidades sociais de candidato a cargo e eleitores, o presidente brasileiro é representado pelo masculino. Esse texto apresenta uma relevância que obriga o interlocutor a mudar o seu contexto cognitivo que vinha sendo construído com os conhecimentos sociais ativados da memória de longo prazo: o verbal e o visual representam o grupo social político, tematizado pela presidência feminina (representada metonimicamente por “uma boa renda” = <<elegância sofisticada>>) que participa do grupo social da mulher cujas funções identitárias são mantidas. No Texto (3), segundo as crenças sociais, a polícia é representada pelo poder de domínio da marginalidade e que, no momento atual, é necessária, pois tal marginalidade causa violência social que precisa ser anulada pelo poder político, para a realização de competições atléticas internacionais. No texto (3), a representação textual do policial, dominado pela mulher negra, tem um grau alto de informatividade, pois, com relevância, modifica a identidade do papel social de policial = dominado pelo poder de sedução sensual erótico da mulher negra, a dominadora. Tal relevância o interlocutor a mudar o seu contexto cognitivo que vinha sendo construído com os conhecimentos sociais, a respeito da pacificação da comunidade do Morro do Alemão, pelo domínio da força policial e que foi muito divulgada pela mídia. Logo, o feminino é representado pelo erotismo, como forma de discriminação do valor de produtividade social e econômica da mulher negra brasileira, devido ao machismo e ao racismo brasileiros: a função textual de tema (o poder de domínio do erotismo da mulher negra, moradora da comunidade do Morro do Alemão) e o comentário (a polícia pacifica pela força, a negra do morro domina todos e mesmo a polícia pelo poder de seu erotismo). Esse domínio erótico é expresso, metonimicamente, pelo verbal: “quero ver dominar”, que é expandido pelo visual: a mulher negra muito erótica, resultado de vestir o seu corpo belo, robusto e curvilíneo, muito bem delineado pela lycra do soutien e da cinta calça da Duloren, que diferentes das lingeries da mulher branca, não têm rendas, pois o poder aquisitivo é baixo. Este, também é representado pelo visual que focaliza como cenário o lixão e as moradias pobres do morro carioca. Contexto de linguagem Este contexto decorre do conhecimento que se tem a respeito dos diferentes usos da linguagem, a partir de variedades e variações lingüísticas, selecionadas para a composição do texto, na prática discursiva. Nos grupos sociais de baixa escolaridade, o uso é designado variedade nativa de uso oral; nos grupos sociais de alta escolaridade há duas variedades linguísticas: a oral, 123 variedade padrão-real; e a escrita, variedade padrão normativa, aprendida na Escola. No Texto (1), o verbal é expresso por: “pular ondinha”, cujo morfema diminutivo tem a função de inserir modalmente a ironia, para designar um ritual de reveillon; e “pular a cerca” que é uma expressão idiomática brasileira para designar a infidelidade conjugal feminina, expandida pelo visual; a designação “cerca” é ressemantizada e contém <<limites impostos pela relação conjungal>>. A expressões linguísticas selecionadas são da variação coloquial do padrão-real, que representa o grupo social dos participantes: “Prá começar bem o ano, em vez de pular ondinha, eu pulo a cerca”. Esse texto traz representadas em língua duas sequências dialógicas: - a primeira sequência dialógica: diálogo da moça com seus interlocutores textuaisdiscursivos, que lêem o anúncio (“eu”- quem fala para os interlocutores). - a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = << comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à valorização da atração feminina>>. No Texto (2), verbal é representado pelas expressões “boa renda” para focalizar o tema textual, “do que uma Duloren é capaz”. O visual complementa o conteúdo sêmico do verbal, pela representação de uma mulher branca elegante e sofisticada, vestida com uma Duloren, com belas e luxuosas rendas. As expressões linguísticas selecionadas são da variação coloquial do padrão-real e verbalizam uma mudança social. Dessa forma, ocorre a ressemantização da expressão “boa renda” que compõe o paradigma lexical da política econômica brasileira, inserindo o sentido de “presidenta” <<mulher eleita para o cargo de presidente>>, complementado com o valor positivo. Esse texto traz representado em língua duas sequências dialógicas: - a primeira sequência dialógica: diálogo dos participantes da Duloren com os candidatos à eleição para presidente, em 2010. “Senhores candidatos: o brasileiro precisa mesmo é de uma boa renda”; - a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = << comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à valorização do feminino>>. No Texto (3), o verbal representado pelas expressões “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar” para focalizar o tema textual << o poder de domínio da negra brasileira, devido ao seu poder de domínio do masculino, pela sensualidade erótica, ampliada pelo uso de uma Duloren>> = “do que uma Duloren é capaz”. O visual complementa o conteúdo sêmico do verbal, pela representação de uma mulher negra, curvilínea e erótica, com atitude de desafio e de domínio, em posse de rebolado, tendo o símbolo do infinito no pescoço, vestida com uma Dulorem, de lycra sem rendas, dando formas bem marcadas ao corpo feminino. As expressões linguísticas selecionadas são da variedade nativa do grupo social de comunidades cariocas, onde o funk é privilegiado. A designação “dominar” está intertextualizada com a letra da 124 música funk “Tá dominado”: “Rebola levantando o dedinho; rebola. rebola dominando esse corpinho. Então ah, eu quero ver tu dominar. Tá tudo dominado, dominado ...”. Dessa forma, ocorre a ressemantização da expressão “dominar” que compõe o paradigma lexical da gíria dos habitantes de comunidades cariocas, inserindo o sentido de poder de domínio do rebolado da mulher negra do morro carioca. Esse texto traz representado, pelo verbal, duas sequências dialógicas: - a primeira sequência dialógica: diálogo da mulher negra com seu interlocutor ( ela olha fixo em quem iterage com o texto) e com o policial pacificador “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”. - a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = << comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à valorização do erotismo feminino>>. Contexto histórico O contexto histórico é construído com a ativação de conhecimentos que situam cronologicamente os eventos no mundo. No Texto (1), o tempo cronológico selecionado é o reveillon, tendo por cenário, uma praia brasileira. No Texto (2), o tempo cronológico selecionado é a eleição de 2010 para a presidência brasileira, tendo por cenário, uma cabine eleitoral com a sua urna eletrônica. No Texto (3), o tempo cronológico selecionado é a invasão e pacificação do Morro do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, pela polícia, anteriormente dominado pelos chefes do tráfico de drogas e de armas. Os resultados das análises apresentadas indicam que o feminino é valorizado em sua representação discursiva pelo poder de sedução da mulher branca, representada na composição do verbal com o visual por: poder de atração sensual, representado pela infidelidade feminina em compromissos amorosos; e poder de ação e decisão políticas, representado pela beleza feminina elegante e sofisticada. O poder da mulher negra é de domínio do masculino pela sensualidade erótica. Essas representações são ideológicas, na medida que discriminam socialmente a mulher brasileira: a. pelo poder econômico – a branca, alto poder aquisitivo (beleza sofisticada) e a negra, baixo poder aquisitivo (beleza erótica); b. pelas funções de sedução do masculino, quando o feminino, hoje, vem ocupando o papel de chefe de família, devido à sua competência e produtividade no trabalho. Esses resultados indicam, também, que o anúncio publicitário é um gênero textual. Os textos diferenciam entre si pelos gêneros discursivos, decorrentes dos usos que esses textos 125 têm em sociedade. Dessa forma, os gêneros textuais são vistos como formas discursivas, ligadas às esferas da vida social. Segundo estudiosos do gênero, as pesquisas devem ser realizadas para responder a seguinte pergunta: Por que os membros discursivos constroem textos da maneira como são feitos? A inserção da categoria Cognição para o exame de contextos na produção de sentidos e para a composição do produto textual indica que o anúncio publicitário é um gênero textual construído com uma sequência textual explicativa incrustada em uma sequência argumentativa, de forma a combinar o visual com o verbal. Em síntese, o anúncio publicitário é um gênero textual que apresenta uma relevância cognitiva em relação às cognições sociais, devido à mudança de papeis das práticas sociais, a fim de anunciar o produto novo a ser consumido. As expressões verbais são selecionadas da variedade/variação linguísticas, representativas das pessoas representadas, no visual, como participantes, intencionalmente, selecionados de grupos sociais. Assim, controi-se o “novo” em relação ao “dado” e tematiza-se o produto anunciado. Os comentários são construídos por argumentos de legimitidade, pois são selecionados das cognições sociais (o “dado”, o conhecido) e modificados pelas intenções do produtor, guiadas pelo macroato de fala discursivo: fazer consumir. Trata-se de uma estratégia de produção que caracteriza a prática discursiva da construção do texto que está em uso nas práticas sociais da audiência. Para concluir, acredita-se que os objetivos propostos tenham sido cumpridos, pois os resultados apresentados indicam que tratar de textos multimodais (anúncios publicitários), pelo enfoque dos contextos, de forma a considerar a categoria Cognição, com as categorias Sociedade e Discurso, contribui para descrever tanto aspectos da composição textual da modalidade verbal com a visual, assim como estratégias de compreensão, aplicadas para a produção de sentidos. Logo, os sentidos produzidos são representações mentais que constroem, socialmente, as crenças contidas nas cognições sociais grupais e extra-grupais, perpassadas historicamente pela cultura e pela ideologia. Tais crenças são construídas no e pelo discurso, cujo produto é o texto. Os resultados apresentados indicam, também, que os elementos selecionados pelo produtor participam de sistemas de conhecimento (simbólico, interacional e enciclopédico), armazenados na memória de longo prazo das pessoas, após terem sido processados por elas. Todavia, é necessário considerar que a ativação do armazenado nem sempre é consciente, pois a ideologia do Poder, que tem acesso ao público, pelos discursos, passa a dominar a mente das pessoas, levando-as a sustentar essa ideologia por sua reprodução textual, no e pelo discurso. Nesse sentido, conclui-se que, na interação comunicativa entre as pessoas, todas as práticas sociais e os textos estão inter-relacionados, de algum modo, às formas de conhecimento, representações mentais sociais e individuais que são crenças originadas no social. Logo, são elas que guiam as ações das pessoas no mundo, tanto para manter quanto para modificar, dinamicamente, a memória social. Os resultados apresentados abrem novas perspectivas de pesquisa para se tratar de outros tipos de contextos implicados nos textos multimodais publicitários e de textos multimodais de outros discursos. 