PDF - Acervo Digital do violão brasileiro

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TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES
A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL)
E LEO BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E
A AVENTURA INTELECTUAL.
SÃO PAULO
2001
TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES
A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL) E LEO
BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E A AVENTURA
INTELECTUAL.
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Integração da
América Latina, da Universidade de
São Paulo, para obtenção do título de
Mestre em Produção Artística e Crítica
Cultural na América Latina.
Orientadora:
Profa. Dra. Dilma de Melo Silva
São Paulo
2001
Soares, Teresinha Rodrigues Prada
A Obra Violonística de Heitor Villa-Lobos (Brasil) e Leo Brouwer
(Cuba): a sensibilidade americana e a aventura intelectual.
Dissertação – Mestrado – Programa de Pós-graduação em Integração
da América Latina
Universidade de São Paulo
1. música brasileira- música cubana- Heitor Villa-Lobos- Leo
Brouwer- nacionalismo- música para violão- identidade cultural
latino-americana – modernismo- vanguarda musical.
TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES
A OBRA VIOLONÍSTICA DE HEITOR VILLA-LOBOS (BRASIL)
E LEO BROUWER (CUBA): A SENSIBILIDADE AMERICANA E
A AVENTURA INTELECTUAL.
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e orientadora ………………………………………………
2.ª Examinadora
………………………………………………
3.ª Examinadora
………………………………………………
São Paulo,
de
de 2001.
―Haveremos de encontrar o universal nas
entranhas do local; e no limitado e circunscrito,
o eterno.‖
Miguel de Unamuno.
―Heitor Villa-Lobos é um dos poucos artistas
nossos que se orgulha de sua sensibilidade
americana e não trata de desnaturalizá-la. Ao
menos por uma vez, é palmeira que pensa
como palmeira, sem sonhar com pinheiros
nórdicos.‖
Alejo Carpentier.
―Leo Brouwer si no es el músico perfecto, es lo
que más se acerca a la perfección, en todos los
sentidos. Puedo decirlo así y eso implica toda
su perfección, todas las acepciones musicales,
como intérprete, compositor, maestro y
director. Para mí, Leo es el músico cubano
más importante del siglo XX.‖
Chucho Valdés.
Dedico este trabalho à grande comunidade
violonística latino-americana e caribenha.
AGRADECIMENTOS
A Marcos Soares e Renato Prada, pela paciência e compreensão das muitas horas de
ausência do convívio familiar.
À Profa. Dra. Dilma de Melo Silva, por sempre apoiar e apreciar o tema da minha
pesquisa, desde nosso primeiro encontro.
A Gilson Antunes e Ricardo Marui, pela amizade irrestrita.
A Sidney Molina, pelas idéias compartilhadas.
A Turíbio Santos, pela gentileza da entrevista.
A Fabio Zanon, pela gentileza do material enviado.
A Edwin Pitre, pelo coleguismo, sabendo repartir sempre.
A Mariana Martins Villaça, Silvia Miskulin e Fernando Binder, pela troca de
informações.
Ao Prof. Marcelo Mello, pelos comentários fornecidos.
À Geisa de Moraes, pela colaboração técnica na gravação.
Aos colegas do Prolam, pelo convívio harmonioso.
A Profa. Dra. Ronilda Ribeiro, Profa. Dra. Liana Trindade, Prof. Dr. Fabio Leite, Prof.
Dr. Kazadi wa Mukuna, pelas lições recebidas.
Ao Prolam, pela oportunidade.
À Fapesp, pelo apoio financeiro e o suporte técnico, sem os quais este trabalho não
teria se realizado a contento.
RESUMO
Este trabalho é um estudo comparativo entre a música para violão de Heitor VillaLobos e Leo Brouwer, que tenta provar o grande valor de suas obras para a música
violonística do século XX. Ambos têm em comum muitos traços e experiências, como a
ressonância da música popular; a música da estética Nacionalista; senso de patriotismo; o
envolvimento com esferas governamentais, principalmente em Educação e Cultura; tiveram
uma aproximação com a vanguarda (Villa-Lobos em Paris, Brouwer em Varsóvia), mas
ambos decidiram continuar seguindo seus próprios estilos. Na maturidade, fizeram um retorno
às formas prévias de suas obras e ao uso de temas recorrentes. Suas diferenças também são
apontadas, especialmente quanto às suas posições políticas e culturais, vistas como uma
conseqüência dentro da época em que atuaram. Uma importante avaliação é a de que quando
a música violonística de Villa-Lobos começa a ser mais executada nos anos 60
(imediatamente após a morte de Villa-Lobos), Leo Brouwer emerge, e então eles se tornam os
mais representativos compositores para violão do século, mesmo sendo de diferentes
gerações. Como um objetivo secundário, tenta-se demonstrar que suas produções podem ser
entendidas como um exemplo considerável de identidade latino-americana.
ABSTRACT
This work is a comparative study between Heitor Villa-Lobos and Leo Brouwer‘s
guitar music, which tries to prove their great value for guitar music in the 20th century. They
have got in common many features and experiences as popular music resonance; Nationalist
music; sense of patriotism; involvement with government departments, mainly Education and
Culture; vanguard approach (Villa-Lobos in Paris, Brouwer in Warsaw) but both decide to
keep following their own style. In the maturity age, they return to previous forms and
recurrent themes. Their differences are presented too, especially the political and cultural
positions of them, as a consequence inside of an epoch. An important evaluation is that when
Villa-Lobos guitar music begins to have more performers in the 60's (immediately VillaLobos death), Leo Brouwer arises, and then they become the most representative composers
for guitar music of the century, even so they are from distinct generations. As a secondary
aim, this work try to demonstrate that their outputs can be understood as a considerable
example of the Latin-American‘s identity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1
CAPÍTULO 1 – Contexto Histórico da América Latina
11
1.1. Brasil: os temas nacionais
12
1.2. A invenção do ―outro‖
16
1.2.1. O Índio na Era Vargas
18
1.3. O segundo ―outro‖: o negro
21
1.4. Cuba: fatos históricos antecedentes a 1959
27
1.5. ―Democracia Racial‖ (Brasil) e ―Fim do Racismo‖ (Cuba)
31
1.6. Identidade Nacional
34
1.7. Cultura Popular
38
1.8. Modernidade e Pós-Modernidade
40
1.9. Um filho dileto da Revolução
43
CAPÍTULO 2 – O Violão no Brasil e em Cuba
51
CAPÍTULO 3 – Biografia de Heitor Villa-Lobos
61
3.1. A obra para violão de Heitor Villa-Lobos
CAPÍTULO 4 – Biografia de Leo Brouwer
76
87
4.1. A obra para violão de Leo Brouwer
101
CAPÍTULO 5 – Análise de peças de Villa-Lobos: a importância do choro
113
5.1. Valsa-Choro da Suíte Popular Brasileira
119
5.2. Chorinho da Suíte Popular Brasileira
124
5.3. A fase inovadora dos 12 Estudos
129
5.4. Estudo 10
135
5.5. Estudo 11
142
5.6. A série de 5 Prelúdios
147
5.7. Prelúdio 4
150
5.8. Prelúdio 5
153
CAPÍTULO 6 – Análise de peças de Leo Brouwer
157
6.1. Danza Característica
160
6.2 Estúdio 5
169
6.3. Canticum
177
6.4 La Espiral Eterna
188
6.5. Decameron Negro
201
6.6. Rito de los Orishas
214
CAPÍTULO 7 – Comparações entre Villa-Lobos e Brouwer
225
7.1. Nacionalismo
225
7.2. Vanguardas
234
7.3. Retorno
237
7.4. Política
238
7.5. Violão
244
CONCLUSÃO
249
BIBLIOGRAFIA
255
ANEXOS
266
1
INTRODUÇÃO.
