Capa - cepadic

Transcription

Capa - cepadic
Copyright © 2013 by Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica – CEPADIC
Universidade de Brasília - UnB
Discursos Contemporâneos em Estudo ̶ vol. 2, n. 1, 2013
Capa: Newton Scheufler
Revisão: André Lúcio Bento, Carmen Lucia Prata da Costa e Denise Macedo
Editores/Organizadores
Josenia Antunes Vieira (UnB)
André Lúcio Bento (UnB)
Diagramação
Bruno Martins de Souza
Conselho Editorial
André Lúcio Bento (UnB)
Angela B. Kleiman (Unicamp)
Célia Magalhães (UFMG)
Claudia Gomes Paiva (Cefor - Câmara dos Deputados)
Dina Maria Martins Ferreira (UECE)
Edna Cristina Muniz da Silva (UnB)
Josenia Antunes Vieira (UnB)
Maria Carminda Bernardes Silvestre (ESTG-IP Leiria-Portugal)
Maria José Coracini (Unicamp)
Milton Chamarelli Filho (UFAC)
Pedro Henrique Lima Praxedes Filho (UECE)
Regina Celan (PUC/SP)
Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP)
e-mail:
cepadic@gmail.com
DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS EM ESTUDO
Apoio
Universidade de Brasília
Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação
Discursos Contemporâneos em Estudo
Volume I
Número 2
ISSN 2237-7247
Abril/2013
ISSN 2237-7247
Discursos Contemporâneos em Estudo, Vol. 1, n. 2, 2013
_____________________________________________________________________________
Revista Discursos Contemporâneos em Estudo
Vol. 1, n. 2, 2013
Revista do Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília – PPGL/UnB
1. Análise de Discurso Crítica. 2. Teoria da Multimodalidade. 3. Linguistíca Sistêmico-Funcional.
I.Título:Discursos Contemporâneos em Estudo. II. Centro de Pesquisas em Análise de Discurso
Crítica.
ISSN 2237-7247
_____________________________________________________________________________
SUMÁRIO
Artigos:
O fantasma estruturalista e a Análise de Discurso Crítica.............................................................. 9
Alexandre Costa (UFG)
Ensino do português baseado nos gêneros...................................................................................... 25
Edna Cristina Muniz da Silva (UnB)
A semiótica social das cores e das formas tipográficas: conceitos, categorias e aplicações........... 47
Flaviane Carvalho (Universidade de Lisboa)
Os reflexos da mercantilização do ensino na formação identitária do professor............................ 67
Josenia Antunes Vieira (UnB) e Denise Silva Macedo (UnB)
Hegemonia e insurgência no discurso cinematográfico: o pensamento social crítico.................... 95
Dina Maria Martins Ferreira (UECE) e Tibério Caminha Rocha (UECE)
Expressões multimodais de anúncios publicitários para a representação do feminino:
implícitos e contextos ............................................................................................................... 107
Regina Célia Pagliuchi da Silveira (PUC/SP)
A construção do ideal identitário brasileiro pela publicidade governamental: uma análise crítica
multimodal...................................................................................................................................... 129
Josenia Antunes Vieira (UnB) e Maria Lílian de Medeiros Yared (UnB)
Resenhas:
VAN DIJK, T. A. Discurso E Contexto: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São
Paulo: Contexto, 2012. 330 p. Simone Abrahão Scafuto ............................................................. 151
VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York:
Oxford University Press, 2008. Neiva Maria Machado Soares...................................................... 155
MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da mídia global: uma introdução crítica. Nova Iorque:
Routledge, 2007. 188 p. Izabella da Silva Negrão Trajano............................................................ 161
Editorial
Em mais um volume da Revista Discursos Contemporâneos em Estudo, nosso propósito é
de contribuir para o debate em torno das representações discursivas na contemporaneidade e da
indissociável relação entre o discurso e as construções identitárias, fruto dos mais diversos modos
semióticos.
No artigo O fantasma estruturalista e a análise de discurso crítica, Alexandre Costa discute a
influência estruturalista nas atuais abordagens em Ciências Humanas, o que inclui, na visão do autor, os
estudos feitos em Análise de Discurso Crítica.
Edna Cristina Muniz da Silva, no artigo Ensino do português baseado nos gêneros, questiona até
que ponto o ensino de escrita contribui para que os(as) estudantes se apropriem dos gêneros na condição de
recursos que lhes permitam agir e interagir nos mais diversos contextos sociais.
A semiótica social das cores e das formas tipográficas: conceitos, categorias e aplicações, artigo de
Flaviane Carvalho, o papel exercido pela tipografia e pelas cores na construção de sentidos da primeira
página dos jornais portugueses Diário de Notícias, Correio da Manhã e Público.
Josenia Antunes Vieira e Denise Silva Macedo analisam aspectos discursivos das identidades
dos profissionais da educação, na perspectiva da tecnologização contemporânea, por meio do artigo Os
reflexos da mercantilização do ensino na formação identitária do professor.
Dina Maria Martins Ferreira e Tibério Caminha Rocha, no artigo Hegemonia e insurgência no discurso
cinematográfico: o pensamento social crítico, tratam do discurso cinematográfico na condição de prática social,
com vistas à desmistificação da supervalorização estética da cinematografia.
O artigo Expressões multimodais de anuncios publicitários para a representação do feminino:
implícitos e contextos, de Regina Célia Pagliuchi da Silveira, trata da representação do feminino em textos
multimodais publicitários, com vistas a analisar, na composição textual do verbal e do visual (imagens e
cores), as formas de difusão da ideologia, instaurada pelo poder.
A construção do ideal identitário brasileiro pela publicidade governamental: uma análise crítica
multimodal, artigo de Josenia Antunes Vieira e de Maria Lílian de Medeiros Yared interpreta criticamente
as relações entre recursos semióticos geradores de sentido, e a construção de representações ideais de uma
comunidade, por meio de um vídeo institucional do Governo brasileiro.
Este volume contempla, ainda, as resenhas das seguintes obras:
• VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo Ilari. São
Paulo: Contexto, 2012, resenhada por Simone Abrahão Scafuto.
• VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New
York: Oxford University Press, 2008, resenhada por Neiva Maria Machado Soares.
• MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da mídia global: uma introdução crítica. Nova
Iorque: Routledge, 2007, resenhada por Izabella da Silva Negrão Trajano.
É nosso desejo que os artigos e resenhas publicados neste volume promovam e instiguem outros
estudos e pesquisas sobre as representações discursivas no mundo contemporâneo. Também desejamos
que você, Colega Pesquisador(a), sinta-se motivado para publicar nos próximos números e volumes da
Revista Discursos Contemporâneos em Estudo.
Josenia Antunes Vieira
André Lúcio Bento
O FANTASMA ESTRUTURALISTA E
A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA
Alexandre Costa1
Neste artigo, discutimos a presença e a importância da epistemologia estruturalista e suas
consequências teórico-metodológicas para todas as áreas e abordagens da Linguística,
inclusive para aquelas que tratam do uso da linguagem. Localizamos sua influência
na reflexão de autores das Ciências Humanas em que os estudos do discurso buscam
subsídios teóricos e as correntes de pesquisa que se mantêm ainda no escopo dessa
herança. Concluímos que a Análise de Discurso Crítica é uma das abordagens que parece
manter-se nessa epistemologia.
Palavras-chave: Linguística. Epistemologia. Estruturalismo. ADC.
Introdução
O aparente insucesso da aplicação dos métodos estruturalistas nos níveis superiores
ao da frase, no âmbito da Linguística, bem como a “ressaca” de sua transferência maciça
a outras ciências sociais causaram uma profunda desvalorização dessa base epistemológica
nos estudos da língua e da linguagem. Atualmente, a presença da abordagem estruturalista na
Linguística é quase fantasmagórica. Seria preciso avaliar a que aspecto dos procedimentos de
exclusão discursiva ela foi conjurada: se ao tabu do objeto, se ao ritual da circunstância ou se
ao direito privilegiado ou exclusivo de fala. O certo é que, atualmente, o estruturalismo está na
periferia do espaço da vontade de verdade dos estudos linguísticos2.
1
Professor Adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Líder do Grupo de Estudos
Críticos e Aplicados ao Discurso Religioso (NOUS – UFG/CNPq).
2
Em sua discussão da exclusão discursiva, Foucault descreve os aspectos do que chama de primeiro procedimento:
“Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que
qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. Nas páginas seguintes, o autor define a vontade de verdade
pela “oposição entre falso e verdadeiro”. Aliás, ele parece fazê-lo em um viés estrutural, o que não é estranho em
um livro cujo título é A ordem do discurso (FOUCAULT, 1996, 13-14).
9
Apesar disso, parece que a epistemologia estruturalista e suas consequências teóricometodológicas continuam presentes e ainda são importantes para todas as áreas e abordagens
da Linguística, inclusive para aquelas que tratam do uso da linguagem. Isso não apenas porque
seja possível localizar sua influência na reflexão de autores das Ciências Humanas em que
os estudos do discurso e da enunciação buscam subsídios teóricos, mas, sobretudo, porque
dependemos de pesquisas que se mantêm muito próximas dessa herança.
Esse é o caso das duas grandes abordagens teórico-metodológicas dos estudos
gramaticais, que não são nomeadas explicitamente como estruturalistas: o gerativismo e o
funcionalismo. Ambas, na verdade, assumem parcialmente seu viés estruturalista, ainda que
em direções explicativas inversas.
O gerativismo busca, em suas análises, sistemas linguísticos internos (ou profundos)
que são constitutivos da diversidade superficial da linguagem tentando encontrar as estruturas
de cada língua e, nelas, a gramática universal. Um exemplo perfeito do continuum entre o
estruturalismo e o gerativismo é a seguinte definição da noção de gramática encontrada em um
texto de divulgação científica (PERINI, 2006, p. 23, grifo nosso): “[...] chama-se gramática um
sistema de regras, unidades e estruturas que o falante de uma língua tem programado em sua
memória e que lhe permite usar sua língua”. Neste caso, inclusive, a noção de estrutura está
desenvolvida pela metáfora da “programação”, implicando um nível de realidade inconsciente
que se manifesta no uso.
O funcionalismo, por seu turno, apesar de não estar comumente identificado com a
pesquisa de origens profundas para os dados que constrói, funda-se também nas noções de
sistema e de estrutura. Essa manutenção da construção de uma realidade interna da linguagem,
no entanto, à diferença do gerativismo, adota como perspectiva de análise, a interiorização de
estruturas e não a sua exteriorização:
[...] [essa abordagem] é funcional porque não separa o sistema linguístico
e suas peças das funções que têm de preencher, e é dinâmica porque
reconhece, na instabilidade da relação entre estrutura e função, a força
dinâmica que está por detrás do constante desenvolvimento da linguagem
(NEVES, 2004, p. 3, grifo nosso).
As duas abordagens, portanto, constroem modelos estruturais para seus dados e
têm de produzi-los com base em recortes empíricos do uso da linguagem. Fazem-no, no
entanto, em direções analíticas diferentes, que privilegiam, respectivamente, a estabilidade
e a instabilidade estrutural. Por isso, a segunda é o viés mais comum da manutenção do
estruturalismo nos estudos da linguagem, ainda que modelos cognitivistas possam estar mais
próximos à primeira. Por decorrência, é razoável prever que todas as vertentes da Linguística
que se baseiam nas descrições das gramáticas funcionais devam participar, em alguma medida,
de sua epistemologia. Desse modo, a constituição de objetos ou níveis de análise que incluem,
por exemplo, mecanismos interfrásticos, processos de referenciação, tipos e sequências de
texto deveria produzir esse tipo de assimilação. É nesse nível de relação que, aparentemente,
10
encontram-se as pesquisas em Linguística Aplicada, em Linguística Textual e até mesmo em
Análise do Discurso. Em outras palavras, se as áreas da Linguística que se concentram no
estudo do uso da linguagem valem-se das descrições e de explicações gramaticais funcionais,
devem, em alguma medida, incorporar também o viés epistemológico estruturalista.
A Linguística Textual, por exemplo, refere-se a si mesma como uma “gramática do
texto” que dialogou com a Semântica, passou depois pelas viradas pragmática e cognitivista
e chegou, finalmente, à perspectiva sociocognitiva-interacionista. Na última fase, que poderia
ser chamada de “virada discursiva”, essa disciplina tenta articular a dialogia bakhtiniana a
modelos cognitivos e a descrições gramaticais (KOCH, 2004, p. 32-33, grifo nosso):
Dentro desta concepção, amplia-se, mais uma vez, a noção de contexto,
tão cara à Linguística Textual. Se, inicialmente, quando das análises
transfrásicas, o contexto era visto apenas como co-texto (segmentos
textuais precedentes e subsequentes ao fenômeno em estudo), tendo,
quando da introdução da pragmática, passado a abranger primeiramente a
situação comunicativa e, posteriormente, o entorno sócio-histórico-cultural,
representado na memória por modelos cognitivos, ele passa a constituir
agora a própria interação e seus sujeitos: o contexto constrói-se, em grande
parte, na própria interação. Portanto, na concepção interacional (dialógica),
[...] [a] produção de linguagem constitui atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base
nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma
de organização [...].
O viés estruturalista do trecho citado é reconhecível não apenas porque os elementos
linguísticos presentes na superfície textual são analisados com modelos subsidiados pela
gramática funcional, mas também pela pressuposição de outras superfícies. A conjugação de
tais superfícies parece significar o relacionamento estrutural entre texto, contexto e cognição.
Além disso, a tardia assunção da perspectiva interacionista não deve escapar a esse jogo de
homologias, sob pena de destruir o modelo dessa dinâmica de instanciações recíprocas dos
elementos de cada uma das superfícies: a linguagem estrutura a cognição, que estrutura a
interação, que volta a estruturar a linguagem e assim sucessivamente. Nessa linha, a própria
noção de dialogia, portanto, apenas pode ser descrita e explicada pelos aparatos teóricometodológicos da Linguística Textual se puder ser estruturada.
Assim, ainda que seja possível supor que a virada discursiva dessa disciplina tenha
sido unilateral, isso é improvável. Sua relação com as análises do discurso teve de ser
produzida com base em uma intercompreensão epistemológica mínima, como a expressa
em categorias como posição de sujeito e sistema de enunciados, as quais permitem indicar
a presença terminológica do estruturalismo. É sabido que as palavras “posição” e “sistema”
constam do vocabulário dessa epistemologia, mas devemos questionar também se, nas
análises do discurso, a perspectiva estruturalista é condição de seu uso operacional. Nesse
caso, a noção de valor, tão cara à linguística clássica, deveria estar implicada na recuperação
11
dessas categorias teóricas: o valor de um elemento discursivo corresponderia à sua posição
em um sistema de diferenças. Na Análise de Discurso Crítica, que incorpora explicitamente as
contribuições das linguísticas do texto e da gramática funcional, esse parece ser o caso. Com
relação à Análise do Discurso de linha francesa, talvez baste lembrar que seus comentadores
têm reconhecido, reiteradamente, a importância do cruzamento das obras de Saussure, de
Freud e de Marx com as releituras de Pêcheux, de Lacan e de Althusser, para a formação de
seu “solo epistemológico” (GREGOLIN, 2004, p. 13). Além disso, é fartamente conhecida a
crítica à sua assunção do efeito de assujeitamento dos agentes sociais pelas estruturas, posição
abandonada posteriormente.
É importante lembrar, entretanto, que as análises do discurso (quase) sempre se fizeram
acompanhar pela também assustadora noção de acontecimento, um limite ontológico da
epistemologia estruturalista que será discutido a seguir. Na verdade, a relação entre estrutura
e acontecimento, à exceção de abordagens estruturalistas e gerativistas da fonologia e da
gramática, não é totalmente estranha a todas as áreas da Linguística, que se pautam pela
inclusão do uso da linguagem em sua empiria. Nesse sentido, a reflexão sobre a manutenção do
estruturalismo como um dos paradigmas dos estudos linguísticos deve retomar a eventicidade
do nosso objeto, o insolúvel reflexo do fantasma estruturalista.
A ontologia bakhtiniana e suas indicações epistemológicas:
o estruturalismo dialógico
Por derivação do que já foi dito, tentaremos agora estabilizar e verticalizar essa discussão
epistemológica por meio de uma polêmica hermenêutica da obra de Bakhtin. Nela, encontramos
tanto a defesa de uma objetividade inevitável, ainda que precária, quanto a afirmação de uma
ética inapreensível, ainda que absoluta. Em outras palavras, buscaremos sustentar que o
filósofo russo situa a validade da ética no devir e a do conhecimento na objetividade.
A problemática ontológico-epistemológica bakhtiniana, enfrentada transversalmente
em diversos textos, foi explicitamente definida pelo autor em Para uma filosofia do ato3. Na
obra – escrita antes de todas as outras, mas só revelada e publicada muito mais tarde4 –, o autor
parte do princípio de que as atividades culturais (ciência, filosofia, literatura, história etc.)
“estabelecem uma cisão entre o conteúdo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade
histórica do seu ser, a real e única experiência dele”, porque não são capazes de tratar da
inalcançável “transitividade e aberta eventicidade do Ser” (BAKHTIN, [1993] s/d, p. 2). A
superação do corte entre o teórico e o real único e concreto seria “totalmente sem esperança”,
uma vez que o vivido nunca pode ser totalmente objetivado (BAKHTIN, [1993] s/d, p. 28):
3
Neste artigo, utilizamos a fotocópia da edição brasileira inédita, traduzida da edição americana de 1993. Já há, no
entanto, uma edição brasileira publicada por Pedro & João Editores (BAKHTIN, 2010).
4
Segundo o prefácio de Michael Holquist, Bakhtin escondera este texto e mais outro, escritos no início de sua
carreira, por temor à repressão do stalinismo soviético. No final de sua vida, revelou o segredo a alguns discípulos
que encontraram os manuscritos. Apesar de estarem já danificados, foram suficientes para uma compilação que
resultou em sua publicação.
12
Reconhecemos como infundadas e essencialmente sem esperança todas
as tentativas de orientar uma filosofia primeira (a filosofia do Ser-evento
unitário e único) em relação ao aspecto do conteúdo-sentido, ou do produto
objetivado, fazendo-se abstração do ato-ação real, único, e de seu autor
– aquele que está pensando teoricamente, contemplando esteticamente e
agindo eticamente. É apenas de dentro do ato realmente executado, que
é único, integral e unitário em sua responsabilidade, que nós podemos
encontrar uma abordagem ao Ser único e unitário em sua realidade
concreta. Uma filosofia primeira só pode orientar-se em relação a esse ato
realmente executado.
Ainda que a lógica do raciocínio de Bakhtin seja impecável, merece a pena da
paráfrase: o sujeito que existe nos processos do mundo é concreto, único, e sua realidade é a
eventicidade permanente. O conhecimento estético ou teórico, qualquer que seja a sua forma,
é a contemplação disso: uma abstração que é incapaz de reproduzir a concretude, a unicidade
e a transitividade do real. Estabelecido esse axioma, o autor passa a discutir as implicações
e os limites do conhecimento objetivo para a definição de um sistema ético. Bakhtin está
interessado em desbancar a imaterialidade da ética abstrata e universal de Kant e em afirmar o
não álibi na existência, a responsabilidade constitutiva da realidade processual do Ser. Como
ele mesmo assume, seu tratamento disso é fenomeno lógico5, uma vez que tal problemática não
cabe na objetividade (não se presta à estruturação). Em outras palavras, Bakhtin nos diz que o
real, em última análise, é irredutível à sua representação objetiva, sobretudo pela implicação
constitutiva dos sujeitos no mundo6.
Sem desconsiderar os riscos da afirmação seguinte, diremos que, apesar dessa assunção
ontológica, Bakhtin buscará objetivar o real em seus trabalhos subsequentes. Mesmo
considerando a transitividade da materialidade espaço-temporal da vida e suas implicações
existenciais de enfrentamento do mundo como possibilidade, ele também utilizará princípios
de descrição objetiva dos processos da realidade. Nossa leitura do raciocínio do autor, salvo
melhor juízo, estabelece uma derivação lógica aparentemente inescapável: se a transitividade
do Ser é inapreensível, toda pesquisa objetiva será redutora. Em outras palavras, toda pesquisa
científica tratará apenas parcialmente da complexidade, sendo suas demandas de rigor e de
validade relativas ao equilíbrio da relação entre as descrições reducionistas e as derivações
explicativas do real. Nesse sentido, a abordagem bakhtiniana será relacionada com a discussão
subsequente com base nas seguintes derivações axiomáticas:
a) A realidade do Ser é sempre o devir, o processo.
b) O discurso teórico é sempre uma objetivação parcial dessa realidade.
Quer dizer, busca apreender a experiência vivida da subjetividade, em detrimento da objetividade; é, portanto,
apenas indicativa de um tipo de experiência que deve ser verificada em ato.
6
Em certa medida, Bakhtin antecipa a polêmica entre existencialistas, marxistas e estruturalistas, à diferença de que
ele mesmo ocupa todos os lugares da polêmica!
5
13
c) Todo e qualquer nível de objetivação não está isento em relação às suas
limitações, ou seja, deve reconhecer operacionalmente sua precariedade.
d) A produtividade de qualquer abordagem objetivante resulta dos níveis e das
relações que possam construir para o real, de acordo com seus propósitos.
e) Todo dispositivo teórico-metodológico, ou seja, objetivo será sempre mais
produtivo quanto menos depender dos aspectos do real que exclui.
A transição da impossibilidade da objetivação do devir para o tratamento teórico da
linguagem se produz no pensamento bakhtiniano por meio da noção de dialogia ou dialogismo.
A constituição da relação de diálogo como fundadora de todos os aspectos e circunstâncias
do uso da linguagem é a condição de sua objetivação. Assim, nos trabalhos de Bakhtin, a
dialogia é o princípio constitutivo e o modo real de funcionamento da linguagem (e de todo
comportamento humano). Na interpretação de Fiorin (2006, p. 167), esta é a base do raciocínio
bakhtiniano:
Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com ela é
sempre mediada pela linguagem. [...] Isso quer dizer que o real se apresenta
para nós semioticamente, o que implica que nosso discurso não se relaciona
diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o
mundo. Essa relação entre os discursos é o dialogismo. Como se vê, se não
temos relação com as coisas, mas com os discursos que lhes dão sentido,
o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem, uma vez que
[está marcado, mesclado, refratado, mobilizado, infiltrado e emparelhado
com outros discursos].
Desse modo, os enunciados é que são as unidades reais da comunicação. Deles resultam
as palavras e as orações como unidades da língua. Dos sentidos únicos dos enunciados, palavras
e orações surgem já como abstrações que produzem a estabilização de significados, inclusive
formais, e que constituem a língua. Na perspectiva bakhtiniana, o erro do objetivismo abstrato
é saltar a etapa da descrição das singularidades dialógicas, ou desprezá-las, tomando como
o real da linguagem as abstrações do sistema linguístico construído. Em outras palavras, é
a objetivação das tipologias dialógicas que permite, de fato, a abstração da língua e, mais
importante ainda, que condiciona o entendimento do funcionamento da linguagem.
Dessas considerações depende a compreensão da perspectiva de objetivação teórica do
autor russo, da qual inferiremos a emergência dos conceitos de estrutura e prática em sua obra,
por meio de sua definição da noção de gênero discursivo (BAKHTIN, 1997, p. 279-281, grifo
do autor):
14
Todas as esferas da comunicação humana, por mais variadas que sejam,
estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender
que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as
próprias esferas da atividade humana [...]. A utilização da língua efetuase em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que
emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada
uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo
verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por
sua construção composicional. Esses três elementos (conteúdo temático,
estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo
do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma
esfera da comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é,
claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus
tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso.
Ainda que o autor frise a relatividade da estabilidade dos gêneros, ou seja, uma
instabilidade relativa, sua noção de gênero discursivo pode ser considerada como uma
objetivação da real eventicidade dos enunciados. Além disso, em seus princípios de tratamento
do objeto, são visíveis certos procedimentos estruturais: a análise por meio da decomposição
e da composição, verificadas pela substituição e pela distribuição dos elementos encontrados.
De fato, tal tratamento operativo não está totalmente explícito, mas é derivável das categorias
de classificação que ele apresenta. A relação que o autor estabelece entre esferas e gêneros, por
um lado, e entre gêneros e seus elementos, por outro, parecem estar em conformidade com a
clássica explicação de Benveniste7 sobre os níveis de análise linguística.
À primeira vista, no entanto, esse reconhecimento seria estranho ao trabalho de Bakhtin,
uma vez que ele critica a abordagem saussuriana8. Essa associação poderia parecer uma
aberração para muitos pesquisadores bakhtinianos,sobretudo, pelo fato de o estruturalismo ter
sido associado a crenças de que a realidade é determinada unilateralmente por estruturas que
são sempre redutíveis a outras estruturas mais profundas até o limite de uma Razão Universal,
determinante tanto do real, quando da cognição e dada a priori9. No entanto, a coerência
entre as considerações ontológicas de Bakhtin e seu uso dos procedimentos estruturalistas na
definição da noção de gênero discursivo ancora-se em uma diferença fundamental entre sua
abordagem e as abordagens estruturalistas tradicionais. A crítica bakhtiniana ao objetivismo
Benveniste (1995; 1989).
Ou, mais explicitamente, pela desconsideração da dialogia como princípio constitutivo da linguagem, em todos os
seus níveis, mas, sobretudo, pela desconsideração do enunciado como seu elemento fundamental em lugar do signo
(a palavra).
9
Essa é a assunção kantiana contra a qual Bakhtin se contrapõe em Para uma filosofia do ato, a qual, em princípio,
foi depois assumida pelo mais famoso dos estruturalistas, o antropólogo Lévi-Strauss, e pelo mais proeminente
gerativista, Noam Chomsky.
7
8
15
abstrato é relativa à redução do todo enunciativo à sua parte estrutural, que deveria ser obtida
pela análise do enunciado concreto e irrepetível. O concreto em Bakhtin é o enunciado e
jamais a estrutura.
Assim, trata-se de uma divergência ontológica e não epistemológica. Uma vez aceita a
fundamentação do que chamamos de estruturalismo dialógico bakhtiniano, a noção de gênero
discursivo pode ser desenvolvida mais e mais explicitamente nestes termos: tratar uma esfera
social como um sistema (uma estrutura) de gêneros e, disso, compor a sociedade como um
sistema de esferas sociais. Ou, noutra direção, analisar uma sociedade como um sistema de
esferas sociais, e os sistemas das esferas sociais pelo valor de seus gêneros: pensar em cada
gênero como um elemento de uma esfera pelas relações de diferença que estabelece com
os outros gêneros da mesma esfera, com sua composição, decomposição e substituição de
temas, de estilos e de estrutura composicional. É preciso salientar, ainda uma vez mais, que
o estruturalismo bakhtiniano é um modelo explicativo, cujo axioma ontológico prevê a força
constitutiva da dialogia derivada da eventicidade que se manifesta nas práticas. Essa é a direção
da sua análise estrutural.
De acordo com a proposta de Eco, expressa em A estrutura ausente (1997), a abordagem
de Bakhtin é uma espécie de estruturalismo metodológico. Nessa acepção, as estruturas não
estão dadas desde sempre nem determinam as práticas unilateralmente; são modelos aplicados
aos objetos que podem ou não coincidir com a sua realidade ontológica, mas que produzem
uma construção compreensiva da empiria. Na abordagem de Bakhtin (1997, p. 282), a relação
entre práticas e estruturas é dialógica: “A língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na
língua”. Além disso, apesar de permitir a descrição da sociedade como um sistema de sistemas
– de esferas sociais e de gêneros discursivos – Bakhtin está mais preocupado com o processo
dialógico do que com a hierarquia estrutural. Mesmo em Marxismo e filosofia da linguagem,
quando se refere mais detidamente à questão das classes sociais, é ainda na dialogia10 do
signo que se ancoram suas análises, como sugerem as seguintes considerações sobre “a ordem
metodológica para o estudo [dos elementos] da língua” (BAKHTIN, 2004, p. 124)11:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as
categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a
uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística
habitual.
10
11
16
Dizemos dialógico porque esse termo indica, em Bakhtin, uma relação de responsividade entre todos os elementos
da realidade e da linguagem. No entanto, haverá também uma relação dialética constante porque as práticas
estão sempre a desestabilizar ou a desconstruir as estruturas, o que significa contraditar sua estabilidade. Novas
estruturações sincrônicas são as sucessivas sínteses.
E completa: “É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em
função das infraestruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as
formas dos atos de fala evoluem em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim,
na mudança das formas da língua”. (BAKHTIN, 2004, p. 124).
Portanto, quando reconhecemos os princípios estruturalistas na teoria de Bakhtin,
aceitamos também que ele os instaura para tratar das práticas, por meio da noção de gênero
discursivo. Epistemologicamente, Bakhtin constitui procedimentos de objetivação parcial de
sua ontologia, resguardando-a pela noção de dialogia. Tomada como princípio constitutivo da
linguagem e da vida social, a dialogia ampara-se na assunção de que a unidade real da língua
é o enunciado, uma entidade única e irrepetível, um acontecimento: os elos de uma cadeia
infinita e imensa de relações responsivas ativas dos sujeitos no processo de comunicação. É
possível, então, ler na obra de Bakhtin a antecipação de todos os elementos de uma relação
dialética e dialógica entre estruturas e práticas, como se pode inferir da seguinte imagem
sobre a dinâmica estruturante (BAKHTIN, 1997, p. 285): “[os] enunciados e o tipo a que
pertencem, ou seja, os gêneros do discurso, são as correias de transmissão que levam da
história da sociedade à história da língua”. A metáfora das “correias de transmissão” recupera
tanto os aspectos estruturais, implicados pela “correia” e por seus “eixos dentados”, como o
movimento, inclusive a agência.
De forma um tanto simplista, portanto, o modelo de Bakhtin poderia ser
condensado no seguinte raciocínio: os enunciados são carregados de implicações
subjetivas e eventícias irrecuperáveis, mas sempre se constituem em uma cadeia
responsiva imensa e complexa. Essa cadeia acaba por produzir uma estabilidade
parcial que se expressa sob a forma de gêneros, os quais, por sua vez, passam a
constituir parcialmente os enunciados. Nesse mesmo sentido se formam as esferas
sociais, passando também a ter efeitos constitutivos parcialmente estruturantes sobre
o devir, ainda que este não esteja completamente subordinado às estruturas que se vão
constituindo e desconstruindo nesse processo.
Nesse sentido, pode-se dizer que todas as abordagens em Análise do Discurso, em maior
ou em menor grau, ecoam os elementos e as relações que Bakhtin define em sua proposta
de análise objetiva da comunicação verbal. A dialogia constitutiva dos enunciados, sua
materialidade, seu aparecimento em uma imensa rede de retomadas internas e externas, sua
definição estrutural por meio de seu valor relacional, já estão, operacionalmente, presentes em
sua obra, como se pode ver no trecho seguinte (BAKHTIN, 1997, p. 316, grifo nosso):
Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma
dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância
dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros,
refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que
lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças
de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma
determinada esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser
considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores
dentro de uma dada esfera [...]: refuta-os, confirma-os, completa-os,
baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta
com eles. Não se pode esquecer que um enunciado ocupa uma posição
17
definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado
problema, a uma dada questão etc. Não podemos determinar esta posição
sem correlacioná-la com outras posições. É por esta razão que o enunciado
é repleto de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da
comunicação verbal. Estas reações assumem formas variáveis: podemos
introduzir diretamente o enunciado alheio no contexto do nosso próprio
enunciado, podemos introduzir-lhe apenas palavras isoladas ou orações
que então figuram nele a título de representantes de enunciados completos.
Nesses casos, o enunciado completo ou a palavra, tomados isoladamente,
podem conservar sua alteridade na expressão, ou então se modificados (se
imbuírem de ironia, de indignação, de admiração etc.); também é possível,
num grau variável, parafrasear o enunciado do outro depois de repensá-lo,
ou simplesmente referir-se a ele como as opiniões bem conhecidas de um
parceiro discursivo; é possível pressupô-lo explicitamente; nossa reaçãoresposta também pode refletir-se unicamente na expressão de nossa própria
fala – na seleção de recursos linguísticos e de entonações, determinados
não pelo objeto de nosso discurso e sim pelo enunciado do outro acerca do
mesmo objeto.
Em Bakhtin, a noção de prática está parcialmente indicada em suas definições de
enunciado e de gêneros discursivos. A de estrutura, por seu turno, reside no seu relacionamento
entre enunciados, gêneros e esferas, vinculadas acima pelo conceito de posição relacional, que
equivale a valor e a diferença no estruturalismo. No trecho acima, a indicação da densidade
dialógica dos enunciados, seus efeitos de interioridade e de exterioridade na cadeia verbal
revela perceptivelmente a antecipação das explicações de Foucault (1996; 2002) sobre
enunciados e formações discursivas e de Bourdieu (1997) sobre estruturas estruturadas
estruturantes e habitus. Nas seções seguintes, retomaremos apenas as noções de prática e de
estrutura, no sentido de estabilizar suas condições de objetividade. Interessa-nos enfatizar que
a abordagem estrutural é ainda necessária e produtiva, mesmo diante a incorporação da noção
de acontecimento.
A noção de estrutura na arqueologia de Michel Foucault
A obra de Michel Foucault influenciou de diferentes maneiras as mais variadas áreas
das Ciências Humanas. Seus estudos as desestabilizaram não apenas por mostrar certas
complexidades de seus percursos constitutivos, mas também pela forte impressão que suas
análises causaram sobre as subjetividades de seus pesquisadores. Condenado por seus adversários
pelas muitas mudanças teórico-metodológicas de suas abordagens consecutivas, esse autor
teve um objetivo constante e atualizado a cada obra. Seja com relação a métodos, a categorias
ou mesmo a valores semânticos das terminologias adotadas, seu trabalho é sempre uma crítica
18
da razão, suas racionalidades, seus aparatos e seus sujeitos. Como professor, pesquisador e
escritor, sendo quase um arquétipo do sujeito moderno, Foucault faz, permanentemente, uma
crítica da crítica (VEIGA-NETO, ano?, 28; 25): “O que o move é, no fundo, uma permanente
suspeita; suspeita que se contorce e se volta até mesmo contra sua própria filosofia e sua
intensa militância política, como se ele quisesse se libertar até de si mesmo”. Essa suspeição
permanente, entretanto, não parece significar que ele negue a necessidade da construção de
regimes de verdade, mas sim que trabalhe sobre a desestabilização desses regimes, mesmo
que sejam seus. É pela compreensão desse permanente movimento de esquiva que tentaremos
apreender o uso da noção de estrutura em sua obra.
Contemporâneas do auge do movimento estruturalista, suas primeiras pesquisas
históricas e epistemológicas desenvolveram um interesse especial pela crítica do documento,
sendo, finalmente, sistematizadas em uma abordagem chamada de arqueologia (FOUCAULT,
2002). Com essa denominação, Foucault se afasta do estruturalismo, cuja aplicação não
fora totalmente estranha a seus primeiros trabalhos, como ele mesmo admite. Reorganiza e
reinventa seus dispositivos teórico-metodológicos, escapando à pressão de ter de se posicionar
no debate entre intelectuais estruturalistas e marxistas12. Não lhe interessa compartilhar o peso
do possível caráter ideológico de certas abordagens ligadas ao estruturalismo ontológico.
Em sua sistematização arqueológica, Foucault passa a tratar os discursos como práticas e
os enunciados como acontecimentos, mantendo, no entanto, um aparente viés estruturalista,
visível em uma série de noções como as de formação discursiva, arquivo, sistema, regularidade,
positividade, ordem, correlação.
Centrando-se na descrição de relações enunciativas muito parecidas com as que já
comentamos a respeito do trabalho de Bakhtin, desenvolve-as em um estilo teórico enviesado,
mas muito rico em relações temáticas, sempre recuperadas de suas pesquisas anteriores. Nesta
seção, retomaremos apenas duas categorias que, uma vez decifradas, permitem mostrar a
presença da noção de estrutura na arqueologia de Foucault. A primeira delas, que retoma em
certa medida a ideia de esfera social como um sistema de gêneros discursivos e de cadeias de
enunciados, é a categoria de formação discursiva (FOUCAULT, 2002, p. 43, grifo nosso):
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
[...] [um] sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva.
Conforme vimos tratando os aspectos da abordagem estrutural nas discussões
precedentes, podemos supor que a noção de formação discursiva não se refere a apenas uma
estrutura ou a um quadro de diferenças somente, mas a um conjunto de estruturas dinamicamente
correlacionadas. Em outras palavras, Foucault parece querer montar um dispositivo teórico12
Essa situação é comentada por Dosse (1993) e por Gregolin (2004).
19
metodológico que permita fazer o que Bakhtin diz ser impossível: uma estruturação do
acontecimento enunciativo. Nessa leitura, a descrição das formações discursivas poderia ser
equiparada a uma objetivação do devir, em cuja operacionalização o próprio autor prevê a
descrição da formação de cada um dos seus elementos: dos objetos, dos tipos de enunciação,
dos conceitos e das escolhas temáticas. É nessa empresa, que terminará por se dar de forma
parcialmente circular, incompleta e ambígua, que emergirá o uso de um termo fundamental
para os estudos do discurso, a dispersão: a regularidade resultante do relacionamento de
descrições estruturais incompletas.
A proposta de Foucault, no entanto, só parece incoerente porque ele não a assume
explicitamente. Seu objetivo não é absurdo, mas apenas impraticável; só é possível realizá-lo
precariamente, por meio do relacionamento disperso de elementos de estruturas diferentes.
Essa hermenêutica encontra amparo no exame do segundo conceito selecionado, a categoria
de arquivo, marcadamente estrutural (FOUCAULT, 2002, p. 148, grifo do autor):
[...] temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os
enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de
aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de
utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um
lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo.
Nesse trecho, os enunciados são definidos, ao mesmo tempo, como “acontecimentos”
e como “coisas” o que, nos termos de Bakhtin e de Eco, seria equivalente a eventos do devir
permanente e a objetos estruturados13. Nessas condições, sistemas de enunciados seriam
sistemas de sistemas: sistemas de objetos, sistemas de modalidades enunciativas, sistemas de
conceitos e sistemas de escolhas temáticas. Por decorrência e de acordo com as discussões
precedentes, dizer que as práticas discursivas são densas significa reconhecer que elas são
estruturadas. Enfim, ao que tudo indica, a noção de arquivo em Foucault parece ser uma metáfora
tridimensional para a concepção de uma estrutura de todas as estruturas: o conjunto das séries
diacrônicas de todos os sistemas sincrônicos que compõem os sistemas de enunciados.
Além disso, nada pode ser mais estruturalista do que equiparar a história a esse móvel
tão comum em escritórios, em bibliotecas e em repartições, com suas gavetas organizadas
espacialmente, com seus documentos classificados cronologicamente, tematicamente,
tipologicamente etc. Um arquivo pode ter o tamanho de quantos móveis se queira imaginar, e
a qualidade de quantas ordenações se consiga conceber, interna e externamente14.
13
14
20
Desde que se possa estar em acordo sobre a identidade dos comentários, suas condições e seu domínio de
aparecimento e sua possibilidade e seu campo de utilização. A aparente diferenciação desses elementos parafrásticos
diz respeito ao caráter enviesado que reputamos ao estilo foucaultiano.
É tamanha a grandiloquência figurativa dessa metáfora epistemológica, que não seria estranho que esse conceito
tenha sido mais um presente de Borges a Foucault: neste caso, como uma derivação da mítica biblioteca do autor
argentino, que conteria todos os livros do mundo jamais escritos.
À diferença do estruturalismo ontológico, no entanto, Foucault não quer reduzir tudo o
que existe a uma origem estrutural mais profunda, mas o inverso disso. A noção foucaultiana
de arquivo é a expansão das relações estruturais ao devir em si mesmo: cada acontecimento
seria uma origem possível. Apesar da complexidade do raciocínio, julgamos que as explicações
ontológico-epistemológicas de Bakhtin e de Eco, já referidas, permitem entender o que
Foucault tenta (não) dizer em sua explicitação teórico-metodológica: um enunciado é um
acontecimento singular dentro de uma imensa e complexa cadeia de enunciados; seu estudo se
faz pela recuperação e pelo mapeamento, ainda que precário, das relações estruturais dos seus
diversos sistemas de produção (suas condições de possibilidade).
Assim, apesar do desejo de afastar-se do estruturalismo, uma possibilidade de leitura de
sua perspectiva arqueológica é concebê-la como um tratamento estrutural dos acontecimentos
discursivos, seja como estruturas discursivas, seja como práticas discursivas estruturadas.
A noção de estrutura na Análise do Discurso de Norman
Fairclough
A obra de Fairclough é profícua na produção de relações transdisciplinares, sempre
focadas na integração de modelos teórico-metodológicos dos estudos linguísticos e das
Ciências Sociais. Sua apropriação analítica das temáticas contemporâneas é sempre direcionada
à interação da linguagem com o poder e à mudança social.
Em sua Teoria Social do Discurso (2001), Fairclough apresentou uma conjugação da
análise linguística à teoria social, a qual acabou tornando-se paradigmática para o que hoje se
conhece como Análise de Discurso Crítica (MAGALHÃES, 2005; 2001). Nessa versão, um
modelo analítico tridimensional relacionava o estudo detalhado das propriedades linguísticas
dos textos à avaliação das práticas sociais por meio do exame das práticas discursivas.
Fairclough considerava que práticas e estruturas sociais relacionam-se dialeticamente. As
práticas discursivas eram concebidas como a faceta discursiva das práticas sociais e definiamse como processos de produção, de distribuição e de consumo textuais. Tomadas como
foco do trabalho analítico, uma vez que permitiam um acesso bastante direto ao estudo da
mudança social pelo exame das mudanças linguísticas, sua análise apoiava-se na abordagem
da gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985).
Nesse modelo examinam-se os efeitos constitutivos das práticas discursivas sobre
identidades, sobre relações sociais e sobre sistemas de conhecimento e de crença dos agentes
envolvidos nos eventos discursivos. As marcas textuais relativas a elementos como vocabulário,
padrões gramaticais e coesivos são associadas à mobilização de gêneros e de discursos e,
consecutivamente, às características não discursivas dos espaços comunitários, institucionais
e sociais dos eventos. Assim, as relações intertextuais e interdiscursivas estabelecidas e as
marcas que produzem nos textos permitiriam avaliar os tipos de relações de poder que as
práticas discursivas reproduzem ou transformam. Nesse aspecto, a abordagem de Fairclough
refrata as perspectivas de Bakhtin e de Foucault tanto em relação às complexidades que as
relações enunciativas podem ter, quanto às características de pulverização das relações de
21
poder que podem ensejar. Tais relações são avaliadas por meio da localização da ideologia,
concebida como sentido a serviço do estabelecimento de relações de poder, e da hegemonia,
a produção ideológica de consenso, no âmbito do gerenciamento das práticas discursivas. A
geração de padrões de uso da linguagem, como viés de análise do caráter das práticas sociais,
encontra, na categoria de ordem de discurso, uma tentativa de sistematização mais abrangente
das relações sociais por meio do exame dos processos discursivos. Fairclough define uma
ordem de discurso como o conjunto total das práticas discursivas de um campo social, seja
institucional, seja comunitário, isto é, como a faceta discursiva de uma ordem social.
A perspectiva teórico-metodológica dessa primeira sistematização foi, posteriormente,
associada a uma reflexão ontológico-epistemológica na qual o autor se refere à vida (natural
e social) como “um sistema aberto, em que qualquer evento é governado por ‘mecanismos’
operativos simultâneos” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 19):
As várias dimensões e níveis da vida (inclusive nos aspectos físicos,
químicos, biológicos, econômicos, sociais, psicológicos, semiológicos
e linguísticos) têm suas próprias estruturas distintivas, que possuem
diferentes efeitos gerativos sobre os eventos através de mecanismos
particulares. Como a operação de cada mecanismo é sempre mediada pela
operação dos outros, nenhum mecanismo tem efeitos determinantes sobre
os eventos e, por isso, os eventos são complexos e não podem ser previstos
de modos simples como efeitos desses mecanismos.
É interessante observar que essa reflexão retoma, de certo modo, a assunção da noção
de eventicidade de Bakhtin, mas descreve-a em termos estruturais ontológicos. Salvo melhor
juízo, não fica claro se as estruturas são pensadas como dadas ou como postas, se são a busca
da estruturação do real ou a aplicação de modelos estruturais hipotéticos. Neste momento,
entretanto, nosso interesse diz respeito ao uso da noção de prática no trabalho de Fairclough e,
como vimos acima, ele a considera como estruturada.
Em suma, Fairclough considera que as ordens sociais e as suas práticas, cujas orientações
são variavelmente econômicas, políticas, pedagógicas podem ser avaliadas pelo exame de
seus aspectos discursivos. Os modos pelos quais os textos são produzidos, distribuídos e
consumidos permitem avaliar os tipos de conflitos e de consensos que organizam determinado
espaço social. As maneiras pelas quais as cadeias de gêneros são constituídas, mantidas ou
transformadas; a regulação dos discursos que são mobilizados, com suas metáforas, implícitos,
estilos e vocabulários; e a relação dessas características discursivas a outros fatores não
discursivos são formas de mensurar e de avaliar os modos de organização social, seus aspectos
ideológicos e hegemônicos. Mudanças sociais estão sempre associadas a mudanças nos usos
da linguagem, e o conceito de prática discursiva é o elemento-chave das análises.
Não há duvidas, portanto, quanto à manutenção da epistemologia estruturalista nas
análises do discurso, de um modo geral, dada a sua referenciação em noções saussurianas, e
na ADC, especificamente, que, além das fontes bakhtinianas e foucaultianas, apropria-se ainda
22
de outras da linguística funcional e textual. Não há também, de fato, nenhum caráter militante
nesse reconhecimento. Pelo contrário, reconhecer o caráter operacional dessa permanência
teórica é apenas uma atitude teoricamente saudável. Sem eliminar outras influências e derivas
epistemológicas que constituam as análises do discurso, reconhecer este solo é absolutamente
necessário.
Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Trad. Carlos Alberto Faraco. Manuscrito. s/d.
______. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997
______. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I I. Campinas: Pontes, 1989.
______. Problemas de linguística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Oeiras: Celta, 1997.
CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: rethinking critical
discourse analysis. Edinburgh, England: Edinburgh University Press, 1999.
DOSSE, F. História do estruturalismo. v. 1. O campo do signo. Campinas: Ed. Unicamp, 1993.
ECO, U. A estrutura ausente. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. New York, Longman, 2001.
FIORIN, J.L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitoschave. São Paulo: Contexto, 2006.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______. A arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
GREGOLIN, M. do R. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos:
ClaraLuz, 2004.
23
HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. 2. ed. London, UK: British Library,
1985.
KOCH, I. G. V. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
MAGALHÃES, I. Prefácio. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.