126 Referências FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. Cambridge: Polity Presse, 1992. FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis in transdisciplinary research. In: A new agenda in (critical) discourse analysis: theory, methodology and interdisciplinarity. Amsterdan/Philadelphia: J. Benjamin Publishing Company, 2005. FAIRCLOUGH, N. Language and globalization. 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Paulo: Cortez, 2012. ______ Sociedad y discurso- cómo influen los contextos sociales sobre el texto y la conversación. [ Trad. Elza Ghio], Barcelona: Gedisa, 2011. WODAK, R. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD). Métodos de análisis crítico del discurso. WODAK, R. ; MEYER, M. (Orgs). [Trad. Tomás Fernandez Aúz e Beatriz Eguibar], Barcelona:Gedisa, 2003. 127 A CONSTRUÇÃO DO IDEAL IDENTITÁRIO BRASILEIRO PELA PUBLICIDADE GOVERNAMENTAL – UMA ANÁLISE CRÍTICA MULTIMODAL Josenia Antunes Vieira1 Maria Lílian de Medeiros Yared2 Este estudo tem por objetivo interpretar, por meio de um vídeo institucional do governo brasileiro, as relações entre recursos semióticos, geradores de sentido, e a construção de representações ideais de uma comunidade, facilitadoras da prática governamental de controle social. Assim, com a pesquisa sobre a construção do ideal identitário brasileiro, por meio da publicidade, observamos como esses recursos se relacionam de forma integrada para reafirmar esse ideal, ideologicamente construído e cuidadosamente cultivado pelos discursos, segundo o enfoque da Semiótica Social da Multimodalidade (TSSM), proposto por Gunther Kress, em 2010, pela Análise de Discurso Crítica (ADC), especialmente a versão proposta por Fairclough em 2003, e pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), criada por Halliday, dando relevo ao fato observado pelas pesquisadoras de que uma teoria como a ADC pode responder à pergunta “por quê?” e a TSSM e a LSF podem responder à indagação “como?”. Este estudo faz parte de uma pesquisa maior sobre publicidade governamental no Brasil. Como considerações finais, podemos dizer que o governo brasileiro está direcionado politicamente para a construção do ideal identitário brasileiro, com o estabelecimento de um envolvimento emocional acrítico entre os cidadãos, por meio da transmissão da ideologia de inclusão social. Palavras-Chave: Multimodalidade. Semiótica social. Recursos semióticos. Ideal identitário brasileiro. Introdução Esta pesquisa faz parte de uma pesquisa maior, direcionada à compreensão ampliada acerca do papel do Estado brasileiro na formação de visões de mundo, de figuras-símbolos ideologicamente construídas, alocadas no lugar da identidade ideal. Como parte dela, este artigo se concentra na análise de um vídeo institucional do governo brasileiro, intitulado O 1 2 Universidade de Brasília (UnB). Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Brasília-DF. Brasil. E-mail: josenia.unb@gmail.com. Universidade de Brasília (UnB). Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas. Brasília-DF. Brasil. Programa de Pós-Graduação em Linguística. E-mail: mayared@gmail.com. 129 Brasil está em boas mãos, com duração de trinta segundos. Essa peça publicitária foi veiculada na televisão (TV aberta e TV a cabo) entre outubro e dezembro de 2011, no horário dito nobre, entre 20h e 22h. Esse horário aumenta o poder de alcance do comercial, uma vez que, nele, a maioria dos trabalhadores brasileiros se encontra em sua residência, descansando de mais um dia de trabalho intenso. Foram analisados 24 quadros (frames), os mais representativos para o significado da peça publicitária. O texto publicitário tem um poder muito grande de persuasão porque seus criadores/ autores/meaning-makers sabem escolher o recurso semiótico necessário para realizar o enquadramento ideal a fim de direcionar a percepção do observador/leitor/viewer e, dessa forma, garantir a empatia do viewer com o mundo retratado. Assim, é necessário que os analistas de discurso busquem novas formas de estudos de transcrições e de análises desse tipo de texto multimodal, o filme publicitário, visto que o seu papel na manutenção e na perpetuação das relações de poder é muito significativo. A Teoria da Semiótica Social da Multimodalidade – o princípio de integração dos recursos semióticos na metodologia da transcrição A teoria desenvolvida por Kress — Teoria Semiótica Social da Multimodalidade (TSSM) — apõe uma nova lente aos fatos ligados às práticas comunicacionais humanas. Essa teoria, por ser uma teoria semiótica, preocupa-se, acima de tudo, com o sentido. Ademais, é social porque entende que os recursos semióticos — os fios de tecer o sentido do texto — são moldados e perpetuados cultural e historicamente em uma comunidade. Essa teoria leva em consideração que a comunicação humana não se resume ao modo fala, ou ao modo escrita, mas que se utiliza também de vários modos de expressão para construir o sentido de um textomensagem. Assim, a tarefa do analista de um texto multimodal, como um filme publicitário, é também observar como a disposição dos recursos semióticos, dispostos dinamicamente, facilita a produção deste ou daquele sentido. Existem alguns conceitos fundamentais na TSSM, construto que privilegia a comunicação e o interesse do meaning maker (autor do texto, literalmente “fazedor de significado”), em usar determinados modos para expressar o sentido desejado com o objetivo de transmitir esse sentido para os outros, sejam viewers, leitores ou ouvintes. Em multimodalidade, existe o conceito de interesse: o autor do texto tem um sentido a transmitir e escolhe os recursos semióticos para formar o seu texto, de acordo com o seu interesse. Temos o conceito de modo: recursos que materializam o sentido de um texto, como o modo escrita, o modo gestual, o modo fala, o modo cor. Modos pertencem ao plano da expressão. Segundo o modelo de Hjelmslev, foram moldados social e culturalmente e estão disponíveis para o meaning maker construir o seu texto. 130 Esta pesquisa está ancorada na TSSM proposta por Gunther Kress, na Análise de Discurso Crítica (ADC) – aparato teórico desenvolvido por Fairclough em 2003 –, e na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) criada por Halliday. Dá relevo ao fato observado pelas pesquisadoras de que uma teoria como a ADC pode responder à pergunta “por quê?” e de que a TSSM e a LSF podem responder à indagação “como?”. As categorias de análise a serem utilizadas são as seguintes: modo fala, modo escrita, modo cor e cinestesia, qual seja, o movimento corporal. Em relação à ADC, será utilizada a categoria referente ao significado representacional do discurso, basicamente, a representação dos eventos e dos atores sociais, com o intuito de localizar os discursos que estão por trás da letra da canção no comercial em questão. Pretendemos observar como essas peças publicitárias são construídas pelo meaningmaker (autor do texto) e de que forma servem ao trânsito das ideologias e ao controle social pelo Estado. A transcrição do filme será feita por meio do modelo (tabela/matriz) de Baldry e Thibault, que deixa explícito o princípio da integração dos recursos semióticos em um texto. (BALDRY; THIBAULT, 2010). Com a transcrição, pode-se ver, ao longo das linhas da tabela, os recursos semióticos utilizados simultaneamente. Foram analisados 24 frames de um filme de 30 segundos. Trata-se dos frames mais significativos, cada um contendo o personagem típico do quadro, seja esse personagem representado por meio do trabalho que faz com as mãos, seja por meio de sua ação com o corpo inteiro. O filme inicia-se com uma representação metonímica, pela qual o participante (todo) é representado pela parte (mãos). O comercial compõe-se de uma sequência de mini-histórias, com participantes típicos da paisagem cultural brasileira arquetípica (samba + futebol + sorriso). Nesta pesquisa, escolhemos o frame representativo de cada personagem. Cada linha será composta das seguintes subdivisões ou colunas: o tempo em segundos (T), no qual o enquadramento foi realizado; os frames narrativos; a imagem visual (posição da câmera); a trilha sonora; o modo escrita; e o movimento corporal (cinestesia). No caso da coluna referente à trilha sonora, serão usados símbolos para identificar a voz feminina; no caso da coluna relativa ao movimento corporal, a notação entre colchetes indica ações simultâneas, separadas por ponto e vírgula. Se a ação for sequencial, faremos a anotação com o símbolo do acento circunflexo (^). Para a análise dos textos, será utilizada a Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 2004) em relação ao sistema de transitividade e à metafunção interpessoal da linguagem, a fim de entender que um texto publicitário pode constituir, na verdade, um texto de ordem ou de pedido: implícita ou explicitamente, o texto publicitário dá uma ordem (de consumo ou de adesão a um ideal) ou faz um pedido (para consumir ou para aderir a um ideal ou a uma visão de mundo). A Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2003) será utilizada como ferramenta para a análise discursiva com o intuito de explicitar o desvelamento das ideologias por meio dos significados textuais. 