Dentro da história da música, o nome de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) está ligado a
grandes acontecimentos da vida brasileira, dentre os quais Modernismo e Nacionalismo.
Nascido sob a égide das recém-criadas Abolição dos Escravos e Proclamação da República,
Villa-Lobos ainda respirou a atmosfera europeizada do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em
que vivenciou os primeiros passos de uma nascente cultura urbana, participando ativamente
dos eventos vindouros da chamada Era Vargas.
Em termos de carreira, Villa-Lobos possui períodos distintos: o início no Brasil, no
qual se inclui a participação na Semana de Arte Moderna de 1922; as duas viagens para a
França que o ajudaram a ser reconhecido; a volta ao Brasil, quando se empenhou na educação
musical; e o último período, das muitas turnês já como artista consagrado. Quanto às
características de seu trabalho, já foram apontados pelos pesquisadores traços de Chopin,
Puccini, Debussy, Rimsky-Korsakov, Tchaikovsky, comparações com Stravinsky e Bartók, e,
ao mesmo tempo, demonstram-se traços da América índia, ibérica e africana. Nacionalismo,
local e universal, modernismo, vanguarda, neoclassicismo – são termos associados à sua
produção.
Sua obra perfaz um total de mais de mil opus. Pelo lado da composição de grandes
obras, há nos anos 20 a série de 14 Choros e nos anos 30 as 9 Bachianas Brasileiras. Nas
formações orquestrais, praticamente não há instrumento para o qual ele não tenha deixado
algum escrito, o que por muitas vezes é apontado como um empecilho para uma constância na
apresentação de suas sinfonias, pois demanda mais instrumentistas e muitos ensaios. Foram
ao todo 12 Sinfonias e alguns Poemas Sinfônicos como Uirapuru (comparado a O Pássaro de
Fogo de Stravinsky), obras para filmes como O Descobrimento do Brasil para a película do
mesmo nome de Humberto Mauro, e Floresta do Amazonas para o filme Green Mansions (no
2
Brasil recebeu o nome de A Flor que Não Morreu) e balés como Rudá, Gênesis, Imperador
Jones (canto e bailado). Outra série de grande força são os 17 quartetos, sem esquecer o
trabalho vocal que tomou grande parte de sua obra também como as 4 óperas, a obra coral, as
13 Canções Típicas Brasileiras, as 14 Serestas e as 7 Modinhas e Canções.
Para piano, destacam-se Cirandas e Cirandinhas, Prole do Bebê 1 e 2 Rudepoema,
Ciclo Brasileiro, Lenda do Caboclo, Danças Características Africanas, além de 5 concertos e
a participação do instrumento nas séries Choros e Bachianas Brasileiras. A obra para
violoncelo consta de dois concertos com orquestra e a formação em conjunto nas Bachianas
Brasileiras 1 e 5. O violino possui 2 concertos com orquestra e são considerados bem
originais na escrita.
Ao violão dedicou uma pequena, mas excepcional, parte de seu trabalho, compondo
mais de 20 peças: o Concerto para violão e pequena orquestra, os 12 Estudos, 5 Prelúdios
Choros n.º 1 e a Suíte Popular Brasileira, além da série de partituras perdidas, das quais a
recém-descoberta (1996) Valsa Concerto n.º 2 fazia parte, assim como se diz do Prelúdio n.º
6. A constância na execução de sua obra para violão representa uma enorme divulgação de
seu nome no Brasil e no exterior. Sobre sua contribuição ao repertório violonístico, afirma-se
mesmo que a música brasileira para violão está vivendo até hoje à sombra de seu trabalho e
que sua esta seja a mais conhecida nos meios violonísticos nacionais e internacionais
(Dudeque 1994:89-90,104).
O interesse pela obra violonística de Villa-Lobos levou-me a apresentar um projeto ao
Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina - Prolam - na linha de pesquisa
de Produção Artística e Crítica Cultural. O método de trabalho do referido instituto se dá por
meio da realização de estudos comparativos entre Brasil e países da América Latina ou
Caribe. O Prolam existe há 12 anos e já havia acolhido os trabalhos de Mestrado na área de
Música de Mareia Quintero-Rivera (Porto Rico) e de Edwin Ricardo Pitre Vasquez (Panamá),
3
finalizados em 1996 e 2000, respectivamente. Parte do embasamento teórico sobre o tema é
anterior ao meu ingresso no Prolam devido à minha atividade como musicista, por isso já
havia realizado uma parte das leituras dos títulos específicos aos dois compositores.
Decidi que o melhor país para ser comparado ao Brasil, referente à obra violonística
do porte de Heitor Villa-Lobos, seria Cuba, na figura do compositor Leo Brouwer. Essa
escolha é proveniente do fato de que ambos são considerados como os maiores compositores
latino-americanos do instrumento, e suas obras são citadas entre os violonistas de carreira
internacional como peças de caráter obrigatório1. Algumas semelhanças em suas trajetórias
também colaboraram para a escolha, tais como a ressonância da música popular em seus
trabalhos, ao mesmo tempo em que estiveram atentos às novas linguagens de seu tempo, e o
fato de que ambos participaram à frente de projetos governamentais ligados à Cultura em seus
países. Há também uma visão no meio violonístico que considera Leo Brouwer como o
sucessor de Villa-Lobos, tanto por estas semelhanças na carreira e na reputação mundial
quanto no trabalho composicional, propriamente dito. Esta pesquisa é o primeiro trabalho no
Brasil a falar da obra geral e especificamente de violão do compositor cubano Leo Brouwer.
Pela leitura de Alejo Carpentier (1991), Villa-Lobos foi um dos poucos artistas latinoamericanos que soube demonstrar a expressão americana, sem desnaturalizá-la ou caminhar
pelo exotismo, e da mesma forma, como bem atesta a pesquisadora austríaca Christina Schörn
(1995), Leo Brouwer possui a característica dos grandes compositores que vão do nacional e
próprio ao continental latino-americano e, por esse caminho, ao internacional. A obra musical
para violão de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer também se enquadra nessa demonstração de
expressão da identidade latino-americana.
