PDF - Acervo Digital do violão brasileiro
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TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL) E LEO BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E A AVENTURA INTELECTUAL. SÃO PAULO 2001 TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL) E LEO BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E A AVENTURA INTELECTUAL. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina, da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Produção Artística e Crítica Cultural na América Latina. Orientadora: Profa. Dra. Dilma de Melo Silva São Paulo 2001 Soares, Teresinha Rodrigues Prada A Obra Violonística de Heitor Villa-Lobos (Brasil) e Leo Brouwer (Cuba): a sensibilidade americana e a aventura intelectual. Dissertação – Mestrado – Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina Universidade de São Paulo 1. música brasileira- música cubana- Heitor Villa-Lobos- Leo Brouwer- nacionalismo- música para violão- identidade cultural latino-americana – modernismo- vanguarda musical. TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL) E LEO BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E A AVENTURA INTELECTUAL. COMISSÃO JULGADORA DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE Presidente e orientadora ……………………………………………… 2.ª Examinadora ……………………………………………… 3.ª Examinadora ……………………………………………… São Paulo, de de 2001. ―Haveremos de encontrar o universal nas entranhas do local; e no limitado e circunscrito, o eterno.‖ Miguel de Unamuno. ―Heitor Villa-Lobos é um dos poucos artistas nossos que se orgulha de sua sensibilidade americana e não trata de desnaturalizá-la. Ao menos por uma vez, é palmeira que pensa como palmeira, sem sonhar com pinheiros nórdicos.‖ Alejo Carpentier. ―Leo Brouwer si no es el músico perfecto, es lo que más se acerca a la perfección, en todos los sentidos. Puedo decirlo así y eso implica toda su perfección, todas las acepciones musicales, como intérprete, compositor, maestro y director. Para mí, Leo es el músico cubano más importante del siglo XX.‖ Chucho Valdés. Dedico este trabalho à grande comunidade violonística latino-americana e caribenha. AGRADECIMENTOS A Marcos Soares e Renato Prada, pela paciência e compreensão das muitas horas de ausência do convívio familiar. À Profa. Dra. Dilma de Melo Silva, por sempre apoiar e apreciar o tema da minha pesquisa, desde nosso primeiro encontro. A Gilson Antunes e Ricardo Marui, pela amizade irrestrita. A Sidney Molina, pelas idéias compartilhadas. A Turíbio Santos, pela gentileza da entrevista. A Fabio Zanon, pela gentileza do material enviado. A Edwin Pitre, pelo coleguismo, sabendo repartir sempre. A Mariana Martins Villaça, Silvia Miskulin e Fernando Binder, pela troca de informações. Ao Prof. Marcelo Mello, pelos comentários fornecidos. À Geisa de Moraes, pela colaboração técnica na gravação. Aos colegas do Prolam, pelo convívio harmonioso. A Profa. Dra. Ronilda Ribeiro, Profa. Dra. Liana Trindade, Prof. Dr. Fabio Leite, Prof. Dr. Kazadi wa Mukuna, pelas lições recebidas. Ao Prolam, pela oportunidade. À Fapesp, pelo apoio financeiro e o suporte técnico, sem os quais este trabalho não teria se realizado a contento. RESUMO Este trabalho é um estudo comparativo entre a música para violão de Heitor VillaLobos e Leo Brouwer, que tenta provar o grande valor de suas obras para a música violonística do século XX. Ambos têm em comum muitos traços e experiências, como a ressonância da música popular; a música da estética Nacionalista; senso de patriotismo; o envolvimento com esferas governamentais, principalmente em Educação e Cultura; tiveram uma aproximação com a vanguarda (Villa-Lobos em Paris, Brouwer em Varsóvia), mas ambos decidiram continuar seguindo seus próprios estilos. Na maturidade, fizeram um retorno às formas prévias de suas obras e ao uso de temas recorrentes. Suas diferenças também são apontadas, especialmente quanto às suas posições políticas e culturais, vistas como uma conseqüência dentro da época em que atuaram. Uma importante avaliação é a de que quando a música violonística de Villa-Lobos começa a ser mais executada nos anos 60 (imediatamente após a morte de Villa-Lobos), Leo Brouwer emerge, e então eles se tornam os mais representativos compositores para violão do século, mesmo sendo de diferentes gerações. Como um objetivo secundário, tenta-se demonstrar que suas produções podem ser entendidas como um exemplo considerável de identidade latino-americana. ABSTRACT This work is a comparative study between Heitor Villa-Lobos and Leo Brouwer‘s guitar music, which tries to prove their great value for guitar music in the 20th century. They have got in common many features and experiences as popular music resonance; Nationalist music; sense of patriotism; involvement with government departments, mainly Education and Culture; vanguard approach (Villa-Lobos in Paris, Brouwer in Warsaw) but both decide to keep following their own style. In the maturity age, they return to previous forms and recurrent themes. Their differences are presented too, especially the political and cultural positions of them, as a consequence inside of an epoch. An important evaluation is that when Villa-Lobos guitar music begins to have more performers in the 60's (immediately VillaLobos death), Leo Brouwer arises, and then they become the most representative composers for guitar music of the century, even so they are from distinct generations. As a secondary aim, this work try to demonstrate that their outputs can be understood as a considerable example of the Latin-American‘s identity. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 CAPÍTULO 1 – Contexto Histórico da América Latina 11 1.1. Brasil: os temas nacionais 12 1.2. A invenção do ―outro‖ 16 1.2.1. O Índio na Era Vargas 18 1.3. O segundo ―outro‖: o negro 21 1.4. Cuba: fatos históricos antecedentes a 1959 27 1.5. ―Democracia Racial‖ (Brasil) e ―Fim do Racismo‖ (Cuba) 31 1.6. Identidade Nacional 34 1.7. Cultura Popular 38 1.8. Modernidade e Pós-Modernidade 40 1.9. Um filho dileto da Revolução 43 CAPÍTULO 2 – O Violão no Brasil e em Cuba 51 CAPÍTULO 3 – Biografia de Heitor Villa-Lobos 61 3.1. A obra para violão de Heitor Villa-Lobos CAPÍTULO 4 – Biografia de Leo Brouwer 76 87 4.1. A obra para violão de Leo Brouwer 101 CAPÍTULO 5 – Análise de peças de Villa-Lobos: a importância do choro 113 5.1. Valsa-Choro da Suíte Popular Brasileira 119 5.2. Chorinho da Suíte Popular Brasileira 124 5.3. A fase inovadora dos 12 Estudos 129 5.4. Estudo 10 135 5.5. Estudo 11 142 5.6. A série de 5 Prelúdios 147 5.7. Prelúdio 4 150 5.8. Prelúdio 5 153 CAPÍTULO 6 – Análise de peças de Leo Brouwer 157 6.1. Danza Característica 160 6.2 Estúdio 5 169 6.3. Canticum 177 6.4 La Espiral Eterna 188 6.5. Decameron Negro 201 6.6. Rito de los Orishas 214 CAPÍTULO 7 – Comparações entre Villa-Lobos e Brouwer 225 7.1. Nacionalismo 225 7.2. Vanguardas 234 7.3. Retorno 237 7.4. Política 238 7.5. Violão 244 CONCLUSÃO 249 BIBLIOGRAFIA 255 ANEXOS 266 1 INTRODUÇÃO. Dentro da história da música, o nome de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) está ligado a grandes acontecimentos da vida brasileira, dentre os quais Modernismo e Nacionalismo. Nascido sob a égide das recém-criadas Abolição dos Escravos e Proclamação da República, Villa-Lobos ainda respirou a atmosfera europeizada do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que vivenciou os primeiros passos de uma nascente cultura urbana, participando ativamente dos eventos vindouros da chamada Era Vargas. Em termos de carreira, Villa-Lobos possui períodos distintos: o início no Brasil, no qual se inclui a participação na Semana de Arte Moderna de 1922; as duas viagens para a França que o ajudaram a ser reconhecido; a volta ao Brasil, quando se empenhou na educação musical; e o último período, das muitas turnês já como artista consagrado. Quanto às características de seu trabalho, já foram apontados pelos pesquisadores traços de Chopin, Puccini, Debussy, Rimsky-Korsakov, Tchaikovsky, comparações com Stravinsky e Bartók, e, ao mesmo tempo, demonstram-se traços da América índia, ibérica e africana. Nacionalismo, local e universal, modernismo, vanguarda, neoclassicismo – são termos associados à sua produção. Sua obra perfaz um total de mais de mil opus. Pelo lado da composição de grandes obras, há nos anos 20 a série de 14 Choros e nos anos 30 as 9 Bachianas Brasileiras. Nas formações orquestrais, praticamente não há instrumento para o qual ele não tenha deixado algum escrito, o que por muitas vezes é apontado como um empecilho para uma constância na apresentação de suas sinfonias, pois demanda mais instrumentistas e muitos ensaios. Foram ao todo 12 Sinfonias e alguns Poemas Sinfônicos como Uirapuru (comparado a O Pássaro de Fogo de Stravinsky), obras para filmes como O Descobrimento do Brasil para a película do mesmo nome de Humberto Mauro, e Floresta do Amazonas para o filme Green Mansions (no 2 Brasil recebeu o nome de A Flor que Não Morreu) e balés como Rudá, Gênesis, Imperador Jones (canto e bailado). Outra série de grande força são os 17 quartetos, sem esquecer o trabalho vocal que tomou grande parte de sua obra também como as 4 óperas, a obra coral, as 13 Canções Típicas Brasileiras, as 14 Serestas e as 7 Modinhas e Canções. Para piano, destacam-se Cirandas e Cirandinhas, Prole do Bebê 1 e 2 Rudepoema, Ciclo Brasileiro, Lenda do Caboclo, Danças Características Africanas, além de 5 concertos e a participação do instrumento nas séries Choros e Bachianas Brasileiras. A obra para violoncelo consta de dois concertos com orquestra e a formação em conjunto nas Bachianas Brasileiras 1 e 5. O violino possui 2 concertos com orquestra e são considerados bem originais na escrita. Ao violão dedicou uma pequena, mas excepcional, parte de seu trabalho, compondo mais de 20 peças: o Concerto para violão e pequena orquestra, os 12 Estudos, 5 Prelúdios Choros n.º 1 e a Suíte Popular Brasileira, além da série de partituras perdidas, das quais a recém-descoberta (1996) Valsa Concerto n.º 2 fazia parte, assim como se diz do Prelúdio n.º 6. A constância na execução de sua obra para violão representa uma enorme divulgação de seu nome no Brasil e no exterior. Sobre sua contribuição ao repertório violonístico, afirma-se mesmo que a música brasileira para violão está vivendo até hoje à sombra de seu trabalho e que sua esta seja a mais conhecida nos meios violonísticos nacionais e internacionais (Dudeque 1994:89-90,104). O interesse pela obra violonística de Villa-Lobos levou-me a apresentar um projeto ao Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina - Prolam - na linha de pesquisa de Produção Artística e Crítica Cultural. O método de trabalho do referido instituto se dá por meio da realização de estudos comparativos entre Brasil e países da América Latina ou Caribe. O Prolam existe há 12 anos e já havia acolhido os trabalhos de Mestrado na área de Música de Mareia Quintero-Rivera (Porto Rico) e de Edwin Ricardo Pitre Vasquez (Panamá), 3 finalizados em 1996 e 2000, respectivamente. Parte do embasamento teórico sobre o tema é anterior ao meu ingresso no Prolam devido à minha atividade como musicista, por isso já havia realizado uma parte das leituras dos títulos específicos aos dois compositores. Decidi que o melhor país para ser comparado ao Brasil, referente à obra violonística do porte de Heitor Villa-Lobos, seria Cuba, na figura do compositor Leo Brouwer. Essa escolha é proveniente do fato de que ambos são considerados como os maiores compositores latino-americanos do instrumento, e suas obras são citadas entre os violonistas de carreira internacional como peças de caráter obrigatório1. Algumas semelhanças em suas trajetórias também colaboraram para a escolha, tais como a ressonância da música popular em seus trabalhos, ao mesmo tempo em que estiveram atentos às novas linguagens de seu tempo, e o fato de que ambos participaram à frente de projetos governamentais ligados à Cultura em seus países. Há também uma visão no meio violonístico que considera Leo Brouwer como o sucessor de Villa-Lobos, tanto por estas semelhanças na carreira e na reputação mundial quanto no trabalho composicional, propriamente dito. Esta pesquisa é o primeiro trabalho no Brasil a falar da obra geral e especificamente de violão do compositor cubano Leo Brouwer. Pela leitura de Alejo Carpentier (1991), Villa-Lobos foi um dos poucos artistas latinoamericanos que soube demonstrar a expressão americana, sem desnaturalizá-la ou caminhar pelo exotismo, e da mesma forma, como bem atesta a pesquisadora austríaca Christina Schörn (1995), Leo Brouwer possui a característica dos grandes compositores que vão do nacional e próprio ao continental latino-americano e, por esse caminho, ao internacional. A obra musical para violão de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer também se enquadra nessa demonstração de expressão da identidade latino-americana. O presente trabalho tem também a proposta de pesquisar essa questão da identidade nacional pela música destes dois consagrados compositores. Isto se justifica pela importância 1 Há depoimentos em Schaupp (1989), Weiss (1996), Denis (1997), Saba (1996) que serão relatados no decorrer 4 cada vez maior do entendimento de uma identidade cultural dentro de um projeto de integração da América Latina. A cultura vem sendo considerada como um fator preponderante nas áreas econômica e social, e mais ainda, a cultura vem sendo idealizada como ―capital social‖ e um dos elementos mais importantes nos países da região. Dentro deste ―capital social‖, a música já foi conceituada nas esferas governamentais como um grande ponto em comum entre América Latina e Caribe2. Por que violão e por que Villa-Lobos e Leo Brouwer para demonstrar a proposta do trabalho é o que gostaria de explicar. Primeiramente, utilizei somente a obra para violão dos dois autores, porque a escolha se baseou no conhecimento de que o violão foi o instrumento trazido pelos colonizadores, e sempre esteve presente nas manifestações artísticas dos povos latino-americanos nas mais variadas instâncias. Como disse Alejo Carpentier (1977:19), o violão passou de instrumento transplantado à cultura colonizada para ser o instrumento latino-americano por excelência. Em segundo lugar, a escolha pelo violão favoreceu uma questão meramente prática, pois delimitou o estudo em um número equilibrado de peças entre ambos autores e, mais ainda, a obra para violão abarca as diferentes fases de suas trajetórias como compositores, sem esquecer que eles também foram intérpretes do instrumento. Optei ainda pelo violão porque, como musicista, vivendo na área da música de concerto para violão há mais de 20 anos, posso afirmar que a obra violonística de Brouwer e Villa-Lobos é o conjunto de peças de autores latino-americanos mais conhecido e executado nos meios acadêmicos e de salas de concerto no mundo. O procedimento metodológico adotado foi o de lidar com a opinião de vários autores: - os que trataram de analisar a obra dos compositores Villa-Lobos e Brouwer; - os que revelaram o momento histórico vivido por cada um; da dissertação. 2 SILVA, Beatriz C.. ―Para ministros, integração deve começar pela música‖ in O Estado de São Paulo, 07/09/98. 5 - e os autores que trabalharam teorias culturais sobre a América Latina. Ao analisar aspectos da identidade cultural latino-americana de Brasil e Cuba por meio da obra musical para violão de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer, tive como ponto de partida a sobreposição de diversas teorias culturais latino-americanas, apresentadas por autores de diferentes tendências. Muitos teóricos já se expressaram sobre as problemáticas culturais prementes da América Latina como o chamado ―encontro‖ das diversas culturas, o colonialismo, a dependência, o moderno e o pós-moderno, sendo que alguns autores se pronunciaram favoravelmente, isto é, vêem a questão como de resultado compensatório ou otimista, e há outros que trabalham o assunto como uma releitura destes temas inerentes à nossa condição latino-americana com uma postura mais crítica, principalmente no tocante à acomodação da questão racial, obscurecida em aspectos como o do ―encontro‖ das raças. A bibliografia deste capítulo foi levantada de modo a abranger um certo número de autores de ambas as tendências, mas deu ênfase às proposições históricas mais recentes. Somente depois meu trabalho entrou no estudo comparativo da música de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer, pelo contato direto com as obras em questão, por meio de partituras selecionadas. Os objetivos que busquei atingir foram: - a linguagem composicional de cada autor; - os recursos técnicos utilizados nas obras escolhidas para análise; - os resultados sonoros em relação aos temas propostos pelos compositores; - os procedimentos inovadores; - a expressão latino-americana; - os elementos comuns e os divergentes entre os autores; - e o momento histórico em que ambos viveram. 6 A busca desses aspectos tem como centro a interpretação da linguagem composicional de cada autor dentro de um caráter nacionalista, que permeou a obra dos dois artistas. Entretanto, se a partir desta interpretação ficar esclarecido o comportamento dos dois compositores, é possível chegar-se a uma constituição do que foi o fazer musical na América Latina, no século XX, a natureza de seu funcionamento, a partir de um modelo gerado pela ação desses dois nomes consagrados propostos. É pertinente relembrar que o desaparecimento de Heitor Villa-Lobos coincide com a ascensão de Leo Brouwer, o que permitiu uma leitura do panorama histórico em cerca de nove décadas de existência de vida musical na América Latina – dos anos 10 até os 90 do século XX. Trabalhou-se a questão de um ponto inicial - histórico e sociológico - por meio da visão geral do contexto em Brasil e Cuba, e prosseguimos pelas biografias dos compositores e o advento do violão em suas carreiras. Deste ponto em diante, o estudo é tratado de maneira mais técnica pela análise das peças. Dividindo a carreira dos dois compositores em três fases, optei por analisar duas peças de cada etapa. A divisão por três fases em cada compositor seguiu, no caso de Villa-Lobos, algumas teorias de importantes musicólogos, embora com certas ressalvas que se aplicam ao violão. Um fato é que o Nacionalismo esteve em toda a sua obra e isto fica evidente também no repertório de violão. Da mesma forma em Brouwer, pode se considerar que as três fases já apontadas em alguns trabalhos anteriores, e apoiado pelo próprio Brouwer, não eliminam entre si a utilização de procedimentos de uma ou outra fase, de maneira que se pode afirmar que seu trabalho veio em uma crescente fusão de estilos, que se equilibraram no terceiro período. O objeto de comparação foi definido pelo número de obras musicais selecionadas de cada autor. A análise de partituras buscou um número mínimo para comparação das obras – seis peças de cada autor – que abarcasse as diferentes fases de cada um. Em Villa-Lobos, 7 escolhemos peças de violão que mais do que outras representariam melhor o Nacionalismo. Na série de 12 Estudos, por exemplo, há estudos que realmente se esmeram mormente pela qualidade técnica (e a técnica do violão é advinda das escolas espanhola e italiana - daí alguns autores anteriores perceberem a influência destas em alguns dos estudos), outros que assumem um caráter universal (o Estudo n.º 1 é muito comparado a prelúdios de Bach) e ainda outros que conseguem reunir uma ressonância do local com uma linguagem universal (o ideal de perfeição dos adeptos do Modernismo). O mesmo procedimento foi tomado com a série de 5 peças da Suíte Popular Brasileira e com os 5 Prelúdios. Basicamente os autores que trataram de estudar sua obra dividem sua carreira em quatro fases: 1. A fase de formação musical, com grande aproximação da música popular carioca do começo do século, 2. A permanência em Paris, 3. O trabalho com o Canto Orfeônico, no governo Vargas, 4. A fase de consagração internacional de sua carreira. O violão esteve presente nestas quatro fases apontadas e apresentou-se integrado à estética destes períodos: 1. A Suíte Popular Brasileira, formada por quatro peças (Mazurka-Choro, Schotisch-Choro, Valsa-Choro, Gavota-Choro), reflete o panorama da música popular da cidade do Rio de Janeiro, 2. Os 12 Estudos, escritos em Paris de 1924 a 1929, demonstram a linguagem inovadora deste período, tratando o instrumento como nunca havia sido feito antes, 3. Os 5 Prelúdios, escritos em 1940, no Rio de Janeiro, expressam traços que se encaixam na agenda nacionalista, como as dedicatórias: ao Homem do Campo, ao Índio Brasileiro, etc.. 8 4. O Concerto para violão e pequena orquestra (1951) é da fase de consagração. O material deste concerto é uma síntese das características que o compositor criou ao longo de sua carreira. De Heitor Villa-Lobos, as partituras foram selecionadas de um conjunto de 24 peças para violão solo - 12 Estudos; 5 Prelúdios; 5 peças da Suíte Popular Brasileira, Choros n.º 1 e a recém-descoberta Valsa de Concerto n.º 2. A lógica da seleção partiu de um princípio de escolha de peças que contenham informações fundamentais, sonoras e temáticas, para o estudo de elementos nacionalistas na obra de Villa-Lobos - mais do que em outras restantes . E cheguei à seguinte seleção: 1.ª Fase do autor – anos 10: Valsa-Choro da Suíte Popular Brasileira. Chorinho da Suíte Popular Brasileira; 2.ª Fase – anos 20: Estudo n.º 10 da Série de 12 Estudos; Estudo n.º 11 da Série de 12 Estudos. 3.ª Fase – anos 30- 40: Prelúdio n.º 4 da Série de 5 Prelúdios; Prelúdio n.º 5 da Série de 5 Prelúdios. Já em Leo Brouwer, de um ponto de vista geral de sua obra, as peças que mais se coadunam com o Nacionalismo seriam as da primeira e da terceira fases de sua carreira, segundo Gordon (1986) e Dudeque (1994), pois ele mesmo destaca sua primeira fase como sendo Nacionalista, com elementos folclóricos, enquanto que na segunda fase ele realizou experiências com as linguagens de vanguarda, e na terceira, retornou ao Nacionalismo. De 9 Leo Brouwer, da mesma forma que na seleção anterior, a prioridade foi para as peças musicais que melhor caracterizavam o enfoque da pesquisa. 1.ª Fase do autor – anos 50-60: Danza Característica; Estudo n.º 5 - Montune - da Série de 10 Estudios Sencillos. 2.ª fase – anos 70: Canticum; La Espiral Eterna. 3.ª Fase – anos 80-90 El Decameron Negro; Rito de los Orishas. De acordo com as informações coletadas, Leo Brouwer tem um conjunto de obras para violão solo de 38 peças, iniciados em 1954, sendo a peça mais recente datada de 2000. Leo Brouwer começou sua carreira de compositor escrevendo obras para o violão, instrumento no qual iniciou seu aprendizado musical. A carreira como compositor e intérprete caminharam lado a lado, até o momento em que Brouwer decidiu-se exclusivamente pela composição. Em Cuba, os ditames do engajamento na Arte foram predominantes no período em que Leo Brouwer iniciou-se como compositor, já que ele é proveniente de uma sociedade de ideologia marxista, e foi testemunha ativa das mudanças didáticas e estéticas do sistema educacional e cultural cubanos. Brouwer pode ser considerado um compositor que se utiliza da vertente nacionalista, porém, obteve um acesso às correntes de vanguarda européia dos anos 60, incorporando-os à sua obra, o que poderia causar um paradoxo dentro dos parâmetros de engajamento instituídos pela política cultural do governo revolucionário. 10 Uma terceira etapa do trabalho pretendeu comparar a obra dos dois compositores. Questões cruciais são colocadas, como o Nacionalismo, a vanguarda, a música popular, a linguagem composicional de cada autor, os recursos técnicos utilizados nas obras escolhidas para análise, os resultados sonoros em relação aos temas propostos pelos compositores, os procedimentos inovadores, a expressão da identidade latino-americana, os elementos comuns e os divergentes entre os compositores, principalmente quanto à política. Assim como o violão no Brasil percorreu um variado caminho até chegar ao trabalho consagrado de Villa-Lobos, a história do violão em Cuba é plena de fatos que também se interligaram até chegar à figura central do violão em Cuba, que é Leo Brouwer. Ainda que este trabalho não tenha por finalidade contar a história do instrumento em cada um dos dois países, isto se fez necessário para demonstrar as semelhanças entre ambos e para se ponderar sobre o fato de que a atuação de Villa-Lobos e Brouwer não foi uma atitude isolada, mas sim que ambos são produtos de uma espécie de genealogia do violão em seus países, que em seus muitos entroncamentos, principalmente com a vertente popular e as novas linguagens, conformou uma maneira de se expressar por meio do instrumento, que caracterizou fortemente seus trabalhos, influenciando outras gerações e tornando-se representantes da idéia que se apresenta sobre o violão latino-americano. 11 Capitulo 1. Contexto histórico da América Latina Em muitos trabalhos acadêmicos, a interdisciplinaridade é necessária para a compreensão ampla dos elementos que envolvem uma temática. No Programa de Pósgraduação em Integração da América Latina – Prolam, a interdisciplinaridade é um procedimento adotado por seus membros, tanto durante o período de cumprimento de créditos quanto na confecção das pesquisas. Assim, as dissertações e teses apresentadas em mais de uma década de existência do Prolam nutrem-se de uma gama de disciplinas. O presente trabalho provém da área musicológica e está baseado em duas disciplinas: História e Sociologia (com diminutas inserções em Antropologia), não somente para seguir à risca as determinações do Prolam, mas também pela crença na efetividade do método interdisciplinar. Além disso, foi constatada a deficiência deste processo na maioria dos textos que narram a vida e a obra dos dois nomes enfocados na pesquisa. Tanto em Heitor VillaLobos (que já possui um número grande de títulos) quanto em Leo Brouwer não é hábito buscar o auxílio das Ciências Sociais para fundamentar certas ações. Como um tipo de arremate histórico, os textos fixam Villa-Lobos a Getúlio Vargas e Leo Brouwer à revolução socialista cubana, sem análises correlatas. Alguns autores já têm como princípio a pesquisa multidisciplinar, enquanto que outros nomes ficam mais na análise da biografia ou da obra do artista, sem uma ênfase extramusical3. Pelo que pude obter do material bibliográfico em relação a Cuba há também os dois tipos de procedimento, talvez com um pouco mais de inflexão no contexto histórico-social do que no caso brasileiro. Na verdade, a multidisciplinaridade é um aspecto mais recente como uma instrução a ser levada com afinco pelos pesquisadores. 3 Não há nesta constatação qualquer tom de crítica, posto que cada um correspondeu às necessidades e códigos da época em que escreveram. Trata-se sim de atualizar os dados trazidos outrora por eles, agora, à luz de novas possibilidades de análise. 12 Béhague (1999:41) ressalta a importância dos conceitos teóricos para embasar as pesquisas, colocando como elemento significativo, hoje em dia, a questão da identidade sóciocultural de grupos determinados. Herdamos dos nossos antepassados uma classificação bastante arbitrária das classes sociais e dos grupos étnicos latino-americanos que já não correspondem à realidade de autodefinição e identidade. A dinâmica de identidade se assevera extremamente complexa no mundo de hoje, pois acarreta necessariamente uma espécie de negociação consciente ou não do discurso de identidade, dependendo do sentido do próprio em relação a algum outro. O discurso que procura formular essa identidade conforma a natureza do outro, a quem se apresenta esse discurso. Por motivos práticos tradicionais, referimo-nos constantemente a tradições musicais de grupos, tais como mestiços, negros, crioulos, hispano-americanos, luso-brasileiros, guajiros em Cuba, gíbaros em Porto Rico, afrocubanos, afro-brasileiros, indígenas etc. No entanto, os fatores de identidade nunca são tão rígidos. (...)O cultural e o social, no entanto, requerem um enfoque diferente no sentido de perceber e definir o que torna esse fazer musical histórico próprio de um país determinado. (...)O objetivo da pesquisa histórico-musical no Brasil, e por extensão na América Latina, tem que levar em conta as próprias características sociopolítico-culturais dos vários agentes que determinaram e marcaram as várias fases dessa história e a forma em que essas características se encontram refletidas nas produções artísticas. (...) o fenômeno musical não pode ser tratado isoladamente do seu contexto social e cultural. Sendo assim, a finalidade deste primeiro capítulo é examinar as principais considerações históricas e captar suas conexões com os trabalhos dos referidos compositores. A direção, portanto, que norteia a análise é buscar o ambiente no qual cada um surgiu. Podese notar que há opiniões bem recentes intercaladas com apreciações de autores que já receberam um lugar de destaque na área. 1.1. Brasil: os temas nacionais Na ocasião em que Villa-Lobos nasceu, 1887, dois importantes acontecimentos estavam por se realizar no cenário político e social brasileiro: a Abolição dos escravos (1888) e a proclamação da República (1889). Pelo que se pôde constatar, o jovem Villa-Lobos4 4 Villa-Lobos teve os estudos básicos com seu pai e em 1901 ingressou no Colégio Pedro II, depois realizou o curso de Humanidades no mosteiro de São Bento. 13 passou pelas mudanças impostas pelo advento republicano, entre as quais alterações na vida escolar, que agora seguiriam mais a estrutura civil e menos a religiosa. É fato conhecido também que o pai do compositor, Raul Villa-Lobos, escreveu um artigo criticando o marechal Floriano Peixoto, em 1892, obrigando a família a se refugiar em Minas Gerais, portanto é um período conturbado. Assim como muitos autores pesquisados, Eduardo Victorio Morettin (2001: 135-140) afirma que no século XIX, surge uma mentalidade mais secular; a virtude cívica estava substituindo a devoção religiosa. Os historiadores mais em voga eram Afonso de Taunay, Francisco Adolfo de Varnhagen, João Capistrano de Abreu, todos membros partícipes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, fundado em 1838. O livro de Manuel de Araújo Porto-Alegre Iconographica Brazileira do IHGB é um dos marcos desta preocupação com a imagem da nação emergente. Em busca de um referencial simbólico, os historiadores começam a buscar personagens ―dignas de serem imortalizadas‖ na galeria dos heróis nacionais. ―Neste processo de construção, um tema, o do Descobrimento do Brasil, possui especial significado, pois remete a uma dupla e complementar fundação: a da nação e a da própria História‖, afirma o ensaísta. O tema ―Descobrimento‖5 nasce aí e vai adentrar o Estado Novo. 5 Para muitos autores, a primeira questão da gênese da América Latina é o posicionamento ideológico frente à nossa primeira versão do passado: a problemática se divide entre diferenciar os termos descobrir e chegar. Maria Aparecida Baccega (1993: 136) afirma: ―Há sistemas de valores que regem cada uma das opções, ―descobrir‖ ou chegar: a ―descoberta‖ implica a justificativa do colonialismo; a chegada demonstra a independência dos povos que, se sufocada, será reconquistada em novas bases‖. Por ocasião dos festejos dos 500 anos da chegada de Colombo à América, Collazo (1993:101) resumiu bem a tônica da polêmica que envolveu o evento. Duas posições bem distintas foram tomadas: de um lado, os que afirmavam que não havia o que comemorar, mas sim até condenar porque o genocídio físico e cultural pôs em xeque qualquer grandiosidade da empreitada marítima. No extremo oposto, aqueles que diziam que havia sim o que comemorar porque o acontecimento de 12 de outubro de 1492 foi o encontro afortunado de dois mundos, de duas culturas, que possibilitou a difusão do modelo ocidental de vida, e a fé cristã acoplada a isso. Rosane Borges (2000:55-65) em um artigo sobre a ―Festa dos 500 anos‖ do Brasil afirma: ―A passagem dos quinhentos anos da terra brasilis foi marcada por diversas iniciativas. Com ela intensificaram-se campanhas, atos, projetos e manifestações que pudessem (re)contar e celebrar nossa história: a história do povo brasileiro! História que não constitui-se, estritamente, como reminiscência do passado mas, precipuamente, como tentativa perseverante em (re)definir o Brasil e seus meandros, em que o tempo presente é interpretado pelos ideais de ―nacionalidade‖e ―identidade‖ próprias. Uma história que significa não apenas pelo dito, mas também por aquilo que é silenciado ou, subrepticiamente, distorcido ou negligenciado‖. Sobre a cobertura da mídia na comemoração dos 500 anos de 14 O documento motriz desta ação é a carta de Pero Vaz de Caminha, cuja íntegra, só seria publicada no Brasil em 1877, em uma edição da revista do IHGB. Em 1850, Joaquim Norberto de Sousa Silva e Gonçalves Dias debatem a teoria da casualidade da descoberta. Varnhagen e Henrique de Beaurepaire-Rohan discutem o local exato do desembarque. Até mesmo a data era discutível, pois no século XIX comemorava-se o 3 de maio (o dia da primeira missa no Brasil). É também neste século que se dispõe sobre os locais dos Panteões aos heróis nacionais. Morettin afirma que Varnhagen, apesar de sua proclamada imparcialidade, ao falar sobre os índios do Brasil em seu livro, aponta características negativas, enxergando o outro pelo que ele não tem: não tem estado, família, jurisprudência, patriotismo, (religião): O historiador constrói o quadro de justificativas necessário para explicar a importância da chegada do homem branco. Além de trazer a civilização, a vinda do europeu salva este território do despovoamento, inevitável devido à tendência à guerra e aos hábitos culturais dos ―selvagens‖. O historiador, tão apegado ao sentimento de verdade e boa-fé, inverte o jogo. Ao invés de o branco ser responsabilizado pelo extermínio dos ―selvagens‖, Varnhagen credita ao modo de vida dos indígenas a responsabilidade pelo seu fim, o que confere aos invasores um papel fundamental: são eles que impedem o despovoamento do imenso território. Outro historiador de peso citado por Morettin é Capistrano de Abreu, que em 1883 redige uma tese para sua admissão como professor no Colégio Pedro II. O texto de Capistrano é mais documentado, retornando a questões controversas como a teoria da casualidade. Em um artigo de 1900, Abreu fala dos índios, e é menos preconceituoso que Varnhagen. Em um texto datado de 1908, ele reforça a idéia da simpatia pelo índio. Além dessa preocupação com a história, a falta de uma iconografia começa a mobilizar a Academia Imperial de Belas Artes para mudar isso. Pedro Américo e Victor descobrimento do Brasil, Borges (que realizou um estudo entre mídia impressa e televisiva) conclui que a mídia ensejou um tipo de narrativa em consonância com os princípios de brasilidade, identidade e unidade nacionais a partir de dada referência. A seleção feita pela mídia partiu do elenco de temas comemorativos, com rejeição aos movimentos e ações contrárias às celebrações. Comparando a uma grande festa, Borges diz que os ―convidados indesejados‖ foram os segmentos indígenas, a comunidade negra e a comunidade estudantil. Já o convite oficial partiu do Estado às autoridades nacionais e estrangeiras – a presença européia reforçou a idéia da ―descoberta‖ do Brasil. 15 Meirelles são os nomes mais conhecidos. Américo segue um padrão no qual defende a inspiração na realidade, mas sem se ―escravizar‖ a ela. Victor Meirelles de Lima (o pintor da Primeira Missa do Brasil, em 1861) leu a carta de Caminha, para se inspirar, mas, como alude Morettin, de forma sintetizado. Morettin conclui que a elaboração e a eleição de um conjunto referencial para entender o nascimento do país quer criar a harmonia entre o branco e o índio como constitutivos da Nação. Sobre a imagem do primeiro encontro entre Pedro Álvares Cabral e os índios, o espaço descrito é a nau dos portugueses, e de forma hierárquica, pois o índio ―é visto como ‗objeto de trabalho, informação e correção‘ ‖. Há uma mensagem subliminar do benefício aos índios neste contato. O livro didático ganha então no século XIX seu material iconográfico: o Sete de Setembro de Pedro Américo e a Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles. Diz Morettin: Condensando o saber considerado correto sobre a História, e ganhando contornos de verdade, as imagens inseridas nos manuais transformam-se na representação visual do fato, sobre o qual não devem pairar dúvidas e muito menos interpretações, dado o caráter impositivo e unívoco do conhecimento transmitido pelo livro didático. Nos anos de 1900, os relatos soam cada vez menos Igreja e mais Estado. Nessa situação, há a idealização do momento da chegada dos europeus ao Brasil, como um símbolo do Estado. Morettin conclui então que a carta de Caminha é o ponto de partida, porém modificações e apropriações acontecem constantemente. A confecção dos livros didáticos passa pelo IHGB e a visão da história dentro do Instituto é então fixada nos temas: Descobrimento, Independência e República, e só mais tarde, a Inconfidência6. 6 Segundo Cláudia R. Callari (2001:63-83), durante o período da Monarquia, a Inconfidência Mineira é ―esquecida‖ porque simboliza uma ameaça à unidade nacional. Paulatinamente, o papel da Inconfidência vai sendo restabelecido e a uma década da proclamação da República sua citação fica mais firme. A explicação do fracasso da Inconfidência era a de que ―o país não estava pronto‖. A busca de exemplos na passado visava a legitimação do presente, e esta finalidade pedagógica era uma função do Estado. Nos anos iniciais da República, a figura de Tiradentes começa a ser revista e a reabilitação total de seu nome ocorre em 1927 pelo IHG de Minas 16 Segundo Helio Silva (1998:13), a República tinha de acontecer porque a Monarquia era um regime artificial no continente americano já que ela aconteceu aqui em condições especiais. O intervalo de tempo entre a Abolição e a República é pequeno – 18 meses – e não houve nem no final do período monárquico nem na nascente República nenhum ―projeto de inserção social do negro‖ (Ribeiro, Ronilda 1997:164). Muito pelo contrário, foram utilizados instrumentos para traçar ―uma estratégia de controle da inclusão dos negros, ex-escravos, libertos, à cidadania brasileira‖ (Menezes, Jaci 1997:11-12). Como afirmei no parágrafo inicial, o jovem Villa-Lobos vivenciou a mudança de uma estrutura religiosa para a civil. Isso provavelmente acarretou, em sua vida de estudante, a fixação dos temas nacionais – Descobrimento, Independência e República – com especial enlevo à figura do índio7. 1.2. A invenção do “outro”. Para Ortiz (1994:219-220), habitualmente, as civilizações consideravam o ―outro‖ como algo distante, fora de seus contornos conhecidos, um habitante de as regiões longínquas, cujo contato se fazia por meio da viagem: os românticos idealizavam o exotismo 8 dos povos e se deslocavam pelo Oriente Médio, ―apreendendo o estado ‗maravilhoso‘ da alma humana‖; assim como os antropólogos ao estudarem os povos ―primitivos‖, na busca da compreensão de uma mentalidade diferente da ―nossa‖. Os homens procuravam, assim, traduzir a distância que os separava dos objetos e das Gerais. Nos livros didáticos a Inconfidência passará a representar a ação moral de sua personagem maior, o Tiradentes. 7 Anos depois, em 1940, Villa-Lobos comporia as quatro suítes para o filme ―Descobrimento do Brasil‖, de Humberto Mauro, que, como afirma Morettin, carrega esse conteúdo iconográfico do século XIX. 8 A palavra ―exótico‖ vem do grego ―ex‖= fora e ―óptico‖= visão, ou seja, longe do alcance das vistas. 17 pessoas, numa linguagem que nos fosse familiar. O outro, incompreensível, remoto, podia então ser entendido no seu exotismo, na sua integridade, na sua autenticidade. Neste caso, ―nós‖ e ―eles‖ são entidades bem delimitadas, alimentando o etnocentrismo, europeu ou norte-americano. De acordo com Cristina Pompa (2001:179-187), não é novidade que ―o indígena descrito nos relatos dos viajantes e missionários é a alteridade radical que a Europa já conhece bem de toda uma literatura clássica, medieval e renascentista‖. Os relatos de viagem, a partir de Colombo, encontram e descrevem apenas o que já conhecem. Os viajantes do século XVI carregam consigo já uma imagem pronta, coerente, sustentada e protegida pelo horizonte teológico. Trata-se de uma mediação dos esquemas culturais familiares ao observador. Pompa cita Jean de Léry (1578) Viagem à terra do Brasil como exemplo de que ―a representação histórica se transforma em mise em scéne literária pela prática da escrita historiográfica. A narrativa é uma viagem em busca do eu, cujo produto é a invenção do selvagem‖ e conclui: ―as descrições de Léry inauguram uma série de quadros análogos aos que os relatos de viagem vão apresentar durante quatro séculos‖. Causou bastante estranheza a questão religiosa dos índios. Os missionários não enxergaram nos índios o modelo de alteridade religiosa mais próximo que tinham – o paganismo – e por isso os religiosos europeus afirmavam ―os tupinambás não têm religião‖. Também não detectaram sinal de qualquer tipo de idolatria, como no Peru Inca ou no México Asteca. Cartas célebres de Caminha, Padre Nóbrega e de Américo Vespucci (em 1502, carta aos reis Isabela e Fernando de Espanha) de igual maneira atestavam como certa a falta de religião entre os indígenas. Não tardou para que a Igreja oficializasse sua tomada de posição e em 1537 a Bula Papal de Paulo III mandava trazer os índios para a fé cristã. Um interessante aspecto levantado por Pompa (2001:185) é sobre o aspecto místico da empreitada marítima: Muito já foi dito a respeito da visão escatológico e providencialista do próprio Colombo, influenciado pelo meio franciscano ibérico, de tendências joaquimitas. Colombo estava 18 certo de estar realizando a profecia das sagradas escrituras, ―descobrindo‖ o novo céu e a nova terra, dos quais fala João no Apocalipse (21,1), e a apressando a historia do mundo, conforme a promessa de Mateus ―Propter electos breviabuntur dies illi” (Mat.24,22). Pompa assinala que a leitura do outro foi feita via código religioso, daí que todos os homens de fé dos séculos XVI e XVII apontam o ―demônio‖ atuando sobre o índio por causa de sua ausência religiosa. Desta ausência, passou-se a concluir que os índios possuíam uma falsa religiosidade (Tupã, por conseguinte), e desta falsidade à mentira e ao demônio na figura dos xamãs e pajés, que por sua vez eram vistos pelos missionários como os grandes inimigos da catequese. Além do espanto pela ―falta de religião‖, Paulo de Assunção (2001:223-228) aponta nos relatos a surpresa do europeu na possibilidade de sobreviver em novas regiões, ou seja, percebe-se que a idéia de sobreviver fora da Europa era inacreditável. Há um destaque para a abundância, clima bom, variedade de flora e fauna para fomentar a vinda de mais europeus, porém os comentários sobre o clima bom para saúde também causam alarde ao aspecto ―maligno‖ para a moralidade cristã no comportamento das pessoas. 1.2.1. O índio na Era Vargas Seth Garfield (2001:14-25) reitera que em alguns momentos da história do Brasil ocorreu de forma mais contundente uma valorização do índio: durante o Nativismo do século XIX, com nomes como José de Alencar e Gonçalves Dias, cuja evidência era camuflar o escravismo; e na Semana de Arte Moderna de 22, na figura de Oswald de Andrade e seu movimento antropofágico (Manifesto em 1928), que pregava a síntese do autóctone e do europeu. Na década de 30, outros autores como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia são apontados por Garfield como enaltecedores do passado anterior ao 19 descobrimento. O nome maior dos anos 30 é Gilberto Freyre que louva a contribuição do indígena para a formação da cultura brasileira. Segundo Antonio Riserio (1993:114-120), no período do Romantismo da Literatura Brasileira, o tema africano foi posto de lado, não recebendo o mesmo destino que o texto ameríndio, fixando-se quase que exclusivamente na figura do índio. Como afirma, houve uma identificação entre o índio e o nacional. A escolha era estratégica. O índio respondia por um passado pré-colombiano e reagira à invasão e ao domínio português, sendo assim visto como antecessor do projeto independista (...) Mas a escolha era estratégica também em outro sentido: as tribos indígenas, naquele momento, estavam suficientemente distantes dos centros de poder para significarem qualquer tipo incômodo. Em Cuba, sabe-se que em 50 anos de presença espanhola, o colonizador dizimou as nações indígenas ali existentes, portanto não houve uma questão semelhante ao Brasil quanto a uma política de inclusão do índio na sociedade ―branca‖ brasileira. Já a República Dominicana procedeu de forma parecida com a do Brasil, quando decide escolher o índio, e não o negro, como o parceiro da miscigenação. Garfield analisa a política da valorização do índio como o elemento nacional e integrador durante o período do Estado Novo (1930-45). Segundo o autor, o Estado Novo foi o propulsor do processo de integração nacional, por meio das seguintes medidas: centralização do poder federal, ampla intervenção estatal na economia e programa nacionalista. Vargas voltou-se para o valor simbólico dos índios, por conterem ―as verdadeiras raízes da brasilidade‖. Os índios foram repentinamente convocados para o palco da política, segundo Garfield, por causa das preocupações da elite quanto as origens da nação e a composição racial da época. Como medida prática é criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (desde 1910 já havia o Serviço de Proteção aos Índios, refletido na figura de Cândido Rondon), um 20 órgão para promover e conscientizar a opinião pública sobre a cultura indígena. Uma das invenções dessa política de valorização do indígena é a da tradição do índio em ficar ao lado do português sempre (fatos históricos são atropelados). A cultura e a identidade indígenas são vistas como transitórias e, portanto, dever-se-ia integrá-los à sociedade. Em 1934 Vargas estabelece a data de 19 de abril como ―Dia do Índio‖ e nos anos seguintes eventos diversos acontecem com a assistência do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP9. Vários textos revelam o interesse dos intelectuais pelos índios, elogiosamente, junto com a benevolência do Estado no esforço de integrar o índio à sociedade. Na opinião de Garfied, o motivo pelo qual as elites se esforçavam na retórica enaltecedora do índio para o caráter nacional era também uma questão de ligação com o Americanismo: Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais brasileiros da Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura e do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou mais o Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e de seus primeiros habitantes. No Estado Novo, o discurso pró-índio ecoava as questões mundiais como racismo, xenofobia e chauvinismo porque, segundo Garfield (2001:21): Numa época de crise econômica mundial e nacionalismo exacerbado, os brasileiros foram criticados por admirarem ideologias estrangeiras. O marxismo e o liberalismo, afirmavam os funcionários do Estado Novo, eram inapropriados às realidades nacionais. O mesmo valia para as teorias européias da superioridade racial, as quais eram criticadas por provocar ultraje – para não mencionar desconforto, uma vez que muitas famílias influentes careciam de ascendência puramente branca. (...) No seu discurso sobre raça, o regime de Vargas também difundiu doutrinas européias, mas redefinindo os grupos considerados indesejáveis. O paradoxo na escolha do índio é que os índios representavam, como os primeiros habitantes da terra, uma ambigüidade ao Estado-nação. Isso preocupa as autoridades e não faltam discordâncias e conflitos. O Estado Novo quer consagrar a imagem do ―bom 9 Criado em 1939 e cujas funções principais eram: impedir a veiculação de críticas a Getúlio e fomentar a elevação de usa imagem, segundo Lamounier (1988:86). 21 selvagem‖ e, na seqüência, incumbe-se de lhe dar um papel de tornar o interior do Brasil produtivo. Garfield conclui que a linguagem protecionista estadonovista sufocou o povo indígena, embora o cerceamento à sua cultura já viesse de antes10. Finaliza Garfield (2001:25): Embora aproximadamente duzentos grupos diferentes vivessem no Brasil com diversas culturas, línguas e relações com a sociedade brasileira, o Estado reduziu-os todos a ―índios‖, uma construção cultural que incorporou objetivos e idéias dos brancos. Rica em seu valor simbólico a invenção estadonovista do índio contradizia as realidades atuais e passadas dos índios. Alem do mais, os objetivos quixotescos e as instituições governamentais seriam sistematicamente lesados pela corrupção burocrática, pela oposição da elite, e pela resistência indígena. Não obstante, os índios, junto com o governo e seus críticos, teriam de lidar com as imagens e políticas ambíguas popularizadas na era Vargas durante muito tempo. Pode ser concluído que, pela segunda vez, Villa-Lobos é contemporâneo de uma política nacional de elevação do índio. 1.3. O segundo “outro”: o Negro. Segundo cita Rosangela Malachias (1996:12-13), o sistema escravista ibérico apoiavase em uma tradição e legislação escravistas e em uma instância religiosa11. Para o Brasil, o 10 Em 1916 no Código Civil os índios eram tidos como ―relativamente incapazes‖ nas questões civis; em 1928 foram considerados tutelados federais – o que era um autoritarismo, pois retirava do índio o poder de escolha e, mais ainda, ―escolhia‖ pelo índio. 11 Antonio Penalves Rocha (2001:38-57) faz um ensaio sobre os textos de brasileiros que escreveram sobre a possibilidade da abolição da escravatura, cerca de 60 anos antes da Lei Áurea. Até meados do século XVIII a escravidão e a servidão eram tidas como partes constitutivas da natureza das sociedades, mas tornaram-se alvos de alguns escritores da Ilustração que incorporaram até críticas de religiosos – quacres e evangélicos – à escravidão negra, fundamentando a repulsa do mundo contemporâneo a qualquer forma de trabalho forçado. O ideário iluminista chegou ao Brasil nas primeiras décadas do século XIX e os textos pioneiros contra a escravidão no Brasil estão entre 1817 e 1825. Penalves relembra que a imensa maioria da população brasileira era iletrada e, portanto, estes textos não tiveram nenhum efeito imediato. Estado, Igreja e senhores tinham interesse em preservar escravidão, empenhando-se em bloquear a expressão de idéias que ameaçassem a ordem vigente (como a Enciclopédia que editou os verbetes ―escravidão‖ e ―tráfico de negros‖ escritos por Jaucourt). Também afirma que o plano inglês para acabar com o tráfico correspondia à uma questão econômica, tendo em Adam Smith seu principal teórico. A tônica destes escritos é basicamente a mesma – a da questão econômica e o dano à governabilidade porque os escravos são inimigos intermos latentes, e não seria difícil ocorrer uma revolta como a de Toussaint Loverture no Haiti em 1791 – tema que verdadeiramente amedrontava a elite. Como constata Penalves, alguns poucos brasileiros haviam aprendido a ver a escravidão com o olhar dos ilustrados 22 sistema escravista traficou de 4 a 8 milhões e para Cuba bem menos, cerca de 350 mil. Rodolfo Sarracino (1995/1996: 204) diz que foram quase 10 milhões no continente todo, em 355 anos de tráfico. Como se sabe, bantos e sudaneses estão entre os povos que mais foram aprisionados e trazidos à força para o Brasil. As conseqüências para todos os envolvidos continuam sendo sentidas entre altos e baixos dos movimentos negros e de uma política governamental incipiente. Malachias analisou em sua dissertação a Teoria da Transculturação12 de autoria de Fernando Ortiz13 Em resumo, a transculturação é o processo pelo qual ambas as partes resultam modificadas. Na contrapartida, a autora aponta a Teoria da Deculturação, que é o processo consciente para fins de exploração econômica, no qual promove-se o desenraizamento cultural de um grupo para facilitar a exploração ou de seu território ou dele mesmo como indivíduo. A teoria é de Moreno Fraginals14. Jaci Menezes (1997:14) coloca que da Abolição para a República abandona-se o estilo francês como modelo político para se seguir o inglês e o norte-americano15. Antes da europeus e a eleger alguns princípios iluministas para condenar a escravidão. Montesquieu em seu Espírito das Leis de 1748, alude à questão moral, pois viola o direito natural, a monarquia, o direito civil, o cristianismo e resulta em um rendimento inferior ao do trabalho livre. Já Adam Smith, mentor da economia política, obteve maior adesão dos brasileiros às suas críticas econômicas à escravidão porque a questão econômica era reconhecida como a única condenação científica à instituição da escravidão. A única exceção de peso ao discurso desses escritores (Gonçalves Chaves, João Severiano Maciel da Costa, José da Silva Lisboa) é José Bonifácio de Andrada e Silva que em 1825 demonstra um ideário bem mais humanitário e afim às idéias do antiescravismo europeu do século XVIII. Conclui Penalves que Bonifácio uniu compaixão a argumentos utilitários, como os danos econômicos dos altos custos do tráfico negreiro. Chegou até a sugerir a doação de terras para os ex-escravos. Todos os escritores eram membros participantes do governo, e apontam como soluções o fim do tráfico, a mitigação da escravidão e a gradual abolição. Penalves conclui que a reforma da escravidão pelo Estado, pleiteada por alguns destes escritores ligados ao governo, quis preservar o status quo sem pensar nos destinos dos ex-escravos. 12 Poderia ser citada ainda a teoria da hibridação de Nestor García-Canclini (1990). Entretanto, vou me ater às teorias já expostas por acreditar que estas ainda abordam o tema do relacionamento entre as diferentes culturas mais amplamente. 13 No livro El Contrapunteo cubano Del tabaco y Del azucar. Havana: Dirección de Publicaciones Universidad Central de las Villas, 1963. 14 Em ―Aportes culturales y deculturación‖. In África en América Latina, México, UNESCO – siglo XXI, pp.1333, 1977. 15 Sedi Hirano (1997:31-32) explica a noção do capitalismo da chamada Pax Britânica, no período pré-Abolição no Brasil, e a passagem para um capitalismo da Pax Americana, proveniente dos Estados Unidos após a primeira 23 Abolição o número de escravos já havia baixado para 700 mil e desde o segundo quartel do século XIX (Silva 1998:14) a mão de obra assalariada de imigrantes europeus já era maioria em São Paulo. Como já foi dito, essa época é um momento de discussão sobre a nova nação brasileira. Das principais mudanças sentidas, há a separação entre Igreja e Estado, toda uma estrutura civil é montada; a liberdade de culto é promulgada, mas visando ao protestantismo europeu; o critério para a cidadania ativa (o direito de votar) é ser alfabetizado – embora o Brasil tivesse 83% de sua população sem alfabetização. Os agora negros libertos eram geralmente agregados a seus ex-senhores, se assim não fosse corriam o risco de serem considerados ―vadios‖. As normas de repressão eram bem amplas, desde a proibição à capoeira até a inclusão no primeiro Código Penal da República das mesmas leis escravistas. O liberto era obrigado a permanecer no local onde antes vivia por um certo período de tempo e a liberdade de religião era restrita aos cantos e as sessões, só com a autorização da Delegacia de Jogos e Costumes (somente em 1938 o uso dos atabaques seria permitido). Ou seja, havia a libertação, mas com o controle da liberdade de ir e vir e da regulação do seu próprio trabalho. Quanto ao voto, por sua notabilidade como figura histórica, é procedente relatar que Rui Barbosa aludia ao ―perigo‖ da condição do escravo ao se tornar livre, ao mesmo tempo em que poderia se transformar em um eleitor. O ―perigo‖ era porque lhe faltaria a educação necessária para discernir as escolhas, ou seja, o país precisaria ser preparado para o sufrágio universal. José Bonifácio era totalmente contra esta proibição, relembrando que para lutar na Guerra do Paraguai os negros foram requeridos e agora não serviam mais, devido ―à soberania da gramática‖? guerra mundial, e que se tornou hegemônica, após a segunda guerra. A linha básica da Pax é que é necessário haver paz para o bom funcionamento da economia de mercado. 