______. Introdução: a análise de discurso crítica. Delta. v. 21. 2005. São Paulo: Educ (n. especial).
NEVES, M. H. de M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PERINI, M. A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
24
Ensino do português baseado nos
gêneros
Edna Cristina Muniz da Silva1
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa realizada com turmas dos últimos ciclos do
ensino fundamental na área de Língua Portuguesa em uma escola militar em BrasíliaDF. Meu objetivo é mostrar que os gêneros2 devem constituir o centro para o ensino de
letramentos, baseando-me em teorias críticas e funcionais para o estudo da linguagem. Para
compreender a relação entre gêneros e práticas de letramento no contexto desta pesquisa,
apoio-me na articulação de três abordagens teóricas: (1) Análise de Discurso Crítica
(FAIRCLOUGH, 1992/2001; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH,
2003); (2) Abordagens teóricas sobre os gêneros (BAKHTIN, 2000; HALLIDAY; HASAN,
1991; EGGINS; MARTIN, 2000; EGGINS, 2004; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
Nesta pesquisa, é investigado como os textos são estudados nas aulas de Língua Portuguesa
e em que medida o ensino da escrita contribui para que os estudantes se apropriem dos
gêneros como recurso para agirem e para interagirem em diversos domínios sociais. Esta
pesquisa indica que o ensino de letramentos deve se apoiar no estudo dos gêneros. Uma
pedagogia de ensino de letramentos baseada nos gêneros permite o reconhecimento da
diversidade do contexto cultural que envolve os textos, conforme as práticas sociais que
os demandam. A consciência dos gêneros e das práticas de letramento em que se realizam
efetivamente contribui para que noss@s estudantes desenvolvam capacidades para agirem
e para interagirem discursivamente em diferentes domínios e práticas sociais.
Palavras-chave: Gêneros. Práticas de Letramento. Ensino de Gramática. Aulas
de Língua Portuguesa.
1
2
Graduação em Letras-Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade de Brasília (1987).
Mestrado em Linguística pela Universidade de Brasília (1995) com o trabalho "A coesão em textos produzidos
por alfabetizandos adultos". Estágio de doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2005-2006).
Doutorado em Linguística pela Universidade de Brasília (2007) com o trabalho "Gêneros e práticas de letramento
no Ensino Fundamental". É professora adjunta do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da
Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisa na área de Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa Discursos,
Representações Sociais e Textos, com ênfase em Análise de Discurso Crítica e Linguística Sistêmico-Funcional,
abordagens teóricas sobre gêneros e letramentos. Atuou como coordenadora do Curso de Letras a Distância (UAB/
UnB) de outubro/2008 a fevereiro/2011. É membro da comissão editorial de Cadernos de Linguagem e Sociedade
(Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade ‒ NELIS/UnB) e da revista Discursos Contemporâneos em Estudo
(Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica ‒ CEPADIC/UnB). Está realizando pesquisa de pós-doutorado
na área da Linguística Sistêmico-Funcional. É Coordenadora de Graduação do Curso de Licenciatura em LetrasPortuguês (noturno).
Neste trabalho, emprego o termo “gêneros” como o uso da linguagem nas interações sociais.
25
Introdução
A principal motivação para estudar a relação entre os gêneros e as práticas de letramento
no ensino, no contexto das aulas de Língua Portuguesa, foi inspirada na minha experiência
como professora de Português, em turmas de 5a a 8a série. Por mais que eu me esforçasse, a
experiência era frustrante porque os alunos efetivamente não gostavam de ler nem de escrever e,
quando o faziam, o resultado era ruim: textos precários quanto à estrutura, ao desenvolvimento
do tema e ao uso das estruturas linguísticas, além de serem descontextualizados.
Entendo que os gêneros devem constituir a base para o ensino dos letramentos3 nas aulas
de Língua Portuguesa no ensino fundamental (de 5ª a 8ª série), tendo em vista que a falta de
domínio d@s estudantes4 na leitura e na escrita deve-se ao ensino de língua orientado pela
perspectiva da gramática tradicional e ao tratamento dos textos como objetos, sem considerar
as práticas sociais em que são produzidos. Os gêneros são modos de (inter)agir discursivamente
no curso das práticas sociais e materializam-se semioticamente nos textos, daí a sua relevância
para o ensino dos letramentos múltiplos.
O ensino da leitura e da escrita com base nos gêneros está no centro das orientações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino da Língua Portuguesa nos últimos
ciclos do ensino fundamental, que apontam para a necessidade de uma didática da língua que
reconheça a expansão do uso da escrita na sociedade contemporânea. A evolução dos meios de
comunicação eletrônicos criou novas demandas sociais que moldam gêneros e letramentos ao
articularem diversos elementos semióticos na criação de textos. São novas formas de leitura
e de escrita que estão sendo vivenciadas, as quais a escola não deve ignorar, porque estão
promovendo uma mudança profunda nas práticas de letramento5 que associam três tipos de
escrita: manuscrito, impresso e eletrônico. Entendo que o texto manuscrito está cada vez menos
sendo utilizado, principalmente pel@s noss@s estudantes, que, na escola onde esta pesquisa
foi realizada, têm acesso à rede mundial de computadores e aos letramentos digitais, tendo
como consequência a resistência dess@s estudantes em participar dos eventos de letramento6
das aulas.
O estudo dos gêneros, portanto, associado a práticas de letramento que levem em conta
a diversidade de contextos culturais e sociais de domínio público, adquire relevância nas aulas
de Língua Portuguesa porque pode contribuir para melhorar o desempenho d@s estudantes
na leitura e na escrita, além de instrumentalizá-los com conhecimento especializado sobre a
relação entre a linguagem e as práticas sociais7. Nesta pesquisa, o propósito é verificar como
3
4
5
6
7
26
Letramento é um conjunto de práticas sociais inferidas a partir de eventos que são mediados por textos escritos
(BARTON; HAMILTON, 1998). Neste artigo, utilizo o termo “letramento” para referir-me à leitura e à escrita.
O símbolo @ é utilizado por motivo de economia linguística na designação simultânea do gênero feminino e do
masculino nas referências a estudantes e adocentes e, assim, evitou a ocorrência de sucessivos o/a.
Práticas de letramento é um conceito que se refere aos modos como são construídos os significados dos textos
escritos em contextos culturais e sociais (STREET, 2000; BARTON; HAMILTON, 1998).
Eventos de letramento são situações particulares, observáveis, que envolvem a leitura e/ou a escrita de textos
(STREET, 2000; BARTON; HAMILTON, 1998).
A prática social refere-se à dimensão econômica, política, ideológica e cultural da estrutura social, podendo
relacionar-se ao discurso nos eventos sociais (FAIRCLOUGH, 1992/ 2001).
os textos são estudados nas aulas e em que medida o ensino da escrita contribui para que
@s estudantes apropriem-se dos gêneros como recursos para agirem e para interagirem em
diversos domínios sociais.
O enfoque teórico utilizado justifica-se em razão das radicais transformações sociais,
econômicas e políticas (também denominadas de globalização, de modernidade tardia ou
pós-modernidade, de sociedade da informação, de economia do conhecimento, de cultura
do consumo), que são parcialmente realizadas por meio do discurso8 . No contexto social
contemporâneo, em que a expansão dos meios de comunicação eletrônicos ampliou a
utilização de diferentes gêneros nas instituições sociais, torna-se fundamental uma reflexão
sobre o ensino de leitura e de escrita nas aulas de Língua Portuguesa, disciplina oficialmente
responsável por ensinar a ler e a escrever.
As aulas de Língua Portuguesa foram escolhidas como alvo desta investigação porque
constituem um espaço em que professores e estudantes falam, leem e escrevem sobre diversos
assuntos (e não necessariamente sobre língua e textos), cujos significados são construídos pela
leitura e pela escrita. Esses sentidos tanto contribuem para o posicionamento de estudantes e
de professores diante das práticas de letramento escolares quanto podem ser contestados pelos
estudantes, que participam de outras práticas discursivas na família e na comunidade.
A apropriação da função social das práticas de leitura e de escrita é primordial para que
@s estudantes questionem os significados construídos na escola, porque estes influenciam o
modo como nos representamos e como representamos os outros. Os professores de Língua
Portuguesa podem mostrar aos alunos como agir no mundo por meio dos gêneros associados
a práticas de letramento contextualizadas.
As práticas de letramento em uma sala de aula a caracterizam como uma comunidade
de estudantes e de professores que podem utilizar diversos gêneros, motivados, segundo
Halliday e Hasan (1991), por três objetivos: aprendizagem e/ou ampliação do repertório
dos gêneros dos estudantes; ensino e conscientização dos gêneros; e ensino por meio dos
gêneros. Os gêneros podem ser utilizados como ferramentas culturais para estabelecer,
para sustentar, para expandir e para resistir a ideias, a informações e a conhecimentos.
Nesse sentido, o estudo dos gêneros associado a práticas de letramentos propicia o
desenvolvimento da consciência d@s estudantes para o papel ideológico desempenhado
pelos textos nas relações sociais, como instrumentos para ação e para interação dos sujeitos
nos diversos domínios sociais.
Os gêneros constituem uma categoria de estudo muito útil para o ensino de
letramentos. O conceito de gênero de Bakhtin (2000, p. 279) tem servido como base para
o desenvolvimento de várias abordagens teóricas em diversos campos, como a literatura,
a retórica, a mídia e a linguística. As abordagens de gênero adotadas nesta pesquisa
aproximam-se da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH 1989, 1995, 2003), dos
Novos Estudos do Letramento (STREET 1984, 1993, 1995; BARTON; HAMILTON,
8
Neste trabalho, o termo “discurso” é utilizado no sentido de linguagem como prática social. O discurso é um modo
de ação e de representação, que se relaciona dialeticamente com as práticas e com as estruturas sociais: tanto
é moldado por essas últimas, como contribui para a constituição das dimensões da estrutura social. Em outras
palavras, o discurso é socialmente constitutivo (FAIRCLOUGH, 1992/2001, p. 91).
27
1998; BARTON; IVANIC, 1991; BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000) e da perspectiva
sistêmico-funcional (EGGINS; MARTIN, 1998; EGGINS, 2004; HALLIDAY; HASAN,
1991 HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), em que o texto é considerado em seus aspectos
oral, escrito e visual.
O conceito de discurso de Fairclough (1995, p. 7) – para quem discurso é o uso de
linguagem como uma forma de prática social e análise de discurso é análise de como os textos
funcionam na prática sociocultural – corrobora sua aplicação na abordagem de gêneros adotada
neste trabalho porque inclui a análise da forma, da estrutura e da organização textual nos níveis
fonológicos, gramaticais e lexicais, além da análise das estruturas textuais e genéricas. Do
mesmo modo, a concepção de letramento como prática social (STREET, 1985; BARTON;
HAMILTON; IVANIC, 2000) é basilar a este trabalho porque situa a escrita e o seu significado
dentro das práticas sociais e de discursos específicos nas instituições e nas relações de poder
que os sustentam.
Pressupostos teóricos
1. Análise de Discurso Crítica
Ao apresentar o discurso como prática social, Fairclough (1992/2001) situa o discurso em
relação à ideologia e ao poder, entendendo que a ideologia tem existência material nas práticas
institucionais. A ideologia implica um conjunto de significações/construções da realidade (o
mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que contribuem para a produção,
a reprodução ou a transformação das relações de dominação. Ou seja, determinados usos da
linguagem e de outras formas simbólicas são ideológicos, pois servem em circunstâncias
específicas para estabelecer ou para manter relações de dominação.
Tradicionalmente, as atividades de leitura e de escrita em aulas de Língua Portuguesa
têm-se restringido às formas linguísticas prestigiadas socialmente devido aos gêneros
privilegiados na escola, cujo ensino adota a perspectiva dos grupos sociais dominantes,
promovendo cada vez mais a exclusão social e cultural. Os professores têm ignorado os
gêneros que constituem as práticas dos diferentes domínios e instituições sociais. Um ensino
de Língua Portuguesa emancipador deve levar em conta um contexto de práticas sociais nos
níveis local e global, que focalize modos de representação variados, associados a tecnologias
da informação e de multimídias, que pressupõem o controle de formas de representação cada
vez mais significativas, como as imagens e sua ligação com a escrita, por exemplo.
De acordo com a Análise de Discurso Crítica, os gêneros são considerados sob uma
perspectiva histórica e cultural como configurações textuais ligadas a processos particulares
de produção, de distribuição e de consumo, devendo ser estudados como formas retóricas
vinculadas a situações sociais que demandam respostas típicas, em uma determinada interação
social, a tipos específicos de atividades (FAIRCLOUGH, 1992/2001, 2003). Os gêneros são
lugares de tensão entre estabilidade e mudança, uma vez que “gêneros existentes mudam
a partir de modificações na situação social na qual exercem uma função ou novos gêneros
28
podem surgir a partir de transformações ostensivas daqueles já existentes” (PAGANO, 2001,
p. 87). Isso significa que os textos, na medida em que constituem gêneros específicos, também
estão permanentemente ativando outros gêneros.
O conceito de gêneros exerce papel relevante para a elaboração de didáticas de letramento
engajadas na conscientização dos professores sobre as práticas sociais que privilegiam
determinados gêneros para estabelecer e para sustentar relações de dominação e, dessa forma,
exercer controle social. Na medida em que a possibilidade de transformação textual, aspecto
constitutivo do gênero, caracteriza um processo dinâmico de transformação social, os modelos
que caracterizam a construção de novos textos nunca estão acabados, estando sempre sujeitos a
novas incorporações que podem gerar mudança e contribuir para a constituição de identidades.
2. Abordagens sobre os gêneros
Gêneros referem-se a como os textos se estruturam tipicamente segundo formas
recorrentes, híbridas e convencionais, permitindo que os indivíduos estabeleçam relações
entre si e façam coisas juntos em contextos sociais e culturais específicos. O conceito de
gênero, tradicionalmente construído no campo da retórica e da literatura, tem-se tornado um
pressuposto teórico para análise da forma e da função dos discursos institucionais e uma
ferramenta para o desenvolvimento do ensino da leitura e da escrita.
Para Bakhtin (2000), cada esfera da comunicação humana apresenta um repertório de
gêneros, orais e escritos, que se diferenciam à medida que determinada esfera se desenvolve
e torna-se mais complexa. Bakhtin fez distinção entre gêneros primários e secundários.
Os gêneros primários relacionam-se diretamente à comunicação verbal cotidiana, como
os diálogos, por exemplo, e compõem os gêneros secundários, que surgem nas esferas de
comunicação mais complexas e desenvolvidas, sendo fundamentalmente escritos, como
novelas, artigos científicos, romances. Os gêneros não são simplesmente um conjunto de regras
e de convenções, mas modos de entender a realidade e de interpretar o mundo, constituídos
de três elementos básicos – conteúdo temático, estilo e construção composicional – que se
imbricam no texto em uma configuração determinada pelas especificidades das práticas sociais.
As pessoas participam, no seu dia a dia, de redes de práticas sociais que são mediadas pela
linguagem e que articulam diversos elementos das estruturas sociais, como as relações sociais,
as pessoas e suas crenças, atitudes e história, o mundo material, o discurso. De acordo com
Fairclough (2003), o discurso pode figurar de três maneiras nas práticas sociais: (a) como parte
de uma atividade social (por exemplo, para exercer a atividade de venda, o vendedor emprega
a linguagem de uma maneira particular); (b) como modo de representação da realidade, em
que os atores sociais se posicionam diferentemente ao produzirem representações de outras
práticas e suas próprias representações no curso das atividades sociais; (c) como modo de ser
na constituição de identidades sociais.
Os gêneros, modos de interagir discursivamente no curso das práticas sociais,
materializam-se linguisticamente nos textos. De acordo com Halliday e Hasan (1991, p. 10),
29
o texto é uma unidade semântica que se realiza linguisticamente em um contexto situacional
cujos sentidos são codificados por palavras, por frases e por estruturas. Ou seja, o texto é
produto de um processo contínuo de escolha de significados que estão disponíveis no contexto
sociocultural e são representados pelo sistema linguístico.
Fairclough (2003) entende como gênero o aspecto discursivo convencional de modos de
agir e de interagir estáveis, definidos pelas práticas sociais e suas inter-relações no curso dos
eventos sociais. Por serem construídos socialmente, fornecem os sinais para que os sujeitos
interpretem as particularidades de uma interação comunicativa específica. Todos os membros
de uma comunidade se apropriam diferentemente – no tempo e no espaço – dos diversos
gêneros e de seus significados, que são construídos e modificados coletivamente o tempo
todo no processo contínuo de interação e de colaboração em práticas sociais compartilhadas.
Isso ocorre porque parte da ação social implícita no uso ou no reconhecimento de um gênero
é política, dado que os gêneros não são utilizados igualmente por todas as pessoas, mesmo
que participem da mesma comunidade discursiva (por exemplo, não são todas as pessoas
que produzem textos – e mesmo assim, quando produzem, são textos de gêneros específicos
e não todos; da mesma forma, também não são todos que leem textos), porque as formas
de interação são constituídas por tipos particulares de relações sociais entre os agentes da
interação, as quais se diferenciam conforme o poder e a solidariedade (FAIRCLOUGH, 2003).
Os gêneros variam quanto à sua estabilização, fixidez e homogeneização. Alguns gêneros
– como o artigo acadêmico – são ritualizados. Outros são completamente variáveis – como os
textos publicitários. Na época atual, em que passamos por um período de transformações sociais
rápidas e profundas, há uma tensão entre a estabilização, a força de consolidação da nova ordem
social e o fluxo das mudanças. As transformações sociais decorrentes do processo de globalização
produzem mudanças nas inter-relações das práticas sociais e, consequentemente, mudanças nas
formas de ação e de interação que levam a mudanças nos gêneros. Por apresentarem diferentes
níveis de abstração e de percepção decorrentes do dinamismo das práticas sociais, os gêneros não
apresentam terminologia estável, isto é, em algumas situações diferentes, é possível que haja a
mesma denominação para gêneros distintos. Nesse caso, cabe verificar o que ocorre efetivamente
nas práticas quanto à variedade de atividades que um gênero pode contemplar. Texto e contexto
se associam na construção dos sentidos do que é dito ou escrito nos ambientes sociais em que se
desenvolvem e são interpretados (HALLIDAY; HASAN, 1991, p. 5). Nesse sentido, toda língua é
compreendida em seu contexto de situação e de cultura porque os textos que produzimos sempre
desempenham algum papel em algum contexto. Os textos que compartilham o mesmo propósito
social em uma cultura também compartilham o mesmo padrão estrutural, ou o mesmo gênero.
Investigar os padrões estruturais de diferentes gêneros significa captar a riqueza do repertório
dos elementos textuais, que constituem a base para a elaboração de textos coerentes, sensíveis às
complexas demandas culturais.
3. Os gêneros e o ensino da gramática
De acordo com os relatos das professoras que participaram da pesquisa, percebe-se
que as atividades de gramática propostas em sala de aula não se conjugam com leitura e
com produção de textos, que são situações significativas de letramento em que a gramática
30
da língua provê as regras para composição dos textos. Também o trabalho com a gramática
não leva em consideração a variação da língua em uso nos diferentes contextos sociais. Uma
das professoras disse que @s estudantes reclamam das regras da gramática, mas querem
aulas em que se ensinem as regras. Isso evidencia que @s estudantes estão reproduzindo o
comportamento das próprias professoras, que lhes transmitem regras, rótulos e nomenclaturas
gramaticais em grande parte do tempo das aulas, sem reflexão sobre que pessoas e que textos
utilizam essas regras. Vejam-se os seguintes fragmentos do relato de uma das professoras:
Quanto ao ensino de língua, é um desafio porque os alunos dizem:
‘professora, eu já nasço falando’. Mas você deve diferenciar, deve saber
quando deve falar de acordo com a gramática, quando não deve… Quando
você pode incluir uma expressão, que antes não existia… Só que muitas
vezes eles não entendem isso. Eles acham que a Língua Portuguesa é só
regra, que eles têm que decorar, como se fosse matemática. Se você tenta
fazer algo diferente de passar regra no quadro, eles não conseguem, assim…
eles não querem pegar [...]. Igual o exercício de revisão que nós estávamos
passando, né? Um exercício abordando todos os conteúdos… Eles não
querem… Eles querem que você dê aquela aula ensinando regras. E eles
reclamam das regras, só que eles só querem regras. […] Eles fazem essa
distinção, de Língua Portuguesa, assim, do português mesmo gramática,
e de quando a gente pede redação, é… produção de texto… Eles veem
essa diferença. Eles falam: “ah, produção de texto não é português”. Eles
têm essa mania de diferenciar aula de gramática e aula de textos. (Sabrina)
(informação verbal).
Neves (2006, p. 114) nos mostra que a sociedade está viciada em uma tradição de ensino
de língua em que a sistematização das regras gramaticais, a exposição de seus conceitos, as
definições, os exemplos e a realização mecânica de exercícios contribuem para o resgate do
que é considerado linguagem culta ou padrão. No entanto, o resultado dessa prática é que, de
fato, @s estudantes não veem sentido no estudo dessas regras e não sabem como aplicá-las em
situações concretas de letramento, conforme os relatos das professoras que participaram desta
pesquisa, visto que o ensino da gramática se reduz à exposição da nomenclatura da gramática
tradicional.
Os trechos a seguir mostram que a professora demonstra não saber o que fazer diante
do ensino mecânico de gramática. Em sua fala, deixa transparecer que fatores sociais, como o
vestibular, determinam que o ensino de gramática seja da forma como é realizado. Entretanto,
ao mesmo tempo, ela tem preocupação com a imagem dos professores de língua que dão aulas
de gramática tradicional, revelando que ela própria não vê sentido no ensino descontextualizado
de regras gramaticais:
Mas eles estão distantes! Você tá falando de sujeito e predicado e eles tão
viajando num show que vai acontecer sábado! Numa festa! E aí? Fazer o
quê? Você precisa passar o conteúdo […]. Nós saímos da faculdade com
31
esse intuito. Lá eu aprendi a passar o conteúdo! Mas eu chego aqui, eu
encontro adolescente que tem mil problemas e aí? O que fazer? […] Porque
a sociedade cobra o conteúdo. O vestibular cobra o menino saber e tirar
dez, fechando a prova. E ai? Mas existe o lado humano. Existe aquela
criança que não é uma máquina. E onde ficamos nós, profissionais, quanto
a isso aí? (Esmeralda) (informação verbal)
Neves (2006, p. 115-116) chama a atenção para o caráter ritual do ensino da gramática
tradicional nas escolas, baseado na rotulação e na classificação das entidades gramaticais; na
prévia definição das entidades como algo acabado, inequívoco e absoluto; na taxonomia de
categorias alheias aos usos e às funções da língua na construção dos significados do discurso;
nos limites da estrutura da oração; enfim, na falta de reflexão sobre o uso da linguagem e na
falta de compreensão de que a heterogeneidade é constitutiva da linguagem, pois a língua é um
sistema eminentemente variável.
A falta da dimensão reflexiva sobre o ensino da gramática tradicional é visível no
relato das professoras. Uma delas mencionou o trabalho da gramática com o texto para se
referir à prática de análise sintática em fragmentos de texto, em que @s estudantes devem
identificar, por exemplo, os sujeitos, os adjuntos adnominais e o predicado. Essa prática
ignora o funcionamento da linguagem, o enquadramento dos textos escritos em gêneros, as
configurações discursivas e linguísticas moldadas pelos propósitos dos diversos contextos
sociais que os usos da escrita apresentam, em que a linguagem é um meio para a realização de
atividades e de eventos (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999):
Você chega na sala de aula, eu tô dando regras de gramática. Ele (@
estudante) precisa dessas regras, mas faça com que ele entenda isso… É
difícil. Pra nós (professoras), é difícil. (Esmeralda) (informação verbal).
[…] Ás vezes, eu tô ensinando: nesse caso aqui, o verbo é intransitivo.
Por exemplo: “Esse pincel está aqui”. Predominantemente, na maioria das
vezes, o verbo “estar” fica instransitivo. Certo? Então, eles ficam: mas aí,
toda vez… Eles querem criar regras. (Vanessa) (informação verbal).
Outra dificuldade que eu vejo também é quando eles […] a gente vai
trabalhar gramática com texto. Aí, geralmente você coloca um texto assim:
vamos tirar os sujeitos do texto. Aí, eles falam: “professora, mas pra que
você tá colocando texto? Coloca frase!”. Realmente, eu vejo assim: na
frase, é mais fácil você separar sujeito e predicado do que no texto. Parece
que eles têm preguiça […] de ler um texto todinho pra tá interpretando,
pra tá analisando... E é muito mais fácil realmente a gente trabalhar com
a frase, separar o sujeito e o predicado de uma frase, do que de um texto
todo. Eles... parece que se perdem um pouco. (Marta) (informação verbal).
32
O excerto acima demonstra que o ensino de língua pautado na análise de frases e
de orações recortadas de textos e de falas extraídos de seus contextos sociais de uso é sem
propósito, usando os termos empregados por Neves (2006, p. 125), visto que “a gramática de
uma língua em funcionamento não se faz de regras absolutas, com condições autônomas de
aplicação” (NEVES, 2006, p. 128). Neves propõe que o ensino da gramática deve conduzir à
reflexão sobre o funcionamento da linguagem e que estudar gramática significa o exercício da
língua em uso, como em contextos socioculturais em que as pessoas leem e escrevem.
Uma professora relatou que seus estudantes fazem distinção entre o que seja aula de
Língua Portuguesa e aula de produção de texto. Os estudantes não percebem que a gramática
da língua provê as regras para a produção de textos e que os sentidos são construídos e
negociados nas interações sociais. Isso ocorre porque há um entendimento generalizado,
baseado na perspectiva estruturalista, de que a gramática da língua é uma dimensão separada
do contexto sociohistórico que determina como os textos são produzidos nas práticas sociais:
Eles fazem essa distinção, de Língua Portuguesa, assim, do português…
mesmo gramática, e de quando a gente pede a redação, é… produção de
texto… eles veem essa diferença. Eles falam: “ah, produção de texto não é
português”. Eles têm essa mania de diferenciar aula de gramática e aula de
textos! (Sabrina) (informação verbal).
A língua é um recurso de que nos valemos para construir os sentidos dos textos que
produzimos, lemos e ouvimos. Quando falam, leem e escrevem, as pessoas produzem textos.
De acordo com a abordagem sistêmico-funcional, o texto é definido como uma instância de
língua que realiza algo em um contexto de situação, seja na forma escrita, seja na forma
falada ou combinando múltiplas semioses (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 3-5).
Entender o texto da perspectiva sistêmico-funcional implica relacioná-lo ao seu contexto de
cultura e de situação e ver a linguagem como um sistema semiótico que é estruturado léxicogramaticalmente. O texto medeia a interação dos participantes – escritores e leitores – em um
contexto de situação, encapsulado no próprio texto mediante uma relação sistemática entre o
contexto social e a organização funcional da linguagem.
As aulas observadas evidenciam que @s estudantes reagem mecanicamente quando
são solicitados a identificarem os termos da oração. No contexto de situação dessas aulas,
geralmente a professora propõe exercícios de gramática, em que @s estudantes devem apenas
identificar a classificação de termos da oração. Trata-se de exercícios que foram passados para
serem feitos em casa e, na aula, a professora os corrige.
Essas aulas constituem, então, eventos de letramento que se fundamentam basicamente
na descrição gramatical dos elementos constituintes da oração, o que é entendido pela sociedade
como uma prática que contribui para a aprendizagem dos letramentos, embora os resultados
escolares demonstrem o contrário. Isto é, @s estudantes têm bastante dificuldade para a leitura e
para a produção de textos escritos porque não reconhecem que as estruturas léxico-gramaticais
são instrumentos para expressar os significados funcionais de um texto e dos gêneros que realiza.
33
No exemplo a seguir, extraído de uma aula de Língua Portuguesa, a professora declara que
@s estudantes sempre querem criar regras com base nos conteúdos gramaticais apresentados.
Ao explicar o verbo intransitivo e o verbo de ligação, a professora focaliza apenas o aspecto
formal sem reflexão sobre que significados o emprego dessas estruturas constroem.
Agora, falando de aula de gramática, se é que pode falar assim, que
não seja produção de texto, é… às vezes eu tô ensinando: “Nesse caso
aqui, o verbo é intransitivo”. Por exemplo, “Esse pincel está aqui”.
Predominantemente, na maioria das vezes, o verbo “estar” é o quê? Eles
dizem: é verbo de ligação. Isso eles já entenderam bem. Aí... mas vamos
ver um caso que não é? “Esse pincel está aqui”. Aqui é lugar. Então, “estar
fica intransitivo. Certo?” Então, eles ficam: mas aí, toda vez… Aí, eles
querem criar regras. “Toda vez que terminar com letra o vai ser isso.” Aí,
na falta de regras… Quando a gente fala assim: “Não pode generalizar,
depende do contexto, tal...”. Quando você fala isso, eles: “Então, toda vez
que terminar na letra o vai ser o caso” tal.... Eles mesmos querem criar
regras. (Marta) (informação verbal).
As considerações da professora no trecho acima evidenciam uma visão de aprendizagem
que desconsidera a intuição d@s alun@s sobre a gramática dos textos, quando ela diz que
eles querem criar regras com base em generalizações que, segundo ela, não procedem.
No seu discurso, a professora pratica as generalizações descontextualizadas, mas prega a
contextualização das regras gramaticais.
No trecho seguinte, a professora acredita que usar os temas do cotidiano que agradam
@s estudantes é o caminho para que se interessem pelo descontextualizado estudo de
conteúdos gramaticais. A escolha de temas triviais como instrumento para análise sintática
tem constituído uma representação ideológica do uso da língua, porque há uma aparente busca
de contextualização do estudo gramatical, embora prevaleça a manutenção das descrições
gramaticais sem preocupação com os significados que as escolhas léxico-gramaticais produzem
no discurso. O foco do estudo da língua permanece o mesmo: a análise sintática de frases
dissociadas dos gêneros que as produziram ou que podem produzi-las.
Mas, eu, vendo ontem, que eles tavam falando… eu acho que eles ficaram
muito eufóricos por causa da festa sábado. Então, ontem eu tive que dar
uma revisão, e o assunto era a festa. Eu aproveitei o assunto “a festa”
e comecei a escrever as frases, assim, as coisas que eles falavam: “ah,
professora, fulana ficou com ciclano”. Aí, eu colocava os dois lá… “E
aí, qual que é o sujeito aqui e qual que é o predicado?” Aí, eles ficaram
ligados. Eu aproveitei isso do dia a dia deles, como vocês estão falando
aí, que eles estão mais interessados no que está acontecendo no dia a
dia, pra trabalhar. Então, assim, eles falaram: “Não sei quem veio com a
34
mãe e com o pai…”. E eu fui pegando tudo isso e trabalhando frases do
que tava acontecendo realmente, que eles tavam interessados em falar e
trabalhando sujeito e predicado e tipos de sujeito. Pegando realmente o
que tava acontecendo no dia a dia. Que eu querer brigar com eles para
ensinar uma coisa e eles tavam querendo falar da festa, ia ficar difícil.
Então eu aproveitei, dei a revisão, usando o que eles tavam falando. O
que eles tinham vivenciado ali, o que eles queriam falar, que era bem
interessante. (Marta) (informação verbal).
Todo mundo quis contar uma fofoca. E, dessa fofoca, nós aprendemos
alguma coisa. Talvez... eu creio que tenham aprendido alguma coisa,
porque chamou mais a atenção. Não sei se a atenção era saber o que tinha
acontecido na festa ou realmente ali, na hora a explicação. Mas eu vi que
eles prestaram mais atenção. Por isso, se tornou interessante: era uma coisa
que eles... eles estavam falando. Eles que estavam discutindo, e eu só entrei
ali mesmo com a gramática, né? De tá mostrando o sujeito, o predicado,
os tipos de sujeito… E ficou engraçado. A gente começou a rir, porque, às
vezes, eu perguntava: “Quem é o sujeito aqui?”. “Ih, professora, era aquele
sujeito. Aquele!” “Mas, quem é aquele sujeito?” Então, assim, ficou uma
aula engraçada. Foi interessante. Então, eu acho que dá pra gente trabalhar
o dia a dia. (Marta) (informação verbal).
De acordo com a fala da professora Marta, uma boa aula é aquela em que @s estudantes
prestam atenção ao que ela diz. Em outras palavras, para satisfazer o conceito que a professora
tem do que seja uma boa aula de Língua Portuguesa, seus estudantes devem prestar toda
atenção às suas explicações sobre o que é sujeito e predicado, responder aos exercícios em
que lhes é exigido apenas identificar essas funções gramaticais e ainda ficarem muito felizes
com isso. O vocabulário utilizado pela professora para se referir aos estudantes evidencia sua
preocupação em agradá-los: “Eles ficaram muito eufóricos por causa da festa sábado”, “Aí, eles
ficaram ligados”, “[...] que eles estão mais interessados no que está acontecendo no dia a dia”,
“[...] e trabalhando frases do que tava acontecendo realmente, que eles tavam interessados em
falar e trabalhando sujeito e predicado e tipos de sujeito”, “[...] pegando realmente o que tava
acontecendo no dia a dia”. A professora posiciona-se como centro, em que o mais importante
é @s estudantes seguirem a sua regência, como se ela estivesse dirigindo um espetáculo e,
ao mesmo tempo, fosse a atriz principal, em que o estudo da língua é o que menos importa.
Observe-se o emprego das palavras “só” e “mesmo”, no trecho a seguir, com o sentido de
minimizar o valor do estudo da gramática: “era uma coisa que eles, eles estavam falando, eles
que estavam discutindo, e eu só entrei ali mesmo com a gramática, né?”
Essa situação deixa transparecer a contradição e o conflito por que passa a professora
em sua busca por um ideal de aula de Língua Portuguesa interessante e “contextualizada”9,
9
O termo “contextualizada” foi empregado nos relatos das professoras para se referirem a um ensino da língua que
faça sentido, principalmente para @s estudantes.
35
em que o estudo das estruturas linguísticas seja instrumento para as práticas de letramento
desenvolvidas em sala de aula. No entanto, isso não acontece porque as atividades de escrita
das aulas não se relacionam com as práticas sociais. @s estudantes têm consciência disso, por
isso, não valorizam as atividades de identificação de termos na oração. Com suas atitudes, a
professora demonstra ignorar esse fato e procura justificar-se e valorizar seu papel social como
professora usando a linguagem d@s estudantes como matéria-prima para a análise sintática
descontextualizada, abstraída dos sentidos construídos nos textos.
Os professores de língua precisam conscientizar-se de que o centro das análises deve
ser os gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais, pois eles constituem a instância
social em que a língua concretiza as práticas sociais. O texto escrito é um dos elementos do
discurso e, por isso, não pode constituir o foco isolado do trabalho com a língua. Os professores
de língua precisam constantemente fazer reflexão sobre as próprias práticas de ensino de
gramática associada aos letramentos. Precisam compreender que os textos têm função social
e constituem as práticas sociais, as quais atendem a demandas particulares; que a gramática
do texto está relacionada ao contexto de situação segundo o qual os textos se configuram em
termos de gênero, de estrutura textual e gramatical. Parece que a ausência dessa dimensão
reflexiva leva as professoras a se sentirem perdidas no ensino dos letramentos e, em razão
disso, ficam preocupadas com a sua imagem profissional, apresentando comportamentos de
autovalorização para sustentarem o seu poder na interação com @s estudantes.
4. Gêneros, textos e contextos
Os gêneros não estão igualmente disponíveis e acessíveis a qualquer tempo e lugar
porque as pessoas participam de práticas sociais específicas e não de todas. As práticas sociais
articulam o discurso, as ações, as crenças, as atitudes e as histórias das pessoas nos eventos
sociais que, por sua vez, são moldados pelas práticas sociais, as quais definem modos de agir.
Por essa razão, é indicado que os professores do ensino fundamental, além de levarem para o
espaço da sala de aula textos de gêneros que alcançam propósitos sociais diversos, focalizem a
descrição do contexto de cultura e do contexto de situação dos textos que seus estudantes leem
e escrevem para capacitarem-nos à leitura e à escrita dos textos que circulam nos diferentes
espaços públicos e institucionais.
Nesta pesquisa, a professora Marta (6ª série) desenvolveu algumas atividades de
letramento em torno de textos, como carta de leitor, resenha crítica, notícia de jornal, poema
e gêneros narrativos com base nas orientações fornecidas pelo livro didático, que apresenta
as características estruturais dos gêneros. No entanto, nas atividades, não foram considerados
o contexto cultural e o contexto de situação em que esses gêneros são criados ao solicitar
que @s estudantes produzam esses textos. Analiso, em seguida, o modo como a professora
Marta desenvolveu atividades de linguagem em torno da carta de leitor, porque ela apoiou-se
unicamente no livro didático para analisar os outros textos mencionados em seu relato.
Na unidade sobre carta de leitor, o livro didático apresenta algumas cartas de leitor
extraídas de jornais e de revistas e, em seguida, há algumas perguntas que induzem @ estudante
a perceber as características desse gênero:
36
a) A carta de leitor é um gênero textual que permite o diálogo dos leitores
com o editor (a pessoa responsável pela revista ou pelo jornal) ou dos
leitores entre si. Por meio dela, os leitores podem reclamar, solicitar,
discutir, discordar, elogiar, etc.
b) Entre as cartas lidas, duas fazem elogios e, ao mesmo tempo, pedidos.
Quais são elas?
c) E qual das cartas faz uma crítica à revista ou jornal? Que crítica é feita?
d) Que leitor dialoga com outro leitor?10
A última pergunta propõe que @s estudantes se reúnam em grupo para fazerem a síntese
sobre as características de uma carta de leitor com base nas respostas às outras questões.
Logo a seguir, há duas propostas para a produção da carta de leitor. Na primeira proposta, é
apresentada uma reportagem sobre o hábito de ver televisão. Ao final dessa apresentação, vem
o comando para o exercício:
Imagine que você tenha lido essa reportagem no jornal e queira se
manifestar em relação a algo que lhe tenha chamado a atenção. Escreva
então uma carta para o editor responsável pelo jornal ou à jornalista que
assinou a matéria.
Você pode, por exemplo, manifestar-se em relação ao tema, comentando-o,
relatando experiências próprias, etc. E também em relação ao enfoque dado
ao tema, elogiando ou criticando o tratamento dispensado ao assunto pelo
jornal ou pela jornalista que assina a reportagem11.
O texto é a expressão da linguagem em uso nas práticas sociais, da linguagem que é
funcional (HALLIDAY; HASAN, 1991, por isso ocorre em dois contextos – o de situação e do
de cultura. Ao apresentar exemplos de carta de leitor e mostrar as características da linguagem
e da sua estrutura, o livro didático sugere uma relação entre o gênero e o contexto de situação
desse gênero. Entretanto, a primeira proposta para criação de um texto simula o contexto
de situação, porque @s estudantes precisam “imaginar” que leram a reportagem do jornal
e recebem a orientação de que podem “manifestar-se em relação ao tema, comentando-o,
relatando experiências próprias, etc.”, ou seja, eles podem fazer o que precisam fazer de fato
para realizarem o gênero carta de leitor. O contexto de situação – que se refere ao que está
acontecendo ou ao que aconteceu, à expressão de um ponto de vista e às semioses empregadas
para a criação do texto – foi completamente desconsiderado. Portanto, ao propor a simulação
10
11
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e
projetos. São Paulo: Atual, 6ª série, p. 96.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e
projetos. São Paulo: Atual, 6ª série p. 96.
37
desse contexto para a criação de um texto, o livro didático conduz @s estudantes à produção
de sequências de orações descontextualizadas de uma situação real de uso e não a um conjunto
de significados unidos em torno de um propósito.
A segunda proposta para a criação de uma carta de leitor desenha uma sequência
de atividades significativas para que @s estudantes escrevam um texto autêntico:
Reúnam-se com seus colegas de grupo e escolham uma revista ou um jornal
que queiram ler. Pode ser um jornal do bairro, da cidade ou do Estado;
uma revista que trate de música, de esportes, de cinema, etc. Escolham
nesse veículo de comunicação uma matéria que seja interessante e que,
segundo o ponto de vista de vocês, mereça comentários, quer positivos,
quer negativos, ou ainda as duas coisas.Escrevam então uma carta à revista
ou jornal, comentando a matéria.12
Para criar textos que realizam gêneros, é essencial que @s estudantes compreendam o
contexto social e cultural dos grupos sociais que usam a linguagem para agir e para interagir
no mundo. Valer-se das variáveis do contexto de situação – campo, relações e modo – é um
recurso útil para a descrição da variedade de linguagem que ocorre no contexto de situação
que ancora a criação de qualquer texto. Explorando o campo de uma situação, professores
e estudantes podem identificar palavras e estruturas para a construção de significados sobre
a experiência desse contexto; explorando as relações sociais, podem identificar palavras e
estruturas que constroem as relações interpessoais e a expressão dos pontos de vista e assim
construir significados interpessoais; explorando o modo do discurso, podem identificar
palavras e estruturas que organizam os significados experienciais e interpessoais em um texto
oral, escrito ou visual organizado quanto ao fluxo das informações que veicula na elaboração
dos significados textuais e adequado ao contexto de situação e ao contexto de cultura.
No estudo sobre a notícia, a professora basicamente seguiu as orientações do livro
didático, que apresenta os elementos da estrutura do gênero e as características da linguagem,
induzindo @s estudantes a identificá-los, estimulados pelas perguntas de um questionário
breve. Na última questão, @s estudantes são solicitados a sintetizarem o que aprenderam
sobre a notícia. Na sequência, o livro propõe a elaboração de uma notícia com base na leitura
de jornais e de revistas e na conversa com pais, com professores, com colegas e com vizinhos
sobre o assunto escolhido; e, depois, fornece orientações sobre as características da linguagem
que @s estudantes devem usar.
A proposta do livro didático ignora as práticas sociais que envolvem a produção de uma
notícia. No dia a dia, os jornalistas vão atrás dos fatos no momento em que acontecem e das
informações relativas ao tópico da notícia, vivenciando-os antes de redigirem o texto que será
publicado em algum jornal ou revista. Entretanto, @s estudantes devem criar textos tendo
12
38
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de gêneros e
projetos. São Paulo: Atual, 6ª série, 2011, p. 96.
como referencial apenas a estrutura do gênero, o modo de utilizar a linguagem e a situação na
qual aquele texto ocorre. A dimensão do contexto de situação, que remete às práticas sociais,
para a elaboração do texto é obscurecida:
Ao escrever sua notícia, siga estas instruções:
a) Faça um planejamento. Leia jornais e revistas, depois, converse com seus
pais, professores, colegas e vizinhos sobre o assunto escolhido, procurando
obter o maior número possível de informações.
b) Tenha em mente o leitor de seu texto: escreva com simplicidade, na ordem
direta (sujeito, verbo e complementos); sempre que possível, empregue
uma palavra em vez de duas ou mais; use frases curtas, com duas ou três
linhas no máximo, e parágrafos com poucas frases; empregue o vocabulário
comum; evite palavras difíceis, termos coloquiais, gírias, superlativos e
adjetivos desnecessários; procure responder às perguntas que um leitor
gostaria de fazer: o quê?, quem?, quando?, onde?, como?, por quê?.
As pessoas produzem textos para fazerem coisas no processo da construção dos
significados nos eventos sociais. Assim sendo, uma notícia é um texto cujos contextos de
cultura e de situação requerem que o jornalista vivencie os fatos antes de relatá-los, além
de obter informações com as pessoas que participaram do acontecimento para redigi-la em
linguagem apropriada. Em outras palavras, é preciso reunir os elementos do contexto de
cultura e de situação para criar textos atrelados a situações reais.
A unidade do livro didático sobre a caracterização e a produção de uma notícia ignora
a perspectiva segundo a qual é representada a realidade retratada no texto. Os gêneros são
modos de agir e de interagir discursivamente, nos quais os discursos constituem modos de
representação do mundo material, social e mental. Como elementos das ordens de discurso
nas práticas sociais, os gêneros figuram nos textos em termos de ação, de representação e de
identificação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 28). No gênero notícia, além da análise dos contextos
de cultura e de situação e da estrutura do gênero, há que se examinar de qual perspectiva a
realidade é representada e de que maneira diferentes discursos estruturam o mundo. Olhar
os textos da perspectiva da sua representação implica verificar que elementos dos eventos
sociais estão incluídos ou excluídos, em qual extensão e qual a proeminência dos elementos
incluídos. Esses elementos referem-se às atividades; às pessoas e suas crenças, seus desejos,
seus valores, suas histórias, suas relações institucionais e interpessoais; aos meios, ao tempo e
ao espaço, às línguas e a outros tipos de semioses (FAIRCLOUGH, 2003, p. 136).
Os textos também representam as identidades de seus autores por meio de processos
textuais de identificação, como a modalidade e a avaliação, isto é, o modo como o falante faz
julgamentos sobre as probabilidades e as obrigações envolvidas naquilo que está dizendo. No
estudo do gênero notícia, cabe verificar como a modalidade sinaliza a factualidade, os graus
39
de certeza ou de dúvida, de generalização, de possibilidade, de necessidade, de permissão e de
obrigação. Como os repórteres expressam sua avaliação, seus valores e julgamentos em relação
às situações narradas, às pessoas e às coisas apresentadas como desejáveis e indesejáveis, boas
e ruins, nas quais acreditamos ou não (FAIRCLOUGH, 2003, p. 165-173).
As propostas do livro didático para a elaboração de uma carta de leitor não levam
em consideração a perspectiva interpessoal, que é típica na produção textual desse gênero.
Observemos as instruções que o livro dá aos estudantes:
Sigam essas instruções:
a) Anotem e discutam os aspectos da matéria merecedores de comentários,
bem como os argumentos que vão fundamentar o ponto de vista de vocês –
por que gostaram ou por que não gostaram, etc.
b) Redijam o texto atentos à estrutura desse tipo de carta. Deixem claro, desde
o início, qual é a data do jornal ou o número da revista em que foi publicada
a matéria sobre a qual estão opinando. Identifiquem a matéria pelo título e/
ou pelo nome do jornalista que a assina.
c) Apresentem suas opiniões de forma firme, mas educada, sempre
fundamentando com bons argumentos. Se estiverem fazendo uma crítica
negativa não deixem de elogiar os pontos positivos e vice-versa.
d) Tenham em vista o leitor de sua carta, que será primeiramente o jornalista
ou o editor e, se ela for publicada, o leitor do jornal ou revista – criança,
jovem ou adulto. Procure adequar a linguagem ao perfil desses leitores.
O item c) das instruções contraria o contexto de cultura e de situação na criação de textos do
gênero carta de leitor. As pessoas que enviam essas cartas a jornais e a revistas fazem críticas a alguma
matéria publicada nas últimas edições e posicionam-se a favor ou contra, apresentando sua avaliação,
seus julgamentos, seus valores e suas crenças sobre reportagens ou notícias. O item d) parece-me
inadequado, pois, como @ estudante de 6.ª Série, cujo modo de usar a linguagem é próprio da sua
idade, pode utilizar uma linguagem que não pratica, uma vez que não vivencia as práticas sociais que
demandam um gênero direcionado a adultos? Isso, porém, não significa que @s estudantes não sejam
capazes de refletir sobre essa linguagem e mesmo de exercitarem o seu uso.
Tudo isso ultrapassa o simples reconhecimento dos elementos constituintes do gênero,
que é relacionado à prática de letramento em foco nas aulas. A prática de textos nas aulas
de Língua Portuguesa constitui uma representação de eventos sociais que passam a ser
recontextualizados quando @s estudantes simulam a prática de gêneros em situações cujas
práticas serão imaginadas. A recontextualização envolve diferenças no modo como um evento
social é representado em diferentes redes de práticas sociais e diferentes gêneros, afetando a
representação abstrata e concreta dos eventos sociais, o modo como são avaliados, explicados,
legitimados e em que ordem são apresentados.