O presente trabalho tem também a proposta de pesquisar essa questão da identidade
nacional pela música destes dois consagrados compositores. Isto se justifica pela importância
1
Há depoimentos em Schaupp (1989), Weiss (1996), Denis (1997), Saba (1996) que serão relatados no decorrer
4
cada vez maior do entendimento de uma identidade cultural dentro de um projeto de
integração da América Latina. A cultura vem sendo considerada como um fator preponderante
nas áreas econômica e social, e mais ainda, a cultura vem sendo idealizada como ―capital
social‖ e um dos elementos mais importantes nos países da região. Dentro deste ―capital
social‖, a música já foi conceituada nas esferas governamentais como um grande ponto em
comum entre América Latina e Caribe2. Por que violão e por que Villa-Lobos e Leo Brouwer
para demonstrar a proposta do trabalho é o que gostaria de explicar.
Primeiramente, utilizei somente a obra para violão dos dois autores, porque a escolha
se baseou no conhecimento de que o violão foi o instrumento trazido pelos colonizadores, e
sempre esteve presente nas manifestações artísticas dos povos latino-americanos nas mais
variadas instâncias. Como disse Alejo Carpentier (1977:19), o violão passou de instrumento
transplantado à cultura colonizada para ser o instrumento latino-americano por excelência.
Em segundo lugar, a escolha pelo violão favoreceu uma questão meramente prática,
pois delimitou o estudo em um número equilibrado de peças entre ambos autores e, mais
ainda, a obra para violão abarca as diferentes fases de suas trajetórias como compositores,
sem esquecer que eles também foram intérpretes do instrumento. Optei ainda pelo violão
porque, como musicista, vivendo na área da música de concerto para violão há mais de 20
anos, posso afirmar que a obra violonística de Brouwer e Villa-Lobos é o conjunto de peças
de autores latino-americanos mais conhecido e executado nos meios acadêmicos e de salas de
concerto no mundo.
O procedimento metodológico adotado foi o de lidar com a opinião de vários autores:
- os que trataram de analisar a obra dos compositores Villa-Lobos e Brouwer;
- os que revelaram o momento histórico vivido por cada um;
da dissertação.
2
SILVA, Beatriz C.. ―Para ministros, integração deve começar pela música‖ in O Estado de São Paulo,
07/09/98.
5
- e os autores que trabalharam teorias culturais sobre a América Latina.
Ao analisar aspectos da identidade cultural latino-americana de Brasil e Cuba por
meio da obra musical para violão de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer, tive como ponto de
partida a sobreposição de diversas teorias culturais latino-americanas, apresentadas por
autores de diferentes tendências. Muitos teóricos já se expressaram sobre as problemáticas
culturais prementes da América Latina como o chamado ―encontro‖ das diversas culturas, o
colonialismo, a dependência, o moderno e o pós-moderno, sendo que alguns autores se
pronunciaram favoravelmente, isto é, vêem a questão como de resultado compensatório ou
otimista, e há outros que trabalham o assunto como uma releitura destes temas inerentes à
nossa condição latino-americana com uma postura mais crítica, principalmente no tocante à
acomodação da questão racial, obscurecida em aspectos como o do ―encontro‖ das raças. A
bibliografia deste capítulo foi levantada de modo a abranger um certo número de autores de
ambas as tendências, mas deu ênfase às proposições históricas mais recentes.
Somente depois meu trabalho entrou no estudo comparativo da música de Heitor
Villa-Lobos e Leo Brouwer, pelo contato direto com as obras em questão, por meio de
partituras selecionadas.
Os objetivos que busquei atingir foram:
- a linguagem composicional de cada autor;
- os recursos técnicos utilizados nas obras escolhidas para análise;
- os resultados sonoros em relação aos temas propostos pelos compositores;
- os procedimentos inovadores;
- a expressão latino-americana;
- os elementos comuns e os divergentes entre os autores;
- e o momento histórico em que ambos viveram.
6
A busca desses aspectos tem como centro a interpretação da linguagem composicional
de cada autor dentro de um caráter nacionalista, que permeou a obra dos dois artistas.
Entretanto, se a partir desta interpretação ficar esclarecido o comportamento dos dois
compositores, é possível chegar-se a uma constituição do que foi o fazer musical na América
Latina, no século XX, a natureza de seu funcionamento, a partir de um modelo gerado pela
ação desses dois nomes consagrados propostos. É pertinente relembrar que o desaparecimento
de Heitor Villa-Lobos coincide com a ascensão de Leo Brouwer, o que permitiu uma leitura
do panorama histórico em cerca de nove décadas de existência de vida musical na América
Latina – dos anos 10 até os 90 do século XX.
Trabalhou-se a questão de um ponto inicial - histórico e sociológico - por meio da
visão geral do contexto em Brasil e Cuba, e prosseguimos pelas biografias dos compositores e
o advento do violão em suas carreiras. Deste ponto em diante, o estudo é tratado de maneira
mais técnica pela análise das peças.
Dividindo a carreira dos dois compositores em três fases, optei por analisar duas peças
de cada etapa. A divisão por três fases em cada compositor seguiu, no caso de Villa-Lobos,
algumas teorias de importantes musicólogos, embora com certas ressalvas que se aplicam ao
violão. Um fato é que o Nacionalismo esteve em toda a sua obra e isto fica evidente também
no repertório de violão. Da mesma forma em Brouwer, pode se considerar que as três fases já
apontadas em alguns trabalhos anteriores, e apoiado pelo próprio Brouwer, não eliminam
entre si a utilização de procedimentos de uma ou outra fase, de maneira que se pode afirmar
que seu trabalho veio em uma crescente fusão de estilos, que se equilibraram no terceiro
período.
O objeto de comparação foi definido pelo número de obras musicais selecionadas de
cada autor. A análise de partituras buscou um número mínimo para comparação das obras –
seis peças de cada autor – que abarcasse as diferentes fases de cada um. Em Villa-Lobos,
7
escolhemos peças de violão que mais do que outras representariam melhor o Nacionalismo.
Na série de 12 Estudos, por exemplo, há estudos que realmente se esmeram mormente pela
qualidade técnica (e a técnica do violão é advinda das escolas espanhola e italiana - daí alguns
autores anteriores perceberem a influência destas em alguns dos estudos), outros que
assumem um caráter universal (o Estudo n.º 1 é muito comparado a prelúdios de Bach) e
ainda outros que conseguem reunir uma ressonância do local com uma linguagem universal (o
ideal de perfeição dos adeptos do Modernismo). O mesmo procedimento foi tomado com a
série de 5 peças da Suíte Popular Brasileira e com os 5 Prelúdios.