24 Menezes conclui que o caminho apontado por Rui garantiu que a liberdade não fosse confundida com igualdade civil ―permitindo que a transição da escravidão para a vida livre se fizesse sem conflitos, sem sustos, de forma segura. Para os senhores‖. Maria Luiza Tucci Carneiro (1993:146-147) relata, por meio de dados obtidos em estudos sobre manicômios e asilos, que o negro livre virou o mendigo, o espoliado e o doente. Entretanto, para a sociedade ele era um perigo nas ruas, transformando-se em um pária. A fome e o abandono o levaram ao vício, crime e à loucura. Havia poucas saídas: ―O negro, quando conseguia um trabalho, era mal pago e identificado com a escravidão.‖ Lilia Moritz Schwarcz (1987:247) analisou jornais da época da abolição da escravatura e conclui que a maneira quase sempre tangencial como a questão foi normalmente referida denota não o descaso, não uma postura exterior com relação à questão racial, mas antes “anterior e mesmo interior”. Ou seja, questões essenciais não são mencionadas explicitamente. Schwarcz encontrou certas imagens nos jornais que mostram a questão: (...) poderíamos observar que as representações encontradas parecem vir ao encontro das conclusões de estudos já tradicionais sobre identidade étnica, que delimitam que a identidade é construída antes de tudo de forma contrastativa: (...). ‗‗nós e eles‘‘, ‗‗o branco e o negro‖, ‗‗o nomeado e o desconhecido‖, ―a vítima e o vilão‖, ―a bela e a fera‖, ―o são e o degenerado‖. (...) Nesse sentido, parece travarse, nesse contexto, um debate delimitado, já que o ―nós‖, presente aberta ou alusivamente nos artigos, parece remeter a um segmento limitado de brancos, grandes proprietários, que se opõem a um ―outro‖, ao ―negro‖ absolutamente adjetivado, que constitui objeto de discurso dos brancos. (...) do negro ―bárbaro e violento‖, ou do ―cativo fiel‖ dos anos 1880, ou do preto que vira negro, ou mesmo do elemento degenerado tão presente nos jornais nos inícios da República, e que basicamente faziam ―par‖, respectivamente, com o branco vitimizado, ―bom senhor‖, pacífico e civilizado de tantas e tantas notícias. (...) Esse é o caso do momento em que o negro, caracterizado até então basicamente como um ser violento e degenerado fisicamente, passa a ser apresentado como um degenerado moral, o que era reforçado pelo pensamento científico da época, que lidava largamente, no mesmo sentido, com esse tema e questão. 25 Além dessa imagem, uma outra foi acrescida na seqüência: (...) A introdução do tema África nos diferentes jornais da época. Assim, se até meados do século XIX a questão da condição negra e escrava era entendida como um problema que ―não se colocava‖ (e nesse sentido considerado como uma ―falsa questão‖), a partir desse momento não só ela era explicada como também justificada, tendo em vista novos critérios e argumentos: a herança (o continente de origem), os caracteres hereditários. Ou seja, nesse período e com todo o aparato da ciência determinista e positivista do século XIX, o negro passa a ser redefinido e delimitado não só como escravo, mas antes através de características ainda mais radicais, já que consideradas naturais. Ou seja, o negro recebe um estigma a mais. Além de ―violento e degenerado‖ é também o ―estranho‖ e até o ―estrangeiro‖. E, pior ainda, ―o negro não era apenas um estrangeiro qualquer; era acima de tudo um ‗estrangeiro não desejável‘, principalmente se lembrarmos que nessa época dá-se a introdução em larga escala do imigrante europeu‖. Conclui Schwarcz que esta imagem do negro perdurou até o advento das idéias de miscigenação – principalmente as defendidas por Gilberto Freyre. A partir daí, a questão racial vai perdendo a voz – para mergulhar em um consensual silêncio. Algumas considerações podem ser enfatizadas até aqui. Nos anos iniciais da República, que também eram da Abolição da escravatura, a inquietação com o agora negro liberto se evidenciou nas medidas de controle tomadas pelo governo. Villa-Lobos nasceu em uma época histórica de mudança de um regime monárquico para o republicano e de um sistema escravista para um que principiava a se tornar de trabalho livre e assalariado. O momento também era de discutir a formação da nação com a preocupação em eleger modelos e, nesse sentido, houve uma elevação do índio em detrimento do negro e do grande contingente mestiço do país. O espírito de época vivido pelo compositor foi de uma depreciação do negro, que na verdade vivia em uma pseudoliberdade; uma ação sistemática que duraria até as primeiras décadas do século XX, quando, nos anos 30, o ideário da miscigenação passaria a representar uma ―saída‖ para o dilema da formação da nação. 26 O que se pode concluir então é que a chegada das idéias alusivas à miscigenação na década de 30 ao mesmo tempo em que escolheram o índio como um símbolo nacional também conformaram a posição do negro e seus descendentes no arranjo da miscigenação. Que para a diminuta sociedade branca brasileira a convivência se tornou suportável a partir deste acomodamento, parece não haver dúvidas. Em Cuba, o quadro também não foi muito diferente. Segundo Alberto Faya (1990:31), a aceitação de negros lutando ao lado de brancos pela Independência não seria a mesma quando da discussão da gestação de uma sociedade criolla para ambos. Faya também afirma que o conceito de nação cubana esteve ligado ao processo de libertação da Espanha por meio das guerras na segunda metade do século XIX e uma de suas conseqüências mais marcantes foi a abolição dos escravos, que ocorreu em 1886. Assim como no Brasil, os descendentes de negros constituíam grande parte da nação cubana, ligados aos setores mais despossuídos. Faya conclui que dentro do processo de formação da cultura nacional é a destas esferas negligenciadas que provêm uma definição mais clara da nação cubana. Pitre Vasquez (2000:91) afirma que após a revolução socialista em Cuba e o posterior isolamento social, econômico, político e cultural imposto pelas grandes potências econômicas levou a uma introspecção da sociedade cubana. A partir daí o cubano começou a tentar se reconhecer e conhecer seu próprio território, a fim de identificar os grupos étnicos que formaram a nacionalidade cubana. Assim, Pitre situa que mais fortemente na década de 70 Cuba desenvolve uma valorização das origens africanas na cultura cubana. Na obra de Leo Brouwer é muito transparente esta presença citada por Faya e Pitre. Um exemplo simples disso fornece o musicólogo cubano Danilo Orozco (1999:4), quando diz que Brouwer esteve interessado no sentido simbólico-musical dos rituais e toques de origem 27 afro-cubano, na tarefa rumbera de certos solares de Havana, tendo manifestado o desejo de se incursionar em instrumentos de percussão soneros.16 Pelo contato com a bibliografia cubana que tive, pode ser concluído que a tomada do poder em 1959 pela guerrilha de Fidel Castro é vista como um divisor de águas em quase tudo da história cubana. A questão do negro também é permeada por esse marco. 1.4. Cuba: fatos históricos antecedentes a 1959. Leo Brouwer nasceu em 1939 debaixo da conturbada fase que os cubanos chamam ―pseudo-república‖, com forte atuação de Fulgencio Batista. A independência cubana do domínio espanhol foi obtida em 1902; após isso houve uma seqüência de presidentesditadores no governo da ilha. Depois da guerra de dez anos, 1868-1878, e da guerra de 1895, da qual o poeta José Martí foi um dos combatentes, os conflitos se encaminham para um final. Em 1898, com o afundamento do navio de guerra Maine, os norte-americanos interferem na guerra: ―Os Estados Unidos tanto eram simpáticos aos rebeldes como interessados em estabelecer sua própria influência em Cuba, vista como zona estratégica para a defesa do canal do Panamá‖, diz Vail (1987:16). Em 1902, um acordo assinado em Paris tornava Cuba um país independente, porém ―a pacificação interna do país e a defesa da propriedade privada correriam por conta dos americanos‖ (Loyola Brandão 1979:19). Uma medida em especial foi tomada: a chamada Emenda Platt, forçosamente acrescentada à Constituição cubana, garantia ao governo norteamericano a ingerência em Cuba17. 16 17 Rumba e Son são dois dos mais típicos ritmos cubanos. Foi a partir de um dos artigos da Emenda Platt que surgiu a base norte-americana de Guantánamo. 28 Segundo Vail (1987:23), nos anos 20 uma geração de cubanos, nascidos sob o domínio espanhol, começou a fomentar a idéia de uma identidade nacional. ―Pela primeira vez, os escritos de José Martí foram avidamente difundidos e discutidos‖. As revoluções mexicana (1910) e russa (1917) eram exemplos do que Martí pregava – o caminho da revolução para acabar com a dependência. O general Gerardo Machado governou de 1924 a 1933, quando uma onda de greves e manifestações acabou levando à deposição de Machado, que foi substituído por Manuel de Céspedes, mas só por algumas semanas porque um grupo de oficiais do Exército deu um golpe militar – o líder do golpe era o sargento Fulgencio Batista. De acordo com Vail, de 1934 em diante sucederam-se presidentes civis e militares, mas o homem forte deles foi sempre Batista. Em 1940, quando Leo Brouwer tinha então um ano de idade, Fulgencio Batista trabalhou sua eleição para presidente e assumiu o poder. Vail diz que ―sua administração foi marcada por uma alarmante corrupção (...). Batista e sua força policial organizaram um extenso sistema de extorsão e pagamento de cotas‖. Os dois próximos presidentes, Ramón Grau San Martín (1944-1948) e Carlos Prío Socarrás (1948-1952), ainda que tivessem feito algo, também pouco se diferenciaram de Batista no aspecto da corrupção. Diz Loyola Brandão que eles foram ―os melhores entre os piores‖. Em 1951, novas eleições se aproximavam e um novo nome surge – Eduardo Chibás torna-se o político mais popular de Cuba, sendo que sua eleição para presidência era tida como certa – até mesmo o jovem Fidel Castro era um simpatizante de sua política e membro do mesmo partido (Partido Ortodoxo). Mas, inesperadamente, Chibás comete suicídio. Como diz Vail, ―as esperanças e os sonhos da juventude cubana, que desejavam uma sociedade honesta e democrática, foram desfeitos no início de 1952‖. 29 Fulgencio Batista aproveitando-se do fato, a três semanas da eleição, depõe o governo de Prío Socarrás e toma novamente o poder. Imediatamente as garantias constitucionais são suprimidas; as eleições são proibidas; a liberdade de imprensa é restrita e são limitadas as atividades partidárias. Dezessete dias após o golpe os Estados Unidos reconhecem oficialmente o governo de Batista. ―Os partidos oposicionistas estavam em total confusão, devido à liderança ineficiente e à repressão policial. O único indício de oposição veio dos estudantes‖. (Vail: 1987:26) O clima vivido era de exploração e medo. Detenções, prisão sem julgamento e tortura eram fatos corriqueiros. Loyola Brandão (1979:19) afirma: Os capitalistas continuavam a avançar. A United Fruit comprou extensas terras, derrubou toda a mata, instalou usinas. A mão-de-obra era barata, trabalhava em regime escravista. Em 1955, apesar de somente um terço das usinas serem americanas, elas eram responsáveis por dois terços da produção açucareira. O ano seguinte seria verdadeiramente um marco na vida política cubana, pois organizava-se contra Batista uma ação de opositores ao governo – liderada já por Fidel Castro – tendo tanto estudantes quanto a classe trabalhadora. Iria se realizar o famoso ataque ao quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953. Esse acontecimento tornar-se-ia um marco na história cubana porque seria considerado mais tarde como o germe da revolução. Ao mesmo tempo, embora a ofensiva tivesse fracassado, o levante serviu como estímulo para o povo cubano. A opressão de Batista tomou maiores proporções e centenas de pessoas eram presas, interrogadas e torturadas, sendo que a maioria do grupo de Moncada foi executada. O jovem Brouwer, vivendo debaixo deste regime, muito provavelmente estava a par das arbitrariedades ocorridas. O próprio afirma (1989:101;85-86) que: ―antes de la Revolución me veía en situaciones angustiosas, no solo en lo económico, sino también en el papel social que tenía‖. Este período, ―corresponde, socialmente, a una etapa feroz de la 30 dictadura batistiana, en la cual era preciso reafirmar a nacionalidad por medo de perderla, dentro do caos político del momento‖. As atividades culturais estavam em geral ligadas a entidades particulares, sociedades artísticas como afirma Hernández (2000:21-22): a Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, em Havana, fundada em 1951, famosa pela promoção de concertos e dirigida por Harold Gramatges; o Cine Club Vision, também em Havana, fundado em 1956, por jovens intelectuais, e a Galeria de Artes Plásticas de Santiago de Cuba. Estas foram as três instituições mais importantes destes tempos, todas as três ligadas ao Partido Socialista Popular e divulgadoras do que havia de mais moderno na cultura e já as idéias revolucionárias. Em pelo menos duas – a Nuestro Tiempo e o Cine Vision – Brouwer participou ativamente, tocando, assistindo ou realizando palestras18. Ainda que não se possa admitir que só por ser um jovem estudante, Brouwer já tinha uma posição contrária ao governo de Batista, o que se pode concluir é que sua atuação em duas instituições ligadas ao Partido Socialista Popular já foi uma escolha de compromisso político do ainda adolescente Brouwer. Sua posição junto ao emergente governo revolucionário de 1959 foi bem clara pelo menos em duas funções: Brouwer atuou junto com o professor Isaac Nicola na elaboração de um novo currículo para os conservatórios (recém-transformados em escolas públicas) e aceitou a bolsa de estudos do governo revolucionário para o exterior. Independente de suas qualidades artísticas, pode-se dizer que a seqüência de funções que acumulou no governo cubano foi uma conseqüência natural de sua atuação anterior, já proveniente de uma ação cultural de esquerda. Para se ter uma idéia, praticamente todos os membros do extinto Cine Club Visión (que teria sido fechado ou incorporado pelo novo 18 Em 12 de dezembro de 1956, o Cine Club Vision realiza o Festival Villa-Lobos, que foi o primeiro evento no mundo a levar o nome do compositor carioca. O programa constou de uma palestra de José Del Campos Valdéz – Villa-Lobos cantor del pueblo, tendo como parte musical Leo Brouwer e Jesús Ortega executando alguns dos estudos e prelúdios para violão de Villa-Lobos. 31 governo já que era uma entidade privada) tornaram-se depois membros do ICAIC – Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, inclusive Brouwer. 1.5. “Democracia Racial” (Brasil) e “Fim do Racismo” (Cuba) Um ponto tocado por Malachias em sua dissertação (1996:22-24) é a questão do racismo. Como teoria, o racismo emergiu no século XIX. Ao mesmo tempo em que nasciam a Sociologia de Emile Durkheim, surgiam as teses racistas de Gobineau sobre a superioridade da raça branca, além do Positivismo de Augusto Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. Segundo a autora, o termo racismo só seria empregado em 1930. As teorias racistas foram utilizadas para explicar o atraso brasileiro. Malachias cita Renato Ortiz19 que afirma que Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha são exemplos dessa retórica, ao mesmo tempo em que foram os precursores das Ciências Sociais no Brasil. Eles teriam sido então o paradigma do período 1888-1903. Malachias também afirma (1996:45) que Brasil e Cuba constroem, por razões diversas, as suas identidades nacionais sob o mito da igualdade entre as raças que ao ser negada ou contestada transforma-se em assunto-tabu. O Brasil defende a democracia racial e Cuba conclama a vitória revolucionária sobre o racismo. A autora cita Peter Fry20, ao dizer que a conversão de símbolos étnicos (como o samba e a feijoada) em símbolos nacionais, com a ação do tempo e dos interesses na divulgação de um Brasil racialmente democrático, não apenas oculta uma situação de dominação racial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. E cita novamente Moreno Fraginals que alude que é norma corrente que a classe dominante proteja e até estimule o desenvolvimento da 19 A morte branca do feiticeiro negro – Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. Também Lilia Schwarcz (1987:254) cita os mesmos autores. 20 Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira, Rio de Janeiro: Zahar, 1982 32 classe dominada sempre que estes, de algum modo, contribuam a reforçar a estrutura estabelecida. Opinião diversa tem Vianna (1999:20-47) para quem o samba ―ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade‖, e não vê razão para se opor a isso: ―por que fingir que essa interação elite/cultura popular não acontecia? Por que dizer que nossos músicos populares eram simplesmente reprimidos ou desprezados pela elite brasileira?‖ O fato é que Vianna aponta uma sociedade contraditória, que ao mesmo tempo condena e aplaude a cultura popular. Essa contradição da sociedade não é, entretanto, muito bem estudada em seu texto, pois me parece que faltou dizer que esta ação da sociedade contraditória estabiliza os aspectos conflitantes e dolorosos da exclusão do negro 21. Creio que sua conclusão sobre o ―mistério do samba‖ ter passado de música marginal à música oficial da brasilidade pode levar ao discurso da vitória contra o racismo ―à brasileira‖ (Vianna 1999:152): (...) ao lado da repressão, outros laços uniram membros da elite brasileira e das classes populares, possibilitando uma definição da nossa nacionalidade (da qual o samba é apenas um dos aspectos) centrada em torno do conceito de ―miscigenação‖. (...) O Brasil foi talvez o primeiro país no qual se tentou, com relativo sucesso, a fundamentação da ―nacionalidade‖ no orgulho de ser mestiço e em símbolos da cultura popular – urbanos‖. Ainda sobre essa questão (do samba e da música popular negra) Wisnik (1982:160161) afirma que essa aparente penetração, durante o populismo de Vargas, atenuou a luta de classes. 21 Não discuto aqui se houve ou não intencionalidade de Hermano Vianna em minimizar a opressão branca; trato apenas de estabelecer um critério que o coloque como voz discordante a de outros autores – no caso, Vianna não compartilha com a idéia da apropriação ou expropriação do samba pela elite. Sobre a eficácia de seu texto, creio que faltou ao autor mais precisão na análise de por que essa sociedade era contraditória, a quem interessava essa ambigüidade ou dubiedade nas relações. 33 Pelo lado da intelectualidade, Quintero-Rivera (2000:40) diz que há um interesse pelo popular como elemento renovador da cultura na procura de respostas ao dilema da integração nacional22. Sobre a identidade nacional brasileira, Malachias vê que o que acontece é que ―a cultura negra seria uma via de identificação positiva, desde que nacionalizada pela mestiçagem ou embranquecida pela indústria cultural que a massifica‖. Segundo Ronilda Ribeiro (1997:173-174) também o papel dos livros educativos e da mídia corresponde aos estereótipos negativos da África, africanos e seus afro-descendentes; relembra que a imagem do estereótipo veio do imaginário medieval, de mitos e lendas dos viajantes na África, desde o século XVI. Malachias conclui que (1996:48): Em Cuba, ao contrário do Brasil, muitas imagens propagadas refletem os afro-cubanos em situações mais próximas da auto-estima, como o esporte individual e coletivo, ou ainda, o mencionado registro historiográfico de personagens importantes da historia do país. Dados censitários apontam uma população escolarizada, com níveis de primeiro mundo. Entretanto, essa visibilidade positiva não impede a ocorrência também de uma limitação dos espaços onde os negros apareceriam, ou seja, atividades culturais e esportivas, que – afirmamos – não deixam de ser clichês quando se trata da imagem negra. A identidade nacional construída no pós-1959 superaria a manifestação ou reivindicação de uma identidade étnica por parte da população afro-cubana, a qual sentir-se-ia integrada e partícipe do ―triunfo‖ da revolução. Isso fica obvio quando vistoriamos a bibliografia sobre a historia cubana, mais precisamente sobre a escravidão e a problemática racial. Além de estudar autores cubanos que escreveram sobre o fim do racismo com o advento socialista23, a autora também examinou um autor24, Fuente, pesquisador da 22 A autora também aponta (2000:71-74) os discursos raciais das décadas de 30 e 40 na República Dominicana em relação ao Haiti e a negação do negro em relação à cultura hispânica e também o discurso indigenista como ―solução eufemística‖ para referir-se à população majoritariamente mulata. 23 Carreras, Julio Angel. Esclavitud, abolicion y racismo. La Habana: Editorial de Ciências Sociales, 1985. Robaina, Tomás Fernandez. El Negro em Cuba – 1902-1958: Apuntes para la historia de la lucha contra la discriminacion racial, La Habana: Editorial de Ciências Sociales, 1990. Serviat, Pedro. El problema negro em Cuba y su solucion definitiva. La Habana: Editora Política, 1986. 34 Universidade de Pittsburgh, que tem dados diferentes a acrescentar – sua tônica é a de que há um silêncio da questão racial por parte do governo cubano, alegando o fim da discriminação pela via da igualdade social; de outra parte há os intelectuais cubanos que estes sim apontam tanto os avanços sociais quanto a continuidade de manifestações racistas em Cuba. A pesquisadora conclui então que, mesmo com as conquistas sociais em Cuba, é impossível superar as discriminações em um passe de mágica. Ressalta, no entanto, que os principais triunfos da revolução cubana – saúde e educação – foram importantes passos para erradicar os aspectos mais destacados da desigualdade, mas reitera que algumas formas de racismo e discriminação ainda persistem. Citando novamente Fry, Ortiz e Hanchard25, Rosângela Malachias (1996:50-54) expõe também um dos maiores escritos brasileiros, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre – o famoso autor vem cada vez mais recebendo uma análise atualizada de seu livro fundamental. Ao re-elaborar as teorias racistas anteriores, Freyre conclui que a miscigenação não é uma degenerescência, mas sim um aspecto positivo; a miscigenação diminuiria a distância social. Para Fry e Hanchard, o entrave na teoria de Freyre foi pressupor que porque as três etnias se fundiam erigiu-se uma coexistência pacífica, baseada na miscigenação, sem revelar a violência da relação. 1.6. Identidade nacional Como já foi dito acima, a preocupação com a identidade brasileira vem do século XIX, principalmente após a Independência do Brasil, passa pela República e penetra a década 24 Fuente, Alejandro de la. Raça e desigualdade em Cuba (1899-1981). In Estudos Afro-Asiáticos (27): 7-43, abril de 1995. 25 Hanchard, Michael. Fazendo a exceção: narrativas de igualdade racial no Brasil, no México e em Cuba. In Estudos Afro-Asiáticos (28):203-17, outubro de 1995. 35 de 30, com o Estado Novo. Em Cuba também foi após as guerras de Independência que essa preocupação se fez mais urgente. Em ambos os países, a abolição da escravatura (em Cuba, 1886 e Brasil, 1888) criou o impasse do que poderia representar a maioria negra na construção de uma identidade nacional. Graziella Ravietti (2001:70) afirma que a herança autoritária que a América Latina possui criou o dilema de não pertencer nem ao Ocidente nem ao ambiente nativo. Fora isso, as inúmeras mudanças desde a noção iluminista do ser social até o ser atual, em constante comunicação com outras regiões, traz à tona uma outra versão para a identidade: As identidades são reconhecidas como relacionais, produto das alianças em que os sujeitos se envolvem e dos respectivos processos de acomodação a que são submetidos. Essas alianças e relações em geral determinam as categorias de pertença a espaços sociais em que os papéis de cada um se articulam segundo as condições de dominação ou de subalternidade e as permanentes negociações que se estabelecem entre as duas posições. Seguindo as definições de Renato Ortiz (2000:58-79) o uso dos termos ―local‖ e ―autêntico‖ perpassa o debate sobre as identidades. O ―local‖ está ligado à ―diversidade‖, opondo-se ao ―nacional‖ e ao ―global‖, mas somente como abstração – o mais correto seria falar de ―locais‖, no plural. Cada lugar é uma entidade particular, uma descontinuidade espacial, por isso, um autor como Gramsci26 dirá que o folclore é formado por pedaços heteróclitos de cultura. Já o ―nacional‖ pressupõe um espaço amplo e a ele se agrega ainda uma historicidade. A nação trilha o caminho da turbulência histórica e se molda de acordo com os interesses de suas instituições, suas lutas, sua visão do passado, sua política de construção do presente, num processo longo, que pressupõe a ocupação de uma área geográfica e a invenção de uma consciência coletiva partilhada por seus cidadãos. 26 A. Gramsci, Literatura e vida nacional. Rio: Civilização Brasileira, 1968. 36 Segundo o autor, existe ―uma‖ cultura nacional, mesmo sabendo que ela se atualiza de maneira diferenciada nos diversos contextos e que possui conflitos que se expressam nas contradições entre os regionalismos. O ―nacional‖ engloba, portanto, os ―locais‖, contrastando com sua diversidade e assume algumas qualidades do ―local‖. Diversidade e autenticidade tornam-se características suas. A identidade dos povos se apresenta, assim, como diferença contraposta ao que lhe é exterior. Ela é a expressão da história de cada país. Ortiz vê a globalização das sociedades e a mundialização da cultura como um processo que se instaura em nível mundial, mas que não é necessariamente totalizador, a ponto de nele se incluir, como um megaconjunto, todos os pontos do planeta, ou seja, o autor aceita a existência de limites estruturais – econômicos, políticos e culturais – à expansão da ―modernidade-mundo‖. Ele diz: ―Minha proposta é tratar o espaço como um conjunto de planos atravessados por processos sociais diferenciados‖. Sugere que a mundialização da cultura seja definida como transversalidade: culturamundo, cultura nacional e cultura local, mas sem representar uma oposição entre si e, como prova disso, aponta o cotidiano. ―Tanto o nacional como o mundial só podem existir quando resultam em vivências. Este foi afinal o resultado de dois séculos de rotinização dos modos de vida que denominamos identidades nacionais‖. Sobre a identidade cultural, Ortiz compara diferentes definições, como a da Antropologia: é a descrição densa da organização social, das regras de parentesco, dos mecanismos de trocas, dos rituais religiosos e da vida material – a cultura é antes de mais nada um todo integrado articulado das diferentes dimensões da vida social; a definição de teóricos americanos de que a identidade corresponderia ao caráter nacional; e, criticamente, resume o que já foi definido no Brasil: ―... no Brasil, são vários os autores que descrevem o brasileiro como ‗indolente‘, ‗preguiçoso‘, ‗inapto para o trabalho‘, ou, numa ótica mais otimista, como ‗malicioso‘, ‗sensual‘, ‗dionisíaco‘ ‖. 37 Ortiz aponta que para os filósofos, os artistas e os políticos, no debate do dilema da identidade, buscam apaixonadamente pela sua ―autenticidade‖27. ―Pode-se então falar em ―essência‖ do pensamento latino-americano, algo específico, peculiar ao Eu de uma América tão latina, contrastante com a parte anglo-saxônica‖. O autor conclui que a identidade é uma construção simbólica que se faz em relação a um referente. Ela é um produto da história dos homens. Rosane Borges (2000:55-65) alude ao ethos construído sobre a identidade nacional no Brasil – da fábula das três raças, do país tropical, do país do futuro, do Carnaval e da alegria28, do ―homem cordial‖29 – e afirma que identidade é um termo demasiadamente evanescente porque cobre uma multiplicidade de sentidos. O aspecto mais restrito dessa multiplicidade seria o da identidade em relação à formação do Brasil, enquanto nação com sua dinâmica peculiar. Borges vê com mais afinco a questão da busca pela identidade durante o período da Independência como o momento para a construção de uma identidade nacional. Na tentativa de se mostrar diferente da Metrópole, surge a exaltação do índio, como sendo ―genuinamente nosso‖. Essa intenção de constituir uma unidade nacional passa a fazer parte de uma agenda política em fins do século XIX e inicio do XX. Nos anos 30, a obra de Freyre foi decisiva em conceber a diversidade e o pluralismo étnico-cultural não mais como um entrave à feição da nação brasileira e, como diz Borges (2000:58), ―a nossa herança climático-telúrica e multirracial passa a constituir a chave para o entendimento do País e justificar nossos trejeitos 27 Quintero-Rivera (2000:40) alude à tentativa de se afastar do exótico que levou a intelectualidade à busca de uma autenticidade, uma preocupação que aumentou na década de 30 na criação de modelos para a expressão folclórica e para a criação erudita. 28 Renato Ortiz (1997:23) também reforça o memorial dos símbolos da identidade brasileira (advindos da era Vargas): Carnaval, samba e futebol. 29 O epíteto de homem cordial atribuído ao brasileiro nunca esteve tão longe da verdade. Os números da violência urbana e rural alardeiam para uma estatística que beira a guerra civil. Do passado, também não há o que comemorar; haja vista a participação do Brasil na Guerra do Paraguai, além de conflitos internos como a Cabanagem ou Canudos. Acrescente-se ainda o escravismo e a ditadura militar. 38 e idiossincrasias. A miscigenação, a tropicalidade e a cordialidade brasileiras constituem-se, então, como traços incontestes da nossa singularidade‖. 1.7. Cultura Popular Definir cultura popular demanda um cuidado especial na escolha do termo, pois poderia significar a admissão de uma diferenciação de classes – dominantes e dominados – e em sua conseqüente hierarquização ou na dicotomia ―erudito versus popular‖, já usada em excesso. Tendo isso como aceito, cultura popular seria a manifestação das classes dominadas, atuando fora da esfera da cultura da classe dominante, e forçosamente, as definições sobre o que é ou não é cultura popular terão de passar pelo crivo da cultura dominante. Por outro lado, definir cultura popular abstendo-se da hierarquia de uma classe sobre outra, significaria coloca-las em paralelo e, às vezes, em perpendicular e vê-las como um produto de seu tempo, de sua história. Na dimensão histórica: sim – uma classe oprime a outra. Ortiz (2000:43-46) afirma que a cultura popular foi um entrave para a modernidade. ―Os românticos podiam viajar pela cultura popular na medida em que ela representava algo de bizarro, de estranho, a seus modos de homens civilizados‖. A cultura popular estava envolta em uma aura, e os intelectuais nutriam, em relação a ela, as mesmas esperanças que alimentavam os românticos, os folcloristas, ou, na América Latina, os movimentos políticoculturais dos anos 50 e 60. A associação entre o nacional e o popular foi algo tradicional ao pensamento latino-americano, que foi parte integrante do projeto de construção nacional. Wisnik afirma (1982:129-190) que durante o populismo de Vargas, o cumprimento de uma agenda nacionalista aproximou o intelectual e o povo. A interpenetração de culturas vinha ocorrendo, mas essa aparente penetração na verdade atenuava a luta de classes. A questão da identidade, a seu ver, estabelece-se por trás da persona europeizante – a definição 39 de uma identidade era feita através dela. Conseqüentemente, ora via-se com superioridade ora com inferioridade a cultura popular. Às teorias da intelectualidade nacionalista surgiram, entretanto, um imprevisto: o avanço da cultura popular urbana no mercado, na música internacional e ao cotidiano citadino, ou seja, a cultura de massas, tornando-se impossível o retorno à cultura rústica. Talvez o equívoco tenha sido não perceber a dinâmica que envolve qualquer fato cultural. Para Villa-Lobos, a cultura popular era a origem de tudo. Por diversas vezes ele manifestou a cultura do povo como a expressão maior do artista: ―O compositor genuíno, por mais cosmopolita que seja, é mais do que nada a expressão de um povo, de um ambiente.‖ Ou ainda: ―Não é justo que se desprezem as manifestações espontâneas, bem populares, da vida diária de nossa nação.‖30 Seus conceitos sobre a cultura popular eram uma demonstração de fascínio pela diversidade cultural do Brasil, no entanto, o mesmo povo que Villa-Lobos admirava precisaria ―ser educado‖, despertado para a ―consciência musical brasileira‖. Suas críticas à demasiada atenção que se dava ao futebol, Carnaval e ao rádio provinham de uma chamada ao ―bom senso e da disciplina natural que devem ter todos os povos de boa cultura‖ e faziam coro às queixas dos modernistas quanto ao avanço mercadológico na cultura popular. Em Leo Brouwer, o interesse pela cultura popular transcendeu a de seu país e pode ser dito que ele possui muita afinidade com a cultura popular de vários países. Orozco (1999:6) afirma que nos fins dos anos 60 e início dos 70 quando Brouwer funda e lidera o Grupo de Experimentación Sonora (que reuniu grandes nomes cubanos, como Pablo Milanés e Silvio Rodríguez) ele trabalhou com a música popular em amplo espectro – canção, jazz, pop, samba – isto transformou o Grupo em um paradigma da música popular e cultura cubanas. Comenta Orozco: ―Leo se constituiu em um estimulador-promotor de uma maneira de assumir a música 30 Presença de Villa-Lobos, volumes IX e XIII, Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, MEC/DAC, 1974, in O Pensamento Vivo de Heitor Villa-Lobos, São Paulo: Martin Claret,1987, pp.13, 16. 40 popular que muita repercussão teve em diferentes e diversos criadores. Só essa sua ação promotora já lhe colocaria um lugar no espectro músico-cultural cubano‖31. Orozco ainda cita ―pontos de interação‖ do trabalho de Brouwer com grandes nomes do flamenco, jazz, bluesfolk, rock, pop e latino-americano (Paco de Lucía, Manolo Sanlúcar, Vicente Amigo, John MacLAughlin, Chick Corea, Scott Joplin, Jimi Hendrix, Beatles, Astor Piazzolla). Orozco (1999:4) conclui que esta marca do popular em Brouwer está ligada à ―circulação efetiva de elementos expressivos em seu entorno, além de inquietudes e buscas de referências músico-sonoras populares que no conjunto vai interiorizando por vivências fundamentais‖32. 1.8. Modernidade e Pós-modernidade O nome de Heitor Villa-Lobos ligado ao ideal modernista do Brasil, mais do que se restringir à Semana de Arte Moderna de 1922, é como um binômio, pois ninguém em sua época obteve com tanta eficácia a mediação que pregava a ―teoria‖ da Modernidade: o uso do nacional como o modelo que nos tiraria do resquício de uma cultura européia mais a atualização com o que estava em voga (paradoxalmente em voga na Europa). Como afirmou o crítico e teórico peruano Juan Acha (1993:29), o homem sempre teve vontade de mudança, de ruptura com o passado, sempre soube distinguir sua cultura das vizinhas, mas as rupturas eram escassas. Relembrando várias ocasiões, Acha situa a primeira grande ruptura no Renascimento, quando a Arte se moderniza, diferenciando-se da religião (da Arte funcional, utilitária); também destaca Kant, com a postura da autonomia da Arte, e Walter Benjamin sobre o fim da aura na obra de Arte, devido à possibilidade de sua 31 32 Tradução minha. Tradução minha. 41 reprodução, e seguem-se séries de rupturas. Com a chegada da Indústria Cultural, o panorama mundial mostra que uma realidade estética ficará sujeita a esta indústria, controlada por sua vez pelos países ricos e cujas mensagens fluem dos centros metropolitanos para os periféricos. Para Ortiz (1994:217), a Arte no contexto da pós-modernidade perderia definitivamente sua especificidade aurática. Segundo Acha, o Modernismo teve a vontade de mudar ou renovar. Declinou por conta de seu radicalismo – perdendo o contato com as maiorias demográficas – e por haver cumprido já seu papel. Quintero-Rivera (2000:24-35) relembra que na década de 20 ocorreu o auge na produção de escritos e movimentos que buscavam a universalidade por meio do fortalecimento do nacional. Além do Movimento Modernista no Brasil, outros movimentos latino-americanos aconteceram, como o Minorismo Cubano, formado em 1923, da qual participou Alejo Carpentier. Além de propor a renovação artística, o grupo cubano tinha uma preocupação com questões sociais e políticas. Quintero-Rivera compara a atuação de Carpentier e Mario de Andrade, como representantes da ―vocação nacional-universalista‖. Carpentier sustentava a singularidade do continente americano ―na capacidade de conciliar os elementos culturalmente resgatáveis e o avanço do progresso civilizatório‖. Aracy Amaral (1990:175) tem como clara a postura romântica do Movimento Modernista: o novo é sermos nós mesmos – uma proposição difícil de encarar teoricamente e mais ainda de ser posta em prática. Como uma afirmação de valor, o movimento começa no México a partir de 1910 e assumirá um caráter indigenista-nacionalista político na América Central e área andina. Compara Jorge Luis Borges, que pontua as diferenças da língua falada pelos argentinos, em 1927, a Mário de Andrade, que defende, também nos anos 20, em São Paulo, a implantação de uma língua brasileira, a diferenciar-se da portuguesa. 42 Segundo a autora, a modernidade na América Latina difere muito de uma região a outra, mas em todas permeia um desejo de afirmação local mesclada a uma linguagem atualizada, ―moderna‖. Conclui que: ―Deseja-se esquecer e afirmar, simultaneamente, a feição rural, caipira ou mestiça que sempre caracterizou nossas culturas latino-americanas, procedentes do colonialismo ibérico e de um século XIX tumultuado e de poucos avanços sociais‖. Começa-se a ―descobrir‖ nossas manifestações populares. Da mesma forma que Villa-Lobos tem seu nome ligado ao Modernismo, a obra de Leo Brouwer, em determinadas instâncias, insere-se na pós-modernidade, em especial a chamada terceira fase de sua carreira, início da década de 80. Mas, como aponta Orozco (2000:8), até em obras da fase inicial (anos 50) é possível se surpreender com uma já aparente fusão (pósmoderna) de estilos: En otra dirección, si el criterio de considerar una etapa postmoderna en el Brouwer creador, sería la vinculación de varios géneros, estilos, el retro, la fusión, el cuestionamiento desacralizador de muchos valores y el montaje por lo general abrupto, este en realidad tiene presencia desde obras tan tempranas como las Micropiezas del 57, donde además hay una matiz paródico-irónico notorio, menos equilibrado que en obras recientes, aun que no solamente no sentido que hoy se consideran ciertos rasgos postmodernos, sino más como parte de la tipificación desmontadora da sicología cultural cubano-caribeña-latina. Es decir, en todo caso estamos ante una suerte de “postmodernismo adelantado” como algunos teóricos han dicho y sucede en otros notables creadores literarios y musicales latinoamericanos, aunque ojo, más bien como elementos de lenguaje raigal sui generis (que de momento Occidente reconoce e necesita por su sentir de agotamiento) o de un probable neobarroco latino-americano (sobre o cual se polemiza bastante)pero nunca como epígonos e mucho menos como sistema filosófico en sí. O pós-modernismo, na opinião de Acha, quando reduzido à ação de passadistas, neoconservadores, residuais, oficialistas, difunde a idéia de que a arte é expressividade e não criação, reforçando o ―ideal burguês‖. Mas o autor crê que, com o pós-modernismo, pode haver uma libertação (e creio que aqui se insere Leo Brouwer) e não uma alienação. Acha conclui que, melhor do que aderir à pós-modernidade, seria buscar uma redefinição 43 nossa da modernidade, já que sempre foi uma definição imitativa. Esta modernidade nossa pressupõe uma crítica ao nosso passado e à realidade ocidental em comparação com a nossa. Alerta que se deve combinar o nacional com o universal, mas que o universal não é somente o ocidental.33 1.9. Um filho dileto da Revolução. A ideologia marxista na obra de Leo Brouwer nunca foi negada nem pelos autores que trataram de estudar sua obra nem por ele próprio. Ela é um agente intrínseco a vida do autor e uma conseqüência em sua obra. Desde as considerações mais simplistas, como temas alusivos de suas peças, até exposições mais profundas sobre seu trabalho perpassam pela questão do marxismo em sua obra. A revolução cubana foi um agente catalisador de opiniões que tanto causava receio e ojeriza quanto empolgava a geração dos conturbados anos 60. O escritor Ignácio de Loyola Brandão (1979:10) faz uma sinopse sobre como foi recebida, no ano de 1959, a notícia do que vinha se estabelecendo em Cuba durante a atuação dos guerrilheiros cubanos da Sierra Maestra: A minha geração estava embalada na mística dos jovens barbudos de Sierra Maestra. Aquela não parecia uma revolução comum, tinha um envolvimento muito maior. Não existia o bloqueio político e econômico, todas as agências enviavam informações regulares de Cuba. Foi da UPI a manchete que ―Última Hora‖ deu, 2 de janeiro, sexta-feira: REVOLUÇÃO ESMAGOU DITADURA DE CUBA: BATISTA FUGIU EM PÂNICO. No dia 6 de janeiro recebem-se as primeiras notícias sobre fuzilamentos, com declarações de Camilo Cienfuegos: ―Quem está morrendo são os prepostos de Batista, que assassinaram e torturaram‖. Diz o escritor: 33 Mosquera (1993:55) também atenta para o fato de o eurocentrismo ser o único etnocentrismo universalizado. 44 A palavra paredón correu o mundo. No Brasil, integrou-se à gíria por algum tempo. Referindo-se a tubarões, políticos corruptos, comerciantes gananciosos, policiais violentos e outros, o povo dizia: ―paredón para ele‖. A rápida passagem de Fidel por São Paulo, no final de abril de 1959, também foi enfatizada por Loyola Brandão: Eu estava na redação, quando o chefe de reportagem mandou um grupo, apressadamente, a Congonhas. Fidel vinha dos Estados Unidos para o Rio de Janeiro, mas uma avaria na pista do Galeão desviou seu avião, o ―Britannia‖, para São Paulo. Ele chegou faltando vinte para as nove da noite. Foi recebido pelo General Stenio Caio de Albuquerque Lima, por Diniz Jun queira (secretário da Justiça) e pelo diplomata Vasco Leitão da Cunha. Houve tumulto. Muita gente queria ver, tocar, conhecer Fidel. No dia seguinte, ele deu uma coletiva no Hotel Excelsior, onde a confusão foi maior. Eu me lembro que havia um repórter deitado embaixo de suas pernas, com o microfone estendido. Os jornais deram em manchete a principal declaração de Castro: ―Emancipação econômica para salvar a América Latina‖. O líder cubano apoiou a Operação Pan-Americana, que estava sendo esboçada por Juscelino. No ano seguinte (agosto de 1960), Sartre visitou o Brasil, vindo diretamente de Cuba (Jânio tinha sido eleito presidente, Brasília estava inaugurada). Sartre esteve na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Araraquara. Diz Loyola Brandão: Ele falava exclusivamente de um assunto que interessava a mim, a toda a minha geração, à América Latina em geral: a Revolução Cubana. No prefácio do seu livro ―Furacão sobre Cuba‖, lembro-me que dizia (não tenho mais o livro, desapareceu num daqueles pânicos coletivos em 64 ou 68), mais ou menos: ―Em toda parte no Brasil encontrei uma juventude arrebatada, cuja primeira pergunta era sempre: ‗E Cuba?‘ E apesar de todas as características que distinguem um país do outro, acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era falar deles próprios‖. Pereira (1986:80) afirma que a Revolução Cubana era vista como a grande experiência de implantação do socialismo na América Latina. Depois que Ernesto Che Guevara foi liderar a luta revolucionária na Bolívia, esperava-se que o movimento revolucionário se estendesse a outros países da América do Sul, ―numa verdadeira frente antiimperialista‖. Ainda segundo Loyola Brandão (1979:19): Os Estados Unidos sempre estiveram de olho nessa diminuta colônia espanhola. Afinal, um território a cento e trinta quilômetros de sua costa deve ser visto com muito cuidado. Os governos fizeram várias propostas de compra, uma delas de cem milhões de dólares, a Espanha recusou todas. E continuava a administrar mal Cuba. Os governos se sucediam na América do Norte, mas a obsessão continuava. O Senador Stephen Douglas, em dezembro de 1858, declarou: ―É nosso destino ter Cuba, e é bobagem discutir o assunto. 45 Ela pertence naturalmente ao continente americano‖34. O jornalista Jânio de Freitas (2000), presente em Havana no dia da chegada de Fidel, hoje tem a seguinte opinião sobre a revolução cubana: (...) a complexidade de desenvolver pela primeira vez, em luta contra os interesses fortes e as adversidades tradicionais, uma revolução social mantendo os direitos civis e as liberdades democráticas, como Fidel e seus guerrilheiros propunham, não foi transposta. À maneira de outras revoluções, o futuro idealizado acabou substituído pelas soluções tornadas convencionais a partir do Estado leninista. Os cubanos argumentam que a contra-revolução desfechada pelos Estados Unidos não permitia outro rumo. O que só é verdadeiro em parte, quem sabe a menor. Os direitos civis, incluída a liberdade de expressão e de divergência, foram relegados muito cedo. Quando a guerrilha de Fidel Castro expulsa Fulgencio Batista e assume o controle do país, não havia, ao que se sabe, a intenção de transformar Cuba na primeira sociedade socialista das Américas. Segundo Vail (1987:78-85), depois das relações cortadas entre Estados Unidos e Cuba, em 3 de janeiro de 1961, Castro ainda se mantinha à parte da balança do poder entre Estados Unidos e União Soviética na chamada Guerra Fria. Após a invasão norte-americana à Baía dos Porcos, em 17 de abril daquele ano, é que houve muito mais aproximação com o governo soviético, culminando com a adesão de Cuba em 1.º de maio de 1961, quando o governo cubano anuncia que Cuba era daquele momento em diante um Estado marxista-leninista. Na seqüência, houve a Crise dos Mísseis35. 34 Sobre a ingerência dos Estados Unidos, a professora Fernanda Wright (1978:21) explica (mais especificamente sobre o Brasil, mas que repercute como um modelo em toda a América Latina), que a política externa adotada pelos Estados Unidos em relação ao Brasil provinha do receio que os norte-americanos tinham quanto às estreitas relações que a corte de D.João VI mantinha com a Inglaterra. O Brasil representava a idéia de que seria um agente dos interesses europeus – o que iria contra os interesses dos norte-americanos. Antes da vinda da corte, os Estados Unidos tinham só um cônsul no Brasil, depois passaram a ter toda uma delegação e vários agentes espalhados em áreas de conflitos. A diplomacia americana começou a propaganda da sua revolução de 1776 (Estados Unidos foram a primeira colônia a se libertar) e essa propaganda era feita principalmente por missionários protestantes e houve inclusive apoio para duas lutas brasileiras: a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador (1826). A adoção da doutrina Monroe, de 1823, conhecida pelo slogan ―América para os americanos‖ é uma amostra disso. De fato, até os anos 30 o Brasil ligava-se à Inglaterra pelo lado econômico e a França pelo lado cultural. Na década de 30, após a crise de 29, com a quebra da bolsa de Nova York, o governo estadunidense atingiu sua ingerência no Brasil até tornar-se força hegemônica no segundo pós-guerra. 35 A posição norte-americana na política externa, desde os seus primórdios, sempre seguiu o paradigma do determinismo histórico, que atribuía aos ―americanos‖ (eles não se autodenominam estadunidenses ou norte- 46 Silvia Miskulin36 analisa a visita de Sartre e Simone de Beauvoir a Cuba, em março de 1960, a convite do jornal Revolución e do suplemento Lunes de Revolución, como uma contribuição importante do escritor francês à causa socialista, mas que foi ineficaz devido à adoção de um estado socialista em Cuba baseado no estilo soviético. Sartre afirmou que considerava toda a arte social, e que o problema em Cuba deveria ser colocado na contribuição do artista em relação ao movimento social no qual tomava parte, já que seria impossível ao artista e escritor não se preocupar com a Revolução. (...) A liberdade do escritor e do poeta em seu compromisso não podia ser uma imposição das leis do Estado, mas sim deveria ser uma tomada de posição espontânea por parte de cada intelectual. (...) Na visão de Sartre, a literatura era uma luta, um questionamento da realidade. No caso cubano, a literatura não estaria mais negando a sociedade, mas aprovando o movimento revolucionário. Com a Revolução Cubana, os intelectuais e escritores tinham que se preocupar em manter a autonomia da arte, conservando a sua liberdade de criação, mas ao mesmo tempo relacionar a arte e a literatura à ação social. Os escritores, ao realizarem suas atividades de elaboração de uma obra literária, possuíam um grande poder, que deveria ser canalizado ao tomar parte da Revolução, aderindo a causa popular. (...) Sobre o realismo socialista, Sartre analisou o discurso de Zdanov em 1946, na União Soviética, em que se estabeleceu os parâmetros pelo quais os escritores e artistas deveriam se guiar para a elaboração de suas obras, que deveriam atender os interesses do povo soviético. Sartre questionou a literatura realista socialista, já que esta se definia em relação a um futuro rigoroso, determinado não pelo próprio escritor, mas por um certo número de escritores que eram representantes do governo e que constituíam a sociedade de escritores da Revolução Russa. A definição de que já não existiam mais conflitos na União Soviética e que a literatura e as obras de arte não deveriam representar disputas, empobrecia e limitava de tal maneira a criação artística, que a qualidade da produção cultural ficava bastante comprometida com o realismo socialista. (...) O problema de fundo para Sartre era a existência das editoras do Estado, já que as editoras estatais eram necessárias para distribuir os livros na sociedade soviética, mas acabavam limitando que os livros fossem publicados somente pelo Estado, fazendo com que os escritores desenvolvessem a autocensura para poderem se encaixar nos padrões definidos pelas editoras estatais. (...) Ao debater estes temas, Jean-Paul Sarte animou os intelectuais cubanos a refletirem sobre a situação dos escritores e artistas em Cuba, que estavam vivenciando e apoiando as transformações que estavam em andamento com a Revolução Cubana e buscavam definir uma política cultural revolucionária. (...) Sartre aconselhou que os intelectuais não aceitassem a criação de uma Associação de Escritores, já que isto levaria ao direcionamento da produção cultural, como o ocorrido na União Soviética. Entretanto, em agosto de 1961, após a vitória cubana à invasão patrocinada pelos Estados Unidos na Playa Girón e com a proclamação do caráter socialista da Revolução Cubana em abril de 1961, criou-se a Unión de Escritores y Artistas Cubanos em agosto desse mesmo ano. americanos, mas tão somente ―americanos‖ e, creio que, mais do que etimologicamente, o uso do termo já é uma intenção de extensão) o domínio das ―outras‖ regiões das três Américas. 36 Em Manifestações artísticas e política cultural em Cuba – comunicação feita durante o XV Congresso da Associação Nacional dos Professores de História – Anpuh, julho de 2000, texto a ser publicado. 47 (...) O ecletismo da publicação (Lunes de Revolucion), que editava textos do existencialismo, de correntes vanguardistas que primavam pelo experimentalismo estético, entrava em choque com uma concepção de cultura que era direcionada a responder os anseios do povo cubano, exclusivamente relacionada com a realidade da Revolução e com a tradição popular cubana. (...) O compromisso do intelectual defendido por Sartre em sua obra e ao longo de sua vida, foi compartilhado e divulgado pelos editores de Lunes de Revolución, que defenderam a Revolução Cubana em todos os seus momentos de dificuldades no seu primeiro triênio. Entretanto em 1961, com a definição do caráter socialista da Revolução, o governo revolucionário organizou o Primeiro Encontro Nacional de Artistas e Escritores, estabelecendo a União de Artistas e Escritores de Cuba, que passou a centralizar as atividades culturais, sobretudo das edições de revistas e suplementos. A Uneac passou a publicar a revista La Gaceta de Cuba e Lunes de Revolución foi fechado em novembro de 1961, já que extrapolava em muito as concepções do realismo socialista, do qual o governo revolucionário e a direção cultural cada vez mais foi se aproximando. A adoção do marxismo-leninismo em uma sociedade como a cubana prossegue sendo um tema polêmico. No ensaio de Jorge de la Fuente (1991), professor da Universidade de Havana, o autor estuda o encontro entre Arte e Ideologia. No Marxismo, a arte reproduz e expressa determinados valores ideológicos; a ideologia é vista como um conjunto de idéias, valores, ―estruturas simbólicas‖ e esquemas de comportamento que expressam, direta ou indiretamente, as necessidades e interesses de uma determinada classe social. Fuente discorda da afirmação de alguns teóricos sobre a impossibilidade de um ―encontro fecundo‖ entre a Ideologia e a Arte, porque uma limitaria a outra. Diz Fuente (1991:14): En la teoría marxista el concepto de ideología está referido fundamentalmente – aunque no exclusivamente – a aquellas esferas de la conciencia social que al alcanzar un cierto grado de articulación conceptual aparecen como “sistemas de ideas”, vinculados íntimamente con una plataforma valorativa que traduce y expresa los intereses y aspiraciones de determinadas clases sociales. En este sentido, la ideología es equiparable a la ciencia y a la teoría porque lo que se toma en cuenta para su definición es la coherencia y la sistematicidad de procesos conceptuales discursivos. Sin embargo, existen elementos y aspectos de la ideología no sistémicos con tanto se integran a la práctica cotidiana de los hombres “disolviéndose” en representaciones, los sentimientos, las creencias y los hábitos de conducta enmarcables bajo el concepto de “mentalidad social”. 48 Citando Vigotski37, Fuente defende que a Forma é que distingue a Arte da não Arte e não o Conteúdo. O Conteúdo pode existir como um fato não-artístico. Crê que o erro está em afirmar que a verdadeira Arte exclui a ideologia porque a ideologia não pode expressar-se artisticamente. Baseado nos próprios escritos de Marx e Engels, Fuente diz que não é lícito estabelecer teoricamente um signo de igualdade mecânico entre as ideologias de um autor e o sentido ideológico do que este produz artisticamente. Isso aponta em direção às diferenças para a estruturação artística do real, para outras formas de discurso cognitivo e valorativo e indica a dimensão não mimética da arte quanto aos elementos extra-artísticos que assimila a realidade justamente porque no processo artístico não só se ilustra ou reflete-se a ideologia mas sim também se cria. Afirma Fuente que o ilustrativismo ideológico da ex-União Soviética foi um casolimite da presença da ideologia na Arte. No aspecto prático, indica que o adequado é saber ―como puede el arte ser más productivo ideológicamente sin dejar de provocar el ‗efecto estético‘ implícito en la esencia de su funcionalidad social‖. Cita a concepção dialógica de Mikhail Baktin, de ver a ideologia como um diálogo, um intercâmbio constante de significados vinculados com a ideologia. A ideologia para Baktin é um processo vivo, bem próximo à dinâmica da pratica social e atitude valorativa. E afirma: ―la ideología artística delimita sus significados en el diálogo vivo con la cultura en que se inserta y con la tradición a que se abscribe (sic).‖ En conclusión, cualquier análisis concreto sobre la ideología artística debe partir de la premisa de que las ideas, los sentimientos, las representaciones y los valores que el arte trasmite están fundidos indisolublemente con su peculiaridad estética y funcional. De aquí que el llamado mensaje ideológico del arte más autentico no sea directo, autoritario y vertical sino más bien indirecto, sugerente y hasta contradictorio... (...) la esencia de la ideología artística: existir y funcionar sin que se vea. 37 Vigotski, Lev. Psicologia del Arte, Barcelona: Barral, 1977. 