40
Considerações finais
Os gêneros são modos abstratos, reconhecidos socialmente, de usar a língua. Baseiamse na suposição de que os aspectos linguísticos de um grupo similar de textos dependem
do contexto social em que foram criados e são usados, que aqueles aspectos podem ser
descritos de modo a relacionar um texto a outros parecidos e às escolhas e restrições dos seus
produtores. A língua é constitutiva das realidades sociais, uma vez que é por meio do uso
recorrente de formas convencionais que os indivíduos desenvolvem relações interpessoais,
participam de grupos sociais e realizam coisas. As relações interpessoais estão no centro do
uso da língua, significando que cada texto bem-sucedido revelará a consciência do escritor
sobre o contexto sócio-histórico da sua criação e os leitores que fazem parte desse contexto.
Os gêneros, portanto, são
os efeitos da ação dos agentes sociais individuais, que agem tanto nos
limites da sua história quanto das restrições de contextos particulares,
e com um conhecimento dos tipos genéricos existentes (KRESS, 1989,
p. 10).
De acordo com Hyland (2003), o ensino de língua com base nos gêneros repousa na
ideia de que os letramentos são recursos da comunidade que se realizam nas relações sociais,
são situados e múltiplos e posicionam-se em relação às instituições sociais e às relações de
poder que os sustentam. Dito de outra forma, a escrita – usada de muitos modos nos diversos
contextos sociais – e os gêneros estão associados a usos que regulam o acesso das pessoas a
grupos sociais que possuem prestígio e influência.
Essa questão do acesso e da produção de textos valorizados socialmente é central às
noções de poder e de controle na sociedade moderna. Isso implica que professoras/es de Língua
Portuguesa precisam refletir sobre os gêneros que devem ser ensinados porque o ensino de
determinados gêneros é um meio de levar @s estudantes a obterem acesso aos modos de
comunicação que são investidos de capital cultural13 nas comunidades profissionais, acadêmicas
e sociais. A escolha estratégica dos gêneros levados para as aulas pode instrumentalizar @s
estudantes para que participem de novos domínios sociodiscursivos.
13
Em Os três estados do capital cultural, Pierre Bourdieu trata desse conceito: "A noção de capital cultural impôsse, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de
crianças provenientes das diferentes classes sociais" (BOURDIEU, 1998, p. 73). Em outras palavras, "[...] na
realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um
certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras
coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar" (BOURDIEU, 1998, p. 42). Isto é, a posse de
certo capital cultural e de um ethos familiar predisposto a valorizar e a incentivar o conhecimento escolar seriam
importantes elementos para se alcançar um sucesso acadêmico. Neste sentido, crianças mais abastadas e com maior
acesso aos bens culturais seriam aquelas que teriam as maiores chances de obter um bom desempenho escolar
(SETTON, 2005).
41
Na escola, as práticas de letramento baseadas nos gêneros podem ser instrumentos
para a construção coletiva do conhecimento. Quanto mais for possível definir as dimensões
ensináveis dos gêneros, melhor eles serão apreendidos pel@s estudantes. O ensino de
Língua Portuguesa nas turmas de ensino fundamental que participaram desta pesquisa
baseou-se em um número bastante reduzido de gêneros presentes nas práticas de letramento
das aulas, nas quais textos foram lidos. Muitos exercícios gramaticais foram feitos de forma
descontextualizada e, portanto, sem sentido. Isso significa que, no contexto cultural das
aulas observadas, professoras e estudantes pouco leram e escreveram e, quando o fizeram,
as atividades de letramento não tiveram um propósito social. Os textos foram trazidos para
as aulas para transformarem-se apenas em objetos de leitura, em realização de exercícios
gramaticais e em interpretação de texto.
A fim de mudar sua prática docente para o ensino significativo de letramentos, as
professoras precisam compreender que os textos concretizam gêneros, que fazem parte de
atividades sociais concretas. Os gêneros medeiam diferentes padrões de interação e têm
determinado formato em razão do papel que exercem nas instituições sociais. Nesse sentido,
é recomendado que @s professoras/es de Língua Portuguesa no ensino fundamental façam
reflexão sobre que tipos de textos e de gêneros seus estudantes estão lendo e escrevendo e quais
os seus propósitos sociais. Quando se apropriam dos gêneros, as pessoas desenvolvem os tipos
de conhecimento especializado (BAZERMAN, 2005, p.67) que as habilitam a participarem
ativamente da sociedade.
Analisar criticamente os diversos letramentos, fundamentando-se na perspectiva social
do letramento (STREET 1995; BARTON 1994; BARTON; HAMILTON 1998; BARTON;
IVANIC, 1991; BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000), capacita @s estudantes a
identificarem os sentidos além do texto, bem como os interesses subjacentes aos significados.
Entender os letramentos como elementos das práticas sociais na análise dos gêneros implica
verificar que papel o letramento desempenha nas práticas institucionais e as quais propósitos
está servindo. O letramento constitui práticas que se impõem pelo uso dos gêneros do poder,
cujo domínio possibilita o acesso das pessoas a conhecimentos especializados e a serviços,
permitindo que elas se relacionem com instituições que nem sempre lhes são familiares.
A abordagem dos gêneros como propósito social (EGGINS; MARTIN, 2000; EGGINS,
2004), associada à perspectiva sistêmico-funcional para a análise de textos (HALLIDAY;
HASAN, 1991; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), propicia a professores e a estudantes
a consciência de que as estruturas linguísticas dos textos relacionam-se ao contexto cultural
e social em que foram criados e em que são usados. Essas abordagens teóricas enfatizam
o desenvolvimento do conhecimento sobre o controle exercido por textos que constituem
as práticas de letramento dominantes nas diferentes instituições (STREET, 1984, 1995).
Entretanto, a transmissão descontextualizada de tipos textuais e de seus aspectos gramaticais
não conduz a uma avaliação crítica das práticas de letramento e dos gêneros a elas associados
no contexto das aulas de Língua Portuguesa. Ao contrário, pode estar a serviço da reprodução
não crítica das práticas de letramento autônomo, criticadas por Street (1995).
As pedagogias baseadas nos gêneros (HYLAND, 2003, p. 25) supõem que o domínio de
tipos textuais “poderosos” pode levar @s estudantes ao desenvolvimento intelectual e cognitivo,
à realização profissional, ao acesso aos bens culturais da humanidade e à mobilidade social.
42
Nessa linha de raciocínio, o modelo freireano teoriza o “empoderamento” como abertura aos
espaços sociais para as pessoas marginalizadas, a fim de que articulem seus interesses nas
instituições baseadas no controle da tecnologia dos textos escritos (FREIRE 1983).
De modo geral, os professores que focalizam as regras e a correção gramatical desejam
que seus estudantes aprendam a usar a língua culta. Essa forma de olhar para a linguagem
obscurece a diversidade do uso da linguagem, além de considerar todos os outros usos como
não padrão. Em vez de conceber a gramática em termos de regras que prescrevem o modo
como a linguagem é estruturada, a abordagem sistêmico-funcional pensa a gramática como
um modo de descrever padrões da linguagem e as funções que esses padrões desempenham,
estudando a gramática de textos nos contextos de cultura e de situação que os demandam.
Esta pesquisa buscou conhecer como os gêneros relacionam-se às práticas de letramento
nas aulas de Língua Portuguesa e ao ensino da gramática. As entrevistas cumpriram a função de
criar oportunidade para as professoras falarem de suas práticas docentes e de suas inquietações.
As observações das aulas foram significativas para que eu pudesse vivenciar a experiência de
várias aulas de Língua Portuguesa, de 5ª a 8ª série. As informações obtidas por meio desses
métodos de coleta de dados permitiram-me compreender que ensinar Língua Portuguesa
no ensino fundamental ainda é um desafio, porque as professoras não dispõem de recursos
teóricos e metodológicos que lhes forneçam sustentação para o ensino dos letramentos.
Uma pedagogia de ensino de letramentos demandados por diferentes práticas sociais,
associada ao uso de gêneros, instrumentaliza discursiva e gramaticalmente professores e
estudantes para que reconheçam a diversidade do contexto sócio-histórico que envolve os
textos, conforme as práticas sociais que os demandam. Os professores de Língua Portuguesa
precisam reconhecer as convenções dos diferentes gêneros sem, no entanto, serem prescritivos
e normativos. Isso pode ocorrer quando apresentam aos seus alunos listas sobre as propriedades
dos diferentes gêneros. É importante compreenderem que modos particulares de usar
a linguagem são modos de estruturar o conhecimento e as relações interpessoais. Quando
as pessoas usam a linguagem, estão se valendo dos recursos de uma língua – o português
brasileiro, por exemplo – e fazem isso sempre por meio dos gêneros, que são cultural e
socialmente construídos.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. M.E.G. Pereira. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2000.
BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language. Oxford, Cambridge:
Blackwell Publishers, 1994.
BARTON, D. ; HAMILTON, M. Local literacies. Londres and Nova Iorque: Routledge, 1998.
BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Orgs.). Situated literacies: reading and writing in context.
Londres, New York: Routledge, 2000.
43
BARTON, D. & IVANIC, R. Writing in the community. Newbury Park, Londres, Nova Delhi: Sage
Publications, 1991.
BARTON, D; HAMILTON, M. Local literacies. Londres and Nova Iorque: Routledge, 1998.
BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Ângela Paiva Dionísio, Judith Chambliss
Hoffnagel, (Orgs.); tradução e adaptação de Judith Chambliss Hoffnagel; revisão técnica Ana Regina
Vieira... [et al.]. – São Paulo: Cortez, 2005.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T.C. Todos os textos: uma proposta de produção textual a partir de
gêneros e projetos. São Paulo: Atual, 6ª série, 2011.
CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse
analysis. Edinburgh: Edingurgh University Press, 1999.
EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. 2. ed., New York, Londres: Continuum,
2004.
EGGINS, S.; Martin, J.R. Géneros y registros del discurso. In: VAN DIJK, T.A. El discurso como
estructura y proceso. Barcelona: Gedisa, 2000.
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres & Nova Iorque:
Routledge, 2003.
______________. Discurso e mudança social. MAGALHÃES, Izabel (Coord. trad., rev. e pref.).
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992/2001.
______________. Critical discourse analysis. Londres and Nova Iorque: Longman,
1995.
______________. Language and power. Londres e Nova Iorque: Longman, 1989.
HALLIDAY, M.A.K.; HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic
perspective. Oxford University Press, 1991.
HALLIDAY, M.A.K. e MATTHIESSEN, C.M.I.M. An introduction to functional grammar. 3. ed.,
Oxford, Londres: Arnold, 2004.
HALLIDAY, M.A.K. e HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a socialsemiotic perspective. Oxford University Press, 1991.
Hyland, K. Genre-bases pedagogies: a social response to process. Journal of Second Language Writing,
12, 2003.
NEVES, M.H.M. Que gramática estudar na escola? 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
PAGANO, A. Gêneros híbridos. In: C. Magalhães, (Org.) Reflexões sobre a análise crítica do discurso,
44
Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 2001.
STREET, B. Literacy events and literacy practices: theory and practice in the New Literacy Studies.
In Jones, M. M. e Jones, K. (Orgs.) Multilingual literacies: reading and writing different worlds. John
Benjamins Publishing Company, Amsterdam/Philadelphia, 2000.
STREET, B. Social literacies: critical approaches to literacy in development, ethnography and
education. London and New York: Longman, 1995.
_________ . (Org.). Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University Press,
1993.
_________ . Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
45
A SEMIÓTICA SOCIAL DAS CORES E DAS FORMAS
TIPOGRÁFICAS:
CONCEITOS, CATEGORIAS E APLICAÇÕES
Flaviane Carvalho (Universidade de Lisboa)1
Este artigo visa a contribuir para as pesquisas sobre os significados construídos pela
tipografia e pelas cores por meio de um estudo de caso da primeira página dos jornais
portugueses Diário de Notícias, Correio da Manhã e Público. O referencial teórico é o
da Semiótica Social (HALLIDAY, 1978; HODGE; KRESS, 1988), que concebe o uso de
cada modo semiótico como determinado pelo contexto, produzindo, assim, significados
socialmente e culturalmente situados. A metodologia é baseada nos sistemas paramétricos
da tipografia (VAN LEEUWEN, 2006) e das cores (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002; VAN
LEEUWEN, 2011). Os resultados sugerem a convergência de propósitos comunicativos
contraditórios no Diário de Notícias, a ênfase ao consumo e também ao monitoramento
das instituições sociais no Correio da Manhã e o valor atribuído pelo Público à cobertura
mais crítica e diversificada das notícias.
Palavras-chave: Semiótica Social. Tipografia. Cores. Design. Imprensa.
Introdução
A nova ordem social estabelecida pelo progresso do consumo e das tecnologias
multimídia tem demandado a criação de novos tipos de design, de layouts e de variedades nos
usos das cores e das formas tipográficas no âmbito da comunicação social. Contudo, é preciso
também desenvolver e tornar acessíveis conceitos, técnicas e convenções, para que possamos
compreender e empregar adequadamente esses novos tipos de recursos e de possibilidades de
trabalho comunicativo.
1
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa. Investigadora do Centro de Estudos Anglísticos da
Universidade de Lisboa (CEAUL) e membro da Sociedade Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM). É
autora de capítulos de livros e de revistas acadêmicas com publicações centradas nos estudos em semiótica social,
em multimodalidade e em literacia visual aplicados aos discursos e às representações da mídia. E-mail: flavianefc@
hotmail.com.
47
Tendo em conta essa demanda, este artigo visa a contribuir para as pesquisas sobre cores
e tipografia à luz do quadro teórico-metodológico da Semiótica Social por meio de um estudo
de caso feito sobre o layout da primeira página das edições de 23 de fevereiro de 2008 dos
jornais portugueses Diário de Notícias2, Correio da Manhã3 e Público4, considerados como de
maior referência e/ou mais vendidos no país.5
Semiótica social das cores e tipografia: enquadre teóricometodológico
O trabalho de Hodge e Kress (1988), intitulado Social semiotics, marca o início dos
estudos em Semiótica Social aplicados a textos multimodais ao considerar todos os demais
modos semióticos que acompanham o modo verbal. Com base nas críticas lançadas à semiótica
tradicional, quais sejam, a omissão dos usos e das funções sociais dos sistemas semióticos e
a falta de uma prática analítica convincente que auxilie na descrição e na interpretação das
estruturas e dos processos por meio dos quais os significados sociais são construídos, Hodge e
Kress (1988) propõem uma nova abordagem, fundamentada pela concepção de Halliday (1978)
de linguagem como Semiótica Social, cujo foco está centrado nas funções sociais da linguagem.
Ao ressaltar o caráter multifuncional da linguagem, Halliday (1978) identifica três tipos
amplos de significado, ou melhor, três metafunções principais, sempre realizadas simultaneamente
em toda forma de comunicação: a metafunção ideacional (referente ao tipo de atividade em curso
ou à experiência representada acerca da realidade), a metafunção interpessoal (concernente com
o tipo de relação estabelecida entre os participantes) e a metafunção textual (relativa ao modo
com que o texto organiza, de forma coesa e coerente, as mensagens).
Dessa perspectiva, Hodge e Kress (1988, p. viii) estabelecem duas premissas básicas.
Uma delas diz respeito à consideração da dimensão social para entender a estrutura e o processo
da linguagem. A outra premissa reside no fato de que nenhum modo semiótico pode ser estudado
isoladamente, uma vez que o significado é composto pela integração dos vários modos semióticos
em uso em um determinado tipo de texto ou evento social (visual, sonoro, gestual, etc.) para além
da escrita. Este artigo centrar-se-á nos estudos sobre os modos semióticos relativos às cores e à
tipografia, já referidos inicialmente, e cujas categorias serão descritas a seguir.
2
3
4
5
48
De periodicidade diária, o Diário de Notícias foi fundado em 1864, com uma circulação anual média de
aproximadamente 30.658 exemplares. Em termos de leitores abarca, predominante, o público masculino,
compreendendo uma faixa etária entre 21 a 29 anos, cuja classe social é a média-média. Fonte: Associação
Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010.
Fundado em 1979, o Correio da Manhã tem periodicidade diária, com uma circulação média anual de aproximadamente
129 mil exemplares. Em se tratando do perfil dos leitores, prevalece o público masculino, abrangendo uma faixa
etária entre 25 a 34 anos, cuja classe social é a média-média e média-baixa. Fonte: Associação Portuguesa para o
Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010.
A primeira edição do Público estreou nas bancas em 1990. O jornal tem periodicidade diária, com uma circulação
média anual de aproximadamente 34.239 exemplares. Prevalecem os leitores de sexo masculino, de idade
compreendida entre 25 a 34 anos, de classe social média-alta e média-média. Fonte: Associação Portuguesa para o
Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) – Jan.-Dez. 2010.
Este artigo consiste em um recorte da tese de doutorado de Carvalho (2012).
A abordagem sociossemiótica das cores
Em sua obra The language of colour, van Leeuwen (2011, p.1) define a Semiótica Social
da cor como uma abordagem do modo como a sociedade utiliza a cor com propósitos de
expressão e de comunicação – mais especificamente, sobre o modo como a manipulação de
pigmentações e escalas de cores são usadas a fim de expressar sentimentos, comunicar ideias
e promover a interação social.
A forma e o significado das cores devem levar em conta, segundo van Leeuwen (2011),
as características materiais e perceptíveis das cores, bem como seu esquema, interpretados
com base em seus respectivos significados potenciais e no contexto em que são configurados.
Com efeito, o termo significado potencial, criado por Halliday (1978), refere-se aos
potenciais usos de um objeto, com base nas suas características perceptíveis, que têm se tornado
parte do conhecimento de uma determinada cultura. Recursos semióticos como a cor podem,
portanto, ter um significado potencial teórico composto por todos os seus usos anteriores e
um significado potencial real constituído por todos os usos no passado e no presente que são
então conhecidos e considerados relevantes pelos usuários de tais recursos em um contexto
específico. Esse conceito também abrange outros usos, ainda não descobertos e que, no futuro,
poderão ser percebidos em função das novas necessidades e interesses criados em contextos
que ainda não vieram à tona (VAN LEEUWEN, 2011, p. 59) – o que cria condições para que
haja mudança e/ou inovação semiótica.
As características das cores são classificadas por van Leeuwen (2011) como paramétricas,
isto é, um sistema que articula o significado com as características materiais do significante.
Do mesmo modo, o significado potencial das cores e dos esquemas de cores baseia-se em suas
características materiais. Nesses termos, a cor opera como um recurso semiótico que, assim
como os outros modos, é metafuncional em seus usos na produção culturalmente localizada
dos signos (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002, p. 343).
A cor pode funcionar de maneira ideacional ao ser usada para denotar indivíduos,
lugares e coisas específicas em classes e em ideias mais gerais sobre o mundo. As cores das
bandeiras, dos uniformes, dos mapas e dos logotipos de marcas, por exemplo, distinguem e
demarcam suas respectivas identidades.
A cor também pode ser utilizada para transmitir significados interpessoais, realizando
atos de cor e, assim, fazendo coisas para si ou para os outros, tais como impressionar ou
intimidar o espectador com um endereçamento de poder, alertar contra perigos pelas pinturas
em tonalidade laranja, ou mesmo relaxar indivíduos hostis e agressivos por meio do uso do
rosa em ambientes fechados (KRESS; VAN LEEUWEN, 2002, p. 348).
A cor frequentemente desempenha a função textual ao promover coesão, criando
unidade e coerência entre os elementos, bem como ao realizar a coordenação de cores, ou, em
menor escala, diferenciando elementos entre si.
49
Nesses termos, as análises levam em conta as categorias formuladas por Kress e
van Leeuwen (2002) e por van Leeuwen (2011), nomeadamentebrilho, saturação, pureza,
modulação, diferenciação e temperatura6, sistematizadas abaixo pela Figura 1:
Figura 1 – Sistema paramétrico das cores, adaptado de van Leeuwen (2011).
A escala de brilho manifesta-se em um continuum que abrange desde a luminosidade
máxima (branco) até a luminosidade mínima (preto). A escala de saturação realiza-se por
meio de um continuum que engloba desde a intensidade máxima do sentimento ou da emoção
proporcionada pela concentração da cor (saturação máxima) até a sua diluição máxima, em que
sentimentos e emoções são neutralizados (saturação mínima). A escala de pureza configurase em um continuum que se estende desde a pureza máxima trazida pelas cores primárias até
o hibridismo máximo. A escala de modulação desenvolve-se através de um continuum que
compreende desde as cores totalmente moduladas (modulação máxima) e com ricas texturas
até as cores planas e homogêneas (modulação mínima). A escala de diferenciação manifesta-se
por meio de um continuum que abrange desde o uso da monocromia até o uso maximamente
variado da paleta de cores, isto é, a policromia. A escala de temperatura, por seu turno, realizase em uma escala que compreende desde o azul (cor fria) até o vermelho (cor quente).
Além das cores, as formas e os estilos tipográficos são apontados por van Leeuwen (2006)
como uma importante fonte de significados potenciais. Isto ficará evidenciado na seção seguinte.
A abordagem sociossemiótica da tipografia
Segundo Graddol (1997, p.80), o design tipográfico deve necessariamente estar em
consonância com o tipo de propósito comunicativo presente em cada fragmento textual. Sob
essa ótica, a tipografia e as palavras tendem a influenciar o posicionamento do leitor de diferentes
formas. Por esta razão, conhecer a história e a estrutura dos principais grupos de letras é de
fundamental relevância, a fim de que se possa explorar adequadamente o significado potencial
dos diferentes conjuntos tipográficos disponíveis aos designers e aos produtores de texto.
6
50
Minha tradução de brightness, saturation, purity, modulation, differentiation, temperature, respectivamente.
Ressalto que ainda não foi estabelecido um consenso no âmbito acadêmico para a tradução em português dos
referidos termos, ficando, neste caso, sob a minha responsabilidade.
Em geral, a tipografia moderna tem realizado a seguinte distinção: de um lado, aspectos
tradicionais modelados pela impressão clássica romana, caracterizada por suas linhas
decorativas ou serifas; de outro, a impressão simples, geométrica e sem serifas, típica da
era industrial. Enquanto a primeira modalidade tipográfica baseia-se nos modelos de escrita
manual, ensejando valores associados à cultura, à história e à agência humana, a segunda
modalidade encontra-se associada à sociedade industrial, buscando produzir variedades
tipográficas utilitárias e adequadas a textos de informação impessoais e objetivos, como
cabeçalhos, títulos e epígrafes (GRADDOL, 1997).
Para além das formas das letras, a tipografia integra-se a outros significados semióticos
de expressão a fim de cumprir a tarefa da comunicação. Em decorrência disso, van Leeuwen
(2006) assinala que os significados construídos pela tipografia, assim como pela cor, podem
ser ideacionais, interpessoais ou textuais.
A tipografia pode realizar a função ideacional ao representar ideias, ações e qualidades,
sobretudo, significados concernentes à identidade, criando um determinado perfil ou
determinada personalidade para o seu usuário. No que tange aos significados interpessoais, a
tipografia pode permitir ao indivíduo estabelecer interações e expressar atitudes em relação ao
que está sendo representado, seja por demandas explícitas, seja pelo mecanismo da persuasão.
A tipografia pode, ainda, realizar significados textuais, demarcando elementos ou unidades de
um texto e expressando o grau de similaridade ou de diferença entre as partes informacionais
dos textos.
Em Towards a Semiotics of Typography, van Leeuwen (2006) apresenta uma primeira
tentativa de identificar os aspectos distintivos das formas tipográficas que, uma vez combinadas
a outras características, tais como cores, textura, tridimensionalidade e movimento e utilizadas
em um contexto específico, podem realizar uma série de significados potenciais, configurados
pelas seguintes categorias: peso, expansão, inclinação, curvatura, conectividade, orientação
e regularidade7. O peso corresponde ao grau de negrito empregado na letra. A expansão está
relacionada com a experiência de espaço entre os tipos gráficos. A inclinação refere-se à
diferença entre a tipografia cursiva e a tipografia ereta e, em alguns casos, com a inclinação
das letras para a direita ou para a esquerda. A curvatura está relacionada com a ênfase à
angularidade ou à curvatura das formas das letras. A conectividade refere-se ao grau em que
as formas das letras encontram-se conectadas ou desconectadas umas às outras. A orientação
concerne à direção dos tipos gráficos, que pode ter uma dimensão horizontal precisamente por
serem achatados; ou alargados, em direção vertical. A regularidade, por fim, está relacionada
com os contrastes entre tipos gráficos regulares e irregulares. A Figura 2 traz a sistematização
dessas categorias:
7
Minha tradução de weight, expansion, slope, curvature, connectivity, orientation e regularity, respectivamente.
Como ainda não foi estabelecido um consenso no âmbito acadêmico para a tradução em português dos referidos
termos, a responsabilidade fica, neste caso, a cargo meu.
51
Figura 2 – Sistema sociossemiótico das formas das letras, adaptado de van Leeuwen (2006).
A seção seguinte ilustra a aplicação da grelha aqui apresentada por meio de um estudo
de caso feito do layout da primeira página dos jornais portugueses referidos na introdução do
presente trabalho.
Os significados sociossemióticos das cores na primeira
página dos jornais Diário de Notícias, Correio da Manhã e
Público
Diário de Notícias
As análises da primeira página da edição do Diário de Notícias de 23/2/08, baseadas no
sistema sociossemiótico das cores, são apresentadas a seguir:
Figura 3 – O sistema de cores no Diário de Notícias de 23/2/2008.
52
De modo geral, a primeira página do Diário de Notícias pode ser caracterizada pela presença
de um grau considerável de diferenciação, haja vista a pluralidade de cores das fotografias.
Ademais, o topo da página parece receber elevado brilho em relação aos demais setores da capa
do jornal devido à intensidade da luminosidade verificada nesse domínio em função do emprego
das cores quentes amarelo e vermelho. Este alto grau de brilho evocado pela presença dessas fortes
tonalidades acaba por suscitar emotividade e envolvimento, além de direcionar a atenção do leitor
para a grande reportagem e para a promoção apresentadas pelo jornal.
A tonalidade expressiva e estimulante do vermelho é frequentemente destinada às ações
do governo (“Governo divulga os cursos do desemprego”), bem como à voz do jornal associada
a tais chamadas. Nesta chamada, a voz do jornal “Lista dos 43 diplomas do ensino superior com
pior saída profissional no País” aparece em vermelho, conferindo, assim, destaque, saliência e
atenção ao referido relato, em geral associado às chamadas de cariz polêmico concernentes a
determinados feitos do governo.
Cumpre ainda destacar a chamada referente à revista Notícias Sábado [NS’], sobreposta
a um fundo de tonalidade alaranjada. Em função das propriedades estimulantes dessa cor
de temperatura quente, as representações da revista e da promoção acabam por despertar
positivamente o interesse do leitor, sugerindo originalidade, conforto e prazer (HELLER,
2007). Em contrapartida, nota-se também o emprego da cor branca na chamada referente à
revista, conferindo-lhe equilíbrio e suavidade, haja vista seus efeitos de pureza, de leveza e de
neutralização. O mesmo efeito também pode ser observado na promoção “DVD Grátis”, em
que o branco age no sentido de atenuar a força e a saliência provocadas pelas cores vermelha e
amarela, de alta temperatura.
Em se tratando do peso visual da tipografia gótica empregada no logotipo do jornal, o
uso do branco parece, em termos positivos, transmitir a sensação de leveza, de equilíbrio e de
harmonia. Entretanto, em termos negativos, pode vir a sugerir certo elitismo e distanciamento.
No que diz respeito à escala de temperatura, observa-se a aplicação contrastiva da tonalidade
quente vermelha e da tonalidade fria azul, bem como da cor quente laranja e da cor neutra branca,
sugerindo, assim, certo equilíbrio dinâmico. Dessas cores são engendrados pontos de tensão e de
relaxamento na página. Desta maneira, enquanto o vermelho e o laranja encontram-se associados
ao calor, à energia, à saliência e ao primeiro plano, o azul e o branco correspondem ao frio, à calma,
à distância e ao segundo plano. O contínuo quente-frio pode estar associado, ainda, aos contrastes
sedativo/estimulante, aéreo/terrestre, longe/próximo, leve/pesado (KRESS; VAN LEEUWEN,
2002). Esse equilíbrio dinâmico também fica sugerido na intercalação entre os títulos de chamadas
configurados por meio da cor preta e dos títulos de cor vermelha.
No que tange à pureza, pode-se observar uma opção, por parte do jornal, que oscila entre
a adoção de cores puras e híbridas. Por um lado, o periódico recorre às cores puras para a sua
confecção habitual, nomeadamente o vermelho, o azul e o amarelo – o que, em termos ideacionais,
codifica os significados associados ao ideal de simplicidade e de organização da sociedade. Por
outro lado, as cores laranja e rosa, classificadas como híbridas, tendem a figurar nas chamadas da
revista Notícias Sábado e na publicidade do Banco Nacional Português [BPN], respectivamente.
Estas são associadas às ideologias da contemporaneidade, reproduzindo uma realidade social
dominada por mudanças, por incertezas e pela presença cada vez mais forte do consumismo.
53
Ademais, nota-se o predomínio da modulação nas imagens das chamadas da página.
Ao passo que as chamadas relativas à grande reportagem, frequentemente associadas à
problematização de questões sociais, apresentam baixa modalidade naturalística8, pois
prevalece a saturação de cores e de sombras nas imagens, ou cenários de fundo sutilmente
desfocado – muitas vezes não correspondendo, portanto, à realidade –, possivelmente no
sentido de despertar os sentidos do leitor, as chamadas de destaque, geralmente de âmbito
internacional, são mostradas com alta modalidade naturalística, haja vista a minúcia de detalhes
na representação dos participantes e do cenário, em que primeiro e segundo planos figuram
bem articulados e precisamente focalizados, construindo, assim, verdades mais perceptuais e
realísticas aos leitores.
Correio da Manhã
A primeira página da edição do Correio da Manhã de 23/2/2008, analisada com base no
sistema sociossemiótico das cores, é apresentada abaixo:
Figura 4 – O sistema de cores no Correio da Manhã de 23/2/2008.
Em linhas gerais, a primeira página do Correio da Manhã mostra-se dotada de um grau
elevado de brilho, em decorrência dos jogos de luz configurados através da intensidade das cores
branca, alaranjada e vermelha, em contraste com os excessos de negrito empregado nas fontes
dos títulos das chamadas apresentadas. Para além disso, a primeira página do jornal tende a
representar os acontecimentos de modo bastante saliente e com saturação de cores, acabando por
8
54
No padrão naturalístico, a modalidade é definida pelo grau de congruência entre a representação visual de um
objeto e aquilo que normalmente visualizamos deste a olho nu (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996).
expressar os eventos com intensidade de sentimentos e de emoções. Isto pode ficar sugerido com
o apelo desmedido à policromia, notadamente por meio do recurso ao vermelho e ao alaranjado
e também pelo uso excessivo de imagens e de letras grandes e negritadas, conferindo, à página,
uma aparência extravagante e carregada de uma gama de significados.
No que concerne à escala de temperatura configurada na primeira página, a composição
tende a aproximar-se das cores quentes, precisamente do vermelho, associado ao calor, à energia
e ao primeiro plano, representando dinamismo, força e emoção. No caso do logotipo do jornal,
pode-se notar que, enquanto o fundo de cor vermelha atrai a atenção do leitor de modo estimulante
e ativo, as letras dispostas em cor branca parecem conferir-lhe certo equilíbrio e suavidade.
O vermelho é utilizado, ainda, nos antetítulos da maior parte das chamadas, bem como nas
informações adicionais à chamada mostradas sob a forma de um carimbo e talvez sugerindo a
necessidade e a importância de se registrar os acontecimentos relatados, tais como as ações do
governo com implicações negativas para certos setores da sociedade (“Governo trava carreiras”).
Levando-se em conta a associação da cor vermelha a significados ligados à impetuosidade, à
proximidade e à tangibilidade, a maioria das chamadas da primeira página do Correio da Manhã,
uma vez dotadas de pinceladas desta cor, acaba competindo pela atenção do leitor.
Ao passo que as promoções e as ofertas do jornal são apresentadas de maneira estimulante
e alegre por meio da tonalidade quente alaranjada, a maior parte das outras publicidades
exteriores ao Correio da Manhã (“totoloto”, “cofersan”) são frequentemente apresentadas
sobre um fundo de tonalidade azul, cor fria e cujas propriedades podem conferir-lhes certa
carga de distanciamento.
Cabe ainda mencionar que o uso da cor branca nas letras de alguns títulos, bem como de
tonalidades pastéis e acinzentadas no fundo de algumas chamadas da página, talvez sirva para
atenuar o teor de saturação resultante do excesso de cores configuradas na página. As presenças
da tonalidade acinzentada como fundo e da cor branca nos títulos das chamadas tendem a
neutralizar e a equilibrar a emoção, a energia e a força da tonalidade vermelha empregada nos
antetítulos, em determinadas palavras dos blocos de textos e no logotipo do jornal.
Ademais, observa-se o efeito de conexão estabelecido pela rima visual configurada entre
o fundo alaranjado das chamadas das promoções (“colecção esqueleto humano” e “medalhas
imagens da paixão”) da revista Vidas e do caderno Sport. Dado o caráter estimulante e
extrovertido da tonalidade alaranjada, o Correio da Manhã, ao representar o futebol, as ofertas
e as promoções de produtos com esta cor, parece sugeri-los como assuntos divertidos, originais
e, também, dignos da atenção do leitor. Ressalte-se, ainda, que o emprego da tonalidade rosa
na representação da revista Vidas a enseja como um veículo frívolo e direcionado, sobretudo,
para o público feminino, tendo em vista os valores culturalmente associados no ocidente a esta
cor, relacionada com a feminilidade, com o romantismo e com o artificial (HELLER, 2007, p.
214).
Em se tratando de pureza, pode-se apontar para a coexistência de cores puras e híbridas
na primeira página do referido jornal, seja pela ocorrência das cores primárias vermelho,
azul, amarelo e, ainda, o cinzento, seja pela utilização recorrente de cores híbridas, tais como
variações do azul, do rosa, do alaranjado e do vermelho empregadas em algumas chamadas.
Nesse sentido, o Correio da Manhã parece apresentar uma identidade híbrida, pois, ao mesmo
55
tempo em que tende a valorizar a simplicidade na apresentação das notícias, também se mostra
alinhado às ideologias da contemporaneidade, que têm concebido positivamente a ideia de
hibridismo e de inconstância da realidade e dos valores.
Cumpre assinalar que as imagens das chamadas figuradas na página do Correio da Manhã
geralmente possuem baixa modulação por conta da quase ausência de sombras, de detalhes e,
muitas vezes, de contextualização ou de cenário, sendo percebidas, portanto, de modo básico e
simplificado. Exceção disso são as chamadas com imagens de destaque do jornal – especialmente
relacionadas a punições e a acusações efetuadas pela polícia e pelo Judiciário – que, ao aparecerem
contextualizadas e com nitidez e exatidão de detalhes, com cores e com perspectiva, acabam
sendo experenciadas pelo leitor como altamente perceptuais e reais.
Público
As análises baseadas no sistema paramétrico das cores da primeira página da edição
do Público de 23/2/2008 são apresentadas a seguir:
Figura 5 – O sistema de cores no Público de 23/2/2008.
No layout da primeira página do Público, o topo da página aparece dotado de um
grau considerável de brilho em decorrência do teor acentuado de luminosidade e também
do equilíbrio entre claro (referente às cores empregadas nas letras das chamadas) e escuro
(relativo às cores utilizadas nas imagens reproduzidas). Além disso, é possível perceber um
significativo teor de saturação vinculado aos cadernos e aos suplementos especiais do jornal
(P2, Fugas, Digital), haja vista a intensidade máxima dos efeitos emocionais sugeridos pelas
cores vermelho e alaranjado, expressando, desta forma, afeições e sentimentos passíveis de
serem suscitados nos leitores.
56
Cumpre sublinhar ainda o uso da cor azul nas letras da representação do “Livro Os
Lobos/Hoje por mais 25€”, tonalidade fria que acaba por sugerir a referida chamada como
distante e sem expressividade frente ao leitor. Nesse sentido, o Público parece contrapor-se à
tendência observada no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, ao passo que, nestes dois
jornais, a promoção de um produto é apresentada como dotada de saliência e de brilho e, por
conseguinte, como carregada de emotividade e de proximidade do leitor; naquele, a promoção
é mostrada com neutralidade aparente e distanciada do leitor, ou seja, menos importante se
comparada aos demais jornais.
Em se tratando do logotipo, observa-se que o “P” em vermelho figura com ímpeto e com
imponência, parecendo mais próximo e tangível ao leitor, captando-lhe a atenção em primeiro
lugar. O emprego da cor vermelha saturada na composição visual do logotipo do jornal pode,
ainda, associá-lo a um posicionamento ideológico libertário e de contestação política, haja
vista a associação histórica desta cor com os partidos revolucionários de esquerda (HELLER,
2007). Paralelamente, o nome do jornal (“Público”), disposto em sentido vertical e na
tonalidade branca, parece equilibrar e suavizar os estímulos incitados pelo vermelho do “P”.
Em termos de temperatura, na composição da primeira página do Público,
especialmente no cabeçalho da página, há uma tendência para o uso das cores quentes, tais
como vermelho e amarelo, associando o jornal ao calor, à vivacidade e ao primeiro plano.
No entanto, cabe sublinhar o fato de que as chamadas acompanhadas por grandes fotografias
não apresentam altos teores de saturação de cores e, assim, podem não captar, de imediato,
a atenção dos seus leitores.
Quanto à escala de modulação, observa-se a prevalência no topo da página de baixa
modalidade naturalística na apresentação dos eventos reportados – de âmbito nacional e/ou
internacional e de interesse público para a sociedade portuguesa e/ou mundial –, por meio da
apresentação de participantes desprovidos de contextualização ou de imagens mais gerais e/
ou sem precisão de detalhes. Em contrapartida, no que tange às chamadas com fotos grandes
em destaque, com temáticas pertencentes a variados âmbitos, tais como política, cultura ou
conflitos internacionais, verifica-se o uso de alta modalidade naturalística em virtude do
detalhamento na apresentação dos participantes e do cenário, sob condições específicas de
iluminação, de foco e de perspectiva, proporcionando, ao leitor, a percepção mais realista e
verídica dos acontecimentos.
No que concerne aos recursos de diferenciação, a primeira página do Público pode
ser caracterizada como equilibrada e harmônica, dotada de um teor regular de diferenciação
e permeada por tênues rimas visuais entre as chamadas. Na seção superior da página, a
rima visual entre as chamadas se dá por meio dos antetítulos em vermelho e dos títulos em
alaranjado. Em função dos efeitos, da atratividade e do estímulo visual engendrados por
tais tonalidades quentes, pode-se inferir que o jornal parece conferir alto grau de saliência,
de originalidade e de importância às chamadas deste domínio, com frequência, de cariz
social, econômico, tecnológico, cultural, ecológico. Em relação a este domínio, cumpre
destacar, ainda, o papel importante desempenhado pela cor cinzenta, contribuindo para
atenuar as cores quentes empregadas, visto que é tida como uma cor de compensação.
Quanto aos demais espaços da página, a rima visual entre as chamadas é estabelecida por
meio da tonalidade alaranjada utilizada nos antetítulos das chamadas e do ponto vermelho
57
verificado no início do texto de cada uma das chamadas, atribuindo-lhes, assim, uma dose
sutil de relevância, de estímulo e de ineditismo.
Com relação à escala de pureza, pode-se verificar a coexistência entre o uso de cores
levemente híbridas, como é o caso das variações de laranja e de lilás, apontando para um
mundo de ideologias em transição, e de cores puras, como é o caso do vermelho presente
no logotipo do jornal, sugerindo sua essência e univocidade. Por fim, é possível perceber
também a configuração de rima visual entre as indicações de páginas e de seções pela
tonalidade acinzentada nelas empregada – provavelmente funcionando como um recurso
técnico de sumarização padronizada dos principais eventos reportados pelo jornal.
Os significados sociossemióticos das formas tipográficas
empregadas na primeira página do Diário de Notícias, no
Correio da Manhã e no Público
Diário de Notícias
A primeira página do Diário de Notícias pode ser caracterizada pelo emprego de três
tipos de fontes estruturalmente distintas, quais sejam, a gótica, a serifada e a sem serifas,
construindo, desse modo, significados ideacionais diferentes, híbridos, correlacionados ou, até
mesmo, contraditórios. As análises baseadas no sistema de formas tipográficas da edição do
Diário de Notícias de 23/2/2008 são apresentadas a seguir:
Figura 6 – O sistema de tipografia no Diário de Notícias de 23/2/2008.
58
Com relação ao logotipo do jornal, verifica-se a configuração da tipografia gótica, cujo
excesso de ligaduras e de conectividade entre as letras, bem como o peso visual decorrente
dos ornamentos enviesados da fonte resultam em dificuldades de legibilidade e associamse à escrita caligráfica. A curvatura angular das letras do logotipo pode também transmitir a
ideia de masculinidade ou de abrasividade e evidencia irregularidades através de uma aparente
distribuição aleatória de características específicas, tais como variações em tamanho, em peso,
em orientação e em inclinação.
Por ter sido utilizada na Europa em larga escala durante toda a Idade Média, o uso desta
letra no logotipo pode remeter à ideia de vínculo do jornal com o passado, de apelo à tradição
e, até mesmo, de posição conservadora (HEITLINGER, 2006). Ao assentar-se na tradição e na
antiguidade, a mensagem suscitada pelas letras góticas do logotipo do Diário de Notícias pode ser
lida, ainda, como “o jornal possui tradição há anos” ou “é digno de aprovação há muito tempo” ou,
em nível ideológico, “este veículo defende e/ou alia-se à manutenção do status quo político-social”.
Quanto aos títulos das demais chamadas, da grande reportagem do jornal, das chamadas
com imagem de destaque, da revista e das promoções, nota-se o uso da fonte sem serifa,
semelhante aos estilos Frutiger, Helvética e Myriad, originalmente criadas no final do século
XX. De modo geral, essas fontes oferecem excelente visibilidade em decorrência de sua
aparência funcional, suave e fluida, com formas harmônicas e racionalmente construídas
(HEITLINGER, 2006). Ressalte-se também que, no caso da grande reportagem, seus respectivos
antetítulos apresentam-se em itálico e, por isso, com tênue orientação para cima e inclinação
para a direita, transmitindo a sugestão de dinamismo e de estatuto elevado conferidos a esse
formato jornalístico.
Cumpre assinalar que o Diário de Notícias tende a recorrer às fontes com serifas,
nomeadamente a Times New Roman, a fim de representar os títulos das chamadas associadas
à política nacional e ao sistema judiciário, bem como todos os blocos de textos dispostos na
primeira página. Levando-se em conta que as fontes com serifas estão relacionadas com a
atividade intelectual e cultural dos indivíduos (HEITLINGER, 2006, p. 241), pode-se inferir
que o jornal parece evidenciar um dúbio posicionamento e/ou propósito comunicativo: se,
por um lado, o jornal usa uma tipografia que sugere tradição e conservadorismo, haja vista
o emprego de letras góticas na confecção do seu logotipo, por outro, a representação da
revista, de suas promoções e de grande parte dos títulos das chamadas figuram em formas
tipográficas similares devido ao uso de fonte sem serifas, sinalizando dinamismo, fluidez
e modernidade. Contudo, o jornal mostra-se também amparado pelos valores clássicos e
intelectuais pela semelhança tipográfica estabelecida com o uso da tipografia com serifas na
confecção dos textos das chamadas. Além disso, ao apresentar os títulos das chamadas sobre
a política nacional e o sistema judiciário por meio da tipografia com serifas, em uma relação
de similaridade tipográfica, o Diário de Notícias parece, em termos interpessoais, sugerir tais
eventos ao leitor como dotados de mais poder, de mais prestígio e de mais seriedade.
Para além da rima tipográfica, pode-se verificar, em termos de significados textuais, a
configuração de espaços em branco e uma orientação harmoniosa e precisa entre as letras e
as chamadas dispostas na página, sugerindo equilíbrio, regularidade e estabilidade. Em linhas
gerais, é possível notar um equilíbrio entre a condensação e a expansão entre os tipos gráficos,
embora a página apresente uma quantidade significativa de conteúdo. Isso pode ensejar, no
59
nível interpessoal, que a página proporciona, ao leitor, certo espaço para “respirar” e maior
fluidez para a leitura das informações da página.
Cabe ainda apontar para a predominância, na página, de uma tipografia de formas
arredondadas e circulares, bem como o teor considerável de negrito empregado nos títulos
das chamadas afiguradas na página. Tais características possuem um potencial de significados
ideacionais: no primeiro caso, os aspectos indicados estão fundamentados na experiência
ocidental de produzir formas arredondadas, que demandam um controle de movimento mais
gradual e fluido, proporcionando, ao leitor, a sensação de conforto e de tranquilidade. No
segundo caso, tende a sugerir a asserção e a substancialidade das informações.
Correio da Manhã
Em se tratando da primeira página do Correio da Manhã, é possível verificar, tanto nas
chamadas jornalísticas, quanto nos anúncios promocionais, a predominância de uma tipografia
ausente de serifas, similar às formas da fonte Helvética, conforme demonstram as análises baseadas
no sistema de formas tipográficas da primeira página do Correio da Manhã indicada abaixo:
Figura 7 – O sistema de tipografia no Correio da Manhã de 23/2/2008.
Nesse sentido, os tipos gráficos empregados no layout e no logotipo do jornal em questão
podem ser caracterizados como comerciais, funcionais, fluidos e modernos (HEITLINGER,
2006). A carga excessiva de negrito utilizada nas chamadas da primeira página resulta no
aumento do peso visual e, consequentemente, no aumento da saliência, o que faz a página
parecer excessivamente saturada de informações. Ideacionalmente, o excesso de negrito pode
significar, de maneira positiva, coragem e ousadia e, de modo negativo, falta de reflexão.
60
Cabe comentar, ainda, sobre o peso visual e os efeitos sugeridos pelo uso da caixa alta
nos títulos de maior destaque na página, nos antetítulos das chamadas, na revista Vidas e nas
promoções. No nível interpessoal, o jornal parece, por um lado, alertar e impactar o leitor
para as notícias de teor problemático e também relacionadas a acusações, a investigações
e a punições. Por outro lado, o jornal tende a atrair a atenção do leitor para as chamadas
jornalísticas e, ao mesmo tempo, à revista e às promoções figuradas no cabeçalho que, por
estarem presentes neste domínio, são dotadas, inclusive, de maiores prestígio e valor.
Em termos de expansão, prevalece uma disposição tipográfica próxima e condensada
entre as letras, parecendo fazer uso máximo de um espaço limitado, reforçando a ideia de
saturação de informações e de peso visual da página. Além disso, os tipos gráficos condensados
e o peso visual acentuado podem ser tomados como dispostos em espaços exíguos, restringindo
o movimento do olhar e o ato de reflexão do leitor.
No que diz respeito à orientação dos tipos gráficos figurados na primeira página do
Correio da Manhã, observa-se a predominância de letras estendidas na direção vertical, o
que pode sugerir ao leitor agilidade, instabilidade e, também, falta de espaço. Em relação ao
logotipo, pode-se notar certa orientação horizontal por ser relativamente achatado, podendo
sugerir preguiça, inércia e autossatisfação.
Além da orientação vertical dos tipos gráficos da página, pode-se perceber a configuração
geral de um tipo de inclinação ereta, cujos significados potenciais podem sugerir mecanicismo,
impessoalidade e produção em massa, correspondendo, assim, aos conceitos sugeridos pela
estrutura das formas da tipografia sem serifas adotada pelo jornal.