Basicamente os autores que trataram de estudar sua obra dividem sua carreira em
quatro fases:
1. A fase de formação musical, com grande aproximação da música popular carioca do
começo do século,
2. A permanência em Paris,
3. O trabalho com o Canto Orfeônico, no governo Vargas,
4. A fase de consagração internacional de sua carreira.
O violão esteve presente nestas quatro fases apontadas e apresentou-se integrado à
estética destes períodos:
1. A Suíte Popular Brasileira, formada por quatro peças (Mazurka-Choro, Schotisch-Choro,
Valsa-Choro, Gavota-Choro), reflete o panorama da música popular da cidade do Rio de
Janeiro,
2. Os 12 Estudos, escritos em Paris de 1924 a 1929, demonstram a linguagem inovadora deste
período, tratando o instrumento como nunca havia sido feito antes,
3. Os 5 Prelúdios, escritos em 1940, no Rio de Janeiro, expressam traços que se encaixam na
agenda nacionalista, como as dedicatórias: ao Homem do Campo, ao Índio Brasileiro, etc..
8
4. O Concerto para violão e pequena orquestra (1951) é da fase de consagração. O material
deste concerto é uma síntese das características que o compositor criou ao longo de sua
carreira.
De Heitor Villa-Lobos, as partituras foram selecionadas de um conjunto de 24 peças
para violão solo - 12 Estudos; 5 Prelúdios; 5 peças da Suíte Popular Brasileira, Choros n.º 1 e
a recém-descoberta Valsa de Concerto n.º 2. A lógica da seleção partiu de um princípio de
escolha de peças que contenham informações fundamentais, sonoras e temáticas, para o
estudo de elementos nacionalistas na obra de Villa-Lobos - mais do que em outras restantes .
E cheguei à seguinte seleção:
1.ª Fase do autor – anos 10:
Valsa-Choro da Suíte Popular Brasileira.
Chorinho da Suíte Popular Brasileira;
2.ª Fase – anos 20:
Estudo n.º 10 da Série de 12 Estudos;
Estudo n.º 11 da Série de 12 Estudos.
3.ª Fase – anos 30- 40:
Prelúdio n.º 4 da Série de 5 Prelúdios;
Prelúdio n.º 5 da Série de 5 Prelúdios.
Já em Leo Brouwer, de um ponto de vista geral de sua obra, as peças que mais se
coadunam com o Nacionalismo seriam as da primeira e da terceira fases de sua carreira,
segundo Gordon (1986) e Dudeque (1994), pois ele mesmo destaca sua primeira fase como
sendo Nacionalista, com elementos folclóricos, enquanto que na segunda fase ele realizou
experiências com as linguagens de vanguarda, e na terceira, retornou ao Nacionalismo. De
9
Leo Brouwer, da mesma forma que na seleção anterior, a prioridade foi para as peças
musicais que melhor caracterizavam o enfoque da pesquisa.
1.ª Fase do autor – anos 50-60:
Danza Característica;
Estudo n.º 5 - Montune - da Série de 10 Estudios Sencillos.
2.ª fase – anos 70:
Canticum;
La Espiral Eterna.
3.ª Fase – anos 80-90
El Decameron Negro;
Rito de los Orishas.
De acordo com as informações coletadas, Leo Brouwer tem um conjunto de obras para
violão solo de 38 peças, iniciados em 1954, sendo a peça mais recente datada de 2000. Leo
Brouwer começou sua carreira de compositor escrevendo obras para o violão, instrumento no
qual iniciou seu aprendizado musical. A carreira como compositor e intérprete caminharam
lado a lado, até o momento em que Brouwer decidiu-se exclusivamente pela composição.
Em Cuba, os ditames do engajamento na Arte foram predominantes no período em
que Leo Brouwer iniciou-se como compositor, já que ele é proveniente de uma sociedade de
ideologia marxista, e foi testemunha ativa das mudanças didáticas e estéticas do sistema
educacional e cultural cubanos. Brouwer pode ser considerado um compositor que se utiliza
da vertente nacionalista, porém, obteve um acesso às correntes de vanguarda européia dos
anos 60, incorporando-os à sua obra, o que poderia causar um paradoxo dentro dos
parâmetros de engajamento instituídos pela política cultural do governo revolucionário.
10
Uma terceira etapa do trabalho pretendeu comparar a obra dos dois compositores.
Questões cruciais são colocadas, como o Nacionalismo, a vanguarda, a música popular, a
linguagem composicional de cada autor, os recursos técnicos utilizados nas obras escolhidas
para análise, os resultados sonoros em relação aos temas propostos pelos compositores, os
procedimentos inovadores, a expressão da identidade latino-americana, os elementos comuns
e os divergentes entre os compositores, principalmente quanto à política.
Assim como o violão no Brasil percorreu um variado caminho até chegar ao trabalho
consagrado de Villa-Lobos, a história do violão em Cuba é plena de fatos que também se
interligaram até chegar à figura central do violão em Cuba, que é Leo Brouwer. Ainda que
este trabalho não tenha por finalidade contar a história do instrumento em cada um dos dois
países, isto se fez necessário para demonstrar as semelhanças entre ambos e para se ponderar
sobre o fato de que a atuação de Villa-Lobos e Brouwer não foi uma atitude isolada, mas sim
que ambos são produtos de uma espécie de genealogia do violão em seus países, que em seus
muitos entroncamentos, principalmente com a vertente popular e as novas linguagens,
conformou uma maneira de se expressar por meio do instrumento, que caracterizou
fortemente seus trabalhos, influenciando outras gerações e tornando-se representantes da idéia
que se apresenta sobre o violão latino-americano.
11
Capitulo 1. Contexto histórico da América Latina
Em muitos trabalhos acadêmicos, a interdisciplinaridade é necessária para a
compreensão ampla dos elementos que envolvem uma temática. No Programa de Pósgraduação em Integração da América Latina – Prolam, a interdisciplinaridade é um
procedimento adotado por seus membros, tanto durante o período de cumprimento de créditos
quanto na confecção das pesquisas. Assim, as dissertações e teses apresentadas em mais de
uma década de existência do Prolam nutrem-se de uma gama de disciplinas.
O presente trabalho provém da área musicológica e está baseado em duas disciplinas:
História e Sociologia (com diminutas inserções em Antropologia), não somente para seguir à
risca as determinações do Prolam, mas também pela crença na efetividade do método
interdisciplinar. Além disso, foi constatada a deficiência deste processo na maioria dos textos
que narram a vida e a obra dos dois nomes enfocados na pesquisa. Tanto em Heitor VillaLobos (que já possui um número grande de títulos) quanto em Leo Brouwer não é hábito
buscar o auxílio das Ciências Sociais para fundamentar certas ações. Como um tipo de
arremate histórico, os textos fixam Villa-Lobos a Getúlio Vargas e Leo Brouwer à revolução
socialista cubana, sem análises correlatas.