49 Nas muitas entrevistas com Brouwer, em páginas da Internet, em textos sobre o compositor ou nos artigos de sua própria autoria, não me deparei com qualquer menção sua de crítica ao governo socialista cubano. O máximo que pude perceber foi uma série de artigos da década de 70 reunidos em uma publicação (1989) na qual Brouwer alude, ou quase defende, uma série de procedimentos de vanguarda. Acosta (1989) chega a citar que o Grupo de Experimentación Sonora passou por uma fase inicial de isolamento causada por parte de organismos governamentais que nutriam desconfiança, ceticismo, insensibilidade burocrática e preconceitos. No artigo ―La Música, lo Cubano y la Innovación” (1989:16)38 Brouwer alude aos princípios da Revolução Cubana para explicar a incorporação dos meios técnicos mais avançados: La incorporación de los medios técnicos más avanzados no representa peligro alguno de “deformación” puesto que es línea de la Revolución Cubana llegar a la más alta tecnificación de la producción. (...) Innovar es (...) una condición de las revoluciones. (...) La música conservadora responde a las necesidades y demandas de un ordenador (que puede ser un público o un “patrón”) que exige una música que lo represente. Esta metodología es puesta en práctica por la alta cultura del capitalismo representado por la “élite” . (...) En una revolución permanente se revolucionan o transforman todas las partes o mecanismos que es necesario cambiar. Finalmente, lo que más frena la innovación es concebir que los parámetros fundamentales no pueden ser substituidos. Em outro ensaio, “La Vanguardia en la Música Cubana‖ (1989:24), Brouwer coloca a questão em termos de ―liberdade e compromisso‖: “La vanguardia em Cuba tiene resuelta la doble problemática del compositor actual: la libertad de creación y la “razón de ser” de esa libertad inmediata: el público”. Sobre o relacionamento do criador com o público, Brouwer (1989: 80-81) mostrou mais uma vez uma defesa dos novos procedimentos adotados por ele: 38 Publicado originalmente no boletim Cine Cubano, número 69, 1970. 50 La llamada música nueva, en un país como el nuestro, tiene una razón de ser esencial. (...) No importa que tengamos orquesta sinfónica, solistas, grupos destacados de música popular: una radiodifusión inteligente o no, televisión... si la información está cortada. (...) Una revolución plantea en primer lugar, pone en duda, cuestiona todos los elementos de una tradición de la que puede dudarse. En ese momento en que una revolución pone en duda un pasado, lo cuestiona, nosotros empezamos por cuestionar la validez de toda una serie de cosas establecidas, de métodos establecidos, de la llamada cultura establecida. 51 CAPÍTULO 2. O VIOLÃO NO BRASIL E EM CUBA Na história da música brasileira, o violão recebeu, por um longo tempo, o papel de instrumento acompanhador de melodias cantadas até chegar a instrumento solista em salas de concerto. Inicialmente, foi por meio da viola, trazida pelos jesuítas portugueses, que surgiram as primeiras notícias de um instrumento da família do violão em terras brasileiras (Andrade: 1983, Kiefer: 1989, Dudeque: 1994). A existência de músicos mestiços ―tocadores de viola‖ surge em relatos de viajantes europeus, que são as referências da vida musical nos primeiros duzentos anos de colonização no Brasil. Após este longo período, já no século XVIII, a próxima referência à viola surge no gênero de canção chamado ―modinha‖, que teve em Domingos Caldas Barbosa (c. 17401800) o primeiro compositor e intérprete reconhecido39. A modinha tratava diretamente de temas de amor sensual em suas letras. Em um segundo momento, tornou-se tão conhecida em Portugal que compositores eruditos passaram também a compor neste estilo. Ocorre que Portugal estava ligado à tradição do melodismo italiano de óperas, e não tardou para que a modinha se alterasse em suas formas originais, chegando a ser confundida pelos compositores da época com árias de ópera e a ser apresentada em teatros por cantores líricos, acompanhados por cravo e piano. Com a vinda da corte portuguesa ao Brasil em 1808, a modinha, transformada em música dos salões nobres, volta a encontrar espaço nas camadas populares. Pouco a pouco, o cravo e o piano - que substituíram a viola na fase do bel canto da modinha - são por sua vez substituídos pelo violão. A modinha chega então, em meados do século XIX, à canção camerística, tanto no salão quanto nas típicas serenatas de ruas, retomando sua tradição de gênero popular pelos 1 KIEFER, Bruno. A Modinha e o Lundu. Porto Alegre: Movimento, 1977, pp.17-21. 52 músicos mestiços e, agora, tocadores de violão. Posteriormente, a flauta e o cavaquinho unem-se ao violão, formando em pouco tempo o trio instrumental por excelência do choro carioca. Enquanto o violão no Brasil fazia esta trajetória - da viola como instrumento acompanhador de melodias cantadas para o violão de estilo instrumental de serenatas -, muitos países da Europa como Espanha, França, Itália, Inglaterra, Áustria, Alemanha, Rússia e Checoslováquia possuíam já de longa data suas respectivas escolas violonísticas, com muitos tratados e métodos. Somente com a chegada de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses e a vinda de viajantes estrangeiros no começo do século XX é que os brasileiros passariam a conhecer a vertente clássica do instrumento40, mais precisamente no eixo Rio-São Paulo. Entre estes estrangeiros, atuantes em São Paulo, há notícias sobre o trabalho do professor português Alberto Baltar (em 1912-1915) e do italiano Eugene Pingitore. O paraguaio Agustín Barrios (1885-1944) esteve em São Paulo em 1916 e em 1917, no Rio de Janeiro, onde realizou uma série de recitais tocando o instrumento de forma nunca antes ouvida. No mesmo ano, a espanhola Josefina Robledo (1897-1931), estabelece no Rio de Janeiro, os fundamentos da escola do mestre espanhol Francisco Tárrega (1852-1909), o idealizador da escola moderna de violão (Simões 1967:25-29 e Dudeque 1994: 101-102). O primeiro grande nome do violão brasileiro é Américo Jacomino (1889-1928), o Canhoto, filho de imigrantes italianos, nascido em São Paulo, e considerado por pesquisadores41 como o primeiro grande intérprete de violão do país. Além de exímio violonista, era compositor de obras ligadas ao estilo seresteiro, principalmente valsas, entre as 2 Conforme Dudeque (1994:101), Simões (1967:25-29), Bartoloni (1993: 93-94), Gloeden (1997) e Alan (1995). 3 Castagna e Antunes (1994: 3-7). 53 quais a consagrada ―Abismo de Rosas‖. Também trabalhou por muito tempo acompanhando o cantor Paraguaçu, atuando em cinemas pela cidade de São Paulo. Seguem-se após Canhoto, Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955), o Garoto, e Dilermando Reis (1916-1977). Já na cidade do Rio de Janeiro, é Quincas Laranjeiras (1873-1935) o pioneiro do instrumento, fundador de uma revista e adepto da escola de Tárrega. Também é nome fundamental o pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, João Teixeira Guimarães (18831947), o João Pernambuco. No campo didático, o trabalho de maior destaque foi realizado pelo professor uruguaio Isaias Sávio (1900-1977) que imigrou em 1932 para o Brasil, radicando-se em São Paulo, criando em 1947 o primeiro curso de violão do Brasil, iniciando uma linhagem de professores brasileiros42. Mas é somente com a ação de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que dedicou uma pequena, mas excepcional, parte de seu trabalho ao violão, compondo mais de 20 peças, que o violão atingiria um alto nível de execução. Sobre esta contribuição de Villa-Lobos, afirma-se mesmo que a música brasileira para violão está vivendo até hoje à sombra do seu trabalho e que sua obra seja a mais conhecida nos meios violonísticos nacionais e internacionais. (Dudeque 1994:89-90,104). Dentro da América Latina, afirmamos que o melhor país para ser comparado ao Brasil, referente à obra violonística do porte de Heitor Villa-Lobos, seria Cuba, na figura do compositor Leo Brouwer. A escolha se baseou em um grande número de fatos. Primeiramente, ambos são considerados como os maiores compositores latino-americanos do instrumento; suas obras são citadas entre os violonistas de carreira internacional como peças de caráter obrigatório43, 4 5 Conforme Bartoloni (1993:97-98) e Dudeque (1994:101) Como por exemplo, o violonista uruguaio Oscar Cáceres (Weiss 1996:14-15) e o argentino Eduardo Isaac (Denis 1997:25). 54 algumas semelhanças em suas trajetórias também influenciaram nossa opção, tais como a ressonância da música popular em seus trabalhos, ao mesmo tempo em que estiveram atentos às novas linguagens, e o fato de que ambos participaram à frente de projetos do Ministério da Cultura de seus países. Ambos dedicaram ao violão parte de seu trabalho composicional, sendo que suas obras são consideradas peças standard em escolas e universidades de Música do mundo todo. Há também uma visão no meio musical que considera Leo Brouwer como um herdeiro de Villa-Lobos, tanto por estas semelhanças na carreira e reputação mundial, obtida na mesma proporção à de Villa-Lobos até o momento, quanto ao próprio trabalho composicional propriamente dito. Assim como o violão no Brasil percorreu um variado caminho até chegar ao trabalho consagrado de Villa-Lobos, a história do violão em Cuba é plena de fatos que também se interligaram até chegar à figura central do violão em Cuba, que é Leo Brouwer. Ainda que este trabalho não tenha por finalidade contar a história do instrumento em cada um dos dois países, isto se faz necessário para demonstrar as semelhanças entre ambos e para se ponderar sobre o fato de que a grande atuação de Villa-Lobos e Brouwer não foi uma atitude isolada, mas sim que ambos são produtos de uma espécie de genealogia do violão em seus países, que em seus muitos entroncamentos, principalmente com a vertente popular e as novas linguagens, conformou uma maneira de se expressar por meio do instrumento, que caracterizou fortemente seus trabalhos. A guitarra chegou a Cuba44 por meio dos navegantes espanhóis. Pela região de Baracoa entraram violão, vihuela, alaúde e outros instrumentos de cordas. Os colonizadores 6 Somente nesta parte altero o termo violão por guitarra, pelo fato de o violão, na conformação que conhecemos hoje só viria a se estabelecer após o chamado ―modelo de Antonio Torres‖, espanhol, construtor de violões, o que só aconteceria em fins do século XIX. Foi utilizado para esse levantamento histórico do violão em Cuba, os autores Acosta (1986), Amador, Perez, constantes da Bibliografia final. 55 espanhóis eram em sua maioria provenientes das regiões de Extremadura e Andaluzia. Perez (1986:50) destaca que muito provavelmente estes espanhóis se fizeram acompanhar nas longas travessias entre o Velho e o Novo Mundo por uma guitarra, atrelando o instrumento dos trovadores e jograis europeus ao instrumento que se converteria, no decorrer do tempo, em companheiro tanto dos gaúchos payadores quanto dos cantantes criollos da América Latina. Perez conclui que como resultado do aporte hispânico à cultura latino-americana durante o processo histórico de conquista e colonização das terras do Novo Mundo, a guitarra obteve na América Latina a categoria de instrumento continental. Com o passar do tempo, por sua aclimatação e enraizamento tão profundo na maioria destes países, se converteu, ademais, no instrumento nacional por excelência. Junto com a vihuela, a bandurría, o alaúde, o tiple e a guitarra são trazidos por soldados músicos que acompanhavam Diego Velásquez em sua missão de ocupar a ilha cubana. A primeira notícia sobre o instrumento surge em 1680 na qual afirma-se o nome de Don Lucas Pérez de Alaiz como um tocador de guitarra (Amador 1992:18). Na Villa de Trinidad e em Santiago havia pequenos conjuntos de guitarras e bandolas durante o século XVIII, além de bailes populares nos quais se executavam uma ou duas guitarras e instrumentos de percussão. Mais tarde, durante o primeiro terço do século XIX foi famoso Antonio Flores, primeiro trovador cubano, apelidado ―El Tirano‖ por improvisar tiranas (estilo musical proveniente da guitarra flamenca). Do estilo romancero espanhol inicial, a ilha foi se povoando de gêneros importados da Europa, como seguidillas, pólos, tiranas, boleros, tonadillas cênicas e canções da ―mais baixa ralé‖, segundo critério censor da época (Perez 1986: 52). O teatro desempenharia um importante papel na canção cubana ao aparecer nos começo do século 19, substituindo as tonadilhas cênicas por guarachas de tom humorístico. 56 Existirá na mesma época a canção representativa da alta sociedade, dos salões elegantes, a partir da invasão do bel canto durante o século XVIII. O aspecto de cubanía ou acriollismo de certas canções surge durante os anos de movimento de libertação nacional. Nos movimentos de libertação de 1868 a 1895 a canção patriótica ia adquirindo força à medida em que o sentimento de identidade nacional também crescia. E a guitarra era o instrumento oficial para acompanhar essas melodias tanto nos campos, na voz dos guajiros tocadores de tres, bandurria e alaúde (antigos instrumentos de cordas pertencentes à família do violão) quanto nas cidades nas mãos dos trovadores. A popularização do violão se deu no século XIX com o advento da trova cubana. Por esta época eram comuns as serenatas na cidade. A música em vigor era essencialmente européia, mas em meados do século, os bairros populares de Santiago começam a entoar canções e guarachas, acompanhadas de violão, com um valor indiscutivelmente criollo. O pioneiro dos trovadores é José Sánchez, Pepe, nascido em 1856, que deu um impulso à expressividade cubana. Com Pepe, se define o formato do bolero e que serviria de modelo muitos anos depois aos trovadores posteriores, como Sindo Garay e Alberto Villalón. Os trovadores cubanos que viveram na segunda metade do século XIX se relacionaram com grandes músicos acadêmicos cubanos, como José White, Brindis de Salas, Ignácio Cervantes, Lico Jiménez, Ernesto Lecuona. Segundo Amador, o violão, por sua parte, tanto na técnica quanto no produto artístico, recebeu influência por um processo acumulativo, como aconteceu em toda a cultura cubana. O clássico e o popular se interagiram. Amador coloca como exemplo disso a pessoa de Vicente Gonzalez Rubiera, o Guyún, nascido em Santiago. Guyún conviveu com Sindo Garay e Miguel Matamoros. A partir de 1924, mudou-se para Havana, desenvolvendo um trabalho como trovador, profissão que abandona em 1940 para estudar técnica musical e violão clássico, com Severino López, estudando a escola de Tárrega. Alberto Villalón também estudaria técnica violonística e 57 aplicaria os recursos a suas canções, principalmente ligados, arpegios, contrapontos de baixos com as vozes superiores etc.. O trio mexicano ―Los Panchos‖, com o violonista Alfredo Gil, conhecedor do violão clássico, incorpora muitos recursos e influi notadamente nos trios cubanos que também começam a empregar escalas, arpegios, ligados e trêmolos. O processo também se produziu ao contrário. Ezequiel Cuevas, um maestro espanhol radicado em Cuba, decide elaborar um simples método e a ensinar violão também por posições, devido à grande solicitação de seus alunos. Também Clara Romero de Nicola incorporou a seu método de violão muitas lições para o conhecimento dos ritmos da música popular e os acordes. Em suma, os trovadores, soneros (adeptos do estilo musical cubano do son), músicos campesinos, os cultores do feeling45 todos eles utilizaram o violão, fornecendo soluções técnicas que enriqueceram a gama de recursos e a forma de utilizar os efeitos próprios do violão, de uma maneira singular que foi dando forma às particularidades de um modo de fazer cubano. No século XIX a guitarra em Cuba não esteve associada à música de teatros e salões; o piano, os conjuntos de câmara, as óperas e as orquestras sim eram a preferência da elite. Esta situação perduraria em Cuba, assim como em várias outras partes do mundo. Em Valência, na Espanha, a atuação de Francisco Tárrega (1852-1909) vem modificar o status do (agora sim) violão, que adentra as salas de concerto e, mais ainda, dá um novo aspecto didático ao ensino do instrumento, a chamada ―Escola de Tárrega‖, da qual praticamente todos os países latinoamericanos são herdeiros. Nesse período, foi praticamente inexistente o registro de violonistas concertistas em Cuba; a função principal do violão parece mesmo ter sido a de acompanhar o canto. Entre os 7 Movimento musical dos anos 40 e 50 em Cuba, que utilizou procedimentos do jazz. 58 poucos concertistas conhecidos, destacou-se José Prudêncio Mungol, nascido em Havana (1837-1890). Mungol estudou em Barcelona e voltou a Cuba como um notável concertista, entretanto não sobraram registros de suas obras. Outro nome foi Juan Sábio (1868-?) que foi intérprete e professor. Em 1901 chega a Havana José Vallalta Ausina, discípulo de Tárrega. Vallalta ministra aulas, forma conjuntos e uma academia, na qual também leciona Pascual Roch, ouvinte nas aulas de Tárrega na Espanha, além de luthier (designação francesa para construtor de instrumentos), radicado em Havana desde 1911. Por meio deles chegam os primeiros informes sobre a escola de Tárrega em Cuba. A filha de Vallalta, Francisqueta, violonista e pioneira em programas de rádio sobre violão, é figura de relevo por seus conjuntos de violões, um dos quais chegou a ter 80 integrantes. Também se destacou como professora, dando aulas em mais de oito centros. Seu trabalho como intérprete foi elogiado pela imprensa da década de 20, e abarcou quase todas as salas e teatros do país até aproximadamente 1935. Um caso singular desta época é Vicente Gelabert, espanhol e discípulo de Tárrega. Ele realizou muitos concertos, mas não exerceu atividade didática com regularidade. Com Gelabert, pela primeira vez, se dá a conhecer a obra musical de Tárrega. Severino López, cubano, discípulo de Pascual Roch e na Espanha de Miguel Llobet, escreveu estudos para violão, transcrições e um método: El Acompañante Técnico. Chegou a alcançar um nível de concertista, realizando muitos concertos na década de 20, inclusive se apresentou no Carnegie Hall de Nova York. López foi professor de José Rey de la Torre, José Antonio Mercadal e a Maria Nela Bonet. Durante o período de luta contra o governo de Fulgêncio Batista, Severino López formou parte do exército guerrilheiro, tendo patente de capitão. Compôs nos últimos anos de 59 sua vida obras de caráter patriótico, motivado por seu período de permanência na Sierra Maestra. Uma canção foi inclusive dedicada a Che Guevara. Clara Romero de Nicola foi quem veio dar continuidade ao ensino de violão em Cuba. Ela fundou a cátedra de violão no Conservatório Municipal (hoje ―Amadeo Roldán‖) em 1931. Além disso, fundou a Sociedade Violonística de Cuba em 1939, com a revista Guitarra. Clara Romero se situa entre os grandes percussores do violão em Cuba e seu nome se vincula em definitivo ao de Isaac Nicola, seu filho. É de consenso entre os autores cubanos que Isaac Nicola e Leo Brouwer são os dois pilares de uma possível escola cubana de violão. Brouwer alude (Hernández 2000:178) que a existência de uma escola cubana foi criada mais para cobrir um repertório. É de relevância também citar o seu pensamento sobre diferenças entre alguns grupos de violonistas46: Aun los norteamericanos que a través del jazz tienen un desarrollo considerable del factor ritmo que los ha llevado al mundo de la llamada música beat o música del folklore universal, aún los norteamericanos, cuando tocan la guitarra clásica o algún repertorio latinoamericano, no le imprimen la vitalidad rítmica que le imprime, por ejemplo, el guitarrista cubano o el brasilero, los más fuertes y ricos del género. (...) Cuba tiene la suerte (a través del fenómeno revolucionario, que es un fenómeno social y histórico) de promover en el campo de la música y de la guitarra, un movimiento polivalente que incluye la trova, la guitarra popular y la poesía, ambas distantes como técnica básica, pero unidas a través de la canción popular. La guitarra clásica con sus complejidades no es fácil que se hubiera difundido si no es por el desarrollo que le imprimen los organismos revolucionarios, en este caso los de enseñanza musical en todo el país. Nicola iniciou seus estudos com Clara Romero na escola Municipal e posteriormente com Emilio Pujol, na Espanha. Aprendeu também com Pujol a tocar a vihuela e na volta a 8 O violonista, professor e compositor uruguaio Abel Carlevaro (1918-2000) também já havia comentado diferenças de interpretação, principalmente entre os latino-americanos e os europeus e norte-americanos. Os latino-americanos seriam mais sentimentais e menos ―mecânicos‖ que os demais (Soares e Antunes 1997:4-5). 60 Cuba ofereceu uma série de recitais, sendo que em 1941, realizou o primeiro concerto de vihuela de Cuba. Passou a dar aulas e depois da tomada do poder por Fidel Castro, ao acabar com os conservatórios privados e unificar o sistema de ensino em todo o país, o método de ensino de Nicola se tornou nacional. Na revisão e criação de materiais didáticos, junto a Nicola tiveram um papel importante os seus alunos: Leo Brouwer, Jesús Ortega, Marta Cuervo e Clarita Nicola. Nicola foi também diretor de escolas, assessor nacional de violão, chefe de cátedra, chefe do Instituto Superior de Arte, presidente e membro de júris nacionais e internacionais, além de títulos que recebeu do governo. De Leo Brouwer, basta, por ora, registrar a afirmação que dele fez o consagrado violonista e professor espanhol Emílio Pujol (1886-1980), quando conheceu o trabalho de Brouwer ainda bem jovem: a de que ele teria iniciado (por meio da peça Canticum, em 1968) uma nova etapa na história do violão mundial. 61 CAPÍTULO 3. Biografia de Heitor Villa-Lobos. A data de nascimento de Heitor Villa-Lobos variava em publicações entre os anos 1881 e 1891. Foi Vasco Mariz, por ocasião da preparação de seu livro, publicado em 1949, quem conseguiu descobrir a data correta, indo até a Igreja São José, na qual Villa-Lobos foi batizado. Heitor Villa-Lobos nasceu no dia 5 de março no Rio de Janeiro. Foi o segundo de oito filhos do casal Raul Villa-Lobos e Noêmia Monteiro Villa-Lobos. Seu pai, funcionário da Biblioteca Nacional e músico amador, foi quem decidiu dar a Villa-Lobos uma educação que incluísse a música. Ensinou o filho a tocar violoncelo, aos 6 anos de idade, além de teoria musical. O clarinete, o pai lhe ensinou aos 11 anos. Sobre seu pai, Villa-Lobos afirmou (Mariz 1989:22): ―Com ele, assistia sempre a ensaios, concertos e óperas (...) Aprendi também a tocar clarinete e era obrigado a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das obras, como a declarar com presteza o nome da nota, dos sons ou ruídos‖. Além do pai, uma tia, Zizinha, que era pianista, executante do Cravo Bem-temperado de Johann Sebastian Bach, também teve papel um importante por apresentar-lhe a obra de Bach, que o marcou para sempre. Em 1892, Raul Villa-Lobos manifestou-se publicamente contra o então presidente Marechal Floriano Peixoto e foi obrigado a sair do Rio de Janeiro com a família, perseguidos pela polícia, indo se refugiar em Minas Gerais por um período de seis meses. A causa da perseguição política foi uma série de artigos que ele escreveu contra o marechal Floriano, que realmente foi um governo tumultuado. Em 1899, quando Villa-Lobos estava com 12 anos de idade, seu pai morre de febre amarela. Em 1903, Villa-Lobos terminou os estudos básicos no Mosteiro de São Bento. A maioria dos biógrafos afirma que sua mãe desejava que ele seguisse a carreira de médico. Mas 62 o jovem Villa-Lobos não tinha interesse pelos estudos; saía de casa às escondidas e passou a estudar violão. Em uma ocasião, aos 16 anos de idade, ele fugiu para casa de sua madrinha, tia Fifina (Leopoldina do Amaral), em busca de maior liberdade. Juntava-se aos grupos de choro, pelo qual começou a se interessar, tocando violão em bares, festas e serenatas. Em pouco tempo, Villa-Lobos passou a tocar violoncelo profissionalmente em teatros, cafés e bailes, sem o estudo da música formal. Tocou no Teatro Recreio um repertório do mais variado, que incluía óperas, operetas e zarzuelas. Apresentou-se no Cine Odeon e em bares, hotéis e cabarés. Suas composições dessa época são valsas, dobrados, polcas e música popular. Conviveu com uma série de cantores populares como Cadete, Eduardo das Neves e Olímpio Bezerra e com compositores mais originais como Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros. Em 1906, com 19 anos, partiu em viagem pelo Brasil. Visitou os estados de Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Segundo informa Mariz (1989:39): Meteu-se pelos bairros mais duvidosos da cidade de Salvador e do Recife, em busca de aspectos curiosos do populário local, embrenhou-se nos sertões daqueles Estados, passou curtas temporadas em engenhos e fazendas do interior. A experiência recolhida nessa viagem foi bastante grande. A música dos cantadores, a empostação (ou desempostação) no cantar, a afinação de seus instrumentos primitivos, os aboios dos vaqueiros, os autos e as danças dramáticas, os desafios, tudo interessou-o vivamente e despertou-lhe o sentido de brasilidade que trazia no sangue. No ano seguinte resolveu aceitar o convite de um amigo e empreender viagem para o Sul. Em Paranaguá, trabalhou em uma oficina de fósforos, permanecendo por oito meses, dando concertos em cidades vizinhas e compondo. Provavelmente no ano de 1905, VillaLobos passou a percorrer o interior brasileiro, e, como dizem os autores, ―coletando material folclórico‖, absorvendo tudo o que ouviu, ―recebendo inúmeras influências sonoras‖, as quais 63 mais tarde resultariam em um de seus trabalhos mais importantes, o Guia Prático, uma coletânea de canções folclóricas destinadas à educação musical nas escolas. Béhague (1994) concorda com a data de 1905, embora não haja confirmação documentada deste empreendimento. Béhague lembra que Villa-Lobos vendeu livros do pai e foi ao Espírito Santo, Bahia, Pernambuco por um ano – sem planejamento e resultado hipotético. Quanto à segunda viagem, a de 1906, aos estados do Sul, por quase dois anos, Mariz disse que Villa-Lobos informou seu desapontamento no Sul com a falta de riqueza e pureza do material folclórico em relação ao do Nordeste (Mariz 1989:39). Na verdade, como não se tem o registro seguro desta empreitada, a maioria dos autores fica no campo das especulações quanto a o que efetivamente Villa-Lobos trouxe de material folclórico dessa viagem, ou em que medida ele apreendeu isto. Os autores costumam afirmar que ele reuniu parte disso em seu Guia Prático entre 1932 – 1937, entretanto Béhague constata que a maioria das canções é de cantigas de roda e não de caráter regional. Em 1907, aos 20 anos, tentou estudar sistematicamente harmonia, contraponto, fuga e composição com Frederico Nascimento no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, e com Agnello França e Francisco Braga, além de Francês. Mas, alguns meses depois sai do curso de Harmonia para ir a São Paulo, Mato Grosso e Goiás. Em sua quarta viagem, a segunda para o Nordeste, foi com o amigo Donizetti, permanecendo no Norte e Nordeste por mais de três anos. Já em 1908 Villa-Lobos viajou para o oeste brasileiro e em 1910 foi contratado como violoncelista de uma companhia de operetas que, depois, se dissolveu, no Recife. Foi a Fortaleza, Belém, Amazonas e chegou à ilha de Barbados, onde começa a escrever as Danças Características Africanas. Em 1912, estudou o Cours de Composition Musicale de Vincent d'Indy (o mais famoso discípulo de César Franck). Segundo Mariz, Villa-lobos estudou também partituras de 64 autores clássicos e românticos, o Tristão de Wagner, obras de Puccini. As óperas de VillaLobos tinham grande influência da orquestração wagneriana e vestígios de linha pucciniana, mas teria sido uma influência passageira, no entanto. Segundo Béhague, a segunda fase da vida de Villa-Lobos acontece quando ele conhece em 1912 Lucília Guimarães (1886-1966), que se tornaria sua esposa. Lucília era pianista de formação clássica e compositora, principalmente de peças corais. Estreou peças do marido em seus primeiros concertos em 1915, além da Semana de 22 e em Paris. Casaram-se em 12 de novembro de 1913, vivendo juntos por 23 anos. Lucília dava aulas em casa e VillaLobos tocava violoncelo em orquestras de teatro e cinemas, inclusive na Confeitaria Colombo e no Café Assírio. Em 1915 ocorre a sua estréia oficial como compositor. A primeira apresentação teria sido em Friburgo, com Villa-Lobos ao violoncelo, Lucília ao piano e o flautista Agenor Bens, seguido de outro recital, em julho, no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro. No final do ano, no Rio, Villa-Lobos fez uma série de concertos. Segundo Mariz, suas primeiras apresentações já geraram polêmicas, porque suas obras eram cheias de inovações para a época. Seus concertos passaram a ser alvos da crítica, que os considerava ―modernos demais‖ para o público brasileiro. As reações negativas partiram principalmente dos críticos Vicenzo Cernicchiaro (1859-1928) e Oscar Guanabarino de Souza e Silva (1851-1937), destacando-se este como o crítico mais reacionário da obra de Villa-Lobos e da música moderna em geral. Segundo Béhague, já no concerto do dia 13 de novembro de 1915 – o primeiro concerto inteiramente dedicado a suas peças no Jornal do Comércio – Villa-Lobos alcançou a fama de ―enfant terrible‖ da nova música brasileira, graças às reações negativas de Cernicchiaro e Guanabarino, ambos críticos do Jornal do Comércio. Em 1916 já tinha mais de 100 peças, inclusive a Suíte Popular Brasileira (1908-12). E em 1917 Villa-Lobos foi apresentado ao compositor francês Darius Milhaud, que nessa época 65 era secretário do Embaixador da França no Brasil, Paul Claudel. Datam deste ano os bailados Amazonas e Uirapuru, tidos como primeiros marcos do seu estilo. No ano seguinte, 1918, foi apresentado ao pianista polonês Arthur Rubinstein (18871982), a quem mostra algumas obras, inclusive a recém-composta suíte para piano Prole do Bebê n. º 1. Rubinstein apreciou muito a suíte e passou a executá-la em suas turnês. No mesmo ano, Villa-Lobos realiza mais três concertos no salão do Jornal do Comércio. Mais uma vez há críticas a seu trabalho; além dos costumeiros comentários de Guanabarino, Villa-Lobos envolveu-se também com uma polêmica com os músicos de orquestra no Instituto Nacional de Música, durante os ensaios de obras suas, que se recusariam a tocar sua música. Em 1919, vai a Buenos Aires a convite da Associação Wagneriana para um concerto com obras suas, sendo bem-recebido pela crítica do La Prensa. Em 1920, escreve os Choros n. º1, para violão, dedicado a Ernesto Nazareth, e a Lenda do Caboclo, para piano. Em 1921 compõe a suíte Prole do Bebê n. º 2. À medida que se apresentava em teatros no Rio e São Paulo, suas composições ganhavam notoriedade, passando a ser conhecido como um compositor ―moderno e diferente‖. O fato de ser sempre tão criticado causou-lhe uma aura de músico antiestablisment o que acabou favorecendo na escolha de seu nome para a Semana de 22. Sobre a Semana, Villa-Lobos tem a consagrada frase: ―Tive a certeza de a minha obra atingir um ideal, tais foram as vaias que me cobriram de louros‖. Incentivado por Rubinstein e pela cantora Vera Janacopulos, Villa-Lobos viajou para Paris em 30 de junho de 1923, financiado por mecenas do Rio de Janeiro, principalmente os irmãos Guinle. Também consegue um apoio da Câmara de Deputados recebendo uma pequena subvenção em dinheiro. 66 Lá conhece os músicos mais em voga da Europa: Roussel, Dukas, Florent Schmitt, Honegger, d‘Indy, Ravel, de Falla, Stravinsky, Prokofiev, Casella, Varèse, Segovia, Tomás Terán, Joaquín Nin, além dos críticos musicais: Henry Prunières, Paul Le Flem, Tristan Klingsor, que manifestaram-se favoravelmente à sua obra. Em 9 de abril e 30 de maio de 1924 realiza dois concertos só com obras suas (este último promovido pela Max Eschig na Salle des Agriculteurs, com a presença de Rubinstein). A reação do público foi dividida, mas a imprensa exaltou as qualidades. O Jornal Liberte avaliou sua produção musical como ―um modernismo avançado‖ e Villa-Lobos como ―uma personalidade forte e atraente‖. É em Paris, ainda em 1924, que escreve os Choros n.º 2 e n.º 7, mas devido à falta de recursos financeiros, Villa-Lobos retorna ao Brasil no final deste ano. Segundo Gerard Béhague, sua primeira viagem a Paris ―serviu para confirmar o nível internacional de sua estética musical prévia‖ (1994:17). Em 1925, em São Paulo, Villa-Lobos dirige três concertos na Sociedade de Concertos Sinfônicos e Cultura Artística. Surgem notícias sobre peças suas tocadas em Londres, Paris e Veneza. Neste ano compõe os Choros nº 3, nº 8 e nº 10, além das Serestas, para voz e piano. Em 1926 foi para Buenos Aires, onde realizou, com êxito, três concertos para a Associação Wagneriana. Em especial no dia 15 de novembro de 1926, consegue sucesso estrondoso no Teatro Lírico do Rio de Janeiro com os Choros n.º 3 e Choros n.º 10. O Jornal do Comércio faz uma crítica favorável. Em 1927 suas dificuldades financeiras perduravam no Brasil. Villa-Lobos resolve retornar a Paris acompanhado de sua esposa Lucília Guimarães, a fim de realizar novos concertos e iniciar negociações com a Max Eschig. Arthur Rubinstein intercedeu junto a Carlos Guinle para que ele financiasse a primeira edição de suas peças na editora francesa. Guinle também cedeu-lhe um apartamento em Paris, que tornou-se um ponto de referência 67 para músicos sul-americanos e europeus. Para sobreviver, Villa-Lobos dava aulas e revisava partituras da Max Eschig. Segundo Mariz (1989): A popularidade de Villa-Lobos em Paris cresceu com o debatidíssimo artigo do Intransigeant de outubro de 1927, sobre o compositor brasileiro, que se preparava para dar um concerto com orquestra na Sala Gaveau. A poetisa Lucie Delarue Mardrus se tornara amiga de Villa-Lobos, viu certa vez na residência do maestro o livro Viagem do Brasil do viajante alemão de 1600, Hans Staden. Pediu-o emprestado e o levou pra casa. Qual seria a surpresa de todos os brasileiros residentes em Paris quando o Intransigeant, com grande destaque, publicou um artigo daquela escritora que atribuía a Villa-Lobos as aventuras de Hans Staden em pleno século vinte! ! Villa-Lobos, membro de uma expedição científica alemã, é capturado por índios antropófagos, que o amarram a um poste, bailam em torno dele e se preparam para assa-lo! O leitor compreenderá a indignação dos brasileiros residentes em Paris para com o que eles acreditavam fosse ‗mais uma‘ de Villa-Lobos. O artigo se intitulava ―L‟Aventure d‟un CompositeurMusique Canibale”. No final desse ano, dois concertos realizados na Salle Gaveau, a 24 de outubro e a 5 de dezembro, inclusive com a execução dos Choros n.º 10, projetaram seu nome. Mariz (1989: 68) afirma que a partir de esse momento Villa-Lobos adquiriu renome em Paris e no mundo musical europeu. Foi a Londres, Amsterdã, Viena, Berlim, Madri, Liége, Lyon, Amiens, Poitiers, Barcelona e Lisboa. Em Paris foi professor de composição no Conservatório Internacional, além de alunos de Isidor Phillip e Marguérite Long, famosos professores de piano, que queriam aprender sua música. Em 1928 compôs os Choros Bis e o Choros nº 11. Já em 1929, escreveu o Choros n.º 9 e finalizou os 12 Estudos para violão. Neste ano esteve no Brasil por pouco tempo para organizar concertos e reger no Rio de Janeiro e em São Paulo. Voltou a Paris, passando por Barcelona para apresentações. Mariz (1989:69) afirma que nesta época público e músicos parisienses o reconheciam, mas os mesmo críticos dos vanguardistas belgas e franceses, não. Em 1930 apresenta-se em Paris na Salle Gaveau em duas ocasiões. Seu nome já estava estabelecido internacionalmente. Conduziu em Bruxelas, Liége, Viena, Berlim, Amsterdã, Londres e províncias francesas. Deixa Paris em fim de maio 1930 para compromisso de concerto em São Paulo, a convite de Olívia Penteado, (antes já havia passado por Recife, onde 68 organizou concertos). São Paulo, porém, passava por agitações políticas e Villa-Lobos não pôde realizar todos os concertos que planejara. Neste ano, acontecia a campanha eleitoral de Júlio Prestes para a presidência da República. Enquanto esteve em São Paulo, Villa-Lobos fez críticas às condições do ensino de música nas escolas públicas e apresentou um plano ao secretário de Educação de São Paulo – plano este que ele teve a oportunidade, na casa de Olívia Penteado, de expor ao então candidato à presidência da República, Júlio Prestes, que demonstrou interesse em concretizálo. A disputa eleitoral foi acirrada, ganhando Júlio Prestes. Porém, o candidato Getúlio Vargas, apoiado pela coligação Aliança Liberal, formada pelos estados da Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, acusava o paulista de fraude e exigia anulação do pleito. Como se sabe, o assassinato de João Pessoa na Paraíba exaltou os ânimos políticos, e Getúlio e seus aliados tomaram o poder, em outubro de 1930. Villa-Lobos é chamado pelo interventor do governo provisório de São Paulo, coronel João Alberto Lins de Barros, para que expusesse suas idéias. O resultado desta conversa foi o apoio oficial a seu projeto pelo governo de Vargas. Aqui inicia a colaboração de Villa-Lobos com o governo Vargas, que lhe rendeu a denominação de patriarca de educação musical, mas também, por vezes, apontado como apoiador de uma ditadura. Em 1931, com o patrocínio do governo paulista, iniciou a ―Excursão Artística VillaLobos‖, reunindo artistas como os pianistas Antonieta Rudge, Guiomar Novais e Souza Lima para excursões pelo interior de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, com o objetivo de divulgar a arte brasileira. Entretanto, o repertório da Excursão era formado basicamente por músicas européias, o que levou Gerard Béhague (1994:22) a concluir que o verdadeiro objetivo da excursão era impor a cultura da classe dominante numa sociedade estratificada e, assim, moldar o gosto artístico por meio da cultura de elite. 69 Sua volta ao Brasil em 1930, é também marcada por críticas de Mario de Andrade a aspectos apresentados no livro de Suzanne Demarques e sobre seu trabalho como regente, além de críticas a respeito da série de concertos em São Paulo, na qual mostrou obras de Milhaud, Honegger e Florent Schmitt. Andrade também realçou no trabalho de Villa-Lobos o que chamou de ―ausência de autocrítica, uma perigosa complacência que o deixa aceitar livremente tudo o que sua imaginação criativa lhe dita‖. Em 31 de maio de 1931, ocorre a primeira das muitas manifestações de ―exortação cívica‖: um coro de 12 mil vozes – trabalhadores, soldados, estudantes e professores – apresenta-se em São Paulo sob regência de Villa-Lobos. Era o início do Canto Orfeônico. Villa-Lobos pretendia que esta tradição possibilitasse a educação das massas em música geral e em música brasileira, e que incutisse o sentimento de patriotismo e identidade nacional. Ele escreveu (1940:10): ... o canto coletivo, com o seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades. Em 1932, depois de residir por dois anos em São Paulo, fixa residência no Rio de Janeiro, após ser convidado por Anísio Teixeira, Secretário de Educação, para presidir a Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA, cargo que chefiaria de 1932 a 1941. O presidente Vargas assinou um decreto que tornava obrigatório o ensino de canto orfeônico nas escolas. Em cerimônia oficial realizada na Universidade do Rio de Janeiro, Villa-Lobos anunciou seu programa cultural, que atacava os professores de música e criticava o futebol e o rádio. Suas idéias ganhavam destaque e quase tudo que declarava gerava muita polêmica. Idealizou a ―manossolfa‖: sistema de sinais feitos com as mãos para facilitar o ensino do ritmo, notação musical e regência de corais, evitando, de início o ensino de notação 70 musical. Compôs então o que foi um destaque de seu projeto educacional, o Guia Prático uma coleção de temas populares harmonizados ao piano, em 6 volumes e ampliado para 12 volumes. O canto orfeônico era apresentado nas exortações cívicas, e ganharam enorme alcance no governo Vargas, transformando-se em manifestações públicas de apoio e homenagem à figura do presidente. Os espetáculos corais marcavam todos os feriados nacionais: Dia do Trabalho, Independência do Brasil, Proclamação da República, Dia da Bandeira. Possuíam dimensões gigantescas e eram apresentados geralmente em estádios de futebol. Junto a este projeto, foram promovidos pela primeira vez os ―Concertos para a Juventude‖ no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, conduzidos por Walter Burle-Marx (1902), pianista, maestro e compositor, nos quais Villa-Lobos explicava as obras. Em 1933, organizou a Orquestra Villa-Lobos, também com finalidades educativas, cívico-artísticas e culturais. Em 1935, regeu três concertos sinfônicos no Teatro Cólon de Buenos Aires. Em 1936, representa o Brasil em Praga no Congresso de Educação Musical Popular. E em Viena, foi um dos jurados no Concurso de Canto e Piano, além de realizar conferências sobre seu projeto educacional em Berlim, Paris e Barcelona. De Berlim, envia carta à Lucília Guimarães, anunciando sua decisão de terminar o casamento. De volta ao Brasil, passou a viver com Arminda Neves de Almeida (Mindinha), a quem dedicou muitas obras, e que seria no futuro a fundadora do Museu Villa-Lobos. No mesmo ano compõe o Ciclo Brasileiro para piano e iniciou a partitura do Descobrimento do Brasil para o filme do mesmo nome produzido por Humberto Mauro (a pedido de Getúlio Vargas). Nesse período da vida de Villa-Lobos, muitas obras de peso foram compostas, em especial as Bachianas Brasileiras n.º 3, n.º 5 e n.º 6 e para violão os 5 Prelúdios (1940). Causou muita polêmica quando Villa-Lobos encarregou-se de fazer os escolares aprenderem corretamente o Hino Nacional Brasileiro, proibindo sua execução até que erros de 71 ritmo e entonação fossem corrigidos. Um decreto governamental foi assinado para a revisão de Villa-Lobos no Hino em 31 de julho de 1942. A partir de 1942 os entendimentos políticos entre Brasil e Estados Unidos, a chamada ―Política da Boa Vizinhança‖, estabelecem uma série de contatos entre artistas dos dois países. O maestro Leopold Stokowsky realizou concertos no Rio de Janeiro e solicitou a Villa-Lobos que selecionasse músicos populares brasileiros para a gravação de uma coleção de discos, Brazilian Native Music, pela Columbia Records. Villa-Lobos convidou então Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola, Jararaca e Ratinho, Zé Espinguela e muitos outros. Além da gravação, realizaram apresentações para a missão norte-americana que se encontrava no Brasil. Com essa política cultural em vigor, Villa-Lobos realiza muitas viagens aos Estados Unidos, onde várias obras suas são executadas e outras lhe são encomendadas. Nesta fase consolida-se a consagração do compositor carioca. Além de Stokowsky, Serge Koussevitsky, diretor da Orquestra de Boston, passa a incluir obras de Villa-Lobos em suas apresentações. No Brasil, em 1945, Villa-Lobos fundou a Academia Brasileira de Música, da qual foi o primeiro presidente, e cujos 50 primeiros membros ele mesmo designou. Em 1947 viaja novamente aos Estados Unidos, acompanhado do pianista José Vieira Brandão. Conduz orquestras em Roma, Lisboa e Paris. No começo de 1948, ficou poucos meses em Paris, realizando concertos. No segundo semestre deste ano, submete-se a uma cirurgia de emergência no Memorial Hospital de Nova York, para retirada de um tumor. Alguns autores costumam colocar esse acontecimento como o fator de diminuição das atividades do compositor. Em 1949 realiza constantes viagens a França e Estados Unidos. Neste período, VillaLobos volta sempre para Paris, residindo no Hotel Bedford. Em 1951, escreve o Quarteto de 72 cordas n.º 13, a Sinfonia n.º 9 e o Concerto para violão e orquestra. Sobre este concerto, Mariz afirmou: (1989: 143): Em 1951, acedendo a insistentes pedidos de Andrés Segovia, decidiu escrever um Concerto para violão e orquestra, em quatro movimentos. O grande guitarrista espanhol estreou a obra a 6 de fevereiro de 1956, em Houston, Texas, acompanhado pela Sinfônica local. A princípio Villa-Lobos pensou em fazer uma fantasia concertante, que afinal desenvolveu em concerto, embora para pequena orquestra. O violão se arrisca a perder-se entre a orquestra, nos dos primeiros movimentos, até que o autor lhe oferece uma longa cadenza, onde o instrumento desenvolve belos e ricos comentários aos temas principais. A obra tem grande efeito de gravação, mas deixa a desejar em sonoridade nas grandes salas. É um trabalho nitidamente lírico e o único senão que se pode encontrar é a eventual falta de intensidade. Em 1952 aceitou uma encomenda do governo do estado de São Paulo para uma obra comemorativa ao IV Centenário da capital paulista. Esta obra foi a sua Sinfonia n.º 10, intitulada Sume Pater Patrium. Neste mesmo ano recebe medalha do ministro da educação da França. Villa-Lobos teve também uma experiência em Hollywood, em 1957; a Metro Goldwyn Mayer o contrata para compor a trilha musical do filme Green Mansions (no Brasil, o filme recebeu o nome de A Flor que Não Morreu, com os atores Anthony Perkins e Audrey Hepburn), cuja música mais tarde ele intitulou Floresta do Amazonas. Por ocasião de seu 70.º aniversário, foi tema do editorial do The New York Times. A cidade de Nova York lhe oferece a medalha do município por ―Serviços Meritórios Excepcionais‖. No Brasil, o ano de 1957 é instituído como o ―Ano Villa-Lobos‖ e em São Paulo acontece a ―Semana Villa-Lobos‖ com concertos e conferências. Em 1958 regeu a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de Janeiro, em primeira audição, o Magnificat Alleluia, peça encomendada pelo Vaticano. Em Paris, recebeu o ―Grande Prêmio‖ do disco pela gravação das suítes Descobrimento do Brasil. Em janeiro de 1959 foi jurado no Concurso Internacional de Violoncelo Pablo Casals na cidade do México, viajando depois para Europa (Paris, Londres, Itália e Espanha) e Estados Unidos, para outra série de concertos. Em julho retorna ao Rio de Janeiro para as 73 comemorações do 50.º aniversário do Teatro Municipal. Seu estado de saúde piora e a 12 de julho, Villa-Lobos regeu seu último concerto, em Nova York. Com o agravamento de sua doença, é forçado a internar-se no Hospital dos Estrangeiros, na cidade do Rio de Janeiro, vindo a falecer em 17 de Novembro de 1959. CRONOLOGIA 1887 - Heitor Villa-Lobos nasce a 5 de março, no Rio de Janeiro. 1899 - Morte de Raul Villa-Lobos. Compõe sua primeira peça, a pedido da mãe, Noêmia Monteiro Villa-Lobos, uma cançoneta: Os sedutores. 1900 - Compõe A Panqueca, para violão. 1903 - Aos 16 anos, vai morar com sua tia, Fifina. Junta-se aos grupos de choro, tocando violão em bares, festas e serenatas. 1904 - Compõe a Valsa de Concerto n.º 2 para violão. 1905 - Aos 18 anos, percorre o norte e nordeste brasileiros. 1907 - Estuda harmonia, contraponto, fuga e composição com Frederico Nascimento, Agnello França e Francisco Braga. Viaja ao sul do país. 1908 - Em Paranaguá, realiza a primeira audição de uma peça sua. Viaja para o oeste brasileiro - Mato Grosso e Goiás. Compõe as primeiras peças da Suíte Popular Brasileira para violão. 1910 - É contratado como violoncelista de uma companhia de operetas que se dissolve em Recife. Vai a Fortaleza, Belém, Amazonas e chega à ilha de Barbados. 1912 - No Rio, estuda o Cours de Composition Musicale de Vincent d'Indy. Trabalha em cinemas, tocando violoncelo na projeção de filmes. Conhece a pianista Lucília Guimarães. 74 1913 - Casa-se com Lucília. 1915 - Realiza o primeiro concerto só de obras suas em teatro de Friburgo, estado do Rio de Janeiro. 1917 - Conhece Darius Milhaud, compositor francês, secretário do Embaixador da França no Brasil. 1918 - Conhece Arthur Rubinstein. 1919 - A Associação Wagneriana de Buenos Aires apresenta seu Quarteto de cordas n.º 2. 1920 - Escreve o Choros n.º 1 , para violão. 1922 - Participa da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. 1923 - Viaja para Paris. Compõe o Chorinho para violão (Suite Popular). Conhece Andrés Segovia. 1924 – Em Paris, Villa-Lobos assiste à apresentação da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, considerando esta como a maior emoção musical de sua vida. Inicia a composição dos 12 Estudos. 1925 – Volta ao Brasil. Realiza série de concertos. 1927 - Volta a Paris. A Casa Max Eschig realiza a primeira edição de suas peças. 1929 – Finaliza os 12 Estudos para violão. 1930 - Villa-Lobos inicia em São Paulo seu plano de educação musical. 1931 - Realiza a Excursão Artística. Ocorre em São Paulo a primeira concentração orfeônica. 1932 - De volta ao Rio, é nomeado supervisor da educação musical no Brasil. 1933 - É criada a Orquestra Villa-Lobos. 1936 - Vai ao Congresso de Educação Musical Popular em Praga, e participa como jurado do Concurso Internacional de Canto e Piano em Viena. Separa-se de Lucília Guimarães e passa a viver com Arminda Neves d‘Almeida (Mindinha). 1940 - Compõe 5 Prelúdios para violão. 75 1942 - Ocorre seu primeiro contato com a política cultural norte-americana. 1943 - Recebe o título de Doutor ―Honoris Causa‖, pela Universidade de Nova York. 1944 - Viaja aos Estados Unidos para reger. O Occidental College de Los Angeles lhe outorga o título Doutor em Leis Musicais. 1945 - Funda a Academia Brasileira de Música, da qual foi o primeiro presidente, e cujos 50 primeiros membros ele mesmo designou. 1946 - Recebe o prêmio de Música, concedido pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura. 1947 a 1949 - Viaja constantemente aos Estados Unidos e a França. 1951 - Compõe o Concerto para violão e orquestra, dedicado a Andrés Segovia. 1952 - Torna-se membro do Instituto da França, na vaga de Manuel de Falla. 1956 - No Brasil, é inocentado do processo de plágio que lhe movia o espólio de Catulo da Paixão Cearense por sua utilização, no Choros n.º 10, da letra para o schottisch ―Yara‖, de Anacleto de Medeiros. 1957 - É convidado pela Metro Goldwyn Mayer para compor a trilha musical do filme ―Green Mansions‖. É tema do editorial do ―The New York Times‖ por ocasião de seu 70.º aniversário. São Paulo promove a Semana Villa-Lobos e recebe o título de Cidadão Paulistano. 1959 - Em julho, realiza seu último concerto em Nova York. Morre em seu apartamento no dia 17 de novembro. 1960 – Mindinha funda o Museu Villa-Lobos, por decreto assinado pelo presidente da República Juscelino Kubitscheck. 76 3.1. A OBRA PARA VIOLÃO DE HEITOR VILLA-LOBOS A obra para violão de Heitor Villa-Lobos tornou-se uma das partes mais representativas de sua produção musical. Ainda que este número de obras seja pequeno em relação ao total de opus relacionados no Catálogo Oficial (mais de mil obras), foi a constância de execuções em várias partes do mundo que fez o repertório para violão tornar-se um dos maiores êxitos do compositor47. Estima-se que depois das Bachianas Brasileiras e da música para piano a obra para violão seja o conjunto de peças mais gravado no mundo todo 48. Percebe-se também a dimensão que o instrumento assumiu em sua produção pelo fato de a maioria dos livros que tratam de analisar sua obra sempre dedicarem especial atenção à parte violonística. É interessante perceber como por intermédio das anotações das memórias de Lucília, pode-se chegar ao pensamento corrente da época na qual ambos se conheceram, no que se refere ao violão. O referido texto encontra-se no livro Villa-Lobos visto da platéia e na intimidade, (Guimarães 1972), escrito pelos irmãos de Lucília. O livro quer demonstrar a importância de Lucília Guimarães na carreira do marido por meio de relatos sobre os anos de convivência das duas famílias. No capítulo intitulado Villa-Lobos e Lucília (p. 223), é transcrito um trecho de suas anotações, onde ela escreve: Foi no dia de Todos os Santos (1/11/1912) que recebemos a visita de Villa-Lobos. Trazido por um amigo de meus Pais, Arthur Alves, o motivo era que iríamos ouvir um rapaz que tocava muito bem violão. Morávamos, então eu, Minha mãe e seis irmãos, n‘uma vila, na rua Haddock Lobo (Vila Ítala) hoje rua Domicio da Gama. Havia terminado meu curso de piano no Instituto Nacional de Música (hoje Escola Nacional de Música) e lecionava piano no Colégio Sacré-Coeur, assim como também tinha algumas alunas particulares, de piano e de solfejo. A noitada de música correu muito bem, extremamente agradável, e, para nós, foi um sucesso o violão nas mãos de Villa-Lobos. Terminando sua exibição, Villa-Lobos manifestou desejo de ouvir a pianista, e toquei, a seguir, alguns números de Chopin, cuja execução me pareceu ter impressionado bem, na técnica, e na interpretação. Villa-Lobos, porém, se sentiu constrangido; talvez mesmo inferiorizado, pois naquela época o violão não era instrumento de salão, de música de verdade, e sem instrumento vulgar, de chorões e seresteiros. Subitamente, vencendo como que uma depressão, declarou que o seu verdadeiro instrumento era o violoncelo, e que fazia questão de combinar uma reunião, em nossa casa, para se fazer ouvir em seu violoncelo. 1 Autores como Vasco Mariz, Gerard Béhague e Eeros Tarasti compartilham a idéia do grau de importância atribuído ao violão na obra de Villa-Lobos. 2 Mariz (1989:221) afirma os seguintes dados sobre o número de gravações: piano em 1.º, com 160 registros, violão em 2.º lugar , 120, Bachianas Brasileiras, 115 (dados de 1989). O CD-Rom Vida e Obra de Heitor VillaLobos, da LN Comunicações, de 1997, também confirma os números. 77 Um contraponto a este relato é o testemunho do pianista e maestro Alceo Bocchino, que está no CD Repertório Rádio MEC n.º 2, só sobre Heitor Villa-Lobos, que traz entre outras obras o Trio n.º1 em Dó menor: ...Villa-Lobos convidou o violinista Célio Nogueira para formar um trio comigo e com Iberê (Gomes Grosso). Após os primeiros ensaios particulares, Villa-Lobos quis ouvir o seu Trio. Fomos à sua casa. Eu estava preocupado porque existem, nesse Trio, algumas passagens pianísticas complicadas. Complicadas até se descobrir o segredo delas, o jeito de sua realização. Eu havia resolvido os problemas, mas continuava apreensivo, ao mesmo tempo me perguntando por que Villa-Lobos escrevera – principalmente certa escala ascendente em velocidade – daquela maneira!? Comentando com ele esse momento da obra, aliás de grande brilho e efeito, respondeu-me sorrindo: - Ora, em 1911 eu não conhecia muito bem o piano!...Baseava-me, apenas, no violão. - Mas o senhor foi fazer logo um Trio, que é como um concerto de piano acompanhado de violino e violoncelo? - E o que você acha disso? - Bom, acho que o senhor realizou o impossível, finalizei, e maravilhosamente bem! No Brasil, teses sobre a obra de Villa-Lobos para violão foram realizadas por Eduardo Meirinhos no Departamento de Música da escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, e por Krishna Salinas no Departamento de Música da Universidade Federal da Bahia. Quanto a livros, há o do violonista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Museu Villa-Lobos, Turíbio Santos, intitulado Heitor Villa-Lobos e o violão de 1975, editado pelo próprio Museu, e o do violonista Marco Pereira, Villa-Lobos, sua obra para violão, de 1984. No exterior, é de nosso conhecimento a dissertação de Mestrado do brasileiro Fábio Zanon para a Royal Academy de Londres. O importante trabalho composicional para o violão de Villa-Lobos atinge um ponto em que suas obras para este instrumento se tornaram parte do currículo de escolas e universidades de Música em várias partes do mundo. Norton Dudeque (1994:104) chega a afirmar que: ―a música brasileira para violão tem se desenvolvido, praticamente, à sombra da excepcional, embora pequena, obra de Villa-Lobos, que continua sendo a mais conhecida nos meios violonísticos nacionais e internacionais‖. O musicólogo Gerard Béhague (1994: 135-138) conclui que Villa-Lobos contribuiu com o mais substancial conjunto de peças para violão do século XX e que os Estudos fazem 78 parte do repertório de todo profissional não somente pela riqueza técnica, mas também pelo diverso e requintado tratamento à capacidade tímbrica e à textura do instrumento, o que requer alto nível de virtuosidade, entendimento intelectual e sensibilidade de interpretação, ultrapassando as linguagens clássica e romântica às quais o violão ainda pertencia. Já os Prelúdios estariam mais ligados ao credo nacionalista de Villa-Lobos. Vasco Mariz é o autor brasileiro que possui o maior número de livros editado sobre a biografia de Villa-Lobos; seu livro Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, escrito em 1949, está na 11.