131 Análise do vídeo institucional – identificação patriótica e envolvimento acrítico No texto O Brasil está em boas mãos, é apresentada, ao viewer (observador, telespectador), uma sequência de imagens com vários personagens brasileiros dançando ao som de um samba, celebrando as “oportunidades” que o País está oferecendo especialmente às pessoas com menos recursos. Os participantes convidam o observador a fazer parte do mundo retratado por meio do sorriso, invocando, nessa interação, os chamados valores culturais do brasileiro. O texto é composto de imagens em movimento, de pessoas sambando e celebrando, de canção com letra, de narração em primeiro plano com uma voz feminina — e sua respectiva legenda embaixo da imagem, sem ligação com a imagem — e de chamadas escritas em cima das imagens, que mostram dados estatísticos referentes ao crescimento econômico do Brasil. A voz feminina aparece pouco depois do início do samba, e os dados, pouco depois do início da narração da voz feminina. Esse texto foi veiculado na TV aberta e na TV por assinatura em novembro e dezembro de 2011. Segundo a Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência da República), ele mostra o protagonismo dos brasileiros no desenvolvimento do Brasil. A tabela de transcrição – uma visão diferente O modelo de transcrição matricial (linhas e colunas) de textos dinâmicos, como um filme publicitário, proposta por Baldry e Thibault (2010), permite-nos uma percepção linear diferenciada do texto, o que deixa explícito o princípio da integração dos recursos semióticos, ou seja, podemos ver como todos os recursos semióticos estão dispostos para a formação dos sentidos do texto. A tabela de transcrição antecipa, em alguma medida, a análise. Quando recontextualizamos o dado, permitimos que seja visto como os recursos semióticos foram dispostos pelo meaning maker (autor) para formar o sentido. Essa disposição linear dos recursos semióticos fornece uma lente capaz de mostrar o que não podemos perceber ao vermos o filme, cujos quadros passam muito rapidamente, às vezes, escapando à nossa percepção consciente. A legenda é a que segue: • T: tempo em segundos (o momento do filme em que apareceu determinado quadro; às vezes, vários quadros apareceram no mesmo segundo) • PC: posição da câmera (E: estacionária) • PH: perspectiva horizontal (frontal ou oblíqua) • PV: perspectiva vertical (alta, baixa, mesmo nível) • D: distância entre o viewer e o mundo retratado (muito perto, perto, médio close, tomada de longe) 132 • • • • CV: colocação visual SV: saliência visual FV: foco visual CR: cor em realce Um frame visual significativo foi escolhido. Com isso, identificamos em que momento (segundo) do filme esse frame comparece. Normalmente, cada frame visual coincide com diferentes personagens, mas nem sempre isso ocorre. Por exemplo, no caso do gari sambando, dos “peladeiros”, da mãe segurando o filho. Esses personagens tiveram mais tempo no total do filme. A posição da câmera (PC) é estacionária durante todo o filme. Na perspectiva horizontal (PH), prevalece a posição frontal da câmera e, na perspectiva vertical (PV), prevalece a câmera no mesmo nível dos personagens. Em relação à distância D (distância entre e o viewer e o mundo retratado), o filme começa com closes fechados nas mãos, passa por médios closes (cintura para cima) e termina em um close fechado das palmas das mãos. A seguir, temos a matriz de transcrição da peça publicitária com os principais frames visuais, formadores de pequenos grupos significativos. Quadro 1 – As Metáforas das Mãos – a construção do Brasil T 1 FRAME VISUAL (coincide com as tomadas) IMAGEM VISUAL PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: muito perto CV: paisagem agrícola. SV: mãos, caixinha de fósforo TRILHA SONORA Samba Som introdutório do cavaquinho; depois, o tambor e o pandeiro. Som da caixa de fósforo. VOZ FEMININA TEXTO MODO ESCRITA NA IMAGEM MOVIMENTO CORPORAL Mãos de homem batucando na caixinha de fósforo. 133 1 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D:muito perto CV: madeira SV: mão com luva azul e branca; serrote 1 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: muito perto CV: tijolo, pá. SV: cimento Som introdutório do cavaquinho; depois, o tambor e o pandeiro. Som do serrote. Uma mão segurando a madeira e a outra (deduzida) utilizando o serrote. Som introdutório do cavaquinho; depois, o tambor e o pandeiro. Som da pá. Mãos (off screen) utilizando a pá para assentamento do tijolo. Metáfora da construção do País. A construção do Brasil é representada pelo trabalho com as mãos. A câmara está em close, amplificando o papel do trabalho na construção do País. Há uma significação metonímica do Brasil (parte pelo todo): as mãos dos brasileiros são o Brasil, e uma metáfora de construção/ crescimento: as mãos dos brasileiros vão construir o Brasil e o País vai crescer. Nesse caso, o Brasil encontra-se metaforicamente conectado à produção agrícola (rapidamente, no primeiro frame visual); à construção civil (mais representativa) e às atividades de produção de bens e serviço dos microempresários (também representativa). O gari: a coreografia solitária do trabalhador feliz Quadro 2 – O gari: a felicidade do fim de festa FRAME VISUAL 3 134 IMAGEM VISUAL PC: E PH: oblíqua PV:mediana D: médio close CV: fundo verde e branco SV: sombra do gari CR: verde TRILHA SONORA ¯♂ Em boas VOZ FEMININA MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL Sombra do personagem que vai aparecer (clima de suspense para apresentar o “sambista do Brasil”). 4 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: tomada de longe CV: casas, rua, poste SV: gari e homem sentado CR: verde 5 PC: E PH: obliqua PV: mediana D: tomada de longe CV: casas, rua, poste SV: gari e homem sentado CR: verde ¯♂(*) mãos [Personagem gari aparece sambando; homem sentado batucando.] ¯♂ (*)mãos O gari é símbolo do samba, da alegria ao trabalhar; é o varredor da imensa área do sambódromo completamente abarrotada de lixo após o carnaval. O gari prolonga a festa do carnaval, porque também representa um tipo de “bloco” que desenvolve coreografias para um sambódromo vazio e cheio de restos da grande comemoração. No caso da peça publicitária em análise, há um público para a dança do gari, representado por um aposentado típico, sentado em uma cadeira colocada fora da casa, em um bairro tranquilo de um Brasil que não existe. O texto torna o gari protagonista desse ideal de Nação, além de realizar o paralelo entre trabalho e alegria — todos os trabalhadores estão alegres em trabalhar, em alcançar as suas metas, que são as metas do Brasil. Na linguagem de Fairclough (2003), o gari é um “caractere social” ou um “tipo social”. Trata-se de uma das possíveis identidades sociais do Brasil. Podemos ver que esse “caractere social” é construído pela mídia de massa como um ser alegre, amável, 135 bem-humorado. Segundo o nosso entendimento, esse tipo social é um tópico-auxiliar da governança, porque permite a propagação da ideia de um brasileiro amável e risonho frente a qualquer situação da vida, o que está muito distante da realidade. A pelada com os amigos: a alegria do fim de semana Quadro 3 – A pelada (partida de futebol não profissional) com amigos no fim de semana T FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL TRILHA SONORA VOZ FEMINIA MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL 7 PC: E PH: frontal PV: mediana D: média CV: rede de goleiro ao ¯♂Do povo brasileiro fundo SV: jogadores CR: verde FV: longe [Jogadores em coreografia; sorriso] 8 PC: E PH: frontal PV: mediana D: média CV: rede de goleiro ao fundo SV: jogadores CR: verde FV: longe; viewer Jogadores desenvolvem a coreografia. A “pelada do fim de semana” é a marca (talvez não registrada) do lazer do homem brasileiro médio, pai de família, na faixa dos quarenta aos cinquenta anos de idade, frequentador do campo de futebol comunitário nos fins de semana, outro caractere social, ou tipo social, caracterizado pela alegria, pela paixão, pela cerveja e pelo futebol, embora a sua atividade física normalmente se resuma a essa partida semanal de 30 ou 40 minutos. O papel do sorriso como um elemento de coesão textual pode ser observado ao longo de todo esse comercial. 136 O trabalho mais qualificado e o consumo ao alcance da população Quadro 5 – A inclusão e o consumo T 10 11 FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL PC: E PH: frontal PV: baixa D: média CV: céu, arranha-céu, carregador de mala SV: homem recepcionista PC: E PH: oblíqua PV: alta D: média CV: banco com bolsa, outros clientes SV: moça de preto TRILHA SONORA música ao fundo; solista masculino ¯♂ O Brasil ¯♂Tá forte e tá VOZ FEMININA ♀ — Tá todo mundo ♀ celebrando MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL (Recepcionista batucando com as mãos; sorriso) (Mulher sambando na sapataria; sorriso) Nesse quadro, podemos perceber uma antinomia do ângulo da câmera: no primeiro quadro, o viewer (telespectador, observador) está abaixo do nível dos olhos do participante, o que pode indicar um empoderamento da etnia negra no Brasil, uma vez que o ângulo da câmera revela o tipo de interação social, que pode ser igualitária (perspectiva vertical mediana) ou não igualitária (perspectiva vertical alta ou baixa). No quadro seguinte, a consumidora na sapataria está enquadrada como estando abaixo dos olhos do viewer, o que sugere uma relação assimétrica de poder entre a consumidora de sapato (visão estereotipada da configuração de consumo da mulher) e o observador. 137 O Brasil é um bebê que cresce em nossas mãos Quadro 6 – O crescimento humano, educacional e profissional IMAGEM VISUAL TRILHA SONORA VOZ FEMININA 12 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: close shot CV: fundo amarelo SV: mãe e bebê FV: vetor do olhar liga mãe e bebê; perto ¯♂ Guerreiro ♀ — O Brasil cresce [Mulher levantando bebê; sorriso] 13 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: close shot CV; fundo amarelo SV: mãe e bebê FV: vetor do olhar liga mãe e bebê; perto ¯♂ Guerreiro ♀ O Brasil cresce [Mulher levantando bebê; sorriso] 14 PC: E PH: frontal PV: baixa D: medium close shot CV: céu azul e faixas laranjas SV: formandos ♀ —Com (*) mais oportunidades Formandos jogando o chapéu T FRAME VISUAL MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL Aqui, podemos observar a construção da identidade entre o Brasil e o bebê, que está crescendo, enfocando a necessidade de investimentos e de trabalho para o desenvolvimento do País e exemplificando com os diplomas (“canudos”) jogados para cima após a formatura. É relevante atentarmos para a integração semiótica entre o texto da voz da narradora (O Brasil cresce) e a ação da mãe erguendo o bebê. No caso, o crescimento fica redundantemente expresso, sinalizando para a construção da identidade almejada pelo autor do texto. 138 Os números que descrevem o Brasil Quadro 7 – O Acesso ao Crédito para Empreendedorismo, Formação Técnica e Educação Inclusiva T FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL TRILHA SONORA VOZ FEMININA 16 PC: E PH: frontal PV: mediana D: média ♀— CV: balcão com ¯♂Do povo Na produção pães SV: padeiro; texto FV: mediano 17 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: média CV: outros estudantes SV: casal dançando, texto 19 ¯♂ Brasileiro PC: E PH: oblíqua PV: baixa D: média CV: céu ¯♂O Brasil azul, cesta de basquete e prédios SV: cadeirantes, texto ♀— Na educação MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL Supersimples: 5,6 milhões de empresas beneficiadas [Padeiro batucando; sambando; boca: sorriso] Educação Técnica profissional [Estudantes técnicos imitando os passos do mestre-sala e da porta-bandeira; boca: sorriso] Mais de 63 mil vagas ♀— E na qualidade de vida. Porque toda pessoa Educação Técnica profissional Cadeirantes jogando basquete Mais de 63 mil vagas Nesse quadro, temos três frames que mostram a utilização das políticas governamentais de crédito. Essa contextualização pode ser vista no texto escrito aposto à imagem, que indica dados estatísticos sobre a facilitação do recolhimento de imposto e a abertura de vagas para a educação. O acesso mais fácil ao crédito favorece o empreendedorismo e a formação do indivíduo. A voz da narradora e os dados apresentados na tela sobre o Supersimples, tipo de imposto com facilitação em relação ao pagamento, reforçam o sentido do mundo retratado nos frames visuais, nos quais o progresso constitui o marco principal. A política de inclusão é reforçada pelos grupos lexicais “qualidade de vida” e “toda pessoa”, associadas e integradas ao quadro retratando o cadeirante atleta. 