Alguns autores já têm como princípio a pesquisa multidisciplinar, enquanto que outros
nomes ficam mais na análise da biografia ou da obra do artista, sem uma ênfase extramusical3. Pelo que pude obter do material bibliográfico em relação a Cuba há também os dois
tipos de procedimento, talvez com um pouco mais de inflexão no contexto histórico-social do
que no caso brasileiro. Na verdade, a multidisciplinaridade é um aspecto mais recente como
uma instrução a ser levada com afinco pelos pesquisadores.
3
Não há nesta constatação qualquer tom de crítica, posto que cada um correspondeu às necessidades e códigos
da época em que escreveram. Trata-se sim de atualizar os dados trazidos outrora por eles, agora, à luz de novas
possibilidades de análise.
12
Béhague (1999:41) ressalta a importância dos conceitos teóricos para embasar as
pesquisas, colocando como elemento significativo, hoje em dia, a questão da identidade sóciocultural de grupos determinados.
Herdamos dos nossos antepassados uma classificação bastante arbitrária das classes
sociais e dos grupos étnicos latino-americanos que já não correspondem à realidade de
autodefinição e identidade. A dinâmica de identidade se assevera extremamente complexa
no mundo de hoje, pois acarreta necessariamente uma espécie de negociação consciente
ou não do discurso de identidade, dependendo do sentido do próprio em relação a algum
outro. O discurso que procura formular essa identidade conforma a natureza do outro, a
quem se apresenta esse discurso. Por motivos práticos tradicionais, referimo-nos
constantemente a tradições musicais de grupos, tais como mestiços, negros, crioulos,
hispano-americanos, luso-brasileiros, guajiros em Cuba, gíbaros em Porto Rico, afrocubanos, afro-brasileiros, indígenas etc. No entanto, os fatores de identidade nunca são
tão rígidos.
(...)O cultural e o social, no entanto, requerem um enfoque diferente no sentido de
perceber e definir o que torna esse fazer musical histórico próprio de um país
determinado.
(...)O objetivo da pesquisa histórico-musical no Brasil, e por extensão na América Latina,
tem que levar em conta as próprias características sociopolítico-culturais dos vários
agentes que determinaram e marcaram as várias fases dessa história e a forma em que
essas características se encontram refletidas nas produções artísticas.
(...) o fenômeno musical não pode ser tratado isoladamente do seu contexto social e
cultural.
Sendo assim, a finalidade deste primeiro capítulo é examinar as principais
considerações históricas e captar suas conexões com os trabalhos dos referidos compositores.
A direção, portanto, que norteia a análise é buscar o ambiente no qual cada um surgiu. Podese notar que há opiniões bem recentes intercaladas com apreciações de autores que já
receberam um lugar de destaque na área.
1.1. Brasil: os temas nacionais
Na ocasião em que Villa-Lobos nasceu, 1887, dois importantes acontecimentos
estavam por se realizar no cenário político e social brasileiro: a Abolição dos escravos (1888)
e a proclamação da República (1889). Pelo que se pôde constatar, o jovem Villa-Lobos4
4
Villa-Lobos teve os estudos básicos com seu pai e em 1901 ingressou no Colégio Pedro II, depois realizou o
curso de Humanidades no mosteiro de São Bento.
13
passou pelas mudanças impostas pelo advento republicano, entre as quais alterações na vida
escolar, que agora seguiriam mais a estrutura civil e menos a religiosa. É fato conhecido
também que o pai do compositor, Raul Villa-Lobos, escreveu um artigo criticando o marechal
Floriano Peixoto, em 1892, obrigando a família a se refugiar em Minas Gerais, portanto é um
período conturbado.
Assim como muitos autores pesquisados, Eduardo Victorio Morettin (2001: 135-140)
afirma que no século XIX, surge uma mentalidade mais secular; a virtude cívica estava
substituindo a devoção religiosa. Os historiadores mais em voga eram Afonso de Taunay,
Francisco Adolfo de Varnhagen, João Capistrano de Abreu, todos membros partícipes do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, fundado em 1838. O livro de Manuel de
Araújo Porto-Alegre Iconographica Brazileira do IHGB é um dos marcos desta preocupação
com a imagem da nação emergente.
Em busca de um referencial simbólico, os historiadores começam a buscar
personagens ―dignas de serem imortalizadas‖ na galeria dos heróis nacionais. ―Neste processo
de construção, um tema, o do Descobrimento do Brasil, possui especial significado, pois
remete a uma dupla e complementar fundação: a da nação e a da própria História‖, afirma o
ensaísta. O tema ―Descobrimento‖5 nasce aí e vai adentrar o Estado Novo.
5
Para muitos autores, a primeira questão da gênese da América Latina é o posicionamento ideológico frente à
nossa primeira versão do passado: a problemática se divide entre diferenciar os termos descobrir e chegar.
Maria Aparecida Baccega (1993: 136) afirma: ―Há sistemas de valores que regem cada uma das opções,
―descobrir‖ ou chegar: a ―descoberta‖ implica a justificativa do colonialismo; a chegada demonstra a
independência dos povos que, se sufocada, será reconquistada em novas bases‖. Por ocasião dos festejos dos 500
anos da chegada de Colombo à América, Collazo (1993:101) resumiu bem a tônica da polêmica que envolveu o
evento. Duas posições bem distintas foram tomadas: de um lado, os que afirmavam que não havia o que
comemorar, mas sim até condenar porque o genocídio físico e cultural pôs em xeque qualquer grandiosidade da
empreitada marítima. No extremo oposto, aqueles que diziam que havia sim o que comemorar porque o
acontecimento de 12 de outubro de 1492 foi o encontro afortunado de dois mundos, de duas culturas, que
possibilitou a difusão do modelo ocidental de vida, e a fé cristã acoplada a isso. Rosane Borges (2000:55-65) em
um artigo sobre a ―Festa dos 500 anos‖ do Brasil afirma: ―A passagem dos quinhentos anos da terra brasilis foi
marcada por diversas iniciativas. Com ela intensificaram-se campanhas, atos, projetos e manifestações que
pudessem (re)contar e celebrar nossa história: a história do povo brasileiro! História que não constitui-se,
estritamente, como reminiscência do passado mas, precipuamente, como tentativa perseverante em (re)definir o
Brasil e seus meandros, em que o tempo presente é interpretado pelos ideais de ―nacionalidade‖e ―identidade‖
próprias. Uma história que significa não apenas pelo dito, mas também por aquilo que é silenciado ou,
subrepticiamente, distorcido ou negligenciado‖. Sobre a cobertura da mídia na comemoração dos 500 anos de
14
O documento motriz desta ação é a carta de Pero Vaz de Caminha, cuja íntegra, só seria
publicada no Brasil em 1877, em uma edição da revista do IHGB. Em 1850, Joaquim
Norberto de Sousa Silva e Gonçalves Dias debatem a teoria da casualidade da descoberta.