ª edição e tem traduções em Castelhano, Francês, Inglês, Italiano e Russo. Segundo afirma (1989:164), o violão no contexto da obra villalobiana tomou proporções de grande significância: Parece-me indispensável uma referência à parte e muito especial às composições para violão de Heitor Villa-Lobos, que gozam de grande popularidade no Brasil e no exterior. Sem ser um violonista concertista, o compositor tinha muita prática e muito gosto no manuseio do violão, herdados provavelmente do tempo de sua convivência com os chorões. (...) À medida em que os anos passam, observa-se que a obra para violão de Villa-Lobos é, talvez, o setor de sua numerosa criação artística que maior vitalidade internacional parece conservar. Outro autor muito conhecido é Adhemar Nóbrega, que fez análises sobre a série dos Choros e das Bachianas. Nóbrega realça (1973:27) o desempenho que os dois instrumentos – violão e violoncelo – tiveram nas duas grandes séries: ―O instrumentista Villa-Lobos projetou o compositor no início de dois ciclos de marcante significação em sua obra: o violoncelista levando-o a destinar a uma orquestra de celos (sic) a primeira das Bachianas e o violonista seresteiro consagrando ao violão o Choros N.º 1‖. Uma opinião sobre o instrumento na carreira de Villa-Lobos nos dá o violonista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Turíbio Santos49: Heitor Villa-Lobos, durante toda sua vida, fez do violão seu caderno de anotações musicais. Este registro começou na juventude, no momento em que o discípulo do próprio pai decidiu, percorrendo musicalmente as ruas do Rio de Janeiro, subverter sua formação tipicamente européia. Se com a influência paterna Villa-Lobos conheceu o que se costumava chamar a ‗grande música‘, nas ruas de sua cidade ele fez contato direto com a nascente cultura musical brasileira. A música negra estava ainda restrita às classes mais baixas pelo preconceito de uma sociedade que planejava um futuro branco para si mesma. Mas as primeiras portas começavam a se abrir para a influência africana, principalmente através do choro. 3 In Revista do Brasil, Rio de Janeiro, RioArte, Fundação Rio, ano 4, n.o 1, p. 97. 79 Em outra análise, Santos (1977:5-6) reafirma a importância do instrumento: O violão foi seu grande arquivo musical. Desnecessários apontamentos se o instrumento estivesse por perto. Nele se registraram as primeiras impressões de Bach, o Cravo Bem Temperado do piano da tia Zizinha, as rodas de choro do Rio de Janeiro, as melodias recolhidas através de todo o Brasil, e a própria literatura clássica do violão. (...) O violão seria ponto de referência a partir dai. Sua presença na obra de Heitor Villa-Lobos era também a das Rodas de Choro, dos personagens que compunham esse ambiente musical peculiar do Rio de Janeiro, das melodias, harmonias e ritmos da música popular instrumental. O violonista espanhol Andrés Segovia, a quem Villa-Lobos dedicou os 12 Estudos e o Concerto, relata seu encontro com o compositor em Paris (Santos 1977:12). Na ocasião, Villa-Lobos, já sem a prática constante do instrumento, cometeu diversos deslizes na execução de suas próprias peças, mas ainda assim Segovia reconheceu o valor do músico na figura do compositor: (...) os poucos compassos que tocou foram suficientes para revelar, primeiro, que aquele mau intérprete era um grande músico, pois os acordes que conseguiu produzir encerravam fascinantes dissonâncias, os fragmentos melódicos possuíam originalidade, os ritmos eram novos e incisivos e até a dedilhação era engenhosa; segundo, que ele era um verdadeiro amante do violão. No calor desse sentimento, nasceu entre nós uma sólida amizade. Hoje o mundo da música reconhece que a contribuição desse gênio para o repertório violonístico constituiu uma bênção tanto para o instrumento como para mim. Pelo catálogo do Museu Villa-Lobos, as partituras editadas para violão solo perfazem um número de 23 peças: Suíte Popular Brasileira – 1908-1912 composta de: I. Mazurka-chôro, II. Schottisch-chôro, III. Valsa-chôro, IV. Gavota-chôro, V. Chorinho (Paris, 1923). Choros n.º 1 - 1920 12 Estudos - Paris, 1924-1929 5 Prelúdios - 1940 80 Em música de câmara há o inusitado Sexteto Místico (1917) original para flauta, oboé, sax alto, harpa, violoncelo e violão, e a Distribuição de Flores (1937) original para coro e transcrito para violão e flauta. As transcrições mais conhecidas do autor são: Ária das Bachianas Brasileiras N.º 5 (1938), Modinha (1926), Canção do Amor (1958) e outras - a maioria foi encomendada pela violonista Olga Praguer Coelho. Há também o concerto para violão e orquestra (1951), encomendado pelo violonista espanhol Andrés Segovia. Ainda há mais de dez obras originais para violão solo cujas partituras não foram localizadas. Estas obras variam entre os anos de 1900 a 1911, incluindo aí a Panqueca (1900). Mariz (1989:164) declara: ―(...) não esqueçamos que as primeiras obras de Villa-Lobos foram para violão solo; a Panqueca e a Mazurca em ré maior, de 1900 e 1901, respectivamente, embora Herminio Bello de Carvalho situe a segunda em 1899, o que lhe daria a primazia na cronologia da obra inteira do mestre‖. Das partituras não localizadas, uma das mais importantes seria o Prelúdio n.º 6, o qual possui o comentário, não comprovado, de que teria se perdido durante a Guerra Civil Espanhola na casa de Andrés Segovia. Recentemente, uma outra obra foi localizada; o manuscrito da Valsa Concerto n.º 2, também chamada Valsa Brilhante, foi encontrado em 1996 pelo pianista, compositor e pesquisador Amaral Vieira. Um livreiro carioca ligou para Vieira dizendo que havia encontrado este manuscrito assim como fotografias, muitas delas inéditas, de Heitor Villa-Lobos. Tanto as fotos quanto a Valsa foram apresentadas no MIS (Museu da Imagem e do Som, em São Paulo) em um concerto do violonista Ricardo Simões, que também a gravou pelo selo Paulus. Esta valsa consta do catálogo de obras de Villa-Lobos onde se lê: ―manuscrita, extraviada‖ . A Valsa Concerto n.º 2 foi escrita em 1904 quando Villa-Lobos tinha 17 anos. A descoberta da peça obteve cobertura da grande Imprensa, embora no meio violonístico tenha sido pouco considerada na ocasião. A ausência de alguns compassos e a falta de finalização da peça que, via de regra, impossibilitariam a apresentação da obra, ou seja, esta aparência de ―rascunho‖ da Valsa, podem ser uma explicação para o fato de os violonistas não terem considerado tanto a descoberta nem incluído a peça no repertório. O violonista Ricardo Simões optou por escrever cerca de 15 compassos para dar um final à obra. Já Turíbio Santos decidiu gravar a peça exatamente como foi encontrada no manuscrito, apenas realizando um retorno à primeira parte à guisa de final. As obras para violão de Heitor Villa-lobos acompanharam seus diferentes períodos de estilo composicional. Na primeira fase, a Suíte Popular Brasileira é proveniente de uma época de início de carreira e forte ligação com os elementos da música popular urbana de 81 então, polcas e valsas especialmente. A fase seguinte, já em Paris e balizado pela Semana de Arte Moderna de 22, Villa-Lobos está ligado às formas composicionais mais modernas, surgindo daí os 12 Estudos; um material que rompe com a linguagem violonística ligada à tradição da era clássica. Seu período seguinte, de volta ao Brasil e envolvimento com o governo de Getúlio Vargas, é a fase do Canto Orfeônico, das Bachianas Brasileiras e no violão surgem as transcrições e os Prelúdios. Já nos anos 50, consagrado internacionalmente, em um tempo em que não se fixou em lugar algum, realizando turnês entre Europa e Estados Unidos, Villa-Lobos compôs o Concerto para violão e orquestra. O presente trabalho está delimitado às obras para violão solo do repertório do compositor, por isso neste estudo não iremos considerar as transcrições, a música de câmara e o Concerto. Sobre a Suíte Popular Brasileira, pode-se afirmar que é um conjunto de cinco peças da chamada ―primeira fase‖50 do autor, no qual seu envolvimento com a música popular era muito grande. É de conhecimento geral sua atuação em rodas de choro da cidade do Rio de Janeiro51 e a suíte demonstra bem o caráter popular que reflete o momento histórico entre 1908 e 1912, datas atribuídas às peças. Segundo Marco Pereira (Pereira: 1984: 87), sobre a Suíte Popular Brasileira: As peças são todas muito simples; nenhuma inovação especialmente importante, tanto ao nível da realização puramente técnica quanto ao nível do desenvolvimento musical. (...) As pulsações rítmicas da Gavota, Valsa, Schottish e Mazurka, na Suíte Popular Brasileira, são espelhos do caráter ora nostálgico, ora gracioso, da música popular instrumental da época. Evidentemente, estas peças já apresentam elementos musicais mais ricos em relação àqueles utilizados pelos compositores populares mas, em sua essência, nada é diferente. Já Turíbio Santos (1977:52,8)afirma que Villa-Lobos não estava contente com o termo ―suíte‖: Villa-Lobos disse-me, que a denominação de Suíte a essas cinco obras foi dada à sua revelia. E que não tolerava isso. ―Era suíte coisa alguma‖. Agora, 4 A primeira fase é identificada pela maioria dos autores estudados (Mariz, Béhague, Souza Lima, Tarasti) como sendo a época de suas primeiras obras, incluindo as viagens ao Sul, Norte e Nordeste do Brasil. A segunda fase se inicia com sua primeira viagem a Paris – 1923. 5 A informação de que Villa-Lobos ter freqüentado as rodas de choro consta em praticamente todos os livros biográficos e em depoimentos do próprio Villa-Lobos. 82 através de Mindinha52, sei que foi o próprio Maestro quem pôs essa denominação. Contradições enfim, que fazem história e que ajudam a colocar de cabelos brancos os pesquisadores da música, muito sujeitos a essa engrenagem complicada, que são os compositores. (...) Villa-Lobos não gostava do título dessa obra, dado mais por razões de edição que propriamente por uma intenção elaborada. O Chorinho, porque termina a Suíte, foi composto bem mais tarde, em 1923 em Paris. Em todo caso, essa coleção de músicas corresponde ao retrato musical do Rio de Janeiro no começo do século. Os títulos são sugestivos: MazurkaChoro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro, Gavotta-Choro e Chorinho. Aí, já estava o embrião dos Estudos e Prelúdios, mas é interessante notar que em nenhuma delas, (exceto o Chorinho) a região grave do instrumento tem papel preponderante, como sucederá a partir dos Doze Estudos, compostos em 1929. De fato o Chorinho, composto então em 1923, por ocasião da primeira estada de VillaLobos em Paris, é uma peça que, apesar de estar junto às outras da Suíte, possui outras características que não as da música popular pura e simplesmente como apontado pelos dois autores anteriores. No Chorinho já se nota uma harmonia mais elaborada e mudanças rítmicas complexas. Outro aspecto que demonstra a importância dada pelo compositor ao instrumento foi a inclusão do violão na série denominada Choros – apontada pelos biógrafos e musicólogos como uma das mais importantes realizações de Villa-Lobos. Trata-se de 14 Choros, os quais diferentes agrupações musicais são elencados, desde o violão ou piano solo passando por coro e orquestra. Os Choros n.º 1 que inicia a grande série é uma peça solo de violão, funcionando como um ponto de partida para as demais formações instrumentais que virão em seqüência. Segundo Béhague (1994:156), a série Choros, em especial, representa o primeiro grande passo em direção não somente à incorporação da inspiração nativa, mas também à assimilação de muitas técnicas composicionais contemporâneas européias. Conclui Béhague que para executar a série, Villa-Lobos começou com a expressão simplista do gênero urbano (Choros No. 1) e construiu gradualmente formas e expressões mais complexas em uma amálgama de batidas e peças de música tradicional nativa e Afrobrasileira, canções de roda, e outros gêneros de música de dança popular urbana, 6 Mindinha era o apelido de Arminda Neves D‘Almeida, segunda mulher de Villa-Lobos, que foi a fundadora e primeira diretora do Museu Villa-Lobos. Turíbio Santos e Mindinha Villa-Lobos tiveram uma longa convivência. 83 freqüentemente em uma atmosfera de acontecimento carnavalesco, e tudo com um vocabulário técnico decididamente modernista. Dentro da atividade musical, as obras direcionadas à formação técnica de um instrumentista, os chamados ―estudos‖, são de grande importância. No violão, há diversos compositores que dedicaram estudos para capacitar o violonista, em especial italianos e espanhóis, autores de vários tratados musicais, destacando-se Ferdinando Carulli (1770-1841) Mauro Giuliani (1781-1829), Matteo Carcassi (1792—1853), Fernando Sor (1778-1839), Dionísio Aguado (1784-1849) e mais tarde Francisco Tárrega (1852-1909)53. É de consenso geral que os 12 Estudos de Heitor Villa-Lobos revolucionaram a história do violão – são o grande legado do compositor às gerações futuras de violonistas; os Estudos se tornaram uma obra standard a todo violonista. Análises sobre os Estudos voltaram à tona recentemente devido à divulgação pelo Museu Villa-Lobos de novos manuscritos do compositor, nos quais surgem diferenças da versão publicada pela editora francesa Max Eschig. Acontece que a versão publicada foi baseada em originais, mas ainda havia uma outra versão do compositor (em posse do Museu), com algumas partes que são até muito diferentes da versão editada. Sabe-se, além disso, que há um terceiro material, pertencente ao violonista e professor uruguaio Abel Carlevaro (19182001). Carlevaro manteve contato direto com Villa-Lobos, foi ele inclusive quem estreou os 5 Prelúdios. Os estudos de Villa-Lobos para violão são comparados muitas vezes aos de Chopin. Os aspectos revolucionários podem ser sentidos pelo fato de que pela primeira vez o violão é explorado em sua dimensão física e ainda resultou em um material musical de grande expressão. Uma enorme gama de possibilidades técnicas foram trabalhadas e no resultado sonoro da partitura, pode-se depreender tanto Bach quanto Aguado54, sem esquecer de melodias brasileiras. Segundo Tarasti (1994: 241), os estudos têm como seus inegáveis paradigmas as entonações da música popular do Rio, mas carregam em si a referência das séries de estudos comuns à literatura musical do Ocidente (Bach, Chopin, Paganini, Liszt, Debussy). Os 5 Prelúdios estão entre as peças mais conhecidas do autor. Em sua origem o termo ―prelúdio‖ denota a introdução de uma obra musical ou a primeira peça que abre uma seqüência. No caso dos 5 Prelúdios para violão de Villa-Lobos, as peças são muitas vezes apresentadas como um conjunto só. Embora os prelúdios tenham sido todos dedicados à 7 Em 1992 realizei junto com a violonista Rosimary Parra Gomes um trabalho monográfico de iniciação à pesquisa sobre o tema, intitulado O Desenvolvimento das Escolas Violonísticas de 1750 a 1850. 8 Dionísio Aguado (1784.-1849) nascido na Espanha. Um dos pilares do violão no período clássico. 84 Arminda Villa-Lobos, cada prelúdio recebeu um título dado pelo próprio autor, em homenagens e reverências: 1 – Melodia Lírica - Homenagem ao sertanejo brasileiro. 2 – Melodia Capadócia – Melodia Capoeira – Homenagem ao Malandro Carioca. 3 – Homenagem a Bach. 4 – Homenagem ao Índio Brasileiro. 5 – Homenagem à Vida Social – Aos rapazinhos e mocinhas fresquinhos que freqüentam os concertos e os teatros do Rio. Turíbio Santos (1977:33) assim se pronunciou sobre os Prelúdios: ―As Baladas de Chopin são o piano. Os Prelúdios de Villa-Lobos são o violão‖. 85 86 87 CAPÍTULO 4. Biografia de Leo Brouwer. Juan Leovigildo Brouwer Mezquida nasceu em 1.º de março de 1939 em Havana. Seu pai era de origem holandesa, médico oncologista, aficionado por violão. A mãe de Brouwer morreu pouco antes de ele completar 12 anos. Ernesto Lecuona, o compositor de muitas músicas de sucesso, entre as quais Granada, era seu tio-avô, mas Brouwer não teve quase nenhuma convivência com ele. Uma influência maior teve mesmo sua mãe, que era musicista (Brouwer 1989:110): Mi madre si tuvo mas influencia – indirectamente, porque ella murió cuando yo tenía diez o once años – pues integró aquellas orquesta femeninas de los Aires Libres, como la Anacaona; tocaba la flauta, el clarinete, el piano, el saxofón, la batería, cantaba, fue solista de Lecuona y así conoció a mi padre; fue alumna de Ondina, de Junco, y su influencia fue muy importante para mi. Brouwer passou a viver com a tia materna Caridad Mezquida e começou a tocar violão aos 13 anos. Interessou-se pelo instrumento em uma das visitas à casa de seu pai, um amador do violão que nunca havia lido notação musical, apesar de sua família ser de músicos conhecidos (os Lecuona). Com Caridad, também aos 13 anos, ele inicia os estudos teóricos. Hernandez (2000:9) afirma que o pai de Brouwer tocava de ouvido, principalmente Granados, Tárrega, Albeniz, canções de César Portillo de la Luz, flamenco, os Choros n.º 1 de Villa-Lobos. Brouwer diz que ele tocava tudo de ouvido e sem uma nota errada. Em poucos dias ele já tocava farrucas e tanguillos. O entusiasmo pelo flamenco veio já daí. Em quatro ou cinco meses depois, tocava de ouvido também peças de concerto. Pouco tempo depois, Brouwer foi encaminhado para ter aulas com Isaac Nicola, o grande nome do violão clássico de Cuba. Por diversas vezes a importância desse encontro é relembrada (Brouwer 1989:109): Yo tenía doce o trece anos y estaba enamorado del flamenco, tocado como lo hacían Sabicas o Montoya, y una tarde Nicola me tocó la música del renacimiento, de los siglos XVIII e XIX, y supe entonces de mundos extraordinarios que me llegaron profundamente. En esto, por supuesto, decidió la sensibilidad y no la cultura, porque yo 88 era totalmente acrítico en cuestiones culturales. Eso es lo fundamental cuando pienso en Nicola. Ainda sobre Nicola, Brouwer esclarece a escolha pelo violão: (...)Yo no escogí la guitarra; la guitarra me escogió a mí. En La Habana de mi adolescencia, además del ejemplo de mi padre, que en su proyección bohemia guitarreaba muy bien, el instrumento se me facilitaba por su presencia constante en la cultura popular y lo accesible que resultaba para quienes no podíamos soñar con los recursos de que disponían las élites para su iniciación musical. El flamenco me tenía loco y yo quería ser un tocador de flamenco, pero con Isaac Nicola se me amplió el horizonte y descubrí un universo insospechado entre las seis cuerdas (...) El maestro y amigo (...) no sólo nos puso frente a una tradición, la española, y ante el modo en que ésta se fundía con nuestra identidad. (...) Pero lo cierto es que Nicola fue más allá de concebir un método y transmitir enseñanzas académicas. Su gran mérito radica en habernos incitado a entender la guitarra como una aventura intelectual, en hacernos saber que ese instrumento era tan respetable como el que más, en que la aparente humildad de la guitarra escondía una nobleza indescriptible e infinita. (Hoz 1999) Orozco (1999:4) afirma que Brouwer teve como nutrientes de seu panorama sonoro a música popular de seu entorno, a prática musical da mãe e a afinidade violonística do pai. Além do interesse pelo violão flamenco, Orozco afirma que Brouwer esteve sempre muito interessado nos rituais e toques de origem afro-cubana. Brouwer graduou-se no Conservatório de Peyrellade em 1955, enquanto estudava violão com Nicola. Hernández (2000:13-14) tem dados mais específicos sobre essa ocasião: Brouwer tocou para a banca examinadora obras de Fernando Sor, Isaac Albeniz, Villa-Lobos, que não se tocava muito. Poucos meses depois, fez seu debut em 22 de julho 1955 no Lyceum Lawn Tennis Club tocando o mesmo que na prova: Milan, Sor, Handel, Bach, Tárrega, Granados, Pujol, Albeniz, Ponce, Buffaletti, Torroba e Villa-Lobos (um estudo). Como observa Orozco (1999:4), seu aprendizado e período de formação como violonista durou três ou quatro anos somente, quase paralelos às suas primeiras composições violonísticas e de câmara. Hernández (2000:12) comprova que os primeiros trabalhos de Brouwer já datam de 1954, eram arranjos somente, até que Nicola sugeriu que ele compusesse algo. Ele então fez exercícios de composição e estudos simples com influência de Sor, 89 Tárrega, Carcassi e Aguado (os baluartes da escola clássica de violão), além de alguns prelúdios. A Fuga n.º 1 já vem daí, assim como as Piezas sin titulo entre 1954 e 1955. Alguns autores, como Century (1987:162) e Wistuba (1991:30), apontam o estudo da pintura, anterior ao da música, em especial a pintura de Paul Klee e alguns aspectos da estética da escola de Bauhaus como um outro interesse do jovem Brouwer. Certos traços do trabalho visual de Klee e das partituras de Brouwer já foram comparados esporadicamente por estes dois autores. Após seu debut, segue-se uma série de recitais em sociedades culturais. Brouwer também iniciou um trabalho em duo com o amigo e violonista Jesus Ortega. Segundo Hernandez (2000:25), desde muito cedo, com menos de 18 anos, Brouwer freqüentava círculos de debates e palestras em Havana, nos quais se discutiam temas como cinema, artes plásticas e música. A Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, em Havana, o Cine Club Visión, também em Havana, e a Galeria de Artes Plásticas de Santiago de Cuba eram três instituições importantes antes da Revolução, todas as três ligadas ao Partido Socialista Popular e divulgadoras do que havia de mais moderno na cultura e já as idéias revolucionárias. Na Nuestro Tiempo e no Cine Club Visión – Brouwer participou ativamente, tocando, assistindo ou realizando palestras. O Cine Club Visión foi responsável pela realização do primeiro evento no mundo a levar o nome de Villa-Lobos: em 12 de dezembro de 1956 aconteceu o ―Festival VillaLobos‖, com uma palestra de José del Campos Valdés intitulada “Villa-Lobos, cantor de un pueblo”. Depois da palestra, Leo Brouwer tocou quatro Estudos de Villa-Lobos e Jesus Ortega tocou dois Prelúdios e os Choros n.º 1. Brouwer estava com 17 anos e Ortega, 21. Após a Revolução Cubana de 1959, uma equipe de educadores reformulou a educação: o sistema de ensino foi unificado em todo o país e os conservatórios privados foram assimilados pelo novo governo. Leo Brouwer colaborou na elaboração do currículo no ensino 90 de violão em Cuba. Como já era um destaque na música cubana, ele foi indicado a receber uma bolsa de estudos. Embarcou a 14 de outubro de 1959 para Nova York, para estudar na Julliard School of Music onde teve aulas de composição principalmente com Vincent Persichetti. Na Universidade de Hartford, em Connecticut, Leonard Rose ofereceu a Brouwer dar aulas de violão em troca de estudos com Isador Freed. Ficou nos Estados Unidos durante quase um ano, e teve chance de permanecer, pois já tinha uma posição de professor dentro de uma grande universidade. A 24 de julho de 1960, Brouwer volta a Havana, devido ao agravamento das relações diplomáticas entre os dois países. Segundo Brouwer, sua ida para os Estados Unidos serviu mais para ele entrar em contato com o grande acervo de livros, partituras e gravações das quais fez um estudo rigoroso. Apesar das aulas que teve, continuou se considerando um autodidata e não houve substancialmente qualquer influência perceptível dessa estada norte-americana em sua obra. No curto período nos Estados Unidos, Brouwer teve alguns alunos particulares, e compôs a primeira série dos Estudios Sencillos, fruto de uma preocupação com os aprendizes do instrumento. Century (1987:152-153) afirma que o trabalho composicional que Brouwer começou a empreender foi essencialmente autodidata, desenvolvendo uma disciplina composicional, escrevendo para muitos outros instrumentos, além do violão. As primeiras obras foram feitas, segundo o próprio Brouwer (Century 1987:153, Gordon 1986), para suprir uma lacuna do repertório, já que o jovem instrumentista gostaria de tocar no violão obras similares às de Bartók, Debussy e Stravinsky. Century constata que desde as primeiras peças, havia uma tendência à musica contemporânea. Sua primeira peça orquestral, as Tres Danzas Concertantes (1957) para violão e orquestra, representa um importante passo em direção à música do século XX. 91 Imediatamente após sua volta a Havana, devido à crise política entre Estados Unidos e Cuba, Brouwer começa a dar aulas de Harmonia e Contraponto no Conservatório Amadeo Roldán. Inicia também um trabalho junto ao ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica55. Também realiza uma turnê pelo país todo. Nesta fase, envolve-se com a chamada vanguarda européia, em especial os países do Leste Europeu, com o qual Cuba começa a se ligar mais devido à opção ideológica. O Centro Nacional de Cultura envia Brouwer para representar Cuba no V Festival de Música Contemporânea Outono em Varsóvia, em 1961. Lá Brouwer assistiu a muitas palestras e a que mais impacto lhe causou, segundo informa Hernández (2000:60) foi sobre meios digitais na música eletrônica e concreta, oferecida por um membro da Faculdade de Música da Universidade de Colômbia, Nova York, além das estréias de Trenody em homenagem as vítimas de Hiroshima de Krzysztof Penderecki, Zyklus para percussionista de Stockhausen, técnicas modernas de vários instrumentos como percussão, flauta (Severino Gazzelloni) e piano com o duo Kontarki da Polônia, além de obras de Cage, Maderna, Berio, Bussoti, Matsudaira, Varése, Boulez, Gorecki, Kilar. Brouwer afirma (1989: 22-27) que quatro anos antes de ir a Varsóvia havia ouvido gravações de Stockhausen, Boulez e Feldman que causaram impacto a ele e a já outros colegas. Diz também Hernández que sua ida ao Festival contribuiu para o intercâmbio entre Cuba e Polônia. Brouwer afirma (McKenna 1989) que na volta a Cuba ele trouxe uma série de partituras de compositores do evento - Penderecki, Tadeusz Baird e Bussotti – e, neste sentido, o contexto cubano, do qual Brouwer começa a emergir como uma liderança, aproxima-se muito da chamada escola polonesa, a qual apesar de integrar o bloco socialista 1 Para o cinema cubano, Brouwer comporia mais de uma centena de trilhas sonoras. Receberam destaque Hanói, Martes 13 (1967), Memórias Del Subdesarrollo e Lucia (1968). Um filme premiado em Veneza foi: La primera carga al machete de 1969, comparado a Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber, por causa do uso do trovador que narra a história. No filme cubano, o trovador é Pablo Milanés. 92 diferenciou-se por uma liberdade baseada na sua tradição cultural e forte catolicismo. É pertinente mencionar que, em agosto de 1961, o Primeiro Encontro Nacional de Artistas e Escritores define como prioridades: a alfabetização, a valorização das tradições nacionais e a criação da UNEAC – União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba. Nessa ocasião, Brouwer realiza masterclasses no exterior, escreve um pequeno compêndio de Harmonia Contemporânea, além de dar assessoria musical à Rádio La Habana. Acosta (1989) relata que Brouwer também teve experiência na área popular por anos de trabalho no Teatro Musical de La Habana. Segundo Century (1987:157), Brouwer inspirou uma nova geração de estudantes cubanos de música no pós-revolução. Nesta época, Brouwer trabalha com Juan Blanco (1920-), um importante compositor cubano de uma geração anterior a de Brouwer, que iniciou o emprego de técnicas contemporâneas em suas composições. Blanco obteve estas técnicas por meio do contato direto com a criação internacional em festivais e intercâmbios com a Europa, em especial a escola polonesa. Segundo Cantero (1990), Blanco, em uma terceira fase de seu processo composicional, esteve à frente do movimento da vanguarda cubana da década de 60 por uma necessidade de ruptura com uma linguagem e desejo de criar outra. Ocorre então uma associação entre Blanco, Brouwer e Manuel Duchesne Cuzán, regente da Orquestra Sinfônica Nacional de Cuba, que decidem empreender um programa de obras de vanguarda, compondo e estreando o material inovador. Mas, segundo Cantero e Hernández (2000:90), os artistas tiveram de enfrentar incompreensões quanto à estética das obras compostas. As obras de Blanco, Brouwer e Carlos Fariñas foram as primeiras a expressar um afã de renovação da vanguarda musical. Segundo Wistuba (1991), com a peça Sonograma I de 1963 para piano preparado, Brouwer se destaca na chamada Vanguarda Cubana, ao lado de Juan Blanco, Carlos Farinãs e Roberto Valera. Variantes para un 93 percusionista (1962) é também um marco da obra da vanguarda internacional, sendo a primeira obra de música aleatória escrita em Cuba. Ao mesmo tempo, Brouwer não se esquiva da área popular e em 1963 realiza um trabalho paralelo ao atuar com Chucho Valdés, Paquito D‘Rivera e grupo Irakere no Teatro Municipal de Havana. A pedido de Luis Trápaga, compõe um balé, Elogio de la Danza (1964), talvez a sua obra mais executada e gravada. Em 1964 Brouwer chefia a Divisão de Música do ICAIC e no mesmo ano ocorre a primeira audição de música concreta e eletroacústica com obras de Blanco, Fariñas e Brouwer, sob regência de Duchesne, à frente da Sinfônica Nacional. Este é também o ano do embargo das nações, liderado pelos Estados Unidos, às atividades econômicas com Cuba. Durante todo esse tempo, Brouwer não deixou de se apresentar como intérprete ao violão, em muitos teatros de Cuba e alguns do Leste-europeu. Um evento em especial, aconteceu em 1964, no Palácio de Bellas Artes, em 7 de setembro, com um programa dedicado integralmente à música de Villa-Lobos. Nesta ocasião se celebrou a Festa Nacional Brasileira, como parte da Jornada por la solidaridad Brasil-Cuba. Brouwer interpretou os Choros, alguns Prelúdios e Estudos. Juan Blanco, a partir de 1968, introduziu a música de vanguarda no cotidiano do homem cubano – hospitais, pavilhões de exposições, cinema. Leo Brouwer, próximo a ele, dizia que essas ações expressavam ―a participação constante do criador nas tarefas sociais‖ (Cantero 1990). Ao criar-se o GES, Grupo de Experimentación Sonora, do ICAIC, Leo Brouwer realiza um importante trabalho docente que frutificaria no movimento musical da Nueva Trova Cubana - Silvio Rodriguez e Pablo Milanés são os dois nomes mais lembrados deste grupo. 94 Sobre este importante período da produção de Brouwer, Leonardo Acosta (1989), um dos participantes do grupo, afirmou que o GES, fundado em 1969, foi idéia de Alfredo Guevara, então diretor do ICAIC, inspirado e impactado pelo que havia ouvido e visto no Brasil - um movimento musical renovador (o Tropicalismo): Chico Buarque56, Gilberto Gil, Elis Regina, Baden Powell, Edu Lobo, Caetano Veloso, Jorge Benjor (então Jorge Ben), Gal Costa, Milton Nascimento, Maria Bethânia. O GES partiria de raízes próprias para fazer uma renovação, aproveitando o que pudesse para enriquecer o trabalho: nova canção (ou nova trova), jazz, rock, samba, novas técnicas eletrônicas, e de gravação, ou músicas como barroca ou até hindu. A obra do GES encaminhou a nova canção cubana ao Movimiento Nueva Trova, iniciado em 1972, dentro de parâmetros e contextos musicais mais amplos. Pablo Milanés, Silvio Rodriguez, Noel Nicola, Eduardo Ramos eram os nomes mais conhecidos da Nova Trova. Todos tocavam violão, e Sergio Vitier, também violonista, foi encarregado por Leo Brouwer a arregimentar outros compositores para que participassem dos cursos. Os estudos no GES eram teóricos e práticos, que se combinavam com audições de uma gama de estilos: Beethoven a John Coltrane, Gilberto Gil a Ravi Shankar, Webern e Xenakis, Zappa e Sindo Garay, Juan Blanco, enfim de Bach a Beatles. Além de Leo Brouwer, os professores foram Juan Elósegui e Federico Smith. Brouwer deu aulas de harmonia, instrumentação, orquestração, contraponto, fuga, formas musicais e composição. Segundo Acosta, o resultado foi positivo, pois em um tempo curto quase todos os estudantes foram capazes de escrever uma partitura para cinema ou realizar a orquestração de uma canção. A princípio, diz Acosta, o GES foi visto com desconfiança e ceticismo pelo corpo administrativo do ICAIC e pelos próprios diretores de cinema, mas pouco a pouco os 2 O evento mais importante do GES foi o Festival Brasil-Cuba em setembro de 1973, com a apresentação de obras (censuradas no Brasil) de Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Gilberto Gil. Brouwer realizou versões de Deus lhe Pague, Samba de Orly, e Construção. 95 cineastas começaram a se aproximar do grupo e a encomendar seus serviços. Em seus primeiros anos o GES viveu essa situação de isolamento, chegando até a acontecer de alguns organismos se negarem a difundir a música feita pelo GES, inclusive órgãos de difusão oficial como TV, rádio e disco. Dirigentes do ICAIC, como Manuel Duchesne Cuzán, também era um dos descrentes. Leo Brouwer por várias vezes saiu em defesa das formas experimentais do ensino e da própria música em geral. É muito possível que tenha encontrado oposição de setores governamentais cubanos, cultores de uma tradição nacional. Por meio de seus muitos artigos em revistas e boletins do governo cubano nos anos 70, percebe-se que o compositor cubano esteve em uma posição de defensiva a estas possíveis críticas. O tom geral dos artigos em questão defendem que não há necessidade de se fazer concessão para estar mais próximo do público em geral, mesmo porque Brouwer não subestimava o discernimento do público, e em seus recitais sempre mantinha um diálogo com a platéia. Além disso, inovar para ele era uma condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução; restringir ou subestimar as massas é que seria uma atitude burguesa. Por coincidência ou não, uma das obras de maior repercussão de Leo Brouwer neste período é La tradición se rompe... pero costa trabajo (1967-69), funcionando quase como uma ressonância musical ao momento. Na peça, Brouwer quis mostrar todos os tempos convivendo em um mesmo tempo: trechos de músicas de Bach, Beethoven, Mendelssohn, Bartók, Haendel, Liszt são apresentados com várias superposições, para mostrar a convivência possível de culturas simultâneas, e em um cartaz levantado pelo maestro, está escrito: ―Nessa obra, o público se manifesta‖. O resultado sonoro foi surpreendente e a partitura tornou-se um hit entre os adeptos e o público de música de vanguarda. Century (12987:158) conclui que os anos 60 foram um período de grande criatividade artística na Cuba socialista, mas este período de experimentação foi quebrado em 1970 com a 96 crise econômica provocada pela queda do açúcar no mercado internacional. As lideranças políticas deram prioridade a uma volta às tradições nas Artes. Uma virada na carreira de Brouwer ocorreu nesta ocasião. Os acontecimentos antecedentes foram as presenças dos compositores Hans Werner Henze (1926-) e Luigi Nono (1924-1990) que estiveram em Cuba em 1967 e de 1969 a 1970, respectivamente. Os dois conheceram o trabalho de Leo Brouwer e a partir daí sua música tornou-se conhecida internacionalmente (Europa). Então, em 1971, a convite da Academia Alemã de Artes, Brouwer realizou uma turnê na Alemanha, na qual executou a parte do violão na obra El Cimarrón de Henze. Nesta oportunidade, conduziu sua própria sinfonia Exaedros II com a Filarmônica de Berlim, além de ter gravado discos para a Deutsche Grammophon. De 1972 a 1973, Brouwer deu aulas em Berlim (Oriental), enquanto dedicou-se a finalizar uma tetralogia: La Espiral Eterna, para violão solo, Per Sonare a Due, para dois violões, Per Sonare a Tre para flauta, viola e violão, e o Concerto n.º 1 para violão e pequena orquestra. Esta tetralogia é um marco dentro do período de vanguarda do compositor. Apesar da oportunidade de permanência na Alemanha, o compositor decidiu retornar a Cuba. Em entrevista concedida a Rodolfo Betancourt (1998), o compositor esclareceu que nunca foi influenciado por Henze ou Nono, nomes a quem ele deve a difusão de sua música. Agradecimentos, Brouwer faz sim à Revolução Cubana, motivo pelo qual, segundo ele, os dois músicos europeus (Henze e Nono) foram atraídos à ilha. De volta a Havana, continuou a produzir mais e mais, só que com a diferença de que agora seu nome era constantemente solicitado na Europa. Sobre a experiência dessa época na Alemanha, Brouwer afirmou (Hernández 2000:142): Tuve la experiência en Europa de que mi música se llamó cubana, eminentemente cubana, por críticos muy sérios que a se vez han celebrado la actualidad de esta música y su autenticidad. Mi obra no fue recibida como exótica y es una Victoria. El elogio que se hace de un Julio Cortazar o de un Gabriel García Márquez en la novelísitcaa universal, es 97 el que pude percibir directamente en estas audiciones de mi música a través de la crítica. Ya no tenemos aqui el exotismo de la maracá y el bongó. Nos anos 80, após 600 recitais em três décadas de atividade, Brouwer sofre um acidente na mão (uma infecção em uma das unhas) que o afasta da atividade de concertista e o aproxima mais das atividades como regente. O violonista brasileiro Fábio Zanon (1999) assim se expressou sobre Leo Brouwer intérprete: Na verdade, Brouwer era um intérprete excepcional. Ele não soa polido o suficiente para os padrões de hoje, mas era um desbravador: caloroso, inventivo, com uma ampla gama de colorido. Nas suas gravações e inúmeros vídeos piratas que ainda circulam, tem-se a forte impressão de improviso controlado. Em alguns momentos, a pulsação é pensada mais em períodos que em compassos, o fraseado segue o temperamento mais que uma rígida lógica estrutural. Por outro lado, em peças atonais, de maior complexidade rítmica, ele é muito mais rigoroso - à exceção de suas próprias obras, que são tocadas sempre com uma atitude mais poética que arquitetônica. O disco que fez para a Deutsche Grammophon traz um repertório - Halffter, Arrigo, Bussotti - que nenhum outro violonista poderia sonhar em tocar na época. Sua presença cênica era (e é) marcante: um problema de coluna não permitia que olhasse para o braço do violão, mantendo sempre a cabeça ereta, o que lhe dava um ar reverente; e a vocação teatral já se evidenciava na gestualidade. Ademais, foi um dos primeiros violonistas a incorporar as investigações estilísticas na interpretação de música antiga, optando por um método de articulações curtas e uma profusão ornamental que soa até um pouco maneirista demais para os padrões atuais (basta examinar sua gravação de sonatas de Scarlatti). Uma de suas últimas apresentações, no Festival de Toronto em 1984, incluiu, num programa de 3 horas de duração, uma improvisação sobre a ―Chaconne‖ de Bach que ganhou um status quase legendário. Como compositor, sua carreira entra na terceira fase, chamada ―Nueva Simplicidad‖, a qual regressa à linguagem tradicional e coloca à sua disposição música popular, folclórica, de vanguarda e erudita – El Decameron Negro é a obra solo que melhor representa essa fase. Como professor e regente seu nome é cada vez mais exigido no exterior. Já conduziu grandes orquestras, em destaque a Orquestra Filarmônica de Berlim, Orquestra Sinfônica Nacional Escocesa, Orquestra de Concertos da BBC e Orquestra Sinfônica Nacional do México. Sua discografia abarca mais de 150 gravações, entre seu trabalho de intérprete e regente até a gravação de obras suas por outros intérpretes. 98 Em 1980 Brouwer é escolhido como representante no Conselho Internacional de Música da UNESCO e em 1987 é indicado para Membro de Honra da UNESCO, máxima distinção a um músico por sua atividade musical. Em 1982 Leo Brouwer cria e preside o Concurso e Festival Internacional de Violão de Havana, que acontece a cada dois anos. Outros cargos pelos quais exerceu função foram: supervisor musical do Ministério da Cultura de Cuba e diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Havana. Regeu a Filarmônica de Berlim, a Orquestra da BBC de Londres e de Toronto, foi diretor de festivais de violão na Martinica, Canadá, França, Bélgica, Finlândia, Hungria, Alemanha e Japão. É membro do comitê honorário da Instituzione Musicale Italo-Latinoamericana em 1989. Também passou a organizar eventos violonísticos, na maioria, em vários países. A partir de 1992, torna-se o diretor de uma nova orquestra da região de Andaluzia, que encamparia as cidades de Sevilha, Granada e Málaga; é a Orquestra de Córdoba, feita principalmente para difundir a imagem da região. Tem se destacado à frente dessa orquestra, à qual também se dedica a tarefas educacionais e de formação de público.57 Tem acumulado várias honrarias: em 1982, recebe a Medalha Alejo Carpentier, outorgada pelo governo de Cuba; em 1985, por ocasião dos 30 anos de atividades o governo cubano homenageia-o com uma série de eventos, exposições e concertos; na mesma ocasião a UNESCO também o homenageia com um concerto na Alemanha; em 1993, recebe o prêmio Cordobés del año; em abril de 1999 recebe em Andaluzia, Espanha, o Prêmio Manuel de Falla; em maio do mesmo ano, em Havana, recebe o Prêmio Nacional de Música do Instituto Cubano de Música. 3 Segundo Hernández (2000:312), ao final de 1993, mais de 5 mil alunos já haviam assistido a orquestra, que realiza concertos didáticos. 99 Cronologia 1939 – A 1.º de março, nasce Juan Leovigildo Brouwer Mezquida. 1952 – Aos 13 anos inicia seus estudos violonísticos com seu pai e estudos teórico-musicais com sua tia Caridad Mezquida. Em pouco tempo passa a ter aulas com Isaac Nicola. 1955 – Gradua-se no Conservatório de Peyrellade enquanto prossegue as aulas com Nicola. 1956 – Começa a compor. 1957 – Compõe sua primeira obra orquestral Tres Danzas Concertantes, para violão e orquestra. 1959 – Triunfa a Revolução Cubana. O ensino é reformado. Todas as escolas particulares tornam-se públicas. Brouwer recebe uma bolsa para estudar nos Estados Unidos. 1960 – Retorna a Cuba devido à crise política entre EUA e Cuba. 1961 – Participa do Festival de Inverno de Varsóvia, no qual entra em contato com a linguagem de vanguarda. De volta a Havana, reúne um grupo de colegas que passa a compor várias obras no estilo da linguagem de vanguarda. Acumula os cargos de diretor do Departamento de Música do ICAIC, cátedra de Composição no Conservatório ―Amadeo Roldan‖ e assessoria de música na Rádio Havana. 1969 – Participa do Grupo de Experimentación Sonora – como professor de técnicas de composição para artistas como Pablo Milanés e Silvio Rodríguez. 1971 – É convidado para uma turnê na Alemanha, na qual realiza a parte do violão na obra El Cimarron de H. W. Henze, além de conduzir a sua sinfonia Exaedros II com a Filarmônica de Berlim e gravar discos solos para a Deutsche Gramophon. 1972-73 – Dá aulas em Berlim e compõe a trilogia Per Sonare a Due, Per Sonare a Tre e o Concerto n.º 1 para violão e orquestra. 100 1973 – Retorna a Cuba. 1980 – É escolhido representante no Conselho Internacional de Música da UNESCO. 1982 - Cria e preside o Concurso e Festival Internacional de Violão de Havana, que acontece a cada dois anos. 1986 – Recebe em Havana homenagens por seus 30 anos de vida artística. 1987 – É escolhido para Membro de Honra da UNESCO 1992 – Torna-se o regente da Orquestra de Córdoba na Espanha. 1998 – Recebe o prêmio Manuel de Falla, na Espanha. 1999 – Recebe em Havana o Prêmio Nacional de Música do Instituto Cubano de Música. 101 4.1. A OBRA PARA VIOLÃO DE LEO BROUWER Até bem recentemente, não se havia chegado a um consenso sobre o número total de obras para violão de Leo Brouwer. Mesmo seu conjunto total de peças não estava disponível em nenhuma fonte biográfica. Isto aconteceu porque o próprio Brouwer não se preocupou em datar as primeiras obras e chegou mesmo a jogar fora algumas peças, salvas em parte por amigos do compositor. Com o trabalho da pesquisadora Isabelle Hernández concluído em 2000, por fim o primeiro catálogo completo do compositor foi realizado. Graças a esse material, o número exato de seu conjunto de obras para violão solo está em 38 títulos, iniciados em 1954, sendo a peça mais recente datada de 2000 (Veja catálogo ao final deste capítulo). Leo Brouwer começou sua carreira de compositor escrevendo obras para o violão, instrumento no qual iniciou seu aprendizado musical. O tratamento que deu ao instrumento contribuiu em trazer1: 1. novos efeitos técnicos (pizzicati alla Bartók, a percussão com ambas as mãos nas cordas do instrumento)2; 2. fatores extra-violonísticos (tocar com arco, bater no tampo do violão, apoiar o instrumento sobre as pernas e utilizar artefatos metálicos e de cristal); 3. mudanças morfológicas (utilizar procedimentos de outros estilos e trazê-los simultaneamente para o violão clássico, como rasgueados do flamenco, glissandi do blues, e usar afinações não-tradicionais ao instrumento)58. 1 Estes procedimentos são apresentados por Schorn (1995), Hernandez (2000: 240) e o próprio Brouwer (1989:88) 2 O pizzicato é um recurso utilizado em instrumentos de arcos no qual se pulsa a corda com o dedo (em vez do arco); já no pizzicato alla Bartók trata-se dos pizzicatos estalados, criados por Bartók, que Brouwer trouxe para o violão e que produzem um som percussivo. 3 Rasgueados são os movimentos típicos do violão flamenco, no qual a mão direita executa volteios com os dedos e parte das mãos, de acordo com a escolha do executante. Glissandi são os efeitos produzidos pelo escorregar de uma nota, passando por todos os sons, até chegar à nota destinada, dando um efeito sonoro de continuidade. 102 Estes procedimentos adotados pelo compositor advêm de seu propósito, precocemente idealizado, de tratar o violão ―como se fosse uma orquestra‖ (Gordon: 1986, Betancourt: 1999, Schorn 1995, Brouwer 1989:88), motivo pelo qual afirma ser ―o instrumento portátil mais completo‖ (Hoz:1998). Suas primeiras composições datam da época ainda de estudante, aos 15 anos, quando era aluno de Isaac Nicola. A carreira como compositor e intérprete caminharam lado a lado, até o momento em que Brouwer decidiu-se exclusivamente pela composição. De acordo com Century (1985:153) e Gordon, após conhecer com uma rapidez impressionante toda a literatura existente para violão, Brouwer sentiu a necessidade de começar a compor. Isto se deu pelo fato de que ele gostaria de oferecer ao instrumento um paralelo às peças de Bartók, Manuel de Falla, Stravinsky e Debussy. A primeira vez que compôs, declarou a Century (1985:152), sentiu uma mudança radical em sua vida, que ele chamou de ―um momento mágico‖, no qual se realizou imensamente. Ainda assim, suas atividades como intérprete prosseguiram por um longo tempo. Suas primeiras peças são marcadas por elementos populares unidos a um desenvolvimento artístico já presente, como em Prelúdio (1956), Pieza sin Titulo n.º 1 (1956), Danza Característica (1957) e Estudios Sencillos (1959-61). Em pouco tempo Brouwer passou a compor também para outros instrumentos e formações camerísticas diversas, incluindo orquestrações (Tres Danzas Concertantes, para violão e orquestra, 1957). Sobre a Pieza sinTítulo n.º 1, o violonista brasileiro Fábio Zanon (1999:13) ressalta: A ―Pieza sin titulo n.º 1‖ já traz a certeza da forma, a economia de material, o uso da essência rítmica do folclorismo ao invés da cópia de clichês, a perfeição na condução das vozes – tudo isso numa experienciazinha de 2 minutos de uma rapaz de 17 anos, uma micro obra-prima. . 103 Após a Revolução Cubana de 1959, a equipe de educadores do governo de Fidel Castro reformulou todo o sistema de ensino do país. Isaac Nicola e alguns de seus alunos, entre os quais Leo Brouwer, ficaram responsáveis pelas mudanças no ensino de violão (Amador 1992:19). No mesmo ano, o governo cubano ofereceu a Brouwer uma bolsa para estudar em Nova York, na Julliard School of Music e na Hartford University. Em Nova York, Brouwer compôs uma das principais páginas do repertório violonístico, a primeira série de seus Estudios Sencillos (estudos simples). Para auxiliar sua sobrevivência na cidade norte-americana, Brouwer dava aulas particulares, daí surgiram estes estudos que ele ia compondo de acordo com as necessidades de cada aluno. O conjunto destas peças está entre as obras mais tocadas pelos estudantes de violão e, muitas vezes, é apresentado em recitais. Imediatamente após sua volta a Havana, devido à crise política entre Estados Unidos e Cuba, Brouwer se envolve com a chamada vanguarda européia, em especial os países do Leste Europeu, especialmente depois de sua ida ao Festival de Outono de Varsóvia, na Polônia, em 1961, no qual o jovem compositor presenciou as estréias mundiais de obras de Witold Lutoslawsky (1913-1994), Iannis Xenakis (1922-), Gyorgy Ligeti (1923-), Karlheinz Stockhausen (1928-) e Kristof Penderecki (1933-). O contato, entretanto, não o desviou de seu estilo composicional; Brouwer utiliza os elementos da vanguarda como ferramentas de trabalho, ligando-os aos traços da música cubana, iniciando uma nova fase, junto com outros compositores – Juan Blanco (1920), Héctor Ângulo (1932), Carlos Fariñas (1934), Roberto Valera (1938). As obras mais significativas deste período para o violão são Canticum (1968), La Espiral Eterna (1970), Parábola (1973) e Tarantos (1974). Como prova de que Brouwer não se fixa a um elemento como única forma de trabalho composicional, é que em 1964, em plena fase vanguardística, 104 ele compôs Elogio de la Danza, que em termos de linguagem é um retorno à expressão tradicional cubana. Quando os compositores Hans Werner Henze (1926-) e Luigi Nono (1924-1990) estiveram em Cuba em 1967 e de 1969 a 1970, respectivamente, conheceram o trabalho de Leo Brouwer. O contato de Brouwer e Henze rendeu o trabalho de composição El Cimarrón de Henze, que tem uma parte de violão especialmente composta para Brouwer, que auxiliou na adoção de idéias para a parte. Em 1971, a convite da Academia Alemã de Artes, Brouwer realizou uma turnê na Alemanha, na qual executou a parte do violão na obra El Cimarrón. Nesta oportunidade, conduziu sua própria sinfonia Exaedros II com a Filarmônica de Berlim, além de ter gravado discos para a Deutsche Grammophon. Ficou em Berlim (Oriental), onde deu aulas, até 1973, e dedicou-se a finalizar uma tetralogia que é um marco dentro do período de vanguarda do compositor: La Espiral Eterna, para violão solo, Per Sonare a Due, para dois violões, Per Sonare a Tre para flauta, viola e violão, e o Concerto n.º 1 para violão e pequena orquestra. Na volta a Cuba, seu estilo composicional retorna a valores nacionais; sua explicação para este retorno, no entanto, passa por uma questão de ―saturação da linguagem‖ (Betancourt:1998). Sustenta Brouwer59 que, após um pouco mais de uma década de utilização dos elementos de vanguarda, ele ficou saturado com a dita linguagem, por suas características pulverizadas, ásperas e, principalmente, tensionais, das quais ela não conseguiu se livrar até hoje, causando a este tipo de música um defeito relacionado com a essência do balanço composicional, um conceito que está presente na história: movimento, tensão e seu conseqüente relaxamento. Em suma, a vanguarda, na opinião de Brouwer, carece de um relaxamento das tensões, indo contrariamente às leis da natureza, na qual os opostos, ou os contrastes, estão sempre atuando – não há ser vivo que não descanse – diz o cubano. Assim, 59 Entrevistas em Betancourt e Wistuba (1989) 105 decidiu por uma regressão (palavras dele) que o trouxe de volta a uma simplificação dos materiais composicionais. Além desse retorno a uma linguagem mais acessível ao público, à utilização simultânea de música erudita, de vanguarda popular e folclórica, Brouwer também passa a fazer uso do minimalismo.60 Desta nova fase, destacam-se as obras El Decameron Negro (1981), a trilogia Paisaje Cubano con Lluvia (1984), para orquestra de violões, Paisaje Cubano con Rumba (1985), para quarteto de violões e Paisaje Cubano con Campanas (1986) para violão solo. Os termos usados para esta nova fase do compositor cubano variam muito em vários autores: pós-vanguarda, Hiper-Romantismo Nacionalista, neo-romantismo, minimalista ... mas Brouwer tem afirmado o termo Nueva Simplicidad como o mais afim a suas intenções, que passam pela convivência entre as diferentes linguagens: os elementos advindos da música popular, da música clássica e da música de vanguarda. As considerações que músicos consagrados já fizeram de seu trabalho, demonstram ao mesmo tempo respeito e certeza de um futuro garantido em suas mãos. O compositor cubano Harold Gramatges (1988:16) afirmou que sua fértil imaginação e maestria técnica abriram caminhos inimagináveis ao mundo tímbrico do violão; com seus conjuros mágicos surpreendeu ao criador musical contemporâneo. Colin Cooper (1985:13), editor da revista inglesa Classical Guitar, a mais importante publicação de violão existente, afirmou que Brouwer é o maior compositor vivo do violão: ―Não é uma frase fácil para qualquer contexto, mas considerando todos os feitos é impossível pensar em outro compositor com um melhor direito a essa designação‖ (tradução minha). Norton Dudeque (1994:98) também não hesita em admitir Brouwer como o grande nome da atualidade: 60 O Minimalismo é um procedimento usado em composição, mais fortemente ligado aos nomes dos norteamericanos Philip Glass e Steve Reich. No minimalismo são utilizadas estruturas mínimas (células) que são repetidas em várias seqüências. 106 (...) sem dúvida, e reconhecidarnente, a figura mais importante da música latinoamericana atual para violão é o cubano Leo Brouwer. (...) Também é importante sua contribuição como violonista, com excelentes gravações de obras contemporâneas. A obra musical para violão de Brouwer é uma das mais importantes do repertório atual. Na década de 80, a intelectualidade cubana discutiu muito se poderia afirmar-se a existência de uma escola cubana de violão, assim como se considerava a escola de balé. Leonardo Acosta (1986) confirmou a papel preponderante de Brouwer nessa designação de escola cubana, sem entretanto deixar de ponderar sobre o momento histórico e a presença de outras personagens: (...) a escola cubana de violão é uma realidade incontestável. Isso se deve por uma parte à crescente relevância da figura de Leo Brouwer no mundo violonístico contemporâneo, da Europa até o Japão e as duas Américas, por outro lado o êxito de alguns jovens violonistas formados por escolas após a Revolução e em terceiro lugar por causa de compositores como Harold Gramatges, Héctor Ângulo e Carlos Fariñas. E, finalmente, por causa do surgimento de escolas violonísticas afins como Argentina, Brasil, República Democrática Alemã, Canadá, Tchecoslováquia, Japão etc.. Aqui é o momento também para esclarecer que a música de Brouwer surge em uma época profícua do violão mundial. O violão moderno passou por três fases de relevo: a época de Francisco Tárrega, criador de uma escola, com novos aportes técnicos, embasados também pela definição da estrutura física do instrumento; a fase dos anos 20, quando Andrés Segovia se uniu a grandes nomes da composição mundial e obteve uma ampliação do repertório violonístico; e a fase dos anos 60 e 70, chamada de boom mundial do violão, favorecida pela grande atuação de intérpretes e autores. O boom aconteceu por causa da atuação de muitos nomes como Julian Bream, John Williams, Ida Presti, Alexandre Lagoya, Turibio Santos, Irmãos Abreu e promoveu na juventude da época o interesse em tocar o violão clássico (e não só o piano, ou o violino ou o violoncelo...). 107 Impressiona o número de depoimentos em muitos artigos de revistas, mais do que em livros, de contemporâneos de Brouwer, que se manifestam sobre seu trabalho. O professor cubano Efraín Amador (1986:21) resumiu assim o trabalho de Brouwer: Em sua música para violão, e em busca de uma forma de expressão pessoal, soube assimilar a rica herança violonística, proveniente da música popular, e com ela pôde integrar de uma forma muito própria, revolucionária e inovadora, para dar à luz obras que há poucos anos de criadas se converteram em repertório ―clássico‖ obrigatório de todos os violonistas no mundo: ―Elogio de la Danza‖, ―La espiral Eterna‖, ―Canticum‖, seus Estudos, já formam parte dos programas oficiais nos mais prestigiosos conservatórios do mundo. Emilio Pujol em carta a seu discípulo Javier Hinojosa assinalava a obra ―Canticum‖ como a mais importante desde ‗Homenagem a Debussy‖ de Manuel de Falla, e com a qual Brouwer inicia uma nova etapa para o violão. Da mesma forma, o jornalista cubano Pedro de la Hoz (1998) situa o compositor (tradução minha): Leo Brouwer (...) capitaliza uma posição de zênite: lhe ocupam e lhe preocupam, com profundo conhecimento de causa e a partir de um exercício lúcido e exemplar, todas as músicas e suas funções, a composição e a interpretação, a direção e a docência, o encargo e a inspiração, a vanguarda experimental e a trova canção, o volume sinfônico e a síntese digital do som. Mas o alfa e o omega do atual diretor geral da instituição Filarmônica Nacional, do Instituto Cubano da Música, e titular da Sinfônica da cidade espanhola de Córdoba, é o violão. Não por acaso é considerado o expoente autoral e interpretativo máximo da escola cubana deste instrumento. Não somente os cubanos se interessam em analisar a obra de Brouwer. É de nosso conhecimento a realização de três teses de Mestrado na Universidade da Califórnia. Entre as quais a de Paul Century. Em um artigo, Century (1985:151) concluiu que Brouwer contribuiu com um componente essencial ao repertório do violão, com muitos de seus trabalhos servindo de suporte pedagógico fundamental ao currículo dos violonistas clássicos. E a jornalista norteamericana Diane Gordon (1986) o compara com outros nomes (tradução minha): No começo dos anos 70, sua experimentação com música eletrônica o levou a compor ―La Espiral Eterna‖, um trabalho que agora é considerado uma das obras primas da literatura violonística do século XX, tendo seu lugar ao lado do ―Nocturnal‖ de Benjamin Britten e dos ―Cinco Prelúdios‖ de Villa-Lobos. 