A desconexão externa prevalece entre as formas e o tamanho das letras, sobretudo, pelo
uso de tipografia desprovida de serifas, sugerindo uma ideia de atomização e de irregularidade
entre os elementos informacionais dispostos na primeira página do jornal. Exceção a isso é
a conexão estabelecida entre as letras do logotipo do jornal Correio da Manhã, haja vista
a interposição e o alto grau de proximidade entre as letras, o que pode apontar para uma
identidade integrada, porém, dotada de certa informalidade. Paralelamente, a curvatura
arredondada e circular das letras, bem como o prolongamento angular do segundo “R” da
palavra Correio, sugerem o logotipo como orgânico, pessoal e informal, sobretudo, em função
do considerável grau de conectividade entre as letras.
Cumpre sublinhar, ainda, a configuração de semelhanças tipográficas entre as informações
promocionais/publicitárias e as jornalísticas pela similaridade estabelecida pelas formas das
letras sem serifas, cujo significado potencial está diretamente ligado à era industrial e à lógica
comercial. Nesse sentido, o Correio da Manhã parece representar gêneros de caráter publicitário
ou promocional – que, teoricamente, deveriam ocupar uma posição secundária e diferenciada em
relação às notícias – com o mesmo valor das chamadas eminentemente jornalísticas.
61
Público
O layout da primeira página do Público parece ter uma identidade visual consideravelmente
demarcada, sobretudo, devido à escolha da fonte tipográfica Times New Roman, bem como
pela expressividade do logotipo do jornal. Ao fazer o uso praticamente integral desse tipo de
letra, o Público enseja-se como um jornal voltado para eventos e acontecimentos de cunho
intelectual e cultural, requerendo, desse modo, um considerável exercício crítico e reflexivo dos
seus leitores. Além disso, a tipografia regular, dotada de expansão mediana entre as letras, com
pouca inclinação e contraste, representa os eventos da página de maneira coerente, harmônica
e padronizada. Paralelamente, no que diz respeito à curvatura, as formas arredondadas e fluidas
da fonte Times New Roman podem acalmar o leitor, transmitindo a sensação de suavidade e
de organicidade.
A representação tipográfica referente à oferta do livro Os lobos também merece ser
assinalada por conta do uso de uma fonte semelhante ao estilo Courier ─ também pertencente à
família das fontes Times ─, cujo significado ideacional remete à escrita das antigas máquinas de
escrever, além de propiciar, ao leitor, boa legibilidade devido à força das hastes de suas letras.
Desse modo, o livro é promovido pelo jornal com valor e com visibilidade, resvalando em
conceitos que transmitem significados de vitalidade, de impacto, de estabilidade e de massividade.
Cabe salientar que, nas páginas analisadas do Público, o peso visual atribuído às
informações constrói significados de âmbito ideacional e interpessoal. Desta perspectiva, o
grau acentuado de negrito utilizado no “P” do logotipo do jornal pode sugerir, ideacionalmente,
ousadia, altivez, asserção, solidez e substancialidade. Ademais, a orientação vertical e voltada
para cima da informação textual “Público”, configurada no logotipo, pode sinalizar agilidade,
bem como busca de aspiração ou de perfeição. Tais significados ideacionais tendem, no nível
interpessoal, influenciar positivamente as atitudes do leitor frente ao jornal.
Do mesmo modo, eventos de cariz social, econômico, político e cultural, dotados
de interesse público e social, também recebem elevada carga de negrito, o que os faz mais
assertivos e substanciais. Em consequência disso, acabam orientando o interesse dos leitores a
fim de valorizar e de problematizar informações com tais temáticas e enfoques, na maioria das
vezes, de interesse na esfera pública.
Vale ressaltar que as chamadas situadas no cabeçalho do Público são, em sua totalidade,
configuradas com o uso do negrito, habituando os leitores a valorizar e a privilegiar a
diversidade de informações de relevância social e cultural. Em menor grau, pode-se também
notar uma considerável carga de peso expressa nos antetítulos das chamadas presentes no
restante da página, estimulando o leitor a prestar atenção em todas as chamadas apresentadas
pela página.
A conectividade regular entre as letras predomina na primeira página do Público não
apenas por conta das semelhanças das formas e dos tamanhos dos blocos de textos, mas também
da rima tipográfica estabelecida entre as chamadas jornalísticas em função do emprego da
fonte Times New Roman, cuja conexão externa entre as letras serifadas pode sugerir, ainda,
plenitude e integração entre as informações apresentadas na página – o que reforça, mais uma
vez, a identidade, a coerência e a padronização do jornal.
A seguir, são apresentadas as análises baseadas no sistema de formas tipográficas da
primeira página da edição do Público de 23/2/2008:
62
Figura 8 – O sistema de tipografia no Público de 23/2/2008.
Comentários finais
Neste trabalho, pretendeu-se mostrar as possíveis contribuições das cores e da tipografia
para a construção de significados sociossemióticos, bem como testar a aplicabilidade das
categorias apresentadas por meio de um breve estudo de caso com base na análise do layout da
primeira página dos jornais portugueses de maior representatividade no país.
Em se tratando do Diário de Notícias, a análise das cores que constituem a sua primeira
página aponta para uma composição visual de policromia e de temperatura equilibradas, com
significativos graus de brilho, de saturação e de modulação destinados às reportagens, à revista
NS’ e aos produtos oferecidos pelo jornal. Ademais, os elevados níveis de brilho e de pureza
configurados pela cor branca das letras do logotipo do Diário de Notícias podem suscitar
limpeza e ordem por um lado e, por outro, elitismo e distanciamento. Quanto à tipografia
predominante, a análise aponta para a confluência de três estilos tipográficos distintos em
sua primeira página – o que revela também propósitos comunicativos distintos, tais como
informar com seriedade, informar por meio de estratégias publicitárias e informar pelo
apelo à tradição –, cujas formas e categorias tipográficas se mostram, entretanto, dotadas de
regularidade, propiciando boa legibilidade. Cabe assinalar, ainda, a ideia de dinamismo e de
movimento sugerida em seu cabeçalho em virtude da sutil inclinação para a direita das letras,
que constituem a chamada da grande reportagem e o logotipo do jornal.
Em relação ao Correio da Manhã, é possível notar a configuração de uma composição
visual de policromia e de saturação excessivas, com cores quentes e híbridas atribuídas à revista
Vidas, ao caderno Sport e às promoções e aos produtos oferecidos pelo jornal. Além disso,
percebe-se um significativo teor de modulação destinado, amiúde, a chamadas polêmicas ou
63
preocupantes. O logotipo do jornal, cujo nome aparece em branco e encontra-se imerso em um
quadro vermelho de elevada temperatura, engendra um equilíbrio dinâmico no qual oscilam
conceitos ligados à simplicidade versus excitação, força e indisciplina, respectivamente. De
maneira geral, a análise da forma tipográfica sobrepujante na primeira página do Correio da
Manhã aponta para um excessivo peso visual, com negritos utilizados de forma irregular e
aleatória em palavras, em títulos e em trechos de textos que, aliados ao significativo grau de
condensação entre as letras, fazem, da página, uma página caótica, informal e com pouco
estímulo à reflexão acerca dos eventos reportados. Cabe ainda mencionar que a curvatura
arredondada e a orientação horizontal das letras do logotipo do jornal transmitem uma sugestão
de conforto e de comodismo, por um lado. Por outro, o prolongamento apresentado por um dos
“R” pode ensejar a ideia de ludicidade ou de rebeldia.
A análise das cores que constituem a primeira página do Público, por sua vez, indica
uma composição visual de policromia e de temperatura regulares, com elevado grau de brilho,
temperatura e saturação conferidos aos cadernos e aos suplementos especiais do jornal,
valorizando o aprofundamento e a pluralidade da cobertura dos fatos e dos acontecimentos.
Em relação ao seu logotipo, cujo nome aparece em branco e encontra-se imerso em uma letra
“P” de cor vermelha com alta temperatura, verifica-se a criação de uma espécie de equilíbrio
dinâmico em que oscilam conceitos vinculados à ideia de ordem, de clareza e de elitismo
versus força e contestação, respectivamente. Paralelamente, a primeira página do Público
parece transmitir a sensação de equilíbrio, de sobriedade e de organização, tendo em conta
a regularidade das formas e do estilo tipográfico utilizado, possibilitando a leitura atenta e
agradável de suas notícias. Além disso, o elevado teor de peso atribuído ao cabeçalho da página
composto, sobretudo, por cadernos e por suplementos especiais, torna-lhes mais salientes e,
consequentemente, dotados de acentuada relevância. A orientação vertical do logotipo pode
apontar, ainda, para conceitos ligados à altivez e à busca de aspiração.
Tais resultados permitiram verificar e confirmar a aplicabilidade da grelha metodológica
ora apresentada, pois ela revelou aspectos importantes acerca do perfil e dos propósitos
comunicativos dos jornais analisados com base na análise dos significados sociais produzidos
pelas cores e pelas tipografias configuradas em seus layouts de primeira página.
Referências
CARVALHO, F. F. 2012. Semiótica social e imprensa: o layout da primeira página de jornais portugueses
sob o enfoque analítico da gramática visual. 286 páginas. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada,
Universidade de Lisboa, Portugal.
GRADDOL, D. The semiotic construction of a wine label. In: GOODMAN, S. and GRADDOL, D.
Redesigning english: new texts, new identities. Routledge: London and New York, 1997.
HALLIDAY, M.A.K. Language as social semiotic. London: Edward Arnold, 1978.
HEITLINGER, P. Tipografia: origens, formas e usos das letras. Lisboa: Dinalivro, 2006.
64
HELLER, E. A psicologia das cores: como actuam as cores sobre os sentimentos e a razão. Barcelona:
Editorial Gustavo Gili, 2007.
HODGE, R.; KRESS, G. Social semiotics. London: Polity Press, 1988.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London and New
York: Routledge, 1996.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Colour as a semiotic mode: notes for a grammar of colour. Visual
Communication, v.1, n. 3, p. 343-369, 2002.
VAN LEEUWEN, T. Introducing social semiotics. London and New York: Routledge, 2005.
VAN LEEUWEN, T. Towards a semiotics of typography. Information Design Journal, v.14, n. 2, p.139155, 2006.
VAN LEEUWEN, T. The language of colour. New York: Routledge, 2011.
Obras consultadas
JEWITT, C. The routledge handbook of multimodal analysis. London: Routledge, 2009.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Front pages: (the critical) analysis of newspaper layout. In: BELL, A.;
GARRET, P. (Org.) Approaches to media discourse. Oxford: Blackwell, 1998.
65
Os reflexos da mercantilização do ensino na
formação identitária do professor
Josenia Antunes Vieira1
Denise Silva Macedo 2
Este artigo pretende discutir as consequências trazidas pelas mudanças no discurso para a
formação de identidades dos profissionais da educação superior brasileira. As transformações
no discurso e as práticas discursivas provocaram alterações profundas na educação. A
tecnologização que nos cerca no dia a dia invade cada discurso, incluindo as instituições da
educação superior, em particular, as do ensino superior privado. Para começar a entender
essas mudanças no discurso, é pertinente iniciar com algumas considerações sobre o lugar
dos professores e de sua identidade, reflexo das novas práticas discursivas presentes no
discurso da educação superior no Brasil. Concluímos que as novas práticas discursivas,
inclusive as publicitárias, revelam a venda de cursos, cujo propósito principal é o de ser um
produto barato, de rápido consumo e de fácil circulação, afetando a identidade do professor,
que também se transforma em produto.
Palavras-chave: Mercantilização. Educação. Professor. Identidade. Tecnologização.
1
2
Atua em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Sociedade, na linha de pesquisa Discursos, Representações
Sociais e Textos, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento. Desde 1991, é professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Doutorado e do Mestrado, da Universidade de Brasília.
Atualmente, é Professor Associado. Em sua formação, realizou Pós-Doutoramento, pela Universidade de Lisboa,
(2001), patrocinado pelo CNPq. É Doutora em Linguística Aplicada pela PUC/RS (1986). Dirige, desde 2005,
o Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (CEPADIC), do qual é sócia fundadora. Autora de vários
livros, capítulos e artigos em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento. E-mail: josenia.unb@
gmail.com.
Doutoranda em Linguística pela UnB. Graduada em Letras/Inglês, Especialista em Revisão de Textos e Especialista
em Docência no Ensino Superior. Coordenadora de Língua Portuguesa e línguas estrangeiras no Instituto de Educação Heloisa Marinho. Professora de Leitura e Produção de Texto. Pesquisadora do Cepadic (Centro de Pesquisas
em Análise de Discurso Crítica). Editora Executiva da RP3 − Revista de Pesquisa em Políticas Públicas. Autora de
artigos sobre Análise de Discurso Crítica e Multimodalidade em periódicos nacionais. E-mail: denisesmacedo@
yahoo.com.br.
67
Introdução
Este artigo pretende discutir os reflexos da mercantilização do ensino no discurso e na
formação da identidade do professor da educação superior brasileira. Tal discussão dar-se-á à
luz das contribuições da Análise de Discurso Crítica (ADC), pois as transformações do discurso
e das práticas discursivas provocaram profundas alterações na educação e, consequentemente,
na identidade do professor. Para isso, contribuíram as mudanças no mundo e na atualidade
brasileira, cuja tecnologização dominante nos circunda no dia a dia e invade todo o discurso,
incluindo, aí, o discurso das instituições de ensino superior, em particular, as do ensino privado.
Com o intuito de compreendermos melhor o contexto dessas mudanças discursivas rumo
à mercantilização do ensino e vice-versa, ou seja, as mudanças sociais rumo à mercantilização
do discurso educacional e, inclusive, da identidade do professor, temos de refletir sobre essas
transformações frente à globalização na pós-modernidade. Nesse novo cenário de novas
práticas sociais e discursivas no âmbito educacional, cria-se a nova identidade do professor.
Esta investigação se preocupa com os discursos e seus reflexos e não com a realidade
profissional na qual trabalham os professores. Assim, o estudo busca, pela ADC, revelar os efeitos
da mercantilização da educação no Brasil contemporâneo na construção da identidade do professor.
A pós-modernidade como agente transformador do
discurso
Se a modernidade trouxe a máquina a vapor, revolucionando aquela época, a pósmodernidade, ou a modernidade tardia como prefere Giddens (1990), legou-nos o computador.
E o percurso do conhecimento, que fora lento e gradual em todo o período da modernidade,
explodiu celeremente na pós-modernidade. O progresso, que levou séculos para ser conquistado,
a sociedade da informação alcançou-o em menos de 30 anos. A compressão e a velocidade do
tempo no espaço são uma das grandes características da pós-modernidade. O tempo muda a
sua característica principal, mas se eterniza em sua efemeridade, como diz Castells (2002).
Mas o que é o pós-moderno? Featherstone (1990/1995) faz interessantíssima observação
ao afirmar que falar em pós-modernidade é sugerir uma interrupção da modernidade envolvendo
“a emergência de uma nova totalidade social, com seus princípios organizadores próprios e
distintos” (FEATHERSTONE, 1990/1995, p. 20). Ele retoma Baudrillard (1983), para quem
novas formas de tecnologia e de informação tornam-se fundamentais para a passagem de uma
ordem social produtiva, a modernidade, para uma reprodutiva, a pós-moderna, “na qual as
simulações e modelos cada vez mais constituem o mundo de modo a apagar a distinção entre
realidade e aparência” (FEATHERSTONE, 1990/1995, p. 20). Ele retoma também Lyotard
(1986), cujo interesse específico está nos efeitos da computadorização da sociedade. Tais
conceituações-chave – totalidade social, transformações na ordem socioeconômica, princípios
organizadores próprios e distintos, ordem reprodutiva e computadorização da sociedade –,
características destes tempos, refletem-se nos discursos deste mesmo tempo.
68
Todos esses avanços e mudanças na sociedade contemporânea trouxeram mudanças
fundamentais no discurso. Houve, sem dúvida nenhuma, e há forte tecnologização deste, que
não poderia ficar imune a todas essas mudanças discursivas. Se, de um lado, presenciamos as
mudanças no contexto da economia e da política internacional, de outro, a própria linguagem
registra, em forma de discurso e de práticas discursivas, o mundo circundante. Essa assertiva
nos leva a um conceito muito caro à Análise de Discurso Crítica (ADC) – ciência que investiga
o discurso definindo-o como um momento de toda prática social: a relação dialética entre
linguagem e sociedade. Afirmar que a relação entre discurso e sociedade é dialética é dizer:
ambos se moldam e são moldados um pelo outro. Por causa desse processo de mão dupla,
Halliday (1986) diz que o texto e, por extensão, o discurso, é o canal primário de transmissão
de cultura; ele age sobre e reflete o ambiente social, o que é possível porque esse mesmo
ambiente é uma construção social (MACEDO, 2013, p. 69).
Passaremos a examinar, portanto, como essas mudanças sociais têm influenciado o
discurso. Para isso, convém passar os olhos pela história recente da sociedade da informação,
que teve seu apogeu na década de 1970, sem nos esquecermos, no entanto, de que a década
de 1960 foi a antevéspera da grande explosão da sociedade informacional. Um bom exemplo
desse fenômeno é a nação americana que, no estado da Califórnia, abrigou a construção desde
o primeiro computador Apple até os ultramodernos e sofisticados computadores de hoje.
Sociedades da informação e discurso
O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) do Brasil (2000) reconhece que o
conhecimento se tornou hoje, mais do que no passado, um dos principais fatores de superação
de desigualdades em um país. Segundo essa instituição pública, a nova situação tem reflexos
no sistema econômico e político, uma vez que a soberania e a autonomia dos países passam
mundialmente por uma nova leitura. Para o MCT, a manutenção dessa soberania e dessa
autonomia, essencial a qualquer nação, depende nitidamente do conhecimento, da educação e
do desenvolvimento científico e tecnológico. Segundo o ministério, esse desenvolvimento da
chamada sociedade da informação está sendo gestado em diversos países.
Para o MCT, o advento da sociedade da informação é o fundamento de novas formas de
organização e de produção em escala mundial que redefine a inserção dos países na sociedade
internacional e no sistema econômico mundial. Por isso, esse ministério defende que, “na era
da Internet, o Governo deve promover a universalização do acesso e o uso crescente dos meios
eletrônicos de informação para gerar uma administração eficiente e transparente em todos os
níveis” (MCT, 2000, p. v). Dessa forma, para o ministério responsável pela tecnologia nacional.
Alavancar o desenvolvimento da Nova Economia em nosso País
compreende acelerar a introdução dessas tecnologias no ambiente
empresarial brasileiro, objetivo de um dos mais ambiciosos programas do
Avança Brasil: o Programa Sociedade da Informação (MCT, 2000, p. v).
69
A finalidade substantiva desse programa é
lançar os alicerces de um projeto estratégico, de amplitude nacional,
para integrar e coordenar o desenvolvimento e a utilização de serviços
avançados de computação, comunicação e informação e de suas aplicações
na sociedade. Essa iniciativa permitirá alavancar a pesquisa e a educação,
bem como assegurar que a economia brasileira tenha condições de competir
no mercado mundial (MCT, 2000, p. v).
De forma mais didática, o MCT explica que assistir à televisão, falar ao telefone,
movimentar a conta no terminal bancário ou pela internet, verificar multas de trânsito,
comprar discos, trocar mensagens com o outro lado do planeta, pesquisar e estudar são hoje
atividades cotidianas no mundo inteiro. Ao nos adaptamos a essas novidades, passamos a viver
na Sociedade da Informação, “uma nova era em que a informação flui a velocidades e em
quantidades há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e econômicos
fundamentais” (MCT, 2000, p. 3).
Portanto, ao falarmos de sociedade de informação, não podemos nos furtar de examinar
esse poder político que ensejou o desenvolvimento dessa mesma sociedade. Sabemos que o
Estado pode promover o desenvolvimento de uma nação, contê-lo ou até mesmo sustá-lo. Se os
Estados Unidos investiram em tecnologia na educação, a China antiga, a mãe do conhecimento
milenar, descobriu a pólvora, o papel e muitas outras coisas importantes. Contudo, mesmo
sendo a detentora de relevantes conhecimentos, paralisou no tempo, e a sua epopeia de
descobertas e de conquistas não se repetiu nas questões da tecnologia e da informação.
Afortunadamente, foi na Ásia que, sem contar com um percurso brilhante no mundo
dos descobrimentos e das invenções, o Japão ultrapassou a corrida tecnológica e hoje reina de
modo absoluto no mercado sofisticado da informação. O Estado esteve presente na história das
duas grandes potências. Na China, o Estado entravou o desenvolvimento nacional no âmbito
da informação e da tecnologia. Desse modo, a China pode ter muitas glórias passadas, as quais
devemos respeitar, mas, no campo dos avanços tecnológicos, o Japão, uma nação com destacada
liderança internacional no mundo da informação, deve todo o seu avanço ao Estado, que financiou
e incentivou as grandes pesquisas da área, como reporta muito bem Giddens (2002).
A América do Norte, mesmo não tendo o mesmo passado da China, legou-nos a internet.
Hoje, graças ao Departamento de Defesa americano, o mundo comunica-se em tempo real. Essa
conquista marcou a participação do Estado americano nas conquistas tecnológicas e ensejaram
o início das primeiras redes de comunicação mediadas por computador. Deve-se, à participação
indireta do Estado ao lado de grandes universidades da Califórnia, como Stanford e University of
California and Los Angeles (UCLA), e aos cérebros de professores e de alunos, dos think-tank (os
pensadores-tanques) do conhecimento de ponta dos inventos tecnológicos, o avanço da ciência
da informação, que garantiu, para os americanos, a liderança dessa sociedade informacional.
70
Esse âmbito mundial, inclusive o brasileiro, retrata a importância da política, da economia
e da tecnologia no surgimento das sociedades de informação. Nesse sentido, no paper Discurso
e Transição na Europa Central e Oriental (2010), Norman Fairclough, Professor Emérito do
Departamento de Linguística da Universidade de Lancaster e considerado o criador da Análise
de Discurso Crítica (ADC) lida também com o papel do discurso nessas sociedades. Com foco
na tentativa romena de construir sua economia com base no conhecimento e sua sociedade da
informação, Fairclough argumenta que a linguagem e o discurso no processo de transição na
Comunidade Econômica Europeia e em outros lugares do mundo são amplamente reconhecidos
nas pesquisas sociais. Para ele, processos de transição são constituidos por estratégias que
têm caráter parcialmente material, como vimos acima, e parcialmente discursivo: transições
incluem discursos que representam e que imaginam, que simplificam e que condensam
realidades econômicas, políticas, sociais e culturais complexas.
Assim, tendo as sociedades da informação como pano de fundo, importa observar como esse
cenário ou contexto (na linguagem hallidayana) altamente tecnologizado influencia um dos pilares
de qualquer sociedade: a educação e, em especial, a identidade do professor. Para tal observação,
lançamos mão dos conceitos faircloughianos (2001a) de tecnologização e de comodificação.
Tecnologização do discurso: uma nova tendência
No Capítulo 7 do livro Discurso e mudança social (2001a), Fairclough discute
a mudança de caráter internacional ou transnacional em progresso nas ordens do discurso
contemporâneas. Para tanto, ele aborda as tendências principais dessas ordens discursivas,
entre elas, a tecnologização e a comodificação do discurso.
Inicialmente, deve-se ter claro que toda alteração nas tecnologias de uma sociedade
implica construção hegemônica de novos discursos com novas ordens do discurso no âmbito
das instituições e das organizações públicas e privadas. Entretanto, essas mudanças nas
práticas discursivas não são pacíficas e, ao serem construídas, deixam um rastro de mudança.
O resultado mais visível dessas mudanças está no léxico do discurso, fenômeno nomeado por
Fairclough como tecnologização do discurso.
Tecnologização do discurso é a expressão de mudanças acentuadas na linguagem,
mudanças essas que refletem, diretamente, a vida em sociedade e a cultura de determinado
grupo social. Fairclough (2001a) a define como a constituição de sistemas de especialidades
cujos domínios são as práticas discursivas das instituições públicas (como vimos acima, no caso
do MEC) e a relaciona à tendência, das sociedades modernas, cada vez mais mercantilizadas,
ao controle cada vez maior da vida das pessoas, nas instâncias públicas e privadas.
A tecnologização do discurso, segundo Fairclough (1992), sintetiza, nos textos, as mudanças
nas práticas discursivas, combinando-se às mudanças nas práticas culturais. Essas mudanças
no discurso, especialmente no trato das questões universitárias, também foram estudadas por
Fairclough (2001b), que examinou a mercantilização do discurso nas universidades públicas
inglesas. Reporto aqui o que esse analista do discurso afirma sobre o assunto:
71
O caso que vou focalizar é a mercantilização das práticas
discursivas nas universidades britânicas contemporâneas; estou
me referindo à reestruturação da ordem do discurso no modelo
de organização de mercados mais centrais. Ao que parece, pode
parecer excessivamente introspectivo para um acadêmico analisar
universidades como exemplo de mercantilização, mas não acredito
que seja; as mudanças recentes que afetam a educação superior
são um caso típico e, sem dúvida, um bom exemplo de processos
de mercantilização e comodificação no setor público em geral
(FAIRCLOUGH, 2001b, p. 47).
Fairclough (2001b), nesse estudo, concentrou-se em alguns gêneros discursivos que são
usuais no discurso acadêmico, como os prospectos que são destinados à chamada de novos
alunos, os anúncios para cargos acadêmicos e um extrato de seu próprio curriculum vitae. Diz
ele ainda sobre o seu estudo:
A mercantilização das práticas discursivas das universidades é uma
dimensão da mercantilização da educação superior num sentido
mais geral. As instituições de educação superior vêm cada vez mais
operando (sob pressão do governo) como se fossem negócios comuns
competindo para vender seus bens de consumo aos consumidores
(FAIRCLOUGH, 2001b, p. 47).
Assim é que todas as alterações no segmento de uma cultura ficam registradas nas suas
práticas culturais e, sobretudo, nos seus eventos discursivos. A tecnologização do discurso
acontece em todas as áreas, mas é mais nítida nas instâncias do mercado, nas mídias e,
principalmente, no discurso governamental e institucional. Fairclough (2001b) também fala
sobre essas mudanças:
as instituições estão fazendo mudanças organizacionais importantes
que estão de acordo com um modo mercadológico de operação, tais
como a introdução de mercado ‘interno’ ao tornar os departamentos
financeiramente mais autônomos, o uso de abordagens ‘gerenciais’
em, por exemplo, avaliação e treinamento de pessoal, a introdução
de planejamento institucional, e a maior atenção que é dada ao
mercado. Tem havido também pressão para os acadêmicos verem
os alunos como ‘clientes’ e dedicarem mais energias ao ensino e
ao desenvolvimento de métodos de ensino centrados no aprendiz
(FAIRCLOUGH, 2001b, p.48, grifo nosso).
72
No Brasil, de igual modo, as mudanças nas práticas discursivas ocorrem de modo
natural, entretanto, essa práxis tem sido acelerada por meio de encontros, de cursos e de
reciclagens visando à uniformização desse discurso. Não é incomum treinamentos de todos
os funcionários de determinado ministério ou órgão do governo ou de empresa privada com o
propósito de uniformizar a prática discursiva e de buscar a eficiência no alcance e na realização
de objetivos e de metas. A pretensão com essas práticas é estabelecer um discurso comum para
atender o cliente, o consumidor final, o público-alvo (léxico tecnologizado das novas práticas
discursivas), buscando desempenho cada vez maior e melhor na interação com o sujeito desse
consumo.
Essas mudanças no discurso, com o intuito de homogeneizar as práticas discursivas, visam
à obtenção de melhores resultados nas transações comerciais e nas relações interpessoais. Todas
essas alterações são frutos da tecnologização do discurso. Como exemplo de tecnologização
do discurso, temos, no Brasil, a implantação da ISO 90003. Com esse programa de qualidade
total, as empresas governamentais e as privadas passaram por rigoroso treinamento com
características altamente homogeneizadoras, cujo propósito é o alinhamento com o mercado
internacional. As empresas públicas e as mistas estão empenhadas em conquistar novos
consumidores. Os usuários de qualquer serviço público passam a ser considerados clientes. O
discurso contempla e incorpora, em seu léxico, expressões típicas do mercado privado.
Fairclough (2001b) atribui, à tecnologia do discurso, cinco características:
1. o surgimento de peritos em tecnologia do discurso;
2. a mudança no policiamento das práticas discursivas;
3. a concepção e a projeção de técnicas discursivas descontextualizadas;
4. a simulação discursiva com fundamentos estratégicos;
5. a pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas.
Com relação ao surgimento de peritos em tecnologia do discurso, Fairclough (2001b)
declara que existem manipuladores e especialistas persuasivos em discurso. Para que os
especialistas de fato possam ser chamados de tecnólogos do discurso, devem apresentar
qualificações distintas, como a de serem ligados a determinadas áreas do saber que, por essa
razão, qualificam as suas intervenções, atribuindo-lhes veracidade, ao mesmo tempo em que
as legitimam pelo uso em seus espaços discursivos.
3
A expressão ISO 9000 designa um grupo de normas técnicas que estabelecem um modelo de gestão da qualidade
para organizações em geral, qualquer que seja o seu tipo ou dimensão. A sigla “ISO” refere-se à denominação de
igualdade, pois o sistema prevê que os produtos detenham o mesmo processo produtivo para todas as peças. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ISO_9000>. Acesso em: 21 set. 2013.
73
Esses especialistas são, em geral, cientistas sociais, peritos ou consultores com acesso
a informações privilegiadas. Também pela notoriedade de seu conhecimento, quando utilizam
rotineiramente certa prática discursiva, fazem escola, sendo as suas práticas discursivas
repetidas por outros sujeitos. O tecnólogo em discurso, pelo seu conhecimento na área, pode
dar inestimável contribuição, quer oferecendo cursos, seminários, entrevistas, quer prestando
consultorias sobre determinadas práticas discursivas, como o discurso político, publicitário,
midiático, entre outros.
A mudança no policiamento das práticas discursivas é outra característica da
tecnologização do discurso defendida por Fairclough (2001a). É verdade que toda prática
discursiva sofre policiamento constante. Hoje em dia, entretanto, esse policiamento se estendeu
para fora das instituições e se transformou em um policiamento transinstitucional. Os tecnólogos
do discurso exercem posição de policiamento particular, apoiando-se em seu conhecimento
científico e em seus títulos acadêmicos, dos quais lhes advém certo poder. Também o fato
de serem peritos externos garante-lhes certa isenção em seus julgamentos, conferindo-lhes
grande poder para interferir, formulando e reformulando as práticas discursivas de qualquer
instituição. Um bom exemplo desse procedimento é quando um especialista do discurso valida
técnicas de escrita muitas vezes descontextualizadas, mas passíveis de serem utilizadas em
qualquer contexto, como é o caso da configuração das propagandas das instituições superiores
que serão mostradas neste artigo.
Outra característica da tecnologização do discurso é a simulação discursiva com
fundamentos estratégicos, conforme defende Fairclough (2001a). A prática do simulacro é
largamente usada no discurso com o intuito de gerar certa aproximação entre os sujeitos. Desse
modo, a simpatia demonstrada pelo sujeito com maior poder na entrevista, por exemplo, é
o típico caso de simulação discursiva. Segundo Fairclough (1992, p. 265), a simulação e a
informalidade nas questões de simetria de poder institucional são amplamente usadas pelos
sujeitos que estão no poder. Tal prática discursiva gera um espaço para lutas de poder nesse
tipo de discurso, pois essa mudança não se sustenta nas práticas reais de conversação, gerando
certa contradição.
A pressão no sentido de uniformizar as práticas discursivas é outra marcante característica
da tecnologização do discurso. No momento em que a instituição homogeneíza suas práticas
discursivas, criando normas discursivas em diferentes campos institucionais, ela fortalece a ideia
de que a tecnologização do discurso ajuda a manter a coesão do discurso de poder institucional que
favorece os laços nos vínculos dialógicos de trabalho, além de facilitar e de acelerar a comunicação
como um todo. Consequentemente, se o sujeito desconhecer esse universo discursivo, se não o
dominar, certamente desfrutará de menor poder nas instâncias das lutas diárias.
A tecnologização do discurso, que se manifesta pela alteração das ordens do discurso,
implica intervenção consciente na prática discursiva. A respeito de como são constituídas e de
como se alteram as ordens de discurso, Fairclough (2001a) declara:
A ordem do discurso de um domínio social é a totalidade de suas
práticas discursivas, e as relações (de complementaridade, inclusão/
exclusão, oposição) entre elas – por exemplo nas escolas, as práticas
discursivas de sala de aula, da avaliação escrita, da área recreativa,
74
e da sala dos professores. E a ordem do discurso de uma sociedade
é o conjunto dessas ordens de discurso mais ‘locais’, e as relações
entre elas (p. ex., a relação entre a ordem do discurso da escola
e as de casa ou da vizinhança). As fronteiras e segregações entre
e dentro das ordens de discurso podem ser pontos de conflito e
contestação (BERNSTEIN,1990), abertas ao enfraquecimento ou
fortalecimento, como parte de conflitos e lutas sociais mais amplas
(FAIRCLOUGH, 2001a, p. 3).
Fairclough (1996, p. 76) afirma que a tecnologização do discurso ocorre em redes e em
práticas discursivas institucionais reunindo três domínios específicos: a pesquisa de práticas
discursivas de instituições e de locais de trabalho, a modelagem de práticas discursivas em
conformidade com metas e com objetivos institucionais e o treinamento dessas práticas
discursivas resultantes da modelagem. Desse modo, a tecnologização do discurso influencia
a construção de novos gêneros, pois a sua atuação passa pela prática social e pelas práticas
discursivas. As tecnologias do discurso atuam como uma forma de poder; como um recurso de
fiscalização, de policiamento e de dominação. Contudo, tais procedimentos podem ser aceitos
de modo passivo, ou recebidos com resistência ou, ainda, podem ser rejeitados.
A tecnologização do discurso tem provocado relevantes mudanças nos gêneros do
discurso. Entre eles, destacamos o gênero dos outdoors, nos quais encontramos mais de uma
linguagem constituindo-os como gênero híbrido. Além da imagem e das cores, a tecnologização
utiliza um modo especial de organizar a informação. Passa pela argumentação e pela persuasão,
tornando a publicidade, por meio de outdoors, um gênero de prestígio, dando suporte para o
discurso comodificado da educação que, dia a dia, torna-se mais naturalizado e lugar comum.
Nesse contexto, os cursos superiores privados, mais que os cursos estatais, têm amplo
arsenal publicitário para travar verdadeira batalha com a concorrência. O embate envolve
desde cartazes, de panfletos, de prospectos, de malas diretas, de outdoors até a luta travada
corpo a corpo na disputa pelos futuros alunos. Nesses casos, entram as entrevistas individuais,
as orientações vocacionais e as palestras nas escolas com terminalidade no segundo grau.
Um parêntese para a comodificação do discurso
Para Fairclough (2001a), comodificação refere-se ao processo pelo qual os domínios
e as instituições sociais cujo propósito não seja produzir mercadorias no sentido econômico
restrito são organizados e definidos em termos de distribuição e de consumo de mercadorias.
Para ilustrar esse conceito, Fairclough cita as referências aos setores das artes e da educação,
como indústrias destinadas a produzir, a comercializar e a vender mercadorias culturais e
educacionais a seus clientes ou consumidores. Fenômeno antigo, já observado por Marx, a
comodificação pode ser entendida como a colonização de ordens de discurso institucionais e
societárias por discursos associados à produção de mercadoria.
75
Para ilustrar essa tendência, Fairclough (2001a) pesquisa exemplos do discurso
educacional. Nessa investigação, ele identifica a lexicalização de cursos e de programas de
estudo como mercadorias ou como produtos que devem ser comercializados aos clientes. Assim,
o discurso educacional comodificado é dominado por um vocabulário de habilidades. Fairclough
(2001a) defende que tais expressões mercantilistas podem ter efeitos claros sobre, por exemplo,
a elaboração e o ensino de cursos, bem como sobre o esforço e o capital investido. Entre essas
palavras e expressões está o conceito de habilidade, que, por um lado, tem implicações ativas e
individualistas e, por outro, tem implicações normativas, passivas e objetificadoras. Ele adiciona
que a comodificação do discurso educacional é também uma questão de gênero de discurso,
uma vez que as ordens do discurso educacional são colonizadas pelo gênero publicitário. Como
resultado, proliferam tipos de texto que conjugam aspectos de publicidade com aspectos de
outros gêneros do discurso, como a mescla entre publicidade e regulamentos financeiros.
Para Fairclough (2001a), é importante desenvolver pesquisas sociais mais amplas dos
processos de mudança social e cultural que afetam as organizações contemporâneas. Entre elas,
ele se refere àquelas relacionadas à educação, alvo da polarização entre práticas tradicionais,
para ele, inaceitáveis, e novas práticas promocionais e mercantilizadas, igualmente inaceitáveis.
Nessa mesma linha de pensamento, Vieira (2009) discute as mudanças no discurso,
mais especificamente no que concerne à educação brasileira, com enfoque nas transformações
das práticas discursivas que ensejaram profundas alterações no discurso educacional. Ela
defende que, para tais transformações, contribuíram principalmente as mudanças no mundo
globalizado e a mercantilização da educação brasileira, além dos reflexos da tecnologização,
que invadiram o discurso das instituições de ensino superior, em particular, das instituições
privadas.
Lançando um rápido olhar sobre alguns aspectos da história da educação brasileira,
Vieira (2009) chega à tendência do ensino no Brasil contemporâneo, concluindo que, hoje,
empresários altamente competitivos buscam uma fatia do mercado promissor em que se
converteu a educação. Como resultado, ela aponta o recrutamento, no passado, inexistente, de
alunos, agora, promovido por eficientes e atraentes campanhas publicitárias. Para ela, o ensino
virou objeto de desejo do mercado capitalista. Com isso, o currículo esvaziou-se das disciplinas
formadoras do caráter e da cidadania, sobrepujadas pelas necessidades contemporâneas e pela
necessidade de cortar gastos. O lucro tornou-se a meta.
Já nessas primeiras conclusões de Vieira (2009), vemos se estabelecer um diálogo entre
o pensamento dessa linguista e o de Fairclough em três aspectos: a crescente mercantilização
da educação, a contribuição da tecnologia para essa mudança e a colonização das ordens do
discurso educacional pelo gênero publicitário, a que Vieira se refere como eficientes e atraentes
campanhas publicitárias.
A educação como bem de mercado
Para entendermos como a educação se transformou em bem de mercado, é essencial que
nos reportemos ao período pós-Segunda Grande Guerra, tempo em que os Estados Unidos,
sob os auspícios de um capitalismo extremamente exacerbado, conquistaram a hegemonia
76
mundial após o fim da Guerra Fria. Notadamente, o aumento desse poder marcante tem sido
nas áreas econômica, política, social e cultural, com ênfase na esfera educacional.
Nesse sentido, nossa convivência com poderes hegemônicos, como o dos americanos,
incita-nos a buscar uma identidade que nos diferencie nesse contexto global. Uma vez que não
possuímos a liderança nas áreas acima, devemos nos notabilizar pela diferença. Tememos,
porém, não possuir tempo suficiente para isso, tendo em vista que as mudanças em curso no
ensino superior deixam-nos apreensivos e soam como uma ameaça.
A educação, um dos pilares da ideologia liberal, com as discussões em andamento na
Organização Mundial de Comércio (OMC), incorre em grave perigo de transformar-se em
mais uma mercadoria no setor de serviços. Assim, a educação está na iminência de perder
o seu caráter de bem social para se transformar apenas em um serviço do setor terciário.
Como um legado legítimo, a educação terminou, no primeiro dia de 2005, considerando que
os países-membros da OMC concordaram com a inclusão de todos os serviços no acordo por
eles firmado, entrando aí a educação.
Passemos a considerar as consequências do que aconteceu. A equivalência da educação
a qualquer outro tipo de serviço poderá atentar contra a soberania e a cultura de muitos países,
inclusive, a do Brasil, além de significar um assalto comercial à educação superior brasileira,
haja vista que perderemos a propriedade da educação, particularmente a de nível superior e,
junto com ela, a identidade nacional, tendo em vista que estaremos receptivos à incorporação
de uma identidade transnacional.
Vale destacar que a formação de nível superior, própria da pós-modernidade,
do capitalismo tardio (FAIRCLOUGH, 2001a), constitui direito do cidadão. Contudo,
especialmente no caso brasileiro, é fundamental chamar a atenção para a reforma da educação
superior. Entendemos que existe atualmente, na educação, um processo perverso que está mais
preocupado com o aspecto mercantil e gerencial do ensino do que com o aluno propriamente
dito. Assim, sob o impacto de forte globalização e de mercantilização pela qual passa o ensino,
o Governo Federal tem demonstrado certa resistência para essas negociações com a OMC.
Diante desses fatos, a mudança de nossa identidade na educação superior brasileira
deve-se à adoção de novo paradigma mercantil que acentua a ênfase no lucro e no consumo de
mercado, como defende a essência do capitalismo. Isso traz preocupações de toda ordem, entre
elas, a de como lidar com essa nova realidade da educação no Brasil. A ameaça de perda de
traços da identidade particular em função de nova identidade transnacional, ao lado da proposta
de tratar a educação como um serviço é algo próximo que não pode ser desconsiderado e que
carece de medidas possíveis para o seu enfrentamento.
No artigo Diploma com sabor de Big Mac, Macedo, Perfeito e Silveira (2002) discutem,
no jornal Campus, uma das consequências dessas mudanças: a equivalência de diplomas, a
validação de títulos estrangeiros e a certificação de competências que passariam a obedecer
a legislações internacionais de importação e de exportação. Tal fato equivale a dizer que
qualquer universidade estrangeira poderia, em tese, oferecer seus cursos no Brasil.
Na matéria, os autores relatam como surgiu essa discussão. Segundo o assessor da
Universidade das Nações Unidas, Marcos A. Dias, ela surgiu em 1998, quando a Organização
77
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) promoveu, em Paris, uma
conferência mundial sobre o tema. Segundo ele, as 180 delegações presentes aprovaram o
documento da Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI, que definia a
educação como um serviço público baseado nas necessidades sociais. Assim, a OMC criava,
sigilosamente, uma proposta diferente da aprovada em Paris, defendendo a tese de que o
ensino superior é um serviço comercial.
O alcance dessa declaração é de que qualquer grupo ou instituição estrangeira poderá
vir para o Brasil e implantar um pacote educacional. O perigo imediato desse projeto é o
reconhecimento oficial da mercantilização da educação. Passaríamos a oferecer cursos com
logomarca de grandes e famosas instituições, os quais não estariam projetados com base em
diferenças multiculturais. O único ponto comum desses cursos seria o conhecimento. As
singularidades de cada cultura, suas necessidades e anseios, não seriam considerados.
Nesse contexto, os países em desenvolvimento estariam sujeitos a tornarem-se
verdadeiras fábricas de diplomas cuja qualidade dos cursos nem sempre seria a mais adequada
para a sua realidade. No Brasil, já estão ocorrendo essas investidas dos diplomas enlatados de
outros países. Os mais comuns têm sido os cursos oferecidos por algumas universidades da
Europa, como é o caso de algumas instituições de Portugal e da Espanha, principalmente nas
áreas de Direito e de Educação.
O Ministério de Educação e Cultura (MEC) reage dizendo que não validará tais diplomas,
mas, mesmo assim, inúmeros cursos de mestrado e de doutorado têm sido oferecidos por
instituições internacionais. Qual é a saída? Se essas ofertas tornarem-se legais, podemos fazer
muito pouco no momento, mas, ainda assim, podemos buscar respaldo na própria lei. Cremos
que, se leis internacionais, baseadas em leis de reciprocidade, regulam tais ofertas, podemos
também oferecer cursos lá fora. Além disso, resta-nos também a alternativa de levar a sério a
revalidação desses cursos para que não sejam reconhecidos títulos de doutores e de mestres
que, pelas facilidades, validem a incompetência e o despreparo.
Nesse sentido, vale ainda mencionar que muitos países da América Latina, entre eles, o
Brasil, desenvolveram, nas últimas décadas, cursos de pós-graduação altamente especializados
e bem-estruturados que em nada ficam a dever a programas internacionais de pós-graduação.
Ao contrário, atendem com mais especificidade às nossas necessidades locais e regionais.
Assim, de modo consciente, devemos reagir a essa usurpação dos nossos direitos na educação
superior.
Enquanto as universidades federais pouco fazem no sentido de coibir essas mudanças na
educação superior, as universidades privadas esbanjam nova cara em propagandas extremamente
agressivas, direcionadas ao recrutamento de novos alunos. Jamais vemos campanhas de
captação de alunos por parte das universidades federais, como cartazes, outdoors, panfletos
entre outros. Elas não carecem de mais alunos. O seu objetivo não é o lucro, nem aumentar
os dividendos. Abaixo, podemos ver um tímido movimento da Universidade de Brasília no
sentido de usar algum recurso midiático. Esta imagem consta do site institucional da UnB, no
link Estude na UnB:
78
Fonte: UnB, 2013.
Em contrapartida, as instituições particulares gastam expressivas somas de seus
orçamentos para atrair cada vez mais alunos para os seus cursos. A caça a clientes (alunos)
tem sido intensa. As instituições privadas não medem esforços para alcançar esse propósito.
A competição em torno da inovação e do diferencial no ensino é traduzida por campanhas
desenvolvidas nos jornais, nas ruas e, principalmente, na interação face a face.
Fonte: UNICEUB, 2013.
79
Um exemplo emblemático (embora com foco no ensino básico, e não no superior)
dessa penetração estrangeira por meio de logomarcas de grandes e famosas instituições
globais, e não locais, é o sistema Uno Internacional. Esse sistema, que se situa como parte
do Grupo Santilhana, descreve-se como um sistema integrado por um conjunto de empresas
que desenvolvem suas atividades na área de educação e promete oferecer aos países latinoamericanos soluções inovadoras para a educação do século XXI (UNO, 2013). Esse sistema
tem apoio do Prisa (Promotora de Informações S.A), cujos acionistas são, entre muitos outros,
o Banco Santander e a BBVA Bolsa. Como multimarcas parceiras desse sistema, chamados
“nossos aliados” estão a Apple, a organização não governamental WWF, os canais de TV
Discovery Kids, Animal Planet, entre outros, em sua maioria, americanos.
Fonte: UNO, 2013.
Nessa nova configuração das práticas discursivas, cabe o questionamento: o que está
acontecendo com as identidades profissionais dos acadêmicos e com as identidades coletivas
das instituições? O que se espera desse profissional em termos de autonomia, de competência,
de conhecimentos, de cultura? Já no ano de 1872, o jovem professor de Filologia Clássica
da Universidade da Basileia Friedrich Nietzsche sonhava com uma educação e, logo, com
professores que formassem e não apenas que profissionalizassem. Panfletário da adesão à
figura do mestre, Nietzsche (2003) alertava que uma voz (a do professor) que nos inspire
respeito e admiração pode nos guiar na via da verdadeira cultura. Contudo, estes tempos da
globalização, ao que tudo indica, deslocam o professor do lugar de referência para o lugar da
simples mediação entre aluno e conhecimento. As consequências dessa alternância discursiva
– guia/referência x mediador – é o que veremos a seguir.
A identidade do professor no novo quadro da educação
brasileira
Um dos pontos preponderantes para o enfrentamento de uma sociedade mediada deve ser
a preocupação com a construção da sua identidade. Segundo Thompson (2002), nas sociedades
modernas, a natureza do eu, do self, em um mundo mediado, torna-se mais reflexivo e aberto.