Varnhagen e Henrique de Beaurepaire-Rohan discutem o local exato do desembarque. Até
mesmo a data era discutível, pois no século XIX comemorava-se o 3 de maio (o dia da
primeira missa no Brasil). É também neste século que se dispõe sobre os locais dos Panteões
aos heróis nacionais.
Morettin afirma que Varnhagen, apesar de sua proclamada imparcialidade, ao falar
sobre os índios do Brasil em seu livro, aponta características negativas, enxergando o outro
pelo que ele não tem: não tem estado, família, jurisprudência, patriotismo, (religião):
O historiador constrói o quadro de justificativas necessário para explicar a
importância da chegada do homem branco. Além de trazer a civilização, a vinda
do europeu salva este território do despovoamento, inevitável devido à tendência à
guerra e aos hábitos culturais dos ―selvagens‖. O historiador, tão apegado ao
sentimento de verdade e boa-fé, inverte o jogo. Ao invés de o branco ser
responsabilizado pelo extermínio dos ―selvagens‖, Varnhagen credita ao modo de
vida dos indígenas a responsabilidade pelo seu fim, o que confere aos invasores
um papel fundamental: são eles que impedem o despovoamento do imenso
território.
Outro historiador de peso citado por Morettin é Capistrano de Abreu, que em 1883 redige
uma tese para sua admissão como professor no Colégio Pedro II. O texto de Capistrano é mais
documentado, retornando a questões controversas como a teoria da casualidade. Em um artigo
de 1900, Abreu fala dos índios, e é menos preconceituoso que Varnhagen. Em um texto
datado de 1908, ele reforça a idéia da simpatia pelo índio.
Além dessa preocupação com a história, a falta de uma iconografia começa a
mobilizar a Academia Imperial de Belas Artes para mudar isso. Pedro Américo e Victor
descobrimento do Brasil, Borges (que realizou um estudo entre mídia impressa e televisiva) conclui que a mídia
ensejou um tipo de narrativa em consonância com os princípios de brasilidade, identidade e unidade nacionais a
partir de dada referência. A seleção feita pela mídia partiu do elenco de temas comemorativos, com rejeição aos
movimentos e ações contrárias às celebrações. Comparando a uma grande festa, Borges diz que os ―convidados
indesejados‖ foram os segmentos indígenas, a comunidade negra e a comunidade estudantil. Já o convite oficial
partiu do Estado às autoridades nacionais e estrangeiras – a presença européia reforçou a idéia da ―descoberta‖
do Brasil.
15
Meirelles são os nomes mais conhecidos. Américo segue um padrão no qual defende a
inspiração na realidade, mas sem se ―escravizar‖ a ela. Victor Meirelles de Lima (o pintor da
Primeira Missa do Brasil, em 1861) leu a carta de Caminha, para se inspirar, mas, como alude
Morettin, de forma sintetizado.
Morettin conclui que a elaboração e a eleição de um conjunto referencial para entender
o nascimento do país quer criar a harmonia entre o branco e o índio como constitutivos
da Nação. Sobre a imagem do primeiro encontro entre Pedro Álvares Cabral e os índios, o
espaço descrito é a nau dos portugueses, e de forma hierárquica, pois o índio ―é visto como
‗objeto de trabalho, informação e correção‘ ‖. Há uma mensagem subliminar do benefício aos
índios neste contato.
O livro didático ganha então no século XIX seu material iconográfico: o Sete de
Setembro de Pedro Américo e a Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles. Diz Morettin:
Condensando o saber considerado correto sobre a História, e ganhando contornos de
verdade, as imagens inseridas nos manuais transformam-se na representação visual do
fato, sobre o qual não devem pairar dúvidas e muito menos interpretações, dado o caráter
impositivo e unívoco do conhecimento transmitido pelo livro didático.
Nos anos de 1900, os relatos soam cada vez menos Igreja e mais Estado. Nessa
situação, há a idealização do momento da chegada dos europeus ao Brasil, como um símbolo
do Estado. Morettin conclui então que a carta de Caminha é o ponto de partida, porém
modificações e apropriações acontecem constantemente. A confecção dos livros didáticos
passa pelo IHGB e a visão da história dentro do Instituto é então fixada nos temas:
Descobrimento, Independência e República, e só mais tarde, a Inconfidência6.
6
Segundo Cláudia R. Callari (2001:63-83), durante o período da Monarquia, a Inconfidência Mineira é
―esquecida‖ porque simboliza uma ameaça à unidade nacional. Paulatinamente, o papel da Inconfidência vai
sendo restabelecido e a uma década da proclamação da República sua citação fica mais firme. A explicação do
fracasso da Inconfidência era a de que ―o país não estava pronto‖. A busca de exemplos na passado visava a
legitimação do presente, e esta finalidade pedagógica era uma função do Estado. Nos anos iniciais da República,
a figura de Tiradentes começa a ser revista e a reabilitação total de seu nome ocorre em 1927 pelo IHG de Minas
16
Segundo Helio Silva (1998:13), a República tinha de acontecer porque a Monarquia
era um regime artificial no continente americano já que ela aconteceu aqui em condições
especiais. O intervalo de tempo entre a Abolição e a República é pequeno – 18 meses – e não
houve nem no final do período monárquico nem na nascente República nenhum ―projeto de
inserção social do negro‖ (Ribeiro, Ronilda 1997:164). Muito pelo contrário, foram utilizados
instrumentos para traçar ―uma estratégia de controle da inclusão dos negros, ex-escravos,
libertos, à cidadania brasileira‖ (Menezes, Jaci 1997:11-12).
Como afirmei no parágrafo inicial, o jovem Villa-Lobos vivenciou a mudança de uma
estrutura religiosa para a civil. Isso provavelmente acarretou, em sua vida de estudante, a
fixação dos temas nacionais – Descobrimento, Independência e República – com especial
enlevo à figura do índio7.
1.2. A invenção do “outro”.
Para Ortiz (1994:219-220), habitualmente, as civilizações consideravam o ―outro‖ como algo
distante, fora de seus contornos conhecidos, um habitante de as regiões longínquas, cujo
contato se fazia por meio da viagem: os românticos idealizavam o exotismo 8 dos povos e se
deslocavam pelo Oriente Médio, ―apreendendo o estado ‗maravilhoso‘ da alma humana‖;
assim como os antropólogos ao estudarem os povos ―primitivos‖, na busca da compreensão
de uma mentalidade diferente da ―nossa‖.
Os homens procuravam, assim, traduzir a distância que os separava dos objetos e das
Gerais. Nos livros didáticos a Inconfidência passará a representar a ação moral de sua personagem maior, o
Tiradentes.
7
Anos depois, em 1940, Villa-Lobos comporia as quatro suítes para o filme ―Descobrimento do Brasil‖, de
Humberto Mauro, que, como afirma Morettin, carrega esse conteúdo iconográfico do século XIX.