108 Embora Brouwer seja um dos mais populares compositores contemporâneos do violão clássico, ele também escreveu acima de 170 composições para praticamente cada idioma musical. Intérpretes consagrados do violão também já demonstraram um reconhecimento à sua obra. Destes, o uruguaio Oscar Cáceres afirmou (Weiss 1996:15) que Brouwer sempre proclamou seu desejo de renovar o catálogo sonoro do violão e provou isso com Canticum, e com a ruptura com o violão do passado, consumada pela composição de La Espiral Eterna. De uma geração intermediária, a norte-americana Sharon Isbin e o argentino Eduardo Isaac concordam com a posição de destaque do cubano. Isbin, a quem muitos compositores já dedicaram músicas, afirmou (Saba 1996:16) que para mostrar aos compositores que desejam utilizar o violão, ela costuma indicar as peças de Brouwer porque possuem uma grande afinidade natural e real com o instrumento. Entre os compositores atuais, Isaac considera Brouwer ―o verdadeiro chefe da fila‖ (Denis 1997:25) Por ocasião da gravação do Concerto n.º 1 o violonista inglês John Williams afirmou (Hernández 2000:181): (...) yo conozco a Leo muy bien y he hablado com él, no solamente sobre musica, sobre política y todo, que conozco su actitud hacia la música; y él trata esas cosas liberalmente; que sus sentidos son una guia hacia el sentimiento. Da mais nova geração, o violonista brasileiro Fabio Zanon (1999:13-15) reitera todas as posições anteriores e assim se expressou sobre a personagem Leo Brouwer: Último de uma linhagem de violonistas-compositores que vai de Sor a Villa-Lobos, o conjunto de suas obras é um monumento. Seguir o caminho que vai dos ―Estúdios Sencillos‖ até o Concerto de Helsinki é confrontar um microcosmos das tendências composicionais da segunda metade do século e entender como elas podem ser aplicadas ao violão. (...) Brouwer, aos 60 (anos), já deixou uma marca profunda. Gente no mundo inteiro cresce no violão tocando suas obras. Praticamente nenhum outro compositor-violonista de hoje remotamente se lhe compara em alcance, abrangência e qualidade. 109 LEO BROUWER Catálogo de obras de violão solo (baseado em Hernandez 2000): 1954 Suíte n.º 2 Amalgama Recitativo 1956 Prelúdio em conga Prelúdio Pieza sin Título n.º 1 Danza Característica 1957 Fuga n.º 1 Pieza sin Título n.º 2 Dos Aires populares cubanos – Guajira Criolla, Zapateo cubano Dos temas populares cubanos – Dos Temas Populares, Ojos Brujos 1959 Tres Apuntes Estudios Sencillos (caderno I) 1960 Estudios Sencillos (continuação) 110 1961 Estudios Sencillos (caderno II) 1962 Tres piezas latinoamericanas - Danza Del Aliplano, Triste Argentino,Tango Pieza sin Título n.º 3 1963 Pieza Sin Titulo n.º 3 1964 Elogio de la Danza 1968 Canticum 1970 Memórias de “El Cimarrón” La Espiral Eterna 1972 Tres Estudios em Sonoridades 1973 Parábola 111 1974 Tarantos Metáfora del amor (para violão e fita magnética) Três temas de Beatles (para violão e fita magnética ou dois violões) 1981 Estudios Sencillos (Cadernos III e IV) El Decamerón Negro Prelúdios Epigramáticos (seis) 1986 Paisaje Cubano con Campanas 1990 Sonata 1993 Rito de los Orishas 1996 Hoja de álbum “La Gota de Água” Hika: In Memoriam Toru Takemitsu Paisaje Cubano con tristeza 112 1999 Passacaglia para Eli 2000 Viaje a la semilla 113 CAPÍTULO 5. Análise de peças de Heitor Villa-Lobos: a importância do choro. Na obra violonística de Villa-Lobos, o estilo denominado ―choro‖ esteve presente nas seguintes peças: Choros n.º 1, que abre a extensa série de Choros, Chorinho da Suíte Popular Brasileira e Prelúdio n.º 2, dedicado ao ―Capadócio‖. Nóbrega (1971:37-38) cita termos de dicionário para definir a expressão capadócio – ―charlatão, parlapatão, trapaceiro‖ ou ainda: ―aquele que de noite vai tocar e descantar sob as janelas da namorada‖ – e afirma que a palavra capadócio é: ... o tipo urbano hábil e maneiroso, fértil em expedientes, mentiroso e impostor, é alem disso muito dado à música, cantador de modinhas e tocador de violão, do que se serve como recurso de insinuação pessoal. Esta conotação musical é tão significativa que um método popular de violão muito usado até vinte anos atrás tinha por título ―O CAPADÓCIO‖ e a seguir: ―Método prático para aprender a tocar o VIOLÃO em pouco tempo e sem precisão de mestre, contendo tôdas as pôsições pelo conhecido PARAGUASSU‖. Citando o próprio Villa-Lobos, Nóbrega reproduz a versão do compositor para o termo: ―é um tipo de variadas manifestações psicológicas, sentimental e dramático, lírico, patético e trágico‖. O choro já obteve diversas definições desde seu aparecimento. Renato de Almeida (1926:112), um dos mais antigos estudiosos da música brasileira, deu uma das primeiras definições do estilo: Choro é um nome genérico com várias aplicações. Pode designar um conjunto instrumental, em geral com flauta, oficleide, bandolim, clarineta, violão, cavaquinho, piston e trombone, com um deles solando. Por extensão, chamam-se choros também as músicas executadas por esses grupos instrumentais que acabaram tomando aspecto próprio e característico. Por fim, o Choro é a denominação de certos bailaricos populares, também conhecidos por ―Assustados‖ ou ―Arrasta-pés‖. Essa parece ter sido mesmo a origem da palavra, conforme explica Jacques Raimundo, que diz ser originária da ContraCosta, havendo entre os cafres uma festança, espécie de concerto vocal com danças, chamado ―Xôlo‖. Os nossos negros faziam, em certos dias, como São João, ou por ocasião de festas nas fazendas, os seus bailes, que chamavam ―Xôlo‖, expressão que por confusão com a parônima portuguesa, passou a dizer-se ―Xôro‖ e, chegando à cidade, foi grafada ―Choro‖ com ―ch‖. Como várias expressões do nosso populário, teve logo a forma diminutiva de Chorinho. 114 E o choro, em definições mais atualizadas, como a de Gerard Béhague (1994:75), tem outros enfoques: Como uma expressão popular, os choros do século 19 foram essencialmente conjuntos populares que apareceram primeiro no Rio por volta de 1870-1880 e envolvendo músicos amadores cujo caráter de fazer musical triste e choroso justificou o nome choro e chorão. O feitio instrumental desses grupos antigos envolvia na maioria flauta para a melodia, e violão e cavaquinho para harmonia e ritmo. O mulato virtuoso flautista Joaquim Antonio da Silva Calado (1848-1880) é dito ter organizado um dos primeiros grupos. Suas composições, valsas, polcas e quadrilhas revelam a nacionalização sutil de danças européias da época. Aos conjuntos originais foram se assomando, pelos idos de 1890, instrumentos de banda e outros de cordas (tal como bandolim) que participavam no conjunto tanto no solo quanto função de contramelodia, dependendo da habilidade específica dos músicos. A variação improvisional e, ao mesmo tempo, um contraponto mais ou menos elaborado caracterizaram muito da prática performática. Com o tempo, o termo choro passou a denotar toda forma de dança, valsas, mazurcas, polcas, schottisches, tangos, habaneras, lundus e maxixes, por um lado, e canções sentimentais como a modinha, para serenatas, por outro. Eventualmente, de 1910 em diante, o choro pertenceu à designação de um gênero de dança especificamente carioca com uma estrutura rítmica similar (especialmente figuras binárias sincopadas) à do samba (trad. minha). O choro é também entendido como conjunto de câmara e estilo musical, como afirma, entre outros, Marco Pereira (1984:100): ... o Choro representava, antigamente, um grupo de executantes instrumentistas que tinham valsas, polcas, schottishes, no seu repertório. Em seguida, a palavra Choro designou um certo ritmo. (...) O Choro como forma musical, segundo o conceito atual, é coisa mais recente e pode ser assimilado ao rondó em cinco seções. Como já foi citado no item Biografia, Villa-Lobos teve uma convivência com os grupos de choro da cidade do Rio de Janeiro, tendo pertencido a alguns destes conjuntos; segundo Mariz (1989:26): Villa-Lobos pertenceu a um grupo de seresteiros de escol. Seu quartel-general era o Cavaquinho de Ouro, na rua da Carioca, onde recebiam convites de toda espécie para tocar nos lugares mais diversos. Faziam parte do grupo, cujo chefe era Quincas Laranjeiras, os seguintes chorões: Luiz de Souza e Luiz Gonzaga da Horta (pistão-baixo), Anacleto de Medeiros (saxofone), Macário e Irineu de Almeida (oficleide), Zé do Cavaquinho (cavaquinho), Juca Kalu, Spíndola e Felisberto Marques (flauta). O repertório abrangia peças de Calado, Nazareth, Luiz de Souza e Viriato. (...) Villa-Lobos tirou dos chorões ambiente para criar uma atmosfera nova de música. Naquele meio, formou uma faceta da sua personalidade, aproveitando o que havia de 115 original. Entre os chorões, Villa-Lobos era o violão clássico e chegou mesmo a influenciá-los, pois, à sua sugestão Nazareth escreveu Batuques, Fantasias e Estudos. Para Béhague (1994:4), a música dos chorões foi a música que mais fascinou VillaLobos durante toda sua vida e que, como violonista e ―chorão‖ que era, esta música representou para ele mesmo uma verdadeira experiência de educação musical e de uma afinidade estética tão forte que permaneceu em seu período adulto. Béhague também relembra que, de suas primeiras composições, a obra de maior destaque dos anos 20 recebeu a denominação de Choros. Na opinião de Béhague, apesar de a música de câmara ser feita no lar dos Villa-Lobos, foi a música popular que o cativou e exerceu uma influência até o final de sua obra, e exemplifica que ele tentou aprender violão sozinho, longe de casa. Béhague afirma (1994:4-5) que os anos de formação de Villa-Lobos não estão devidamente documentados. Cita como exemplo o testemunho de Donga (Ernesto Joaquim dos Santos, 1899-1974) que conferia a Villa-Lobos uma qualidade técnica ao violão já nos anos em que se iniciou nas rodas de choro (Villa-Lobos era chamado, segundo Donga, de ―o Violão Clássico‖). Béhague põe em dúvida o julgamento de Donga, mais provavelmente reforçado por uma admiração. Entretanto, um ponto a favor de Donga seria a gravação do Choros n.º 1 feita pelo próprio Villa-Lobos em disco comercial, na qual demonstra sua capacidade de interpretação do instrumento, realmente apreciável. Béhague também questiona se houve mesmo uma relação de amizade entre VillaLobos e Ernesto Nazareth, como afirmam outros autores; crê sim que Villa-Lobos teria sido um grande admirador das valsas, polcas e tangos de Nazareth. Mas um fato que se configura como uma impressão dessa amizade é a dedicatória dos Choros n.º 1 a Ernesto Nazareth, 116 composto em 1921, para violão, já que, posteriormente, Nazareth dedicaria a Villa-Lobos a peça Improviso, como afirma, Luiz Antonio de Almeida61, biógrafo de Nazareth: Improviso, estudo para concerto, composto entre 1922 e 1926. Villa-Lobos, mais um amigo inseparável de Nazareth (grifo meu), dedicou-lhe, em 1921, o seu Choros n.º 1, para violão; e o homenageado retribuiu a gentileza dedicando-lhe este estudo que, porém, somente seria impresso em 1931. Béhague (1994:72) aponta a posição especial que teve a composição dos Choros na obra total, pois com essa série Villa-Lobos definiu sua posição estética, tornando-se o portavoz do nacionalismo musical no Brasil. Nóbrega (1975:21-22) também alude a importância dos Choros na carreira de Villa-Lobos, representando a primeira grande afirmação de VillaLobos como criador; ―o ciclo dos Choros revestiu-se da importância decisiva de um divisor de águas na produção do autor, com imediatos reflexos em sua projeção no mundo musical europeu‖. Segundo Béhague (1994:156), o ideal do Modernismo, para literatos e músicos era: ... basicamente uma justificação para a absorção (literalmente a deglutinação) das experiências artísticas e musicais estrangeiras para as necessidades específicas do momento. E Villa-Lobos na maioria de seus trabalhos pode ser interpretado como parte desse processo, mas a série Choros especialmente representa o primeiro grande passo em direção não somente a incorporação da inspiração nativa e documentação, mas a assimilação de muitas técnicas composicionais contemporâneas européias. Não por coincidência ele começou com a expressão simplista do gênero urbano (Choros No. 1) e construiu gradualmente a formas e expressões mais complexas em uma amálgama de batidas e peças de música tradicional nativa e Afro-brasileira, canções de roda, e outros gêneros de música de dança popular urbana, freqüentemente em uma atmosfera de acontecimento carnavalesco, mas tudo com um vocabulário técnico decididamente modernista (trad. minha). Turíbio Santos (1977:4-5) em seu livro sobre o compositor também se dedica a estabelecer a importância do papel do choro na obra de Villa-Lobos: Quincas Laranjeiras, Anacleto de Medeiros, Zé do Cavaquinho, Catulo da Paixão Cearense, João Pernambuco, Ernesto Nazareth, Sátiro Bilhar, Donga foram algumas das 61 Encarte do CD Tributo a Ernesto Nazareth, de Tânia Mara Lopes Cançado. Karmim 1993. 117 testemunhas do traço de união violão-música popular brasileira na vida de Heitor VillaLobos. (...) Até há pouco, Donga evocava com emoção o músico ou os músicos Heitor VillaLobos. Por um lado a grande habilidade de acompanhador e improvisador, por outro o virtuosismo que o levaria a gravar o Choros n.º 1 em disco comercial. O duplo aprendizado do instrumento favoreceu semelhante horizonte. Por um lado toda a metodologia existente dos dois séculos precedentes: Carulli, Carcassi, Aguado, Coste, Sor, Giuliani por outro a convivência com Zé do Cavaquinho e os boêmios chorões do Rio de Janeiro. (...) O violão seria ponto de referência a partir daí. Sua presença na obra de Heitor VillaLobos era também a das Rodas de Choro, dos personagens que compunham esse ambiente musical peculiar do Rio de Janeiro, das melodias, harmonias e ritmos da música popular instrumental. No começo do século todos os chorões se conheciam na cidade. Embora os pequenos grupos se encontrassem em cada bairro a reputação individual dos músicos ultrapassava esses limites e os melhores acabavam por encontrar-se. A edição das partituras dos Choros n.º 3 pela editora francesa Max Eschig em 1928 traz essa explanação de Villa-Lobos sobre o que são os Choros e o que há em comum com o estilo popular: Os Choros representam uma nova forma de composição musical na qual são sintetizadas diferentes modalidades de música brasileira, indígena e popular, tendo como elementos principais o ritmo e qualquer melodia típica de caráter popular que apareça aqui e ali acidentalmente, sempre transformado de acordo com a personalidade do autor. Os procedimentos harmônicos, também, são quase uma estilização completa do original. Nóbrega (1975:10) acrescenta ainda a essa definição inicial de Villa-Lobos uma outra que ele teria citado a Nóbrega anos depois: Os Choros são construídos ―segundo uma forma técnica especial, baseada nas manifestações sonoras dos hábitos e costumes dos nativos brasileiros, assim como nas impressões psicológicas que trazem certos tipos populares, extremamente marcantes e originais‖. A opinião de Tarasti (1996:87) sobre os Choros de Villa-Lobos é destacada também: Alguém pode presumir que os Choros como composições representam alguma nova estética e forma técnica. Se alguém quer determinar qual inovação Villa-Lobos trouxe para a música séria do século 20 tanto quanto a forma musical é considerada, a série de Choros é talvez a mais significante em toda sua produção (trad. minha). 118 Tarasti (1996:86) afirma que os Choros de Villa-Lobos eram provenientes de uma relação com os músicos de rua do Rio, mas já possuíam algo de impressionismo e vanguardismo. A questão, segundo Tarasti, é: ―são os Choros realmente uma nova forma de composição?‖ Tarasti aponta que ―os choros não são meramente uma invenção do compositor para aparecer como um compositor brasileiro nos círculos musicais europeus dos anos 20‖ – como teria afirmado Peppercorn (1991). Para Tarasti, ―a verdade é que ele também compôs numerosos trabalhos similares sem, entretanto, por alguma razão chamálos de choros‖. Guerra-Peixe (1989:43) apontou que algumas inconsistências são empregadas por VillaLobos na Suíte Popular. Os procedimentos da Suíte estariam mais ligados à música de salão em vez do choro autêntico, já que as quatro peças iniciais carecem dos típicos baixos. Analisa também que na peça Chorinho ocorreu o uso do tango brasileiro no lugar do choro. 119 5.1. Valsa-choro da Suíte Popular Brasileira Dentro da Suíte Popular Brasileira, a Valsa-Choro pode servir como exemplo do caráter geral do conjunto das quatro peças iniciais que formam a suíte: Mazurka-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro e Gavota-Choro. Este caráter geral diz respeito ao resultado sonoro do grupo de peças como uma demonstração do panorama da música do início do século na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente de serenatas e danças de salão. A data da composição das quatro peças da suíte está situada entre os anos de 1908 e 1912, sendo que o Chorinho só seria composto 11 anos depois e anexado à suíte. Composta no Rio de Janeiro em 1912, a Valsa-Choro foi editada em 1923 pela editora francesa Max Eschig, durante a primeira estada de Villa-Lobos em Paris. A obra pertence à primeira fase do autor, na qual a aproximação com o choro exerceu papel importante em sua formação. Como já foi dito, o choro pode ser entendido como uma tentativa de nacionalização de danças européias por parte dos músicos cariocas. Ao unir o termo choro a cada uma das denominações de danças européias, Villa-Lobos estaria almejando dar um reforço justamente a este princípio de adaptação. Béhague (1994:134) afirma que a Suíte é historicamente significante por refletir a consciência do jovem compositor da nacionalização da música de salão européia do fim do século XIX como uma importante fonte da música popular urbana brasileira. Já Marco Pereira (1984:87), critica o aspecto técnico da Suíte por achar que não é tão relevante em comparação com as demais peças da obra violonística do compositor, pela falta de proposições mais arrojadas, e aponta a semelhança com a música popular de outros autores da época. Pereira (1984:91) também fala em seu livro sobre as diferenças entre a valsa européia e a valsa brasileira: A grosso modo, a Valsa é uma dança rápida, escrita em compasso ternário, que utiliza na sua configuração melódica valores simples e 120 compostos (da mínima à colcheia). No acompanhamento harmônico, o que lhe é mais característico, a armação rítmica é feita a partir de um baixo sobre o primeiro tempo (representado por uma mínima pontuada) e de dois acordes iguais colocados sobre o segundo e terceiro tempos (representados por semínimas). Uma antecipação muito sutil e uma certa elasticidade no segundo tempo lhe dá um balanço bem particular. O termo Valsa deriva do termo alemão ―Walzen‖ que significa rodar, dar voltas. É mais ou menos por volta de 1700 que a Valsa entra na moda e sua maneira de dançar atrai a atenção da burguesia e da nobreza. A forma como os pares se enlaçavam ficava em completa oposição à rigidez das cerimônias dançantes da sociedade da época, como o Minueto, por exemplo. (...) A Valsa-Choro é do tipo lento e melancólico, qualidade inerente à Valsa brasileira. Sobretudo valsas cantadas pelos boêmios, contemporâneos e amigos de Villa-Lobos. Assim como as outras três peças da suíte, a Valsa-Choro está dividida em cinco seções e é apresentada em forma rondó A-B-A-C-A, ou seja, cada parte é seguida de uma repetição do primeiro tema (A). Como em várias obras de sua autoria, Villa-Lobos utiliza termos brasileiros para indicar o andamento; aqui é solicitado um andamento de “Valsa Lenta”. A tonalidade está em mi menor e a harmonia se movimenta normalmente dentro deste tom, sendo que o uso do acorde de V grau com 13.ª no compasso 7 é o fato mais significante, no aspecto harmônico. A melodia tem início na voz mais aguda, com uma obstinada nota mi sendo repetida por vezes: Entre os compassos 8 e 12 acontece uma alternância entre a voz mais aguda e a mais grave, sugerindo um diálogo entre as vozes e um procedimento de seresta com a utilização de um fraseado de baixos, a modo de violão 7 cordas. 121 Após isso, a melodia se torna incessante, sempre em semínimas. No compasso 24 um outro fraseado de baixos aparece para retomar o tema e finalizar essa primeira parte da Valsa-Choro: A segunda parte está em tonalidade de lá menor, ou seja, subdominante do tom principal (mi menor). O início da melodia está em região não tão aguda quanto a parte anterior, mas algumas notas em acompanhamento fazem surgir algumas dissonâncias 62, como o terceiro tempo do primeiro e terceiro compassos, que resulta um acorde de lá menor com 9.ª: Depois, a melodia se encaminha para a região mais aguda e no acompanhamento ainda acontecem algumas dissonâncias como o segundo e o terceiro tempos do compasso 6: 62 Dentro do universo sonoro, algumas combinações de notas, com o passar do uso no tempo, conformaram um arsenal de significados pelos quais se definiu as consonâncias e as dissonâncias. Em uma explicação simplificada, a consonância não destoa, não choca os ouvidos como a dissonância – obviamente o padrão é diverso, variando de povo a povo e às vezes até em um mesmo grupo social. 122 No compasso 8 a melodia que vinha se mantendo extremamente metódica em semínimas tem agora uma figuração em tercinas63. Ainda que com limitada significância, no compasso 10, Villa-Lobos demonstra o seu bom conhecimento das possibilidades do violão ao colocar o que há de bem característico no instrumento – uma melodia acompanhada de acordes e de baixos – simultaneamente: Do compasso 11 em diante, a melodia se torna mais cheia, pois muda sua figuração para colcheias. No compasso 14, o uso de dissonâncias retorna por meio de um acompanhamento da melodia, que trabalha em sentidos contrários (ré# ré dó# do si – sol# lá sib si), ocasionando intervalos64 de segundas e nonas: A partir daí, a peça dirige-se para o ponto culminante e a sua resolução. Caminhando cada vez mais para a região aguda, a melodia atinge o seu clímax no compasso 24, mais uma vez com a figuração em tercinas: 63 Tercinas são um conjunto de três notas agrupadas para serem tocadas com a duração de tempo de uma nota. Ou seja, tocam-se 3 notas no tempo de uma nota só. 64 Intervalos são as diferenças de freqüências sonoras entre as notas. Se fosse possível ―ver‖ esses intervalos, seria como visualizar a distância entre objetos. Algumas freqüências são mais acessíveis para um tipo de público, por já serem muito utilizados no cotidiano. Um exemplo comum disso é a campainha de dois sons, que é um intervalo de 4.ª (justa, descendente). 123 A terceira parte, Piu Mosso, está em Lá Maior, e, mais uma vez, harmonicamente, os acordes e o acompanhamento se movimentam em conformidade com este tom. É a parte contrastante da peça. A melodia dessa parte está toda em semínimas o que a torna muito próxima do Prelúdio 5 nesse aspecto (que seria composto quase 30 anos depois). Nos compassos 9 e 10 a harmonia torna-se mais uma vez dissonante. Os compassos 11, 12 e 13 possuem um clichê no acompanhamento que consiste em, mais do que uma função harmônica, caminhar com as terças (fá-re; do-mi; sib-ré) para as duas casas seguintes no braço do violão. O resultado sonoro também causa dissonância. A Valsa-Choro, embora de simples apresentação, já demonstra o conhecimento que Villa-Lobos tinha do instrumento. Note-se que uma boa extensão do violão é utilizada – do uso de baixos da 6.ª corda até a casa 13 da 1.ª corda. Suas idéias musicais estão somente no começo e o arsenal obtido até este momento apontam o bom domínio da linguagem popular, que ele tanto prezava e freqüentava, e um conhecimento das possibilidades do violão já razoável. 124 5.2. Chorinho da Suíte Popular Brasileira Composta em 1923, durante a primeira estadia de Villa-Lobos em Paris, o Chorinho foi utilizado para encerrar a Suíte Popular Brasileira. São 11 anos de intervalo entre esta peça e as demais da suíte. Pode-se perceber que devido a esse intervalo o Chorinho possui um caráter musical já diferenciado das quatro primeiras obras. Esse caráter diferenciado vai tanto no formato - a obra possui três partes e dois temas, quer dizer não possui mais uma formarondó (A-B-A-C-A) - quanto na harmonia, que possui características distintas das anteriores. Nessa ocasião, Villa-Lobos já havia escrito o Choros n.º 1(1920), e no Chorinho o compositor carioca já está indo para uma segunda fase de sua carreira. Segundo Marco Pereira (1984:95): ―O Chorinho, em relação às outras peças da Suíte, tem uma harmonização bem mais rebuscada‖, destacando o paralelismo de acordes e movimentos cromáticos entre as notas. A primeira parte tem uma introdução de quatro compassos, cuja melodia está nos baixos e este trecho possui acentuações rítmicas únicas na obra violonística de Villa-Lobos. Depois, a melodia-tema entra, toda gingada, por meio do uso de: síncopes65, fermatas, tercinas, arrastes e ritenutos66, que favorecem e bem representam a ginga do estilo, quebrando a constância do ritmo. 65 Síncope é o deslocamento do tempo fraco para o tempo forte seguinte, dando a sensação auditiva de prolongamento do som. Usa-se em geral o sinal para indicar a síncope. 125 Em seguida, uma pequena passagem (ou ponte) faz com que uma reprise do tema seja apresentada. Uma nova parte agora é desenvolvida por meio de uma seqüência de tríades (acordes de três notas) de voz média acompanhadas de um baixo ostinato em lá, como uma percussão. Uma nova ponte restabelece o tema para seguir em um tipo de variação do motivo inicial. 66 Arrastes são, como o próprio nome diz, a ação de arrastar as notas para chegar em uma outra nota. Não são como os glissandos, que depois de arrastados não necessitam de mais um toque na última nota. Ritenutos são pequenas retenções de notas, visando a ênfase, a quebra no andamento ou para denotar algo que está para acontecer. 126 Essa variação acontece na região de voz aguda do violão, e está acompanha por sextinas e fermatas67, representando uma espécie de improviso, típico da roda de choro, na qual a invenção em cima de um tema dá a medida do intérprete. Acontece uma volta para o motivo de tríades e, sem uma preparação maior a não ser o pedido de um rallentando68, chega-se a uma segunda parte da obra, de caráter contrastante, rítmico e harmônico, em Lá maior, que é introduzida por seis compassos, caracterizada fortemente como um batuque. 67 Sextinas são um conjunto de seis notas agrupadas para serem tocadas com a duração de tempo de uma nota. Ou seja, tocam-se 6 notas no tempo de uma nota só. Fermatas (literalmente ―parada‖ em Italiano) são pontos de chegada na obra, podem ser utilizadas ao final ou no decorrer da peça. 68 Rallentar é o termo para diminuir o andamento da peça, para preparar o início de uma nova parte, sendo bem comum nas finalizações das obras. 127 Esta parte possui, além do uso contínuo das fermatas, uma força maior nos baixos que, a modo de uma exibição de um violão 7 cordas, são baixos cantados e condutores de vozes. sobre o trabalho de violão no grupo de choro Marco Pereira (1984:100) explica: Dos grupos de Choro tradicionalmente estabelecidos, fazem parte dois violonistas, tocando instrumentos distintos. O primeiro (...) tem a função de contrapontear com a melodia e preencher as lacunas dos finais de frase. Este instrumento tem uma sétima corda suplementar (dó) e o executante utiliza-se de um mediador, preso ao polegar (dedeira) para ferir as cordas. Os dedos i, m, a69 formam uma unidade para os desenhos rítmicos do acompanhamento harmônico. O segundo, que se utiliza de um violão clássico normal, ocupa-se, sobretudo, dos encadeamentos harmônicos e do ritmo. Às vezes segue as idéias melódicas do primeiro, num movimento de terceiras paralelas. Existe um terceiro tipo de violão, também empregado no Choro, mais raramente, denominado violão tenor. O violão tenor tem o tamanho de um violão clássico normal porém com quatro cordas somente. Seu executante desempenha o papel de solista assim como o de acompanhador, seguindo os desenhos melódicos dados pelo violão de sete cordas. Outra observação refere-se à Harmonia, na qual é empregado um clichê, o ―paralelismo de acordes e cromatismo das notas‖70, dos quais falava Pereira. 69 70 Abreviatura dos dedos indicador, médio e anelar. Paralelismo de acordes é a repetição da disposição de um acorde em várias partes do braço do violão (ou no teclado do piano etc.), nas quais não é necessário ―desmontar‖ a posição criada pela mão esquerda; só vai saltando de uma parte a outra do instrumento. 128 Para finalizar, uma ponte leva ao retorno Da Capo e à coda final71. Em comparação com os Choros n.º 1 e as peças populares de época, o Chorinho não possui a terceira parte nostálgica, como diz Turíbio (1977:8): ―O Choros n.º 1 corresponde perfeitamente à forma tradicional popular. As partes são A-B-A-C-A, sendo, conforme a tradição, a terceira nostálgica. Efeito que os músicos obtinham com modulações ou mudanças de ritmo‖. Mas, possui semelhanças no ritmo (fermatas, ginga) e no uso de baixos. Neste sentido, a afirmação de Turíbio (1977:8) sobre o Choros 1 pode bem servir ao Chorinho também: ―No Choros n.º 1, a melodia faz parte da harmonia e permite a qualquer momento a parada inesperada, maliciosa. Enquanto isso, na região grave do instrumento, é sempre preparada a intervenção de algum acorde. Ou como diria um chorão uma boa ‗baixaria‘ ‖. Um aspecto importante do Chorinho é que na terceira parte há a caracterização forte do batuque, talvez sua mais forte alusão à cultura afro-brasileira nas obras para violão72. Cromatismo é a seqüência de notas vizinhas, por exemplo, do - do# - ré - ré# ... 71 Da capo: da cabeça, do início da peça. Coda: trecho que leva ao final da música. 72 Há algumas peças de Villa-Lobos para canto e piano em que ele aludiu mais diretamente a cultura afro-brasileira: das Canções Típicas Brasileiras Xangô, Estrela é Lua Nova, (1919) ambas baseadas em textos religiosos; do álbum n.º 1 Modinhas e Canções: Cantilena, (1938) conhecida também por seu primeiro verso ―O Rei Mandou me Chamá‖, motivo dos negros do Recôncavo Baiano, recolhido por Sodré Viana; Remeiro do São Francisco, (1941) tema dos mestiços do Rio São Francisco. 129 5.3. A fase inovadora dos 12 Estudos. Afirmam muitos pesquisadores, como Mariz (1989:47), Tarasti (1994:241) e Béhague (1994:69), que nos anos 20 inicia-se na carreira de Heitor Villa-Lobos uma maior representação de correntes estéticas vanguardistas. Dois acontecimentos marcam essa fase: a participação de Villa-Lobos na Semana de 22, em São Paulo, e sua ida a Paris em 1923. Entretanto, estes autores destacam que não foi só a partir destes marcos que Villa-Lobos passou a compor de maneira mais conectada com o pensamento estético de linha moderna. Segundo Béhague (1994:150), Villa-Lobos acreditava mesmo que todos os seus trabalhos anteriores já refletiam a ideologia modernista. Dizia que já era revolucionário antes da semana de 22, pois suas músicas desafiavam a tradição do século XIX, subordinada ainda aos padrões italiano e francês. Mariz (1989:16) também alude a uma antecipação de VillaLobos. Wisnik (in Béhague 1994:150-151) afirma que a música de Villa-Lobos personificou a ideologia de um país imaginado como em franco progresso e que seu trabalho correspondeu às necessidades do contexto da década de 20, reconciliando aparentemente o projeto da nova arte com a perspectiva otimista de um novo país que estava nascendo. Já Mário de Andrade, citado por Béhague (1994:150-151), em seu Ensaio sobre a música brasileira, datado de 1929, ao falar sobre a música nacionalista, disse que a mera utilização de música folclórica como um elemento exótico deve ser rejeitada em favor de uma expressão de nacionalidade natural e necessária. Enquanto reconhece a grande qualidade da música de Villa-Lobos, Andrade denuncia a ―música pseudo-índia‖ em alguns de seus primeiros trabalhos como um indesejável elemento de exotismo. Todavia, Andrade reconheceria em 1941 que depois da experiência da Semana de 22, Villa-Lobos abandonou 130 conscientemente seu internacionalismo francês para tornar-se o iniciador e a figura máxima da fase do Nacionalismo. Em Paris, Villa-Lobos conheceu músicos como Paul Dukas, Vincent d‘Indy, Igor Stravinsky, Sergei Prokofiev, Edgard Varèse e outros. De acordo com Béhague (1994:72), sua primeira viagem a Paris serviu para reforçar e confirmar a aceitação internacional de sua ―tendência estética prévia‖. Béhague conclui que cerca de dois terços das 130 obras de VillaLobos compostas entre 1922 e 1930 correspondem a um anseio nacionalista, mas também representam a fase mais experimental e inovadora de sua expressão nacionalista. E dentro desta fase do compositor, encontram-se os 12 Estudos para violão. Os 12 Estudos, compostos entre os anos de 1924 e 1929, têm, segundo Tarasti (1994: 241), como paradigma as entonações da música popular carioca, nas figuras dos músicos que Villa-Lobos respeitava muito, como Quincas Laranjeiras, Anacleto de Medeiros, Sátiro Bilhar, Ernesto Nazareth e outros, por outro lado, o título 12 Estudos em si mesmo é uma referência que remonta a numerosas coleções de peças na arte musical do Ocidente, tais como as séries de estudos de Chopin, Paganini, Liszt, Debussy e Bach. Conclui Tarasti que os anos em que Villa-Lobos escreveu os estudos revelam a natureza polimórfica do seu pensamento musical; este é precisamente o período de sua maior produção de trabalhos de vanguarda (configurada no uso de dissonâncias e polirritmias), mas, na opinião do autor, é somente refletido ligeiramente na textura dos estudos para violão. Entretanto, aponta que o processo foi o mesmo em Chopin, que em seus estudos alargou as possibilidades técnicas e sonoras do piano, embora a estrutura tonal tivesse permanecido relativamente estável (comparada a Czerny, Hummel, Weber e todos os precedentes da literatura de piano). Do mesmo modo, os estudos de Villa-Lobos contêm referências à 131 literatura violonística clássica ao passo que abrem novas possibilidades para o uso do instrumento. Escritos durante a permanência do autor na capital francesa, os 12 Estudos revolucionaram a história do violão. Compostos a pedido de Andrés Segovia, os estudos porém não foram do agrado do mestre espanhol devido à sua linguagem moderna, enquanto que Segovia desejava algo mais romântico73. Somente os Estudos 1, 7 e 8 foram estreados e gravados por Segovia em 1947. A publicação pela editora francesa Max Eschig se deu em 1953 e a performance completa, inclusive a gravação, foi do violonista brasileiro Turíbio Santos em 1962. Até onde se sabe, a versão publicada foi baseada em um dos originais da editora francesa Max Eschig, mas ainda havia uma outra (atualmente em posse do Museu VillaLobos), contendo muitas indicações de dinâmica e dedilhados 74 e, algumas partes são até muito diferentes da versão editada75. Além disso, há um terceiro material, pertencente ao violonista e professor uruguaio Abel Carlevaro (1917-2001), que recebeu das mãos de VillaLobos quando teve aulas com o compositor nos anos 40. Os aspectos revolucionários dos 12 Estudos podem ser sentidos pelo fato de que o violão é explorado em uma dimensão até então inédita, ainda resultando em um material musical expressivo. Várias possibilidades foram trabalhadas: arpejos, posições fixas e posições de alta movimentação na mão direita, acordes repetidos e cordas soltas, escalas virtuosísticas, rasgueados, ligados, glissandos76, e ainda o uso alternado destas 73 Na correspondência entre Segovia e o compositor mexicano Manuel Ponce, Segovia confidencia a questão. Dedilhados na linguagem violonística são sugestões de posicionamento dos dedos no corpo do instrumento. A nomenclatura de dedilhado da mão direita é: (P) polegar, (i) indicador, (m) médio e (a) anular; da mão esquerda é: (1) indicador, (2) médio, (3) anular e (4) mínimo. As sugestões do dedilhado podem ser dadas pelo compositor ou a critério do intérprete. 74 75 Eduardo Meirinhos em sua dissertação de Mestrado na Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP analisou os 12 Estudos a partir dos manuscritos. 76 Rasgueados são os movimentos típicos do violão flamenco, no qual a mão direita executa volteios com os dedos e parte das mãos, de acordo com a escolha do executante. Em violão, Ligados são passagens na mão 132 possibilidades. Na música, pode-se depreender tanto o estilo barroco de Bach quanto o de obras clássicas do violão, além de uma harmonia muitas vezes impressionista, atonal ou pseudo-tonal, e a inclusão de melodias brasileiras. Entre todas as diferenças sobre a edição da Max Eschig e do manuscrito, o Estudo 10 possui uma mais marcante: a versão manuscrita tem 33 compassos a mais que a versão oficial, impressa pela editora francesa. O Estudo 11, também apresenta alterações consideráveis, revelando uma nova dimensão deste que é o mais revolucionário da série. Segundo Turíbio Santos (1977:15), embora esta coleção de obras tenha sido composta entre 1924 e 1929, muitas de suas idéias e formas já estariam armazenadas no mundo musical de Villa-Lobos há muito tempo: Alguns arcabouços muito próximos do acompanhamento popular (Estudo n.0 4, Estudo n.0 6), desenvolvimento de fórmulas idênticas às da Carcassi, Carulli, ou Aguado, mas sempre com o sabor do acompanhamento (Estudos 2, 3 e 9) mostram a influência do chorão, embora dominada totalmente pelo criador erudito buscando preencher lacunas no repertório do instrumento. Turíbio acrescenta (1977) que o oposto também acontece, isto é, que em alguns dos Estudos veremos idéias que serão utilizadas mais tarde nos Prelúdios (1940), por exemplo, principalmente os três últimos Estudos: É interessante notar que os três últimos Estudos são constituídos por três partes sendo a terceira, uma retomada da primeira que em todos três as partes centrais se diferenciam muito das outras que nos rabiscos do Estudo 11 já estão esboçadas algumas idéias do Prelúdio n.0 1. Em suma, que os três últimos Estudos, anunciam, já, o aparecimento dos Prelúdios em 1940. esquerda de uma nota para outra, executando somente um movimento entre as notas na mão direita, isto é, a segunda nota vai soar sem que na verdade tenha sido tocada pela mão direita. Glissandos são os efeitos produzidos pelo escorregar de uma nota, passando por todos os sons, até chegar à nota destinada, dando um efeito sonoro de continuidade. 133 Fabio Zanon (1991) teve como tema de sua dissertação de Mestrado na Royal Academy of Music, Londres, Inglaterra, os 12 Estudos para violão de Villa-Lobos como fonte para música de violão do século XX. O violonista concluiu em seu trabalho que os estudos possuem inovações fundamentais como: exploração de diversos modelos de arpegios; exploração sistemática de posições fixas em conjunto com cordas soltas; incorporação de cordas abertas à harmonia, em contextos estáticos; enriquecimento do aspecto tímbrico; rápida alternância de elementos contrastantes; vozes inusitadas em escrita polifônica; apresentações da linha melódica sobre um modelo arpegiado; uso de glissando em notas sozinhas ou em blocos; obtenção simultânea de traços melódicos e técnicos. Zanon completa que estes modelos depois seriam encontrados em peças para violão de Leo Brouwer, Núncio d‘Angelo, Maurice Ohana, Hans Werner Henze, Stephen Dodgson, Marlos Nobre, William Walton, Eliot Carter, Milton Babbit, Alberto Ginastera, Camargo Guarnieri, Lennox Berkeley, Benjamim Britten e outros. O Museu Villa-Lobos, situado na cidade do Rio de Janeiro, possui vasto material de partituras, objetos pessoais e os instrumentos de Heitor Villa-Lobos: o piano Gaveau, o violoncelo e o violão presenteado por Tereza Terán, restaurado pelo luthier Sérgio Abreu. O montante de partituras (mais de mil obras) ocupa quase toda a parte de cima do Museu. Lá estão localizados os manuscritos dos 12 Estudos na versão diferenciada da editora francesa Max Eschig. Em entrevista na qualidade de diretor do Museu, o violonista Turíbio Santos explicou a questão dos manuscritos77: Os manuscritos do Villa-Lobos nós, durante um certo tempo, protegemos e evitamos a fotocópia porque havia uma promessa da Max Eschig de editar o fac-símile. Como a Max 77 Entrevista em setembro de 1999. Publicada parcialmente em Violão Intercâmbio n.º 38. 134 Eschig não cumpriu, eu liberei. Hoje em dia qualquer pessoa que venha aqui pode fotocopiar os fac-símiles. Agora, eu tenho a minha opinião própria sobre eles. Eu acho que à medida em que, por exemplo, se observam os três manuscritos de uma obra só - o Estudo n.º 1- tem três originais ali, é uma seqüência; ele fez um rascunho, fez a cópia, e fez a cópia pra edição. Eu acho que o ideal é sempre tocar o que está editado porque o que está editado foi a decisão estética do próprio Villa-Lobos, a decisão final dele. Têm aparecido gravações, por exemplo, do Estudo 10, com pedaços que ele retirou. Eu acho que como laboratório, como pesquisa, é válido, mas a decisão estética do Villa-Lobos foi aquela que foi editada. Você pode até corrigir uma notinha ali, uma acolá, até por uma questão de lógica você pode chegar: ―Não, isso aqui não, por uma questão de lógica, já que na reprise está de uma tal maneira, na primeira parte não poderia ter esta nota‖, por exemplo. Você deduz, dá pra deduzir e fazer uma boa revisão, entende? Mas é essa a minha opinião - as pessoas devem tocar realmente o que está editado. Como já foi dito, os 12 Estudos foram compostos a pedido de Segovia e dedicados a ele. Sobre o papel de Segovia no desenvolvimento dos Estudos, Turíbio afirma: Tem uma carta no Museu ( de Segovia a Villa-Lobos, em 1.º de maio de 1952, em posse do Museu Villa-Lobos) dizendo assim: ―Eu não sei se você se lembra que nós mudamos alguma coisa no estudo 7. Em todo caso, se a edição vai aparecer em seguida, avise-me e eu lhe enviarei uma cópia com as mudanças que nós concordamos na ocasião de nosso encontro em Paris‖. Quer dizer, o Segovia tinha revisado o Estudo 7 e aí eu digo o que eu ouvi o Villa-Lobos dizer78 - ―Faz como o Segovia fez no disco, assim é que eu queria‖, mas não teve tempo, a edição saiu na frente. Sobre possíveis revisões dentro da editora francesa Max Eschig na obra de VillaLobos, Turíbio declara: Há editoras que são rápidas e eficientes e outras que são lentas. Mas às vezes tem algum imperativo comercial (...) Mas no caso aí destas antigas editoras, os prazos às vezes dependiam até de financiamento, por exemplo, a família Guinle do Rio de Janeiro, investia dinheiro na Max Eschig pra que eles copiassem o material de Villa-Lobos, e copiar o material de uma sinfonia é um pacotão desse tamanho, é muito dinheiro de investimento. Mesmo uma obra pequena como os 12 Estudos tem revisor. O revisor aí, não é revisor do conteúdo da obra, é revisor das notas, mesmo assim têm várias revisões, aí o gravador pode errar novamente, perder uma chapa. 78 Turíbio Santos teve um encontro com Heitor Villa-Lobos em 1956 em uma palestra no Rio de Janeiro. 135 5.4. Estudo 10. Segundo Tarasti (1994: 246), o Estudo 10 é ritmicamente um dos mais complexos da série toda: ―Aqui há a polirritmia de Villa-Lobos dos anos 20 penetrada no violão pela primeira vez‖. Afirma que o tratamento do instrumento é quase percussivo e a estrutura formal é convencional ABA. Pereira analisou a forma como o Estudo 10 é apresentado: A - B - ponte - A1 - coda A - (compassos 1-20) B - (compassos 21-56) ponte - (compassos 57-65) A1 - coda (compassos 66-73) Na seção A, a tensão é criada com uma linha ascendente cromática e ritmos adicionados: 4/8, 3/8 e 2/8 , isto é, as métricas são alternadas rapidamente e as frases são pontuadas por figuras ornamentais. A seção B, que é alcançada pela execução de 16 notas, prossegue para um motivo ostinato79 (como em Prole do Bebê e Rudepoema). Tarasti também analisa que uma caracterização africana na música é evidente no estudo todo – não somente no sentido da herança brasileira, mas também comparado à moda negra na Europa durante os anos 20 e a aparição de nomes como Francis Poulenc, Darius Milhaud e outros compositores do período. Segundo Marco Pereira (1984: 54-57), ―tecnicamente, o Estudo n.º 10 pode ser classificado como um dos mais difíceis da série devido à sua parte central onde o compositor pede um ligado constante sobre grupos de quatro notas‖. E mais adiante afirma: 136 A execução desse grupo rítmico é praticamente impossível segundo a idéia de VillaLobos pois, paradoxalmente ao geral de suas obras, é anti-violonístico pondo em risco a clareza da execução. A saída que os instrumentistas encontraram e que hoje está por quase todos adotada é a de fazer a ligadura somente sobre três notas. Béhague (1994:140), provavelmente apoiando-se em Turíbio e Pereira, também afirma que no Estudo n.º 10 a passagem do ligado de quatro notas é ―praticamente considerada impossível de se executar segundo os intérpretes, e que estes aplicam o legato de três notas somente‖. E pondera que talvez a mais ousada experiência nos últimos três estudos venha da dinâmica, contraste e inovação rítmica, derivada de reminiscências de modelos rítmicos afrobrasileiros, mudando os acentos e ostinatos nos estudos de n.º 10 e 12. Atualmente não há mais essa consideração da impossibilidade da execução do ligado de quatro notas. Toca-se normalmente, como está escrito na partitura. Sobre a tonalidade e posições fixas de mão esquerda, afirma Marco Pereira (1982:54): O Estudo 10 não deve ser analisado de um ponto de vista tonal apesar de Villa-Lobos haver colocado alterações na clave sugerindo uma possível tonalidade de si menor80. Outra vez Villa-Lobos utiliza a fórmula fixa para a mão esquerda e, em cima dela, faz diferentes combinações rítmicas. Ele consegue, através do deslocamento da mão esquerda com apresentação fixa (somado às três cordas soltas do violão - notas que não se movimentam) harmonias de grande efeito. Segundo Turíbio Santos (1977:19), o Estudo 10 assim como os Estudos 7, 11 e 12, representam um grande desafio à técnica e às inovações; os acordes iniciais são amalgamados com formas de appogiaturas81 nos graves. No un peu anime (um pouco animado) os baixos desenvolverão uma melodia, enquanto na região aguda, uma appogiatura bastante semelhante à inicial, pode sugerir um canto de pássaros. Na opinião de Turíbio, voltando à parte inicial Villa-Lobos aborda células rítmicas oriundas do samba ou da música 79 Ostinato, como o próprio nome diz, é um movimento obstinado de repetição de algum grupo de notas ou célula motívica. 80 Clave é o sinal gráfico que aparece no início da pauta musical. Em violão, lê-se a partitura em clave de sol ( ). Alterações na clave são sinais de sustenidos (#) ou bemóis (b) que se colocam logo no início da clave, alterando a tonalidade da peça. 81 Appogiaturas são ornamentos nas notas ou em acordes. 137 africana, e em algumas passagens deste Estudo, pode-se empregar o dedo mínimo da mão direita82. O andamento inicial solicitado é Très anime (muito animado). Os dois sustenidos na clave indicariam a tonalidade de si menor, mas o acorde de si desde o começo da peça não apresenta a terça83 do acorde. Parece, portanto, ser mais uma comodidade quanto à escrita do que uma relação harmônica. A primeira parte assemelha-se a uma introdução da peça; a melodia está nos graves, acompanhada de acordes, iniciados como acordes normais, mas envolvidos pelas notas mi e si, a primeira e a segunda cordas do violão, respectivamente. Pereira diz sobre essa parte (1984:55) Villa-Lobos emprega uma fórmula fixa para a mão esquerda: dedos 1, 3 e 4 que formam respectivamente uma quinta e uma oitava com a nota fundamental ou de base. O acorde que se forma não determina uma tonalidade pela falta da terceira e o caráter ―flutuante‖ cria um efeito de tensão que aumenta segundo o deslocamento cromático ascendente dessas três notas. Este tipo de procedimento tornou-se muito usado no instrumento e várias peças, inclusive o Decameron Negro de Brouwer, utilizam este estilo de formação do acorde. No Prelúdio 2 (1940), o próprio Villa-Lobos retomaria este clichê. 82 A escola clássica de violão não tem por hábito a utilização do dedo mínimo da mão direita, embora não haja nenhum impedimento técnico para o seu emprego. Atualmente, seu uso está a critério dos intérpretes. 83 Em harmonia, um acorde pode ser caracterizado em Maior ou menor, de acordo com a colocação de sua terça – para ser um acorde de si menor, a terça apresentada deveria ser ré, mas aqui está ausente no acorde. 138 Do compasso 1 ao 6 o acorde de Si sem a terça encaminha-se para o mesmo desenho agora para um acorde de Dó (é o paralelismo de acordes novamente), do compasso 7 ao 10, e depois para Do#, entre os compassos 11 e 16, ambos sem a terça. É importante frisar que este caminho cromático de Si-Do-Do# e a não fixação de uma tonalidade são demonstrações práticas que é nos Estudos que Villa-Lobos se desvencilha do tradicional. Aqui a simetria é mais elaborada nos movimentos das partes e está desimpedida pela lógica da Harmonia tradicional – outro exemplo disso é que a nota mi, da primeira corda solta, soa livremente, independente da composição harmônica à qual possa se ligar nos acordes, como acontece nos compassos 3, 6 e 9. Ou a nota si, na segunda corda solta, que também acompanha os movimentos simétricos em todos os compassos deste trecho – mais para formar o desenho do movimento do que uma ligação com os acordes. No compasso 19, uma escala em andamento Vif também parece mais seguir um clichê físico do instrumento, do que ter alguma razão harmônica de modulação para a parte seguinte. Pereira diz (1984:55): Uma escala ―vif‖ faz a ligação entre as duas partes. A seção B é desenvolvida em duas vozes: um ―ostinado‖ rítmico formado por um grupo de quatro colcheias ligadas por um arco e um ―cantus firmus‖ de caráter modal, na região grave do instrumento. O modelo rítmico do grupo de quatro semi-colcheias foi retirado da primeira seção (A). 139 A parte seguinte, Un peu animé já descarta, por meio dos dois bequadros84 no início da pauta, a tonalidade anterior, e também não se coaduna com as tonalidades possíveis: Do Maior ou lá menor. Pode até ser cogitada aqui alguma possibilidade de tom, como Sol Maior, mas não há realmente prova plena. O acompanhamento que introduz a melodia principal está em uma voz mais aguda, que se alterna entre a primeira e a segunda cordas e, mais uma vez, se aproxima mais das possibilidades físicas do violão do que um acompanhamento harmônico. Sobre esse acompanhamento, trata-se de um ligado de 4 notas que já obteve algumas considerações anteriores (Pereira 1982: e Santos 1977: ) quanto à dificuldade ou até a impossibilidade de ser executado. Hoje, sabe-se que não há nada de contestável nele, e várias gravações, nacionais e internacionais, comprovam isso. Esse ligado de 4 notas, como comenta Zanon (1991), relembra o ornamento (a appogiatura) da parte anterior. A melodia principal surge no compasso 2 e muda três vezes de tessitura: de fá para lá e depois para sol. Somente quatro notas, alargadas pela figura de mínimas é que fazem a melodia principal, que recorda alguma reminiscência de material folclórico (talvez o Sapo Cururu): 84 O sinal gráfico de bequadro anula os acidentes anteriores, fossem sustenidos ou bemóis. Portanto, o início da segunda parte indicaria que não há mais acidentes e que a harmonia se voltaria para os possíveis tons de Do maior ou lá menor – que são as tonalidades quando não há acidentes na pauta. 140 Depois de passar por esses três tons, a melodia se fixa na nota si, variando agora de figuração métrica entre semínimas e tercinas: O acompanhamento tem agora uma extensão não mais das duas primeiras cordas, mas sim as seis cordas do violão, em um movimento simétrico ora ascendente ora descendente. Uma rápida volta para o início da parte retoma uma vez mais a possível cantiga de roda, para chegar a uma seqüência de Fá# na qual a linha melódica está na ponta dos acordes formados, todos a partir do Fá #, até que uma movimentação simétrica do mesmo tipo leva o acompanhamento e a melodia para o Fá e depois para o Mi: 141 Finalizando o Estudo, em andamento Vif, a melodia é a mesma do começo da peça, mas com uma movimentação simétrica maior: de Si (Casa 2) para Ré (Casa 5), Fá (Casa 8), Sol (Casa 10) e Si (Casa 14), que atinge o clímax também rítmico, com a indicação de sextinas. A peça termina com um grande harpejo em quintinas85 e o acorde inicial de Si sem a terça86: Sobre esse final, Pereira afirma: Na coda, Villa-Lobos, utilizando-se do motivo inicial, cria riquíssimas variações rítmicas entre polegar indicador, médio, anular. As quintas e oitavas paralelas, deslocando-se em saltos de terceira menor, tendo como pedal a segunda e a sexta corda, engendram uma tensão magnífica atingindo seu ápice num rasgueado em seis-quiálteras87 sobre o acorde do início transportado para a oitava superior. 85 Quintinas são grupos de notas (5), como as tercinas (3) e as sextinas (6), tocadas a um só tempo. A terça dentro de um acorde é a nota que o qualifica como de tom maior ou menor. 87 As sextinas também são chamadas por seis-quiálteras. 86 142 5.5. Estudo 11. O Estudo 11 está na tonalidade de Mi menor, seu andamento é Lento com alterações para Piu Mosso e Animé em várias partes. Como afirma Turíbio Santos (1977:20), trata-se de um estudo de arpejos e acordes, com extensões para a mão esquerda e grande utilização do polegar direito: ―Um contraste se estabelece entre o canto brasileiro imitando o violoncelo e a ornamentação ligeiramente impressionista imitando a harpa. A influência da música francesa dá uma pincelada no mais brasileiro dos Estudos‖. Sobre este estudo, o violonista Marco Pereira (1982: 57) afirma que possui uma das mais geniais proposições do compositor ao nível da criatividade na técnica instrumental e possuidor de um resultado sonoro inusitado. Para Tarasti (1994:247-248), o Estudo 11 pode ser visto pelo esquema formal ABCBA ou entendido como o C sendo uma variante do A (A B A‘ B A). A seu ver, ao redor deste simples esquema Villa-Lobos forma um efetivo drama musical. Tarasti opina que o sabor narrativo do Estudo remonta uma balada e lembra os romances de Jorge Amado, descrevendo o Nordeste. Assim como todos os outros autores estudados, Tarasti também concorda que neste estudo Villa-Lobos alarga radicalmente o escopo expressivo do violão. Em sua visão, a melodia da parte A soa como um violoncelo e a da parte B, como uma harpa. Na parte A, aponta a presença de muitos tonalidades (como na peça Amazonas) e sextinas como no Estudo 8. Na parte B, Tarasti afirma que criou-se uma atmosfera sonora única, e a impressão que fica e de uma narrativa épica. A volta ao tema (na parte final) refletiria ―a solidão e a melancolia sem fim de uma terra desolada‖, afirma Tarasti. Na parte harmônica, a peça é iniciada na subdominante (lá menor) e a segunda parte será desenvolvida na tonalidade de Dó maior. A análise de Pereira (1982:57) é de que o Estudo 11 foi concebido numa estrutura similar à do rondó em cinco seções e dois temas: A – B – A1 – B1 – A e a harmonia da peça 143 possui traços dissonantes: A frase dos quatro primeiros compassos tem início sobre a subdominante e se desenvolve na região intermediária do quadro harmônico. Esta melodia é sustentada pelo baixo e colorida por acordes dissonantes. As variações rítmicas da frase subseqüente são feitas baseadas no intervalo de quinta diminuída: mi — si bemol, combinado com acordes de tônica (sem terceira) onde a sexta tem o papel da picardia. O tema inicial se divide em Lento e Piu Mosso. No Lento, a melodia está na quarta corda do violão, na qual o autor pede ―bem cantado e muito expressivo sobre a corda Ré (“Bien chanté et très expressif dans la corde (D)). Este canto inicial ressoa como uma corda de violoncelo, recurso que Villa-Lobos utilizaria mais tarde no tema do Prelúdio 1 e também na segunda parte do Prelúdio 5: Tema da 2.