139 O pandeiro, a cuíca, a saúde comemorada pelo povo Quadro 8 – A Roda de Samba T 20 21 FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL TRILHA SONORA PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: close CV: camisa branca SV: pandeiro, texto ¯♂Tá forte (coro de sambistas) PC: E PH: frontal PV: mediana D: médio close CV: roda de samba SV: camiseta azul; senhora sambista; texto ¯♂e tá guerreiro (coro de sambistas) VOZ FEMININA MODO ESCRITA Medicamentos gratuitos ♀ Tem 6,5 milhões de beneficiados ♀— O direito de vencer Medicamentos gratuitos 6,5 milhões de beneficiados MOVIMENTO CORPORAL Mão tocando pandeiro [Mulher sambando na roda de samba; sorriso] A cena, bastante típica no contexto cultural e histórico da comunidade da classe média baixa no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, é a roda de samba no bar. Esse tipo de arranjo semiótico, com essas cenas, coloca em funcionamento nosso sistema de valores culturais, amplificadores do grau de empatia com o viewer: o pandeiro, a cuíca, a caipirinha, a feijoada, o toicinho, a cerveja, a música, o samba. As categorias mais relevantes para a formação do sentido do texto são o movimento corporal dos participantes e a trilha sonora, todas indexadas pelo close no instrumento e nas mãos do instrumentista. 140 A felicidade de se ter um emprego Quadro 9 – Ampliação da Oferta de Emprego T FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL 24 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: close médio Cv: prédio ao fundo SV: celular e maleta FV: mediano; fora de tela 26 PC: E PH: frontal PV: baixa D: média CV: árvores SV: trabalhadores, roupa azul, luvas brancas, texto FV: mediano; viewer TRILHA SONORA ¯♂ Do povo (coro de sambistas) ¯♂ Brasileiro (coro de sambistas) VOZ FEMININA MODO ESCRITA Novos empregos ♀ —Em 2012 2,2 milhões (até outubro) MOVIMENTO CORPORAL [Moça executiva falando ao telefone com uma maleta; sorriso] Novos empregos ♀— Vamos manter o ritmo 2,2 milhões (até outubro) Supervisores dançando; sorriso Com relação à representação dos participantes do Quadro 9, podemos dizer que a executiva, portadora da maleta, fala ao celular, dança e sorri; está feliz porque está empregada e porque, provavelmente, conseguiu uma promoção por conta da ajuda governamental para investimentos em cursos de especialização. A maleta é uma saliência visual e também um recurso semiótico. Em relação à saliência visual, podemos ressaltar o seu papel referencial e contextual – a maleta preta tem o significado de trabalho, de eficiência e de sucesso profissional. Roland Barthes dizia que tudo que aparece por resposta a uma prática social fica semiotizado: desde que haja sociedade, qualquer uso se converte em signo desse uso. O uso da capa de chuva é proteger da chuva, mas esse uso é indissociável do próprio signo de certa situação atmosférica (BARTHES, 2006 [1964], p. 44). No último frame do Quadro 9, temos dois trabalhadores da construção civil comemorando, dançando e sorrindo, simultaneamente. Neste enquadre, a saliência é a cor azul, culturalmente indicadora de felicidade (vide, intertextualmente, a canção “Vesti azul. Minha sorte, então, mudou.”). Podemos dizer que a cor azul, neste quadro, constrói uma avaliação visual (é bom termos empregos), ressaltando a metafunção interpessoal. Esse quadro está acompanhado de texto no modo escrita, com dados estatísticos referentes ao aumento no número da oferta de empregos. 141 A união entre o trabalho e a alegria Quadro 10 – O trabalho e a Diversão de Mãos Dadas e Braços Abertos T FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL TRILHA SONORA VOZ FEMININA MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL 27 PC: E PH: oblíqua PV: mediana D: médio close CV: máquina amarela SV: supervisores de obra, capacete branco FV: vetor do olhar liga dois supervisores ♀ Nas mãos [Supervisores dando as mãos; sorriso] 28 PC: E PH: frontal PV: mediana D: médio close CV: roda de samba SV: sambista, braços abertos, calça branca FV: mediano: viewer. ♀ —Do povo brasileiro [Sambista de braços abertos sambando; sorriso] Novamente, o texto reforça o papel de coesão textual das mãos. No Quadro 10, no primeiro frame visual, podemos ver agora o significado da união (mãos unidas de, possivelmente, dois engenheiros civis) para a construção do Brasil. O frame visual final, reforçado semioticamente pela voz da narradora dizendo “do povo brasileiro”, traduz, amplifica, transmite e perpetua a construção imagética do brasileiro típico — feliz, amigo, de braços abertos —, não esquecendo o vestuário: calças brancas, perfeitamente engomadas, e camisa estampada de mangas compridas, provavelmente de seda, o típico puxador de samba. 142 A Nação em nossas mãos Quadro 11 – A Marca, a Bandeira e o Slogo (slogan + logo) T FRAME VISUAL IMAGEM VISUAL 29 PC: E PH: frontal PV: alta D: tomada em close CV: fundo de madeira SV: mãos, bandeira nacional, cores CR: verde e amarelo 30 PC: E PH: frontal PV: mediana D: tomada média CV: fundo branco SV: slogo, cores CR: verde e amarelo TRILHA SONORA VOZ FEMININA MODO ESCRITA MOVIMENTO CORPORAL Mãos de palma para cima, lado a lado, pintadas com a bandeira do Brasil. ♀— Governo Federal Assim como começou, o filme se encerra (Quadro 11) com a figura das mãos, desta vez, servindo de suporte para a pintura da bandeira do Brasil. Aparece, em seguida, o logo do Governo, com o slogan: País rico é país sem pobreza. A Interpretação — a identidade entre ideal e governo Como os recursos semióticos estão interligados nessa peça publicitária para formar o sentido do texto? O elemento específico que serve à coesão textual, presente em todo o texto e chegando a acarretar uma redundância significativa, são as mãos, que aparecem em grande parte dos frames visuais e na letra da música. Há uma significação metonímica do Brasil (parte pelo todo): as mãos dos brasileiros são o Brasil, e uma metáfora de construção/crescimento: as mãos dos brasileiros vão construir o Brasil e o País vai crescer. Nesse caso, o Brasil encontra-se metaforicamente conectado à produção agrícola (rapidamente, no primeiro frame visual); à construção civil (mais representativa) e às atividades de produção de bens e serviço dos microempresários (também representativa). Também são apresentadas tomadas com frames visuais ligados à educação, à saúde, ao crescimento 143 do consumo. Os movimentos corporais (cinestésicos) acompanham o ritmo da música e, algumas vezes, a letra da música e a voz da narradora, como pôde ser visto horizontalmente na tabela (espécie de matriz insumo/produto, ou melhor, matriz recurso semiótico/sentido). No momento em que a narradora diz “o Brasil cresce”, simultaneamente, para o viewer, aparece o frame visual em que a mãe levanta o filho até o alto. A cena prototípica do Brasil é a roda de samba na mesa do bar. Isso coloca em funcionamento todo um sistema de valores culturais que aumentam o grau de empatia com o viewer: o pandeiro, a cuíca, a caipirinha, a feijoada, o toicinho, a cerveja, a música, o samba. As categorias mais relevantes para a formação do sentido do texto são o movimento corporal dos participantes e a trilha sonora. As cenas de movimento no trabalho (pedreiro, marceneiro) persuadem o brasileiro telespectador (viewer) de que devemos trabalhar para construir uma grande nação. Podemos considerar todos os movimentos como movimentos de propostas, ou melhor, como metáforas visuais interpessoais. Há uma orientação dialógica no movimento, que se constitui metaforicamente como um modo de expressão para a proposta. O movimento é feito como uma oferta para o outro, com uma disposição afetiva do atuador: alegria, entusiasmo. O movimento corporal e a expressão facial dos participantes podem ser vistos como uma recontextualização de movimentos feitos por outros participantes das práticas sociais: caixinha de fósforo recontextualizando o movimento do músico do pandeiro; estudantes imitando a coreografia da porta-bandeira e do mestre-sala; microempresário da padaria atuando como sambista. Segundo Baldry e Thibault (2002), o movimento pode ser executado naturalmente, artificialmente ou apropriadamente. Na peça publicitária, os movimentos não são apropriados no que diz respeito às circunstâncias em que eles ocorrem. (sambar na sapataria, sambar na padaria, dançar na escola técnica). Esse tipo de deslocamento (recontextualização de práticas sociais) pode favorecer o fortalecimento do ideal brasileiro de ser muito alegre o tempo todo, inclusive no trabalho ou na escola. Também é retratado o acesso feliz ao consumo (mulher na sapataria); a certeza no futuro, com a mãe levantando o filho que vai crescer; e a alegria de viver, com a senhora dançando na roda de samba. Tudo isso porque têm mais acesso aos medicamentos, distribuídos gratuitamente (o texto escrito, com os dados da distribuição de medicamentos, sobrepõe-se a esses frames visuais). Todos os participantes estão sorrindo. Alguns interagem com o viewer, outros, não, mas todos estão felizes, comemorando, sambando (e a voz da narradora confirma: “Tá todo mundo celebrando”). O participante/ator mais saliente é o gari, o dono da tomada mais longa. Ele é apresentado inicialmente como uma sombra (suspense) e, após essa tomada, samba em frente a um sobrado onde há um senhor encostado em uma cadeira, batucando com a mão. O gari é símbolo do samba, porque é ele que varre a imensa área do sambódromo, completamente abarrotada de lixo após o carnaval. O texto torna o gari um protagonista desse ideal de Nação, além de realizar o paralelo entre trabalho e alegria — todos os trabalhadores estão alegres em trabalhar, em alcançar as suas metas, que são as metas do Brasil. O contexto mais saliente são as rodas de samba, onde há o batuque. O batuque inicia o texto (batuque da caixa de fósforo) e fecha o texto na forma dos braços abertos do sambista 144 (em frente a uma roda de samba), indicando ao viewer (telespectador) que este faz parte do mundo retratado. Pouco antes do aparecimento do slogo (slogan + logo) do Governo Federal, são mostradas as palmas de duas mãos formando a bandeira nacional, o que confirma o Brasil (representado metonimicamente pela bandeira) situado nas mãos do trabalhador brasileiro. Esse é o pano de fundo para que a voz feminina, portadora principalmente da metafunção interpessoal, possa realizar uma troca de serviço (novamente uma metáfora interpessoal) com o ouvinte/viewer, dando-lhe uma ordem, especialmente quando diz: “Em 2012 vamos manter o ritmo”. Essa é uma metáfora interpessoal, isto é, uma ordem é dada sob forma de afirmação no tempo futuro. O ritmo a que a locutora se refere é o ritmo de crescimento e de trabalho, mas está sincronizado, metaforicamente, ao ritmo do samba. O sentido acional