8
A palavra ―exótico‖ vem do grego ―ex‖= fora e ―óptico‖= visão, ou seja, longe do alcance das vistas.
17
pessoas, numa linguagem que nos fosse familiar. O outro, incompreensível,
remoto, podia então ser entendido no seu exotismo, na sua integridade, na sua
autenticidade. Neste caso, ―nós‖ e ―eles‖ são entidades bem delimitadas,
alimentando o etnocentrismo, europeu ou norte-americano.
De acordo com Cristina Pompa (2001:179-187), não é novidade que ―o indígena
descrito nos relatos dos viajantes e missionários é a alteridade radical que a Europa já conhece
bem de toda uma literatura clássica, medieval e renascentista‖. Os relatos de viagem, a partir
de Colombo, encontram e descrevem apenas o que já conhecem. Os viajantes do século XVI
carregam consigo já uma imagem pronta, coerente, sustentada e protegida pelo horizonte
teológico. Trata-se de uma mediação dos esquemas culturais familiares ao observador.
Pompa cita Jean de Léry (1578) Viagem à terra do Brasil como exemplo de que ―a
representação histórica se transforma em mise em scéne literária pela prática da escrita
historiográfica. A narrativa é uma viagem em busca do eu, cujo produto é a invenção do
selvagem‖ e conclui: ―as descrições de Léry inauguram uma série de quadros análogos aos
que os relatos de viagem vão apresentar durante quatro séculos‖.
Causou bastante estranheza a questão religiosa dos índios. Os missionários não
enxergaram nos índios o modelo de alteridade religiosa mais próximo que tinham – o
paganismo – e por isso os religiosos europeus afirmavam ―os tupinambás não têm religião‖.
Também não detectaram sinal de qualquer tipo de idolatria, como no Peru Inca ou no México
Asteca. Cartas célebres de Caminha, Padre Nóbrega e de Américo Vespucci (em 1502, carta
aos reis Isabela e Fernando de Espanha) de igual maneira atestavam como certa a falta de
religião entre os indígenas. Não tardou para que a Igreja oficializasse sua tomada de posição e
em 1537 a Bula Papal de Paulo III mandava trazer os índios para a fé cristã.
Um interessante aspecto levantado por Pompa (2001:185) é sobre o aspecto místico da
empreitada marítima:
Muito já foi dito a respeito da visão escatológico e providencialista do próprio Colombo,
influenciado pelo meio franciscano ibérico, de tendências joaquimitas. Colombo estava
18
certo de estar realizando a profecia das sagradas escrituras, ―descobrindo‖ o novo céu e a
nova terra, dos quais fala João no Apocalipse (21,1), e a apressando a historia do mundo,
conforme a promessa de Mateus ―Propter electos breviabuntur dies illi” (Mat.24,22).
Pompa assinala que a leitura do outro foi feita via código religioso, daí que todos os homens
de fé dos séculos XVI e XVII apontam o ―demônio‖ atuando sobre o índio por causa de sua
ausência religiosa. Desta ausência, passou-se a concluir que os índios possuíam uma falsa
religiosidade (Tupã, por conseguinte), e desta falsidade à mentira e ao demônio na figura dos
xamãs e pajés, que por sua vez eram vistos pelos missionários como os grandes inimigos da
catequese.
Além do espanto pela ―falta de religião‖, Paulo de Assunção (2001:223-228) aponta
nos relatos a surpresa do europeu na possibilidade de sobreviver em novas regiões, ou seja,
percebe-se que a idéia de sobreviver fora da Europa era inacreditável. Há um destaque para a
abundância, clima bom, variedade de flora e fauna para fomentar a vinda de mais europeus,
porém os comentários sobre o clima bom para saúde também causam alarde ao aspecto
―maligno‖ para a moralidade cristã no comportamento das pessoas.
1.2.1. O índio na Era Vargas
Seth Garfield (2001:14-25) reitera que em alguns momentos da história do Brasil
ocorreu de forma mais contundente uma valorização do índio: durante o Nativismo do século
XIX, com nomes como José de Alencar e Gonçalves Dias, cuja evidência era camuflar o
escravismo; e na Semana de Arte Moderna de 22, na figura de Oswald de Andrade e seu
movimento antropofágico (Manifesto em 1928), que pregava a síntese do autóctone e do
europeu. Na década de 30, outros autores como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti
del Picchia são apontados por Garfield como enaltecedores do passado anterior ao
19
descobrimento. O nome maior dos anos 30 é Gilberto Freyre que louva a contribuição do
indígena para a formação da cultura brasileira.
Segundo Antonio Riserio (1993:114-120), no período do Romantismo da Literatura
Brasileira, o tema africano foi posto de lado, não recebendo o mesmo destino que o texto
ameríndio, fixando-se quase que exclusivamente na figura do índio. Como afirma, houve uma
identificação entre o índio e o nacional.
A escolha era estratégica. O índio respondia por um passado pré-colombiano e reagira à
invasão e ao domínio português, sendo assim visto como antecessor do
projeto independista (...) Mas a escolha era estratégica também em outro
sentido: as tribos indígenas, naquele momento, estavam suficientemente
distantes dos centros de poder para significarem qualquer tipo incômodo.
Em Cuba, sabe-se que em 50 anos de presença espanhola, o colonizador dizimou as
nações indígenas ali existentes, portanto não houve uma questão semelhante ao Brasil quanto
a uma política de inclusão do índio na sociedade ―branca‖ brasileira. Já a República
Dominicana procedeu de forma parecida com a do Brasil, quando decide escolher o índio, e
não o negro, como o parceiro da miscigenação.
Garfield analisa a política da valorização do índio como o elemento nacional e
integrador durante o período do Estado Novo (1930-45). Segundo o autor, o Estado Novo foi
o propulsor do processo de integração nacional, por meio das seguintes medidas:
centralização do poder federal, ampla intervenção estatal na economia e programa
nacionalista.
Vargas voltou-se para o valor simbólico dos índios, por conterem ―as verdadeiras
raízes da brasilidade‖. Os índios foram repentinamente convocados para o palco da política,
segundo Garfield, por causa das preocupações da elite quanto as origens da nação e a
composição racial da época.
Como medida prática é criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (desde
1910 já havia o Serviço de Proteção aos Índios, refletido na figura de Cândido Rondon), um
20
órgão para promover e conscientizar a opinião pública sobre a cultura indígena. Uma das
invenções dessa política de valorização do indígena é a da tradição do índio em ficar ao lado
do português sempre (fatos históricos são atropelados). A cultura e a identidade indígenas são
vistas como transitórias e, portanto, dever-se-ia integrá-los à sociedade.
Em 1934 Vargas estabelece a data de 19 de abril como ―Dia do Índio‖ e nos anos
seguintes eventos diversos acontecem com a assistência do Departamento de Imprensa e
Propaganda – DIP9.