ª parte – Prelúdio 5: Tema do Prelúdio 1: 144 No quarto compasso surge já um contraste a esta melodia lânguida, por meio do pedido de um andamento Piu mosso (mais movimentado). Zanon (1991) comenta que há traços que lembram A Cabana de Baba-Yaga do compositor russo Modest Mussorgsky (18391881) do Quadros de uma Exposição, e aponta os compassos de 4 a 7, ou seja o Piu Mosso, como exatamente as mesmas notas da seção intermediária do Baba-Yaga. A parte B, Animé, provem ainda do Piu Mosso da parte anterior. O Animé tem uma melodia embutida, contornada por terças (nas notas si e sol, respectivamente as 2.ª e a 3.ª cordas soltas do violão). O andamento é animado, introduzindo uma segunda melodia, acompanhada das terças, e alternada por grandes arpejos. Pereira (1982:59) diz: A seção B que será desenvolvida na tonalidade de do maior, apresenta um novo tema. Esse tema é feito da combinação de um motivo rítmico-pedal e de um motivo melódico, um estático e o outro móvel ambos formados pelo intervalo de terceira maior. O harpejo (seis-quiálteras e tercina) no compasso 5/4, sobre o acorde de tônica confirma a tonalidade da seção. O ritmo das terceiras móveis é bastante especial podendo ser associado a uma Conga lenta. 145 Sobre a utilização das terças maiores na parte B, Zanon (1991) afirma que isso remonta mais uma vez à utilização da sonoridade da viola caipira e a violência (sforzzatos) com que o baixo é solicitado sugere o som do berimbau. A comparação com o som do berimbau na obra violonística de Villa-Lobos também já foi feita por Béhague (1994:142), só que no Prelúdio 2 (na segunda seção). As questões técnicas do Estudo 11 começam nessa parte, pois o longo arpejo solicitado, formado por seis quiálteras e uma tercina, solicitam a utilização na mão direita do dedo anelar para executar um rasgueado, em um movimento muito próximo do violão estilo flamenco. Com isso, Villa-Lobos amplia em muito a extensão do arpejo do violão. Este movimento de andamento Poco Meno atinge um dos pontos-altos da escrita violonística. A melodia embutida nesta parte é o tema inicial da peça, apresentado agora de forma alargada e somente na 5.ª corda do violão (antes estava na 4.ª corda) e é entrecortada sempre por três acordes (como faria também de maneira aproximada no Prelúdio 4). A dinâmica, no meio dessa profusão de notas na qual se alcança um dos maiores volumes de som do instrumento, é assinalada em acentuações de crescendo e decrescendo. Esta parte central da peça possui um dos maiores avanços em termos de inventividade na escrita para violão. Grande conhecedor que era do instrumento, Villa-Lobos concebeu 146 apresentar a tônica (mi) em cinco cordas diferentes, por meio de seis quiálteras: na 6.ª corda (solta), na 5.ª corda casa 7, na 1.ª corda (solta), na 2.ª corda casa 5, e na 3.ª corda casa 9. Tudo isso auxiliado por um arpejo de ida e volta com os dedos indicador, médio e anular. Turíbio (1977:20) diz sobre este trecho: ―Na parte central o efeito de Campanela88, utilizando em determinados momentos cinco ‗mis‘ do violão e fazendo-os contrastar com o ré da quarta corda, marca data na história do instrumento‖. Em seguida, há o retorno à segunda parte, Movido, acrescida de uma pequena alteração e, depois, o retorno à melodia-tema, com pequenas alterações, que mais parecem equívocos da edição da partitura, mas que têm sido seguidos à risca pelos intérpretes. 88 Campanela é o efeito de reproduzir a mesma nota em distintas partes do instrumento. 147 5.6. A série de 5 Prelúdios. Após a série de 12 Estudos (1929), Villa-Lobos ficaria onze anos sem compor para violão. Mas, segundo Turíbio Santos (1977:23), a presença do instrumento se faria notar de outras formas, por exemplo, a composição de Distribuição das Flores (1937) para coro feminino, flauta e violão e a transcrição para violão a Ária de Bachianas Brasileiras n.º 5 (1938) por solicitação da cantora e violonista Olga Praguer Coelho. Turíbio também alude ao fato de que o violão estaria presente subliminarmente no emprego de certos temas ibéricos no Descobrimento do Brasil, em 1937, principalmente o tema de Canários. Em 1940, Villa-Lobos retoma o instrumento e compõe os Prelúdios, sendo que um sexto prelúdio estaria perdido até hoje. Turíbio (1977:25) afirma sobre isso: Nós realizamos algumas pesquisas sobre esse desaparecimento. Várias versões foram propostas. Vejamos algumas delas. Segundo uma delas o sexto Prelúdio teria desaparecido durante a Guerra Civil Espanhola, numa residência de Andrés Segovia, bombardeada. Segundo outra, estaria ainda dormindo em alguma prateleira esquecida numa casa de edições ou no longo caminho que segue um original até sua gravura final. Mais outras: teria sido surrupiado por algum admirador doentio (chegamos mesmo a contatar um senhor inglês que se jactava de possuir vários originais de Villa-Lobos, pura fantasia), ou a melhor de todas: como Villa-Lobos teria composto somente cinco Prelúdios, e a fim de não contrair a tradição musical dos múltiplos de seis, o último seria puramente imaginário. Ora, se esta última versão fosse verídica, teríamos um caso de alucinação coletiva pois recolhemos vários testemunhos (inclusive o de Andrés Segovia e Arminda Villa-Lobos) sobre a existência do Sexto Prelúdio. Béhague (1994: 140-141) afirma que os Prelúdios representam algo da mais profunda e afeiçoada expressão da alma musical brasileira de Villa-Lobos; cada um retrata traços específicos do que é essa alma de uma maneira mais sincera e direta. Também destaca que a popularidade destas peças provém não somente do caráter romântico em geral de modelos populares que os inspiraram, mas também da altamente sofisticada e habilidosa exploração do instrumento. Villa-Lobos nomeou cada Prelúdio com uma dedicatória: 148 Prelúdio n.º 1 – Homenagem ao Sertanejo Brasileiro Prelúdio n.º 2 – Homenagem ao Capadócio Prelúdio n.º 3 – Homenagem a Bach Prelúdio n.º 4 – Homenagem ao índio brasileiro Prelúdio n.º 5 – Homenagem a vida social. Ainda segundo Béhague (1994:141-142), os Prelúdios são muito próximos em estilo às Bachianas, na forma melódica, no idioma harmônico e nas práticas modulatórias e, embora não sejam tecnicamente inovadores como os Estudos, eles têm um lugar especial na música de Villa-Lobos, pois pertencem à área da expressão de sentimentos de brasilidade do compositor, sem recorrer a estilos mais óbvios. Como relembra Tarasti (1994:239), os Prelúdios estão entre as obras mais executadas de Villa-Lobos e incorporaram todo os traços standard do estilo violonístico villalobiano, citando-os: movimento paralelo de acordes; ambigüidade tonal; politonalidade embora não sistemática. Na seleção de acordes, uma particular função expressiva é dada aos acordes menores com 7.ª. Tarasti (1994:240) crê que na produção de Villa-Lobos, os Prelúdios para violão pertencem ao romantismo nacional de sua fase intermediária, da mesma forma que o Ciclo Brasileiro está para o piano. Sobre a importância dos Prelúdios, Turíbio (1977:28) destaca-os como livres do ―ranço nacionalista‖: Os Prelúdios, no fundo, são retratos musicais (...) de um povo, de um país. Uma gama infinita de sentimentos profundamente brasileiros desfila nessas cinco peças. E tudo sem o ranço nacionalista, sem o chachado [sic] ou o baião obrigatório. Nada mais que um clima, um temperamento, um ambiente. Essa fase da vida de Villa-Lobos é fortemente marcada por sua atuação junto ao governo Vargas; é a era das grandes manifestações do Canto Orfeônico. Vasco Mariz 149 (1989:223-224) é um dos autores que defende a posição de Villa-Lobos como um ser apolítico. Após os Prelúdios, Villa-Lobos tornaria ao instrumento somente para escrever transcrições, como a Canção do Poeta do Século XVIII (escrita para piano e voz em 1943 e refeita para canto e orquestra em 1958) transcrita em 1953; a Canção do Amor para canto e violão e o Veleiro para canto e dois violões em 1958, escritas ambas para o filme Green Mansions (no Brasil, A Flor que não Morreu). Posteriormente a música do filme é editada em disco com a denominação de Floresta do Amazonas; a Modinha, Seresta n.º 5 da série de 14 Serestas, escritas em 1925, é transcrita também a pedido de Olga Praguer Coelho. 150 5.7. PRELÚDIO 4 Tarasti (1994:240) diz que o Prelúdio 4 é como uma balada no mesmo sentido do Estudo 11. A seção B é também um tipo de bachianismo, uma textura que Villa-Lobos prontamente adaptava para outros instrumentos também. Béhague (1994:142) concorda com a ligação feita com a música de Bach. Critica, entretanto, as alusões a uma intenção indianista deste quarto prelúdio, afirmando que esta é de difícil verificação, a menos que alguém esteja inclinado a reconhecer as fórmulas estereotipadas associadas à música indígena da época – a saber, frases curtas, modalismo e ritmo estático, como tentativas de evocações de uma música primitiva. Marco Pereira (1983:69), é um dos que justamente mencionam essa ligação entre a simplicidade do tema e uma evocação ao indígena: O tema do Prelúdio 4, por sua simplicidade, nos evoca o índio. Seu material temático foi tirado de uma série de harmônicos naturais que se encontram na parte central da peça. (...) Frases curtas de um compasso (em compasso ternário) intercaladas por um motivo rítmico ostinato (em compasso quaternário). E esse motivo rítmico, apoiado no modalismo do tema, que dá todo o caráter primitivo à peça. Turíbio Santos (1977:27), relembra a dedicatória da peça: ―Homenagem ao Índio Brasileiro‖ e a simplicidade da construção: O Prelúdio 4, apesar de totalmente despojado e de uma construção claríssima - a melodia que alterna com o bloco de acordes possui a força de uma orquestra, graças à utilização perfeita das ressonâncias simpáticas do violão. Elas aparecem em toda a obra de Villa-Lobos mas aqui são vestidas, ademais, pela melodia reproduzida com os harmônicos naturais. O tema A é uma melodia com um canto bem destacado do acompanhamento, e que é entrecortada por três acordes (como Villa-Lobos já havia feito no Estudo 11). A harmonia da peça está dentro do campo tonal. A melodia caminha da nota mi, solicitada na 3.ª corda (mas que a maioria dos intérpretes reproduz na 4.ª corda, para obter um som mais volumoso) até o mi da 6.ª corda, e Villa-Lobos demonstra sua grande afinidade com o violão. 151 O tema B é uma melodia acompanhada por arpegios, também de mi a mi. . Uma ponte leva para a parte seguinte: A próxima parte é uma melodia feita por harmônicos89, que reprisa o tema A: 152 Para finalizar, um retorno ao tema A e um acorde final, que mescla as duas tonalidades possíveis – mi menor e Sol Maior. Justamente, o ponto-forte do Prelúdio 4 é a simplicidade e a lógica da construção que, diferentemente da ingenuidade das peças da Suíte Popular, demonstram um domínio grande do instrumento a ponto de saber exatamente o que é próprio de sua linguagem e ao mesmo tempo tão despojado na comunicação. A produção de harmônicos é um fenômeno acústico que consiste em uma ressonância natural de notas em várias partes dos instrumentos. No violão produz-se o harmônico de forma natural, tocando levemente as cordas em pontos determinados por distâncias físicas no braço do violão, ou produz-se os chamados ―harmônicos oitavados‖, com uma técnica própria na mão direita. 153 5.8. PRELÚDIO 5 O Prelúdio n.º 5, ―Homenagem à Vida Social‖, possui a pitoresca dedicatória: ―Aos rapazinhos e mocinhas fresquinhos que freqüentam os concertos e os teatros no Rio‖ (sic). Como afirma Turíbio (1977: 27-28), trata-se de um retorno às origens, da Suíte Popular Brasileira: Ele completa todo um ciclo de composições. E a volta da Suíte Popular Brasileira, da melodia bem comportada, pacata, burguesa. Se não fosse pela segunda parte — onde a melodia é violoncelo puro — este Prelúdio estaria quase mais coerente, dentro da Suíte Popular. Mas não! Ele faz parte do retrato brasileiro. Não poderia deixar de estar entre os Prelúdios. Confirmando também essa qualidade extraordinária do compositor, de reter um tema ou uma idéia anos à fio, para utilizá-lo no momento oportuno. Béhague (1994:142) ressalta que a valsa romântica, cultivada por numerosos seresteiros, inspirou o Prelúdio 5, e que, embora não tenha sido escrito como uma valsa convencional, esta peça é tida como uma nostálgica lembrança da elegância da valsa, outrora dançada no Rio de Janeiro pela classe alta. Pereira (1983:71-72) menciona estes seresteiros que se inspiraram na valsa: Um dos ritmos mais utilizados pela velha geração de compositores populares do Rio de Janeiro foi indubitavelmente a valsa. Em compasso ternário, a valsa brasileira, profundamente romântica, foi fonte de inspiração de artistas como Pixinguinha, Nazareth, Jacomino, Garôto, Reis e outros. Foi cavalo de batalha de cantores seresteiros em suas andanças noturnas pela capital carioca. A valsa brasileira mudava de compasso segundo a idéia que se queria expressar indo do rápido/vivo (para coisas alegres e quando a intenção era evidenciar o virtuosismo do executante instrumentista) ao lento ―choroso‖ (sobretudo para as melodias cantadas). Dois exemplos são as valsas ―Desvairada‖ de Garôto e ―Rosa‖ de Pixinguinha. Tarasti (1994:240) diz que o Prelúdio 5 representa o mais convencional ―violonismo‖ na série de Prelúdios e, em parte, pega emprestado alguns motivos das outras peças da série. 154 A peça é dividida pelas partes: A – B – C – A. A tonalidade está em Ré Maior e a harmonia é apresentada de forma comum dentro desse tom. A primeira parte é em andamento Poco Animato, em compasso binário composto 64 em ritmo claramente ligado à valsa. A melodia90 está na voz mais aguda e é um canto contínuo, incessante, todo em semínimas, somente interrompido ao final da parte quando surge um diálogo entre esse canto e uma voz no baixo, que reprisa a melodia-tema: A segunda parte está na tonalidade de si menor, ou seja, na tônica relativa menor, e o andamento indicado é Meno. A melodia principal está agora na voz grave e imita uma corda de violoncelo, a exemplo do Estudo 11 (1929), Prelúdio 1 (1940) e Prelúdio 4 (1940): 90 Esse início da melodia tema do Prelúdio 5 assemelha-se a melodia Sonho de Magia de João Pernambuco, destacado violonista que esteve presente em uma polêmica na vida de Villa-Lobos. A questão começou quando foi movido um processo contra Villa-Lobos por José Martins Moreira Guimarães, cessionário das obras de Catulo da Paixão Cearense, por causa da utilização do tema de Yara de Anacleto de Medeiros nos Choros 10, que com o título de Rasga Coração possuía letra de Catulo. O processo envolveu João Pernambuco, Alfredo Dutra, e as obras Luar do Sertão, Caboca di Caxangá, Engenho de Humaitá, e Tu Passaste por este Jardim. A história e o processo são por demais longos, mas ao cabo de alguns anos, Villa-Lobos é inocentado. O caso mereceu até o comentário de um dos maiores intelectuais da América Latina, o cubano Alejo Carpentier, que em um irônico artigo no jornal El Nacional de Caracas em 5 de dezembro de 1953 defendeu o maestro (Carpentier:1991). Nesta história toda, um nome parece ter sido o mais prejudicado de todos, João Pernambuco, que na Justiça continuou destituído da autoria de Caboca di Caxangá e Luar do Sertão. 155 No compasso 4, assim como nos compassos 7, 8, 12 e 13, uma voz de acompanhamento surge na ponta do acorde para uma espécie de resposta da melodia grave, e que contribui para variar a seqüência. A terceira parte está em ritmo contrastante, Piu Mosso, e em tonalidade de Mi Maior. A melodia agora se alterna entre as vozes aguda e grave, sendo que nesta última a figuração rítmica passa de semínima para colcheia, e depois para tercinas, o que produz mais movimento à melodia. 156 Para finalizar o Prelúdio, há um retorno à parte A. 157 CAPÍTULO 6. Análise das peças de Leo Brouwer. Como já foi observado anteriormente, Leo Brouwer tem suas primeiras experiências com a composição pouco tempo depois de ter-se iniciado no violão. A data mais provável desse início é 1954. Essa fase da história cubana vivido pelo Brouwer adolescente e por seus contemporâneos é o período dos últimos e conturbados anos do governo do ditador Fulgêncio Batista. Segundo o jornalista Jânio de Freitas (2000:6) presente em Havana na chegada de Fidel Castro em janeiro de 1959, Castro já era o símbolo de oposição e combate à ditadura do general Batista desde 1953, quando em 26 de julho, respondeu à suspensão das eleições, decidida pelos militares, comandando o ataque de um numeroso grupo de jovens armados ao quartel de Moncada. O ataque, embora tenha sido um fracasso do ponto de vista militar, foi uma importante vitória política (Vail 1987: 30), ficando conhecido como ―Movimento 26 de Julho‖. 1956 é um ano sacudido por manifestações de estudantes, uma greve de mais de meio milhão de trabalhadores de açúcar. A bordo do iate Granma, em uma histórica viagem cheia de dificuldades, Fidel (preso e anistiado depois da ação de Moncada, Castro vai para o México preparar nova ofensiva a Batista) e seus homens retornaram a Cuba em novembro de 1956, indo em direção a Sierra Maestra. Nesse período os guerrilheiros ameaçavam os proprietários de engenho com queimadas em suas plantações de açúcar, casos se recusassem a aumentar o ganho dos camponeses; assim a guerrilha conquistava o campesinato. Enquanto isso, em Havana, a insatisfação com o governo aumentava, principalmente entre a massa estudantil e alguns jornais. De acordo com Freitas (2000:8), os estudantes mantinham outra guerrilha contra Batista na Sierra de Escambray, enquanto os líderes da Federação de Estudantes 158 Universitários idealizaram uma ação ofensiva contra Batista, que escapou por muito pouco. ―Cuba tornara-se uma fogueira oposicionista, à qual nem mais a alta burguesia negava colaboração, por intermédio de setores não ligados ao capital externo‖, afirma Freitas. Em 1958 a guerrilha avançava mês a mês em direção a Havana, enfrentando as tropas do exército, que se mostrou incapaz de impedir o cerco rebelde. Em 31 de dezembro, Guevara toma a cidade de Santa Clara. Na madrugada do reveillon, Batista e seus seguidores mais íntimos fogem de avião para a República Dominicana. Fidel Castro se encaminha para Havana, sendo saudado pela população durante o trajeto, e chega à capital em 8 de janeiro de 1959. Milhares de cubanos enchiam as ruas e praças à espera do líder revolucionário, para ouvir o primeiro de uma série de seus famosos discursos. Neste conturbado período principiado mais precisamente em 1953, Leo Brouwer era um estudante iniciado um ano antes pelo pai ao violão e pela tia Caridad Mezquida em teoria. Brouwer definiu a época da pré-Revolução Cubana como um constante viver em ―situações angustiantes‖ (Brouwer 1989: 101) tanto no aspecto econômico quanto no social. Estes anos são refletidos na chamada primeira fase de seu trabalho, uma fase de caráter nacionalista, que segundo o próprio Brouwer (1989: 85-86): ―...corresponde, socialmente, a uma etapa feroz da ditadura batistiana, na qual era preciso reafirmar a nacionalidade por medo de perdê-la, dentro do caos político do momento‖. As datas desta primeira fase composicional de Leo Brouwer vão de 1954 – ano em que há o primeiro registro escrito de uma peça, mas que não necessariamente foi a primeira obra sua, pois o compositor se desfez de peças ou esboços iniciais (veja capítulo Biografia) – a 1960, ano em que Brouwer retorna dos Estados Unidos, aonde havia estudado após a Revolução Cubana, que havia lhe outorgado uma bolsa de estudos. As duas peças escolhidas aqui para ilustrar esta primeira fase composicional de Leo Brouwer são a Danza Característica (1957) e o Estudo n.º 5 (1960). 159 Neste período inicial de composições, Brouwer reafirma seu contato com a cultura popular, principalmente com as raízes africanas de Cuba, em especial os rituais (Betancourt 1999). Segundo Danilo Orozco (1999: 4) Brouwer tinha como um nutriente contextual no panorama sonoro-popular de seu entorno – a prática musical da mãe, o entusiasmo violonístico do pai e também as referências sonoro-culturais; Brouwer interessou-se pelo sentido simbólico-musical dos rituais e toques de origem afro-cubano, na tarefa rumbera, tendo também se interessado em aprender a marimba e o bongó soneros. Diz Brouwer (Bettancourt 1999): I started composing in 1955. I had very strong contact in this first period with popular [vernacular] culture, a culture with roots in African rituals that have a tradition of almost 500 years in Cuba. It was the pillar for the thematic materials of my music, the source of its Afro-Cuban taste, of course with a sophisticated harmony. Brouwer já afirmava em 1970 (Brouwer 1989: 14) que todo o aparato sonoro (em Cuba) é uma ampliação ou transformação da percussão e do violão e que por meio do fator rítmico de procedência e traços africanos (que sobrevivem até hoje) se unem todos os demais parâmetros da música cubana. Deste ―entorno‖ formador de Brouwer, como já disse Orozco, destacam-se alguns gêneros da música popular cubana, como a rumba e o son. Dentro destes gêneros, Vladimir Wistuba (1991: 26) afirma que a Clave, uma célula rítmica de dois compassos, (mostrada abaixo), é a pedra angular da música cubana e afrocaribenha (não só Wistuba afirma isso, mas é um fato de consenso entre os musicólogos), composta por um compasso ―fechado‖ e outro ―aberto‖; ou seja um compasso completo e outro com pausas: . 160 Wistuba constatou a presença da Clave na obra de Leo Brouwer em grande profusão, citando em especial Danza Característica e Fuga n.º 1 (1957). Em seu estudo, ele conclui que uma ―marca de cubanidade‖ na obra de Brouwer seria a utilização de motivos e padrões rítmicos como a Clave, além do chamado Cinquillo cubano: 5 e o denominado Baixo Antecipado, que aparece na música popular cubana preferencialmente na seção do Montuno (a segunda parte improvisada do son cubano, que será demonstrado mais adiante na análise da peça Estudo n.º 5). 6.1. Danza Característica A Danza Característica é dedicada a Isaac Nicola, seu professor, e tem por subtítulo: Para el “Quítate de la Acera” que segundo Jesús Ortega (texto da capa do disco Música para guitarra de autores cubanos - abril de 1961) é um estribilho de uma conga popular de Havana. Literalmente a tradução é uma ordem: ―Retire-se da calçada‖. Além do ritmo denominado Clave, há na peça um outro ritmo básico cubano que é a rumba, que merece maior atenção nesta análise. O famoso gênero conhecido como rumba, teve grande penetração internacional como música do tipo comercial, para se cantar e bailar. Sua origem é afro-espanhola, sendo na vertente africana de origem Bantu (representados em Cuba pela etnia dos congos). Segundo Acosta (1986), a rumba surgiu no século passado, havendo informações de sua prática antes da década de 1880 (libertação dos escravos) nos barracões e em certas festividades consentidas pelos brancos. No ambiente urbano a rumba passou a ser ouvida em solares e 161 portos e, para Acosta, é fato inegável que sua origem tenha sido urbana e suburbana. No ambiente rural, a rumba é ouvida nos engenhos. O verbete rumba está assim descrito no dicionário da música cubana de Helio Orovio (1981): RUMBA, LA. Género cantable y bailable, nacido da vertiente afro-española, con especial marca do primero elemento. Tuve su origen en el marco urbano donde abundaba la populación negra humilde (cuarterías, solares) e no semi-rural, alrededor de los ingenios azucareros. Se interpreta percutiendo tambores (tumba, llamador e quinto) o simplemente maderas (cajón de bacalao, cajita de velas) acompañadas por claves e, as veces, cucharas. Fiesta colectiva. O aporte africano se acentúa no rítmico, carece de elementos rituales, es música completamente profana. O instrumental da rumba é formado geralmente por percussão de tambores, acompanhados de claves (no Brasil é chamado pau-de-rumba). Segundo Acosta (1986:13), o tambor seria o símbolo abarcador da resistência ao colonizador, tendo sua música ressoado na música culta cubana como na obra de Roldán e Caturla. Acosta afirma que essa música, em vez de ser cristalizada como a do século XIX, é uma música ahistórica porque vive um eterno presente, e que um etnólogo não hesitaria em chamá-la de folclore. Também destaca que a rumba em sua série de variantes possui em seus textos verdadeiras crônicas da vida nacional (1986:52). No estilo de rumba chamado de guaguancó, que se toca, se baila e se canta, foi na cidade uma espécie de crônica social dos despossuídos, humildes e marginalizados. A rumba acontece em festas coletivas da comunidade, sem intuito religioso. O aporte africano se acentua no ritmo e na alternância do pregão e coro e seu bailado é mímico. A participação do cantor solista se inicia com a diana (uma espécie de introdução, um chamado) e depois se apresenta com seu texto e assunto, que dá motivo à rumba. Logo em seguida o cantor ―rompe‖ a rumba com a entrada dos instrumentos e o coro. A rumba é um gênero muito complexo com algumas divisões como o Yambú, que possui andamento lento e de origem urbana; o Guaguancó que tem uma intenção narrativa em seu texto (um pouco à maneira do romanceiro espanhol), iniciada pelo cantor, que recorre a 162 um característico lalaleo ou diana. E a Columbia, de origem rural, e de todas as variantes da rumba é a más rápida. Algumas vezes se remete aos passos do dançarino Abakuá (representado em Cuba pela etnia dos carabalís) dos bailes congos e os movimentos gestuais do dançarino (Acosta 1986). Acosta relembra ainda que a rumba tem também múltiplas conotações convertendo-se em várias coisas distintas para vários públicos distintos: nos anos 20, a rumba obtém êxito internacional-comercial, no que ele define como um processo de mistificação da música cubana, e que teve no maestro Xavier Cugat e suas versões açucaradas a maior reprodução. Por outro lado, a rumba se imortalizaria na obra para orquestra sinfônica e voz solista de Alejandro García Caturla sobre o poema La rumba de José Z. Tallet. Uma série de compositores cubanos – Lecuona, Eliseo Grenet, Moisés Simons – contribuíram para a consolidação mundial da rumba. Leo Brouwer por diversas vezes utilizou a rumba em suas obras para violão, além da Danza Característica, há Paisaje Cubano con Rumba para quarteto de violões. Sobre a situação da rumba Brouwer assinala (Wistuba 1989): La rumba no es obviamente lo que piensa el público europeo: una danza agradable, exótica, con maracas y mulatas lindas desnudas, no. La rumba es el complejo rítmico urbano más cercano al ritual africano puro que pueda haber, más cercano aun que las formas brasileiras de la maxixa, del choro, ... mucho más cercano, más puro todavía. Y posiblemente aún más que la música del Peru negro, del Peru costero, es esta rumba negra cubana que nada tiene que ver con lo que el mundo entero conoce como rumba. La rumba es un rito, no una fiesta, es una celebración particular que no es fiesta, nunca em una fiesta se baila rumba. Ella es un rito que siempre esta paralelo a la celebración mítica. Es un complejo polirritmico de danza en pareja con canto y coro que viene de la forma del ritual: es el ritual trasplantado a la vida urbana. Entonces, yo sencillamente me conozco todos los toques del complejo rítmico de la rumba y estos como forma, como punto de partida, como raíz, la uso hasta en formas universales, en Canción de Gesta, una obra para orquesta grabada por la Pittsburgh Synphony, la introducción es el tema de Water Music de Händel y la forma como lo planteo en la trompeta es una Diana, o sea, una llamada de rumba, complejo rítmico que después aparece el final. 163 A diferença maior entre a rumba e a Conga é que a conga necessita de espaços abertos das ruas, para acontecer, em troca, a rumba se conforma com um pequeno espaço, um quarto, um círculo. A partitura da Danza Característica está composta na forma A-B-C-A. Brouwer pede que o andamento da peça seja em tempo Allegro (=116-120) Como acontece em muitas obras para violão, existe a possibilidade de se alterar a afinação da 6.ª corda, e Brouwer solicita nesta peça que a 6.ª corda seja abaixada em um tom, passando de mi para ré. A obra não possui acidentes na pauta, mas percebe-se que na parte A o tema inicial está em sol menor pela formação de um possível acorde de sol menor (sol, si bemol, re); este fato interessa mais adiante quando se verifica como Brouwer, um compositor ainda extremamente novato, obtém a contento uma distribuição equilibrada e inovadora das tonalidades da peça. O tema é apresentado por quatro compassos iniciais: intercalados com outros 4 compassos (rítmico)que carregam em si o ritmo da Clave 164 E nos dois compassos seguintes Brouwer apresenta brevemente uma ponte para retornar ao tema inicial de quatro compassos. Daí se encaminha para um contraponto no qual uma melodia de pergunta e resposta é apresentado: Em seguida surge pela primeira vez a melodia do coro da famosa conga Quítate de la acera que possui a célula rítmica padrão da conga: . 165 Na parte B da peça, o tema inicial que antes estava em sol menor, passa agora para re menor: Se tivesse ido para Ré maior, poderia se afirmar que a música, harmonicamente falando, se encaminhou tradicionalmente para a Dominante, mas aqui o que se pode dizer é que Brouwer iniciou a parte B na dominante menor ou simplesmente aproveitou a afinação da sexta corda em Ré para dispor o tema em uma variante de tonalidade. No desenvolvimento deste tema, Brouwer apresenta a célula rítmica da Clave de maneira invertida da exposição anterior na parte A: Clave da parte A: . Clave da parte B: . Nos quatro compassos seguintes, uma cadência ascendente leva a um retorno ao tema rítmico (clave) da parte A: 166 Do tema inicial da peça, estando em sol menor, poderia se dizer que se encaminhou para a dominante menor (ré menor) ou que foi uma alteração pelo uso das possibilidades naturais do violão, cujo traçado físico, aliado ao uso de pestanas e a afinação da 6.ª corda em ré facilitariam essa escolha de Brouwer na mudança de tonalidades de um trecho a outro. Agora a peça apresenta uma ―reprise‖ do tema anterior (ré menor) só que desta vez na tonalidade de mi menor. Na parte C (poco meno), Brouwer reapresenta a melodia da Conga Quítate... produzindo um efeito de alargamento no tempo da conga, por meio da utilização de tercinas, semínimas e semibreves pontuadas. Sonoramente, há também mudanças no caráter deste trecho, já que Brouwer pede que a melodia seja feita em harmônicos oitavados, em pianíssimo o que vai dar um contraste grande, já que o movimento anterior terminou em um fortíssimo, 167 aliado ao uso da tambora (golpe percussivo no violão, com a mão direita). Além disso, a melodia do Quítate passa de uma voz para outra, em um contraponto simples, mas funcional. Uma ponte realiza a volta Da Capo e toda a parte A é reprisada. A música se encaminha para uma volta ao tema principal da parte B (ré menor): 168 E uma pequena coda de 4 compassos ainda com menções aos ritmos da conga e da clave finalizam a peça, que além disso ironicamente (ou, como é expresso pelo autor na partitura, humorístico) conta com um final na Dominante desta parte (lá) e sua respectiva Tônica (ré). 169 6.2. Estudo n.º 5 da série Estudos Sencillos Ainda que esteja esteticamente ligado à primeira fase de composições de Leo Brouwer, o Estudo n.º 5 está inserido em outro contexto histórico-social da vida cubana. Brouwer iniciou seu trabalho de compositor alguns anos antes (1954) da tomada de poder por Fidel Castro (1959). No período imediato, o governo revolucionário toma uma série de medidas. No campo educacional, uma importante mudança é a unificação do sistema de ensino em todo o país. Diz-se que de todas as transformações ocorridas depois da Revolução, a educação prossegue sendo o saldo mais positivo (Freitas 2000). É famoso o exemplo da erradicação do analfabetismo na ilha ainda no ano de 1959. Na área musical foi decretado o fim dos conservatórios privados, sendo que no ensino de violão o método de Isaac Nicola, professor de Leo Brouwer, é adotado em nível nacional. Segundo Amador (1992), na revisão e criação de materiais didáticos, junto a Nicola tiveram um papel importante os seus alunos: Leo Brouwer, Jesús Ortega, Marta Cuervo e Clarita Nicola. A diferença do tratamento da carreira entre o curto espaço de tempo em que se iniciou na Música - antes da Revolução - e depois da tomada de poder de Fidel Castro, já foi várias vezes mencionada por Brouwer, favoravelmente ao novo governo (Brouwer 1989:101): Con el advenimiento de la Revolución, en Cuba la situación del artista, y de un profesional cualquiera, cambió notablemente (...) Las transformaciones sociales fueron radicales, fueron muy serias; si antes de la Revolución me veía en situaciones angustiosas, no solo en lo económico, sino también en el papel social que tenía, esto dejó de ser una preocupación para convertirse en un alivio con la nueva etapa histórica y social que vivimos en mi país. Pasó lo siguiente: la diferencia entre tener que buscar cualquier medio de vida para subsistir y vivir como ser humano, como un trabajador más de nuestra propia música, de nuestra cultura, creo que fue un paso radical, enorme. Como já foi exposto no item de sua biografia, Brouwer destacou-se rapidamente como aluno, e em pouco tempo leu toda a literatura violonística possível na época. Em 1959 o 170 governo cubano outorgou várias bolsas para jovens estudantes, e Brouwer, como já havia se profissionalizado e adquirido certo nome, recebeu uma bolsa para estudar nos Estados Unidos na Escola Juilliard. Nesta ocasião, Cuba e Estados Unidos ainda mantinham relações diplomáticas. O jornalista Jânio de Freitas, presente ao primeiro discurso de Fidel Castro, em 8 de janeiro de 1959, relembra a posição de Fidel quanto aos Estados Unidos na ocasião e nos meses subseqüentes: Fidel comunicou que logo se iniciariam as desapropriações de certos tipos de empresas e a interdição de várias atividades. Americanos controlavam a economia e as finanças públicas de Cuba, por dominarem os dois setores vitais: do cultivo da cana à exportação do açúcar e o cultivo e a indústria do fumo. Os cassinos, os bordéis de luxo, a prostituição para o turismo sexual, as grandes casas noturnas pertenciam a uma máfia americana. (...) Os mafiosos americanos da noite e da prostituição, fechados os seus negócios, montaram rico sistema de campanha contra ―o comunismo de Cuba‖, com a pronta adesão dos controladores do açúcar e do fumo. (...) O governo americano não faltou com apoio àquela ação, mas, na condição de governo propiamente, estava aturdido. Não achava resposta respeitável para as evidências de que as medidas revolucionárias agiam contra negócios sórdidos e contra a exploração desumana de quase metade dos cubanos na agroindústria. (...) Em sua única tentativa de dirimir o confronto, Fidel viajou aos Estados Unidos para explicar na ONU a Revolução Cubana e, pelos meios de comunicação, convencer os americanos de que Cuba não era comunista, mas uma democracia socialista. Se alguém se convenceu com os sólidos argumentos de Fidel, os meios de comunicação cuidaram de desconvencê-lo nos meses seguintes. (...) O aniversário de 61 do ataque ao quartel Moncada, 26 de julho, foi um novo e mais importante marco desde a posse de Fidel no governo. O próprio Fidel comunicou o nascimento do Partido Unido da Revolução Socialista, Unido por ser a fusão dos revolucionários castristas e dos comunistas. Era uma virada nos princípios originais da revolução e a culminância de um processo, transcorrido nos 12 meses entre o grande socorro soviético e a fusão interna, sobre o qual nada se sabe. A URSS exigiu? Ou Fidel e seu estado-maior converteram-se por convicção e adotaram os comunistas cubanos por vontade própria? Os acontecimentos imediatos desta opção foram a famosa crise dos mísseis e o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos. Leo Brouwer esteve em Havana nos primeiros meses da revolução, mas logo em meados ainda de 1959 ele se encaminha para Nova York, onde permanece até a crise do 171 açúcar de 1960, quando então tem de voltar pelo abalo das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba. Enquanto esteve nos Estados Unidos, além de ter tido a oportunidade de entrar em contato com Vincent Persechetti (orquestração) na Juilliard School e com Isador Freed (análise) na Universidade de Hartford, Brouwer deu aulas particulares de violão para melhorar sua sobrevivência no estrangeiro. Deste trabalho de professor, surgiu a necessidade de compor um material próprio para utilizar em suas aulas, daí nasceu a primeira série dos Estudios Sencillos, um conjunto de 10 peças que abarca algumas das dificuldades técnicas iniciais dos estudantes de violão. A série (assim como a seqüência escrita nos anos 80) tornou-se muito eficaz para a didática do violão e é amplamente adotada por professores e, mais que isso, é tida muitas vezes como material de concerto e vem sendo bastante executada. O grande achado na primeira série de 10 estudos é que um violonista ainda novato consegue tocar as peças e ao mesmo tempo ser iniciado em qualidades interpretativas como colorido, fraseado, definição de vozes e ainda um material moderno e vibrante, distante do contexto clássico europeu ao qual o violão esteve ligado. Um fato que merece ser mencionado é alguma possível relação com os 12 Estudos de Villa-Lobos, que embora tenham sido escritos em 1929, só se tornaram mais conhecidos nos anos 60 e 70, a partir do chamado boom violonístico mundial. Como já foi analisado (ver item Estudos de Villa-Lobos), o aspecto geral dos 12 Estudos era moderno e em linhas gerais distante do material clássico, entretanto impossível de ser tocado por alunos novatos, pois demandam técnica e musicalidade mais avançadas. O Estudo n.º 5 pertence a essa primeira série de 10 estudos. Foi gravado pela primeira vez pelo violonista uruguaio Oscar Cáceres, pela gravadora francesa Erato. Em 172 cada um dos estudos, Brouwer faz uma indicação de como a peça deve ser interpretada em relação ao tempo e, às vezes, aponta para um aspecto a que se destina o estudo. Assim: 1) Movido – cantado el bajo 2) Coral – Lento 3) Rapido 4) Cômodo (Allegretto) O Estudo n.º 5 é a primeira peça da série de 10 estudos de Brouwer que apresenta um grau de dificuldade maior na leitura pois, ao contrário das peças anteriores (em sua maioria estão em colcheias, associando-se a uma leitura praticamente linear), possui células rítmicas sincopadas, o que implica um nível de leitura melhor por parte do estudante, para poder manter o controle de deslocamento dos tempos fortes. No cabeçalho, o estudo apresenta a indicação: Allegretto (montune) As características gerais do montuno (está grafado montune na partitura por se tratar de uma edição francesa da Max Eschig) são a síncope e o deslocamento do acento para o tempo fraco da célula rítmica. O montuno está ligado a um dos estilos mais famosos da música cubana, o Son, um ritmo bailável, com importância no canto. Diz Acosta (1986:52) que o son é um estilo de música dos mais populares em Cuba, quase sempre cantado, e provém do campo das regiões orientais, de onde se estendeu a todo o país na década de 20. Basicamente, o montuno pode ser entendido como um estribilho em vários estilos musicais, estando mais associado ao son e ao danzón. Segundo Odilio Urfé (in Orovio 1981:391-392),o son: es el exponente sonoro mas sincrético de la identidad cultural nacional... su existencia verificada comienza en las postrimerías del siglo XIX- en una ubicación zonal múltiple 173 que comprende los suburbios montuneros de algunas ciudades orientales.” O son tem suas origens no século XX e possui elementos procedentes da música Bantu e espanholas. Baila-se a dois e o instrumental pode ser desde um violão ou até grandes orquestras. Segundo Clara Díaz Perez (1986: 50), o son mais puro ficou com o Trio Matamoros e Ignácio Piñeiro, enquanto outros eram de linha comercial, com derivações do tipo ―congafox‖, ―capricho-afro‖, ―rumba-fox‖, ―canción-blue‖, ―bolero-beguine‖, ―canción slow‖ etc.. Era uma época de interesse comercial pela ―música tropical‖. Segundo Wistuba (1991), uma das marcas de ―cubanidade‖ é o uso do denominado Baixo Antecipado, . . . que aparece na música popular cubana preferencialmente na seção do Montuno – essa segunda parte improvisada do Son cubano. O montuno também está ligado às origens do Mambo, pois, segundo Maria Teresa Linares(1974:159-160), a primeira vez em que se utilizou o termo mambo foi na orquestra de Arcaño y Sus Maravillas em 1938 por Orestes López com sua composição intitulada Mambo – um danzón. A ele (Orestes López) se deve o danzon Mambo, criado em 1938 que deu início a um novo estilo de danzon. (...) Posteriormente, o baixo sincopado do mencionado danzon (...) deu origem em parte ao gênero bailável chamado mambo, criado por Damaso Perez Prado (...) No danzon do novo ritmo se incluía , no terceiro danzon ou montuno, o ritmo sincopado dos treseros orientais que tocavam sones, usando-o também – como no baile que se chamou mambo posteriormente – uma troca de planos instrumentais, usando a tumbadora para determinados acentos. A este novo montuno do danzon, donde seu tema principal – de dois a quatro compassos – adquiria um caráter especial sincopado, deramlhe o nome genérico de mambo (tradução minha). Segundo Acosta (1986), os montunos são estribilhos freqüentes na música de baile e que é feita para dar mais expansão aos bailadores e dotar a peça de um clímax, tanto 174 ―dançável‖ quanto na parte musical. A particularidade deste fragmento é que ele é em geral de quatro compassos e multiplicável (sem limite definido) em seu caráter instrumental, contrariamente a um estribilho comum. E a prática de incluir uma passagem de mambo em uma peça bailável se estendeu aos conjuntos de jazzbands, de modo que um instrumentista de qualquer orquestra podia encontrar sobre a estante, em sua parte do arranjo ou orquestração, uma passagem que diria ―estribilho‖ ou ―montuno‖ e de 1938 em diante outra passagem que diria ―mambo‖. A importância do son como um gênero complexo de expressão da identidade cultural do povo cubano já foi estudada por Maria Teresa Linares, Argeliers Leon, Leonardo Acosta e Danilo Orozco. O tema do Estudo n.º5 é apresentado por uma célula rítmica de um compasso, no qual já se apresenta a síncope: e que se repete nos quatro compassos iniciais da peça: Do compasso 5 ao 8, o uso do Baixo Antecipado, típico do montuno, aparece para dar uma 175 pequena variante no tema: O compasso 9 apresenta uma curta passagem para uma segunda variante, dos compassos 10 ao 13, que, desta vez, mescla o primeiro e o segundo movimento, utilizando-se ora da síncope simples, ora do Baixo Antecipado: Na seqüência, dois compassos insistem no Baixo Antecipado: E nos dois compassos seguintes uma mostra do uso da síncope de forma alargada, depois, de forma estreita: 176 Do compasso 18 ao 21 há uma reprise do tema, e na seqüência, a modo de Final, Brouwer intercala mais uma vez um compasso de síncope com um de Baixo Antecipado. Se em termos de nível de dificuldade de leitura o Estudo 5 é o primeiro a enfatizar uma atenção do intérprete na parte rítmica, o mesmo não se pode dizer das indicações quanto à dinâmica [note-se a grande marcação de sinais de crescendo e diminuindo (<) (>), na qual o executante visualiza plenamente a dinâmica desejada pelo autor], pois desde o Estudo n.º 1 e em todos os demais é grande a marcação de dinâmica. 177 6.3. Canticum. A segunda etapa da carreira de Leo Brouwer acontece nos anos 60. O marco inicial desta fase ocorre por volta de 1961, quando ele retorna de um festival de música em Varsóvia (veja item Biografia), onde entrou em um contato mais direto com linguagens de vanguarda européia. O ambiente político-social de Cuba nestes primeiros anos da década de 60 era: crise do açúcar, bloqueio econômico e a questão dos mísseis entre Estados Unidos e União Soviética. Em Cuba, Leo Brouwer inicia junto com outros compositores uma fase de músicas experimentais, como Sonograma I (1963) para piano preparado e as Variantes de Percusión de 1961-1962. Um pouco depois, em 1964, Brouwer comporia para violão Elogio de la Danza, música de balé que, embora esteja cronologicamente dentro desta segunda fase, possui elementos que retornam à etapa anterior. Brouwer disse sobre isso (Betancourt 1998) que nunca abandona um elemento composicional que lhe seja necessário como ferramenta de trabalho. Este procedimento de Brouwer, de nunca deixar para trás elementos composicionais de outras fases, é uma constante em toda a sua carreira, entretanto, neste período dos anos 60 e 70, pode-se afirmar que algumas idéias se fixaram em seu método, como: - as chamadas ―formas abertas‖ de composição, - um aleatorismo parcialmente controlado (a improvisação aleatória), - o uso mais constante de cromatismo, politonalidade, polirritmia, variações timbrísticas e células melódicas (temas) curtas e similares entre si. Estes aspectos tornaram-se marcantes nas músicas deste período, mais até, e sobretudo, que quaisquer formas acadêmicas que, se já eram poucas em seu primeiro período, 178 se tornaram mais raras nesta fase. As formas estruturais criadas por ele mesmo acabaram por se tornar uma marca de sua obra, muitas vezes recorrente em peças futuras. No ensaio de sua autoria La Improvisación Aleatória de 1971 (in Brouwer 1989:28-36), há muitas referências a estes procedimentos adotados na época, por ele e por outros compositores cubanos. Canticum foi composta em 1968 e está dedicada a Carlos Molina (é provável que se trate de um violonista cubano). A peça está dividida em duas partes: I – Eclosión II – Ditirambo O cântico, por definição clássica, é uma forma de composição musical das mais antigas do Ocidente, situando-se na música religiosa, dentro da homilia. Vários compositores de épocas distintas escreveram cânticos, destacando-se Palestrina que compôs Canticum Canticorum e Igor Stravinsky, Canticum Sacrum, além de Luciano Bério, Ronaldo Miranda e outros. Não há na peça musical de Brouwer nenhuma mostra de religiosidade deste tipo no termo Canticum adotado, mas, provavelmente, pode estar ligado às formas gregas de canto elegíaco – a segunda parte da peça, Ditirambo, sustentaria essa versão. Segundo conta Efraim Amador (1992: 21), Emilio Pujol91, em carta a seu discípulo Javier Hinojosa, assinalava a obra Canticum como a mais importante desde Homenaje pour le Tambeau de Claude Debussy de Manuel de Falla (1876-1946), composta em 1920, e Pujol ainda destacou que com Canticum Brouwer, a exemplo de Falla, iniciou uma nova etapa para o violão. 91 O espanhol Emilio Pujol (1886-1980) foi um importante musicólogo, discípulo e grande divulgador de Francisco Tárrega (1852-1909). Sua obra mais importante é o método Escuela Razonada de la Guitarra, em quatro volumes, que sistematizou a obra de Tárrega. Foi também o primeiro a difundir a obra dos vihuelistas por meio de transcrições para violão, estudos e edições. Escreveu artigos, livros e proferiu conferências sobre o violão e sua história. Compôs algumas obras para o instrumento (Dudeque 1994: 81). 179 Brouwer disse (Hernandez 2000:113) que Canticum é uma obra didática, na qual pretendeu mostrar resumidamente uma série de procedimentos da chamada vanguarda. I - Eclosión A primeira parte da peça, Eclosión, segundo intérpretes que já estiveram com o autor92, é a representação do processo pelo qual um inseto adulto emerge do seu casulo. A obra inicia tipicamente como uma forma aberta; não possui fórmula nem barras de compasso, no entanto, o controle está configurado na sugestão do autor (no alto da página da partitura) na duração da música, algo em torno de 4 a 4‘30‘‘. A introdução é feita a partir de uma seqüência de três acordes em cluster93, nos quais Brouwer pede para deixar vibrar94 (dejar vibrar), alternados com uma grande pausa (G. P.). Já se vê o uso do aleatorismo controlado nas indicações da duração em segundos que devem ter cada acorde e cada pausa (6‖, 4‖ etc.). O ritmo, no entanto fica livre e a cargo do intérprete, porque está baseado na forma de rasgueados (simbolizados por: segue) o que possibilita a cada um fazer mais ou menos movimentos. Essa introdução da peça causa grande surpresa e impacto na audição, pois coloca um 92 Alvise Migoto, Andy Daly. Cluster é uma combinação cromática de um grupo de notas com o efeito de provocar dissonância. Geralmente é representado na forma de um acorde. 94 Deixar vibrar é permitir que os sons produzidos se apaguem naturalmente, deixando-os soar até o som desaparecer. 93 180 meio tradicional violonístico como o rasgueado, inserido em dois procedimentos de vanguarda: o cluster e as grandes pausas, ou seja, são sons fortes e dissonantes entrecortados por grandes silêncios. Muito apropriadamente, o violonista Fabio Zanon (1999) disse: Suas obras entre 65 e 79 - ―Elogio de la Danza‖, ―Canticum‖, ―La Espiral Eterna‖, ―Parabola‖ e ―Tarantos‖ são concisas, equilibradas, fáceis de entender, bem escritas para o instrumento, verdadeiros clássicos do modernismo. São as obras que eu escolheria para introduzir a música do pós-guerra a um público leigo. Com um pouco de explicação, peças como ―Canticum‖ ou ―Tarantos‖ podem ser tocadas para qualquer público, até o mais conservador. Como afirma Isabelle Hernández (2000:111-113), Brouwer trouxe para o violão a linguagem contemporânea que havia incorporado, e desde o início dos anos 60 passou a expor também fatores extramusicais. Para Hernandez, com Canticum, Brouwer sistematizou seu método de composição por meio de células – e no caso de Canticum parte-se de um motivo de três notas. Las obras que hace en esos anos presentan fundamentalmente dos aspectos, o mejor dos procesos compositivos de base. Uno es el devenir de la obra en el tiempo, marcada en su desarrollo que puede ser abierto y gradual, es decir la obra misma es compositiva en su proceso y evolución interna. El otro elemento es el de la composición modular. Tales módulos parten de formas y contenidos universales como, por ejemplo, la estructura de una hoja de un árbol. A esto hay que sumar su método de elaboración a través de células que es permanente en su obra. O compositor Marcelo Mello95 também faz uma interessante análise do Canticum onde vê as relações estruturais entre as notas da peça. Segundo ele: Elas [as notas] parecem se basear numa relação (...) entre si desde o primeiro acorde, no qual a nota mi da 6.ª corda parece fazer o papel de ―equilibradora‖ das seqüências (...). Em cada parte, parece haver a inclusão de um elemento a mais dentro da estrutura, criando assim um acúmulo de elementos a ser reprisado no Ditirambo. 95 Mello, Marcelo. Prolegômenos a uma análise do Canticum de Leo Brouwer, estudo não publicado, gentilmente oferecido a este trabalho em 10/4/2001. 181 Na primeira linha melódica vê-se que as notas são provenientes dos acordes iniciais da obra. Já surge aqui a célula motívica de três notas que irá nortear toda a peça (sol b - fá - sol): Em seqüência, surge um glissando de seis notas entre sol# e ré# (sol# sol fá# fá mi ré#) e um míni-cluster (la, sib, si), com ritmo imposto pelas marcação que indica aumento de velocidade, ao fim da frase. Uma vez mais, Mello atenta para a expansão cromática das notas tanto neste trecho como no anterior ( sol b-sol; sol#-la-sib-si ): ―(...) já ocorre o uso de notas com intervalos de semitom (indicados por pequenas ligaduras) de uma maneira como que de ‗expansão‘ da tessitura a partir de um ponto inicial específico‖. De um outro modo, o cromatismo prossegue no próximo segmento, só que agora descendente (sib – la – lab) e ressurge a célula motívica em um expansão de quatro notas (fá# - ré – sol – lab): 182 Sobre este trecho, Mello também tem uma visão própria: ―(...) a repetição do fragmento melódico e sua organização apresenta os intervalos de terça como ‗separadores‘ de novas aparições dos termos anteriores‖. Em seguida, Brouwer faz o uso do cromatismo em dois encadeamentos. No primeiro, o cromatismo se verifica de duas em duas notas simultâneas: ré# - mi; fá# - sol; lá# si De acordo com Mello, em relação ao primeiro encadeamento, o elemento de repetição em velocidade crescente baseia-se na justaposição de tríades menores separadas por semitom (ré menor e mi menor), que surgem em blocos de duas notas separadas por terças. No segundo encadeamento, o cromatismo não tem a mesma simetria do segmento anterior; em vez de duas notas tocadas ao mesmo tempo, Brouwer desloca as notas cromáticas: do - do# - ré - mi - fá. Em ambos segmentos, o ritmo é controlado pela marcação gradativa da velocidade das notas, das mais longas até as mais rápidas (semínima pontuada – semínima – tercinas – colcheias – semicolcheias), até repousar na fermata. Reaparece agora a célula melódica (sol - fá# - lá), alternada com diversas figuras: - com tambora: 183 - com uma variação de dinâmica que vai de pianissimo a mezzoforte (pp < mf >), executada com os dedos sobre o tampo do violão; - ou com resposta timbre e velocidade: Estas várias representações da idéia-tema reforçam a afirmação do procedimento adotado então pelo autor de trabalhar com uma célula motívica e buscar desenvolvê-la ao máximo, e vêm no encontro da idéia de expansão defendida por Mello: a reaparição do motivo de ―expansão‖ (...), colocado primeiro a partir de uma relação de quinta (e de terça com o baixo), e depois a partir de uma relação de terça (e quarta com o baixo), para logo após anunciar com um trítono uma nova situação do elemento de aceleração rítmica. O uso de intervalos de terças, quartas, quintas e de trítonos ou, em determinadas partes, até mesmo o cromatismo poderiam ser explicados pela intenção da expansão, como é assinalado por Mello, mas não se pode deixar de apontar também que do ponto de vista físico 184 do instrumento são trechos de extrema afinidade com o violão: realizar os intervalos apontados é tarefa muito própria do instrumento, pois é grande o uso de cordas soltas na peça e há bastante simetria entre as linhas melódicas, o que às vezes nos remete a um tipo de desenho da partitura. Na seqüência, prosseguem as alternâncias da célula motívica com outras variações como aceleração rítmica e campanella (exemplo abaixo) Em seguida surgem novos elementos: um arpegio de oito notas que se verifica tratarse de cinco notas cromáticas: mi - fá - fá# - sol – lá, Este arpegio parece servir de ponte para uma re-exposição inventiva das intenções melódicas e dos acordes iniciais da peça: Mello afirma sobre este trecho: ―A figura rítmica da 8.ª linha e também sua configuração intervalar parece remeter de maneira um tanto vaga e truncada aos semitons e aos ornamentos da 3.ª linha. O acorde que se segue talvez se remeta também ao início, com 185 uma 3.ª (do-mi) como função ‗equilibradora‘ ‖. Agora as novas variantes que surgem estão alternadas com a célula melódica decrescente do início da peça: Estas novas variantes são arpegios com notas cromáticas, trinados96, bordaduras97, além de variantes de timbre: dolce, metálico, junto al puente98 e encaminham a peça para mais um motivo cromático (lá - lá# - si) que será ornamentado até o final desta parte. O comentário que Mello faz sobre o fim deste trecho pôde ser constatado: ―Os motivos surgidos na 10.ª linha e desenvolvidos na 11.ª e 12.ª vão tendendo ao tonalismo (acorde de sol maior) e a uma rarefação das estruturas (p. ex. as 3 últimas notas da linha 11) [fá# - sol - láb mais um cromatismo]‖. 96 Trinados são efeitos nas notas com o intuito de ornamentá-las, alternando rapidamente uma nota à nota original. 97 Bordaduras também são ornamentos à nota original. 98 Variantes de timbre como dolce, metálico, junto al puente referem-se a regiões do violão nas quais o som altera seu timbre (como as cores quando mudam de tonalidade). 186 II - Ditirambo O termo Ditirambo vem do mundo cultural grego e sua definição está mais normalmente ligada à área de teatro, pois segundo Aristóteles (na Poética, 1449 a.C.) Ditirambo é um canto coral em honra a Dionísio do qual teria se originado a tragédia grega. Depois, o termo foi empregado para a composição de versos e contos que exprimem admiração ou delírio, com o intuito de realizar um elogio entusiástico até o exagero. Pode-se dizer que a afinação neste trecho é inusitada, pois é solicitado que se baixe a afinação da 6.ª corda de Mi para Mib 99 , logo após o término da parte anterior, ou seja, em plena execução. A parte começa com três baixos de Mib, nos quais Brouwer pede Pesante. Estes baixos serão tocados até o final da música em ostinato, isto é, obstinadamente. A sensação que se produz com isso é de uma segunda voz insistente e quase percussiva, como de um tambor acompanhando a melodia principal. Os três baixos em Mib anunciam o tema recorrente da célula-tema, advinda da parte Eclosión. A célula da mesma forma que na primeira parte irá se desenvolver, se expandir pouco a pouco. 