Concordamos com Thompson quando ele declara que
os indivíduos dependem cada vez mais dos próprios recursos para
construir uma identidade coerente para si mesmos. (...) o processo
do self é cada vez mais alimentado por materiais simbólicos
mediados, que se expandem num leque de opções disponíveis
e enfraquecem – sem destruir – a conexão entre a formação e o
80
local compartilhado. Esta conexão é enfraquecida à medida que
os indivíduos têm acesso a formas de informação e comunicação
originárias de fontes distantes, que lhes chegam através de redes de
comunicação mediada em crescente expansão (THOMPSON, 2002,
p.181).
Giddens (2002), por sua vez, diz que as mudanças nas sociedades modernas projetam
um novo tipo de self que gera outros tipos de intimidade. As formas mediadas de comunicação
aceleram essas transformações da intimidade. A interação mediada, por telefone ou por
internet, constrói e solidifica um novo self que tem de aprender a filtrar, nas avalanches de
informações mediadas, aquelas que efetivamente são significativas para si. Em suma: o homem
contemporâneo deve tornar-se mais reflexivo. Nesse sentido, vejamos como as identidades
dos profissionais da educação de instituições privadas de ensino superior, os professores, são
definidas e repensadas por eles mesmos. Para que possamos compreender essas mudanças,
é pertinente iniciarmos com algumas considerações sobre o lugar dos professores no novo
quadro da educação superior no Brasil.
O trabalho investigativo sobre a prática pedagógica de professores requer considerar, por
um lado, que a racionalidade do sistema educacional atual não existe como unidade isolada,
mas no âmbito dos centros escolares. Do mesmo modo, os professores não existem em sentido
geral, pois apenas nas comunidades educativas eles colaboram entre si, como membros de uma
comunidade na qual profissão e política têm vida concreta.
Por outro lado, a descentralização educativa obriga a parcelar o corpo docente. Cada
vez mais numerosas, as instituições particulares de ensino superior têm rompido as estruturas
de organização das associações profissionais como unidades reivindicatórias diante de sua
entrada cada vez maior do mercado na educação, o que tem roubado, subtraído, a capacidade
de racionalização dos professores para outorgá-la aos consumidores. Na ideologia do mercado,
quem manda não é a ciência, mas o gosto do consumidor, uma vez que o professor também se
converteu em produto determinado pelo mercado.
As antigas metáforas do professor intelectual, do professor definidor do currículo, do
professor autônomo, independente, político-crítico foram substituídas pela nova ordem do
discurso: a mercantilização do ensino. Com ela, o professor referência se torna professor
mediador, pais e alunos se tornam clientes, colaboradores pedagógicos são substituídos
por multimarcas internacionais, consultores viram coachs, conhecimento é substituído
por informação e, de formador, passa a ser utilitário. A situação atual do mercado provoca
mudanças no conceito de conhecimento que enseja novas práticas discursivas.
É preciso atentar para o fato de que essas metáforas são construídas, intencionalmente,
pelos construtores das políticas da educação e não pelos professores. Estes não têm uma
profissão em ascensão na sociedade atual, nem nos países mais desenvolvidos, nem naqueles
em desenvolvimento, grupo em que se inclui o Brasil (não é politicamente correto falar, na
atualidade, em povos subdesenvolvidos). Ao mesmo tempo em que a profissão de professor
não se encontra em ascensão, a mercantilização das práticas discursivas das universidades
alcança uma dimensão que toma conta de toda a educação superior. As faculdades privadas
81
têm, cada vez mais, operado sob a permanente pressão do governo e dos mercados, como se
fossem negócios comuns competindo para vender seus bens de consumo aos consumidores.
De acordo com Woodward (2000), a construção da identidade é construída tanto no
plano simbólico, como no social. A formação da identidade profissional do professor de
instituições privadas de ensino superior passa por modificações e por transformações globais.
A interação entre fatores econômicos e culturais provoca mudanças nos padrões de produção
e de consumo e traz uma convergência cultural que pode levar a identidades normatizadas e
partilhadas em diversas partes do mundo. Fairclough (2013) diz:
A globalização pode talvez ser melhor vista não apenas como o
desenvolvimento e a institucionalização de uma escala global, mas como a
mudança nas relações entre a escala global e outras escalas (por exemplo,
a escala local – cf. literatura sobre ‘glocalização’, como Robertson,
1992). Escalas de quê? Escalas de produção econômica e no consumo,
as escalas de governança, escalas de prática cultural, e assim por diante
(FAIRCLOUGH, 2013, p. 4)4.
É comum o discurso de que “você tem de ser o melhor produto”. No caso dos professores,
estes têm de esforçar para se tornar semelhante a determinados produtos e marcas para que
possam ser vendido. Ser professor hoje requer uma identidade adestrada para se conformar
às exigências da empresa e do mercado em que atua. O bom professor, nesse contexto, não
deve ser crítico, não deve pensar, deve, sim, ser como um funcionário de uma lanchonete de
fast-food; deve ser apenas simpático, dar sempre razão para o cliente; deve saber o número e a
cor do produto pedido. Em contrapartida, o professor que passar disso está fora do padrão da
instituição superior e terá de ser demitido.
De igual modo, no anúncio do IESB, instituição privada de ensino superior da cidade
de Brasília, entre os serviços a serem oferecidos pela instituição à sua clientela (novos alunos)
estão “os melhores: mestres, doutores, ministros e grandes referências”, todos alinhados na
mesma escala de importância da “infraestrutura completa”, o que confirma a nova metáfora:
a do professor produto.
4
82
Globalization can perhaps best be seen not just as the development and institutionalization of a global scale,
but change in the relations between the global scale and other scales (eg the local scale – cf literature on ‘glocalization’ such as Robertson 1992). Scales of what? Scales of economic production and consumption, scales of
governance, scales of cultural practice, and so forth.
Fonte: IESB, 2013
83
Outro anúncio que segue a mesma tendência é o da Faculdade Icesp, que oferece
“estrutura específica” e “professores altamente qualificados”:
Fonte: ICESP, 2013.
A tecnologização do discurso segue a tendência do discurso de alguns especialistas ou
tecnólogos e não se importa de romper a tradição discursiva. De certo modo, confronta-se
com a prática social. Na verdade, a práxis discursiva está representada nas práticas sociais e,
quando ela ocorre, a prática social é desprezada em função das mudanças pretendidas.
O que queremos dizer é que a tecnologização do discurso intervém na prática social,
pensando no consumo e no consumidor final, confrontando-se com a prática social e com a
cultura, alterando-a. Em verdade, a tecnologização age como rolo compressor, escondendo
valores, lutas de poder, assim como a verdadeira simetria e a dissimetria das relações de poder
presentes no discurso. Sob essas influências, as identidades dos profissionais da educação
passam por modificações, pois, ao lado do fenômeno da tecnologização do discurso, temos a
forte mercantilização do ensino, na qual temos o aluno como consumidor final e o professor
como parte dos serviços a serem oferecidos a esse consumidor final, como vimos nos exemplos
anteriores das propagandas de instituições privadas de ensino superior ao colocarem em pé de
igualdade seus “professores altamente qualificados” com as “instalações modernas”.
A formação das identidades profissionais: a ótica do
professor
As mudanças do mundo contemporâneo não têm desempenho solo; vêm acompanhadas
de profundas mudanças que nos induzem a uma nova leitura. Castells (2002) fala de uma nova
sociedade, a sociedade em rede. Vejamos o que ele diz:
84
As funções e os processos dominantes, na Era da Informação,
organizam-se, cada vez mais, em torno de redes e isto representa
o auge de uma tendência histórica. As redes constituem a nova
morfologia das sociedades e a difusão da sua lógica modifica
substancialmente as operações e os resultados dos processos de
produção, experiência, poder e cultura. Embora a organização
social, sob a forma de rede, tenha existido noutros tempos e lugares,
o novo paradigma da tecnologia de informação fornece as bases
materiais para a expansão da sua penetrabilidade em toda a estrutura
social (CASTELLS, 2002, p. 605).
O que Castells diz sobre o poder dessa nova sociedade informatizada é verdadeiro,
e a instância em que essa presença é mais palpável é no discurso, o qual é perpassado por
toda a modificação lexical que o mundo novo da Era da Informação requer e registra com
prodigalidade nos eventos discursivos. Castells (2002, p. 607) diz que a morfologia da rede é
também uma fonte extraordinária de reorganização das relações de poder e declara:
Firmas de negócios e, cada vez mais, organizações e instituições,
organizam-se em redes de geometria variável cuja interação supera
as tradicionais diferenças entre empresas e pequenos negócios,
atravessando setores e espalhando-se por diferentes agrupamentos
geográficos de unidades econômicas. (...) essa evolução para as de
gestão e produção em rede não implica o fim do capitalismo. A sociedade
em rede, nas suas várias expressões institucionais é, por enquanto, uma
sociedade capitalista. Para, além disso, pela primeira vez na história,
a forma capitalista de produção modela as relações sociais em todo o
planeta (CASTELLS, 2002, p. 607).
Nesse sentido procuramos nos depoimentos de professores de instituições privadas de
ensino superior suas impressões acerca de seu papel desempenhado dentro dessas instituições.
É possível perceber que todos os depoimentos registram, fortemente, a sensação desses
professores de se sentirem como uma mercadoria que faz parte do pacote. A busca pela
titulação já não representa crescimento pessoal e profissional, mas sobrevivência financeira.
Também se revelam exigências acerca do comportamento que os docentes devem apresentar
em relação aos alunos, quais os critérios aplicados pela instituição para considerar o professor
um bom profissional e quais procedimentos caracterizam as práticas em sala de aula.
85
Depoimento 1
A relação do professor com a instituição de ensino superior é bastante
delicada em alguns pontos. Primeiramente, o professor é considerado bom
quando não causa problemas, ou seja, quando tem ‘jogo de cintura’ para não
causar problemas para os alunos e, consequentemente, para a instituição.
Não causar problemas é não ser excessivamente rígido ou exigente, não
ser inflexível com relação aos problemas do aluno (faltas, dificuldades
na entrega de trabalhos, baixo rendimento e outros) e não levar suas
dificuldades com os alunos para a instituição, mas resolvê-las. Esses pontos
são indireta e recorrentemente mencionados em reuniões e em trabalhos
coletivos, para que fique claro para o docente como deve proceder. Quando
o professor corresponde a essa expectativa, ele é bem-visto e considerado
um bom profissional. Ao contrário, se não corresponde a esses aspectos, é
malvisto e pouco recomendado (informação verbal)5.
Depoimento 2
Não sou sentimental, mas me deu vontade de contar uma história: comecei
a dar em aulas [em instituições particulares] em 1992, assim que terminei
minha graduação na UnB. Todas as esperanças e anseios de um jovem
professor de 22 anos. Logo, porém, percebi que minha euforia era barrada
pelo descaso de empresas que viam a educação como um negócio e que
tratavam o professor como um qualquer. Naquela época, após ficar sem
receber meu salário por alguns meses, decidi que iria me preparar para não
ser tratado com aquele descaso e, então, entrei para o mestrado na UnB
em 1994, passando em primeiro lugar no concurso. Sempre dando aula,
terminei o mestrado com louvor. Logo depois aumentei minha carga em
cursinhos pré-vestibulares e passei no concurso da Fundação Educacional
do DF-FEDF, mas veio de novo o problema. Alguns cursinhos não pagavam,
atrasavam. Ninguém fazia nada, e a gente ia se contentando com o descaso.
Decidi então deixar de dar aulas. Fui trabalhar no Banco Mundial com
educação, mas não aguentei um ano e fiz concurso para professor substituto
da UnB e voltei a dar aula. Lá fiquei por dois anos e, quando saí, já estava
no doutorado na UFRJ, buscando criar uma situação em que meu trabalho
fosse reconhecido e respeitado. Hoje, depois de quatro anos de doutorado
(estou terminando, tendo ele me custado um casamento, muito esforço para
trabalhar em Brasília em duas empresas e estudar no Rio bancando a ponte
área do meu bolso, o que me rendeu uma dívida com bancos que pago até
hoje), de novo alguém me diz que eu não mereço respeito e que não devo
ser pago por meu trabalho. Cansei (informação verbal)6.
5
6
86
Entrevista concedida em: março de 2004.
Entrevista concedida em: março de 2004.
Depoimento 3
Sou professor de Língua Portuguesa em uma instituição de ensino superior
há treze anos, e isso tem sido uma luta titânica por vários fatores. Tenho
recebido muitos alunos com problemas de alfabetização. Na sua grande
maioria, não são letrados formalmente, pois leem, mas não sabem o
que leem ou leram, não discutem, não aplicam, não extrapolam às suas
vidas. Apresentam-se com um discurso naturalizado – pela sociedade
e pela escola – sobre o que é estudar a Língua Portuguesa. Percebe-se
baixa autoestima em relação ao próprio idioma. Tenho questionado a
política governamental para o ensino de Língua Portuguesa, os conteúdos
programáticos de instituições dos ensinos fundamental, médio e superior,
os conteúdos que me foram [e ainda] são passados, o que ensino e até
minha postura como educador. E me pergunto sempre – apesar de algumas
respostas terem sido delineadas anteriormente – o que terá acontecido a
esse estudante, que cursou, no mínimo, onze anos de Língua Portuguesa
padrão e ainda não tem domínio da modalidade prestigiada da linguagem,
já que a escola está aí para ensiná-la. Tenho pensado em resolver essa
deficiência dos discentes que se me apresentam, vindos de um vestibular
que se aplica para constar, mas, na realidade, muitas instituições privadas
– que em Brasília já passam de 70 – querem é ver as salas cheias, dentro
de uma concorrência acirrada por alunos, e dinheiro, e entram em uma
produção em série de profissionais, não necessariamente preparados. Essas
instituições mostram-se distantes dos problemas que abrigam e dos padrões
ideais, ou pelo menos próximos ao ideal, mostrando-se incapazes de lidar
com a adversidade e com a heterogeneidade dos fenômenos de língua que
perpassam o social (informação verbal)7.
Foucault (1971) fala que a vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão,
apoia-se em uma base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda
uma espessura de práticas como a pedagogia, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,
as sociedades de sábios outrora e os laboratórios hoje. Para ele, essa vontade de verdade,
apoiando-se em uma base e em uma distribuição institucionais, tende a exercer, sobre os
outros discursos, uma espécie de pressão e certo poder de constrangimento. Ele pensava na
maneira como as práticas econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente
até como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificarse em uma teoria das riquezas e da produção. Daí a inquietação de Foucault face àquilo que o
discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; em face dessa existência
transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence.
Inquietação por, na atividade discursiva, quotidiana e banal haver poderes e perigos que
sequer adivinhamos. O próprio Foucault pergunta “mas o que há assim de tão perigoso por
7
Entrevista concedida em: março de 2004.
87
as pessoas falarem, qual o perigo de os discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é
que está o perigo?” (FOUCAULT, 1971, p. 2). Ele não responde, mas supõe que “em toda a
sociedade, a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e
os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade”
(FOUCAULT, 1971, p. 2). Para Foucault, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio
poder de que procuramos nos assenhorar. Por isso, para ele,
A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao
qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a
qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua distribuição,
naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são
marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem
consigo (FOUCAULT, 1971, p. 12).
Por isso, apesar desse jogo de tensões que sustenta os discursos sociais dialeticamente,
defendemos que o professor deve se assenhorar do próprio discurso, do próprio papel na
sociedade e na formação de cidadãos críticos. Assim, ele poderá oferecer certa resistência,
como veremos a seguir.
É hora da resistência
Apesar de toda essa tendência à homogeneização cultural, a globalização pode incitar
a resistência e a reafirmação de identidades locais. Nesse sentido, a reportagem intitulada
Mcdonaldização do Ensino: universidades e escolas adotam o modelo da fast-imbecilização
trata da importação, por parte de universidades e de escolas brasileiras, dos processos de controle
operacional da empresa global McDonald: racionalizar para produzir resultados, os quais são
avaliados em termos de quantidade, e não de qualidade. Com base no livro de Ritzer, The
Mcdonaldization of society, Alcadipani e Bresler (2000), autores desse artigo, testemunham
como essa racionalização típica da sociedade norte-americana invadiu instituições brasileiras,
suportada pela busca do lucro e da manutenção das relações de poder. Nesse cenário, segundo
o artigo, os professores viram produto; os alunos viram clientes; os donos de cursinhos e de
escolas públicas viram empresários (alguns, ricos); os diretores e os reitores se orgulham de
gerenciar organizações educacionais como se fossem corporações; os ombudsmen entram nas
instituições educacionais, privilegiando as reclamações individuais e esvaziando as coletivas;
o vestibular se torna mera burocracia; os debates dão lugar a um consenso mudo; a ideia da
cartilha da alfabetização permanece em várias disciplinas; e os planos das áreas acadêmicas
são calcados em pontuações, o que aumenta a pressão para docentes e discentes publicarem.
88
Apesar desse cenário de emergência que os autores chamam de escolas-lanchonetes, esses
mesmos autores apontam uma esperança nos jovens que, mesmo estudando em instituições
formatadoras, demonstram capacidade de refletir e de criticar, resistindo à coisificação e à
quantificação das pessoas. Por isso, eles defendem que é essencial desmistificar a transmissão
da técnica, dando lugar a uma formação mais ampla, capaz de incentivar a relfexão, a crítica
e a invenção.
Portanto, é hora da resistência. Cursos de graduação e de pós-graduação devem ser
oferecidos com base em suas qualidades acadêmicas, como organização curricular e corpo
docente, programas de pesquisa, nível de publicações e prestígio institucional e não por serem
rápidos como café instantâneo, baratos, como feira popular e descompromissados como
um convite para um dia no parque. Ao falar em resistência, fazemos nossas as palavras de
Rajagopalan (2002), que, com propriedade, diz:
Não há sentido em falar em resistência sem se referir, no mesmo ato, a
forças coercitivas que, num dado momento histórico, estejam atuando
sobre um sujeito, acuando-o de forma cerrada com intuito de sufocálo, esmagá-lo ou, no mínimo, domesticá-lo ou neutralizá-lo. Isto é, a
resistência é sempre resistência a algo, via de regra uma força opressora
poderosa demais para ser repelida de uma só vez (RAJAGOPALAN,
2002, p. 204).
A questão da resistência desperta cada vez mais interesse na discussão da chamada
empowerment education, que trata da possibilidade de criar condições para que educadores que
atuam em situações marginais desenvolvam formas de resistência para o enfrentamento das
injustiças sociais a que os alunos estão sujeitos. Fairclough defende também essa resistência
nos seguintes termos:
Acredito que a análise de discurso é um recurso importante, embora
relativamente negligenciado, (…) a análise do discurso também tem a
capacidade de ser um recurso para aqueles engajados em lutas dentro
das instituições. Para muitos membros de instituições de educação
superior, por exemplo, as mudanças dramáticas da última década têm
sido profundamente alienantes; contudo sua capacidade de resistir a
elas tem sido enfraquecida por sua relutância em recorrer a práticas
e estruturas que têm sido amplamente criticadas pela esquerda e pela
direita e que tem sido o alvo da mudança (FAIRCLOUGH, 2001b, p.
69).
89
Entendemos que uma maneira saudável de resistência a essas nefastas mudanças no
discurso da educação seria procurar desenvolver condições favoráveis para esses sujeitos
que, fortalecidos pelo desenvolvimento de uma consciência crítica, estariam em condições
de competir por um espaço legítimo na sociedade. Estamos no início de novo milênio e no
meio de um turbilhão de mudanças. Nesse sentido, podemos falar de uma nova ordem do
discurso, a ordem do discurso das mídias – o poderoso discurso midiático. Quem não estiver
preparado criticamente para lidar com esses novos discursos não terá como opor resistência a
esses momentos críticos que estamos vivendo.
A Unesco, por meio da publicação A criança e a mídia: imagem, educação e participação,
organizada por Cecília Von Felitzen e Ulla Carlsson, traz excelente contribuição para a
discussão do preparo da criança para o enfrentamento da força das mídias, pois a informação
flui de forma cada vez mais livre, e a nova ordem possibilita que pessoas de todo o mundo
compartilhem sons e imagens. Para podermos lidar com todas essas mudanças no mundo da
informação, os sujeitos do discurso têm de estar preparados.
A esse respeito, Felitzen (1999) declara:
Naturalmente, a educação para a mídia e a participação das crianças
na mídia não são os únicos meios de criar um ambiente melhor para
a mídia e certamente não constituem o único meio de criar condições
sociais mais razoáveis para as crianças. Ao contrário, também são
necessários esforços importantes da parte da mídia - na forma de, por
exemplo, auto-regulamentação e produção de programas de rádio e
TV de alta qualidade, que satisfaçam as várias necessidades infantis
(FELITZEN, 1999, p. 20).
Kumar (2002, p.285), sobre a questão da educação para a mídia hoje, afirma:
A educação para a mídia ainda tem que se firmar como tema de
aprendizagem nos sistemas de educacionais formais tanto dos países
industrializados como dos não industrializados. As autoridades escolares
públicas e privadas, embora estejam preocupadas com o crescimento e
influência da mídia de massa, não vêem necessidade em sobrecarregar
os alunos com um novo assunto, cujo conteúdo e metodologia não se
encaixam nas práticas educativas tradicionais. As tentativas vigorosas
da UNESCO, por mais de uma década, para promover o assunto nos
vários níveis de educação, tiveram muito pouco sucesso, exceto alguns
países do Ocidente (especialmente Austrália, Grã- Bretanha e Canadá)
e na América Latina (KUMAR, 2002, p. 285).
90
Outra maneira de opormos resistência a esse discurso contrário à excelência da
educação em todas as instâncias do ensino fundamental ao ensino superior é preparamos um
currículo que permita um ensino que enseje o preparo do aluno para lidar com as mídias e com
a multimodalidade do discurso contemporâneo. Os sujeitos do discurso, quer adultos, quer
crianças, devem estar preparados para um mundo multimodal, povoado de imagens, de sons,
de movimentos, de gestos, para poderem desvendar discursos. Quem não souber lidar com
esse tipo de discurso estará em séria desvantagem, pois facilmente poderá ser manipulado por
toda sorte de informação que use recursos semióticos em discursos multimodais. A resistência
efetiva é saber interpretar criticamente a natureza desses novos discursos.
O que nos resta fazer com a emergente força da imagem no momento atual de nossa
história é voltarmo-nos para a educação como um meio legítimo de transformar as classes
populares em verdadeira massa crítica de nossa sociedade. Afinal, a efetiva e completa ação
cidadã deve passar pelo papel de desconstrutora da ação alienadora da imagem para uma
avaliação crítica de tudo o que vemos. Aprender a tratar com o excesso de informações do
mundo mediado das sociedades modernas é outro portentoso recurso de resistência.
Conclusão
Por fim, as publicidades apresentadas no artigo revelam que foram concebidas com o
propósito de vender imagens de cursos, cujo propósito principal é o de ser um produto barato,
de rápido consumo e de fácil circulação. A preocupação com a titulação dos docentes que
ministram tais cursos foi mencionada apenas para valorizar a oferta dos cursos, o que aponta
para uma nova identidade dos professores apenas mais uma mercadoria, um mero produto no
mundo do consumo. De igual modo, também não servem para a chamada de alunos-clientes
atributos como qualidade de ensino, grades curriculares especiais e contemporâneas que
contemplem as necessidades locais e que atendam à nossa cultura regional, ao mesmo tempo
em sintonia com o discurso global.
A discussão do tema não se esgota aqui e poderia ser ainda amplamente aprofundada,
mas, para os propósitos do artigo, entendemos que chamamos a atenção para o fato de que
a educação brasileira se tornou mais uma mercadoria na sociedade mediada do mundo
contemporâneo. Acreditamos que a profundidade, a relevância e a abrangência do assunto
possa provocar a atenção de outros pesquisadores.
Referências
ALCADIPANI, R; BRESLER R. Mcdonaldização do ensino: universidades e escolas adotam
o modelo da fast-imbecilização. Carta Capital.10 maio 2000. PDF.
BAUDRILLARD, J. Simulations. NY: Semiotext(e), 1983.
91
CASTELLS, M. A sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
FAIRCLOUGH, N. Technologisation of discourse. In: CALDAS-COULTHARD, C.R.;
COULTHARD, M. (Eds.). Texts and practices: readings in critical discourse analysis. London:
Routledge, 1996.
______. Discurso e mudança social. MAGALHÃES, I. (Coord., trad. téc. e prefácio do orig.
inglês Discourse and social change, 1992). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001a.
______. A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso público: as universidades.
In: MAGALHÃES, C. M. Reflexões sobre a análise crítica do discurso. (org.). Belo Horizonte:
FALE-UFMG, 2001b.
______. Analysing discourse: the critical study of language. 2. ed. UK: Pearson Education,
2010.
______. Critical discourse analysis in trans-disciplinary research on social change: transition,
re-scaling, poverty and social inclusion. Disponível em:<www.ling.lancs.ac.uk>. Acesso em:
27 ago. 2013.
FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. SIMÕES, J. A. (trad.). São
Paulo: Nobel S.A.,1990/1995.
FELITZEN, C. von. A criança e a mídia: imagem, educação, participação. CARLSSON, U;
FELITZEN, C. von. (org.) Cortez Editora: São Paulo, 1999.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Paris: Gallimard, 1971.
GIDDENS, A. The consequences of modernity. London: Polity Press, 1990.
______. Sociology. London: Polity Press, 2002.
HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic. UK: Edward Arnold, 1986.
ICESP. Cursos de graduação. Disponível em: <http://www.faculdadepromove.br/brasilia/
graduacao>. Acesso em: 27 ago. 2013.
IESB. Infraestrutura completa. Disponível em: <http://www.iesb.br/vestibular/sobre>. Acesso
em: 27 ago. 2013.
KUMAR K. J.O cenário da mídia na Índia. In: VON FEILITZEN, C.; CARLSSON, U. A
criança e a mídia: imagem, educação e participação. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
LYOTARD, J. F. O pós-moderno: the postmodern condition. Rio de Janeiro: José Olympio,
1986.
92
MACEDO, D. As contribuições da análise de discurso crítica e da multimodalidade à revisão
textual. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade
de Brasília. 2013.
MACEDO,G; PERFEITO,G; SILVEIRA,T. CAMPUS, n. 268, primeira quinzena de agosto,
2002.
MCT. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sociedade da informação no Brasil: livro verde.
TAKAHASHI, T (org.). Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000.
NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. SOBRINHO, N. C. de M. (trad.). Rio de Janeiro:
PUC/RJ; São Paulo: Loyola, 2003.
RAJAGOPALAN, K. Teorizando a resistência. In: GARCIA, D. H da S.; VIEIRA, J. A.
Análise do discurso percursos teóricos e metodológicos. Brasília: Oficina Editorial Instituto
de Letras e Editora Plano, 2002.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade uma teoria social da mídia. Petrópolis: Editora
Vozes, 2002.
UNB. Estude na UnB. Disponível em: <http://www.unb.br/estude_na_unb>. Acesso em: 27
ago. 2013.
UNICEUB. Campanha vestibular 2013 para o UniCEUB. Disponível em: <http://
cargocollective.com/gusthavocoelho/UNICEUB>. Acesso em: 4 ago. 2013.
UNO. Nuestros aliados. Disponível em: <http://www.uno-internacional.com/web/index.
html>. Acesso em: 27 ago. 2013.
VIEIRA, J. A. O discurso mercantilista do ensino brasileiro. In: VIEIRA, J. A. et al. (Org.).
Olhares em análise de discurso crítica. 2009. Disponível em: <http://www.cepadic.com/
CEPADIC_publicacoes.html. pdf>. Acesso em: 4 ago. 2013.
VON FEILITZEN, C.; CARLSSON, U. A criança e a mídia: imagem, educação e participação.
São Paulo: Cortez Editora, 2002.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
T. T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2000.
93
HEGEMONIA E INSURGÊNCIA NO DISCURSO
CINEMATOGRÁFICO:
O PENSAMENTO SOCIAL CRÍTICO
Dina Maria Martins Ferreira (UECE)1
Tibério Caminha Rocha (UECE)2
Este estudo tem por objetivo fomentar discussões sobre a importância do discurso
cinematográfico como prática social, haja vista os efeitos de sentido construídos na
sociedade. Nossa argumentação visa à desmistificação da supervalorização estética da
cinematografia em prol de sua avaliação crítica, já que não podemos negar o seu papel de
(re)produção de representações da sociedade, que, muitas vezes, naturalizam interpretações
de mundo; marcas ideológicas, partícipes do construto de sentidos, são, muitas vezes,
veículos alegóricos que camuflam as representações sociais que ali se manifestam, sejam
em seu roteiro, sejam em sua mise-en-scène. Nosso objeto em foco, o filme Clube da Luta
é, aqui, apresentado como um veículo de contestação do modelo de cultura do consumo
socialmente construído. A narrativa fílmica é analisada a partir da hipótese de que a ficção
está ao alcance da representação do cotidiano vivido e, como tal, uma prática social,
enquanto construção social da realidade. A trilha retórica e argumentativa se organiza em
torno de pressupostos conceituais de Adorno e Horkheimer (cf. ADORNO, 1987) sobre
a indústria cultural, aliados à visão crítica de Thompson (1995) a respeito dos meios de
comunicação de massa; teia em que se articulam os estudos da significação discursiva e
situacional propostos pela pragmática contemporânea.
Palavras-chave: indústria cultural; prática social; ideologia; representação social.
1
2
Pós-Doutorada pela Université Paris V, Sorbonne e pela Unicamp; membro da ABRALIN, ALED, GT ANPOLL
e CEAQ (Centre d’Études sur les Actuels et le Quotidient, da Université Paris V, Sorbonne); desenvolve estudos
na área de de Análise do Discurso Crítica, em Pragmática e Linguística Aplicada; autora do livro Políticas em
Linguagem: perspectivas pragmáticas (2006), Não pense, veja, o espetáculo da linguagem no palco do Fome Zero
(2006), Discurso Feminino e Identidade Social (2009, 2a. ed.), Imagens: o que fazem e significam (2010), entre
outros; dinaferreira@terra.com.br
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada /UECE; desenvolve pesquisas na área da
Análise do Discurso Crítica e da Pragmática, com ênfase em representação social e ideologias; tiberiocaminha@
gmail.com
95
Considerações iniciais
A partir de 1923, com a publicação do Manifesto das Sete Artes3 pelo teórico e crítico
de cinema italiano Ricciotto Canudo, o cinema passou a ser designado de “a sétima arte”,
por reunir em um todo os elementos básicos que constituem o corpo de cada uma das artes
precursoras, que se sujeitam a seguinte classificação: 1. Música (som), 2. Dança (movimento),
3. Pintura (cor), 4. Escultura (volume), 5. Teatro (representação) e 6. Literatura (palavra)
(Gimello-Mesplomb, 2011). O poder de historiar e registrar acontecimentos também
caracteriza o cinema como uma forma de arte, tornando-o parte irredutível do contexto social,
pois é aí que o conceito de arte é redefinido como um modo particular de prática ao lado da
produção, consumo, linguagem etc. A arte é, então, destituída de sua posição em um patamar
privilegiado, prerrogativa concedida anteriormente às classes abastadas, e restituída em um
lugar de cultura comum, ordinária, por intercambiar significados comuns, que rodeiam os
corredores do cotidiano da vida ordinária.
Dirigida por David Fincher em 1999, a adaptação para as telas do best-seller Clube da
Luta (1996), de Chuck Palahniuk, torna evidente a possibilidade de a cinematografia funcionar
como veículo de contestação de padrões preestabelecidos e de emulação de um pensamento
social crítico. A narrativa do filme Clube da Luta gira em torno de um trabalhador assalariado
anônimo de classe média incapaz de adequar-se tanto ao estilo americano de vida quanto à
cultura do capitalismo. Na tentativa de expurgar o desconforto que sente em relação ao mundo,
o protagonista decide experimentar a vida fora dos padrões considerados pelo senso comum
como normais, fundando um clube privado de lutas em parceria com o vendedor de sabonetes
anti-social Tyler Durden. Através de personagens complexos e de um roteiro com conteúdo
irônico e mordaz de difícil digestão, o filme instiga a audiência a pensar sobre o modelo de
sociedade consumista em que vivemos.
Percurso histórico-conceitual
Estabelecendo uma correspondência baseada em graus de semelhança, diferença e
relação entre o cinema e as outras artes, a cinematografia destaca-se por ter a capacidade
discursiva sincrética de agregar esferas codificadoras diversas, tais como imagem em
movimento (daí a categorização cinema, em grego skiné), fala (e legendas, quando é o caso),
som, tanto na esfera temporal quanto na espacial ‒ cuja forma de representação, muitas vezes,
reflete-se na experiência cotidiana. Porém, segundo Vernet (1995), a grandeza avaliativa de
tais paralelismos está na dialética entre o realismo cinematográfico e o realismo de outros
tantos modos de representação (outras artes), e não apenas em relação ao mundo real ‒ aí a
abordagem valorativa de uma sétima arte atribuída à indústria cinematográfica.
3
96
Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte de Canudo ocorreu em 1912, mas só foi publicado em 1923,
no entanto, Canudo já tinha publicado em Paris, 1911, o artigo “La naissance d’un sixième art. Essai sur le
cinématographe”.
Com o advento do Centro de Estudos Culturais Britânicos4, em Birmingham, os estudos
culturais, até então focados nas condições de que significados de âmbito social são produzidos
pela cultura, ganham novo fôlego, porquanto introduz no campo dos Estudos Culturais a teoria
do cinema: demonstrou-se que esta tinha interseções com metodologias procedidas de outras
disciplinas, tais como a semiótica, a psicanálise, a linguística e a antropologia, ampliando,
assim, o campo de pesquisa a respeito dos processos das práticas culturais. O próprio conceito
de cultura foi redefinido “como o processo que constrói o modo de vida de uma sociedade: seus
sistemas para produzir significado, sentido ou consciência, especialmente aqueles sistemas e
meios de representação que dão às imagens sua significação cultural” (TURNER, 1997, p. 48).
E sendo o cinema considerado um ‘produto’5 cultural, pode ser analisado como uma
estrutura complexa, cuja composição excede os limites impostos pela própria forma fílmica,
pondo sua construção ao alcance da representação – “o processo social de fazer com que imagens,
sons, signos, signifiquem algo” (Ibidem, idem). Neste sentido, a indústria cinematográfica passa
a ser considerada como um exercício de influências em instâncias sociais, uma vez que toda
representação é uma prática de significação que (re)produz cultura (HALL, 1997). O conteúdo
sociocultural da cinematografia, articulado por meio de um sistema de códigos semióticos e/
ou linguísticos, passa então a dar vazão a questionamentos voltados à representação, à (des)
construção de identidades, à produção ideológica do consumo e outros tantos .
No que tange a questões referentes à produção do consumo no discurso cinematográfico,
tal produção atua em um nível ideológico, inconsciente ou conscientemente, pois as práticas
sociais são motivadas por um tipo específico de interesse e subjetivação, ou seja, a relação entre
texto (discurso cinematográfico, no caso), sociedade e cultura está imbricada de considerações
ideológicas. Para que entendamos a prática cultural como efetiva em uma determinada
sociedade, é necessário também observá-la atuando em círculos invisíveis, naturalizados e
‘pseudo’ desinteressados, o que nos remete de novo ao modus operandi da ideologia. Daí
a dificuldade de dissociar cultura de ideologia, pois, mesmo que a esta não assuma forma
material ‘mostrada’, seus efeitos são perceptíveis nas manifestações culturais.
Circunscrevendo o cinema ao conceito de meio de comunicação de massa, no livro
Ideologia e Cultura Moderna (1995), Thompson chama a atenção para o sentido do termo
‘massa’. Segundo o autor,
(...) o termo “massa” não deve ser tomado em termos estritamente
quantitativos; o ponto importante sobre comunicação de massa não é que
um determinado número ou proporção de pessoas receba os produtos, mas
4
5
Em 1964, pesquisadores britânicos oficializam a criação do Centre for Contemporary Cultural Studies (hoje
conhecido como a disciplina Estudos Culturais), na Universidade de Birmingham, para investigar questões
culturais sob a perspectiva histórica, criando um novo campo de pesquisa sobre os fenômenos comunicacionais
em sociedade. No entanto, já havia trabalhos precursores, tais como E.P.Thompson (1963) The Making for the
English Working Class. Outro autor destacado desse centro é Stuart Hall (Representation: cultural representations
and signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage, 1997), que procurou mostrar a importância
do estudo da ideologia para se compreender a estrutura social de poder, sustentando que a comunicação social era
produtora e reprodutora de ideologias.
Usamos o termo produto entre aspas simples, para chamar a atenção que a noção de cultura não se estabelece
como um produto fixo e acabado em si mesmo, e sim por uma contínua prática social.
97
que os produtos estão, em princípio, disponíveis a uma pluralidade de
receptores (THOMPSON, 1995, p. 287).
No senso comum, ao nos referirmos às grandes audiências através do termo ‘massa’,
poder-se-ia estar sugerindo que o todo-massa seja constituído por aglomerações de indivíduos
passivos e indiferentes, ou seja, como se coletividade tivesse uma acepção fundamentalista,
senão essencialista e fixa. No entanto, Thompson (Ibidem) nos alerta sobre o fato de quão
ilusória é tal interpretação, pois ela cria a falsa consciência de que, mesmo que as mensagens
construídas/transmitidas pela indústria do cinema sejam acessíveis a um público relativamente
amplo, não existem audiências, sejam quais forem, particulares ou massivas, pequenas ou
especializadas, que não ocupem seus lugares em seus contextos sócio-históricos. O dito
todo-massa não anula a subjetividade da significação nem a capacidade de interação, ou seja,
o público interpreta sentidos e intenções construídas no discurso fílmico, em um processo
ativo: subjetiva a significação, integrando-a a outras esferas de atividade do cotidiano vivido.
Ilustrando algumas interações observadas pelos pesquisadores: no filme Clube da Luta,
espectadores ao final do filme comentam: Que filme ruim, violento! Por que tanto sangue?; no
filme Beleza Americana6, alguns sentem mal-estar, uns conscientemente por se refletirem
em um cotidiano de aparência burguesa, outros apenas clamam por uma diversão mais
leve, tipo filme de amor com happy end. Conscientemente ou não, a interação com o
cotidiano e suas representações aí se presentificam.
Perspectivas da indústria cultural cinematográfica
Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987)7 reprovam as nomenclaturas “cultura de
massa” ou “cultura popular”, pois, ainda que habituais, tais expressões reforçam a crença de que
tais tipos de cultura tratam-se de manifestação da arte popular, emergindo ‘naturalmente’ das
próprias massas. A expressão “indústria cultural” foi, justamente, trazida à luz por tais autores
na intenção de não só evitar a ambiguidade de sentido que permeia as expressões mencionadas
anteriormente, mas também de intervir na acepção de que o discurso fílmico, por exemplo,
seja um produto audiovisual adaptado ao processo que eles chamaram de “mercantilização
de formas culturais” por uma empresa capitalista. Em uma sociedade de consumo, em que o
homem utiliza para satisfação das próprias necessidades e desejos tanto bens materiais quanto
signos, a unicidade da arte é banalizada pela demanda dos tempos modernos e a cultura é
transformada também em mercadoria (ANDRADE, 2000).
Uma vez que a grande arte caiu sob o peso da linguagem do comércio, da produção
e do consumo e sua razão vinculada à consumação das massas, a indústria cinematográfica
transformou a esfera cultural, consequentemente, em um campo de lutas hegemônicas. É
6
7
98
Beleza Americana, filme dirigido por Sam Mendes, de 1999, premiado com Oscar, justamente pela intenção
crítica de uma representação da sociedade americana burguesa.
Referimo-nos a ambos os pensadores Horkheimer e Adorno, mesmo que a referência bibliográfica esteja em
publicação de autoria de Adorno, porquanto o texto trabalha o tempo todo com o pensamento de ambos. Daí
quando do uso de ambos os nomes se colocar na referência o “cf.”
importante enfatizar que o sistema ideológico em que a cultura se insere não é estável, ou
seja, grupos, gêneros e classes competem entre si, motivados por interesses contrários, pela
dominância ininterruptamente – daí podermos entrever o processos de resistência. Assim,
através da reprodução constante de fórmulas prescritivas, o cinema passou, também, a servir
de instrumento de dominação, que age por meio do convencimento, alienando o pensamento
crítico e autônomo das massas (ADORNO, 1987). De acordo com o raciocínio de Adorno
e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987) determinados gêneros cinematográficos exerceriam a
função de simular à realidade nas telas, reduzindo a nada a importância do papel da memória
social do homem, e de favorecer aos interesses das classes dominantes, impedindo a urgência
de um momento de transição em seu meio “pela difusão de informação e de conselhos, e de
padrões aliviadores de tensão” (Ibidem, p. 291).
Hipoteticamente, a repetição exagerada de um modelo estandardizado de roteiro
não se trataria, então, de uma questão de falta de criatividade, mas sim de uma tentativa de
manutenção da ordem social através de um ‘produto’ cultural, e consequente empobrecimento
de sentidos, o que faria o público espectador digerir apenas o montante de informação que a
indústria cultural disponibilizaria. Ainda que houvesse espaço para transformações e inovações
no cinema, estas teriam que se encaixar em um jogo de intenções, tendo sempre em vista as
necessidades do produtor e não a do consumidor.
A hipótese de que a indústria cinematográfica induz à apatia social e sustenta as relações
de dominação exemplifica o poder de persuasão e dissuasão do discurso cinematográfico,
mas se nos ativermos apenas a esta visão simplista e conservadora apresentada por Adorno
e Horkheimer (Cf. ADORNO, 1987), a gama de possibilidades que tal meio oferece ao
homem ficaria bastante restringida. O cinema é, também, um lugar para a insurgência de um
pensamento social crítico.
A interpretação desses pensadores sobre a natureza da indústria cultural nos serve de
advertência para uma faceta dos meios de comunicação de massa que as próprias massas
ignoram. No entanto, a suposição de Thompson (1995), de que há audiências específicas
constituídas por receptores ativos, aponta para a ampliação deste conceito em relação ao papel
do consumidor crítico e autônomo do produto midiático. A questão da ideologia ressurge não
apenas sob o caráter de “deformadora da realidade”, mas também como “forma autônoma,
aliada a práticas sociais concretas – simbólicas e imaginárias – que podem transformar
indivíduos em sujeitos ativos e participantes dos processos sociais, culturais e políticos”
(BORELLI, 1995, p. 75).
Os processos ideológicos atrelam-se ao skiné, imagem em movimento, construindo
significações e subjetivações através de um sistema de representações, dando vazão à nova
abordagem dos estudos críticos do cinema sugerida por Vernet (1995), visto que a união entre
ideologia e cinema põe em evidência a existência de relações entre o discurso cinematográfico
e a sociedade e entre registro e acontecimento, assim como introduz uma possibilidade de
rupturas com a tradição sociocultural “imposta” ao público receptor.
99
O discurso cinematográfico apresenta dimensão ideológica à medida que se estabelece
uma correlação entre as impressões deixadas no roteiro e na mise-en-scène com as próprias
condições socioculturais de produção do filme. Tal dimensão ideológica se insere, de fato, na
formação identitária do espectador de forma explícita ou subliminar, porquanto os modos de
construção dos sentidos do discurso sincrético (no caso o cinético) ‒ linguagem sonora, gestual e
corporal e representação visual ‒ interagem com o indivíduo espectador. Interpretamos, assim,
que as condições de produção de sentidos refletem o próprio contexto sociocultural situado;
o cinema, sendo uma prática social com construções ideológicas, constrói sua reflexibilidade
cultural por intermédio das relações entre o seu produtor e a sociedade, ambos no universo do
situatedness.
Clube da Luta: representação e ideologia
A adaptação do best-seller Clube da Luta (1996), de Palahniuk, para as telas reproduz
a visão de mundo particular do diretor estadunidense Fincher (1999). Essa percepção de
mundo é a interpretação da sociedade pelo indivíduo, mas ao fazermos tal afirmação tornase necessário esclarecermos que a experiência e as percepções individuais são orientadas
pelo modo de vida e pelas práticas coletivas; em outras palavras, a representação parte do
imaginário social para alojar-se na consciência individual (MOSCOVICI, 2010). Por tratar-se
de uma construção social, e como tal não apenas individual, pois a visão de mundo retratada
em Clube da Luta traça correlações de elementos tanto da realidade do diretor quanto do
espectador – representação, regulação, produção, identidade, consumo etc. ‒, o sentido do
filme só pode ser determinado através da análise dos significados partilhados entre o produtor
e o consumidor.
Nesses termos, a mensagem transmitida pelo filme Clube da Luta, que serve de ponte
de informações entre a produção e a massa consumidora, é articulada dentro de um sistema
de trocas simbólicas, onde é determinante que o autor e o receptor tenham categorias de
percepção e avaliação de mundo análogas para que sejam efetivas (BOURDIEU, 1996). O
que é importante aqui é a permuta de visões de mundo, conhecimentos e crenças comuns,
entre pessoas inscritas em um mesmo contexto histórico-social, mesmo que a comunicação
estabelecida entre o cinema e o público espectador não obedeça aos parâmetros de uma
situação dialógica de conversação usual.
É essencial tomarmos em consideração a linha de pensamento traçada anteriormente
para a compreensão do fato de que a construção do personagem principal, como um narrador
anônimo, dá margem para que a questão da representação social (re)produzida no filme seja
apreciada a partir de outros pontos de vista, não apenas como um ideário inerente de Fincher.
A falta de uma identidade específica torna implícita a relação existente entre o
protagonista do Clube da Luta e o indivíduo que pertence às ‘massas’, ou seja, o anti-herói da
trama pode servir de referência para qualquer sujeito que veja, sinta ou julgue o mundo a partir
do mesmo contexto situacional.
100
Esse ‘qualquer sujeito’, o protagonista em um contexto situacional, é interpretado pelo
ator Edward Norton,
[...] um trabalhador assalariado anônimo em uma companhia
de automóveis de classe média. De acordo com as regras de conduta de
seu meio social, o protagonista veste-se de um modo tradicional, senão
formal,que se adéqua ao vestuário habitual de escritório. Uma vez que o
estilo de vida do Narrador [representação individual/modo de identificar]
não pode contrastar com seu ambiente de trabalho [representação coletiva/
identificação relacional8] – o que configuraria uma contradição social –, o
personagem mora em um condomínio residencial no centro da cidade, de
cômodos com utensílios e móveis condizentes com seu poder aquisitivo, ou
capital econômico (ROCHA, 2013, p. 92).
Inferimos, então, que a intenção do diretor seria de que o personagem representasse
nas telas de cinema a figura do homem comum da classe média americana cujo estilo de vida
não o dissociasse do coletivo. Embora a perspectiva em foco seja a de Fincher – pois não é
nossa proposta negar a autoria –, a problemática da construção identitária do protagonista
apresenta-se propositalmente ambígua em termos de ‘quem’ Norton está representando no
discurso cinematográfico – se é uma instituição, o espectador ou o diretor.
Uma vez que a falta de clareza na mensagem da narrativa fílmica é intencional, podemos
concluir que a responsabilidade pela interpretação de sua significação cai sobre o público
receptor. Seguindo a conjunção lógica de argumentos de Thompson (1995), ainda que Clube
da Luta seja um produto da indústria cultural disponível para o consumo das grandes massas,
o filme encontrou o seu público nas audiências pequenas e especializadas, que conseguiram se
‘identificar’ com a representação que se vê nas telas e, consequentemente, capturar o sentido
do filme ‒ crítica à sociedade de consumo.