realizado pelo texto, via gênero propaganda, é muito claro. Há um convite ao viewer (telespectador) para se identificar com aquele ideal brasileiro: trabalhador, sorridente, amável, amante do samba. Esse ideal brasileiro transforma-se, para o viewer, no objetivo a ser atingido, e esse objetivo é o que vai unir todos os brasileiros em uma irmandade alegre, sambista e trabalhadora. Esse ideal vai dar a liga de que o governo precisa para atingir o controle social necessário para a governança. Por meio dessa peça publicitária, podemos ver a equivalência entre governo e Brasil e entre governo e povo. A questão não é o Estado brasileiro, mas o governo brasileiro, que precisa ser identificado com o ideal brasileiro, construído pelo texto, que é um texto dinâmico, um filme. Assim, o caminho do transporte semiótico por nós sugerido é este: mãos – samba – trabalho – consumo – educação – saúde – alegria – ideal brasileiro – governo. Dessa forma, o governo é identificado com o ideal brasileiro e, assim, pode unir toda a população. O típico ideal brasileiro — sorridente, sambista — já vem sendo construído em nossa história e ao longo de nossa formação cultural. Nas copas do mundo e no carnaval, isso é muito explorado pelos anunciantes, assim como a Copa de 70 o foi pela Ditadura Militar. Acreditamos que esse ideal brasileiro atual — sorridente, sambista e trabalhador — está sendo muito considerado pelo governo, cujas peças publicitárias se caracterizam pela apresentação de políticas sociais e econômicas como dádivas para que a população seja persuadida de que pertence a uma comunidade coesa, que pode ser melhor controlada. Cada narrativa convida o viewer a ver a si próprio, a identificar ali o seu ideal identitário. Isso também é conseguido graças ao predomínio de orações relacionais, que constroem metáforas, base da construção de configurações identitárias ideais. O olhar do sambista (último) para o viewer, integrado ao seu movimento corporal (cinestesia) de abrir os braços, referencia a identidade que existe entre o viewer e o sambista. Os personagens são espelhos, na frente do qual o viewer se mira e se admira. As profissões apresentadas no texto (agricultor, pedreiro, marceneiro, gari, recepcionista de hotel) realmente são valiosas para o desenvolvimento de qualquer país, mas não há, no Brasil, a cultura de se remunerar bem esse tipo de profissão. De modo geral, o pedreiro, o marceneiro, o gari e o pequeno agricultor ganham abaixo do valor da remuneração percebida em outras nações. Entretanto, graças à trilha sonora e à integração de todos os recursos semióticos, essas profissões ficam engrandecidas, idealizadas. 145 O Sistema de Transitividade Há prevalência de orações relacionais no que diz respeito ao sistema de transitividade nos textos do modo fala. As orações relacionais são aquelas que constroem conceitos e ligam duas entidades semióticas. O resultado dessa ligação é uma nova entidade semiótica. As orações relacionais são responsáveis pela formação de metáforas, figuras de linguagem primordiais nas construções discursivas e no trânsito das ideologias. Os textos da voz da narradora e da letra do samba são compostos, principalmente, de orações relacionais, (intensivas, possessivas e circunstanciais), com a construção de imagens ideais do Brasil, já presentes em outros textos, como no Hino Nacional, por exemplo. A seguir, temos o quadro das orações relacionais presentes na letra da canção e no texto da narradora. Podemos perceber, com base nesse quadro, que o principal portador desses processos relacionais é o “Brasil”, confirmando a função de formação de identidade da peça publicitária governamental, além de sua função persuasiva. Nossa percepção (nós, como viewers do comercial) fica invadida pelas afirmações construtoras da identidade do Brasil, realçadas e reforçadas pelo ritmo musical. Quadro 12 – As Orações Relacionais 146 O Brasil está em boas mãos/nas mãos do povo brasileiro Portador processo relacional circunstancial atributivo circunstância (lugar) O Brasil está Portador processo relacional intensivo atributivo atributo O Brasil (implícito) está guerreiro Portador processo relacional intensivo atributivo atributo Tá (estar) todo mundo celebrando (muito perto da função adjetiva) Processo relacional intensivo atributivo portador atributo forte O Brasil cresce com mais oportunidades na produção, na educação, na saúde. Existente processo existencial circunstâncias modais circunstâncias de lugar (porque) Toda pessoa tem o direito de vencer Possuidor processo relacional possessivo possuído. As orações relacionais são recursos semióticos para construir metáforas e também para fazer avaliações. Essas avaliações auxiliam no construto do ideário imaginário do brasileiro feliz, bem-humorado e determinado (tá todo mundo celebrando; o Brasil tá forte, tá guerreiro). Podemos ver o envolvimento acrítico a esse ideal brasileiro alegre (o sorriso é um elemento importante de coesão textual) e amante do samba. No filme, os participantes convidam o viewer a fazer parte dessa comunidade: convidam com o sorriso e com o movimento corporal, culminando com o sambista recebendo o viewer com um sorriso e de braços abertos. A Intertextualidade: o Hino Nacional As metáforas (de guerra, principalmente) fazem intertextualidade com a letra do Hino Nacional, confirmação de que os recursos semióticos são cultural e historicamente moldados. Vamos analisar as metáforas históricas a seguir. Quadro 13 – Metáforas de Guerra e Intertextualidade com o Hino Nacional • Guerra: O Brasil está forte e está guerreiro. • Guerra: Porque toda pessoa tem o direito de vencer. • Interdiscursividade com o Hino Nacional: • O Brasil está forte e está guerreiro/És belo, és forte, impávido colosso,(...) • Porque toda pessoa tem o direito de vencer/verás que um filho teu não foge à luta. A intertextualidade revela a memória cultural que pode ser ativada em vários outros textos. A concepção do Brasil como um guerreiro faz parte do nosso ideário identificador. Há uma antinomia na constituição da identidade do brasileiro: o guerreiro versus o bonachão sorridente. Essa antinomia é, de certa forma, “costurada” nos movimentos de dança e de comemoração ao longo do filme. Os movimentos e as expressões faciais retratam o contexto cultural da atualidade do Brasil, configurando-se em primeiro plano para modelar e para realçar o convite a pertencer à comunidade dos brasileiros. O sorriso expressa uma das marcas da cultura brasileira e é um elemento de coesão textual. Considerações finais O design realiza grande parte do significado textual. O autor/meaning maker constrói o seu texto de acordo com o seu interesse, utilizando os diversos recursos semióticos moldados culturalmente para configurar o design do seu texto. Segundo Kress (2010), o design pode ser 147 identificado como a deliberação sobre a escolha dos modos de representação e do framing para aquela representação. O design realiza relações sociais; na realização em textos ele também projeta e constrói relações sociais. Cada instância do design de um texto é o resultado de escolhas, cada traço escolhido se torna um signo de (aspectos de) relação social. Cada escolha feita realiza um aspecto da relação social imaginada (e para ser projetada). Escolha, neste como em todos os ambientes, é moldada pelo poder: o poder de atribuir uma posição social para quem vai se envolver com o texto. Cada escolha é um ato político (KRESS, 2010, p. 139, grifo nosso). A análise do texto permite dizer que há identificação entre governo e povo brasileiro, porque “estar nas mãos de” significa “ser governado por”, e esse paralelismo entre governo e povo brasileiro pode ser reafirmado por meio dos dois últimos frames visuais, nos quais aparecem mãos de palmas para cima pintadas com a bandeira brasileira e, em seguida, o slogo (slogan + logo) do Governo Federal, com as cores da bandeira nacional. É plausível dizer que o comercial sugere o governo localizado nas mãos do povo brasileiro. Assim, o povo brasileiro sente-se incluído no governo. O texto mostra um convite para que o povo se sinta dono e construtor do Brasil, o que torna a população mais facilmente governável. Após análise dos processos de transmissão de visões de mundo, podemos dizer que o modo de operação da ideologia, segundo a classificação de Thompson (1990), é a unificação por meio da estratégia de construção simbólica chamada simbolização da unidade. Tal construção se dá com a construção de símbolos de unidade e de identificação coletiva. É possível ver como a identidade e os valores nacionais são manipulados nessa peça publicitária. O sentido do texto é construído por meio do arranjo de uma série de recursos semióticos (imagem, música, cor, voz, escrita, movimento do corpo, expressão facial) que, ritmicamente integrados, materializam os significados. As marcas da chamada identidade nacional (sorriso, samba, batuque) são reafirmadas e retransmitidas, sendo reiteradas em várias peças publicitárias em época de copa e de olimpíada, o que ajuda a obscurecer os problemas sociais do Brasil. Nesse sentido, a matriz de transcrição textual proposta por Baldry e Thibault constitui ferramenta fundamental para a interpretação de vídeos porque permite a configuração de uma percepção lógico-semântica indicadora e explicitadora tanto da simultaneidade na utilização de recursos semióticos, quanto de sua sucessão ao longo da linha temporal na qual se encontra o fluxo textual. 148 Referências BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix: l964/2006. FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003. HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Hodder Education, 2004. KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010. O BRASIL ESTÁ EM BOAS MÃOS. Vídeo de publicidade institucional do governo brasileiro, lançado em 2011, como campanha de fim de ano. Secretaria de Comunicação Social. Disponível em: <http:// www.secom.gov.br/sobre-a-secom/publicidade/campanhas-de-publicidade-institucional/o-brasil-estaem-boas-maos.-nas-maos-do-povo-brasileiro> Acesso em: 26 mar. 2012. THIBAULT, P. J.; BALDRY, A. Multimodal transcription and text analysis: a multimedia toolkit and coursebook. London: Equinox, 2010. THOMPSON, J.B. Ideology and modern culture. Stanford: Stanford University Press, 1990. 149 VAN DIJK, T. A. DISCURSO E CONTEXTO: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012. 