99 Impromptus n.º 3 do inglês Richard Rodney Bennett (1936-), composta também em 1968, utiliza este procedimento. 187 Brouwer encontrou diversas maneiras de realizar expansões e variantes desta célula, como clusters de três notas, com ritmo em tercina e sextina, arpegios, ritmos e trinados advindos também da primeira parte, até que uma reprise do glissando do início da peça e um cluster de três notas em mínimas encaminham a peça para seu final. O final ocorre com uma sensação de repouso, pois Brouwer coloca ré natural e mi bemol, o que pode ser entendido como um último som ligado ao cromatismo (ré-mib), ou a chegada a nota base, ou de equilíbrio – como afirma Mello, da peça, Mib, ou ainda entender o ré como a 7.ª de Mib para finalizar harmonicamente em uma espécie de Dominante e Tônica. A engenhosidade das idéias musicais e o approuch com o instrumento fazem de Canticum uma das peças mais marcantes e bem-sucedidas do repertório violonístico. Com ela, ficou comprovado que o violão além de possuir uma longa história, que o liga às tradições mais remotas, tem a capacidade de se abrir às novas linguagens. Como disse Carlevaro: ―O violão é como a água que se molda a qualquer recipiente‖100. 100 Soares e Antunes (1997). 188 6.4. La Espiral Eterna. A Espiral Eterna foi composta entre 1970 e 1971 e pode-se dizer que é uma das peças violonísticas em que Brouwer mais representou as escolas de vanguarda européia, mas deixando, como em várias outras ocasiões, transparecer a sua marca como cubano. A partitura alterna momentos de procedimentos da técnica de composição vanguardística com a utilização de constantes rítmicas tradicionais cubanas que perpassam por quase toda a obra de Brouwer. Se em Canticum Brouwer quis trazer os clichês da música de vanguarda para o violão, em La Espiral Eterna essa intenção se maximiza, mas sua busca não se limitou somente à mera utilização destes procedimentos, pois idealizou aspectos extramusicais para inserir na partitura. O autor dá essa definição sobre a peça (Hernandez 2000:143): La espiral... comienza con tres notas que son el centro y se van expandiendo una por una, desde un registro central, como si estuviéramos flotando, nunca llega a estallar. Ella se expande, vuelve a recogerse, va y viene y se concentra en una nota. Baja y sube, pero no sube demasiado. Hay un área del espacio que se expande y se contrae continuamente y cuando llega a esa nota termina con una intensidad que conduce a otra lectura, que es el símbolo del átomo, los anillos y los puntos. Esto es una variación de la espiral y adentro están esos átomos. Mi espiral sube y vuelve a centrarse y da pie a la figura atómica y todo va desde el sonido organizado gradual hasta el sonido desorganizado. Mi fiesta va de abajo hacia arriba, como una pirámide infinita. Outras definições anteriores do autor (em Wistuba 1991:24) sintetizam suas intenções sobre a espiral: La Espiral como forma es común a la naturaleza desde la galaxia hasta el caracol y corresponde a una forma de comportamiento en la sociedad de acuerdo a mi criterio (...) ... continuamente nos volvemos a encontrar en el mismo punto, pero desarrollado. Una vez mas nos encontramos con la música del siglo XIX, pero a un nivel de mayor expresividad. No quiero decir que sobrepasaremos a Mahler o Brahms. Repito, no hablo de calidad. Es un paso más allá en la remodelación de todo el asunto. A partitura já foi analisada algumas vezes por: Eduardo Fernandez (1998), violonista e professor uruguaio, que fez um artigo na revista norte-americana Guitar Review; há uma 189 página na Internet de autoria de Alejandro L. Madrid Gonzalez, de 1997, que também analisa a peça; Isabelle Hernandez também a cita em seu livro (2000:143-145). De todas, a de Eduardo Fernandez, embora esteja plena de tabelas e dados, foi a que não se limitou à uma análise acadêmica – trata-se de uma interpretação de um artista sobre a obra de outro: Fernandez vê em La Espiral Eterna o surgimento de uma estrela: seu nascimento, seu auge e seu apagar. A idéia da espiral como forma geométrica presente na Natureza e no Cosmos é uma visão muito antiga, proveniente mesmo da matemática euclidiana, mas que em termos de formalização teórica tem nos escritos de Leonardo Fibonacci (1170-1230) talvez o referencial mais divulgado no Ocidente. Esse matemático italiano raciocinou a respeito das formas contidas na Natureza, como a concha de um caracol, os traços de uma folha, os galhos das árvores, enfim as curvas e seus números correspondentes que surgem na Natureza. Seus estudos o levaram a formular a chamada ―seção áurea‖, procedimento matemático pelo qual acha-se o ponto de partida de uma espiral até a sua abertura cada vez maior, ad infinitum. A série de números de Fibonacci é iniciada com a soma de dois números em seqüência, a partir do zero: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21 ... Este procedimento sem fim cria ao mesmo tempo uma constante em função da razão obtida entre os dois números antes somados, mas agora divididos: 1:0= 0 1:1= 1 2:1= 2 3:2= 1,5 5:3= 1,666... 190 8:5= 1,6 13:8= 1,625 21:13= 1,6153846 Da mesma forma, ao dividir inversamente, obtém-se uma constante: 1:2=0,5 2:3= 0,666... 3:5=0,6 5:8= 0,625 8:13= 0,6153846 13:21= 0,6190476 E assim por diante. Os números que foram fixados para se encontrar a seção áurea são 1,618 e 0,618. A noção de proporcionalidade ou simetria foi exaustivamente utilizada e analisada na história, seja em Arquitetura, Artes Plásticas, Botânica, Zoologia, Biologia etc. Na Música, a construção de instrumentos também tomou por base as noções de simetria e proporcionalidade, mas um dos exemplos mais conhecidos do uso da seção áurea relaciona-se ao nome de Béla Bartók (1881-1945). Sua obra de maior destaque quanto à seção áurea é a Música para Cordas, Tímpano e Celesta (1936), na qual a noção da simetria atinge níveis excepcionais em sua concepção. Enquanto a simetria como meio de se atingir a perfeição, ou seja, reproduzir procedimentos da Natureza, foi utilizada nas Artes Plásticas e na Arquitetura por meio da precisão nas medidas, em Música a aplicação do número de Fibonacci relaciona-se com a duração da música. Por exemplo, se um compositor adepto da simetria e da seção áurea (como Bartók) definir a duração da música em ―x‖ minutos, essa minutagem deve ser 191 multiplicada pela constante 0,618 que assim será encontrado o clímax da peça, a sua seção áurea. Teoricamente, pelo número de compassos também se pode achar a seção áurea, como por exemplo, uma peça de 100 compassos terá seu clímax por volta do compasso 62 (100 . 0,618 = 61,8). O violonista Sidney Molina (2001) teve a oportunidade de perguntar a Leo Brouwer de que maneira a seção áurea é utilizada em sua obra: Depende da obra. Em La Espiral Eterna está presente nas proporções periódicas básicas; já em Lágrima, para orquestra de cordas, está presente nos conjuntos de sons que se agrupam em períodos. Esta forma era, aliás, utilizada pelo compositor Béla Bartók, um dos maiores músicos de todos os tempos. Na verdade nunca parto de relações formais apriorísticas. Eu componho de maneira tal que o som possa gerar o seu próprio desenvolvimento. Não se pode aprisionar os sons. Cada som tem sua personalidade, e eu, como compositor, não posso impedir a manifestação dessa personalidade. Segundo assinala Isabelle Hernandez (2000:144), os números de Fibonacci são encontrados nas seções A e B da partitura de Brouwer. Creio que essa maneira que Hernandez aponta é uma interpretação um tanto quanto livre, isto é, os números não estão exatamente na conformação original (0,1,1,2,3,5,8...) o que até descaracterizaria a série. Mas a autora esclarece: En la seccíón A de La espiral eterna, el compositor adopta de un modo muy ingenioso esta serie, quizás no en su orden real y consecutivo, pero sí como concepto de organización intercelular (grifo meu). De los 24 módulos de células de esa parte A, se encuentran subconjuntos de 8 y 13 unidades. Tal similitud es obvia, el maestro tuvo en cuenta la serie de Fibonacci. Asimismo en la parte B, la segunda sección presenta un movimiento cromático en pizzicato, cuya secuencia repetitiva incluye los números 8, 5 y 3 en ascenso para luego descender a partir de 5, 3 y 2, lo cual sugiere una vez más dicha serie. Creio que o mais válido seria, já que estamos lidando com a série mais conhecida dos números de Fibonacci, não abandonar os números e as regras que governam estas séries. A recorrência de um outro número põe em risco a utilização real da série – isto causaria 192 problema de que outros números também representados ali (nos 24 módulos da seção A e nos pizzicatos da seção B de La Espiral) fossem ignorados, tais como: 4, 6, 7 e outros. Por outro lado, comparando La Espiral Eterna com a peça para quarteto de violões Paisaje Cubano com Lluvia (1984) pode-se sim confirmar o uso da série de Fibonacci na Paisaje..., logo no tema inicial, como afirmou o autor (Wistuba 1989:52): Lo que hay (em comparação com La Espiral...) es la visión monotemática celular que en este caso (de Paisaje...) ya es esencial porque parte de una nota, después dos, luego tres, después cinco, posteriormente ocho, voy siguiendo la progresión no matemáticamente exacta, pero si la de Fibonacci, no literalmente porque no me interesa tener una construcción de esa índole, pero fue el punto de partida (grifo meu). Empieza una nota, después dos, tres, cinco, o sea, la suma de los números anteriores y así se va creando la sección áurea que me fascina de toda la vida.. Pela fala anterior, Leo Brouwer está querendo dizer que Arte não é Ciência, só a utiliza como ponto de partida. Mais importante que encontrar a série exata de Fibonacci na partitura foi determinar a seção áurea da peça, que por vários fatores parece mesmo encontrar-se na seção C, como demonstra o cálculo matemático: O tempo total da partitura deve ser multiplicado pela constante 0,618 para se encontrar o clímax da música. As durações de cada trecho de La Espiral... estão indicados por Brouwer a cada final ou início de seção, acrescido de alguns segundos de pausas. Somente na seção D a duração exata não está fixada; a parte D-1 deve variar entre 10 e 15‖ e a D-2 entre 40 e 45‖. Tempo mínimo Seção A: 120‖ Seção B: 120‖ Seção C: 45‖ Seção D: 1- 10‖ 2- 40‖ 3- 50‖ 4- 25‖ Total: 410‖ Cálculo: 410‖ . 0,618= 253, 38 Tempo máximo Seção A: 120‖ Seção B: 120‖ Seção C: 45‖ Seção D: 1- 15‖ 2- 45‖ 3- 50‖ 4- 25‖ Total: 420‖ Cálculo: 420‖ . 0,618= 259,56 Então, o resultado da marca do clímax da partitura seria algo entre 253 e 260 segundos aproximadamente, o que recai justamente na seção C. Além de esse cálculo matemático incidir exatamente na seção C, dois outros fatores assinalam a parte C como a seção áurea. A primeira, uma declaração de Brouwer (Wistuba 1987:59 in Wistuba 1991:30): La estructura de la Espiral Eterna parte de una nota real (ou seja, na seção A) y gradualmente va oscureciendo las alturas con el pizzicato continuo (seção B) y luego con el sonido indeterminado hasta llegar a la percusión como ruido (seção C), como última forma de la atomización del sonido real (grifo meu). Neste sentido, analisando essa fala de Brouwer, a seção C é o aviso de chegada do auge da peça. Caberá à seção D fazer o caminho de volta da espiral, só que agora de uma maneira ―desenvolvida‖, como afirmou antes Brouwer. A segunda confirmação de que a seção C é mesmo a seção áurea, o clímax da partitura, provém da própria execução da peça, pois a seção C é sonoramente e tecnicamente o ponto culminante da execução, já que demanda habilidade (raras vezes solicitada na música para violão) de tocar o braço do violão com as duas mãos como se este fosse verdadeiramente um instrumento de percussão. La Espiral Eterna está apresentada em 4 seções A B C D, sendo que na última página há uma ―bula‖ para explicar algumas indicações da partitura: 194 A seção A é a parte que mais representa a noção de espiral porque as notas ficam sendo repetidas como se estivessem girando ao redor de si mesmas e passando de um módulo a outro, ora aumentando de extensão ora diluindo essa diferença. A seção possui 24 módulos, com extensão de 15 notas no total, de Fá#3 a Sol#4 (obtendo o intervalo de 9.ª Maior – uma oitava e 2.ª Maior). As notas Mi e Si são recorrentes em todos os módulos e parecem ser o centro do movimento; poderiam ser comparadas a uma espécie de Finalis e Cofinalis, ou uma forçada relação de tônica e dominante. Pode-se depreender mais análises daí: caso se pense em Mi como a ―nota real‖ citada por Brouwer, da qual parte o movimento de espiral, o ré e o ré# seriam suas bordaduras; se pensar em termos de cromatismo, as notas mi, ré# e ré são a execução de um cluster. O início, Lo mas rapido posible, mostra a célula básica que irá conduzir a obra, assim como fez em Canticum. Essa célula básica é formada por três notas simples (ré – mi – ré#) encontradas dentro de um módulo e, como diz a bula, a música contida em cada um dos 24 módulos deve ser repetida, aleatoriamente pelo intérprete o que sugere também uma improvisação ao mesmo tempo controlada pelo limite de tempo (2 minutos) desta primeira parte da obra. A cada módulo vai sendo acrescida uma ou mais notas, ampliando a curva da espiral, mas logo chega a um ponto de retorno ao tamanho original, isto é, de três notas. O resultado sonoro deste trecho é um continuum em que se destaca a proximidade entre as notas, quase o tempo todo em cromatismo. A dinâmica é suave, com o pedido de 195 variação de som de um ppp até um mf com várias indicações de < e > (crescendo e decrescendo). Ao final desta parte um pizzicato alla Bartók é solicitado, assim como uma pausa de dois segundos. O controle sobre a interpretação da peça é percebido pela indicação da duração da obra, que até aqui deve ser de 2 minutos. A seção B possui três subseções: 1- Un poco lento, 2 - Rápido e 3 – non pizz. Aqui estão alguns números de Fibonacci (no começo da seção 2: 8, 5, 3 e no fim desta seção 5, 3, 2, citados por Hernandez), embora intercalados por outros números fora da série. A seção funciona com a alternação de três ou quatro notas em cromatismo repetidas em Pizzicato com duração indicada pelos colchetes, com uma nota em Sforzzato101 e Glissando. 101 Sforzatto (sffz) é a solicitação para que uma nota seja tocada com maior destaque. 196 Segundo Hernandez (2000:145) assinala, esta seção representa o movimento dos átomos girando ao redor do seu núcleo e como afirmou Brouwer o pizzicato está em ―som contínuo com alturas obscurecidas‖. Hernández também aponta o efeito de stop-motion do movimento nas notas em Sforzzato e Glissando. A finalização desta seção ocorre quando as notas então em pizzicato passam a notas de entonação apagada, por meio do apoio dos dedos da mão esquerda sem peso sobre a primeira corda, cabendo agora ao executante visualizar o desenho curvilíneo que se forma para ascender ou descender pela corda. Chega-se assim ao ―som indeterminado‖, intenção de Brouwer. Esta seção B também tem duração indicada de 2 minutos. Como disse Brouwer, do som indeterminado (vindo da seção B) passa-se ao som de percussão, ―como ruído como última forma de atomização do som real‖. Utilizando a técnica de percussão com as duas mãos, o executante deve alterná-las por meio das indicações na partitura quanto à escolha dos dedos de ambas as mãos: indicador (i), médio (m) ou anular (a) da mão direita; com os dedos 1 (indicador), 2 (médio) ou 3 (anular) da mão esquerda, além disso, o andamento sugerido, Rapido, Irregolare, é obtido com a colocação de valor entre colcheias e fusas muito velozes, também em ascenso e descenso, e as alturas das notas são apontadas pela região aproximada em que se situam no pentagrama: 197 A duração prevista desta seção é de 45 segundos. D – Esta seção representa o retorno “desenvolvido” da Espiral, ao qual o autor se referia. Está dividida em quatro subseções, todas com marcação de duração de tempo em segundos ou por intermédio de sugestão de metrônomo ou de andamento: D-1: 10‖a 15‖ e = 60-72 D-2: 40‖a 45‖e = 92 D-3: Rapidísimo e 50‖ D-4: 25‖ A seção D-1 tem a figuração de um cluster alargado, no qual se solicita a improvisação entre 10 e 15 segundos nestas notas apresentadas. Em seguida, o improviso tem como base os ritmos afrocubanos, como Brouwer afirmou em 1978 (in Brouwer 1989:91): ― ... dentro del aleatorismo, en la Espiral para guitarra hay una sección completa que es un toque de tambores de rumba-guaguancó propiamente – con el quinteo, con el bajo ostinato, con su complejo rítmico -, y se inserta muy bien dentro de la atmósfera total de la obra”. A partir da segunda parte (D-2) a melodia inicial é acompanhada de uma segunda melodia, também com ritmos afrocubanos. 198 Na parte D-3, configura-se a representação do intento maior do compositor, a de que a espiral retorne de forma mais desenvolvida. Enquanto a seção A mais bem representa a idéia de uma espiral, a parte D-3 concebe a espiral expandida, inclusive pela extensão física do violão (note-se ainda que o desenho obtido tem um aspecto piramidal), pois se vai da nota mais grave do instrumento, o Mi da 6.ª corda, até o si da 1.ª corda, casa 17 do violão, e vai diminuindo de extensão, até atingir o Mi grave e um cluster de duas notas, em pizzicato alla Bartók: 199 Para finalizar, um Lento, proveniente do final do D-3, faz ressurgir a célula inicial de três notas, alternada com o pizzicato alla Bartók, como no final da seção A, e que passará para outra célula repetitiva e similarmente alternado com um pizzicato alla Bartók. Por fim, a parte D-4 traz as últimas três notas em cluster em dó, dó# e ré, na qual se solicita a permanência do movimento de repetição da melodia durante 25 segundos, em um desenho de dinâmica que deve ser executado. Entre aleatorismo e improvisação, a partitura ficou assim representada: Seção A – Repetição de melodia cromática indicada dentro dos retângulos, durante 2 minutos. O improviso fica a cargo do intérprete em relação a quantas vezes repetirá a melodia de cada módulo, sempre observando a duração definida em 2 minutos. Seção B – No final da seção a solicitação de que as notas tenham sua entonação apagada aponta para o aleatorismo da altura das notas, determinada agora pela improvisação na execução do intérprete de acordo com sua visão do desenho curvilíneo da melodia. Imposição de 2 minutos também para esta seção. Seção C – Aleatorismo das notas e improvisação a critério do intérprete, observando os desenhos de dinâmica e altura propostos, durante 45 segundos. 200 Seção D – Improvisação sobre as notas dispostas em um largo cluster e depois com as mesmas notas só que tendo como base os ritmos afrocubanos ali representados. A marcação da duração dos tempos sugere sempre um improviso controlado. La Espiral Eterna sintetiza a bagagem cultural de Leo Brouwer. A partitura se dimensiona pela inserção de vários mundos – europeu, africano, latino-americano. O termo ―espiral‖ transformou-se em um epíteto do próprio Brouwer. 201 6.5. El Decamerón Negro. A obra El Decameron Negro é inspirada no livro homônimo do antropólogo alemão Leo Frobenius (1873 - 1938), cuja primeira edição em Castelhano foi feita em 1925, pela editora espanhola Alianza Editorial. Conhecer a obra literária que levou Brouwer a compor a peça contribuirá para as análise e interpretação musicais. O livro El Decamerón Negro é uma antologia de contos que narram feitos heróicos e fábulas de animais, à moda de nossos equivalentes ocidentais como as histórias dos cavaleiros medievais e as famosas fábulas de La Fontaine. Na introdução do livro, Frobenius explica o porquê desses interessantes relatos. Acontece que em algumas sociedades tradicionais africanas, os filhos dos nobres, em idade adulta, saem à procura de aventuras, glórias, amor e de sua própria fortuna, por isso tantos acontecimentos foram relatados, servindo de motes para muitas narrativas. Sobre o uso do termo ―Decamerón‖ só se pode concluir que Leo Frobenius quis ligar a narrativa africana à famosa antologia do italiano Bocaccio autor de Decameron. Frobenius não é o autor das histórias do El Decamerón Negro. Ele as coletou de profissionais extremamente especializados que passam a vida dedicando-se ao arquivamento da história tradicional africana: são os chamados griots (pronuncia-se ―griô‖ - palavra estereotipada advinda do colonizador francês para caracterizar, erroneamente, um indivíduo que utilizaria feitiçaria). Muitos autores, como Frobenius mesmo, costumam comparar os griots às figuras dos bardos e trovadores. Ser um griot é um dos mais ativos papéis sociais dentro da sociedade tradicional africana. Segundo Djibril Tamsir Niane (1982:7) é o griot quem garante a preservação da memória de um povo. Chamado por outro autor, Hampaté Bâ (1982:181), de ―autêntica biblioteca pública‖, o griot exerce sua profissão de perpetuar a história por meio da chamada 202 ―tradição oral‖; não há registro escrito de todas as épocas que um griot sabe e cita de memória - memória esta que é sua ferramenta de trabalho. Interessante notar que na introdução do livro de Niane (1982:5) este alude ao fato de os griots serem geralmente excelentes poetas, e que a arte de tocar e cantar teria vindo por último entre as funções do griot. Lamenta, entretanto, que hoje em dia a denominação griot esteja mais ligada à seguinte definição: ‗casta de músicos profissionais‘ feita para viver às custas dos outros; desde de que se menciona um griot, pensa-se nesses numerosos violonistas que povoam nossas cidades e que vão vender sua ‗música‘ nos estúdios de gravação de Dakar e Abdjian (...) Se, hoje, o griot se vê reduzido a tirar partido de sua arte musical (...) nem sempre foi assim na África antiga. Sobre essa reclamação de Niane, é necessário explicar que era (e por certo ainda é em muitos lugares da sociedade tradicional africana) obrigação de um griot falar em nome de seu nobre, negociar, informar sobre a ascendência, contar os feitos da árvore genealógica de uma família. Em troca, o griot receberia a hospitalidade e o sustento. Quando um nobre alcançava estabilidade financeira, o griot reconhecidamente vivia às custas do seu senhor, acumulando presentes, recebidos pelos serviços prestados. Dentre estes serviços de um griot poderiam estar desde uma negociação de paz sobre alguma desavença entre famílias até uma canção feita para exaltar as qualidades de seu senhor (a bondade, a força, a sabedoria, a beleza etc.) ou uma canção para o nascimento de um filho etc.. Com o inevitável contato entre as civilizações européia e africana, a figura do griot alterou-se significativamente, a ponto de se tornar um comércio, daí a reclamação de Niane sobre a relação do griot com o show-business. Atualmente, com a tecnologia da TV a cabo ou por satélite, não é difícil encontrar griots apresentando-se em programas nos canais de língua francesa, e há hoje em dia muitos Compact Discs de etnomusic ou worldmusic gravados por griots advindos de famílias tradicionais africanas, que continuam cantando suas canções ou executando suas músicas instrumentais, incluindo algumas que narram epopéias, 203 completamente ininteligíveis ou desconhecidas do Ocidente e muitas vezes visadas e popularizadas somente pelo ritmo - característica mais reconhecível pelo público ocidental como o que se espera da música africana. No caso da obra musical, El Decamerón Negro foi composta em 1981 e dedicada à violonista norte-americana Sharon Isbin (1950- ), pertencendo à terceira fase do compositor, Nueva Simplicidad. Leo Brouwer é um admirador dos griots tocadores de kora102, diz que são verdadeiros exemplos de virtuoses porque ―têm ao mesmo tempo a agressividade e a leveza necessárias‖ (Gordon 1986). Durante a execução do Decameron percebe-se essa alternância entre leveza e agressividade em trechos contrastantes. Nota-se pela temática apresentada na obra musical que Brouwer ficou mais com a primeira parte do livro, na qual são narradas as aventuras de nobres da região entre o sul do deserto do Saara e a floresta do Níger. Esta é uma região geográfica familiar a brasileiros e cubanos, pois foi de onde foram trazidos à força boa parte dos africanos para o trabalho escravo no continente americano. A maioria das histórias narradas no El Decamerón Negro mostra o difícil caminho do jovem guerreiro em se tornar reconhecido, começando geralmente por ser um anti-herói, muitas vezes tomado por covarde, até conseguir provar sua dignidade por meio de feitos heróicos em batalhas ou demonstrações extremas de coragem, conquistando a glória almejada e o coração de uma mulher. A série de seis contos narrados na primeira parte do El Decamerón Negro como um todo inspirou Brouwer que, em vez de seguir passo a passo um ou outro conto do livro optou por narrar a essência da obra: um guerreiro está à procura de feitos gloriosos, consegue realizá-los, é reconhecido pela amada e será imortalizado em uma canção feita pelo griot. 102 A kora é um instrumento africano de 21 cordas tocadas com a ajuda de duas baquetas, uma em cada mão, que pinçam as cordas estiradas em uma cabaça que serve como caixa de ressonância. 204 Entretanto o conto de número 5, El Laúd de Gassire (O Alaúde de Gassire), parece ser de fato a história que mais se aproxima à obra musical de Brouwer 103. Uma comparação pode ser feita já pelo título do primeiro movimento El Arpa del Guerrero (A Harpa do Guerreiro) com El Laúd de Gassire, mas as comparações literais começam e terminam por aí. Este quinto conto do livro de Frobenius relata a história de um guerreiro, Gassire, que ansiava por assumir o trono de seu pai, que já era de idade avançada. Consultando um adivinho, ele fica sabendo que jamais herdará a espada e o escudo de seu pai. Um alaúde tem um importante papel na história; os ―poderes‖ do instrumento são descritos com bastante lirismo; diz-se que é capaz de eternizar os feitos dos homens com suas canções e que estes feitos superarão sua morte. Poderia ser interpretado que no primeiro movimento da peça (El Arpa del Guerrero) Brouwer está representando aqui a ―voz‖ da harpa contando a história do guerreiro (enquanto que no conto do livro, é o alaúde quem ―fala‖). Entretanto, parece que Brouwer inspirou-se nas narrativas, mas quis ―acrescentar‖ ele mesmo uma nova história à coletânea, como se estivesse assumindo um papel imaginário de griot ou, mais ainda, que todo o intérprete da peça seria um griot. Brouwer falou o seguinte sobre o livro e a sua peça (Hernández 2000:216): Tomé una historia del libro El decamerón negro de León Frobenius, un sociólogo y científico que fue a África a estudiar la cultura de ese continente a principios del siglo XX. Muchas historias les fueron reveladas por los griot ancianos que conocían muy bien las leyendas. Con estos cuentos recogidos él armó un maravilloso libro, que además tuvo gran influencia en la literatura europea, incluso Picasso recibió su influencia de forma revolucionaria en sus máscaras negras y todo el asunto de la „negritud‟, bien como la llamó Jean Paul Sartre. El libro entero tiene que ver con la guerra, el amor, tabúes y un poco en homenaje a Bocaccio, Frobenius parafraseó el título del renacentista italiano y por tal razón lo tituló El decamerón negro. De aquí sólo trabajé una historia que dividí en tres partes. La primera es de un guerrero que quería ser músico y tocar un arpa. La situación de castas era muy estricta, en un primer término estaban precisamente los guerreros, luego los sacerdotes, los cultivadores, y en el fondo de esa escalera están los músicos. ¿Como fue posible entonces que un grandioso guerrero del clan quisiera ser un músico? Este guerrero al dejar de serlo, fue desechado por el clan y expulsado de la 103 Segundo nos informa o violonista Gilson Antunes: durante masterclass do violonista uruguaio Eduardo Fernández sobre a obra, em 1996, na Unirio, ele afirmou que embora o livro como um todo tenha sido importante, este conto foi o que mais inspirou Brouwer. 205 tribu. Entonces se fue a las montañas, pero sucedió que la tribu comenzó a perder todas sus batallas y es cuando lo van a buscar, le piden, casi de rodillas, que los ayude, a ese que ya no era guerrero, sino músico. Baja de las montañas, gana todas las guerras y regresa a las montañas para convertirse en músico una vez más. Aquí también hay una historia de amor. Después de ser expulsado, ya no podía ver a su mujer, luego de vencer las batallas se la llevó con él. Esa es, simplificada, la historia El decamerón negro. As partes La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos (A Fuga dos Amantes pelo Vale dos Ecos) e a Balada de la Doncella Enamorada (Balada da Donzela Enamorada), referem-se ao papel feminino em vários contos do livro como parte da vitória do guerreiro na sua aventura. Brouwer afirmou que fatores técnicos não têm tanto valor para ele (Gordon 1986) como têm os fatores extramusicais, embora ressalve que é necessário conhecer primeiro todas as técnicas para poder fazer escolhas livres. Duas coisas importantes ele já disse sobre compor para violão: quando compõe, pensa primeiro na música e depois transcreve para o violão (Hoz 1999) e que crê que sua música para violão é do tipo de um ―violão-harpa‖ (Gordon). Neste sentido, os padrões de arpegios que ele utiliza funcionam como vibrações, ressonâncias que quer dar em uma obra. As palavras de Brouwer (Bettancourt 1999) foram: The guitar harp is a guitar-orchestra in which all the orchestral compositional elements are closer to the orchestra than to the traditional guitar clichés. I always use the "GuitarHarp", a resonant guitar. I try to avoid the percussive or melodic guitar. The basic harmonies I use, when they are simple chords, are chords that rest obeying the "law of opposing forces". These harmonies involve small -I could say even miserable- thematic materials. Four foolish notes give me the pretext to compose a work of big dimensions. [O ―Violão-Harpa é um violão-orquestra no qual todos os elementos composicionais estão mais próximos à orquestra do que a tradicionais clichês violonísticos. Sempre uso o "Violão-Harpa", um violão ressonante, não o violão percussivo ou melódico. As harmonias básicas que uso, quando são acordes simples, são harmonias que descansam obedecendo à ―lei dos contrários‖. Estas harmonias envolvem materiais temáticos ínfimos – eu diria até míseros. Quatro notas tolas me dão um pretexto para compor uma obra de grandes dimensões.] (tradução minha) No Decameron Brouwer utilizou, de forma geral, o formato A-B-A em cada uma das três partes da peça, isto é, a peça tem um tema inicial (A), um desenvolvimento no meio (B) e um retorno à primeira parte (A). 206 Uma das técnicas de composição que está presente no Decameron é o Minimalismo, assim como em outras obras de Brouwer, (destacando-se Estudo n.º 20 para violão, Chanson de Geste, para orquestra de sopros). O termo Minimalismo entrou mais em voga nos anos 70 por meio da obra dos norte-americanos Steve Reich e Philip Glass, este último tornando-se um dos nomes mais conhecidos no gênero. Mas Brouwer declara que há muito tempo já se fazia música minimalista no mundo – ele disse (Bettancourt 1999): I took minimalism as a very important compositional element because it is inherent to my cultural roots from the "third world". Africa, Asia manifest themselves in a minimalist way. These marvelous creators of North American minimalism discovered that fact, perhaps late. [Tomei o minimalismo como um elemento composicional muito importante porque ele é inerente às minhas raízes culturais de ―terceiro mundo‖. África, Ásia manifestam-se de um modo minimalista. Estes maravilhosos criadores do minimalismo norte-americano descobriram este fato, talvez tardiamente.] (tradução minha) No Decameron a harmonia possui tonalidades dúbias e há uma ausência de progressões harmônicas, fato comum a quase todas as obras de Brouwer. Há uma profusão de vozes imitativas e registros alternados de vozes. O fraseado, na maior parte da obra, aparece como um trecho curto que vai crescendo aos poucos quase em uma progressão matemática; essa ampliação às vezes se ―resolve‖, isto é se limita, e retorna ao tamanho original. Brouwer utiliza uma progressão matemática, mas sem uma ordem pré-estabelecida, fixa ou rígida como na Espiral Eterna. A partitura está dividida em três partes e em algumas seções internas. A primeira parte, intitulada El Arpa del Guerrero, introduz a ―história‖ em dois compassos com três ligados ascendentes que chamam a atenção para o início da narrativa. Esta primeira parte está dividida pelos temas: A - B (lírico) - A - C (tranquillo) - A‘- B‘- A -C‘ -A‘‘- coda final. O tema A possui um aumento progressivo na linha melódica. Os arpegios são seqüencialmente interrompidos por um fraseio curto, até progredirem cada vez mais, tanto no número de arpegios quanto nas frases: 207 2 arpegios - uma frase; 3 arpegios - a frase anterior acrescida de outra; 4 arpegios - as 2 frases anteriores acrescidas de mais uma nova frase. Os motivos seguintes - os dois un poco sostenuto e os dois tranquillo - até a coda vivo, seguirão este modelo de alternar arpegios com linhas melódicas curtas. É de se notar que o tratamento de arpegios de 10 notas pode ser uma tentativa de imitação da kora. Como Brouwer mesmo já citou os arpegios em suas obras aparecem sempre como ressonâncias e o motivo melódico é mínimo. E é o que acontece no tema B (lírico); o motivo melódico é pequeno, acompanhado de arpegios. Aqui é um momento de contraste, como a oposição entre agressividade e leveza, citado anteriormente, necessários ao intérprete. Na seqüência do lírico, há um retorno à parte A. 208 Em seguida, o tema C (tranquillo), diferente do que vinha ocorrendo até aqui, tem a melodia apresentada verticalmente, isto é, em acordes, cabendo ao intérprete destacar a melodia que está embutida nestes acordes. Este tema, apresentado em forma vertical, surge como um contraste à profusão de melodias horizontais vigentes. Percebe-se que ao final desta parte C, o compositor dá sinais de um procedimento de sobreposição de vozes, que surgirão com maior profusão nas partes II (Fuga dos Amantes...) e III (Balada da donzela...). Recomeça uma exposição A- B- A: o tema da introdução é estendido; o Lírico agora passa a uma 4.ª acima104 que vai levar a uma apresentação em acordes para retornar ao tema A e ao novo Tranquillo também uma 4.ª acima. Há um retorno parcial ao tema A, seguindo para uma coda (Vivo) com grandes arpegios de 10 notas, e finaliza definindo a tonalidade em Mi maior. 104 Passar para 4.ª acima (ou qualquer outro intervalo) significa alterar a tessitura do trecho; no caso aqui a frase musical (Lírico) ficou mais aguda. 209 A segunda parte, intitulada La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos‖, ou ―A Fuga dos Amantes pelo Vale dos Ecos‖, está dividida em 9 seções, que em seus títulos revelam o espírito descritivo que o compositor quis dar, como por exemplo na passagem que indica a iminência de que algo está para acontecer, no declamato pesante e no presage, ou na representação de uma ação como no primer galope de los amantes. Esta parte refere-se ao papel feminino em vários contos do livro como parte da vitória do guerreiro na sua aventura. A introdução A- Declamato Pesante tem (como na primeira parte) o alargamento da melodia a cada frase e esta melodia será o tema recorrente da parte toda. Na seção B -Pressage nota-se que a partir do arpegio se sobressai a melodia anterior. O final de cada frase com a nota se repetindo e diminuindo assinala a sensação de eco que o autor já quer passar. A seção C- Primer Galope de los Amantes, utiliza várias quiálteras, e é dominada por Minimalismo. Estes dois procedimentos vêm no encontro da sensação de eco que se quer produzir e à idéia do galope, além do já estabelecido uso de arpegio. O uso do Minimalismo é controlado pela solicitação da repetição de quatro vezes (x4) cada módulo e há uma idéia de alongar cada vez mais o movimento até atingir um auge e começar uma volta, diminuindo os movimentos. Nota-se mais uma vez a grande semelhança com a sonoridade da Kora. 210 Na seção D- Pressagio, retoma-se a forma do Pressage. As seções E- Declamato e FRecuerdo possuem o mesmo tema da Introdução (Declamato Pesante), que mais uma vez vai sendo ampliado no fraseado e agora recebem um contraponto imitativo na segunda voz, o que refaz a sensação de eco. Na seção G- Por el Valle de los Ecos, o tema é ainda o mesmo da Introdução só que agora bem mais dimensionado e, por inventividade do autor, o final de cada frase está apresentado na forma de ecos, incumbindo o intérprete de melhor representar esta sensação. Os aspectos minimalistas e dos arpegios são ampliados aqui, como forma de demonstrar a sensação de eco e de um galope. Na seção H- Retorno, ocorre a volta aos primeiros compassos da parte G (Por el Valle...)105. Na seção I- Epílogo há uma volta ao tema do B- Pressage, mas agora invertendose a ordem dos compassos: 105 Estranhamente, neste Retorno há uma alteração na fórmula de compasso de 68 para 88 o que pode ter sido um equívoco da edição da partitura (Edições Transatlantiques - Paris), já que claramente fica evidenciado que a seção H é um retorno e, portanto, deveria seguir exatamente a marcação anterior da fórmula de compasso. 211 A terceira parte, intitulada Balada de la Doncella Enamorada, ―Balada da Donzela Enamorada‖, já foi comparada por Carlos Barbosa Lima, violonista brasileiro de carreira internacional, a uma balada-rock (Gordon 1986). A Balada está apresentada em: A - B - A - C - A. A parte A (moderato), começa com um pequena introdução de dois compassos, com caráter rítmico mostrando já um deslocamento de tempos (síncope) que irá prevalecer nesta parte toda. Nesta terceira parte em especial percebe-se uma noção de tonalidade – Ré maior. O tema principal desta parte, Sempre Lírico, além das muitas síncopes, tem a melodia acompanhada de baixos. Após isso, o tema é desenvolvido brevemente e é finalizado com uma alusão aos compassos da introdução. No B- Piu mosso, a célula rítmica da parte A (moderato) será o elemento de fundo que acompanha obstinadamente uma melodia em semínimas ( ): 212 Essa melodia simples em semínimas vai sendo acrescida de uma nota, depois duas, formando por fim uma tríade menor. Após isso, surge uma ponte de sete compassos que leva a uma nova temática. Nesta, a célula rítmica de acompanhamento está agora na voz aguda, enquanto que a melodia em semínimas está na voz grave. Há um retorno a melodia da passagem anterior (ponte), com algumas variantes até voltar ao tema principal Sempre Lírico. A parte C é um novo Piu mosso que surge com a mesma célula rítmica da introdução nos baixos, mas agora com uma melodia intercalada, em uma espécie de ponteio, que durará até o fim desta parte. 213 Surgem arpegios e rasgueados106 alternando-se com os baixos e ―ponteios‖ anteriores. Há mais um retorno ao tema Sempre Lírico e finaliza-se a peça com a célula rítmica da Introdução que foi o fundamento desta parte: Pode-se concluir que o uso de arpegios foi o procedimento que mais apareceu na obra e que serviu de elo entre as três partes. 106 Note-se que o uso de rasgueados, teoricamente um procedimento do violão flamenco, em uma peça que tem como pano-de-fundo aspectos da cultura africana é normal aqui porque Brouwer traz para o violão essa mescla de linguagens. Além disso, os rasgueados também lembram o som da Kora – Brouwer tem uma interessante 214 6.6. Rito de los Orishas. A peça Rito de los Orishas de Leo Brouwer pertence à fase mais recente do compositor; o terceiro período chamado por ele de ―Nueva Simplicidade‖ e por alguns especialistas de ―Hiper-romantismo nacionalista‖. O que chamou a atenção para escolher a peça foi a sua temática, por demonstrar o encontro entre os contextos religioso e musical. O culto aos orixás praticado em Cuba é advindo da África Ocidental, na região de Nigéria e Benin, no mapa ocidental. O culto foi trazido a Cuba pelos africanos de origem ioruba, durante a forçada vinda para o trabalho escravo nas lavouras canavieiras. Em terras cubanas, os iorubas receberam a denominação geral de Lucumí. Após séculos de constantes dificuldades em manter vivo o manancial cultural dessa sociedade, durante o longo processo de sincretismo, a religião Lucumí sobreviveu até os dias de hoje na chamada prática da Santeria cubana. Composta em 1993, Rito de los Orishas, Rito dos Orixás em Português, foi dedicada ao violonista argentino Álvaro Pierri. A peça tem como tema alguns aspectos do culto aos orixás em Cuba e está apresentada da seguinte forma: 1. Exordium-conjuro 2. Danza de las diosas negras Danza I Danza II Evocación I Evocación II Danza III ―tese‖: a de que os aspectos essenciais das diversas culturas são abstratos e na verdade se tocam, se aproximam, 215 Segundo o prefácio da edição, os dois títulos principais acima sugerem primeiramente um rito no qual maus espíritos são afastados, e uma segunda parte na qual acontece a dança das deusas negras. A primeira parte está representada pela idéia do Exordium-conjuro, (exórdio - começo de um discurso; conjuro - afastar perigo, mal iminente, segundo o Dicionário Aurélio), ou seja, é uma representação da abertura de uma seção de culto ao orixá em que o sacerdote é o encarregado dessa tarefa, pois não se começa nenhum rito sem uma invocação (oral) ao orixá mediador Echú ou Eléggua, a cargo dos babalaos (sacerdotes) e na qual suas fórmulas de conjuro são ditas em voz baixa (Ortiz 1981: 170-172). No aspecto sonoro, o pronunciamento do sacerdote pode estar demonstrado nos 18 compassos de abertura da peça: Em seguida, segundo marcação de Brouwer, um tema anuncia a dança ritual (Annoncant la danse rituelle/Indication of the ritual dance), e prossegue em dois Vivace, nesta abstração (McKenna 1989). 216 sendo o último como um ritornello a princípio, mas com uma melodia variada nos baixos. Para finalizar esta parte, um trecho em Tempo libero leva a um desfecho Lento que nos encaminha agora ao segundo movimento da obra. Geralmente, há duas grandes partes em cerimônias - a primeira é o chamado do orixá e a segunda é a sua chegada (Brendon 1997:147). Pode-se deduzir que Brouwer vem seguindo até aqui as formas tradicionais de um culto: uma abertura que afasta os males (conjuro) por meio de um discurso (exórdio), e em seguida o chamado dos orixás (anúncio da dança ritual) e segue para outra grande parte da cerimônia que conta com a presença do orixá a quem a cerimônia é consagrada. Por indicação de Brouwer na partitura, o segundo movimento deve começar sem interrupção: attaca (a última nota da parte anterior) i danza ritual. Conclui-se que este ataque sem interrupção para a dança ritual é o momento da chegada do orixá, que seria de modo repentino (em uma seção real), e por isso Brouwer também pode ter almejado, por meio desta indicação, realçar a sensação da chegada repentina do orixá. A Danza de las diosas negras inicia com uma introdução de 10 compassos e segue para a Danza I. 217 A Danza I começa com um andamento rápido que depois vai sendo reduzido: inicia com um Allegro, na seqüência vai para Un poco sost./ ben articolato, caindo mais ainda em outro poco sost. de cinco compassos. Da mesma forma, ressurge o Tempo di Danza I em um andamento leggero que diminui para un poco sost. e depois em Lento (de apenas um compasso) que finaliza a primeira Danza. Já a Danza II tem uma introdução de seis compassos que Brouwer pede secco. 218 Em seguida, o tema surge na voz mais aguda acompanhado pela mesma harmonia vinda da Introdução, até que um sinal de respiração (‘) passa para uma reexposição do tema da Introdução, uma oitava acima e depois na oitava original, variando em seguida para uma oitava abaixo, isso em cinco compassos. Um rallentando finaliza a seção. 219 O que fica evidenciado é que em ambas introduções das duas danças denota-se a chegada do orixá e os temas indicam suas exibições. Contribuem para isso diferenças de caráter entre as partes (introdução e tema), pois enquanto as introduções têm um caráter maestoso, os dois temas são de caráter movido, dançante. Outros aspectos podem ser trazidos à tona aqui. O primeiro, sobre a denominação (ou a ausência de denominação por parte do autor) das deusas negras – quem são elas? Sabe-se que há no culto aos orixás da chamada Santería alguns orixás femininos que se reúnem mais comumente, por afinidade. Segundo Ortiz, Yemayá (―rainha do mar e da água salgada‖) e Ochún (―deusa do rio‖) podem se encontrar nas cerimônias e ambas apresentam seus passos em conjunto, a ―danza de la orilla‖ (Ortiz 1981:344-345, 359-360). Brendon (1997:147) acrescenta ter assistido a uma cerimônia na qual até três orixás femininos se encontraram: Yemayá, Ochún e Oya, e que estas são consideradas irmãs. Poderia se concluir então que a Danza de las diosas negras refere-se a estes tipos de encontros citados107. Há uma outra, porém remota, possibilidade. Ainda segundo Ortiz (1983:296-350), cada orixá recebe, durante uma seção real, um certo número de danças em seqüência, e a estes orixás femininos são comumente dedicadas três danças. Note-se que Brouwer apresentará também três danças (a terceira será após as duas Evocações). Entre as duas possibilidades, acredito que a primeira é mais coerente, ou seja, a do encontro das deusas por afinidade108. 107 A respeito da denominação geral de ―deusas negras‖, também é bom aludir a mais um aspecto. Na tradição ioruba, gerada na África, o único orixá feminino é Yemayá, tida como a mãe (geradora) de todos os orixás, identificada com o próprio mar, enquanto que Ochún é um rio, mas não se afirma ser um orixá feminino (Janheinz Jahn 1963:86,89). No gradual processo de sincretismo que se desenvolveu ao longo do tempo e por meio de um número de diferentes estágios em Cuba, a Santería cultua Yemayá e Ochún como duas orixás ligadas à idéia de maternidade e fertilidade, e relaciona suas imagens a Nossa Senhora de Regla e Nossa Senhora da Caridade del Cobre, respectivamente (Brendon 1993:77), sendo que a Virgem del Cobre (padroeira de Cuba) está ―representada por uma mestiça de pele negra‖ (Silva 1998). 108 Ainda sobre a ausência da denominação de qualquer orixá na partitura, pode-se concluir que é do conhecimento do autor a força que assume o nome de um orixá dentro dos fundamentos da crença, a ponto de o nome ser o próprio orixá onde quer que seja mencionado (Brendon 1997:152), daí a ausência de nomes poder ser um sinal de deferência ao culto real, sendo a partitura apenas um simulacro da ação verdadeira. 220 A próxima parte, Evocación I, inicia com um Lento sem tempo de compasso (0), com indicação de l.v. sempre (lasciare vibrare)109 e que segue para um Quasi lento, movendo poco a poco. Até que um contrasto subito caminha para um rallentando e finaliza esta parte. Há trechos melódicos com o tema da introdução da Danza II. A Evocación II, de igual forma, inicia com um Lento sem indicação de compasso, com variações de cor (suono ord. e oscuro sul tasto). Em seguida, o andamento cresce e no quarto compasso dessa seqüência ressurge o tema da Introdução da Danza II em uma reprise que passará para uma 4.ª abaixo somente para repassar o tema agora em três oitavas diferentes. Um compasso de quasi improvisato de variações de cor (sul tasto e ord.) dá passagem para uma reexposição do tema da introdução da Danza II até que em Un poco meno mosso servirá como passagem ao Tempo di Danza III e à própria Danza III. 109 Lasciare vibrare, literalmente ―deixar vibrar‖ o som até que desapareça naturalmente. 221 Essa seção está dominada por evocações de temas já apresentados na peça; há várias citações de trechos das danças anteriores que se intercalam com novas melodias110. A Danza III possui 5 compassos de Introdução antes da entrada do Tema, no qual Brouwer pede marcato mf il canto. Este tema é intercalado com o canto da Introdução e com um canto colore sfz, prosseguindo assim durante 19 compassos. Surge um tema em sostenuto de dois compassos, intercalado em seguida com um brusco ff. A melodia da Introdução da Danza II reaparece em uma oitava mais grave. Em seqüência, a mesma melodia é agora transfigurada pelo pedido de slaps un poco pesante (golpes) na 5.ª e na 6.ª cordas, até que um molto articolato reprisa o tema da Introdução da Danza I 111. 110 As citações de trechos anteriores da peça podem denotar uma seqüência do cerimonial, na qual, segundo Ortiz (1981:352-354), a festividade continua após a saudação a quem é dedicado a solenidade (no caso aqui, às deusas negras), estando livre agora para a vinda de outros orixás, embora geralmente predominem os orixás já saudados. Esta parte da festividade não tem uma duração pré-determinada nem um número de danças pré-fixado; os toques têm agora o intuito de chamar os orixás para a possessão coletiva e promover uma convivência com o conjunto de seus crentes. Na partitura, a convivência entre os diversos orixás poderia ser uma explicação para as várias citações de trechos das danças anteriores, se intercalando com novas melodias, mas este comentário fundamentase apenas na concepção do que seria uma seção real, se Brouwer estiver seguindo literalmente a seqüência de um rito. 111 Pelo uso constante de temas das danças III, II e I, é na Danza III que pode acontecer a reunião das duas orixás (Yemayá e Ochún), no momento em que juntas se exibem na chamada ―danza de la orilla‖ (Ortiz: 359-360), dança da onda, por ambas terem as afinidades já mencionadas. 222 Para encerrar, um Vivace leggero encaminha a peça para um Lento que reprisa o tema do Exordium-conjuro durante oito compassos, até que um Vivace marcato sempre (de apenas um compasso) leva a peça ao final em um acorde fortíssimo de ré sem a terça. Este final, que retoma o primeiro tema da obra, alude ao final do culto, quando se solicita a Echú, mais uma vez, um rito de ―conjuro‖ para encerrar a cerimônia. 223 Leo Brouwer já afirmou que não tem dificuldades em ―assumir a cultura‖ de qualquer parte do mundo contanto que esta não entre em contradição com seu propósito de criação (Schörn 1995), quanto mais então em incorporar uma faceta tão concreta da sociedade cubana. Por isso elaboramos estes comentários, acreditando nos conhecimentos específicos de Brouwer sobre a Santería, sem os quais teria sido difícil proporcionar a sensação que a partitura produz. Brouwer confirma recentemente (Molina 2001) a importância da herança africana e o seu contato com ela: Nossos países, Brasil e Cuba, têm uma cultura popular viva bastante intensa. Isso é óbvio. No meu caso particular, é importante ressaltar que, desde criança, tive um choque muito forte a partir do contato com a cultura ioruba. (...) Nela há origens comuns com a música medieval européia, há a escala pentatônica – utilizada há mais de dois mil anos –, há uma série de ritmos ritualísticos básicos, etc. Tais elementos escapam ao nacional e ao folclore. Nesse sentido, nunca concebi tais raízes como algo ligado ao entretenimento, a uma música ―fácil‖. Especificamente em Rito de los Orishas, células rítmicas provenientes de trabalhos anteriores podem ser detectados na partitura, como entre o tema do Exordium-conjuro e o tema do Elogio de la Danza, entre a Danza I, allegro, a Danza III e o Estudio Sencillo n.º 9 e 224 também a Danza Característica. A solicitação na partitura para a utilização de slaps (procedimento comum em guitarras elétricas, no qual se golpeiam as cordas com o polegar direito) demonstra o que autor frisa como ―convivência entre as linguagens‖. 225 CAPÍTULO 7. COMPARAÇÕES ENTRE VILLA-LOBOS E BROUWER. Como já foi exposto na introdução deste trabalho, há muitas semelhanças entre a trajetória de Villa-Lobos e Brouwer passíveis de comparação e interpretação. Há diferenças tocantes na questão política e cultural de ambos, o que não invalida, entretanto, a validade e a conveniência de se efetuar uma comparação. 7.1. Nacionalismo O conceito político de Nacionalismo refere-se à série de movimentos que aconteceu na Europa nas décadas iniciais do século XIX, na Itália, Polônia, Suíça, Alemanha, França e Irlanda. A ação destes movimentos deu-se em duas frentes: as lutas pela separação nacional, especialmente a independência da Bélgica, Grécia, Bulgária, a anexação da Bósnia e da Herzegovínia ao império austro-húngaro e as tentativas de independência na América Latina, e as lutas pela unificação política de um território, como os movimentos de constituição de dois importantes Estados nacionais europeus: a Itália e a Alemanha. Mauro (1997:15) explica que a formação dos Estados nacionais provém já do século XIV: A Europa conheceu uma organização fundada no desenvolvimento dos Estados nacionais. Cada povo queria ser senhor de seu destino e constituir um Estado Nacional. Os que não puderam fazê-lo com a esperada rapidez revoltaram-se contra sua sorte e foram arrastados pelo turbilhão das nacionalidades. Esse movimento, a partir do século XVIII, liga-se ao movimento das ―Luzes‖ e logo à ―Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão‖. Antes do século XIV a rede feudal cobria a Europa e correspondia bem às necessidades técnicas, militares, econômicas e políticas da época. Mas, ―a partir do século XIV, na Itália, e do século XV, em outras regiões, as coisas começam a mudar profundamente nessa sociedade de nações cristãs que é a Europa Ocidental. O comércio, a indústria artesanal, 226 tudo conhece um novo impulso. (...) É o capitalismo comercial‖. O sistema feudal torna-se então ineficiente para as novas demandas. Mauro aponta nesse quadro a formação de duas novas formas de Estado: ―o Estado territorial de grandeza média, que tende a substituir a cidade-Estado (...) e o grande Estado nacional, que soube vencer os particularismos feudais e criar um vasto espaço econômico‖. Eis, pois, o Estado nacional (...) conforme às necessidades de uma política interna e externa, de uma técnica e de uma economia. Ele se mostra igualmente um quadro melhor para o ―saber‖, que utiliza sua língua para exprimir-se. (...) Conhece uma certa unidade espiritual graças à aplicação do princípio cujus regio ejus religio (tal a religião do príncipe, tal a do país). O Estado nacional, conclui Mauro, adaptou-se bem à Europa do século XIX e a alguns países da Ásia, no entanto, não conseguiu implantar-se por toda parte, pois subsistiram microestados, remanescentes da época feudal ou das cidades-Estado. O Nacionalismo, além de suscitar revoltas armadas, encontrou na cultura uma aliada de peso para manifestar seus conflitos. O vocábulo folklore surgiu nessa época, em 1846, adaptado pelo inglês William Thoms, para englobar todas as iniciativas anteriores de investigar e recuperar os vestígios dos tempos passados, por meio de um trabalho de compilação de contos, lendas, canções e danças de herança popular. Na música, a corrente nacionalista se insere no período do Romantismo, e despontou mais fortemente como uma oposição às ―três grandes escolas‖: italiana, francesa e alemã como diz Mario de Andrade (1987: 149-150). As primeiras demonstrações organizadas desta música surgiram na região da Boêmia, nas figuras de Bedřich Smetana e Antonín Dvořak, e na Rússia, com os nomes de Mikhail Glinka e o Grupo dos Cinco – Balakirev, Cui, Borodin, Mussorgsky e Rimsky-Korsakov, e em algumas instâncias, Pyotr Ilitch Tchaikovsky. Segundo Andrade, ―a orientação que todos seguiram foi buscar nos elementos populares uma caracterização racial já definida‖ e para isso foi forte o emprego de elementos folclóricos. 