8
Segundo a definição de Ramalho e Resende, “a identificação relacional diz respeito à identificação de atores
sociais em textos em termos das relações pessoais, de parentesco ou de trabalho que têm entre si. Esse tipo
de identificação é ‘relacional’ no sentido de que depende das relações sociais e das posições em que os atores
ocupam” (2011, p. 131).
101
Convém, aqui, lembrarmos de que Clube da Luta é um filme de difícil compreensão
para o espectador que tem o hábito de consumir as produções típicas do cinema de Hollywood,
‒ representação de sistemas de previsibilidades da realidade ‒, devido ao conteúdo intelectual
elaborado implícito de sua narrativa, que corrói progressivamente paradigmas naturalizados.
De acordo com Kellner (2001, p. 135),
Deve-se notar, porém, que o cinema de Hollywood enfrenta severas
limitações no grau com que pode preconizar posições críticas e radicais
em relação à sociedade. Trata-se de um empreendimento comercial que
não deseja ofender as tendências dominantes com visões radicais, tentando,
portanto, conter suas representações de classe, sexo, raça e sociedade
dentro de fronteiras preestabelecidas.
Por abordar temas tabus que transgridem regras sociais básicas, como violência,
terrorismo, sexo e drogas, e por questionar um sistema de valores já cristalizado na cultura, a
prática do consumo, o filme em si selecionou o seu próprio público. Esta hipótese é confirmada
pelo status de cult movie que Clube da Luta alcançou no ano de seu lançamento em DVD,
independente da fama ou do reconhecimento no circuito comercial. Turner (1997, p. 100) nos
dá uma ideia do processo de identificação do público com o filme:
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o público não comparece aos
cinemas iludidos por campanhas publicitárias falsas ou enganosas. Uma
frase geralmente usada pelos produtores refere-se ao filme “que encontra o
seu público”, e esta é a descrição mais precisa do que realmente acontece.
A justificativa de Fincher para a violência explícita em profusão no corpo do filme é a
tentativa de alertar as grandes audiências para os perigos de um sistema social capitalista e
consumista que insiste em impor, de maneira direta ou indireta, normas de conduta e estilos
de vida para que o homem se encaixe no modelo de sociedade em vigor. Tal violência é uma
metáfora, senão uma alegoria, que o diretor utiliza para ilustrar a negação e a insatisfação do
indivíduo contemporâneo em relação à cultura do consumo propagada pelos próprios meios
de comunicação de massa.
Entendemos o discurso fílmico Clube da Luta como uma alegoria, pois se trada de um
tecido retórico discursivo que constrói uma dialética entre o sentido ‘literal’ e o ‘figurado’,
dialética de virtualizações de sentido. Melhor explicando, o que chamamos de sentido ’literal’
seria o aspecto classificatório primeiro, explícito, de ser o filme apenas uma narrativa de
violência (para alguns, até de pertencer à categoria de um filme de ação), mas que, no entanto,
aí não se fixa, pois implicita e projeta um sentido mais profundo (chamado de figurado) que
nos empurra para a representação de uma sociedade corrosiva e corroída pela necessidade
do consumo. Ratificando, o sentido (a) ‘literal’ estaria para um filme interpretado apenas
como um espelho da violência, que remete ao sentido (b) o figurado – discurso crítico contra
102
a hegemonia de uma sociedade de consumo. Mas ao também designarmos o filme como
metafórico, não estamos jogando fora sua tessitura alegórica, pois poderíamos afirmar que um
discurso alegórico é alimentado por metáforas. Ou seja, sendo o filme uma alegoria, por sua
própria natureza, ‘con-figura’ e ‘re-con-figura’ – se mostra (figura) junto (com) a algo e de
novo (re) se mostra (figura) junto (com) a algo –, e sendo o filme constituído por metáforas,
o mesmo movimento complexo se dá na constituição metafórica que continuamente alarga e
expande sentidos9. Ambas tessituras se retro-alimentam na construção de uma crítica social
anti-hegemônica: se a violência é a corporificação das lutas e conflitos presentes no imaginário
social, o Clube da Luta é emancipação do, resistência ao e insurgência contra o mal-estar da
sociedade.
Segundo Turner (1997, p.76), a função da narrativa pode ser tomada em consideração
apresentando duas possibilidades distintas ao homem: “A primeira é que a narrativa pode ser
uma propriedade da mente humana, como a linguagem; a segunda é que a narrativa talvez
desempenhe uma função social essencial que a torna indispensável para as comunidades
humanas”. Ainda, de acordo com a argumentação desse autor, o papel da narrativa do filme
Clube da Luta é resolver simbolicamente a questão da inclusão e exclusão social determinada
pela prática do consumo, que não pode ser resolvida no mundo real, pois é tida na consciência
das massas como consequência natural da existência do homem – uma problemática social
menosprezada por já estar interiorizada, senão naturalizada, no conceito de cultura. Em vista
disto, o discurso cinematográfico em foco procura dar vazão a uma nova interpretação de
sentido do mundo através de uma representação social crítica.
Como se pode notar, não seria correto resumirmos o conteúdo do Clube da Luta como
somente um filme que faz apologia à violência, existe muito mais de forma subjacente. A
intenção do filme contradiz a hipótese sugerida por Adorno e Horkheimer (Cf. ADORNO,
1987) de que o papel da indústria cultural seria apenas o de proporcionar entretenimento ao
público que consome o produto midiático, alienando a consciência das massas “sem oferecer
ao consumidor as condições necessárias ao pensamento crítico” (ANDRADE, 2000, p. 36), e
de que trabalharia a favor da manutenção de relações de dominação. Ao contrário, a proposta
do filme Clube da Luta é fomentar a discussão a respeito da inadequação do ser humano frente
à nova realidade chamada pós-moderna, mas que estimula sentimentos primitivos, como o do
individualismo e o da agressividade.
Com efeito, o tema central do romance escrito por Palahniuk (1996), e posteriormente,
adaptado para as telas por Fincher (1999), faz parte de uma série de fatores que reforçam,
formam ou alteram as representações em atividade no seio da sociedade. As transformações
que tais representações sofrem, motivadas pela fluidez do panorama social, afetam diretamente
às esferas de atividade humana, incluindo o campo cultural. Nesses termos, podemos inferir
que é a instabilidade das representações sociais que confere o caráter temporal da indústria
cultural, indispensável à sua própria sobrevivência, reiterando continuamente a união entre
representação e cultura.
9
Apontamos a diferença entre alegoria e metáfora: a metáfora não se constitui por comparação e sim por
equivalência, enquanto a alegoria permite a comparação entre sentidos: sentido literal (a) que dá lugar ao sentido
figurado (b); mas ambas se ancoram no sentido ‘figurado’.
103
No contexto do filme Clube da Luta, a representação social adquire o status
de representação ideológica (FISKE apud CURRAN; GUREVITCH, 1996), pois os
equipamentos de cinema, por exemplo, a câmara de vídeo, excedem a função básica de registrar
e historiar a realidade. O discurso cinematográfico não pode ser reduzido a códigos linguísticos
e semióticos da realidade, porquanto (re)produz uma representação da visão de mundo (e a de
Fincher) que é indissociável de intenções ideológicas. Neste aspecto, os sentidos em atividade
na película do filme, que fazem relação com a representação da sociedade capitalista e com a
crítica à cultura do consumo, não são reificados pelo poder inato da indústria cinematográfica
de reproduzir a experiência e o conhecimento cotidianos, pois as marcas ideológicas explícitas
e implícitas não desaparecem de suas representações, mesmo que sublimine o seu caráter
crítico através da alegoria. Logo, nos posicionamos a favor da afirmação de Soares (2007),
quando o autor diz que a representação que se vê nas telas de cinema não é da realidade, mas
da própria ideologia.
Considerações Finais
A partir dessa reflexão, pusemos em destaque alguns aspectos que consideramos
indispensáveis para uma compreensão da prática social que reside no discurso fílmico,
estabelecendo uma analogia entre a concepção de meio de comunicação de massa de Thompson
(1995) e a interpretação de indústria cultural de Adorno e Horkheimer (cf. ADORNO, 1987).
Visamos esclarecer que forma da narrativa do filme Clube da Luta desempenha uma
função no interior da própria sociedade que o produziu, pondo-se em resistência à hegemonia
conservadora, assim como à sua política e à sua cultura; e por meio de cenários estratégicos
reivindica a não-manutenção de relações de dominação ideológica (GRAMSCI, 1971). No
entanto, para alguns desavisados, a aparente manutenção das relações de dominação se
legitima pela então nomeada prática discursiva dos meios de comunicação de massa como
subterfúgios para a própria sustentação. Tal argumentação acomoda o nosso objeto em foco
dentro do conceito de filme de cunho liberal formado por Kellner (2001, p. 136):
[...] filmes liberais podem ser interpretados como contestações à
hegemonia conservadora, e não apenas como pusilânimes variações da
mesma ideologia dominante. Dessa perspectiva contextualista, a crítica da
ideologia implica uma análise ideológica no contexto da teoria social. A
interpretação política dos filmes, portanto, pode propiciar a compreensão
não só dos modos como o filme reproduz as lutas sociais existentes na
sociedade americana contemporânea, mas também da dinâmica social e
política da época.
Essa teia argumentativa objetivou desmitificar a crença popular de que o produto final
da indústria cinematográfica tem, tão somente, em vista o preenchimento da lacuna de tempo
ocioso do dia a dia vivido. As grandes audiências podem até conferir, inconscientemente,
104
uma neutralidade de intenções no que é apreciado nas telas de cinema, mas, sob um viés
crítico, ratificamos que não há atos desinteressados na produção cinematográfica, uma vez que
a própria falta de intencionalidade de certos gêneros de cinema mascara uma manifestação
ideológica proposital. Debord (1997, p. 24) ilustra nossa colocação ao explicar como se dá o
processo de dissimulação da ideologia por meio do contexto midiático:
A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta
de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele
contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens
dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e
seu próprio desejo.
Mesmo que aceitemos a existência de um público-massa, ancorado no espaço da
alienação, há sempre espectadores críticos e ativos à espreita, capturando o conteúdo ideológico
das representações sociais (re)produzidas em películas fílmicas, como no caso da Clube da
Luta, que dão margem à quebra de valores instituídos por uma classe dominante, valores estes
inerentes tanto à sociedade quanto à condição de existência do homem. Seria imprudente de
nossa parte, aqui, afirmarmos que o território em que se assenta o discurso cinematográfico
já foi resolvido e explorado in totum, pois os fenômenos sociais não são estáticos, mas sim
processos em contínua equivalência com suas representações (re)produzidas em cena.
Referências
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. (Trad. Amélia Cohn) In: COHN (Org.), Gabriel.
Comunicação e Indústria Cultural. 5. ed. São Paulo, T. A. Queiroz, 1987.
ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fim do mundo: imaginário e teledramaturgia. São Paulo,
Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Governo do Estado do Ceará, 2000.
BORELLI, Silvia Helena Simões. Gêneros ficcionais: materialidade, cotidiano, imaginário. In: SOUSA
(Org.), Mauro Wilton de. Sujeito, o lado oculto do receptor. (Trad. Sílvia Cristina Dotta e Kiel Pimenta).
São Paulo, Brasiliense, 1995.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Sobre a teoria da ação. (Trad. Mariza Corrêa). São Paulo,
Papirus, 1996.
DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. (Trad. Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro,
Contraponto, 1997.
FISKE, John. Post-modernism and television. In: CURRAN, James; GUREVITCH, Michael (eds).
Mass media and society. London/Sidney/Aukland, Arnold, 1996.
105
GIMELLO-MESPLOMB, Frédéric. Manifeste dês sept arts. França, Université de Metz. Disponível
em:<http://fgimello.free.fr/enseignements/metz/textes_theoriques/canudo.htm.> Acesso em: 28 abr.
2012.
GRAMSCI, Antonio. Selections from the prison notebooks. (Trad. para o inglês Farouk Abdel Wahab
de Zayni Barakatfoi). New York, International publishers, 1971.
HALL, Stuart. Representation: cultural representations and signifying practices. London/Thousand
Oaks/New Delhi, Sage, 1997.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia - Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o
pós-moderno. (Trad. Ivone Castilho Benedetti). São Paulo, EDUSC, 2001.
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. (Trad. Pedrinho A.
Guareschi). 7. ed. Rio de Janeiro, Vozes, 2010.
PALAHNIUK, Chuck. Fight Club. Great Britain, Vintage Books, 1996.
ROCHA, Tibério Caminha. 2013. 144 páginas. Dissertação em Mestrado em Linguística Aplicada,
Universidade Estadual do Ceará.
SOARES, Murilo Cesar. Representações da cultura mediática: para a crítica de um conceito primordial.
Anais Encontro da Compós, 16, 2007, Curitiba, UTP, 2007.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação
de massa. (Trad. Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e Representações Sociais da PUCRS). Petrópolis, RJ, Vozes, 1995 [2002].
TURNER, Graeme. Cinema como prática social. (Trad. Mauro Silva). São Paulo, Summus, 1997.
VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques et al. A sstética do filme. (Trad. Marina
Appenzeller). Campinas, SP, Papirus, 1995.
Filmografia
Beleza Americana (American Beauty). Filme de Sam Mendes (1999). Roteiro: Alan Ball. Produção:
Dream Works Pictures, 1999, 122 minutos.
Clube da Luta (Fight Club), direção de David Fincher (1999), roteiro de Jim Uhls, produção da 20th
Century Fox, 1999, 139 minutos; adaptação da obra de Chuck Palahniuk Fight Club.
106
EXPRESSÕES MULTIMODAIS DE ANUNCIOS
PUBLICITÁRIOS PARA A REPRESENTAÇÃO DO
FEMININO: IMPLÍCITOS E CONTEXTOS
Regina Célia Pagliuchi da Silveira* (PUC/SP)
Este artigo, situado na Análise Crítica do Discurso tem por tema a representação do
feminino em textos multimodais publicitários, objetivando examinar, na composição
textual do verbal e com o visual (imagens e cores), as formas de disseminação a ideologia,
instaurada pelo poder. Justifica-se o tratamento dado, pois com a pós-modernidade e as
mudanças sociais resultantes do aparecimento das altas tecnologias, os textos multimodais
passam a ocupar lugar importante nas interações discursivas. Anteriormente, os textos
eram preferencialmente verbais e, quando construídos com outras semioses, projetavam
significações fixas para o visual, diferentes dos textos multimodais que hoje, compostos
pelo inter-relacionar do visual e da cor com o verbal, exigindo outras estratégias de
produção e processamento da informação. Logo, faz-se necessário analisar de forma
crítica a multimodalidade textual, para a representação do feminino que é uma questão
social importante, no Brasil. Desde que se entenda que todas as formas de conhecimento
são representações mentais, construídas no e pelo discurso, são postuladas três categorias
analíticas, a saber: Sociedade, Cognição e Discurso. Este trabalho apresenta resultados
parciais de uma pesquisa mais ampla, a respeito do feminino, entendendo-o como uma
construção social por discursos públicos e eventos discursivos particulares; tal construção
é perpassada pela cultura, valores sócio-cognitivos transmitidos de pai para filho, e
pela ideologia imposta pelo poder (valores sócio-cognitivos que atendem aos próprios
interesses do poder). A construção textual é vista pela seleção e combinação de fontes
diferentes, para a composição co-textual; e pela projeção de diferentes contextos para a
complementação sêmica das expressões textuais.
Palavras-chave: anúncios publicitários; contextos e texto multimodal; sociedade,
discurso e cognição; análise crítica do discurso.
* Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1974); professora titular do Departamento
de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: regcpf@osite.com.br
107
Este artigo está situado na Análise do Discurso Crítica (ADC) e tem por tema a relação
texto e contexto para a representação do feminino em anúncios publicitários multimodais.
Tem-se por objetivos: 1. Examinar a seleção e a combinação de expressões visuais e
verbais, dispostas em anúncios publicitários brasileiros para representação do feminino; 2. Verificar
os contextos e suas funções, na produção/compreensão de textos multimodais (visual e verbal).
Tem-se por pressuposto que toda construção textual e a produção de sentidos são
elaboradas cognitivamente pelo processamento da informação, na memória de trabalho das
pessoas, acessando formas de conhecimento sociais e individuais armazenadas na memória
de longo prazo. Sendo assim, é necessário inserir a categoria Cognição junto às categorias
Sociedade e Discurso.
O material analisado é constituído de anúncios publicitários brasileiros multimodais
impressos. As análises realizadas objetivaram examinar as relações cotextuais entre imagens,
cores e expressões verbais, assim como os contextos de sua produção discursiva, para a
representação do feminino, no texto.
Os resultados apresentados participam de uma pesquisa mais ampla a respeito das
representações ideológicas e culturais do feminino em diferentes discursos.
Tem-se por ponto de partida que sexo e gênero são noções complexas que durante
muito tempo foram consideradas sinônimas. Conforme Cháneton (2009), é partir de 1964
que Robert Stollel, apresenta uma diferença entre essas duas noções. Sexo é uma noção
ligada à Biologia, definida por gens e hormônios; ao passo que o gênero está relacionado
à Sociologia e à Psicologia Social, sendo construído socialmente. Em outros termos, sexo
compreende homem e mulher e gênero, o masculino e o feminino que são representações
sociais, construídas no e pelo discurso. Assim, desde que se entenda que a ideologia e a cultura
guiam essas representações, a pesquisa, que vem sendo realizada, justifica-se, pois é necessário
analisar de forma crítica tais representações, para verificar os valores ideológicos contidos
nelas, já que eles propiciam a manifestação de crenças sociais preconceituosas, relativas a
questões sociais, como a do feminino.
Por outro lado, justifica-se essa pesquisa, pois a mudança social ocorrida com o
fenômeno da globalização pôs em uso privilegiado os textos multimodais, principalmente os
produzidos com o verbal e o visual (imagens e cores).
Em geral, o letramento esteve direcionado para o texto verbal; por essa razão, o texto
multimodal apresenta dificuldades para a sua compreensão, durante a leitura. Sendo assim,
urge investigar a produção desses textos.
Kress e van Leewen (1996), preocupados com a multimodalidade, ao tratarem da
mudança social ocorrida, durante a globalização, definem o texto multimodal como um
produto do discurso, visto como uma ação, que combina o verbal com imagens e cores em
uma semiose. Anteriormente, os textos construídos com imagens e cores apresentavam um
significado prescrito, como, por exemplo, as placas de trânsito. Com a mudança social, os
textos multimodais são colocados em uso por modos semióticos que se inter-relacionam de
várias formas; assim, as representações verbais e visuais podem se equivaler, completar-se
108
ou mesmo se contradizer. Logo, há uma natureza simbólica nas representações existentes
nesses textos, decorrentes de relações providas pelos recursos semióticos que precisam ser
investigadas.
Em outros termos, tais representações não são reais, pois o significado criado por
um determinado recurso falseia a realidade, na medida em que é uma representação dela,
decorrente das intenções e valores ideológicos de quem as representou e em qual situação.
Dessa forma, as características gramaticais sintáticas das imagens combinadas com as do verbal
são consideradas seleções significativas dentro do conjunto de possibilidades disponíveis nos
sistemas gramaticais. Além disso, essas relações gramaticais funcionam ideologicamente, pois
as representações contidas nelas são significativas e contribuem para a reprodução de relações
de dominação, que a ADC objetiva denunciar.
Considerações teóricas: Análise do Discurso Crítica
A ADC analisa textos concretos, curtos e longos de interação social e caracteriza-se
por uma visão crítica própria e específica para focalizar a relação existente entre a linguagem e
a sociedade, além da relação existente entre a própria análise e as práticas sociais e discursivas
analisadas. Dessa forma, a ADC focaliza, de modo multi e transdisciplinar, as relações entre
sociedade e discurso, tendo por ponto de partida a dialética entre o social e o uso intencional
da linguagem: toda mudança nas práticas de linguagem é guiada por mudanças sociais que,
ao mesmo tempo, são modificadas pelas práticas de linguagem que vêm sendo postas em uso,
pela referida mudança social.
A visão crítica está centrada em problemas sociais e busca analisá-los tanto em relação
aos elementos das práticas sociais quanto aos das práticas discursivas, responsáveis pela
produção de textos; logo, analisar o discurso de forma crítica requer teorização e descrição
tanto dos processos e das estruturas sociais que dão lugar à produção de um texto quanto
das estruturas sociais e os processos com os quais os indivíduos ou os grupos sociais, como
sujeitos históricos, criam sentidos em sua iteração com os textos.
Para uma visão crítica, três conceitos são importantes, a saber: poder, história e
ideologia. Sendo assim, a ACD reconhece a contribuição de todos os aspectos do contexto
comunicativo aos significados do texto. (cf. Wodak, 2003)
A ACD apresenta-se com diferentes vertentes, entre elas, a sócio-histórica, a semiótica
social e a sócio-cognitiva. Em geral, a visão crítica dessas diferentes vertentes dá atenção
à intertextualidade para analisar a significação ideológica do modo sistemático pelo qual os
textos se transformam em outros textos.
Este artigo está fundamentado, transdisciplinarmente, na vertente Semiótica Social
e na sócio-cognitiva para tratar da dialética do social e o individual ao examinar os recursos
semióticos (o que pode ser dito e feito por imagens e por imagens e cores, além de como as
coisas que as pessoas dizem e falam com imagens podem ser interpretadas) e de que forma
esses recursos manifestam, textualmente, as interpretações da experiência e as formas de
interação social, a partir de uma visão analítica crítica do feminino, no Brasil.
109
Segundo Fairclough (2005), a transdisciplinaridade compreende um diálogo entre
disciplinas ou teorias e métodos que conduz a um desenvolvimento para os pares selecionados,
por meio de um processo de apropriação de cada um deles da lógica do outro como recurso para
o seu próprio desenvolvimento. Dessa forma, entende-se que as práticas sociais, as discursivas
e a produção textual entram na ação discursiva pelos processos cognitivos que constroem as
formas de conhecimento sociais e individuais.
A ADC está relacionada à escola de Frankfurt que tem por ponto de partida o
marxismo e a perspectiva hallidayana da linguagem.
No que se refere ao marxismo, a ADC aborda o conceito de discurso em relação à
ideologia e ao poder, para situá-lo como prática social. Fairclough (1992) situa o discurso em
uma perspectiva de poder como hegemonia que é vista como foco de constante luta sobre pontos
de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper alianças e relações
de dominação/subordinação, que assumem formas econômicas, políticas e ideológicas.
No que se refere à perspectiva hallidayana da linguagem, a ADC entende a linguagem
humana como um sistema de construção de significados, em uso funcional na interação
comunicativa. Para Halliday (1985), a linguagem satisfaz as necessidades humanas e é
organizada funcionalmente, respeitando-as e não de forma arbitrária. Por entender que toda
linguagem se organiza por um propósito (uma função), o autor estabelece para os componentes
funcionais da língua três metafunções: a ideacional, a interpessoal e a textual.
Para a ADC, o texto é produto do discurso. Fairclough (2001) distingue três elementos,
relativos aos efeitos constitutivos do texto, decorrentes do discurso: 1. a construção de
identidades sociais e de posições para sujeitos sociais e o eu; 2. a construção das relações
sociais entre as pessoas; e 3. a construção de sistemas de conhecimento e crenças. Esses três
elementos correspondem respectivamente às funções da linguagem postuladas por Halliday
(1985): 1. identitária, relativa aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas
no discurso; 2. relacional, que diz respeito a como as relações sociais entre os participantes do
discurso são representadas e negociadas; e 3. ideacional, relativa ao modo pelo qual os textos
significam o mundo e seus processos, entidades e relações.
É acrescida, ainda a função textual, relativa a como as informações são trazidas ao
primeiro plano ou relegadas a um segundo, apresentadas como conhecidas ou como novas e
selecionadas como tema/comentário.
Em breve síntese, com suas vertentes, a ADC busca dar conta da construção de
significados tanto como atividade sócio-cognitiva quanto como produção de signos socialmente
motivados.
A respeito da vertente semiótica social
A vertente semiótica social da ADC objetiva tratar da organização de textos
multimodais e de seus efeitos constitutivos, propondo uma nova perspectiva semiótica,
diferente da tradicional. Para esta vertente, há uma inter-relação, perpassada pela ideologia,
110
entre Sociedade e Discurso, de forma que as mudanças sociais produzem mudanças nos
discursos e vice-versa; por isso, a partir da década de 1990, ocorre o privilégio dos textos
multimodais sobre os verbais, havendo, também, mudança no acesso ao público que além da
mídia passa a ser, devido às altas tecnologias, também individual e preferencialmente realizado
pelas redes sociais, devido à rapidez e por estarem fora da censura.
Os textos multimodais são complexos. Antes, ao se articular o verbal com outras
modalidades, estas apresentavam significações fixas para seus significantes textuais, como
por exemplo, as placas de trânsito e as indicações de direção; assim, os letrados focalizavam
o verbal para a produção de sentidos. Com as mudanças sociais, os textos multimodais são
construídos com diferentes semioses inter-relacionadas, de forma que uma se projeta na outra,
modificando-se e construindo significações não fixas para seus significantes textuais.
Kress e van Leewen (1996) propõem uma gramática do design visual, com suas
categorias analíticas para a modalidade linguística e a modalidade visual.
Nessa gramática, os autores consideram que a comunicação não ocorre apenas entre
pessoas de um mesmo grupo social e, por essa razão, é preciso que uma teoria da multimodalidade
forneça explicações no caso das mensagens que exprimem valores e crenças dos outros grupos.
Assim, ao tratarem das imagens, os autores entendem que elas se baseiam em padrões de
realidade construídos cultural e historicamente e não na correspondência objetiva entre imagem
visual e o mundo. Logo, as imagens representam as relações entre pessoas, lugares e as coisas em
um complexo conjunto de relações existentes entre as imagens e aqueles que as observam. Para
analisar esse conjunto complexo, Kress e van Leewen propõem quatro estratos:
a. o discurso: os discursos desenvolvem-se em contextos sociais específicos que podem
ser públicos ou não; por exemplo, contexto familiar e contextos institucionalizados (ex:
publicidade, jornal). Os discursos podem ser realizados de diferentes maneiras: um discurso
sobre conflito étnico pode ser realizado como parte de uma conversa em um bar ou como um
documentário de TV;
b. o design: são maneiras de realizar discursos em contextos determinados, para
conceituar a forma dos produtos e dos eventos semióticos, conforme os propósitos e a
concepção de quem será a audiência. Assim, um mesmo design pode ser realizado de formas
diferentes, segundo o seu contexto de produção;
c. a produção: é a articulação na forma material dos produtos ou eventos para a produção
real do texto que exige outros conjuntos complexos de habilidades, como as técnicas, artísticas,
manuais e visuais. Neste estrato, a preocupação situa-se nas fontes que possibilitam a produção
semiótica;
d. a distribuição: é o acesso ao público pela reprodução dos produtos e dos eventos
semióticos. A distribuição não acrescenta sentido ao produto multimodal, mas é o facilitador
das funções pragmáticas de preservação e difusão, pois quanto maior e eficiente for o meio de
difusão, maior será o consumo pela audiência e, assim, maior disseminação ideológica.
Para Kress e van Leewen (2001), o grau em que a intenção e a interpretação se
tornam compatíveis, dependerá do contexto.
111
Para os autores, a Semiótica Social objetiva uma análise crítica dos textos multimodais
para mostrar “o que é” que está contido nas imagens situadas espacialmente no texto; dessa
forma busca responder as perguntas: 1. como as pessoas são representadas? 2. como as pessoas
representadas relacionam-se ao observador? 3. como o verbal equivale, complementa ou
contradiz o que é captado pelos sentidos, articulando as imagens, as cores e o verbal?
Em outros termos, objetiva, com uma visão analítica crítica, a descrição dos recursos
semióticos e o exame da forma desses recursos que manifestam, textualmente, as interpretações
da experiência e as modos de interação social.
No que se refere ao verbal, de forma geral, os semioticistas sociais críticos, a partir da
gramática sistêmico-funcional de Halliday (1985), preocupam-se com o potencial ideológico
do sistema de categorização das representações implícitas em determinados vocábulos, ou seja,
com as maneiras particulares de “lexicalizar” a experiência e o modo pelo qual as estruturas
gramaticais linguísticas organizam esses vocábulos em estruturas frasais.
No que se refere ao visual, esses semioticistas contribuem para o entendimento dos
modos semióticos, nos atuais textos multimodais. Segundo Kress e van Leeuwen (2001) os
modos semióticos inter-relacionam-se por três sistemas de significação: o valor funcional, a
saliência e a moldura. Estar atento a esses modos propicia conferir os diferentes valores e
os distintos eventos contidos na sintaxe textual, pela relação entre o verbal e o visual, para a
representação de pessoas e de coisas do mundo.
A Semiótica Social, embora apresente diferenças para seus pesquisadores, segundo
Kress e van Leeuwen (2001), deve satisfazer a três requisitos, para ter uma visão crítica,
ou seja: 1. representar e comunicar aspectos relevantes das relações sociais que intervêm na
comunicação; 2. representar e comunicar os feitos, estados de coisas e de percepções que o
produtor quer comunicar; e 3. tornar possível a produção de mensagens que tenham coerência,
interna no texto, e, externamente, com aspectos relevantes do entorno semiótico, o “contexto”.
A respeito da vertente sócio-cognitiva
Segundo essa vertente, é necessário postular a inter-relação entre três categorias,
para uma análise crítica do discurso: Sociedade, Cognição e Discurso. Van Dijk é o maior
representante desta vertente. Segundo o autor (1997), há uma inter-relação entre essas
categorias analíticas, de tal forma que uma se define pela outra, pois todas as definições
necessárias para uma análise crítica do discurso decorrem das cognições sejam as individuais,
situadas na memória episódica ou autobiográfica, sejam as sociais, na memória social.
Dessa forma, segundo a vertente sócio-cognitiva, tem-se por pressuposto que a
interação comunicativa pelo discurso decorre das formas individuais e sociais de representação
mental do que acontece no mundo, ou seja, formas de conhecimento construídas nos e pelos
discursos públicos institucionalizados e por eventos discursivos particulares e manifestadas
em textos, produtos do discurso.
Logo, toda a produção/compreensão discursiva perpassa pela cognição.
112
Sendo assim, entende-se que:
A Sociedade é definida por grupos sociais, sendo que cada qual é uma reunião de
pessoas que têm objetivos, interesses e propósitos em comum. Dessa forma, a estrutura social
é vista como um conjunto de papéis sociais (participantes das práticas sociais) selecionados
pelos interesses dos membros do grupo, para serem representados, dependendo das situações
discursivas. Por exemplo, há grupos sociais ancorados no “trabalho” que selecionam os
papéis, entre outros, de professor-aluno, padre-fiel, empresário-funcionários, industrialempregados. Mas, há grupos sociais ancorados na “exploração do outro”, apresentando-se
pela marginalidade das leis que regem a sociedade atual, de forma a selecionar, por exemplo,
os papéis de traficante-drogado, prostituta-cliente, assaltante-vítima. Logo, as práticas sociais
variam dependendo de sua estrutura social, devido aos papéis sociais selecionados pelos
objetivos, interesses e propósitos do grupo social. Estes guiam o ponto de vista para focalizar
o mundo e, a partir daí, representá-lo mentalmente, como forma de conhecimentos sociais.
Como os grupos sociais diferem entre si por terem pontos de vista diferentes,
esses grupos estão em constante conflito, pois suas condutas sociais decorrem de suas próprias
crenças, em um determinado momento histórico.
A Cognição compreende as formas de conhecimento do grupo social, que em seu
conjunto compõem o marco das suas cognições sociais, que são construídas mentalmente, a
partir do ponto de vista selecionado pelo grupo. Como o ponto de vista decorre dos objetivos,
interesses e propósitos do grupo social, esse, ao ser projetado para focalizar o que acontece no
mundo, projeta ao mesmo tempo um conjunto de valores que passam a compor a representação
cognitiva, como forma de conhecimento avaliativo, as crenças. Sendo assim, é a partir do
que é focalizado pelo ponto de vista (propósitos) que se maximizam ou minimizam e até
se cancelam certas propriedades do que é focalizado, de forma a construir conhecimentos
que são crenças sociais perpassadas pela ideologia e pela cultural. Estas guiam a construção
de formas de conhecimento individuais, decorrentes de experiências pessoais. Dessa forma,
todas as formas de conhecimento são crenças por serem construídas com valores culturais e
ideológicos, decorrentes do ponto de vista projetado, guiado pelos propósitos.
Segundo Silveira (2009), a ideologia e a cultura são conjuntos de valores contidos
nas crenças sociais. A diferença entre elas é que a cultura compreende um conjunto de crenças
cujos valores são construídos socialmente pelo vivido e experienciado pelas pessoas; por
exemplo, formas de se alimentar, dormir, vestir, cumprimentar e festejar datas. Essas crenças
são transmitidas dinamicamente de pai para filho, pois a cada problema social novo a ser
resolvido, no cotidiano, ocorre a mudança desses valores, embora tenham raízes sociais
históricas. A ideologia origina-se na cultura e é um conjunto de valores, selecionados e
modificados pelo poder, a fim de atender a seus próprios interesses, ao impor, intra e extragrupalmente suas crenças, para a discriminação do outro, pois os participantes do poder têm
amplo acesso ao público.
Logo, os grupos sociais diferenciam-se entre si por terem crenças diferentes. É, pelos
discursos públicos e institucionalizados, que o poder constrói crenças extra-grupais, ou seja,
uma unidade imaginária, também designada memória social, que identifica uma nação, em seu
contexto histórico.
113
Desde que as formas de conhecimento são construções mentais, elas são produzidas
e armazenadas na memória das pessoas.
Kintsch e van Dijk (1983) tratam das estratégias de compreensão discursiva, a partir
do modelo de memória por armazéns que diferencia a memória de curto prazo, a de médio
prazo e a de longo prazo.
A memória de curto prazo é sensorial e dá entrada para a informação que será
processada pela memória de trabalho, situada entre a memória de curto prazo e de médio
prazo. A memória de trabalho transforma as expressões textuais em sentidos secundários e
globais, de forma recursiva, a partir de inferências e explicitações de implícitos textuais. Para
tanto, recorre a conhecimentos armazenados na memória de longo prazo, ativando-os para a
memória de trabalho, a partir de um contexto cognitivo, ancorado em um modelo de situação.
A memória de longo prazo comporta dois armazéns: o social e o individual. O armazém
social, também designado memória semântica, arquiva as representações construídas socialmente,
pelos discursos, em sistemas de conhecimentos distintos. Há pelo menos três sistemas gerais
de conhecimento: o enciclopédico, conhecimentos de mundo; o simbólico, conhecimentos de
códigos semióticos, tais como os visuais (imagens e cores) e os de línguas; e o interacional,
conhecimentos de esquemas interacionais comunicativos, tais como atos de fala, gêneros textuaisdiscursivos e quadros enunciativos. Todos eles são perpassados pela cultura e pela ideologia. Tais
sistemas organizam as representações mentais tanto no armazém social quanto no individual.
Na memória de longo prazo social estão as formas de conhecimento construídas
socialmente, por discursos institucionais, como os da família, da igreja, do Estado, da empresa.
Tais discursos são perpassados pela cultura e ideologia; esta é imposta aos membros do poder,
para dominar a mente das pessoas, pela discriminação de, por exemplo, raças, gêneros,
profissões, nações. A memória de longo prazo individual armazena as formas de conhecimento
construídas por experiências individuais, sendo, portanto, autobiográfica. Os conhecimentos
sociais guiam os individuais, mas estes, progressivamente, modificam os sociais, devido a
modificações sofridas para resolver, socialmente, problemas novos.
Segundo Kintsch e van Dijk, é a ativação dos conhecimentos sociais e dos individuais
que explica as razões de nenhum texto ter a mesma leitura nem para o mesmo leitor, em
momentos diferentes, nem para leitores diferentes, ainda que haja um certo consenso de leitura
entre eles, devido aos conhecimentos sociais.
A memória de médio prazo armazena, durante certo período de tempo, os sentidos
produzidos durante o processamento da informação, modificando-os para a construção dos
sentidos mais globais que serão armazenados na memória de longo prazo, como formas de
conhecimento social ou individual.
O Discurso é definido como uma prática social, selecionada pelo grupo social, cujos
textos produtos estão em uso. Van Dijk (1997), ao inserir a categoria Cognição na inter-relação
das categorias Sociedade e Discurso, para a ADC, afirma que todas as formas de conhecimento
são construídas no e pelo discurso.
114
Há discursos públicos e eventos discursivos particulares. Os discursos públicos são
definidos como prática social e esquematizadas por um contexto discursivo mental que se
define por participantes, suas funções e suas ações. Para van Dijk, há três categorias, para
analisar de forma crítica os discursos públicos: Poder, Controle e Acesso.
Cada uma dessas categorias está relacionada extra-textualmente a contextos. Estes se
diferenciam dos elementos expressos no texto, cuja construção coesiva intratextual é designada
“cotexto”. Logo, o “contexto” é visto como o entorno fora da sequência dos elementos
presentes no produto textual.
Cada uma das categorias Sociedade, Cognição e Discurso agrupam seus próprios
contextos, que são selecionados pelo produtor do texto para combiná-los no produto textual.
Na compreensão, os conhecimentos armazenados na memória de longo prazo são ativados para
inferir e explicitar significados contextuais. Van Dijk (2012), a fim de explicar as razões das
pessoas não produzirem a mesma leitura de um texto, propõe que os contextos são construídos
por conhecimentos individuais, os autobiográficos, embora eles sejam guiados pelos sociais.
Textos multimodais publicitários e contextos, na representação do feminino
Segundo a teoria da multimodalidade, os textos multimodais produzem sentidos
múltiplos, pois são produzidos com diferentes semioses. Segundo Kress e van Leeuwen
(1996), ao tratarem da semiose visual, os sentidos podem ser realizados pelas línguas e pela
comunicação visual. Essas realizações, necessariamente, não se sobrepõem, pois algumas
coisas podem ser expressas tanto pelo visual quanto pelo verbal; mas, outras, só pelo visual
ou pelo verbal.
A título de exemplificação: anúncios publicitários multimodais da Duloren
Foram selecionados três textos de campanhas publicitárias da marca Duloren,
publicados em momentos históricos diferentes.
115
Texto (1)- campanha da Duloren: contexto histórico Reveillon
Fonte: http://www.stopper.blogger.com.br/2003_11_01_archive.html
A MG criou para a Duloren, famosa marca de lingeries, uma campanha, veiculada em
dezembro na qual a chamada principal é “Prá começar bem o ano, em vez de pular ondinha,
eu pulo a cerca”
Texto (2) - campanha da Duloren: contexto histórico eleições de 2010
116
Fonte: http://solembrandoque.wordpress.com/2010/09/30/eleicoes-inspiram-publicidade-da-duloren/
Texto (3) - campanha da Duloren: contexto histórico da pacificação da comunidade do
Morro do Alemão, cidade do Rio de Janeiro
Fonte: http://colunistas.ig.com.br/consumoepropaganda/2012/03/13/du-loren-reestreia-no-complexo-do-alemao/
A composição espacial dos textos exemplificados
A distribuição espacial do verbal e do visual define a composição do texto multimodal.
Kress e van Leeuwen (1996) têm por ponto de partida a gramática sistêmico-funcional de
Halliday (1985) e, assim, eles propõem as seguintes categorias, para a análise dessa composição:
•
o “dado” e o “novo”: os textos, que usam o posicionamento das fontes selecionadas
no eixo horizontal, consideram, espacialmente, a direita e a esquerda. Os elementos da
esquerda são apresentados como o “dado” (o conhecido socialmente) e os da direita,
como o “novo” (desconhecido);
•
o real e o ideal: os textos que usam o posicionamento das fontes selecionadas
consideram espacialmente, no eixo vertical, o real (embaixo) e o ideal (em cima).
•
o valor da informação no centro ou na margem: quando essa seleção ocorre, esse tipo
de composição significa que o que é representado no centro é o núcleo da informação
e os elementos, que ficam às margens, dependem do central.
•
a saliência: dar saliência a elementos cria uma hierarquia de importância entre eles,
pois focaliza, em tamanho maior, um elemento da composição; por isso, a hierarquia da
117
saliência ancora os demais elementos que compõem o texto, tendo a função principal
de integrar os elementos selecionados, na representação do tema textual.
No Texto (1), o verbal expressa crenças das cognições sociais, modificadas pela intenção
do produtor (cf. van Dijk, 1997): “Prá começar bem o ano, em vez de pular ondinha, eu pulo
a cerca”, para representar, metonimicamente, por expressões linguísticas, uma mudança nas
crenças sociais: a infidelidade feminina. Expressa, ainda, a imagem com a qual a Duloren quer
caracterizar a sua marca: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”, logo abaixo da
designação da marca: “Duloren”.
O visual expressa o ritual realizado por “mães de santo”, na praia, no momento da
passagem de ano (crença social); e a infidelidade feminina pela imagem de uma moça branca,
com expressão sorridente, semi-nua, tendo metade das pernas e pés apagados, com roupas
íntimas (calcinha biquine e soutien) de luxo, de cor “rosa choque”, com rendas, (relação
metafórica com o biquine) da Duloren, em posse de sedução, entre dois rapazes: a moça está
de braço dado com o da frente que está distraído observando os fogos de artifício; e abraçada
pela cintura pelo de trás que está seduzido por ela, que aceita seu assédio. O céu está iluminado
pelos fogos de artifício e embaixo, a praia e as ondas do mar.
Este texto está composto, em sua distribuição espacial, pela combinação dos eixos
(horizontal e vertical) com a saliência. No eixo horizontal, à direita, no fundo as mães de
santo saltando ondas do mar e a marca da Duloren com a imagem que quer informar o
“novo” para o interlocutor: “Duloren, você não imagina do que uma Duloren é capaz”. A
saliência expande o conteúdo de “capaz”, pois traz em tamanho maior e quase centralizada
a imagem da infidelidade feminina, representada pela moça branca, delgada, sedutora e
dois rapazes: o da frente, distraído, sem notar o assédio de sua companheira, sendo traído,
representado pelo verbal “pular a cerca” e o casal de trás, o assediador (o rapaz de trás,
abraçando a moça) e a infiel (ela aceita o assédio), vestida com uma Duloren (roupa íntima),
em lugar público. Logo, <<uma Duloren é capaz de propiciar a você uma nova e instigante
aventura amorosa, ao mesmo tempo que você mantém a sua relação atual, segura, antiga e
monótona.>> Sendo assim, os demais elementos dispostos no texto, relativos ao reveillon na
praia, tornam-se dependentes do triangulo amoroso, saliente e centralizado, representados
pelo verbal (“pular ondinhas” e “pular a cerca”): no fundo, a avenida beira-mar com os
prédios iluminados; à margem direita, as baianas e as ondas do mar; à margem esquerda, um
casal saltando ondas do mar.
No eixo vertical, em cima o céu iluminado por belos fogos de artifício é o ideal que
atrai a atenção do antigo parceiro; embaixo, o trio amoroso, é a concretização da infidelidade
feminina, cuja razão é a moça tornar-se sedutora e elegante, vestindo uma lingerie “cor rosa
choque”, cor da sedução.
No Texto (2), o verbal expressa: “Eleições 2010”, “Senhores candidatos o brasileiro
precisa mesmo é de uma boa renda”, para representar, metonimicamente, por expressões
linguísticas, uma mudança nas crenças sociais: mulher ocupar o cargo de presidente brasileiro;
assim, a promessa política de uma “boa renda” econômica para garantir o bem-estar dos
eleitores é ressemantizada e “boa renda” é o que enfeita as lingeries de luxo, com “lycra”,
metonimicamente representando o feminino na presidência.
118
O visual expressa uma urna eletrônica, situada em uma cabine eleitoral, que representa,
metonimicamente, pela imagem, os turnos eleitorais de 2010, no Brasil; expressa, ainda, a
beleza e elegância femininas, pela imagem de uma moça branca sofisticada, com expressão
indiferente de olhos fechados, com posse de modelo e de sedução, semi-nua, com as pernas
e pés apagados, vestida com roupas íntimas de luxo brancas (calcinha biquine e soutien),
terminadas com rendas brancas e coloridas. O fundo é de cor neutra acinzentada.
Este texto está composto pela centralização com saliência, em tamanho maior, da
imagem da moça que representa o feminino da mulher branca pela beleza elegante e sofisticada.
Os demais elementos dependem do centro.
A margem direita está composta no eixo vertical, pela expressão verbal do “novo”: em
cima, o ideal: “Senhores candidatos, o brasileiro precisa mesmo é de uma boa renda”; embaixo,
o real: “Duloren, você não imagina do que uma Duloren é capaz”. A saliência centralizada situa
o conteúdo de “renda”, que abrange duas áreas semânticas: a econômica = maior ganho e a de
acessórios = enfeite caro de roupas femininas. Na margem esquerda, o “dado”: a metonímia da
urna em uma cabine eleitoral, que representa as eleições de 2010, para presidência da república
e governadores e que mantém relação com “Senhores candidatos, o brasileiro...”.
No Texto (3), o verbal expressa: “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”, para
representar, metonimicamente, por expressões linguísticas, uma mudança nas crenças sociais:
quem pacifica é a polícia, mas quem domina é o rebolado sensual da negra carioca que é a
representação racial do feminino.
O visual expressa uma mulher negra, em roupas íntimas, sem rendas (cinta calça e soutien),
com expressão indiferente no olhar (olhos abertos e fixos no interlocutor do texto) e no corpo, a
posição de rebolado, segurando nas pontas dos dedos, com displicência, o quepe de um policial.
Ela tem no pescoço, um cordão que sustenta o símbolo do infinito. No chão, está largado, com
os olhos fechados e expressão de cansaço, um soldado vencido, com a camisa aberta, mostrando
o peito; no fundo, na parte alta, de um lado o recorte de um lixão e do outro, o recorte de casas
pobres da comunidade; embaixo do morro, edifícios altos da cidade do Rio de Janeiro.
Este texto está composto, também, pela centralização com saliência, em tamanho maior
e projetado, da imagem de uma moça negra robusta, com o corpo cheio de curvas e bonita,
em atitude de desafio e posição de vencedora, segurando com as pontas do dedo o quepe do
policial vencido, desmaiado no chão; ela está com cabelos esvoaçantes, com o símbolo do
infinito no pescoço e vestida com uma Duloren branca, representação modificada do imaculado
pela sensualidade, que é saliente em relação às demais cores das figuras que compõe o cenário
da favela do Morro do Alemão. Dessa forma, os demais elementos estão dependentes dela:
no fundo (em cima do morro, o lixão e as moradias; embaixo, os prédios a beira mar). Dessa
forma a figura da moça expande a expressão “dominar”, pelo poder arrasador da sensualidade
da mulher negra carioca.
No eixo horizontal, à direita, o “novo”, representado na sua composição vertical:
no alto, o ideal, situa-se o verbal “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”, sobre imagens
esfumaçadas do morro (a pobreza) em relação aos prédios, à beira-mar (a riqueza); embaixo,
o real, um soldado descomposto, desmaiado e vencido pela força sensual da mulher negra. À
esquerda, o “dado”, o morro e o lixão.
119
Seleção das fontes e combinação semiótica do verbal com
o visual
As fontes são selecionadas de paradigmas que compõem as partes do texto multimodal
e podem ser vistas como interagindo e afetando umas às outras, conforme são combinadas na
composição do todo (texto produto). É interessante observar que a noção de seleção, para a
ACD, não implica a consciência do sujeito-produtor, devido à disseminação da ideologia, que
instaura a dominação pelo Poder.