330 p. Simone Abrahão Scafuto1 Teun A. van Dijk, professor titular do Departamento de Tradução e Filologia na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, e doutor em Linguística pela Universidade Livre de Amsterdã (Holanda) é autor de numerosos livros e artigos, muitos traduzidos em várias línguas. Entre eles, Cognição, Discurso e Interação (2006) e Discurso e Poder (2008). A obra Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva (2012) compõe-se de quatro capítulos compilados em 330 páginas: Rumo a uma teoria do contexto; Contexto e linguagem; Contexto e cognição; e Contexto e discurso. Trata-se de uma teoria integrada e multidisciplinar sobre o contexto, desenvolvida no âmbito de uma teoria ampla do discurso, cujo propósito maior é explicar a complexa relação entre os contextos e as estruturas do discurso. Van Dijk define contexto como modelo mental, único e subjetivo, das dimensões relevantes de uma situação social e comunicativa. Esse modelo representado na memória episódica do participante é caracterizado pelo autor como aquilo que organiza nossas experiências cotidianas em esquemas úteis tanto à compreensão do discurso, quanto à recuperação de nossos modelos mentais antigos. Os modelos de contexto, frutos da capacidade humana de representar mentalmente estruturas e situações sociais, dependem da seleção de modelos mentais relevantes, dotados de propriedades que permitem controlar a produção e a interpretação do discurso. Inicialmente, em Rumo a uma teoria do contexto, o autor analisa um discurso do primeiro ministro inglês, Tony Blair, o qual foi pronunciado na Câmara Comum para convencer o parlamento britânico a aceitar a invasão de tropas no Iraque. A análise não envolve apenas a fala gramatical dotada de significados, as regras e as estratégias de interação, mas as funções socioculturais e políticas da fala e, principalmente, o conhecimento do contexto e as ideologias dos participantes. De acordo com van Dijk, faltaria, nas teorias do discurso e da comunicação 1 Doutoranda em Linguística: Discursos, Representações Sociais e Textos (UnB). Mestre em Linguística: Sociolinguística (UnB, 2001). Especialista em Língua Portuguesa (UCB, 1997). Licenciada em Letras: Português e Inglês (Unicap/PE, 1984). Professora Universitária desde 1986. Autora de materiais didáticos e de artigos na área de Linguagem e Sociedade. 151 das últimas décadas, a interface que liga as formas do uso da língua às suas situações sociais e comunicativas. No segundo capítulo, Contexto e linguagem, o autor reconhece as contribuições da Linguística Sistêmica Funcional (LSF) para os estudos da linguagem e a abertura da perspectiva sociossemiótica para a integração de esquemas relevantes. Entretanto, dirige forte critica à visão antimentalista de contexto, precisamente, à tríade interrelacionada às funções do extrato semântico da língua que norteia a descrição dos elementos do contexto de situação – campo, relação e modo. Segundo van Dijk, essa tríplice terminológica é vaga, inespecífica e, dela, decorreriam numerosos problemas encontrados nas análises das relações entre texto e contexto. Todavia, é importante mencionar que a LSF serviu como ferramenta básica à Análise de Discurso Crítica (ADC) e, propriamente, à Multimodalidade, perspectivas sociais da linguagem que não restringem o contexto a um tratamento metodológico, posto que dialogam de maneira transdisciplinar como outras teorias sociais. Neste capítulo, van Dijk comenta ainda os estudos que mostraram, gradativamente, a importância da relação contexto-linguagem, destacando com apreço a teoria da situação do linguista alemão Philipp Wegener (18481916), em que a interface cognitiva das situações e dos usos linguísticos justificaria o fato de as nossas opiniões e percepções das situações que se desenrolam diante de nós sofrerem distorções. Em Contexto e cognição, van Dijk discorre sobre a importância teórico-metodológica do contexto para os estudos da linguagem, mas atem-se à descrição das propriedades dos modelos mentais, quais sejam: os contextos globais e locais; os esquemas de contexto; o eu-mesmo e as restrições de tamanho aos modelos. A relevância da informação, as intenções e os objetivos dos participantes e, sobretudo, o conhecimento contextual, além de outras categorias cognitivas são detalhadas pelo autor de forma clara e convincente. Por fim, para demonstrar a validade de sua argumentação, explicita como se realiza, de acordo com as exigências de um jornal, todo o processamento da produção de uma reportagem jornalística, desde a sua manchete, passando pela linha dedicada ao autor, às etapas do lide. Essa análise de reportagem evidencia que, além do conhecimento sobre algum acontecimento que rende notícia, a produção desse gênero jornalístico envolve um processo complexo de seleção de proposições formuladas de um modo controlado pelo contexto. Em Discurso e contexto, capítulo final do livro, são enfocadas as dimensões discursivas controladas pelas estruturas contextuais e a influência destas na interpretação do evento comunicativo. Com efeito, classe social, gênero, idade, profissão, poder apresentam-se como variáveis sociais que influenciam o modo como falamos ou escrevemos e pressupõem nossas características sociais. A variação, em cuja subjacência encontra-se a mesma coisa e não coisa diferente, é entendida pelo autor como uma dimensão do discurso condicionada por modelos de contexto e exemplificada em termos de escolha de enunciados para serem adaptados à situação social – um diálogo no atendimento comercial, por exemplo, teria a ver com a compra de um produto, que é um condicionamento contextual. Dimensões do discurso, como o estilo com suas propriedades textuais; o registro cuja base gramatical superpõe-se a tipos distintos de textos; a retórica com suas funções de realce ou de atenuação; o gênero textual definido como narrativa, argumentação, conversação, explicação; e os atos de fala, entre outras categorias do 152 discurso, são tratadas, por meio de dados de pesquisas linguísticas e sociolinguísticas, como categorias discursivas controladas por modelos mentais. A análise que van Dijk faz do discurso político de Tony Blair vai além das concepções formalistas e estruturalistas das ciências humanísticas e sociais e dos sentidos comumente atribuídos ao termo contexto nos trabalhos acadêmicos. Isso implica uma aplicação política orientada para a necessidade de incluir-se o discurso nos modelos de contexto, a fim de transformá-los em modelos reflexivos. Os analistas que estudam o discurso como um dos momentos relevantes da prática social e que têm posicionamento crítico frente à questão do discurso poderão estabelecer um diálogo transdisciplinar, como o fazem com outras teorias sociais, com a abordagem sociocognitiva do contexto, por ser esta empiricamente satisfatória, consistente e original. A falta de um método que, como afirma van Dijk, ultrapasse as variações da gramática e que vá desde as variáveis sociais isoladas até a complexidade das situações e das estruturas sociais, tais como são construídas pelos participantes em seus contextos, não impede que a nova teoria do contexto sirva como fonte de pesquisa relevante às diversas áreas do conhecimento humanístico e de reflexão a todos os interessados no assunto. 153 VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. Neiva Maria Machado Soares1 Em 15 anos, Theo van Leeuwen tem escrito muitos livros e artigos sobre análise do discurso, sobre comunicação visual e sobre multimodalidade. Seu mais recente livro é The language of colour:anintroduction(2011). Atualmente, ele está trabalhando na terceira edição da obra Reading images: the grammar of visual design, com a coautoria de Gunther Kress. Esta obra será publicada em 2013. Ele também é editor da revista Comunicação visual2. A obra constitui um aparato metodológico, como o próprio nome sugere, que visa a contribuir para a análise de textos escritos ou visuais. Perpassa campos que vão desde a sociologia, àAnálise de Discurso Crítica (ADC) e à Teoria Semiótica Social da Multimodalidade (TSSM). Divide-se em nove capítulos,constituindo-se por um corpus analítico variado (livros infantis, reportagens, fotografias e brinquedos) sobre práticas do contexto escolar. Essa diversidade contribui para a análise de como as práticas sociais podem ser transformadas em discursos. O autor considera o discurso como um recurso para a representação de práticas sociais diversas. Assim, o livro fornece ferramentas que reconstituem os discursos e que demonstram como estesreforçam e representam as práticas existentes na sociedade. Há passagens em que o autor se detém em aspectos discursivos textuais; em outras,nos semióticos. Como espera que o livro seja uma ferramenta para ADC, van Leeuwen faz uma interface com muito cuidado: primeiro, aborda o aspecto linguístico, depois, o semiótico, estabelecendo retomadas para orientar a leitura. No primeiro capítulo, Discourse as the recontextualização of social practice, van Leeuwen discute a ideia central da obra – o discurso como uma prática social recontextualizada. Ele lembra que, do ponto de vista da ADC, o texto deve ser estudado como representação e como interação; as práticas sociais, como modos de fazer e de regular as coisas. Coma análise de textos,segundo ele,pode-se verificar como estes se valem e se Doutora em Linguística pela UnB. Informações constante da página do autor. Disponível em:http://datasearch2.uts.edu.au/fass/staff/ listing/details. cfm? StaffId=1944. Acesso em: jan. 2012. 1 2 155 transformam em práticas sociais ao reproduzirem o que ocorre em muitos contextos sociais. Diferentes práticas são reguladas e normatizadas pela tradição em decorrência deregras e demodelos. Ademais, van Leeuwen apresenta o conceito de discurso no sentido foucaultiano– discurso como conhecimento socialmente constituído de alguma prática social, desenvolvido em contextos sociais específicos e de forma apropriada para estes. Discurso é empregado como representação das práticas sociais nos textos que se constituem de: participantes, ações, modos de performance, condições, estilo, tempo e local.A cadeia de recontextualização de uma prática social engloba elementos linguísticos e nãolinguísticos.Os tipos de transformação tomam lugar no processo de recontextualização pela substituição de elementos linguísticospelo apagamento, pela reorganização e pela adição de um elemento à prática social. O capítulo descreve como os elementos das práticas sociais podem e são transformados em processo de recontextualização. Gramáticas de recontextualização mostram como a regulação ou a legitimação da prática social pode ser representada nos discursos. Finalmente, van Leeuwen ressalta que outros modos semióticos podem ser recontextualizados nas práticas sociais. O segundo capítulo, Representação dos atores sociais,versasobre a forma como os participantes das práticas sociais podem ser representados linguisticamente no discurso. A esse tema, o autor dá maior relevânciaretomando-ono Capítulo8 e expandindo-o na forma de representação visual. Van Leeuwen considera que o ator social pode ser agente ou paciente; pode ser representado de forma pessoal, impessoal, individual ou coletiva. A agência é um conceito sociológico de grande importância para a ADC. A representação linguística dos atores sociais pode ser de relevância sociológica e crítica. Para o autor, se a ADC, na investigação da agência, detiver-se mais nos aspectos linguísticos, pode levar à neglicência dessa questão porque não há nenhumajustepuroentre categorias linguísticas e sociológicas. As