227 Praticamente em toda a Europa existiram nomes ligados ao Nacionalismo: Chopin – Polônia, Albeniz e Granados – Espanha, Grieg – Noruega, Sibelius – Finlândia, Bartók – Hungria. Na América Latina, destacaram-se Ponce e Chávez no México, Sanches de Fuentes, Roldán e Caturla em Cuba, Alberto Williams na Argentina, Humberto Allende no Chile, E. Fabini, Afonso Broqua e C. Pedrell no Uruguai. No Brasil, Mario de Andrade destaca Carlos Gomes, Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno, e afirma que a música no Brasil até a primeira década do século XX era subserviente a Europa. O mesmo pensa Bruno Kiefer (1982: 38-39) quando coloca que a música erudita no Brasil do período colonial é extremamente europeizada, com pouca ressonância dos sons das terras brasileiras e incluam-se aí os ritmos africanos. Kiefer explica que não seriam os compositores mulatos – ávidos por ascenderem na escala social – quem trariam para suas obras os ecos de suas origens. Declara o autor que não houve em Música um ser como o Aleijadinho nas Artes Plásticas, que não abafou sua herança africana. Há na chamada Escola Mineira um bom número de compositores mulatos, mas todos nesta linha de obras europeizadas. O tom europeu das obras dos compositores brasileiros ainda prosseguiria durante o período seguinte, o Romantismo. Porém, com a já proclamada independência do Brasil em relação a Portugal, começam a surgir ―tendências criadoras‖ (Kiefer 1982:75), embora tímidas, de ao menos tornar mais brasileiro os temas das obras, como aconteceu nas primeiras óperas nacionais, na década de 1850, desembocando em nomes como o de Carlos Gomes, Henrique Alves de Mesquita, Brazílio Itiberê da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno e outros. O relevante nesse período é que começa a se produzir, paralelamente às obras de características estrangeiras, uma outra de feições mais brasileiras, principalmente os chamados lundus e modinhas. De Carlos Gomes, a famosa A Cayumba, cujo epíteto era: ― – 228 dança dos negros, música original e de um gosto todo novo para piano‖ (Kiefer 1982:106). De Brazílio Itiberê, também Bacharel em Direito e abolicionista, surge A Sertaneja, música de salão. Do paulista Alexandre Levy, temos as Variações para piano sobre o tema folclórico Vem cá, bitu e a Suíte Brasileira, para orquestra, cujo último movimento Samba, tornou-se bem popular, utilizando a melodia folclórica do Balaio, meu bem, balaio. O Samba de Levy obteve grande sucesso tanto de público quanto de crítica, embora a tônica dos comentários publicados pela Imprensa demonstre o mesmo pensamento do Brasil colonial, isto é, o do samba ser um ritmo ―chulo, indigno‖ salvo pela habilidade do compositor. De Alberto Nepomuceno há suas canções e de Ernesto Nazareth, os inúmeros tangos brasileiros, maxixes, batuques e sambas. Mario de Andrade (1987:183) coloca apropriadamente no final da Primeira Guerra Mundial o marco da tentativa de renovação cultural como forma de ultrapassar de vez o século XIX. Houve também uma nova exacerbação nacionalista que veio justificar e expandir o processo iniciado nas décadas anteriores ao conflito mundial. Com o advento da Semana de 22, na capital paulista, o objetivo modernista de reunir em um só termo uma música nacional com o que havia de mais moderno nas Artes (proveniente da Europa) encontra em Villa-Lobos uma figura idealizada. Diz Andrade (em Coli: 1998:172): ―... é logo após a Semana de Arte Moderna, que o compositor principia se preocupando com a solução nacional de sua música, e se atira ao aproveitamento do folclore‖. Andrade então define o primeiro período de Villa-Lobos como de inspiração debussyana, o segundo quando ―o artista encara o problema da música brasileira‖ e o terceiro: Com a revolução de 30 a vida do compositor se transforma por completo e isso lhe afeta a obra e a psicologia. Vila Lobos (sic) se torna um artista condutício, anexado aos poderes públicos, bem pago, não mais exatamente brasileiro mas nacionalista. E enfim empregado-público. Isso faz lhe baixar de golpe a produção, que se torna de muitas caras, conforme os ventos sopram. 229 No Nacionalismo, em regra, a discordância de opiniões não é aceita porque não colabora para a integração nacional. Na ditadura Vargas, o Brasil esteve à mercê deste consenso produzido (o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP – era a concretização dos meios para obtenção desse acordo); a Era Vargas queria convencer a nação com a retórica da construção e integração do país, assim algumas medidas foram tomadas no tocante à identidade cultural: o índio passou a ser elevado como o elemento-parceiro da miscigenação, em detrimento do negro; houve uma aproximação entre o intelectual e o povo para se encontrar as nossas ―verdadeiras raízes‖; a aparente penetração entre as camadas sociais atenuou a luta de classes; surgem os referenciais nacionais como o samba, o Carnaval e o futebol. Como se sabe, o relacionamento entre Mario de Andrade e Villa-Lobos foi algo singular. Apesar das idiossincrasias de Villa-Lobos, apontadas várias vezes por Mario de Andrade, o notável crítico que era Andrade nunca se furtou a enaltecer Villa-Lobos como um compositor maior. Algumas informações de Andrade até aqui, porém, devem ser aproveitadas e outras afastadas no tocante à produção de peças para o violão. Na primeira fase, a que Mario chama de ―sob o signo do Impressionismo e se inspira nas soluções de Debussy‖ corresponde ao início do século XX e à década de 10, e na obra violonística corresponderia às primeiras peças (que estão desaparecidas) e à Suíte Popular Brasileira. Na Suíte, a presença da música popular urbana carioca é marcante; as peças da Suíte intituladas Mazurka-Choro, Gavottachoro, Schottishc-Choro, Valsa-Choro, já são uma alusão à música de salão e de seresta das ruas do Rio de Janeiro – o máximo que se pode pensar em Impressionismo é algum uso de graus conjuntos (caso se admita o uso de graus conjuntos como marca exclusiva do Impressionismo) que resultarão algo dissonantes no encaminhamento de vozes, como na Valsa-Choro (Vide capítulo da análise de partituras). 230 A respeito do material folclórico, no caso do violão especificamente, ele surge nos 12 Estudos, principalmente nos de número 5, 8, 10, 11 e nos 5 Prelúdios, em especial no de número 1. A maneira como esse material folclórico aparece é mais acertado afirmar o uso imitativo de ponteios de viola em todos eles e de alguns temas que remontam ao acervo de cantigas de roda, como no Estudo 10. A aceitação maior do elemento indígena (em comparação ao componente negro) em sua obra também deve ser apontada, principalmente no Estudo 11 e nos Prelúdios 2 e 4. Como alguns autores apontam, a temática indígena utilizada por Villa-Lobos é de caráter já extremamente decodificado, originário principalmente do material de Roquette Pinto (Peppercorn 2000 , Nóbrega 1973:17) e de natureza simplificada (Béhague 1994). Conclui-se então que o Nacionalismo na obra violonística de Villa-Lobos desponta na Suíte Popular e no Choros n.º 1 pelo uso da música popular urbana carioca e nos Estudos pelo uso de material que diz mais respeito ao folclore brasileiro, como ponteado de viola e melodias tidas como de conceituação indígena na época, e nos Prelúdios há uma volta à utilização das melodias populares urbanas e à caracterização indígena. Em Cuba, o Nacionalismo esteve também associado às lutas pela independência da Espanha. O poeta José Martí é considerado o grande símbolo da nacionalidade cubana e suas idéias inspiraram até a guerrilha de Fidel Castro. Basicamente, na área da música de concerto, Manuel Saumell (1817-1870) e Ignacio Cervantes (1847-1905) são os compositores que concebem os primeiros traços de uma música cubana. Após eles, os dois primeiros nomes que melhor representam a música já de caráter nacionalista são Amadeo Roldán (1900-1939) e Alejandro García Caturla (1906-1940). No âmbito popular, Clara Díaz Peres (1986:50-52) afirma que os aspectos de cubanía ou acriollismo de certas canções surgem durante os anos de movimento de libertação nacional 231 da colônia, derivando da canção amorosa, onde o motivo da mulher era utilizado como um símbolo da pátria. Com os movimentos de libertação de 1868 a 1895, a canção patriótica ia adquirindo força à medida que o sentimento de identidade nacional também crescia. A Guerra dos Dez Anos iniciada em 1868 criou condições para o desenvolvimento dos valores culturais do país. Segundo Olga Fernandez Valdés (1984: 38), durante o movimento nacionalista de 1895 o danzon era criticado pelo governo espanhol, por estar junto às lutas de independência, sendo utilizado com estribilhos que criticavam os colonizadores. Em fins do século XIX surgem cantores de índole eminentemente nacional, se autointitulando trovadores. José Pepe Sanchez é o mais representativo, surgindo depois: Gumersindo – Sindo – Garay (1867-1968) e muitos outros. Além do tema de amor à mulher, vinculado ao sentimento à pátria, há canções de crítica à frustrada república. Este movimento acontece durante os últimos anos do domínio espanhol e a primeira etapa da chamada ―pseudo-república‖, isto é após 1902. Neste período citado, a injeção de dinheiro norte-americano e estrangeiro incrementa o mercado de editoras, discos, rádio e cinema. O som mais genuíno ficou com artistas como o Trio Matamoros e Ignácio Piñeiro, enquanto se fortalecia uma linha comercial, com derivações do tipo “conga-fox”, “capricho-afro”, “rumba-fox”, “canción-blue”, “bolerobeguine”, “canción slow”... Enfim, era uma época de grande interesse pela ―música tropical‖. Surge nos anos 30 o trovador Vicente Gonzalez Rubiera, conhecido como Guyún, o qual cantava e se acompanhava ao violão canções do repertório cubano e latino-americano. Já nos anos 40 surge o movimento do feeling, que representa segundo Perez (1986: 52) uma melhor elaboração da melodia, acordes dissonantes na harmonia, menor margem de improvisação que o son, e a tendência de interpretar a música de forma declamada. Estas novas sonoridades provinham das harmonias do Impressionismo e pós-Romantismo em geral, inerentes aos arranjadores norte-americanos, que passaram aos jovens criadores cubanos. Do 232 feeling são representativos: César Portillo de la Luz e Ñico Rojas. Tiveram como grande êxito ser uma alternativa ao esquema das grandes gravadoras e editoras estrangeiras. O feeling entra nos anos 50 e decai nos 60, dando vez a Nueva Trova. Em Cuba, o Nacionalismo só se manifestou abertamente nos anos 60 porque durante o governo de direita (de 1902 a 1959) e de ingerência norte-americana (desde as lutas de independência até 1959), a questão da nacionalidade era vista como oposicionista à Espanha e à subseqüente presença dos Estados Unidos na ilha. Além disso, o controle econômico estava na mão dos empresários norte-americanos, e não haveria coerência em promover ou divulgar sentimentos que remontassem a posse legítima do território. Só a partir da Revolução de 1959 é que ocorre uma política de defesa do patrimônio cultural e recuperação de valores da identidade nacional, em especial a herança africana. Como já foi apontado no capítulo da Biografia, Brouwer se revela um nacionalista logo de início de suas atividades como compositor, como meio de se opor à ditadura Batista. Ele diz (1989:85-86) que este período ―corresponde, socialmente, a una etapa feroz de la dictadura batistiana, en la cual era preciso reafirmar a nacionalidad por medo de perderla, dentro do caos político del momento‖. A Revolução Cubana pautou-se pela defesa do patrimônio cultural e recuperação de valores da identidade nacional. Faya (1990:31-32) coloca a ação de 1959 como o momento cultural de mudança contra a interferência norte-americana. Nos primeiros anos da revolução se produzem os seguintes feitos representativos: a Casa de las Américas promove a pesquisa de um cancioneiro cubano; ocorre o 1.º Festival del Arte Nacional de la Libertad, com obras de Harold Gramatges, Leo Brouwer, Carlos Fariñas e Amadeo Roldán; surgem atos populares como controvérsias campesinas, toques de güiro e bata; o Teatro Nacional de Cuba começa a trabalhar obras como Mulata de Roldán; ocorre a criação de instituições para difusão da música e promoção da criação artística em nível popular e o sistema de ensino passa a 233 valorizar muito mais a área popular. Surge ainda o Grupo de Experimentación Sonora que desemboca no movimento da Nueva Trova. Como se vê, a fase de Nacionalismo de Leo Brouwer despontou pela atitude de oposição à ditadura de Batista, e à interferência estadunidense e depois de 1959 ligou-se à ação coordenada política e socialmente para a produção de uma sociedade centrada na busca de seus próprios valores. Também o embargo econômico logo nos primeiros anos da revolução levou a sociedade cubana a buscar um autoconhecimento e uma re-valorização de sua própria cultura. Houve toda uma política nos primeiros anos da revolução para produzir os efeitos desejados, como lembra Faya. No caso de Brouwer, o Nacionalismo como estética localiza-se mais firmemente em sua obra na ritualística ioruba, como o grupo mais representativo da herança africana, e as representações geradas a partir daí nos elementos da música popular cubana como a clave, o son, o cinquillo, o chamado ―complexo da rumba‖. Assim como Leo Brouwer não colocaria os procedimentos de vanguarda à frente de suas concepções ele também nunca aprovaria a utilização dos clichês da música latina, especificamente a cubana. Os clichês da música cubana são uma idealização advinda dos anos 50, quando o ―sabor tropical‖ tomou conta da radiodifusão mundial. Desta forma, em peças iniciais como a Danza Característica (1957), o Estúdio Sencillo n.º5 (1961) contêm células rítmicas da rumba, clave e Baixo Antecipado. A presença da herança afro-cubana poderá ser encontrada, no entanto, em peças altamente vanguardísticas como La Espiral Eterna(1970) e na fase ―Nova Simplicidade‖, como em El Decameron Negro (1981) e Rito de los Orishas (1993). Comentando sobre a série de Paisaje Cubano que Brouwer escreveu, o violonista Sidney Molina (2001:) perguntou a Leo Brouwer: 234 Nesse sentido, tais ―Paisagens‖ parecem buscar elementos universais presentes na cultura cubana, e não o ―nacionalista‖ ou ―folclórico‖: que sentido pode ter a expressão ―nacionalismo‖ quando aplicada à sua obra? Leo Brouwer – Nossos países, Brasil e Cuba, têm uma cultura popular viva bastante intensa. Isso é óbvio. No meu caso particular, é importante ressaltar que, desde criança, tive um choque muito forte a partir do contato com a cultura ioruba. Essa herança dos escravos, essa música de rituais religiosos, é extremamente importante tanto para o Brasil quanto para Cuba. O impacto de tais atividades religiosas – e aqui eu falo de Xangô, Iemanjá, etc. – tem força para presentificar elementos sonoros universais: há origens comuns com a música medieval européia, há a presença da escala pentatônica - utilizada há mais de dois mil anos-, há uma série de ritmos ritualísticos básicos, etc. Tais elementos escapam ao nacional e ao folclore. Nesse sentido, nunca concebi tais raízes como algo ligado ao entretenimento, a uma música ―fácil‖. O uso do termo Nacionalismo foi aproximado às realidades de cada momento: durante o período Vargas no Brasil e de Fidel Castro em Cuba. A semelhança do Nacionalismo em Brouwer e Villa-Lobos é que ambos vieram de situações políticas em que a agenda nacionalista foi utilizada em todas as instâncias para reforçar o sentimento de conformação da nação. 7.2. Vanguardas A fácil assimilação nas camadas populares fez do violão o instrumento mais difundido da América, mas produziu, entretanto, uma rejeição na área de concerto devido a essa ligação com a área popular. A conjunção do nome de Andrés Segovia a alguns compositores reverteu a situação na década de 20 que foi uma época de ouro para o violão112. Nessa ocasião, Heitor Villa-Lobos e Segovia iniciaram em Paris a amizade que resultaria na composição do grupo de peças mais importante do século XX: os 12 Estudos (1926-1929), comparados pelo próprio Segovia aos de Chopin para o piano. Os Estudos ultrapassaram a linguagem romantizada que o violão mantinha e ao mesmo tempo estavam impregnados do Nacionalismo do autor. Os 12 Estudos representaram uma linguagem inovadora no período, tratando o instrumento como 112 Sobre essa época dos anos 20 como de grande representatividade para o instrumento, veja Gloeden (1997). 235 nunca havia sido feito antes, em oposição a uma linguagem ainda romantizada e protelada pela atuação de Andrés Segovia, que preconizava uma estética romântica. Segovia só estreou os estudos 1, 7 e 8, os mais aproximados às suas idéias. Como já foi analisado anteriormente, em Paris, Villa-Lobos conheceu músicos como Paul Dukas, Vincent d‘Indy, Igor Stravinsky, Sergei Prokofiev, Edgard Varèse, e como disse Béhague (1994:72), a viagem a Paris mostrou a aceitação internacional de sua ―tendência estética prévia‖. Béhague, como os demais autores estudados, sustenta que nos anos 20 ocorre a fase mais experimental e inovadora de Villa-Lobos. E dentro desta fase inovadora, encontram-se os 12 Estudos para violão. Tarasti (1994:241) também aponta o período como o de sua maior produção de trabalhos de vanguarda. Já Leo Brouwer surge no cenário violonístico como o compositor e intérprete que trouxe a vanguarda da década de 60 para o violão, fazendo, como Villa-Lobos, a ponte entre a música tradicional de seu país e a música contemporânea. Cuba vivia uma eufórica etapa inicial em que revolucionar era a práxis diária. A ida de Brouwer ao Festival de Varsóvia veio no encontro das idéias que já vinha desenvolvendo e ele soube ligar os valores estéticos de vanguarda às demandas revolucionárias, colocando a constante inovação como uma condição intrínseca de um adepto da Revolução. Brouwer conheceu todas as vertentes da década de 60: politonalidade, atonalidade, procedimentos seriais, elementos aleatórios, meios eletrônicos, formas abertas e notação diferenciada e utilizou-as como ferramentas para realizar suas intenções e propostas de trabalho. De volta a Havana após o Festival de Varsóvia em 1961, Leo Brouwer iniciou um movimento de vanguarda junto com outros compositores e apesar deste forte contato com a vanguarda européia, ele continuou seguindo seu estilo composicional, mas utilizando os elementos da vanguarda ligando-os aos traços da música cubana. 236 Os exemplos mais fortemente constatáveis de utilização da música de vanguarda aparecem em obras fora do repertório violonístico como Variantes para un percusionista (1962) e Sonograma I (1963) para piano preparado que são as duas primeiras partituras de música aleatória escritas em Cuba. Há quem aponte (Hernández 2000, Orozco 1999) também uma antecipação do pós-modernismo na obra de Brouwer. Isto acontece na obra La tradición se rompe... pero costa trabajo (1967-69), para orquestra. Como um sinal verde à possibilidade da adoção de várias culturas no tempo e espaço, na peça, Brouwer quis mostrar todos os tempos convivendo ao mesmo tempo, usando para isso trechos de músicas de Bach, Beethoven, Mendelssohn, Bartók, Haendel, Liszt apresentados como várias superposições, para mostrar a convivência possível de culturas simultâneas, e em um cartaz levantado pelo maestro, está escrito: ―Nessa obra, o público se manifesta‖. O resultado foi surpreendente e a partitura tornou-se um hit entre os adeptos e o público de música de vanguarda. Em Canticum (1968) para violão solo ele utiliza uma série de procedimentos da vanguarda, como clusters, grandes pausas entrecortadas por acordes fortíssimos, trechos de improvisação etc.. As células motívicas, no entanto, começam a apontar a utilização, pensada por ele, de módulos, que culminariam na sua grande obra de vanguarda para o violão, La Espiral Eterna (1971). A Espiral tem como ponto-forte a concepção da peça como um ―resumo‖ da própria idéia do fenômeno sonoro: um som inicial de um módulo de três notas vai se expandindo e se recolhendo como uma espiral, atingindo em determinado ponto um som ininteligível e retorna ao ponto inicial só que agora transformado pela experiência anterior. Brouwer compara a idealização da Espiral com a própria experiência humana, realizando uma síntese filosófica e histórica na peça. Pode-se concluir então que enquanto Villa-Lobos aproximou-se da vanguarda dos anos 20 por uma postura de ―não-alinhamento‖ com a tradição vigente (por vezes ele afirmou 237 que o passado não lhe interessava), Brouwer teve o discernimento de conhecer profundamente a linguagem de vanguarda dos anos 60 e assimilar o que lhe seria útil como ferramenta de trabalho. 7.3. Retorno Tanto Villa-Lobos quanto Leo Brouwer retornaram à linguagem tradicional em uma fase posterior ao trabalho com a estética mais moderna. Após os anos em Paris, Villa-Lobos volta ao Brasil e se envolve com a política getulista do Estado Novo, assumindo a organização do Canto Orfeônico, com o objetivo da manifestação cívica por meio da música. A temática representada após os anos 30 é do Nacionalismo e de um romantismo tardio, também chamado de neoclássico. Na obra para violão, os 5 Prelúdios representam esta fase, e como lembra Béhague (1994:141-142), têm o estilo aproximado às Bachianas Brasileiras, na forma melódica, no idioma harmônico e nas práticas modulatórias. Tarasti (1994:239-240) também destaca que essa fase reforça todo o estilo ―villalobiano‖ em uma fusão de procedimentos e que isso pode ser encontrado nos Prelúdios. O autor ainda compara os Prelúdios ao Ciclo Brasileiro para piano, também pertencente a esta fase de romantismo nacional. A volta de Brouwer também se dá após um período de inovação criadora, no caso, as vanguardas dos anos 60. Esse período já foi apontado por autores e pelo próprio Brouwer como hiper-romantismo nacionalista, mas agora Brouwer aprecia mais o uso do termo Nova Simplicidade. Em entrevista a Molina (2001) Brouwer explicou o que a corrente ―Nova Simplicidade‖ significa em sua obra: Esses elementos essenciais e universais – embora presentes em todas as fases de sua obra – parecem estar ainda mais explícitos nas composições dos 238 últimos vinte anos, o que tem aproximado sua obra da corrente denominada ―Nova Simplicidade‖. Para você a simplicidade é um ponto de partida ou de chegada? Leo Brouwer – É muito interessante essa pergunta, porque se trata realmente de uma dupla atividade: por um lado, eu acredito que nunca haverá um ponto final na estética, mas, por outro, a composição sempre fará uso de fatores conhecidos da história da música, apenas trabalhando-os de uma outra maneira. A diferença de tratamento que os diversos compositores dão a certos elementos fundamentais pode ser comparada à observação de um objeto no espaço – com suas cores – ou ao microscópio; nisso consiste a diferença entre uma abordagem tonal, minimalista, etc. Brouwer saiu da fase vanguardista quando quis, sem aparentar nenhuma tensão. A única explicação que deu foi ter passado por uma saturação da linguagem de vanguarda, segundo ele, extremamente árida e ressentida de uma comunicação com o grande público. Sustenta Brouwer113 que, após um pouco mais de uma década de utilização dos elementos de vanguarda, ele ficou saturado com a dita linguagem, por suas características pulverizadas, ásperas e, principalmente, tensionais, das quais ela não conseguiu se livrar até hoje, causando a este tipo de música um defeito relacionado com a essência do balanço composicional, um conceito que está presente na história: movimento, tensão e seu conseqüente repouso. Em suma, a vanguarda, na opinião de Brouwer, carece de um relaxamento das tensões, indo contrariamente às leis da natureza, na qual os opostos, ou os contrastes, estão sempre atuando: ―não há ser vivo que não repouse‖, declara o cubano. Assim, o compositor decidiu por uma regressão (palavras dele) que o trouxe de volta a uma simplificação dos materiais composicionais. 7.4. Política Getúlio Vargas tomou o poder em um golpe contra o então vencedor das eleições, Júlio Prestes. A colaboração de Villa-Lobos com a ditadura de Vargas é uma questão polêmica em sua trajetória. Seu envolvimento com Vargas era formal, eles se encontravam 239 somente nas celebrações cívicas, e costuma-se avaliar que o compositor carecia de um engajamento político mais sério e que Villa-Lobos teria afirmado realmente ser um artista sem uma opção política, defendendo abertamente a liberdade de expressão para compor, sem ideologias. Uma prova disso é o fato de que seu projeto de Educação Musical no Brasil foi apresentado para políticos de São Paulo; uma promessa caso se confirmasse a vitória do paulista Júlio Prestes na eleição de 30 e, no final das contas, acabou sendo executado justamente por Vargas, o deflagrador do golpe e opositor de Júlio Prestes. Muitos autores como Béhague (1994), Ana Stella Schic (1989), Mariz (1989) concluem que Villa-Lobos não tinha então a menor vocação para a vida política, em um sentido mais amplo, ideológico. Creio antes que suas idéias políticas chegavam a um termo mais definido quando se tratava de patriotismo, de uma necessidade de demonstração do sentimento cívico. Segundo Béhague (1994:23), Villa-Lobos já pensava em idéias sobre o canto orfeônico antes da ascensão de Vargas em 1930. Ele elogiava os coros da Alemanha e França que ele conhecia, então a idéia de instituir o canto orfeônico no Brasil veio do próprio compositor e não de uma tarefa do novo governo. A ideologia do novo governo pode sim ter influenciado sua orientação artística em direção a uma forte orientação nacionalista, mas se Villa-Lobos compartilhou ou não da ideologia sócio-política do Estado Novo ainda é o tema de um grande debate114. Béhague crê que estes argumentos não negam, entretanto, que a 113 Entrevistas em Bettancourt e Wistuba (1989). Recentemente, em janeiro de 2001, durante o V Seminário Latino-americano de Musicologia, em Curitiba, tendo como tema ―Música e Ideologia‖, o historiador Arnaldo Daraya Contier proferiu uma palestra, seguida de uma mesa-redonda, sobre o envolvimento de Villa-Lobos no governo Vargas. Para Contier, as evidências apontam para um autoritarismo de Villa-Lobos, sob o pretexto de uma atividade disciplinadora, vigente na execução do plano do Canto Orfeônico. Já para o professor Alberto Ikeda, a atuação de Villa-Lobos acarretou na diminuição da importância e da atuação dos demais compositores – devido à atitude monopolizadora do compositor carioca, vinculada ao cargo de poder que exercia. A posição de Ikeda é semelhante à que GuerraPeixe por muitas vezes defendeu – a de que era necessário passar pelo crivo do compositor para se conseguir ser aceito no meio. 114 240 música e o programa educacional cívico intencionalmente tornaram-se um instrumento da ideologia do estado nacionalista. No final da Segunda Guerra ocorreu a aproximação entre Estados Unidos e os países da América Latina (a chamada ―política a boa-vizinhança‖) e com isso vários artistas latinoamericanos conquistaram o público norte-americano. Villa-Lobos teve inúmeras obras suas encomendadas e estreadas a partir de 1945 nos Estados Unidos. Em resposta àqueles que o acusavam de colaborar com o regime totalitário do Estado Novo Villa-Lobos declarou em um fórum público em 1954: Eles querem destruir uma realização, mas eles não podem. Isto não é contra mim, contra você, é contra a música, contra a arte. Eu não me interesso por qualquer regime, em um sentido político, e não tenho nem idéias políticas. O que eu quero é disciplina e amor à arte. Eu quero ver um povo disciplinado. Eu invejo o estrangeiro. A única coisa que eu invejo no estrangeiro, a única coisa, é a educação que o estrangeiro tem, que nos não temos.115 Villa-Lobos escreveu (1940:7-9) que a música corresponde a sua mais alta função somente quando ela serve para promover o progresso da nação e que a instrução dos jovens pelas canções patrióticas acarretariam o desenvolvimento de seu espírito de brasilidade forte o suficiente para prever que as futuras gerações colocariam ―o sagrado símbolo da Pátria acima de todos os interesses humanos‖. Béhague aponta que ―Villa-Lobos pecou por meio de seu entusiasmo espontâneo, falando e escrevendo precipitadamente‖. Guerra-Peixe (1988) retrata esta ação de Villa-Lobos como de ―marketing pessoal‖. Horta (1987:63) considera temerário projetar o pensamento político atual (isto é, distanciado no tempo) ao modo de pensar do período de atuação de Villa-Lobos, pois se pode incorrer no erro de uma crítica indiferente às concepções das circunstâncias do momento. 115 Villa-Lobos, o Índio de Casaca. Rede Manchete e Meta Vídeo 1987. In Béhague (1994:162). 241 Béhague conclui que Villa-Lobos foi pragmático em querer desfrutar da patronagem do Estado para suas intenções de trabalho, o que, no entanto, não justifica nem explica algumas das atitudes do compositor de um ponto de vista ideológico. Gilberto Mendes (1994:118) tem o seguinte depoimento, até irônico, sobre o assunto: É impressionante o esforço que se faz, no Brasil, para rebaixar Villa-Lobos da posição de destaque, de fato invejável, que ele tem no cenário da música de todo o século XX. Acho que só Freud pode explicar. Uma das aulas que eu dei na Universidade de WiscosinMilwaukee era sobre música contemporânea e o livro lá adotado – e pelas demais universidades norte-americanas – tinha um capítulo especial sobre Villa, com uma foto. E eram poucas as fotos, de Stravinsky, Schoenberg, Ravel, somente de compositores deste nível. Houve um concerto na Universidade, em que iam tocar Villa-Lobos, e eu falei para um meu aluno privado, de composição, de quem ficara mais íntimo: ―Ele é do meu país‖. E o meu aluno questionou, admirado: ―Ele é brasileiro?!‖ Pelo nome e importância que tinha, Villa-Lobos só poderia ser italiano, ou espanhol, para um estudante norteamericano... Acho relevante relembrar que todos os teóricos e biógrafos de Villa-Lobos colocam em seus trabalhos a famosa passagem da perseguição política que a família sofreu quando seu pai, Raul Villa-Lobos, escreveu os artigos de crítica ao Marechal Floriano Peixoto, o presidente do Brasil na época, logo após a proclamação da República. Parece-me que foi uma ação de uma pessoa conscientizada intelectual e politicamente. Embora sua atitude intempestiva lembre muito o comportamento do filho Heitor, do ponto de vista político a orientação era totalmente outra, já que Raul era um funcionário público exemplar (amava os livros, viveu e trabalhou entre eles, era amanuense da Biblioteca Nacional, e era, muito provavelmente, uma pessoa de cultura mais avançada que a grande maioria, lembrando que no Brasil da República 83% da população era analfabeta.) e que, portanto, necessitaria do beneplácito do Estado para sua permanência no cargo ou no mínimo não deveria arriscar-se a ir contra a representação governamental. Pois Raul foi mais longe – divulgou suas idéias em jornal, tornando público seu pensamento. A alegada influência de Raul em Heitor parece não ter surtido efeito no contexto político. 242 O início da atuação de Leo Brouwer é anterior à revolução, mas já com uma presença em círculos intelectuais de esquerda, como o Cine Club Visión e o Nuestro Tiempo. A questão política perpassa sua obra como inerente à sua condição de cidadão cubano integrado a uma sociedade socialista. Cuba vivia uma eufórica etapa inicial em que revolucionar era a práxis diária; Brouwer chegou a afirmar que era uma verdadeira catarse (Betancourt:1998). Se existiram críticas do socialismo cubano ao uso de uma linguagem que normalmente não encontraria ressonância nas massas, é possível, mas o fato é que ele não abriu mão disso. Neste sentido, o contexto cubano, do qual Brouwer emerge como uma liderança, aproxima-se muito da chamada ―escola polonesa‖, a qual apesar de integrar o bloco socialista diferenciou-se por uma liberdade baseada na sua tradição cultural e forte catolicismo. Brouwer comprova essa liberdade de ação em entrevista (Molina 2001), comentando sobre o realismo socialista: Houve imposições da estética do realismo socialista sobre sua obra? Leo Brouwer – Por sorte a essência da música é suficientemente abstrata, o que evitou com que ela caísse tão facilmente em certos erros como os comumente cometidos nas repúblicas do leste e na cultura socialista de estado da extinta URSS. É possível, no entanto, que tenha havido algumas influências, sobretudo literárias. Nunca uma censura explícita; o que acaba acontecendo nesses casos – e isso é uma coisa incrível – é que os próprios artistas se autocensuram. De toda forma houve, em alguns momentos, influências literárias, perceptíveis mais diretamente nos textos e no cinema. Como já foi dito, em várias entrevistas concedidas por Brouwer e em seus artigos não há uma crítica sua ao governo socialista cubano. Em ensaios da década de 70 (reunidos em uma publicação de 1989) Brouwer defende, didaticamente às vezes, o uso da vanguarda. Já o cubano Leonardo Acosta (1989) revela que o Grupo de Experimentación Sonora recebeu sim críticas116, assim como Valdés Cantero (1990) relembra que o compositor Juan Blanco, Leo Brouwer e Manuel Duchesne Cuzán, regente da Orquestra Sinfônica Nacional, tiveram que 116 Sobre o trabalho do G.E.S., há uma dissertação de Mestrado de autoria de Mariana Martins Villaça: Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentación Sonora (1969-1972): engajamento e experimentalismo 243 enfrentar incompreensões quanto a estética. Ou seja, o período de tempo afirmado por Brouwer como catártico, eufórico em revolucionar, parece não ter sido compartilhado em todas as esferas ou ter durado pouco, circunscrito talvez ao primeiro triênio da revolução, como afirma Miskulin (2000), o governo revolucionário e a direção cultural cada vez mais se aproximaram das concepções do realismo socialista. E sobre os benefícios da revolução à cultura, Brouwer destaca (Molina 2001) que é uma constatação eminentemente histórica, evidente, livre de ideologia: – Sua formação musical básica ocorreu antes da Revolução Cubana. Que contribuições a revolução trouxe ao ensino musical? Leo Brouwer – A contribuição foi enorme, porque os conservatórios que existiam antes da revolução – que eram muito bons, mas como sucede sempre em épocas duras, eram também pobres – foram atendidos. A revolução cubana de 1959 – e que não se entenda esse comentário como panfletário, mas apenas como uma constatação histórica – impulsionou todas as formas de arte: música, literatura, poesia, pintura, etc. Buscou-se uma integração entre todas as culturas das Américas, uma forma de ver o continente como um todo policultural e multirracial. As artes foram, assim, privilegiadas em todos os sentidos. Eu recordo ter promovido mudanças no ensino de harmonia e composição que jamais haviam feito parte do programa de nenhum conservatório, utilizando recursos didáticos apenas disponíveis em aulas particulares ou em certas master classes realizadas nos países mais desenvolvidos. Não estou fazendo, repito, um elogio de cunho político; é apenas história. Duas músicas em especial servem para mostrar como Brouwer situava as possibilidades de inovações na música cubana frente à revolução. Em 1970 escreve Al Asalto Del Cielo, música eletrônica utilizando fita magnética contendo trechos de discursos de Lênin, para a comemoração do centenário do revolucionário russo. Provavelmente, não seria de bom tom algum burocrata do governo cubano censurar o estilo da peça, já que o compositor reverencia a memória de Lênin, trazendo para as novas gerações a voz do próprio ―pai‖ da revolução maior. Da mesma forma, em 1978, Brouwer compõe Canción de Gesta para orquestra de sopros, que tem como subtítulo ―Epopeya Del Granma, la nave llena de futuro‖ referindo-se à viagem de Fidel Castro a bordo do iate Granma. Nesta obra, o sentido na canção popular, no Brasil e em Cuba, 2000, orientação: Maria Helena Rolim Capelato, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 244 do pós-modernismo é percebido mais uma vez como a re-memorização de fatos do passado trazidos ao presente e sintetizados. Quando Brouwer utilizou a vanguarda em sua obra, não pensou em fazer concessão para estar mais próximo do público em geral, mesmo porque ele não subestimava o discernimento do público, e em seus recitais sempre mantinha um diálogo com a platéia. Além disso, inovar para ele era uma condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução; restringir ou subestimar as massas é que seria uma atitude burguesa. 7.5. Violão A obra para violão de Villa-Lobos tornou-se uma das partes mais representativas de sua produção musical. Ainda que este número de obras seja pequeno em relação ao total de opus relacionado no Catálogo Oficial, foi a constância de execuções em várias partes do mundo que fez o repertório para violão tornar-se um dos maiores êxitos do compositor. Estima-se que depois das Bachianas Brasileiras, e praticamente empatado com a música para piano, a obra para violão seja o conjunto de peças mais gravado no mundo todo. Como já foi dito, Segovia estreou os Estudos mais aproximados às suas idéias, e incluiu poucos deles e alguns Prelúdios de Villa-Lobos no seu repertório a partir de 1948 (Zanon 2001). A edição das partituras dos Estudos pela Max Eschig só ocorreria em 1953. Esses fatos atrasaram a divulgação dos Estudos na série completa, que somente em 1962 seriam executados integralmente pelo violonista brasileiro Turíbio Santos. A partir daí os 12 Estudos tiveram um reconhecimento mundial, alavancando as demais obras de Villa-Lobos, a Suíte Popular Brasileira e os 5 Prelúdios, e colaborando no chamado boom violonístico dos anos 60. 245 Leo Brouwer surge nesse cenário como o homem que trouxe a vanguarda da década de 60 para o violão, fazendo, como Villa-Lobos, a ponte entre a música tradicional de seu país e a música contemporânea. O resultado é que a obra violonística de Brouwer e Villa-Lobos é o conjunto de peças de autores latino-americanos mais conhecido e tocado nos meios acadêmicos e salas de concerto no mundo. Se por um lado Villa-Lobos era um digno representante da agenda nacionalista, Brouwer aparece como um ilustre filho da Revolução Cubana, pautada na defesa do patrimônio cultural e recuperação de valores da identidade nacional. A aproximação histórica entre Villa-Lobos e Leo Brouwer ocorre devido a essa defasagem de tempo na consagração da obra violonística do autor brasileiro. Entrando nos anos 60, a obra de Villa-lobos encontra-se com o início da obra de Brouwer, que já possuía boa parte de seu repertório117 e que começa a ser muito executado. Ou seja, com o desaparecimento de Villa-Lobos (ele faleceu em 1959) é Leo Brouwer quem preenche as condições ideais para se tornar o próximo grande nome na composição violonística – e é isso que realmente acontece. Durante todo o trabalho por diversas vezes foi citado que Villa-Lobos é o nome mais representativo do violão da primeira metade do século XX e Leo Brouwer o da segunda metade. No caso de Villa-Lobos, o termo ―mais representativo‖ provém do fato de o compositor ter representado melhor o momento vivido, ou os vários momentos vividos, no século XX, em sua primeira metade. Isso porque ele rompeu com a linguagem conservadora que até então vinha vigorando no violão, linguagem essa advinda principalmente da escola espanhola, em suas duas frentes – a Clássica, de Fernando Sor (1778-1839) e a Flamenca. Apesar de nomes como o do mexicano Manuel Ponce (1882-1948), e dos espanhóis Joaquín Turina (1882-1949), Federico Moreno Torroba (1891-1982) e Joaquín Rodrigo 117 Pieza Sin Título (1956), Prelúdio(1956), Danza Característica(1956), Fuga (1957), Micropiezas (1957) etc.. 246 (1902-1999), e do italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968) terem atingido um patamar alto, suas obras ligam-se à permanência no conservadorismo; o mesmo pode-se dizer do paraguaio Agustín Barrios (1885-1949), que possui mais de 300 obras, todas circunscritas à linguagem tradicionais. Não há um demérito na ação destes compositores, somente se avalia a questão da modernidade ou não de suas obras como parâmetro de representatividade do século (que em dois períodos distintos – anos 20 e anos 60 – viveu momentos de ruptura com o passado). O compositor suíço Frank Martin (1890-1974) escreveu em 1933 sua única peça para violão Quatre Pièces Brèves, considerada um avanço para a época. Do espanhol Manuel de Falla118 (1876-1946) - 1 obra -, do mexicano Carlos Chávez (1899-1978) - 1 obra- e, em parte, do polonês Alexander Tansman (1897-1996) - 6 obras -, pode-se afirmar que se integraram um pouco mais às linguagens modernas, porém o número de peças não conforma uma ―obra violonística‖, que apesar do brilhantismo, carece ora de achados técnicos ora de linguagem idiomática do instrumento ou de uma exposição didática – fatores estes que são amplamente encontrados na obra villalobiana. Dudeque (1994:90) tem uma importante conclusão que, posso afirmar, é pensamento corrente entre os violonistas: Criticamente, poderíamos reprovar a atitude de Segovia junto aos grandes compositores da vanguarda musical da primeira metade do século. Compositores como Stravinsky, Schönberg, Webern, Bartók, Ravel e tantos outros, poderiam ter escritos obras para violão solo, caso Segovia as tivesse comissionado. No entanto, o trabalho de Segovia resultou em um grande conjunto de obras compostas por compositores com forte influência romântica e neoclássica, em que a obra do brasileiro Heitor Villa-Lobos sobressai como a mais arrojada em termos de linguagem instrumental e originalidade de concepção. 119 Vários compositores brasileiros também já compuseram algumas peças para violão 118 Interessante que, contemporâneo ao nome de Falla, surgiu o ―Grupo de Madri‖, formado por compositores como Salvador Barcarisse e Antonio José, este o compositor de maior relevo, sendo que a sua Sonata vem sendo re-valorizada de algum tempo para cá. 119 Ainda assim, o repertório para violão conta com obras destes autores, como: Serenade op.24 (1920-23) de Schoenberg, Drei Lieder op. 18 (1925) de Webern, Apostel escreveu Sechs Musiken für Gitarre op.25, e Krenek compôs uma suíte em 1957. 247 após a forte presença da obra de Villa-Lobos. Francisco Mignone (1897-1986) compôs os 12 Estudos (1970), Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), Ponteio, Valsa-Choro e três Estudos, e Radamés Gnattali (1906-1988), que tem uma obra maior, voltada para a música popular. Edino Krieger (1928) compôs a Ritmata (1975), importante obra com linguagem contemporânea, Almeida Prado (1943) também, Marlos Nobre (1939), compôs a série Momentos e Ricardo Tacuchian (1939) escreveu Lúdica I e II (1981 e 1984). Também porque rompeu com a linguagem corrente, entrando em contato com a vanguarda dos anos 60, Leo Brouwer é o compositor que melhor representa a segunda metade do século XX. A exemplo do que ocorreu com Villa-Lobos, sua obra não tem paralelo, em termos quantitativos e ligados à qualidade musical. Os autores que, como Brouwer, entraram mais em contato com a linguagem moderna pós-60 são os ingleses Stephen Dodgson (1924), Malcolm Arnold (1924), Richard Rodney Bennet (1936), Michael Tippet (1905), Lennox Berkeley (1903); o alemão Hens Werner Henze (1926), que escreveu Royal Winter Music e El Cimarrón além de mais duas peças de câmara; o argentino radicado na Alemanha, Mauricio Kagel (1931) que incluiu o violão em várias peças de câmara e orquestrais. Pode-se citar ainda composições como a Sarabande (1960) de Francis Poulenc (1899-1963), Maurice Ohana (1914-1992) com poucas peças e o seu Concerto Trois Graphiques (1950-57), que já é possuidor de uma linguagem bem contemporânea. Pierre Boulez (1925) adicionou o violão em muitas obras suas, mas o destaque fica para a sua obra solo Lê Marteau sanz Maître (1953-55), e o também francês Francis Kleynjans (1951) tem em A l‟Aube du dernier jour (1980) sua obra mais conhecida. Dos compositores italianos, há bastante produção esporádica, mas há um destaque para nomes como Bruno Maderna (1920-1973) - 1 obra - e Luciano Berio (1925) com a virtuosística Sequenza XI (1988). Os ingleses William Walton (1902-1983), que compôs Five Bagatelles (1971-1972) e Benjamin Britten (1902-1976), autor de Nocturnal opus 70 (1964), 248 são os dois nomes de maior relevo dessa época, sendo que Nocturnal vem sendo considerada uma obra-prima do repertório. Da Espanha, há vários compositores. Cristobal Halfter (1930), Antonio García Abril (1933), Antonio Ruiz Pipó (1934) e Tomás Marco (1942) têm várias peças para o instrumento (mas ainda em número menor que Brouwer) e do Leste-Europeu, o destaque fica para Stepan Rak (1945), da República Checa, o iugoslavo Dusan Bogdanovic (1955), e o russo Nikita Koshkin. Dos Estados Unidos também vêm uma certa produção, em especial de Milton Babitt (1916), Elliot Carter (1908), que escreveram obras comissionadas por intérpretes, além do trabalho de Lukas Foss (1922), American Landscape e Steve Reich (1936), Electric Counterpoint, utilizando violão e fita magnética. Como se vê, em termos de conjunto da obra, só Leo Brouwer pode ser considerado o compositor mais representativo da segunda metade do século XX. O século XX chegou ao seu final e não foi constatada a presença de um trabalho que representasse a conjunção dos fatores necessários para a colocação de um outro nome. Villa-Lobos e Leo Brouwer tornam-se nomes referenciais em seus respectivos países e no exterior, representando a síntese de qualidade artística, grande quantidade de obras e repercussão internacional. Ambos são considerados como os maiores compositores latinoamericanos do instrumento; suas obras são citadas entre os violonistas de carreira internacional como peças de caráter obrigatório nas escolas de Música e universidades do mundo todo. No tocante ao violão, isso ocorreu porque ambos dominaram a linguagem do instrumento; recursos técnicos foram amplamente utilizados, foi empregado o conhecimento das reais possibilidades quanto à qualidade sonora (timbre, dinâmica, volume) e quanto à Música, os dois compositores apresentaram uma obra de expressão latino-americana, que inclui tanto aspectos originários (folclore, música popular, música de informação erudita) quanto originais (incluindo a vanguarda dos anos 20 e 60 e a criação de seus próprios traços). 249 CONCLUSÃO Apesar do peso que as propostas e formulações iniciais desta dissertação carregaram, do extenso trabalho de verificação e análise dos conceitos acolhidos, do cuidado em não admitir um conjunto de idéias pré-concebidas, chego ao final desta pesquisa com a certeza de que o ponto principal foi atingido: Villa-Lobos e Leo Brouwer são os maiores representantes da música para violão no século XX e isso se desdobrou em uma série de outras considerações que surgiram durante a pesquisa e foram apresentadas no corpo do trabalho. A primeira conclusão a que se deve chegar, conforme foi mostrado, é que o nome de Villa-Lobos, já previamente admitido na História da Música como o maior compositor brasileiro do século XX, é também a maior figura da composição violonística mundial, da primeira metade do século. Sua produção para o instrumento acompanhou todas as fases de sua carreira, refletindo-se em cada uma delas. Em seguida, é Leo Brouwer o nome que reúne as condições necessárias para uma nova guinada do repertório violonístico. Pode-se mesmo concluir que, encerrado o século XX, após a apresentação de suas obras no panorama internacional e na checagem com os compositores do século, não há paralelos a seus trabalhos porque ou foram pouco expressivos em quantidade de obras, não totalizando um produto de peso, ou não adicionaram nada de novo que já não tivesse sido trabalhado pelos dois autores em questão. Claramente, houve uma série de condições históricas reunidas em torno de seus nomes que possibilitou a ocorrência destes fatos. Na comparação sobre Nacionalismo e Política, pude perceber, por meio das diversas leituras de seus biógrafos, historiadores e teóricos da América Latina que o advento do Nacionalismo em suas respectivas épocas históricas emergiu de contextos de retórica política forte, que buscaram reforçar os sentimentos de 250 conformação da nação. O reflexo disso em seus trabalhos foi a tradicional busca de elementos folclóricos e da música popular, permeando todas as fases de suas obras. As implicações sócio-políticas de Villa-Lobos e Brouwer são frutos do arranjo histórico em que ambos atuaram e das escolhas que fizeram dentro das conjunturas. O produto de seus trabalhos está intrinsecamente ligado aos ideais que abraçaram – Villa-Lobos almejando obter o emprego da educação cívica por meio da Música, ligou-se à ditadura Vargas, com todas as conseqüências que teve de arcar com sua decisão, e Leo Brouwer pela atuação com o novo regime cubano tentou realizar o seu ideal de fazer Arte dentro de uma sociedade socialista, também com todas as dificuldades que a situação demandou, principalmente os problemas financeiros do embargo econômico imposto a Cuba, e as possíveis críticas e preconceitos pelo emprego da vanguarda, dentro da versão cubana do socialismo realista. Na Política, concluo que Brouwer se amolda à imagem revolucionária de seu país, desde as ações oposicionistas ao final da ditadura de direita, passando pelo governo revolucionário, até chegar àquela Cuba que poderia ser uma potência, àquela Cuba que jamais saberemos onde poderia chegar se não fossem as restrições impostas pelo embargo econômico. Vejo a trajetória de Brouwer como uma analogia à história da própria ilha nos últimos 40 anos. Por outro lado, fica a questão do posicionamento político (ou a falta) de Villa-Lobos como uma escolha pessoal do compositor carioca, proveniente também de sua personalidade intempestiva e avessa a qualquer lógica – na verdade não vislumbro um fim próximo quanto ao tema político dentro de sua carreira, a questão é muito mais recente que o montante de títulos sobre sua obra e tem sido abertamente levantada por historiadores, dos quais Arnaldo Contier se destaca. 251 Na comparação sobre o uso da Vanguarda, a principal contribuição de Villa-Lobos é a composição dos 12 Estudos, tida como a entrada do instrumento no novo século, devido às mudanças trazidas que desviaram o violão do caminho de uma linguagem romantizada para uma mais moderna, tratando o instrumento como nunca havia sido feito antes. Já Leo Brouwer, ao iniciar sua atividade composicional na década de 50, entrou na década seguinte encontrando o boom mundial do violão, um espaço em plena atividade, e colaborou abrindo maiormente as possibilidades da linguagem. A peça La Espiral Eterna é a composição que melhor representa o uso da vanguarda no violão. Também, esteticamente, em uma fase posterior, ambos deixaram de lado o posicionamento inovador que haviam adotado para se dedicar a uma linguagem tradicional, a uma regressão a expressões mais acessíveis ao público. Quanto à música para o violão, objetivei entender a linguagem composicional dos dois consagrados autores, analisando que tipo de recursos usaram, se entre o ideal pensado para as peças e o resultado sonoro obtido houve uma congruência à altura. Villa-Lobos afirmava peremptoriamente que ―sua música não era para ser analisada‖ e posso dizer que por várias vezes ele até esteve certo, pois as suas idiossincrasias também são apontadas na obra para violão. Por exemplo, o afã de expressar o indígena brasileiro, tanto em grandes obras como os Choros 10 quanto em iluminuras como o Prelúdio 4, seguem somente o seu imaginário, e um imaginário de época também, ou seja, uma experiência indireta (não nego o resultado sonoro de primeira grandeza); na música popular sim o seu referencial é perfeito, pela atuação in loco. Não há o que reprovar nos 12 Estudos – a obra para violão solo que o compositor carioca mais se demorou em finalizar, e talvez por isso tenha obtido resultados tão profundamente admiráveis por toda a comunidade violonística internacional, a ponto de ser sempre apontado, lembrado, citado em centenas de ocasiões. 252 De Brouwer, concluo que seu pensamento extramusical, sua vasta cultura, sua postura intelectual enfim, dimensionam sua obra que, esta sim, é de consistente análise pelos inúmeros parâmetros que Brouwer possui e utiliza como sofisticadas ferramentas: a literatura, a filosofia, as artes plásticas, a ideologia assumida – tudo contorna sua obra e sua obra é um todo. Desde muito jovem ele já possuía em suas primeiras peças uma estética mais voltada a inovar do que a se enquadrar; muito cedo Brouwer descobriu a sua fórmula, que os cubanos gostam muito de chamar o seu ―estilema‖, a sua ―marca‖, o seu ―selo‖, baseado na surpreendentemente adição de elementos díspares, como a tradição da ritualística afro-cubana com a abstração da vanguarda, justamente por acreditar que esses extremos se tocam. O resultado, como se viu, foi profícuo para o violão. Trazer à tona a série de visões, expressões, posturas dos dois grandes nomes, fortemente interiorizadas e arraigadas a seus momentos históricos, funcionou como um microcosmo da atuação cultural de uma América Latina que, ainda que por vezes subalterna na condição de ordem mundial, se manifesta como pode no seu cotidiano, principalmente por meio da Música, apenas uma das muitas faces da identidade cultural latino-americana. Podemos afirmar quanto a isso que os resultados do estudo demonstraram uma sinopse da atividade criadora na América Latina - das primeiras décadas do século XX até a atualidade. A atuação de Villa-Lobos levou-o aos caminhos que passaram pelo mecenato, como comprovam as personalidades que o auxiliaram nos anos 20 (Olívia Penteado, Paulo Prado, Carlos Guinle) para a realização de seus trabalhos e a permanência em Paris; nos anos 30 e 40 suas escolhas foram para a órbita governamental, quando Villa-Lobos aceitou e trabalhou no governo Vargas, com a inclusão já da ação norte-americana; e quando o compositor iniciou uma série de turnês e compromissos internacionais, isto lhe conferiu uma certa estabilidade e independência, especialmente na última década de vida, nos anos 50. 253 Seqüencialmente, dos anos 50 para os 60, com o advento de uma nação socialista latino-americana – Cuba –, surge o comprometimento público e ideológico em todas as esferas, incluindo a educação e a arte, de onde emerge Leo Brouwer como uma liderança. Após representar o nome de Cuba no exterior por diversas vezes, nas décadas de 60 a 80, principalmente na Europa, nos anos 90 Brouwer passa a viver na Espanha, onde se fixa como diretor da Orquestra Sinfônica de Córdoba, embora vá a Cuba com freqüência. Portanto, conclui-se que na América Latina atuaram como importantes promotores da vida artística: o mecenato da elite do início do século XX; o contato dos artistas latinoamericanos com as idéias européias, de onde provêm as tradições culturais eruditas, com, em geral, uma intermediação de nomes (Arthur Rubinstein para Villa-Lobos, H. W. Henze para Brouwer); a atuação em esferas governamentais como meio conveniente de sobrevivência, ainda que sem garantias da aplicação de idéias e programas, livres de críticas ou de apelo integracionista; obtenção de uma certa estabilidade e independência a partir de um status adquirido com o acúmulo de representatividade. Quanto à proposição do nome dos dois compositores como exemplos da expressão latino-americana, isto aconteceu porque Villa-Lobos e Brouwer projetaram nossas tradições – o folclore, a música popular, as versões dos elementos indígena, europeu e africano – pelo filtro de suas sensibilidades. Por um lado, Villa-Lobos alcança esse status ao ultrapassar o projeto nacionalizante, até por sua inaptidão em permanecer em qualquer tendência, e de basicamente fazer somente o que lhe convinha, criando, inventando a sua própria tendência – ele mesmo afirmou que era individualista demais para se fixar somente na fonte folclórica. Cabe então definir que sua ―sensibilidade americana‖ à qual se refere Carpentier reside no fato do compositor carioca ter conseguido demonstrar naturalmente a expressão de um país, 254 de uma parte do mundo, sem na verdade ter seguido um critério para isso, a não ser o seu próprio. Leo Brouwer, proveniente de uma outra circunstância, expressa-se como cubano e latino-americano, sem qualquer marca de exotismo e se ligando a uma atitude intelectual, de refinamento. Brouwer também não se fixou em uma estética, mas não há no compositor cubano a intemperança de Villa-Lobos – suas escolhas sempre caminharam pela tomada consciente de assimilar ou refutar um projeto pelo exercício filosófico, pela ponderação de idéias. Seus caminhos se cruzam sim no saldo de suas obras e no que elas guardam da identidade latino-americana. 255 BIBLIOGRAFIA FINAL ACHA, Juan. ―Modernidad y Província‖. In Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: revista da Sociedade Cientifica de Estudos de Arte, ano III. n.º 4, março 1993. ACOSTA, Leonardo. Del Tambor al Sintetizador, Havana: Editorial Letras Cubanas, 1986. ________________. ―Radiografia del G.E.S.‖, in Caimán Barbudo n.º 255, III, 1989. 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Chorinho da Suíte Popular Brasileira (1923) Faixa 2. Estudo 11 da série de 12 Estudos (1929) Faixa 3. Prelúdio 4 da série de 5 Prelúdios (1940) Faixa 4. Danza Característica (1957) Faixa 5. Canticum (1968) Faixa 6. El Decamerón Negro (1981): I – El Arpa del Guerrero Faixa 7. II – La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos Faixa 8. III – Balada de la Doncella Enamorada Ficha técnica: Intérprete: Teresinha Prada Violão: Tessarin 1991 Gravação, edição e mixagem: Ricardo Marui Assistente: Geisa de Moraes Gravado em Julho de 2001 – Estúdio GTR – Mairiporã – SP