No Texto (1), as fontes são selecionadas de um paradigma festivo do reveillon brasileiro,
guiado por rituais de religião afro-brasileira e um paradigma de relações amorosas entre
homens e mulheres.
- paradigma social festivo: a fonte selecionada é comemoração do reveillon que tem,
na praia brasileira, a influência religiosa afro-brasileira. Para essa comemoração, foram
selecionados casais e mães de santo, todos vestidos de branco. À meia-noite, soltam fogos
espetaculares, os casais pulam sete ondas, para dar sorte no ano que entra, e as mães de santo
entregam, nas águas do mar, flores para Iemanjá, a rainha do mar.
A seleção da fonte, nesse paradigma, completa pelo visual o conteúdo sêmico da
expressão verbal “pular sete ondinhas”, cujo morfema diminutivo complementa, também, pela
inserção de um certo tom irônico.
- paradigma de relações amorosas entre casais: a fonte selecionada é a infidelidade,
que nas cognições sociais é atribuída ao masculino, mas que no texto (2) está modificada pela
projeção no feminino, representada pela saliência visual do triângulo amoroso, originado pelo
uso de uma lingerie Duloren, cor “rosa choque” e não branca; assim, representa-se o feminino:
pela sedução causada pelo uso de uma Duloren e pela aceitação do assédio de outro parceiro.
A seleção dessa fonte tem a intenção de completar pelo visual o conteúdo sêmico do verbal
“pular a cerca” que representa os limites do compromisso amoroso, nas cognições sociais.
No Texto (2), as fontes são selecionadas de dois paradigmas: um político, do qual é
selecionada a eleição para presidência de 2010, com os candidatos Dilma e Serra, no segundo
turno; o outro, um paradigma social da mulher, do qual são selecionados a beleza e a elegância
da mulher branca, ancoradas no luxo.
A seleção dessas fontes tem a intenção de completar pelo visual o conteúdo sêmico
do verbal “senhores candidatos, o brasileiro precisa mesmo de uma boa renda” = << o
brasileiro precisa mesmo de uma mulher presidente>>, metonimicamente representada, por
“uma Duloren”, ou seja, pela elegância e beleza devido às suas roupas íntimas, terminadas
luxuosamente com rendas caras e de excelente qualidade, como é uma Duloren.
No Texto (3), há seleção de fontes em dois paradigmas, de cognições sociais típicos da
cidade do Rio de Janeiro: um paradigma policial: seleção do poder do policial para garantir
a paz da população, usando o seu uniforme, enquanto está em serviço, principalmente, nas
120
favelas que se situam em morros, onde se escondem os bandidos que dominam o tráfico de
armas e de drogas; e um o paradigma dos moradores das comunidades: seleção do poder de
sedução sensual da mulher negra sobre o masculino. A seleção dessas fontes tem a intenção
de completar pelo visual, o verbal “Pacificar foi fácil. Quero ver dominar”. “Pacificar” é
complementado pela figura do policial; “dominar”, pela figura da moça negra, em atitude de
desafio olhando diretamente nos olhos do interlocutor, com a aparência de vencedora, em pose
de rebolado, com o quepe do policial nos dedos e o policial desalinhado, desmaiado no chão.
A relação entre o visual e o verbal é complementada com “Você não imagina do que
uma Duloren é capaz” = << quem domina as forças pacificadoras das comunidades dos morros
do Rio de Janeiro é o poder de sedução sensual da mulher negra, reforçado e ampliado pelo
uso de uma Duloren”.
Os contextos no anúncio publicitário
Desde que se insira a categoria Cognição às categorias Sociedade e Discurso, todos
os contextos são entorno do texto produto, enquanto formas de representação mental, ou seja,
formas de conhecimento sociais e individuais.
Dessa forma, os sentidos produzidos são dependentes dos contextos ativados da
memória de longo prazo para a memória de trabalho, a partir da percepção de como o texto
multimodal está composto, a fim de serem produzidos os sentidos.
Nos textos exemplificados, são prováveis pela sua composição, os seguintes contextos:
Contexto social
Este contexto é formado pelos grupos sociais, selecionados de fontes que compõem as
cognições sociais.
No Texto (1), as identidades dos papéis sociais do compromisso amoroso são modificadas,
pois o feminino é representado pela infidelidade, que ocasiona o triângulo amoroso pelo “pular
a cerca”; o papel social do masculino, nesse compromisso é mantido: o machismo, pelo assédio
do membro externo da relação e pela segurança do membro interno. As identidades religiosas
afro-brasileiras são mantidas: a mãe de santo tem a função de estabelecer relações entre o
humano e o divino; os crentes têm a função de seguir as mães de santo, em rituais específicos:
no reveillon, elas oferecem flores a Iemanjá; os crentes pulam sete ondas.
A representação do feminino pela infidelidade é ideológica, pois tem valor negativo
extra-grupal na sociedade brasileira cujas raízes históricas situam-se no discurso eclesiástico;
embora, no grupo minoritário das feministas, a mulher tenha tanto direito de ser infiel quanto
o homem.
121
No Texto (2), nas identidades sociais do grupo político, o papel do masculino é ocupado
pelo feminino, para representar a presidência brasileira, embora os papéis de candidatos e
eleitores sejam mantidos, conforme as cognições sociais. O papel de eleitor é representado
pelo visual, cabine de votação com sua urna eleitoral.
No Texto (3), - as identidades sociais dos dois grupos sociais estão modificadas. No
policial, o papel do soldado é de dominar a marginalidade (traficantes de armas e drogas), no
morro carioca. Esse papel está modificado, pois o policial é representado como dominado. No
grupo social dos moradores de comunidades, o papel da mulher negra está modificado, pois
a sua função de ser protegida pelo policial é representada como pela do dominador (o poder
da sensualidade negra que atrai os olhares masculinos pelo rebolado de seu corpo flexível,
robusto e curvilíneo, das passistas, rainha de bateria e porta-bandeira, nas escolas de samba).
Contexto discursivo
O discurso publicitário, visto como uma prática social que, segundo a vertente sóciocognitiva, defini-se por um esquema cognitivo que é organizado pelas categorias Poder,
Controle e Acesso, cada qual com seus participantes, funções e ações. O discurso publicitário
tem seu contexto discursivo ancorado na ação de anunciar um produto novo, sendo ela
modalizada pelo propósito de transformar o interlocutor em consumidor.
O Poder é representado pelos donos da empresa que tomam a decisão de anunciar seus
produtos. Nos textos exemplificados, os donos da empresa Durlorem que decidem anunciar as
suas lingeries, para vender mais no mercado. Para tanto, contratam uma agência de publicidade.
O Controle é representado pelos participantes da agência de publicidade que têm por
propósito produzir o anúncio publicitário que propicie a maior venda do produto anunciado.
Para tanto, recorrem à pesquisa de mercado (marketing) a fim de saber o que falta para os
consumidores do produto anunciado. Dessa forma, os participantes especialistas, que executam
as ordens do poder, produzem o anúncio, guiados por três exigências: criar a necessidade de
consumo, prometer que o consumo do produto anunciado satisfaz essa necessidade com pouco
custo e em pouco tempo.
O Acesso é representado pelos participantes que distribuem o anúncio para que ele
tenha acesso à audiência selecionada para ser atingida (auditório universal ou particular). É o
acesso ao público que garante, ao poder, a realização das funções pragmáticas de preservação
e distribuição, de forma a garantir maior disseminação ideológica. Os anúncios selecionados
foram publicados em revistas de grande circulação e continuam sendo divulgados pela Internet.
Contexto cognitivo
O contexto cognitivo é composto pelas crenças sociais da audiência, de forma a
produzir um entorno relativo às identidades sociais e suas relações entre as pessoas. No Texto
(1), segundo as cognições sociais, ideologicamente, a infidelidade masculina é representada
122
com valor positivo, devido ao machismo brasileiro e a infidelidade feminina, com valor
negativo, propiciando a sua discriminação social. Nesse texto, há, portanto, uma relevância,
com alto grau de informatividade, que obriga o interlocutor a mudar o seu contexto cognitivo
que vinha sendo construído com os conhecimentos sociais ativados da memória de longo
prazo: o verbal e o visual representam a infidelidade feminina, ocasionada pelo uso de uma
Duloren que dá, à mulher, o poder de atração. Dessa forma, o contexto cognitivo cria o entorno
para definir os modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso: a função
textual de tema (a infidelidade feminina, como o “novo”) e comentários (uma Duloren é capaz
de dar o poder de sedução à mulher, tornando-a sensual e atraente para satisfazer seu desejo de
relação amorosa nova e instigante).
No Texto (2), conforme as crenças sociais ativadas, para compor o contexto cognitivo,
nas identidades sociais de candidato a cargo e eleitores, o presidente brasileiro é representado
pelo masculino. Esse texto apresenta uma relevância que obriga o interlocutor a mudar o seu
contexto cognitivo que vinha sendo construído com os conhecimentos sociais ativados da
memória de longo prazo: o verbal e o visual representam o grupo social político, tematizado
pela presidência feminina (representada metonimicamente por “uma boa renda” = <<elegância
sofisticada>>) que participa do grupo social da mulher cujas funções identitárias são mantidas.
No Texto (3), segundo as crenças sociais, a polícia é representada pelo poder de domínio
da marginalidade e que, no momento atual, é necessária, pois tal marginalidade causa violência
social que precisa ser anulada pelo poder político, para a realização de competições atléticas
internacionais. No texto (3), a representação textual do policial, dominado pela mulher negra,
tem um grau alto de informatividade, pois, com relevância, modifica a identidade do papel social
de policial = dominado pelo poder de sedução sensual erótico da mulher negra, a dominadora.
Tal relevância o interlocutor a mudar o seu contexto cognitivo que vinha sendo construído com
os conhecimentos sociais, a respeito da pacificação da comunidade do Morro do Alemão, pelo
domínio da força policial e que foi muito divulgada pela mídia. Logo, o feminino é representado
pelo erotismo, como forma de discriminação do valor de produtividade social e econômica da
mulher negra brasileira, devido ao machismo e ao racismo brasileiros: a função textual de
tema (o poder de domínio do erotismo da mulher negra, moradora da comunidade do Morro do
Alemão) e o comentário (a polícia pacifica pela força, a negra do morro domina todos e mesmo
a polícia pelo poder de seu erotismo). Esse domínio erótico é expresso, metonimicamente,
pelo verbal: “quero ver dominar”, que é expandido pelo visual: a mulher negra muito erótica,
resultado de vestir o seu corpo belo, robusto e curvilíneo, muito bem delineado pela lycra do
soutien e da cinta calça da Duloren, que diferentes das lingeries da mulher branca, não têm
rendas, pois o poder aquisitivo é baixo. Este, também é representado pelo visual que focaliza
como cenário o lixão e as moradias pobres do morro carioca.
Contexto de linguagem
Este contexto decorre do conhecimento que se tem a respeito dos diferentes usos da
linguagem, a partir de variedades e variações lingüísticas, selecionadas para a composição do
texto, na prática discursiva. Nos grupos sociais de baixa escolaridade, o uso é designado variedade
nativa de uso oral; nos grupos sociais de alta escolaridade há duas variedades linguísticas: a oral,
123
variedade padrão-real; e a escrita, variedade padrão normativa, aprendida na Escola.
No Texto (1), o verbal é expresso por: “pular ondinha”, cujo morfema diminutivo tem a
função de inserir modalmente a ironia, para designar um ritual de reveillon; e “pular a cerca”
que é uma expressão idiomática brasileira para designar a infidelidade conjugal feminina,
expandida pelo visual; a designação “cerca” é ressemantizada e contém <<limites impostos
pela relação conjungal>>. A expressões linguísticas selecionadas são da variação coloquial do
padrão-real, que representa o grupo social dos participantes: “Prá começar bem o ano, em vez
de pular ondinha, eu pulo a cerca”.
Esse texto traz representadas em língua duas sequências dialógicas:
- a primeira sequência dialógica: diálogo da moça com seus interlocutores textuaisdiscursivos, que lêem o anúncio (“eu”- quem fala para os interlocutores).
- a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os
interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = <<
comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à
valorização da atração feminina>>.
No Texto (2), verbal é representado pelas expressões “boa renda” para focalizar o
tema textual, “do que uma Duloren é capaz”. O visual complementa o conteúdo sêmico do
verbal, pela representação de uma mulher branca elegante e sofisticada, vestida com uma
Duloren, com belas e luxuosas rendas. As expressões linguísticas selecionadas são da
variação coloquial do padrão-real e verbalizam uma mudança social. Dessa forma, ocorre
a ressemantização da expressão “boa renda” que compõe o paradigma lexical da política
econômica brasileira, inserindo o sentido de “presidenta” <<mulher eleita para o cargo de
presidente>>, complementado com o valor positivo.
Esse texto traz representado em língua duas sequências dialógicas:
- a primeira sequência dialógica: diálogo dos participantes da Duloren com os candidatos
à eleição para presidente, em 2010. “Senhores candidatos: o brasileiro precisa mesmo é de
uma boa renda”;
- a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os
interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = <<
comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à
valorização do feminino>>.
No Texto (3), o verbal representado pelas expressões “Pacificar foi fácil. Quero ver
dominar” para focalizar o tema textual << o poder de domínio da negra brasileira, devido
ao seu poder de domínio do masculino, pela sensualidade erótica, ampliada pelo uso de uma
Duloren>> = “do que uma Duloren é capaz”. O visual complementa o conteúdo sêmico do
verbal, pela representação de uma mulher negra, curvilínea e erótica, com atitude de desafio e
de domínio, em posse de rebolado, tendo o símbolo do infinito no pescoço, vestida com uma
Dulorem, de lycra sem rendas, dando formas bem marcadas ao corpo feminino. As expressões
linguísticas selecionadas são da variedade nativa do grupo social de comunidades cariocas,
onde o funk é privilegiado. A designação “dominar” está intertextualizada com a letra da
124
música funk “Tá dominado”: “Rebola levantando o dedinho; rebola. rebola dominando esse
corpinho. Então ah, eu quero ver tu dominar. Tá tudo dominado, dominado ...”. Dessa forma,
ocorre a ressemantização da expressão “dominar” que compõe o paradigma lexical da gíria
dos habitantes de comunidades cariocas, inserindo o sentido de poder de domínio do rebolado
da mulher negra do morro carioca.
Esse texto traz representado, pelo verbal, duas sequências dialógicas:
- a primeira sequência dialógica: diálogo da mulher negra com seu interlocutor ( ela olha
fixo em quem iterage com o texto) e com o policial pacificador “Pacificar foi fácil. Quero ver
dominar”.
- a segunda sequência dialógica: diálogo dos fabricantes da Duloren com os
interlocutores textuais-discursivos: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz” = <<
comprem lingeries Dulorem que elas são capazes de produzirem mudanças sociais, devido à
valorização do erotismo feminino>>.
Contexto histórico
O contexto histórico é construído com a ativação de conhecimentos que situam
cronologicamente os eventos no mundo.
No Texto (1), o tempo cronológico selecionado é o reveillon, tendo por cenário, uma
praia brasileira.
No Texto (2), o tempo cronológico selecionado é a eleição de 2010 para a presidência
brasileira, tendo por cenário, uma cabine eleitoral com a sua urna eletrônica.
No Texto (3), o tempo cronológico selecionado é a invasão e pacificação do Morro do
Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, pela polícia, anteriormente dominado pelos chefes do
tráfico de drogas e de armas.
Os resultados das análises apresentadas indicam que o feminino é valorizado em sua
representação discursiva pelo poder de sedução da mulher branca, representada na composição
do verbal com o visual por: poder de atração sensual, representado pela infidelidade feminina
em compromissos amorosos; e poder de ação e decisão políticas, representado pela beleza
feminina elegante e sofisticada. O poder da mulher negra é de domínio do masculino pela
sensualidade erótica. Essas representações são ideológicas, na medida que discriminam
socialmente a mulher brasileira: a. pelo poder econômico – a branca, alto poder aquisitivo
(beleza sofisticada) e a negra, baixo poder aquisitivo (beleza erótica); b. pelas funções de
sedução do masculino, quando o feminino, hoje, vem ocupando o papel de chefe de família,
devido à sua competência e produtividade no trabalho.
Esses resultados indicam, também, que o anúncio publicitário é um gênero textual. Os
textos diferenciam entre si pelos gêneros discursivos, decorrentes dos usos que esses textos
125
têm em sociedade. Dessa forma, os gêneros textuais são vistos como formas discursivas,
ligadas às esferas da vida social.
Segundo estudiosos do gênero, as pesquisas devem ser realizadas para responder a seguinte
pergunta: Por que os membros discursivos constroem textos da maneira como são feitos?
A inserção da categoria Cognição para o exame de contextos na produção de sentidos
e para a composição do produto textual indica que o anúncio publicitário é um gênero textual
construído com uma sequência textual explicativa incrustada em uma sequência argumentativa,
de forma a combinar o visual com o verbal.
Em síntese, o anúncio publicitário é um gênero textual que apresenta uma relevância
cognitiva em relação às cognições sociais, devido à mudança de papeis das práticas sociais, a
fim de anunciar o produto novo a ser consumido. As expressões verbais são selecionadas da
variedade/variação linguísticas, representativas das pessoas representadas, no visual, como
participantes, intencionalmente, selecionados de grupos sociais. Assim, controi-se o “novo”
em relação ao “dado” e tematiza-se o produto anunciado. Os comentários são construídos
por argumentos de legimitidade, pois são selecionados das cognições sociais (o “dado”,
o conhecido) e modificados pelas intenções do produtor, guiadas pelo macroato de fala
discursivo: fazer consumir. Trata-se de uma estratégia de produção que caracteriza a prática
discursiva da construção do texto que está em uso nas práticas sociais da audiência.
Para concluir, acredita-se que os objetivos propostos tenham sido cumpridos, pois
os resultados apresentados indicam que tratar de textos multimodais (anúncios publicitários),
pelo enfoque dos contextos, de forma a considerar a categoria Cognição, com as categorias
Sociedade e Discurso, contribui para descrever tanto aspectos da composição textual da
modalidade verbal com a visual, assim como estratégias de compreensão, aplicadas para a
produção de sentidos. Logo, os sentidos produzidos são representações mentais que constroem,
socialmente, as crenças contidas nas cognições sociais grupais e extra-grupais, perpassadas
historicamente pela cultura e pela ideologia. Tais crenças são construídas no e pelo discurso,
cujo produto é o texto.
Os resultados apresentados indicam, também, que os elementos selecionados pelo
produtor participam de sistemas de conhecimento (simbólico, interacional e enciclopédico),
armazenados na memória de longo prazo das pessoas, após terem sido processados por elas.
Todavia, é necessário considerar que a ativação do armazenado nem sempre é consciente, pois
a ideologia do Poder, que tem acesso ao público, pelos discursos, passa a dominar a mente das
pessoas, levando-as a sustentar essa ideologia por sua reprodução textual, no e pelo discurso.
Nesse sentido, conclui-se que, na interação comunicativa entre as pessoas, todas as
práticas sociais e os textos estão inter-relacionados, de algum modo, às formas de conhecimento,
representações mentais sociais e individuais que são crenças originadas no social. Logo, são
elas que guiam as ações das pessoas no mundo, tanto para manter quanto para modificar,
dinamicamente, a memória social.
Os resultados apresentados abrem novas perspectivas de pesquisa para se tratar
de outros tipos de contextos implicados nos textos multimodais publicitários e de textos
multimodais de outros discursos.
126
Referências
FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. Cambridge: Polity Presse, 1992.
FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis in transdisciplinary research. In: A new agenda in
(critical) discourse analysis: theory, methodology and interdisciplinarity. Amsterdan/Philadelphia: J.
Benjamin Publishing Company, 2005.
FAIRCLOUGH, N. Language and globalization. London: Routledge, 2006.
______ Discurso e mudança social. [Trad. Izabel Magalhães]. Brasília-DF: Edunb, 2001.
HALLIDAY, M. An introduction to funcional Grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985.
KINTSCH, W. ; VAN DIJK, Teun. Strategies discoursive comprehension. London: Academic Press,
1983.
KRESS, G. ; VAN LEEWEN, T. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary
communication. London: Arnould, 2001.
______ Reading images: the grammar of visual design. London: Routledge, 1996.
POTTIER, B. Linguistique générale. Théorie et description. Paris: Klincksiek, 1974.
SILVEIRA, R. C. P. da. Um novo olhar para as narrativas de humor: os sentidos no cotidiano e na
cultura. O texto em perspectiva. PIRES, L. C. ; BEZERRA, A. ; CARDOSO, D. (Orgs). Aracaju-SE:
UFA, 2009.
VAN DIJK, T. Racismo y análisis crítico de los médios. Madrid: Paidós, 1997.
______ Sociedade e contexto. [Trad. Rodolfo Ilari], S. Paulo: Cortez, 2012.
______ Sociedad y discurso- cómo influen los contextos sociales sobre el texto y la conversación. [
Trad. Elza Ghio], Barcelona: Gedisa, 2011.
WODAK, R. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD). Métodos de análisis crítico del discurso.
WODAK, R. ; MEYER, M. (Orgs). [Trad. Tomás Fernandez Aúz e Beatriz Eguibar], Barcelona:Gedisa,
2003.
127
A CONSTRUÇÃO DO IDEAL IDENTITÁRIO
BRASILEIRO PELA PUBLICIDADE
GOVERNAMENTAL – UMA ANÁLISE CRÍTICA
MULTIMODAL
Josenia Antunes Vieira1
Maria Lílian de Medeiros Yared2
Este estudo tem por objetivo interpretar, por meio de um vídeo institucional do governo
brasileiro, as relações entre recursos semióticos, geradores de sentido, e a construção de
representações ideais de uma comunidade, facilitadoras da prática governamental de controle
social. Assim, com a pesquisa sobre a construção do ideal identitário brasileiro, por meio da
publicidade, observamos como esses recursos se relacionam de forma integrada para reafirmar
esse ideal, ideologicamente construído e cuidadosamente cultivado pelos discursos, segundo
o enfoque da Semiótica Social da Multimodalidade (TSSM), proposto por Gunther Kress, em
2010, pela Análise de Discurso Crítica (ADC), especialmente a versão proposta por Fairclough
em 2003, e pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), criada por Halliday, dando relevo ao
fato observado pelas pesquisadoras de que uma teoria como a ADC pode responder à pergunta
“por quê?” e a TSSM e a LSF podem responder à indagação “como?”. Este estudo faz parte de
uma pesquisa maior sobre publicidade governamental no Brasil. Como considerações finais,
podemos dizer que o governo brasileiro está direcionado politicamente para a construção do
ideal identitário brasileiro, com o estabelecimento de um envolvimento emocional acrítico entre
os cidadãos, por meio da transmissão da ideologia de inclusão social.
Palavras-Chave: Multimodalidade. Semiótica social. Recursos semióticos.
Ideal identitário brasileiro.
Introdução
Esta pesquisa faz parte de uma pesquisa maior, direcionada à compreensão ampliada
acerca do papel do Estado brasileiro na formação de visões de mundo, de figuras-símbolos
ideologicamente construídas, alocadas no lugar da identidade ideal. Como parte dela, este
artigo se concentra na análise de um vídeo institucional do governo brasileiro, intitulado O
1
2
Universidade de Brasília (UnB). Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas. Programa de
Pós-Graduação em Linguística. Brasília-DF. Brasil. E-mail: josenia.unb@gmail.com.
Universidade de Brasília (UnB). Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas. Brasília-DF. Brasil. Programa de Pós-Graduação em Linguística. E-mail: mayared@gmail.com.
129
Brasil está em boas mãos, com duração de trinta segundos. Essa peça publicitária foi veiculada
na televisão (TV aberta e TV a cabo) entre outubro e dezembro de 2011, no horário dito nobre,
entre 20h e 22h. Esse horário aumenta o poder de alcance do comercial, uma vez que, nele, a
maioria dos trabalhadores brasileiros se encontra em sua residência, descansando de mais um
dia de trabalho intenso. Foram analisados 24 quadros (frames), os mais representativos para o
significado da peça publicitária.
O texto publicitário tem um poder muito grande de persuasão porque seus criadores/
autores/meaning-makers sabem escolher o recurso semiótico necessário para realizar o
enquadramento ideal a fim de direcionar a percepção do observador/leitor/viewer e, dessa
forma, garantir a empatia do viewer com o mundo retratado. Assim, é necessário que os
analistas de discurso busquem novas formas de estudos de transcrições e de análises desse tipo
de texto multimodal, o filme publicitário, visto que o seu papel na manutenção e na perpetuação
das relações de poder é muito significativo.
A Teoria da Semiótica Social da Multimodalidade – o
princípio de integração dos recursos semióticos na
metodologia da transcrição
A teoria desenvolvida por Kress — Teoria Semiótica Social da Multimodalidade
(TSSM) — apõe uma nova lente aos fatos ligados às práticas comunicacionais humanas. Essa
teoria, por ser uma teoria semiótica, preocupa-se, acima de tudo, com o sentido. Ademais, é
social porque entende que os recursos semióticos — os fios de tecer o sentido do texto — são
moldados e perpetuados cultural e historicamente em uma comunidade. Essa teoria leva em
consideração que a comunicação humana não se resume ao modo fala, ou ao modo escrita,
mas que se utiliza também de vários modos de expressão para construir o sentido de um textomensagem. Assim, a tarefa do analista de um texto multimodal, como um filme publicitário,
é também observar como a disposição dos recursos semióticos, dispostos dinamicamente,
facilita a produção deste ou daquele sentido.
Existem alguns conceitos fundamentais na TSSM, construto que privilegia a comunicação
e o interesse do meaning maker (autor do texto, literalmente “fazedor de significado”), em
usar determinados modos para expressar o sentido desejado com o objetivo de transmitir
esse sentido para os outros, sejam viewers, leitores ou ouvintes. Em multimodalidade, existe
o conceito de interesse: o autor do texto tem um sentido a transmitir e escolhe os recursos
semióticos para formar o seu texto, de acordo com o seu interesse. Temos o conceito de modo:
recursos que materializam o sentido de um texto, como o modo escrita, o modo gestual, o modo
fala, o modo cor. Modos pertencem ao plano da expressão. Segundo o modelo de Hjelmslev,
foram moldados social e culturalmente e estão disponíveis para o meaning maker construir o
seu texto.
130
Esta pesquisa está ancorada na TSSM proposta por Gunther Kress, na Análise de
Discurso Crítica (ADC) – aparato teórico desenvolvido por Fairclough em 2003 –, e na
Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) criada por Halliday. Dá relevo ao fato observado
pelas pesquisadoras de que uma teoria como a ADC pode responder à pergunta “por quê?”
e de que a TSSM e a LSF podem responder à indagação “como?”. As categorias de análise a
serem utilizadas são as seguintes: modo fala, modo escrita, modo cor e cinestesia, qual seja,
o movimento corporal. Em relação à ADC, será utilizada a categoria referente ao significado
representacional do discurso, basicamente, a representação dos eventos e dos atores sociais,
com o intuito de localizar os discursos que estão por trás da letra da canção no comercial em
questão. Pretendemos observar como essas peças publicitárias são construídas pelo meaningmaker (autor do texto) e de que forma servem ao trânsito das ideologias e ao controle social
pelo Estado.
A transcrição do filme será feita por meio do modelo (tabela/matriz) de Baldry e
Thibault, que deixa explícito o princípio da integração dos recursos semióticos em um texto.
(BALDRY; THIBAULT, 2010). Com a transcrição, pode-se ver, ao longo das linhas da tabela,
os recursos semióticos utilizados simultaneamente. Foram analisados 24 frames de um filme
de 30 segundos. Trata-se dos frames mais significativos, cada um contendo o personagem
típico do quadro, seja esse personagem representado por meio do trabalho que faz com as
mãos, seja por meio de sua ação com o corpo inteiro.
O filme inicia-se com uma representação metonímica, pela qual o participante (todo) é
representado pela parte (mãos). O comercial compõe-se de uma sequência de mini-histórias,
com participantes típicos da paisagem cultural brasileira arquetípica (samba + futebol +
sorriso). Nesta pesquisa, escolhemos o frame representativo de cada personagem. Cada linha
será composta das seguintes subdivisões ou colunas: o tempo em segundos (T), no qual o
enquadramento foi realizado; os frames narrativos; a imagem visual (posição da câmera); a
trilha sonora; o modo escrita; e o movimento corporal (cinestesia). No caso da coluna referente
à trilha sonora, serão usados símbolos para identificar a voz feminina; no caso da coluna
relativa ao movimento corporal, a notação entre colchetes indica ações simultâneas, separadas
por ponto e vírgula. Se a ação for sequencial, faremos a anotação com o símbolo do acento
circunflexo (^).
Para a análise dos textos, será utilizada a Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY,
2004) em relação ao sistema de transitividade e à metafunção interpessoal da linguagem, a
fim de entender que um texto publicitário pode constituir, na verdade, um texto de ordem ou
de pedido: implícita ou explicitamente, o texto publicitário dá uma ordem (de consumo ou de
adesão a um ideal) ou faz um pedido (para consumir ou para aderir a um ideal ou a uma visão
de mundo).
A Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2003) será utilizada como ferramenta
para a análise discursiva com o intuito de explicitar o desvelamento das ideologias por meio
dos significados textuais.
131
Análise do vídeo institucional – identificação patriótica e
envolvimento acrítico
No texto O Brasil está em boas mãos, é apresentada, ao viewer (observador, telespectador),
uma sequência de imagens com vários personagens brasileiros dançando ao som de um samba,
celebrando as “oportunidades” que o País está oferecendo especialmente às pessoas com menos
recursos. Os participantes convidam o observador a fazer parte do mundo retratado por meio do
sorriso, invocando, nessa interação, os chamados valores culturais do brasileiro.
O texto é composto de imagens em movimento, de pessoas sambando e celebrando, de
canção com letra, de narração em primeiro plano com uma voz feminina — e sua respectiva
legenda embaixo da imagem, sem ligação com a imagem — e de chamadas escritas em cima
das imagens, que mostram dados estatísticos referentes ao crescimento econômico do Brasil.
A voz feminina aparece pouco depois do início do samba, e os dados, pouco depois do início
da narração da voz feminina. Esse texto foi veiculado na TV aberta e na TV por assinatura em
novembro e dezembro de 2011. Segundo a Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência
da República), ele mostra o protagonismo dos brasileiros no desenvolvimento do Brasil.
A tabela de transcrição – uma visão diferente
O modelo de transcrição matricial (linhas e colunas) de textos dinâmicos, como um filme
publicitário, proposta por Baldry e Thibault (2010), permite-nos uma percepção linear diferenciada
do texto, o que deixa explícito o princípio da integração dos recursos semióticos, ou seja, podemos
ver como todos os recursos semióticos estão dispostos para a formação dos sentidos do texto.
A tabela de transcrição antecipa, em alguma medida, a análise. Quando recontextualizamos
o dado, permitimos que seja visto como os recursos semióticos foram dispostos pelo meaning
maker (autor) para formar o sentido. Essa disposição linear dos recursos semióticos fornece
uma lente capaz de mostrar o que não podemos perceber ao vermos o filme, cujos quadros
passam muito rapidamente, às vezes, escapando à nossa percepção consciente.
A legenda é a que segue:
• T: tempo em segundos (o momento do filme em que apareceu determinado quadro; às
vezes, vários quadros apareceram no mesmo segundo)
• PC: posição da câmera (E: estacionária)
• PH: perspectiva horizontal (frontal ou oblíqua)
• PV: perspectiva vertical (alta, baixa, mesmo nível)
• D: distância entre o viewer e o mundo retratado (muito perto, perto, médio close,
tomada de longe)
132
•
•
•
•
CV: colocação visual
SV: saliência visual
FV: foco visual
CR: cor em realce
Um frame visual significativo foi escolhido. Com isso, identificamos em que momento
(segundo) do filme esse frame comparece. Normalmente, cada frame visual coincide com
diferentes personagens, mas nem sempre isso ocorre. Por exemplo, no caso do gari sambando,
dos “peladeiros”, da mãe segurando o filho. Esses personagens tiveram mais tempo no total do
filme.
A posição da câmera (PC) é estacionária durante todo o filme. Na perspectiva horizontal
(PH), prevalece a posição frontal da câmera e, na perspectiva vertical (PV), prevalece a câmera
no mesmo nível dos personagens. Em relação à distância D (distância entre e o viewer e o
mundo retratado), o filme começa com closes fechados nas mãos, passa por médios closes
(cintura para cima) e termina em um close fechado das palmas das mãos.
A seguir, temos a matriz de transcrição da peça publicitária com os principais frames
visuais, formadores de pequenos grupos significativos.
Quadro 1 – As Metáforas das Mãos – a construção do Brasil
T
1
FRAME VISUAL
(coincide com as tomadas)
IMAGEM
VISUAL
PC: E
PH:
oblíqua
PV: mediana
D: muito
perto
CV: paisagem
agrícola.
SV: mãos,
caixinha de
fósforo
TRILHA
SONORA
Samba
Som
introdutório do
cavaquinho;
depois, o
tambor e o
pandeiro. Som
da caixa de
fósforo.
VOZ
FEMININA
TEXTO
MODO
ESCRITA
NA
IMAGEM
MOVIMENTO
CORPORAL
Mãos de homem
batucando na
caixinha de
fósforo.
133
1
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D:muito
perto
CV: madeira
SV: mão com
luva azul
e branca;
serrote
1
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: muito
perto
CV: tijolo,
pá.
SV: cimento
Som
introdutório do
cavaquinho;
depois, o
tambor e o
pandeiro. Som
do serrote.
Uma mão
segurando a
madeira e a
outra (deduzida)
utilizando o
serrote.
Som
introdutório do
cavaquinho;
depois, o
tambor e o
pandeiro. Som
da pá.
Mãos (off
screen)
utilizando
a pá para
assentamento do
tijolo. Metáfora
da construção do
País.
A construção do Brasil é representada pelo trabalho com as mãos. A câmara está em
close, amplificando o papel do trabalho na construção do País. Há uma significação metonímica
do Brasil (parte pelo todo): as mãos dos brasileiros são o Brasil, e uma metáfora de construção/
crescimento: as mãos dos brasileiros vão construir o Brasil e o País vai crescer.
Nesse caso, o Brasil encontra-se metaforicamente conectado à produção agrícola
(rapidamente, no primeiro frame visual); à construção civil (mais representativa) e às atividades
de produção de bens e serviço dos microempresários (também representativa).
O gari: a coreografia solitária do trabalhador feliz
Quadro 2 – O gari: a felicidade do fim de festa
FRAME VISUAL
3
134
IMAGEM VISUAL
PC: E
PH: oblíqua
PV:mediana
D: médio close
CV: fundo verde e
branco
SV: sombra do gari
CR: verde
TRILHA
SONORA
¯♂ Em boas
VOZ
FEMININA
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
Sombra do
personagem que
vai aparecer
(clima de
suspense para
apresentar o
“sambista do
Brasil”).
4
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: tomada de longe
CV: casas, rua, poste
SV: gari e homem
sentado
CR: verde
5
PC: E
PH: obliqua
PV: mediana
D: tomada de longe
CV: casas, rua, poste
SV: gari e homem
sentado
CR: verde
¯♂(*)
mãos
[Personagem
gari aparece
sambando;
homem sentado
batucando.]
¯♂ (*)mãos
O gari é símbolo do samba, da alegria ao trabalhar; é o varredor da imensa área do
sambódromo completamente abarrotada de lixo após o carnaval. O gari prolonga a festa do
carnaval, porque também representa um tipo de “bloco” que desenvolve coreografias para um
sambódromo vazio e cheio de restos da grande comemoração. No caso da peça publicitária em
análise, há um público para a dança do gari, representado por um aposentado típico, sentado
em uma cadeira colocada fora da casa, em um bairro tranquilo de um Brasil que não existe. O
texto torna o gari protagonista desse ideal de Nação, além de realizar o paralelo entre trabalho
e alegria — todos os trabalhadores estão alegres em trabalhar, em alcançar as suas metas, que
são as metas do Brasil. Na linguagem de Fairclough (2003), o gari é um “caractere social” ou
um “tipo social”. Trata-se de uma das possíveis identidades sociais do Brasil. Podemos ver
que esse “caractere social” é construído pela mídia de massa como um ser alegre, amável,
135
bem-humorado. Segundo o nosso entendimento, esse tipo social é um tópico-auxiliar da
governança, porque permite a propagação da ideia de um brasileiro amável e risonho frente a
qualquer situação da vida, o que está muito distante da realidade.
A pelada com os amigos: a alegria do fim de semana
Quadro 3 – A pelada (partida de futebol não profissional) com amigos no fim de semana
T
FRAME VISUAL
IMAGEM VISUAL
TRILHA
SONORA
VOZ
FEMINIA
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
7
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: média
CV: rede de goleiro ao ¯♂Do povo
brasileiro
fundo
SV: jogadores
CR: verde
FV: longe
[Jogadores em
coreografia;
sorriso]
8
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: média
CV: rede de goleiro ao
fundo
SV: jogadores
CR: verde
FV: longe; viewer
Jogadores
desenvolvem a
coreografia.
A “pelada do fim de semana” é a marca (talvez não registrada) do lazer do homem
brasileiro médio, pai de família, na faixa dos quarenta aos cinquenta anos de idade, frequentador
do campo de futebol comunitário nos fins de semana, outro caractere social, ou tipo social,
caracterizado pela alegria, pela paixão, pela cerveja e pelo futebol, embora a sua atividade
física normalmente se resuma a essa partida semanal de 30 ou 40 minutos. O papel do sorriso
como um elemento de coesão textual pode ser observado ao longo de todo esse comercial.
136
O trabalho mais qualificado e o consumo ao alcance da população
Quadro 5 – A inclusão e o consumo
T
10
11
FRAME VISUAL
IMAGEM VISUAL
PC: E
PH: frontal
PV: baixa
D: média
CV: céu, arranha-céu,
carregador de mala
SV: homem
recepcionista
PC: E
PH: oblíqua
PV: alta
D: média
CV: banco com
bolsa, outros clientes
SV: moça de preto
TRILHA
SONORA
música ao
fundo;
solista
masculino
¯♂ O
Brasil
¯♂Tá forte
e tá
VOZ
FEMININA
♀ — Tá todo
mundo
♀
celebrando
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
(Recepcionista
batucando
com as mãos;
sorriso)
(Mulher
sambando
na sapataria;
sorriso)
Nesse quadro, podemos perceber uma antinomia do ângulo da câmera: no primeiro
quadro, o viewer (telespectador, observador) está abaixo do nível dos olhos do participante,
o que pode indicar um empoderamento da etnia negra no Brasil, uma vez que o ângulo da
câmera revela o tipo de interação social, que pode ser igualitária (perspectiva vertical mediana)
ou não igualitária (perspectiva vertical alta ou baixa). No quadro seguinte, a consumidora na
sapataria está enquadrada como estando abaixo dos olhos do viewer, o que sugere uma relação
assimétrica de poder entre a consumidora de sapato (visão estereotipada da configuração de
consumo da mulher) e o observador.
137
O Brasil é um bebê que cresce em nossas mãos
Quadro 6 – O crescimento humano, educacional e profissional
IMAGEM
VISUAL
TRILHA
SONORA
VOZ
FEMININA
12
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: close shot
CV: fundo
amarelo
SV: mãe e
bebê
FV: vetor do
olhar liga mãe
e bebê; perto
¯♂
Guerreiro
♀ — O Brasil
cresce
[Mulher
levantando
bebê; sorriso]
13
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: close shot
CV; fundo
amarelo
SV: mãe e
bebê
FV: vetor do
olhar liga mãe
e bebê; perto
¯♂
Guerreiro
♀ O Brasil
cresce
[Mulher
levantando
bebê; sorriso]
14
PC: E
PH: frontal
PV: baixa
D: medium
close shot
CV: céu azul e
faixas laranjas
SV: formandos
♀ —Com
(*) mais
oportunidades
Formandos
jogando o
chapéu
T
FRAME VISUAL
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
Aqui, podemos observar a construção da identidade entre o Brasil e o bebê, que está
crescendo, enfocando a necessidade de investimentos e de trabalho para o desenvolvimento
do País e exemplificando com os diplomas (“canudos”) jogados para cima após a formatura.
É relevante atentarmos para a integração semiótica entre o texto da voz da narradora (O
Brasil cresce) e a ação da mãe erguendo o bebê. No caso, o crescimento fica redundantemente
expresso, sinalizando para a construção da identidade almejada pelo autor do texto.
138
Os números que descrevem o Brasil
Quadro 7 – O Acesso ao Crédito para Empreendedorismo, Formação Técnica e Educação
Inclusiva
T
FRAME VISUAL
IMAGEM
VISUAL
TRILHA
SONORA
VOZ
FEMININA
16
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: média
♀—
CV: balcão com ¯♂Do povo
Na produção
pães
SV: padeiro;
texto
FV: mediano
17
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: média
CV: outros
estudantes
SV: casal
dançando, texto
19
¯♂
Brasileiro
PC: E
PH: oblíqua
PV: baixa
D: média
CV: céu
¯♂O Brasil
azul, cesta de
basquete e
prédios
SV: cadeirantes,
texto
♀—
Na educação
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
Supersimples:
5,6 milhões
de empresas
beneficiadas
[Padeiro
batucando;
sambando; boca:
sorriso]
Educação
Técnica
profissional
[Estudantes
técnicos imitando
os passos do
mestre-sala e da
porta-bandeira;
boca: sorriso]
Mais de 63 mil
vagas
♀—
E na
qualidade de
vida. Porque
toda pessoa
Educação
Técnica
profissional
Cadeirantes
jogando basquete
Mais de 63 mil
vagas
Nesse quadro, temos três frames que mostram a utilização das políticas governamentais de
crédito. Essa contextualização pode ser vista no texto escrito aposto à imagem, que indica dados
estatísticos sobre a facilitação do recolhimento de imposto e a abertura de vagas para a educação.
O acesso mais fácil ao crédito favorece o empreendedorismo e a formação do indivíduo. A voz da
narradora e os dados apresentados na tela sobre o Supersimples, tipo de imposto com facilitação
em relação ao pagamento, reforçam o sentido do mundo retratado nos frames visuais, nos quais
o progresso constitui o marco principal. A política de inclusão é reforçada pelos grupos lexicais
“qualidade de vida” e “toda pessoa”, associadas e integradas ao quadro retratando o cadeirante atleta.
139
O pandeiro, a cuíca, a saúde comemorada pelo povo
Quadro 8 – A Roda de Samba
T
20
21
FRAME VISUAL
IMAGEM
VISUAL
TRILHA
SONORA
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: close
CV: camisa
branca
SV: pandeiro,
texto
¯♂Tá forte
(coro de
sambistas)
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: médio close
CV: roda de
samba
SV: camiseta
azul; senhora
sambista; texto
¯♂e tá
guerreiro
(coro de
sambistas)
VOZ
FEMININA
MODO
ESCRITA
Medicamentos
gratuitos
♀ Tem
6,5 milhões de
beneficiados
♀—
O direito de
vencer
Medicamentos
gratuitos
6,5 milhões de
beneficiados
MOVIMENTO
CORPORAL
Mão tocando
pandeiro
[Mulher
sambando na
roda de samba;
sorriso]
A cena, bastante típica no contexto cultural e histórico da comunidade da classe média
baixa no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, é a roda de samba no bar. Esse tipo de arranjo
semiótico, com essas cenas, coloca em funcionamento nosso sistema de valores culturais,
amplificadores do grau de empatia com o viewer: o pandeiro, a cuíca, a caipirinha, a feijoada,
o toicinho, a cerveja, a música, o samba. As categorias mais relevantes para a formação do
sentido do texto são o movimento corporal dos participantes e a trilha sonora, todas indexadas
pelo close no instrumento e nas mãos do instrumentista.
140
A felicidade de se ter um emprego
Quadro 9 – Ampliação da Oferta de Emprego
T
FRAME VISUAL
IMAGEM
VISUAL
24
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: close médio
Cv: prédio ao
fundo
SV: celular e
maleta
FV: mediano;
fora de tela
26
PC: E
PH: frontal
PV: baixa
D: média
CV: árvores
SV:
trabalhadores,
roupa azul,
luvas brancas,
texto
FV: mediano;
viewer
TRILHA
SONORA
¯♂ Do
povo
(coro de
sambistas)
¯♂
Brasileiro
(coro de
sambistas)
VOZ
FEMININA
MODO
ESCRITA
Novos
empregos
♀ —Em
2012
2,2
milhões
(até
outubro)
MOVIMENTO
CORPORAL
[Moça
executiva
falando ao
telefone com
uma maleta;
sorriso]
Novos
empregos
♀— Vamos
manter o
ritmo
2,2
milhões
(até
outubro)
Supervisores
dançando;
sorriso
Com relação à representação dos participantes do Quadro 9, podemos dizer que a
executiva, portadora da maleta, fala ao celular, dança e sorri; está feliz porque está empregada
e porque, provavelmente, conseguiu uma promoção por conta da ajuda governamental para
investimentos em cursos de especialização. A maleta é uma saliência visual e também um
recurso semiótico. Em relação à saliência visual, podemos ressaltar o seu papel referencial e
contextual – a maleta preta tem o significado de trabalho, de eficiência e de sucesso profissional.
Roland Barthes dizia que tudo que aparece por resposta a uma prática social fica semiotizado:
desde que haja sociedade, qualquer uso se converte em signo desse uso. O uso da capa de
chuva é proteger da chuva, mas esse uso é indissociável do próprio signo de certa situação
atmosférica (BARTHES, 2006 [1964], p. 44).
No último frame do Quadro 9, temos dois trabalhadores da construção civil comemorando,
dançando e sorrindo, simultaneamente. Neste enquadre, a saliência é a cor azul, culturalmente
indicadora de felicidade (vide, intertextualmente, a canção “Vesti azul. Minha sorte, então,
mudou.”). Podemos dizer que a cor azul, neste quadro, constrói uma avaliação visual (é bom
termos empregos), ressaltando a metafunção interpessoal. Esse quadro está acompanhado de texto
no modo escrita, com dados estatísticos referentes ao aumento no número da oferta de empregos.
141
A união entre o trabalho e a alegria
Quadro 10 – O trabalho e a Diversão de Mãos Dadas e Braços Abertos
T
FRAME VISUAL
IMAGEM
VISUAL
TRILHA
SONORA
VOZ
FEMININA
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
27
PC: E
PH: oblíqua
PV: mediana
D: médio close
CV: máquina
amarela
SV: supervisores
de obra, capacete
branco
FV: vetor do
olhar liga dois
supervisores
♀ Nas
mãos
[Supervisores
dando as mãos;
sorriso]
28
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: médio close
CV: roda de
samba
SV: sambista,
braços abertos,
calça branca
FV: mediano:
viewer.
♀ —Do povo
brasileiro
[Sambista de
braços abertos
sambando;
sorriso]
Novamente, o texto reforça o papel de coesão textual das mãos. No Quadro 10,
no primeiro frame visual, podemos ver agora o significado da união (mãos unidas de,
possivelmente, dois engenheiros civis) para a construção do Brasil. O frame visual
final, reforçado semioticamente pela voz da narradora dizendo “do povo brasileiro”,
traduz, amplifica, transmite e perpetua a construção imagética do brasileiro típico
— feliz, amigo, de braços abertos —, não esquecendo o vestuário: calças brancas,
perfeitamente engomadas, e camisa estampada de mangas compridas, provavelmente
de seda, o típico puxador de samba.