categorias propostas para investigar os participantes das práticas sociais devem ser vistas como pan-semióticas, pois o significado está relacionado à cultura. Van Leeuwen firma que uma dada cultura não tem sua própria maneira de representar o mundo social, mas de mapear os diferentes modos semióticos, dentro dessa ordem, descrevendo o que pode ser realizado verbal e visualmente. Dessa forma, com o incremento da representação visual em vários contextos, torna-se urgente à ADC responder a questões críticas com relação à representaçao verbal e visual. Van Leeuwen considera a exclusão importante para a análise, pois todas as práticas envolvem um conjunto de atores sociais que podem ser inseridos ou excluídos do texto (linguístico). Os atores sociais podem ser retratados de forma específica, como uma classe de indivíduos, ou de forma genérica, como pessoas comuns. Quanto à assimilação, esta se dá pela agregação e pela coletivização. A individualidade relaciona-se à singularidade; a assimilação, à pluralidade. A associação e a dissociaçãosão formadaspor e com atores sociais que não são indicados no texto; a indeterminação e a diferenciação, pelosatores anônimos; a nominação e a categorização, pela identidade; aocupação e a identificação, pelos nomes que denotam ocupação, atividade, gênero. A funcionalização e a idenficação pelos atores sociais são referidas em termos de sua atividade. A classificação é constituída pela idade, pela classe, pelo sexo, pela cor, pela raça. Os atores podem ser retratados pela personalização e pela impersonalização. A sobredeterminação ocorre quando os participantes são representados como participando, ao mesmo tempo, de mais de uma prática social. Van Leeuwen ressalta que a rede de representação dos atores sociais traz juntoo que os linguístas tendem a manter separado, envolve número de sistemas distintos: trasitividade, referência, grupos nominais, figuras retóricas, todos envolvidos na realização da representação dos atores sociais. 156 No terceiro capítulo, Representação da ação social, van Leeuwen questiona sobre quais são as maneiras nas quais a ação social é representada no discurso. Para responder,ele apresenta um esquema descritivo para ADC dos modos de representação da ação social utilizando categorias críticas e sociossemânticas tais como objetivação e naturalização em realizações gramaticais e retóricas. Van Leeuwen trabalha com a teoria da transitividade de Halliday e com as metáforas gramaticais.Segundo ele, nas categorias objetivização e descritivização,as ações e as reações podem ser ativadas (por grupos verbais); podem ser representadas dinamicamente ou desativadas (por nominalização); podem ser representadas estaticamente, como se fossem entidades ou qualidades antes que processos dinâmicos. Na deagencialização, ações e reações podem ser agencializadas; podem ser representadas por agência humana ou deagencializadas; podem ser representadas sem agência humana, pelas forças naturais ou pelos processos inconscientes. Quanto à generalização e à abstração, o autor considera generalização como um assunto importante na ADC em relação a como o texto está relacionado, legitimado ou deligitimado, como se move dentro de uma alta escala de generalização. Generalização pode ser vista como uma forma de abstração. No caso da naturalização, a ação ou a reação é representada como um processo natural pelo significado do processo material abstrato. O quarto capítulo, Time in Discourse, retrata o tempo no discurso e os recursos semióticos utilizados para representar o ritmo das práticas sociais, assim como as ferramentas sociossemânticas. Aborda a relação do tempo e a maneira como as pessoas falam sobre o tempo conectado com formas simbólicas, como a música, além do papel do tempo na vida e nas instituições. Linguisticamente, o tempo é realizado em termos da duração das atividades. Ele pode ser sicronizado com outras atividades sociais, pode ser natural, mecânico, pontual, exato e inexato, único, durativo, planejado, orçado, transformado. O tempo é diferente dependendo da classe social e do poder. Professores, nos textos analisados, são retratados como tendo o controle do tempo. O quinto capítulo, Space in discourse, discorre sobre a representação do espaço no discurso e na imagem visual. No ponto de vista de van Leeuwen, o espaço deriva e está relacionado diretamente com a ação social, com o uso que fazemos do espaço em nossas práticas sociais. Para o autor, a análise crítica não deve ignorar o papel fundamental do espaço na conexão das práticas sociais. O foco está na construção do espaço no discurso. O discurso sobre o espaço fornece entendimento normativo do espaço e de seu uso no controle das práticas sociais. Linguisticamente, as posições são representadas por expressões circunstanciais. Visualmente, posições são realizadas pelas imagens, pelo plano e pelo cenário. A questão discursiva do espaço social pode ser vista como uma indicação de onde e com que arranjo espacial as coisas acontecem e pode ser seletiva, indicando as funções e os significados dos espaços. O espaço pode ser subjetivo ou objetivo e pode ser agente também. Considerando o corpus analisado, o espaço da sala de aula tem um papel importante, tornando-se um agente no sistema de ensino, bem como o lugar do professor na sala confere a este o papel de agente constituído de poder. O sexto capítulo, A construção discursiva da legitimação, apresenta as quatro maiores categorias de legitimação. Van Leeuwen espera que elas contribuam coma análise crítica da construção da legitimação no discurso e com a reflexão dos problemas relacionados à legitimação hoje. Essas categorias já foram utilizadas por Fairclough no livro Analysing discourse: textual analysis for social research (2003). Autorização refere-se à autoridade, à lei, 157 às pessoas investidas de autoridade institucional. Tem relação com o costume (tradição), com a autoridade (pessoal, impessoal) e com a recomendação (expert, modelo).Avaliação moral, por sua vez, refere-se à legitimação pela recorrência a sistemas de valor. Relaciona-se à avaliação, à abstração (modos abstratos, nomes) e à comparação. Racionalização refere-se à legitimação pela referência aos objetivos e aos usos da ação social institucionalizada e do conhecimento que a sociedade tem construído para dotá-los com valor cognitivo. A racionalização pode ser instrumental ou teórica. A mythopoesis se refere à legitimação transmitida pelas narrativas. O costume legitima ações. Quanto à legitimação e ao contexto, van Leeuwen afirma que um simples texto pode invocar muitos discursos diferentes e até contraditórios, como o da medicina,o da religião, o do populismo,o do feminismo e o do racismo, refletindo, assim, a crise da legitimação. O autor afirma, ainda, que necessitamos considerar não apenas a legitimação, mas também e, especialmente, a intrincada conexão entre as práticas sociais e os discursos que as legitimam. Van Leeuwen propõe alguns questionamentos: por que as práticas sociais existem? Por que elas têm certas formas? Qual é a intenção ao dar à escola a forma que ela tem em nossa sociedade? No sétimo capítulo, O discurso e a construção de um propósito, van Leeuwen analisacomo os objetivos das práticas sociais são construídos, interpretados e negociados. Tomando como referência o texto Meu primeiro dia na escola, ele afirma que o propósito de as crianças irem à escola é aprender a ler e a escrevere questiona se isso é legítimo. A construção do propósito está relacionada, mas não idêntica, à construção da legitimação.A legitimação não é inerente à ação, mas discursivamente construída. A construção dos propósitos das práticas sociais como ação se constrói de uma maneira em um contexto e em outro, não.Após analisar um corpus de 4 textos com a temáticaThe firstdayatschool,van Leeuwen conclui que: professores usam métodos e técnicas de experts; há diferenças na distribuição social dos textos; as ações são tratadas dependendo da classe social das crianças; crianças devem seguir o sistema; nos textos de publicação em massa, nem crianças nem pais são representados como engajados na ação escolar. Assim, a distribuição discursiva da intencionalidade tem tudo a ver com a distribuição do poder nas práticas sociais concretas dasociedade. No oitavo capítulo, Representação visual dos atores sociais, van Leeuwen adapta um modelo de análise dos atores sociais que apresentou no Capítulo2 para o domínio da comunicação visual e o aplica para a representação dos others nos meios de comunicação ocidental. Os atores sociais podem ser os participantes nas orações, mas nem todos os participantes são atores. Existem escolhas para representá-los, como pode ser verificado, na sequência, pelas categorias propostas. Em muitos gêneros, imagens continuam a mostrar imagens estereotipadas e diminuídas de negros. Para a análise da imagem e do viewer, três dimensões são consideradas: distância social, relação social e interação social, que se relacionam a comoaspessoas são representadas, descritas ou narradas pelo viewer. Consideram-se, por isso, as relações interpessoais. Quanto à distância: perto (plano fechado) – próximo; alguém de nós–; longe (plano aberto)– distante;pessoas estranhas. Quanto à relação:ângulo frontal – envolvimento–; ângulo vertical – acima, abaixo ou na linha dos olhos–; ângulo oblíquo– objetividade. Quanto à interação: a pessoa representada olha para o viewer (endereçamento direto); não olha para o viewer (endereçamento indireto). Quanto à representação das relações de poder, van Leeuwen sugere que o ângulo alto demonstra o poder do observador; o olhar no mesmo nível, igualdade. Para a descrição dos participantes no discurso, as categorias investigam como são retratados, inseridos ou não em grupos, e 158 denominados social e culturalmente. A categorização dos participantes acontece pela inclusão ou pela exclusão dos deles. A exclusão significa a não representação de pessoas em todos os contextos em que estão representadas. Nainclusão, os participantes podem ser retratados como: agente/ paciente; específico/genérico; indivíduo/grupo.O específico torna a pessoa única; o genérico leva a pessoa a desaparecer, pela categorização cultural ou pela biológica. Van Leeuwen alega que essas estratégias podem ocorrer em diferentes combinações e graus em histórias de opressão, de racismo, de diferença de classes, que levam ao estereótipo racial, ao prejuízo cultural e étnico representados nos discursos. O nono e último capítulo, Representing social actorswithtoys, destina-se à representação de atores sociais com brinquedosvistos como recursos semióticos para representação de papéis sociais e de identidades. Van Leeuwen explica que o Playmobil oferece perspectiva específica em gênero e em raça. Algumas categorias já apresentadas são retomadas para análisede brinquedos. Quanto aos papéis, às identidades e aos sentidos, odesign do brinquedo pode ser visto como representação simbólica de papéis e de identidades. Os papéis dos brinquedos, para as crianças, têm a ver com o que eles fazem ou não: identidade, com características faciais, cor da pele, assim como o tamanho e a cor do cabelo; significados, com a designação dos brinquedos para representar papel social e identidade “realista”. O modo como osistema de brinquedos é denominado e o mercado fornecem modelos estruturados da sociedade por meio de princípios organizados. Com base na análise,van Leeuwen afirma que esses objetos são uma mistura de permissão e de repressão já na infância, porém, ele vê o Lego como uma repressão menor, pois a sua montagem livre. Noscapítulosda obra, vemos que muito do que o autor propõe como categorias analíticas já se encontram em outros livros, principalmente em Reading images: the grammarof visual design (1996), porém há uma expansão dessas categorias com as respectivas sugestões de análise, principalmente com o cruzamento da ADC. Em algumas passagens, o autor ressalta que não se deterá nas questões linguísticas, mas, sim, nas visuais. Contudo, ele faz analogias entre as questões linguísticas e as semióticas, explicitando que certa categoria no aspecto linguístico se dá por advérbios; no semiótico, pelos espaços, pelo plano, por exemplo. O livro é uma ótima ferramenta não apenas para analistas do discurso, mas também para aqueles de áreas afins, pois fornece um aparato de categorias, principalmente visuais, que podemser mais trabalhadas e entendidas por profissionais de linguagemna investigação decomo as práticas sociais moldam, constituem e retratam a nossa ação social. 159 Referências FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003. KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar visual design. London; New York: Routledge, 1996. VAN LEEUWEN, T. The language of colour: an introduction. London: Routledge, 2011. 160 MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da mídia global: uma introdução crítica. Nova Iorque: Routledge, 2007. 188 p. Izabella da Silva Negrão Trajano1 David Machin é conferencista do Departamento de Mídia e Comunicação na Universidade de Leicester, Reino Unido. Theo van Leeuwen , atualmente, é Decano na Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais na Universidade de Tecnologia em Sidney, Austrália. A obra Discurso da mídia global: uma introdução crítica nos fornece uma acessível e vivaz introdução sobre como a globalização está mudando a linguagem e as práticas comunicativas da mídia. Apresentando grande variedade de exercícios, de exemplos e de imagens, oferece uma maneira prática de analisar os discursos das indústrias da mídia global. Com base em uma introdução compreensiva da história e da teoria da comunicação da mídia global, apresenta estudos de caso com exemplos reais de situações ao redor do mundo. O livro investiga como a comunicação da mídia global é produzida, olhando para os formatos, as linguagens e as imagens utilizadas na criação de materiais midiáticos tanto mundialmente, quanto localmente. Escrito em estilo acessível, compõe-se de introdução e de três seções divididas em capítulos. Introduzindo a obra, Machin e van Leeuwen deixam claro que não é difícil perceber o processo de globalização da mídia. De acordo com os autores, as indústrias mundiais (globais) de cultura agora produzem e distribuem a consciência de todos nós, ou seja, temos as mesmas telas de filmes, os mesmos programas de televisão. Além disso, os mesmos noticiários são mostrados em toda parte, embora, às vezes, em versões locais e específicas. Ao mesmo tempo, novas formas de migração têm trazido mais diversidade cultural às grandes cidades das nações europeias do que estas já haviam visto ao longo dos anos. Ao lado dos principais meios de comunicação global, as migrações buscam chegar a todos, em qualquer parte. Portanto, não há mais apenas a mídia nacional, mas também uma diversidade de outros meios de comunicação que fornecem, globalmente, informações para as comunidades étnicas, às vezes, produzidas localmente. 1 Doutora em Linguística (UnB). 161 Ainda na introdução, os autores revelam que os Estados nações têm tentado manter-se longe do que eles consideram ameaças contra suas crenças e seus modos de vida a fim de conter essa maré e de preservar a unidade de seus meios nacionais de comunicação. Para exemplicar essa situação, os autores mencionam a resistência da Holanda contra a televisão a cabo em 1980; a China e o bloqueio de fontes de mídia, como a CNN, a NBC e o The Washington Post, de sítios de notícias da BBC e de vários outros meios de comunicação ocidentais de entretenimento. Outro exemplo é o da Indonésia, país no qual o editor e a modelo da capa da primeira edição local da Playboy foram acusados de indecência por mostrarem “a decadência ocidental”. Machin e van Leeuwen mostram, ainda, que as indústrias da mídia global têm respondido, deliberadamente, por meio de uma diversidade de criação, produzindo mídia global em linguagens locais e integrando o conteúdo local de várias formas. Na primeira seção do livro, intitulada Contextos, os autores apresentam a história da globalização da mídia e um panorama dos temas principais da teoria da globalização. Compondo essa primeira parte, o Capítulo 1, Histórias da globalização da mídia, discute o crescimento da mídia global focalizando uma das principais questões teóricas da globalização que é a homogeneização da cultura mundial por meio da mídia ocidental e dos valores e dos tipos de identidade que ela promove. Aqui, os autores olham para os exemplos das formas mais recentes da mídia global e mostram como seu crescimento no domínio global formou uma parte do projeto dos Estados Unidos que era, ao mesmo tempo, econômico e ideológico. O Capítulo 2, intitulado Teorias da globalização da mídia, trata da questão da definição da globalização da mídia. Discute também as diferentes formas como a mídia global, seus formatos e estilos encontram seus caminhos na sociedade. Já na segunda seção, Discursos , o Capítulo 3, Discursos de identidade e comunidade, enfatiza que a mídia global gera tipos de identidade e de comunidade diferentes daqueles criados nas nações Estados. Ressalta que esses novos tipos de identidade servem aos interesses do capitalismo de consumo global, levando as pessoas a desempenharem um papel ativo na sua produção. O Capítulo 4, Discursos do sexo e trabalho, trata especificamente do tipo de identidade ideal que a mídia global cria para as mulheres. Os autores destacam a revista Cosmopolitan, a qual se apresenta em diferentes versões ao redor do mundo, propagando o ideal feminino de mulher divertida e destemida, criando um mundo de fantasia por meio de imagens de modalidade baixa, a qual permite um tipo de agência para significar o poder. As realizações multimodais do discurso da revista permitem, às mulheres, um tipo de alinhamento com o seu mundo, isto é, as roupas que elas vestem, os lugares que frequentem e a forma como dançam estão diretamente associados ao discurso da revista, não ao mundo real, mas ao mundo de fantasia e de prazer. O Capítulo 5, Discursos de guerra, explora como a guerra contra o terrorismo está representada em jogos de guerra de computador, mostrando que a indústria americana de jogos de computador, hoje, é maior que a indústria de filmes de Hollywood. Muitos dos jogos que são produzidos tratam da guerra e estão intimamente modelados em eventos reais pretendendo, explicitamente, auxiliar na guerra contra o terror. 162 Na terceira seção do livro, Linguagem e imagem, Machin e van Leeuwen ressaltam que as formas e os formatos da mídia global de hoje não são neutros, uma vez que podem moldar e limitar o seu próprio conteúdo. Segundo os autores, gêneros da mídia global, como notícias, novelas, filmes e anúncios publicitários, juntamente com a linguística e com os estilos visuais comunicam valores e identidades não apenas por meio do seu conteúdo, mas pela sua estrutura, pela forma como se dirigem ao seu público-alvo. Enquanto o conteúdo é geralmente localizado, formas e formatos da mídia tendem a ser globais, dirigindo-se às pessoas da mesma forma ao redor do mundo, independentemente de nacionalidade ou de conhecimento cultural. No Capítulo 6, o primeiro dessa terceira seção e intitulado Gêneros globais, os autores dão atenção ao gênero usando, mais uma vez, o exemplo da revista feminina Cosmopolitan para mostrar como o mesmo gênero de comunicação é utilizado nos domínios do trabalho, do sexo, dos relacionamentos e da moda favorecendo maneiras particulares de ação e de identidade e ofuscando as diferenças entre essas esferas da vida. Eles olham para um gênero particular que permite à revista oferecer determinado poder às mulheres, poder esse que somente será obtido por meio do consumo de mercadorias e de serviços globais, os quais, embora possam ser localizados em certo grau, têm uma uniformidade global sempre visível. O Capítulo 7, Linguagens globais, discute os estilos de linguagem, os quais podem ser produzidos pela mídia global em diferentes versões de seus produtos em linguagens locais. Os autores ressaltam que essas linguagens, contudo, devem-se adaptar aos requisitos dos formatos da mídia global. No Capítulo 8, Imagens globais, os autores tratam da linguagem visual global, na qual não é apenas o conteúdo que importa, mas, especialmente, a sua forma. As imagens, globais, são projetadas para aparecerem bem na página, para se harmonizarem com os anúncios publicitários e para serem reutilizáveis. Por essa razão, elas raramente se referem a pessoas, a lugares e a eventos específicos. Em vez disso, trabalham com repertório limitado de motivos simbólicos para comunicar o tipo de conceitos e de valores que a mídia global pode ilustrar. No Discurso da mídia global, Machin e van Leeuwen nos presenteiam com discussões e com reflexões acerca da mídia no mundo globalizado, mostrando que a globalização tem o poder de mudar a linguagem e as práticas comunicativas da mídia, ultrapassando limites e provocando certa homogeneização cultural entres os povos. As distâncias já não importam mais, pois o que está sendo apresentado é o fim da geografia em termos de espaço, o que torna as fronteiras meras formas simbólicas e sociais: “a distância é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida” (BAUMAN, 1999, p. 19). Essa redução das distâncias e o fim da geografia espacial são consequências do efeito da velocidade das informações e dos meios de comunicação, assim como de um crescente desenvolvimento de novas tecnologias. O Discurso da Mídia Global traz uma excelente reflexão a respeito dos fenômenos da mídia global e do que ela tem feito em termos de divulgação e de propagação do discurso de determinada agência, considerando não um público local, mas, sim, global, sem fronteiras para alcançar os seus objetivos, criando assim novas identidades, novos estilos de vida por meio de um alinhamento de práticas e valores com o consumo de mercadorias e serviços compartilhados globalmente. 163 Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.] 164