142
A Nação em nossas mãos
Quadro 11 – A Marca, a Bandeira e o Slogo (slogan + logo)
T
FRAME VISUAL
IMAGEM VISUAL
29
PC: E
PH: frontal
PV: alta
D: tomada em close
CV: fundo de madeira
SV: mãos, bandeira
nacional, cores
CR: verde e amarelo
30
PC: E
PH: frontal
PV: mediana
D: tomada média
CV: fundo branco
SV: slogo, cores
CR: verde e amarelo
TRILHA
SONORA
VOZ
FEMININA
MODO
ESCRITA
MOVIMENTO
CORPORAL
Mãos de palma
para cima, lado
a lado, pintadas
com a bandeira
do Brasil.
♀—
Governo
Federal
Assim como começou, o filme se encerra (Quadro 11) com a figura das mãos, desta
vez, servindo de suporte para a pintura da bandeira do Brasil. Aparece, em seguida, o logo do
Governo, com o slogan: País rico é país sem pobreza.
A Interpretação — a identidade entre ideal e governo
Como os recursos semióticos estão interligados nessa peça publicitária para formar o sentido
do texto? O elemento específico que serve à coesão textual, presente em todo o texto e chegando
a acarretar uma redundância significativa, são as mãos, que aparecem em grande parte dos frames
visuais e na letra da música. Há uma significação metonímica do Brasil (parte pelo todo): as mãos
dos brasileiros são o Brasil, e uma metáfora de construção/crescimento: as mãos dos brasileiros vão
construir o Brasil e o País vai crescer. Nesse caso, o Brasil encontra-se metaforicamente conectado à
produção agrícola (rapidamente, no primeiro frame visual); à construção civil (mais representativa)
e às atividades de produção de bens e serviço dos microempresários (também representativa).
Também são apresentadas tomadas com frames visuais ligados à educação, à saúde, ao crescimento
143
do consumo. Os movimentos corporais (cinestésicos) acompanham o ritmo da música e, algumas
vezes, a letra da música e a voz da narradora, como pôde ser visto horizontalmente na tabela
(espécie de matriz insumo/produto, ou melhor, matriz recurso semiótico/sentido). No momento em
que a narradora diz “o Brasil cresce”, simultaneamente, para o viewer, aparece o frame visual em
que a mãe levanta o filho até o alto.
A cena prototípica do Brasil é a roda de samba na mesa do bar. Isso coloca em
funcionamento todo um sistema de valores culturais que aumentam o grau de empatia com o
viewer: o pandeiro, a cuíca, a caipirinha, a feijoada, o toicinho, a cerveja, a música, o samba.
As categorias mais relevantes para a formação do sentido do texto são o movimento corporal
dos participantes e a trilha sonora.
As cenas de movimento no trabalho (pedreiro, marceneiro) persuadem o brasileiro
telespectador (viewer) de que devemos trabalhar para construir uma grande nação.
Podemos considerar todos os movimentos como movimentos de propostas, ou melhor,
como metáforas visuais interpessoais. Há uma orientação dialógica no movimento, que se
constitui metaforicamente como um modo de expressão para a proposta. O movimento é feito
como uma oferta para o outro, com uma disposição afetiva do atuador: alegria, entusiasmo.
O movimento corporal e a expressão facial dos participantes podem ser vistos como uma
recontextualização de movimentos feitos por outros participantes das práticas sociais: caixinha
de fósforo recontextualizando o movimento do músico do pandeiro; estudantes imitando a
coreografia da porta-bandeira e do mestre-sala; microempresário da padaria atuando como
sambista. Segundo Baldry e Thibault (2002), o movimento pode ser executado naturalmente,
artificialmente ou apropriadamente. Na peça publicitária, os movimentos não são apropriados
no que diz respeito às circunstâncias em que eles ocorrem. (sambar na sapataria, sambar na
padaria, dançar na escola técnica). Esse tipo de deslocamento (recontextualização de práticas
sociais) pode favorecer o fortalecimento do ideal brasileiro de ser muito alegre o tempo todo,
inclusive no trabalho ou na escola.
Também é retratado o acesso feliz ao consumo (mulher na sapataria); a certeza no
futuro, com a mãe levantando o filho que vai crescer; e a alegria de viver, com a senhora
dançando na roda de samba. Tudo isso porque têm mais acesso aos medicamentos, distribuídos
gratuitamente (o texto escrito, com os dados da distribuição de medicamentos, sobrepõe-se a
esses frames visuais).
Todos os participantes estão sorrindo. Alguns interagem com o viewer, outros, não, mas
todos estão felizes, comemorando, sambando (e a voz da narradora confirma: “Tá todo mundo
celebrando”). O participante/ator mais saliente é o gari, o dono da tomada mais longa. Ele é
apresentado inicialmente como uma sombra (suspense) e, após essa tomada, samba em frente
a um sobrado onde há um senhor encostado em uma cadeira, batucando com a mão. O gari
é símbolo do samba, porque é ele que varre a imensa área do sambódromo, completamente
abarrotada de lixo após o carnaval. O texto torna o gari um protagonista desse ideal de Nação,
além de realizar o paralelo entre trabalho e alegria — todos os trabalhadores estão alegres em
trabalhar, em alcançar as suas metas, que são as metas do Brasil.
O contexto mais saliente são as rodas de samba, onde há o batuque. O batuque inicia o
texto (batuque da caixa de fósforo) e fecha o texto na forma dos braços abertos do sambista
144
(em frente a uma roda de samba), indicando ao viewer (telespectador) que este faz parte do
mundo retratado. Pouco antes do aparecimento do slogo (slogan + logo) do Governo Federal,
são mostradas as palmas de duas mãos formando a bandeira nacional, o que confirma o Brasil
(representado metonimicamente pela bandeira) situado nas mãos do trabalhador brasileiro.
Esse é o pano de fundo para que a voz feminina, portadora principalmente da metafunção
interpessoal, possa realizar uma troca de serviço (novamente uma metáfora interpessoal) com
o ouvinte/viewer, dando-lhe uma ordem, especialmente quando diz: “Em 2012 vamos manter
o ritmo”. Essa é uma metáfora interpessoal, isto é, uma ordem é dada sob forma de afirmação
no tempo futuro. O ritmo a que a locutora se refere é o ritmo de crescimento e de trabalho, mas
está sincronizado, metaforicamente, ao ritmo do samba.
O sentido acional realizado pelo texto, via gênero propaganda, é muito claro. Há um
convite ao viewer (telespectador) para se identificar com aquele ideal brasileiro: trabalhador,
sorridente, amável, amante do samba. Esse ideal brasileiro transforma-se, para o viewer, no
objetivo a ser atingido, e esse objetivo é o que vai unir todos os brasileiros em uma irmandade
alegre, sambista e trabalhadora. Esse ideal vai dar a liga de que o governo precisa para atingir
o controle social necessário para a governança.
Por meio dessa peça publicitária, podemos ver a equivalência entre governo e Brasil
e entre governo e povo. A questão não é o Estado brasileiro, mas o governo brasileiro, que
precisa ser identificado com o ideal brasileiro, construído pelo texto, que é um texto dinâmico,
um filme. Assim, o caminho do transporte semiótico por nós sugerido é este: mãos – samba –
trabalho – consumo – educação – saúde – alegria – ideal brasileiro – governo. Dessa forma, o
governo é identificado com o ideal brasileiro e, assim, pode unir toda a população.
O típico ideal brasileiro — sorridente, sambista — já vem sendo construído em nossa
história e ao longo de nossa formação cultural. Nas copas do mundo e no carnaval, isso é
muito explorado pelos anunciantes, assim como a Copa de 70 o foi pela Ditadura Militar.
Acreditamos que esse ideal brasileiro atual — sorridente, sambista e trabalhador — está sendo
muito considerado pelo governo, cujas peças publicitárias se caracterizam pela apresentação
de políticas sociais e econômicas como dádivas para que a população seja persuadida de que
pertence a uma comunidade coesa, que pode ser melhor controlada.
Cada narrativa convida o viewer a ver a si próprio, a identificar ali o seu ideal identitário.
Isso também é conseguido graças ao predomínio de orações relacionais, que constroem
metáforas, base da construção de configurações identitárias ideais. O olhar do sambista
(último) para o viewer, integrado ao seu movimento corporal (cinestesia) de abrir os braços,
referencia a identidade que existe entre o viewer e o sambista. Os personagens são espelhos,
na frente do qual o viewer se mira e se admira.
As profissões apresentadas no texto (agricultor, pedreiro, marceneiro, gari, recepcionista
de hotel) realmente são valiosas para o desenvolvimento de qualquer país, mas não há, no
Brasil, a cultura de se remunerar bem esse tipo de profissão. De modo geral, o pedreiro, o
marceneiro, o gari e o pequeno agricultor ganham abaixo do valor da remuneração percebida
em outras nações. Entretanto, graças à trilha sonora e à integração de todos os recursos
semióticos, essas profissões ficam engrandecidas, idealizadas.
145
O Sistema de Transitividade
Há prevalência de orações relacionais no que diz respeito ao sistema de transitividade
nos textos do modo fala. As orações relacionais são aquelas que constroem conceitos e ligam
duas entidades semióticas. O resultado dessa ligação é uma nova entidade semiótica. As orações
relacionais são responsáveis pela formação de metáforas, figuras de linguagem primordiais
nas construções discursivas e no trânsito das ideologias. Os textos da voz da narradora e da
letra do samba são compostos, principalmente, de orações relacionais, (intensivas, possessivas
e circunstanciais), com a construção de imagens ideais do Brasil, já presentes em outros textos,
como no Hino Nacional, por exemplo.
A seguir, temos o quadro das orações relacionais presentes na letra da canção e no
texto da narradora. Podemos perceber, com base nesse quadro, que o principal portador desses
processos relacionais é o “Brasil”, confirmando a função de formação de identidade da peça
publicitária governamental, além de sua função persuasiva. Nossa percepção (nós, como
viewers do comercial) fica invadida pelas afirmações construtoras da identidade do Brasil,
realçadas e reforçadas pelo ritmo musical.
Quadro 12 – As Orações Relacionais
146
O Brasil
está
em boas mãos/nas mãos do
povo brasileiro
Portador
processo relacional circunstancial
atributivo
circunstância (lugar)
O Brasil
está
Portador
processo relacional intensivo atributivo
atributo
O Brasil (implícito)
está
guerreiro
Portador
processo relacional intensivo atributivo
atributo
Tá (estar)
todo mundo
celebrando (muito perto da
função adjetiva)
Processo relacional
intensivo atributivo
portador
atributo
forte
O Brasil
cresce
com mais
oportunidades
na produção, na educação,
na saúde.
Existente
processo existencial
circunstâncias modais
circunstâncias de lugar
(porque) Toda pessoa
tem
o direito de vencer
Possuidor
processo relacional possessivo
possuído.
As orações relacionais são recursos semióticos para construir metáforas e também para
fazer avaliações. Essas avaliações auxiliam no construto do ideário imaginário do brasileiro
feliz, bem-humorado e determinado (tá todo mundo celebrando; o Brasil tá forte, tá guerreiro).
Podemos ver o envolvimento acrítico a esse ideal brasileiro alegre (o sorriso é um elemento
importante de coesão textual) e amante do samba. No filme, os participantes convidam o
viewer a fazer parte dessa comunidade: convidam com o sorriso e com o movimento corporal,
culminando com o sambista recebendo o viewer com um sorriso e de braços abertos.
A Intertextualidade: o Hino Nacional
As metáforas (de guerra, principalmente) fazem intertextualidade com a letra do Hino
Nacional, confirmação de que os recursos semióticos são cultural e historicamente moldados.
Vamos analisar as metáforas históricas a seguir.
Quadro 13 – Metáforas de Guerra e Intertextualidade com o Hino Nacional
•
Guerra: O Brasil está forte e está guerreiro.
•
Guerra: Porque toda pessoa tem o direito de vencer.
•
Interdiscursividade com o Hino Nacional:
•
O Brasil está forte e está guerreiro/És belo, és forte, impávido colosso,(...)
•
Porque toda pessoa tem o direito de vencer/verás que um filho teu não foge à luta.
A intertextualidade revela a memória cultural que pode ser ativada em vários outros
textos. A concepção do Brasil como um guerreiro faz parte do nosso ideário identificador.
Há uma antinomia na constituição da identidade do brasileiro: o guerreiro versus o bonachão
sorridente. Essa antinomia é, de certa forma, “costurada” nos movimentos de dança e de
comemoração ao longo do filme. Os movimentos e as expressões faciais retratam o contexto
cultural da atualidade do Brasil, configurando-se em primeiro plano para modelar e para
realçar o convite a pertencer à comunidade dos brasileiros. O sorriso expressa uma das marcas
da cultura brasileira e é um elemento de coesão textual.
Considerações finais
O design realiza grande parte do significado textual. O autor/meaning maker constrói o
seu texto de acordo com o seu interesse, utilizando os diversos recursos semióticos moldados
culturalmente para configurar o design do seu texto. Segundo Kress (2010), o design pode ser
147
identificado como a deliberação sobre a escolha dos modos de representação e do framing para
aquela representação.
O design realiza relações sociais; na realização em textos ele também
projeta e constrói relações sociais. Cada instância do design de um texto é o
resultado de escolhas, cada traço escolhido se torna um signo de (aspectos
de) relação social. Cada escolha feita realiza um aspecto da relação
social imaginada (e para ser projetada). Escolha, neste como em todos os
ambientes, é moldada pelo poder: o poder de atribuir uma posição social
para quem vai se envolver com o texto. Cada escolha é um ato político
(KRESS, 2010, p. 139, grifo nosso).
A análise do texto permite dizer que há identificação entre governo e povo brasileiro,
porque “estar nas mãos de” significa “ser governado por”, e esse paralelismo entre governo
e povo brasileiro pode ser reafirmado por meio dos dois últimos frames visuais, nos quais
aparecem mãos de palmas para cima pintadas com a bandeira brasileira e, em seguida, o slogo
(slogan + logo) do Governo Federal, com as cores da bandeira nacional. É plausível dizer que
o comercial sugere o governo localizado nas mãos do povo brasileiro. Assim, o povo brasileiro
sente-se incluído no governo. O texto mostra um convite para que o povo se sinta dono e
construtor do Brasil, o que torna a população mais facilmente governável.
Após análise dos processos de transmissão de visões de mundo, podemos dizer que o
modo de operação da ideologia, segundo a classificação de Thompson (1990), é a unificação por
meio da estratégia de construção simbólica chamada simbolização da unidade. Tal construção
se dá com a construção de símbolos de unidade e de identificação coletiva. É possível ver
como a identidade e os valores nacionais são manipulados nessa peça publicitária.
O sentido do texto é construído por meio do arranjo de uma série de recursos semióticos
(imagem, música, cor, voz, escrita, movimento do corpo, expressão facial) que, ritmicamente
integrados, materializam os significados. As marcas da chamada identidade nacional (sorriso,
samba, batuque) são reafirmadas e retransmitidas, sendo reiteradas em várias peças publicitárias
em época de copa e de olimpíada, o que ajuda a obscurecer os problemas sociais do Brasil.
Nesse sentido, a matriz de transcrição textual proposta por Baldry e Thibault constitui
ferramenta fundamental para a interpretação de vídeos porque permite a configuração de uma
percepção lógico-semântica indicadora e explicitadora tanto da simultaneidade na utilização
de recursos semióticos, quanto de sua sucessão ao longo da linha temporal na qual se encontra
o fluxo textual.
148
Referências
BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix: l964/2006.
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Hodder Education, 2004.
KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London:
Routledge, 2010.
O BRASIL ESTÁ EM BOAS MÃOS. Vídeo de publicidade institucional do governo brasileiro, lançado
em 2011, como campanha de fim de ano. Secretaria de Comunicação Social. Disponível em: <http://
www.secom.gov.br/sobre-a-secom/publicidade/campanhas-de-publicidade-institucional/o-brasil-estaem-boas-maos.-nas-maos-do-povo-brasileiro> Acesso em: 26 mar. 2012.
THIBAULT, P. J.; BALDRY, A. Multimodal transcription and text analysis: a multimedia toolkit and
coursebook. London: Equinox, 2010.
THOMPSON, J.B. Ideology and modern culture. Stanford: Stanford University Press, 1990.
149
VAN DIJK, T. A. DISCURSO E CONTEXTO:
uma abordagem sociocognitiva. Trad. Rodolfo
Ilari. São Paulo: Contexto, 2012. 330 p.
Simone Abrahão Scafuto1
Teun A. van Dijk, professor titular do Departamento de Tradução e Filologia na
Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, e doutor em Linguística pela Universidade
Livre de Amsterdã (Holanda) é autor de numerosos livros e artigos, muitos traduzidos
em várias línguas. Entre eles, Cognição, Discurso e Interação (2006) e Discurso e Poder
(2008).
A obra Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva (2012) compõe-se
de quatro capítulos compilados em 330 páginas: Rumo a uma teoria do contexto;
Contexto e linguagem; Contexto e cognição; e Contexto e discurso. Trata-se de
uma teoria integrada e multidisciplinar sobre o contexto, desenvolvida no âmbito de
uma teoria ampla do discurso, cujo propósito maior é explicar a complexa relação
entre os contextos e as estruturas do discurso.
Van Dijk define contexto como modelo mental, único e subjetivo, das dimensões
relevantes de uma situação social e comunicativa. Esse modelo representado na memória
episódica do participante é caracterizado pelo autor como aquilo que organiza nossas
experiências cotidianas em esquemas úteis tanto à compreensão do discurso, quanto à
recuperação de nossos modelos mentais antigos. Os modelos de contexto, frutos da capacidade
humana de representar mentalmente estruturas e situações sociais, dependem da seleção de
modelos mentais relevantes, dotados de propriedades que permitem controlar a produção e a
interpretação do discurso.
Inicialmente, em Rumo a uma teoria do contexto, o autor analisa um discurso do primeiro
ministro inglês, Tony Blair, o qual foi pronunciado na Câmara Comum para convencer o
parlamento britânico a aceitar a invasão de tropas no Iraque. A análise não envolve apenas a
fala gramatical dotada de significados, as regras e as estratégias de interação, mas as funções
socioculturais e políticas da fala e, principalmente, o conhecimento do contexto e as ideologias
dos participantes. De acordo com van Dijk, faltaria, nas teorias do discurso e da comunicação
1
Doutoranda em Linguística: Discursos, Representações Sociais e Textos (UnB). Mestre em Linguística: Sociolinguística (UnB, 2001). Especialista em Língua Portuguesa (UCB, 1997). Licenciada em Letras: Português e
Inglês (Unicap/PE, 1984). Professora Universitária desde 1986. Autora de materiais didáticos e de artigos na área
de Linguagem e Sociedade.
151
das últimas décadas, a interface que liga as formas do uso da língua às suas situações sociais
e comunicativas.
No segundo capítulo, Contexto e linguagem, o autor reconhece as contribuições
da Linguística Sistêmica Funcional (LSF) para os estudos da linguagem e a abertura
da perspectiva sociossemiótica para a integração de esquemas relevantes. Entretanto,
dirige forte critica à visão antimentalista de contexto, precisamente, à tríade interrelacionada às funções do extrato semântico da língua que norteia a descrição dos
elementos do contexto de situação – campo, relação e modo. Segundo van Dijk, essa
tríplice terminológica é vaga, inespecífica e, dela, decorreriam numerosos problemas
encontrados nas análises das relações entre texto e contexto. Todavia, é importante
mencionar que a LSF serviu como ferramenta básica à Análise de Discurso Crítica
(ADC) e, propriamente, à Multimodalidade, perspectivas sociais da linguagem que não
restringem o contexto a um tratamento metodológico, posto que dialogam de maneira
transdisciplinar como outras teorias sociais. Neste capítulo, van Dijk comenta ainda os
estudos que mostraram, gradativamente, a importância da relação contexto-linguagem,
destacando com apreço a teoria da situação do linguista alemão Philipp Wegener (18481916), em que a interface cognitiva das situações e dos usos linguísticos justificaria o
fato de as nossas opiniões e percepções das situações que se desenrolam diante de nós
sofrerem distorções.
Em Contexto e cognição, van Dijk discorre sobre a importância teórico-metodológica do
contexto para os estudos da linguagem, mas atem-se à descrição das propriedades dos modelos
mentais, quais sejam: os contextos globais e locais; os esquemas de contexto; o eu-mesmo e as
restrições de tamanho aos modelos. A relevância da informação, as intenções e os objetivos dos
participantes e, sobretudo, o conhecimento contextual, além de outras categorias cognitivas
são detalhadas pelo autor de forma clara e convincente. Por fim, para demonstrar a validade
de sua argumentação, explicita como se realiza, de acordo com as exigências de um jornal,
todo o processamento da produção de uma reportagem jornalística, desde a sua manchete,
passando pela linha dedicada ao autor, às etapas do lide. Essa análise de reportagem evidencia
que, além do conhecimento sobre algum acontecimento que rende notícia, a produção desse
gênero jornalístico envolve um processo complexo de seleção de proposições formuladas de
um modo controlado pelo contexto.
Em Discurso e contexto, capítulo final do livro, são enfocadas as dimensões discursivas
controladas pelas estruturas contextuais e a influência destas na interpretação do evento
comunicativo. Com efeito, classe social, gênero, idade, profissão, poder apresentam-se como
variáveis sociais que influenciam o modo como falamos ou escrevemos e pressupõem nossas
características sociais. A variação, em cuja subjacência encontra-se a mesma coisa e não coisa
diferente, é entendida pelo autor como uma dimensão do discurso condicionada por modelos
de contexto e exemplificada em termos de escolha de enunciados para serem adaptados à
situação social – um diálogo no atendimento comercial, por exemplo, teria a ver com a compra
de um produto, que é um condicionamento contextual. Dimensões do discurso, como o estilo
com suas propriedades textuais; o registro cuja base gramatical superpõe-se a tipos distintos de
textos; a retórica com suas funções de realce ou de atenuação; o gênero textual definido como
narrativa, argumentação, conversação, explicação; e os atos de fala, entre outras categorias do
152
discurso, são tratadas, por meio de dados de pesquisas linguísticas e sociolinguísticas, como
categorias discursivas controladas por modelos mentais.
A análise que van Dijk faz do discurso político de Tony Blair vai além das
concepções formalistas e estruturalistas das ciências humanísticas e sociais e dos sentidos
comumente atribuídos ao termo contexto nos trabalhos acadêmicos. Isso implica uma
aplicação política orientada para a necessidade de incluir-se o discurso nos modelos de
contexto, a fim de transformá-los em modelos reflexivos.
Os analistas que estudam o discurso como um dos momentos relevantes da
prática social e que têm posicionamento crítico frente à questão do discurso poderão
estabelecer um diálogo transdisciplinar, como o fazem com outras teorias sociais,
com a abordagem sociocognitiva do contexto, por ser esta empiricamente satisfatória,
consistente e original. A falta de um método que, como afirma van Dijk, ultrapasse as
variações da gramática e que vá desde as variáveis sociais isoladas até a complexidade
das situações e das estruturas sociais, tais como são construídas pelos participantes em
seus contextos, não impede que a nova teoria do contexto sirva como fonte de pesquisa
relevante às diversas áreas do conhecimento humanístico e de reflexão a todos os
interessados no assunto.
153
VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new
tools for critical discourse analysis. New York: Oxford
University Press, 2008.
Neiva Maria Machado Soares1
Em 15 anos, Theo van Leeuwen tem escrito muitos livros e artigos sobre análise do
discurso, sobre comunicação visual e sobre multimodalidade. Seu mais recente livro
é The language of colour:anintroduction(2011). Atualmente, ele está trabalhando na
terceira edição da obra Reading images: the grammar of visual design, com a coautoria
de Gunther Kress. Esta obra será publicada em 2013. Ele também é editor da revista
Comunicação visual2.
A obra constitui um aparato metodológico, como o próprio nome sugere, que visa a
contribuir para a análise de textos escritos ou visuais. Perpassa campos que vão desde
a sociologia, àAnálise de Discurso Crítica (ADC) e à Teoria Semiótica Social da
Multimodalidade (TSSM). Divide-se em nove capítulos,constituindo-se por um corpus
analítico variado (livros infantis, reportagens, fotografias e brinquedos) sobre práticas
do contexto escolar. Essa diversidade contribui para a análise de como as práticas sociais
podem ser transformadas em discursos.
O autor considera o discurso como um recurso para a representação de práticas sociais
diversas. Assim, o livro fornece ferramentas que reconstituem os discursos e que demonstram
como estesreforçam e representam as práticas existentes na sociedade. Há passagens em que o
autor se detém em aspectos discursivos textuais; em outras,nos semióticos. Como espera que
o livro seja uma ferramenta para ADC, van Leeuwen faz uma interface com muito cuidado:
primeiro, aborda o aspecto linguístico, depois, o semiótico, estabelecendo retomadas para
orientar a leitura.
No primeiro capítulo, Discourse as the recontextualização of social practice,
van Leeuwen discute a ideia central da obra – o discurso como uma prática social
recontextualizada. Ele lembra que, do ponto de vista da ADC, o texto deve ser estudado
como representação e como interação; as práticas sociais, como modos de fazer e de regular
as coisas. Coma análise de textos,segundo ele,pode-se verificar como estes se valem e se
Doutora em Linguística pela UnB.
Informações constante da página do autor. Disponível em:http://datasearch2.uts.edu.au/fass/staff/ listing/details.
cfm? StaffId=1944. Acesso em: jan. 2012.
1
2
155
transformam em práticas sociais ao reproduzirem o que ocorre em muitos contextos sociais.
Diferentes práticas são reguladas e normatizadas pela tradição em decorrência deregras e
demodelos. Ademais, van Leeuwen apresenta o conceito de discurso no sentido foucaultiano–
discurso como conhecimento socialmente constituído de alguma prática social, desenvolvido
em contextos sociais específicos e de forma apropriada para estes. Discurso é empregado
como representação das práticas sociais nos textos que se constituem de: participantes, ações,
modos de performance, condições, estilo, tempo e local.A cadeia de recontextualização de
uma prática social engloba elementos linguísticos e nãolinguísticos.Os tipos de transformação
tomam lugar no processo de recontextualização pela substituição de elementos linguísticospelo
apagamento, pela reorganização e pela adição de um elemento à prática social. O capítulo
descreve como os elementos das práticas sociais podem e são transformados em processo
de recontextualização. Gramáticas de recontextualização mostram como a regulação ou a
legitimação da prática social pode ser representada nos discursos. Finalmente, van Leeuwen
ressalta que outros modos semióticos podem ser recontextualizados nas práticas sociais.
O segundo capítulo, Representação dos atores sociais,versasobre a forma como os
participantes das práticas sociais podem ser representados linguisticamente no discurso. A
esse tema, o autor dá maior relevânciaretomando-ono Capítulo8 e expandindo-o na forma de
representação visual. Van Leeuwen considera que o ator social pode ser agente ou paciente;
pode ser representado de forma pessoal, impessoal, individual ou coletiva.
A agência é um conceito sociológico de grande importância para a ADC. A representação
linguística dos atores sociais pode ser de relevância sociológica e crítica. Para o autor, se a ADC,
na investigação da agência, detiver-se mais nos aspectos linguísticos, pode levar à neglicência
dessa questão porque não há nenhumajustepuroentre categorias linguísticas e sociológicas.
As categorias propostas para investigar os participantes das práticas sociais devem ser vistas
como pan-semióticas, pois o significado está relacionado à cultura. Van Leeuwen firma que
uma dada cultura não tem sua própria maneira de representar o mundo social, mas de mapear
os diferentes modos semióticos, dentro dessa ordem, descrevendo o que pode ser realizado
verbal e visualmente. Dessa forma, com o incremento da representação visual em vários
contextos, torna-se urgente à ADC responder a questões críticas com relação à representaçao
verbal e visual. Van Leeuwen considera a exclusão importante para a análise, pois todas as
práticas envolvem um conjunto de atores sociais que podem ser inseridos ou excluídos do
texto (linguístico). Os atores sociais podem ser retratados de forma específica, como uma
classe de indivíduos, ou de forma genérica, como pessoas comuns. Quanto à assimilação, esta
se dá pela agregação e pela coletivização. A individualidade relaciona-se à singularidade; a
assimilação, à pluralidade. A associação e a dissociaçãosão formadaspor e com atores sociais
que não são indicados no texto; a indeterminação e a diferenciação, pelosatores anônimos;
a nominação e a categorização, pela identidade; aocupação e a identificação, pelos nomes
que denotam ocupação, atividade, gênero. A funcionalização e a idenficação pelos atores
sociais são referidas em termos de sua atividade. A classificação é constituída pela idade, pela
classe, pelo sexo, pela cor, pela raça. Os atores podem ser retratados pela personalização e
pela impersonalização. A sobredeterminação ocorre quando os participantes são representados
como participando, ao mesmo tempo, de mais de uma prática social. Van Leeuwen ressalta
que a rede de representação dos atores sociais traz juntoo que os linguístas tendem a manter
separado, envolve número de sistemas distintos: trasitividade, referência, grupos nominais,
figuras retóricas, todos envolvidos na realização da representação dos atores sociais.
156
No terceiro capítulo, Representação da ação social, van Leeuwen questiona sobre quais
são as maneiras nas quais a ação social é representada no discurso. Para responder,ele apresenta
um esquema descritivo para ADC dos modos de representação da ação social utilizando
categorias críticas e sociossemânticas tais como objetivação e naturalização em realizações
gramaticais e retóricas. Van Leeuwen trabalha com a teoria da transitividade de Halliday e com
as metáforas gramaticais.Segundo ele, nas categorias objetivização e descritivização,as ações
e as reações podem ser ativadas (por grupos verbais); podem ser representadas dinamicamente
ou desativadas (por nominalização); podem ser representadas estaticamente, como se fossem
entidades ou qualidades antes que processos dinâmicos. Na deagencialização, ações e reações
podem ser agencializadas; podem ser representadas por agência humana ou deagencializadas;
podem ser representadas sem agência humana, pelas forças naturais ou pelos processos
inconscientes. Quanto à generalização e à abstração, o autor considera generalização como
um assunto importante na ADC em relação a como o texto está relacionado, legitimado
ou deligitimado, como se move dentro de uma alta escala de generalização. Generalização
pode ser vista como uma forma de abstração. No caso da naturalização, a ação ou a reação é
representada como um processo natural pelo significado do processo material abstrato.
O quarto capítulo, Time in Discourse, retrata o tempo no discurso e os recursos
semióticos utilizados para representar o ritmo das práticas sociais, assim como as ferramentas
sociossemânticas. Aborda a relação do tempo e a maneira como as pessoas falam sobre o
tempo conectado com formas simbólicas, como a música, além do papel do tempo na vida e nas
instituições. Linguisticamente, o tempo é realizado em termos da duração das atividades. Ele
pode ser sicronizado com outras atividades sociais, pode ser natural, mecânico, pontual, exato
e inexato, único, durativo, planejado, orçado, transformado. O tempo é diferente dependendo
da classe social e do poder. Professores, nos textos analisados, são retratados como tendo o
controle do tempo.
O quinto capítulo, Space in discourse, discorre sobre a representação do espaço no
discurso e na imagem visual. No ponto de vista de van Leeuwen, o espaço deriva e está
relacionado diretamente com a ação social, com o uso que fazemos do espaço em nossas
práticas sociais. Para o autor, a análise crítica não deve ignorar o papel fundamental do espaço
na conexão das práticas sociais. O foco está na construção do espaço no discurso. O discurso
sobre o espaço fornece entendimento normativo do espaço e de seu uso no controle das práticas
sociais. Linguisticamente, as posições são representadas por expressões circunstanciais.
Visualmente, posições são realizadas pelas imagens, pelo plano e pelo cenário. A questão
discursiva do espaço social pode ser vista como uma indicação de onde e com que arranjo
espacial as coisas acontecem e pode ser seletiva, indicando as funções e os significados dos
espaços. O espaço pode ser subjetivo ou objetivo e pode ser agente também. Considerando o
corpus analisado, o espaço da sala de aula tem um papel importante, tornando-se um agente
no sistema de ensino, bem como o lugar do professor na sala confere a este o papel de agente
constituído de poder.
O sexto capítulo, A construção discursiva da legitimação, apresenta as quatro maiores
categorias de legitimação. Van Leeuwen espera que elas contribuam coma análise crítica
da construção da legitimação no discurso e com a reflexão dos problemas relacionados
à legitimação hoje. Essas categorias já foram utilizadas por Fairclough no livro Analysing
discourse: textual analysis for social research (2003). Autorização refere-se à autoridade, à lei,
157
às pessoas investidas de autoridade institucional. Tem relação com o costume (tradição), com a
autoridade (pessoal, impessoal) e com a recomendação (expert, modelo).Avaliação moral, por
sua vez, refere-se à legitimação pela recorrência a sistemas de valor. Relaciona-se à avaliação,
à abstração (modos abstratos, nomes) e à comparação. Racionalização refere-se à legitimação
pela referência aos objetivos e aos usos da ação social institucionalizada e do conhecimento
que a sociedade tem construído para dotá-los com valor cognitivo. A racionalização pode ser
instrumental ou teórica. A mythopoesis se refere à legitimação transmitida pelas narrativas.
O costume legitima ações. Quanto à legitimação e ao contexto, van Leeuwen afirma que
um simples texto pode invocar muitos discursos diferentes e até contraditórios, como o da
medicina,o da religião, o do populismo,o do feminismo e o do racismo, refletindo, assim,
a crise da legitimação. O autor afirma, ainda, que necessitamos considerar não apenas a
legitimação, mas também e, especialmente, a intrincada conexão entre as práticas sociais e os
discursos que as legitimam. Van Leeuwen propõe alguns questionamentos: por que as práticas
sociais existem? Por que elas têm certas formas? Qual é a intenção ao dar à escola a forma que
ela tem em nossa sociedade?
No sétimo capítulo, O discurso e a construção de um propósito, van Leeuwen analisacomo
os objetivos das práticas sociais são construídos, interpretados e negociados. Tomando como
referência o texto Meu primeiro dia na escola, ele afirma que o propósito de as crianças irem
à escola é aprender a ler e a escrevere questiona se isso é legítimo. A construção do propósito
está relacionada, mas não idêntica, à construção da legitimação.A legitimação não é inerente à
ação, mas discursivamente construída. A construção dos propósitos das práticas sociais como
ação se constrói de uma maneira em um contexto e em outro, não.Após analisar um corpus
de 4 textos com a temáticaThe firstdayatschool,van Leeuwen conclui que: professores usam
métodos e técnicas de experts; há diferenças na distribuição social dos textos; as ações são
tratadas dependendo da classe social das crianças; crianças devem seguir o sistema; nos textos
de publicação em massa, nem crianças nem pais são representados como engajados na ação
escolar. Assim, a distribuição discursiva da intencionalidade tem tudo a ver com a distribuição
do poder nas práticas sociais concretas dasociedade.
No oitavo capítulo, Representação visual dos atores sociais, van Leeuwen adapta um
modelo de análise dos atores sociais que apresentou no Capítulo2 para o domínio da comunicação
visual e o aplica para a representação dos others nos meios de comunicação ocidental. Os atores
sociais podem ser os participantes nas orações, mas nem todos os participantes são atores. Existem
escolhas para representá-los, como pode ser verificado, na sequência, pelas categorias propostas.
Em muitos gêneros, imagens continuam a mostrar imagens estereotipadas e diminuídas de
negros. Para a análise da imagem e do viewer, três dimensões são consideradas: distância social,
relação social e interação social, que se relacionam a comoaspessoas são representadas, descritas
ou narradas pelo viewer. Consideram-se, por isso, as relações interpessoais. Quanto à distância:
perto (plano fechado) – próximo; alguém de nós–; longe (plano aberto)– distante;pessoas
estranhas. Quanto à relação:ângulo frontal – envolvimento–; ângulo vertical – acima, abaixo
ou na linha dos olhos–; ângulo oblíquo– objetividade. Quanto à interação: a pessoa representada
olha para o viewer (endereçamento direto); não olha para o viewer (endereçamento indireto).
Quanto à representação das relações de poder, van Leeuwen sugere que o ângulo alto demonstra
o poder do observador; o olhar no mesmo nível, igualdade. Para a descrição dos participantes
no discurso, as categorias investigam como são retratados, inseridos ou não em grupos, e
158
denominados social e culturalmente. A categorização dos participantes acontece pela inclusão ou
pela exclusão dos deles. A exclusão significa a não representação de pessoas em todos os contextos
em que estão representadas. Nainclusão, os participantes podem ser retratados como: agente/
paciente; específico/genérico; indivíduo/grupo.O específico torna a pessoa única; o genérico leva
a pessoa a desaparecer, pela categorização cultural ou pela biológica. Van Leeuwen alega que
essas estratégias podem ocorrer em diferentes combinações e graus em histórias de opressão, de
racismo, de diferença de classes, que levam ao estereótipo racial, ao prejuízo cultural e étnico
representados nos discursos.
O nono e último capítulo, Representing social actorswithtoys, destina-se à representação
de atores sociais com brinquedosvistos como recursos semióticos para representação de papéis
sociais e de identidades. Van Leeuwen explica que o Playmobil oferece perspectiva específica
em gênero e em raça. Algumas categorias já apresentadas são retomadas para análisede
brinquedos. Quanto aos papéis, às identidades e aos sentidos, odesign do brinquedo pode ser
visto como representação simbólica de papéis e de identidades. Os papéis dos brinquedos,
para as crianças, têm a ver com o que eles fazem ou não: identidade, com características
faciais, cor da pele, assim como o tamanho e a cor do cabelo; significados, com a designação
dos brinquedos para representar papel social e identidade “realista”. O modo como osistema
de brinquedos é denominado e o mercado fornecem modelos estruturados da sociedade por
meio de princípios organizados. Com base na análise,van Leeuwen afirma que esses objetos
são uma mistura de permissão e de repressão já na infância, porém, ele vê o Lego como uma
repressão menor, pois a sua montagem livre.
Noscapítulosda obra, vemos que muito do que o autor propõe como categorias analíticas
já se encontram em outros livros, principalmente em Reading images: the grammarof visual
design (1996), porém há uma expansão dessas categorias com as respectivas sugestões de
análise, principalmente com o cruzamento da ADC. Em algumas passagens, o autor ressalta
que não se deterá nas questões linguísticas, mas, sim, nas visuais. Contudo, ele faz analogias
entre as questões linguísticas e as semióticas, explicitando que certa categoria no aspecto
linguístico se dá por advérbios; no semiótico, pelos espaços, pelo plano, por exemplo.
O livro é uma ótima ferramenta não apenas para analistas do discurso, mas também para
aqueles de áreas afins, pois fornece um aparato de categorias, principalmente visuais, que podemser
mais trabalhadas e entendidas por profissionais de linguagemna investigação decomo as práticas
sociais moldam, constituem e retratam a nossa ação social.
159
Referências
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar visual design. London; New York:
Routledge, 1996.
VAN LEEUWEN, T. The language of colour: an introduction. London: Routledge, 2011.
160
MACHIN, D.; VAN LEEUWEN, T. Discurso da
mídia global: uma introdução crítica. Nova Iorque:
Routledge, 2007. 188 p.
Izabella da Silva Negrão Trajano1
David Machin é conferencista do Departamento de Mídia e Comunicação na Universidade
de Leicester, Reino Unido. Theo van Leeuwen , atualmente, é Decano na Faculdade de
Humanidades e Ciências Sociais na Universidade de Tecnologia em Sidney, Austrália.
A obra Discurso da mídia global: uma introdução crítica nos fornece uma acessível e
vivaz introdução sobre como a globalização está mudando a linguagem e as práticas
comunicativas da mídia. Apresentando grande variedade de exercícios, de exemplos e
de imagens, oferece uma maneira prática de analisar os discursos das indústrias da mídia
global. Com base em uma introdução compreensiva da história e da teoria da comunicação
da mídia global, apresenta estudos de caso com exemplos reais de situações ao redor do
mundo. O livro investiga como a comunicação da mídia global é produzida, olhando para
os formatos, as linguagens e as imagens utilizadas na criação de materiais midiáticos
tanto mundialmente, quanto localmente.
Escrito em estilo acessível, compõe-se de introdução e de três seções divididas em
capítulos. Introduzindo a obra, Machin e van Leeuwen deixam claro que não é difícil perceber o
processo de globalização da mídia. De acordo com os autores, as indústrias mundiais (globais)
de cultura agora produzem e distribuem a consciência de todos nós, ou seja, temos as mesmas
telas de filmes, os mesmos programas de televisão. Além disso, os mesmos noticiários são
mostrados em toda parte, embora, às vezes, em versões locais e específicas. Ao mesmo tempo,
novas formas de migração têm trazido mais diversidade cultural às grandes cidades das nações
europeias do que estas já haviam visto ao longo dos anos. Ao lado dos principais meios de
comunicação global, as migrações buscam chegar a todos, em qualquer parte. Portanto, não há
mais apenas a mídia nacional, mas também uma diversidade de outros meios de comunicação
que fornecem, globalmente, informações para as comunidades étnicas, às vezes, produzidas
localmente.
1
Doutora em Linguística (UnB).
161
Ainda na introdução, os autores revelam que os Estados nações têm tentado manter-se
longe do que eles consideram ameaças contra suas crenças e seus modos de vida a fim de conter
essa maré e de preservar a unidade de seus meios nacionais de comunicação. Para exemplicar
essa situação, os autores mencionam a resistência da Holanda contra a televisão a cabo em
1980; a China e o bloqueio de fontes de mídia, como a CNN, a NBC e o The Washington
Post, de sítios de notícias da BBC e de vários outros meios de comunicação ocidentais de
entretenimento. Outro exemplo é o da Indonésia, país no qual o editor e a modelo da capa da
primeira edição local da Playboy foram acusados de indecência por mostrarem “a decadência
ocidental”.
Machin e van Leeuwen mostram, ainda, que as indústrias da mídia global têm
respondido, deliberadamente, por meio de uma diversidade de criação, produzindo mídia
global em linguagens locais e integrando o conteúdo local de várias formas.
Na primeira seção do livro, intitulada Contextos, os autores apresentam a história
da globalização da mídia e um panorama dos temas principais da teoria da globalização.
Compondo essa primeira parte, o Capítulo 1, Histórias da globalização da mídia, discute o
crescimento da mídia global focalizando uma das principais questões teóricas da globalização
que é a homogeneização da cultura mundial por meio da mídia ocidental e dos valores e dos
tipos de identidade que ela promove. Aqui, os autores olham para os exemplos das formas
mais recentes da mídia global e mostram como seu crescimento no domínio global formou
uma parte do projeto dos Estados Unidos que era, ao mesmo tempo, econômico e ideológico.
O Capítulo 2, intitulado Teorias da globalização da mídia, trata da questão da definição
da globalização da mídia. Discute também as diferentes formas como a mídia global, seus
formatos e estilos encontram seus caminhos na sociedade.
Já na segunda seção, Discursos , o Capítulo 3, Discursos de identidade e comunidade,
enfatiza que a mídia global gera tipos de identidade e de comunidade diferentes daqueles
criados nas nações Estados. Ressalta que esses novos tipos de identidade servem aos interesses
do capitalismo de consumo global, levando as pessoas a desempenharem um papel ativo na
sua produção.
O Capítulo 4, Discursos do sexo e trabalho, trata especificamente do tipo de identidade
ideal que a mídia global cria para as mulheres. Os autores destacam a revista Cosmopolitan,
a qual se apresenta em diferentes versões ao redor do mundo, propagando o ideal feminino
de mulher divertida e destemida, criando um mundo de fantasia por meio de imagens de
modalidade baixa, a qual permite um tipo de agência para significar o poder. As realizações
multimodais do discurso da revista permitem, às mulheres, um tipo de alinhamento com o seu
mundo, isto é, as roupas que elas vestem, os lugares que frequentem e a forma como dançam
estão diretamente associados ao discurso da revista, não ao mundo real, mas ao mundo de
fantasia e de prazer.
O Capítulo 5, Discursos de guerra, explora como a guerra contra o terrorismo está
representada em jogos de guerra de computador, mostrando que a indústria americana de jogos
de computador, hoje, é maior que a indústria de filmes de Hollywood. Muitos dos jogos que
são produzidos tratam da guerra e estão intimamente modelados em eventos reais pretendendo,
explicitamente, auxiliar na guerra contra o terror.
162
Na terceira seção do livro, Linguagem e imagem, Machin e van Leeuwen ressaltam
que as formas e os formatos da mídia global de hoje não são neutros, uma vez que podem
moldar e limitar o seu próprio conteúdo. Segundo os autores, gêneros da mídia global, como
notícias, novelas, filmes e anúncios publicitários, juntamente com a linguística e com os estilos
visuais comunicam valores e identidades não apenas por meio do seu conteúdo, mas pela sua
estrutura, pela forma como se dirigem ao seu público-alvo. Enquanto o conteúdo é geralmente
localizado, formas e formatos da mídia tendem a ser globais, dirigindo-se às pessoas da mesma
forma ao redor do mundo, independentemente de nacionalidade ou de conhecimento cultural.
No Capítulo 6, o primeiro dessa terceira seção e intitulado Gêneros globais, os autores
dão atenção ao gênero usando, mais uma vez, o exemplo da revista feminina Cosmopolitan para
mostrar como o mesmo gênero de comunicação é utilizado nos domínios do trabalho, do sexo,
dos relacionamentos e da moda favorecendo maneiras particulares de ação e de identidade
e ofuscando as diferenças entre essas esferas da vida. Eles olham para um gênero particular
que permite à revista oferecer determinado poder às mulheres, poder esse que somente será
obtido por meio do consumo de mercadorias e de serviços globais, os quais, embora possam
ser localizados em certo grau, têm uma uniformidade global sempre visível.
O Capítulo 7, Linguagens globais, discute os estilos de linguagem, os quais podem ser
produzidos pela mídia global em diferentes versões de seus produtos em linguagens locais. Os
autores ressaltam que essas linguagens, contudo, devem-se adaptar aos requisitos dos formatos
da mídia global.
No Capítulo 8, Imagens globais, os autores tratam da linguagem visual global, na qual
não é apenas o conteúdo que importa, mas, especialmente, a sua forma. As imagens, globais,
são projetadas para aparecerem bem na página, para se harmonizarem com os anúncios
publicitários e para serem reutilizáveis. Por essa razão, elas raramente se referem a pessoas, a
lugares e a eventos específicos. Em vez disso, trabalham com repertório limitado de motivos
simbólicos para comunicar o tipo de conceitos e de valores que a mídia global pode ilustrar.
No Discurso da mídia global, Machin e van Leeuwen nos presenteiam com discussões
e com reflexões acerca da mídia no mundo globalizado, mostrando que a globalização tem
o poder de mudar a linguagem e as práticas comunicativas da mídia, ultrapassando limites e
provocando certa homogeneização cultural entres os povos. As distâncias já não importam
mais, pois o que está sendo apresentado é o fim da geografia em termos de espaço, o que torna
as fronteiras meras formas simbólicas e sociais: “a distância é um produto social; sua extensão
varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida” (BAUMAN, 1999, p. 19). Essa
redução das distâncias e o fim da geografia espacial são consequências do efeito da velocidade
das informações e dos meios de comunicação, assim como de um crescente desenvolvimento
de novas tecnologias.
O Discurso da Mídia Global traz uma excelente reflexão a respeito dos fenômenos da
mídia global e do que ela tem feito em termos de divulgação e de propagação do discurso de
determinada agência, considerando não um público local, mas, sim, global, sem fronteiras
para alcançar os seus objetivos, criando assim novas identidades, novos estilos de vida por
meio de um alinhamento de práticas e valores com o consumo de mercadorias e serviços
compartilhados globalmente.
163
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999.]
164