Vários textos revelam o interesse dos intelectuais pelos índios, elogiosamente, junto
com a benevolência do Estado no esforço de integrar o índio à sociedade. Na opinião de
Garfied, o motivo pelo qual as elites se esforçavam na retórica enaltecedora do índio para o
caráter nacional era também uma questão de ligação com o Americanismo:
Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais brasileiros da
Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura e
do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido
redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou mais o Atlântico,
mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e de seus primeiros habitantes.
No Estado Novo, o discurso pró-índio ecoava as questões mundiais como racismo,
xenofobia e chauvinismo porque, segundo Garfield (2001:21):
Numa época de crise econômica mundial e nacionalismo exacerbado, os brasileiros foram
criticados por admirarem ideologias estrangeiras. O marxismo e o liberalismo,
afirmavam os funcionários do Estado Novo, eram inapropriados às realidades nacionais.
O mesmo valia para as teorias européias da superioridade racial, as quais eram criticadas
por provocar ultraje – para não mencionar desconforto, uma vez que muitas famílias
influentes careciam de ascendência puramente branca.
(...) No seu discurso sobre raça, o regime de Vargas também difundiu doutrinas européias,
mas redefinindo os grupos considerados indesejáveis.
O paradoxo na escolha do índio é que os índios representavam, como os primeiros
habitantes da terra, uma ambigüidade ao Estado-nação. Isso preocupa as autoridades e não
faltam discordâncias e conflitos. O Estado Novo quer consagrar a imagem do ―bom
9
Criado em 1939 e cujas funções principais eram: impedir a veiculação de críticas a Getúlio e fomentar a
elevação de usa imagem, segundo Lamounier (1988:86).
21
selvagem‖ e, na seqüência, incumbe-se de lhe dar um papel de tornar o interior do Brasil
produtivo. Garfield conclui que a linguagem protecionista estadonovista sufocou o povo
indígena, embora o cerceamento à sua cultura já viesse de antes10.
Finaliza Garfield (2001:25):
Embora aproximadamente duzentos grupos diferentes vivessem no Brasil com diversas
culturas, línguas e relações com a sociedade brasileira, o Estado reduziu-os todos a
―índios‖, uma construção cultural que incorporou objetivos e idéias dos brancos. Rica em
seu valor simbólico a invenção estadonovista do índio contradizia as realidades atuais e
passadas dos índios. Alem do mais, os objetivos quixotescos e as instituições
governamentais seriam sistematicamente lesados pela corrupção burocrática, pela
oposição da elite, e pela resistência indígena. Não obstante, os índios, junto com o
governo e seus críticos, teriam de lidar com as imagens e políticas ambíguas
popularizadas na era Vargas durante muito tempo.
Pode ser concluído que, pela segunda vez, Villa-Lobos é contemporâneo de uma
política nacional de elevação do índio.
1.3. O segundo “outro”: o Negro.
Segundo cita Rosangela Malachias (1996:12-13), o sistema escravista ibérico apoiavase em uma tradição e legislação escravistas e em uma instância religiosa11. Para o Brasil, o
10
Em 1916 no Código Civil os índios eram tidos como ―relativamente incapazes‖ nas questões civis; em 1928
foram considerados tutelados federais – o que era um autoritarismo, pois retirava do índio o poder de escolha e,
mais ainda, ―escolhia‖ pelo índio.
11
Antonio Penalves Rocha (2001:38-57) faz um ensaio sobre os textos de brasileiros que escreveram sobre a
possibilidade da abolição da escravatura, cerca de 60 anos antes da Lei Áurea. Até meados do século XVIII a
escravidão e a servidão eram tidas como partes constitutivas da natureza das sociedades, mas tornaram-se alvos
de alguns escritores da Ilustração que incorporaram até críticas de religiosos – quacres e evangélicos – à
escravidão negra, fundamentando a repulsa do mundo contemporâneo a qualquer forma de trabalho forçado. O
ideário iluminista chegou ao Brasil nas primeiras décadas do século XIX e os textos pioneiros contra a
escravidão no Brasil estão entre 1817 e 1825. Penalves relembra que a imensa maioria da população brasileira
era iletrada e, portanto, estes textos não tiveram nenhum efeito imediato. Estado, Igreja e senhores tinham
interesse em preservar escravidão, empenhando-se em bloquear a expressão de idéias que ameaçassem a ordem
vigente (como a Enciclopédia que editou os verbetes ―escravidão‖ e ―tráfico de negros‖ escritos por Jaucourt).
Também afirma que o plano inglês para acabar com o tráfico correspondia à uma questão econômica, tendo em
Adam Smith seu principal teórico. A tônica destes escritos é basicamente a mesma – a da questão econômica e o
dano à governabilidade porque os escravos são inimigos intermos latentes, e não seria difícil ocorrer uma revolta
como a de Toussaint Loverture no Haiti em 1791 – tema que verdadeiramente amedrontava a elite. Como
constata Penalves, alguns poucos brasileiros haviam aprendido a ver a escravidão com o olhar dos ilustrados
22
sistema escravista traficou de 4 a 8 milhões e para Cuba bem menos, cerca de 350 mil.
Rodolfo Sarracino (1995/1996: 204) diz que foram quase 10 milhões no continente todo, em
355 anos de tráfico. Como se sabe, bantos e sudaneses estão entre os povos que mais foram
aprisionados e trazidos à força para o Brasil. As conseqüências para todos os envolvidos
continuam sendo sentidas entre altos e baixos dos movimentos negros e de uma política
governamental incipiente.
Malachias analisou em sua dissertação a Teoria da Transculturação12 de autoria de
Fernando Ortiz13 Em resumo, a transculturação é o processo pelo qual ambas as partes
resultam modificadas. Na contrapartida, a autora aponta a Teoria da Deculturação, que é o
processo consciente para fins de exploração econômica, no qual promove-se o
desenraizamento cultural de um grupo para facilitar a exploração ou de seu território ou dele
mesmo como indivíduo. A teoria é de Moreno Fraginals14.
Jaci Menezes (1997:14) coloca que da Abolição para a República abandona-se o estilo
francês como modelo político para se seguir o inglês e o norte-americano15. Antes da
europeus e a eleger alguns princípios iluministas para condenar a escravidão. Montesquieu em seu Espírito das
Leis de 1748, alude à questão moral, pois viola o direito natural, a monarquia, o direito civil, o cristianismo e
resulta em um rendimento inferior ao do trabalho livre. Já Adam Smith, mentor da economia política, obteve
maior adesão dos brasileiros às suas críticas econômicas à escravidão porque a questão econômica era
reconhecida como a única condenação científica à instituição da escravidão. A única exceção de peso ao
discurso desses escritores (Gonçalves Chaves, João Severiano Maciel da Costa, José da Silva Lisboa) é José
Bonifácio de Andrada e Silva que em 1825 demonstra um ideário bem mais humanitário e afim às idéias do
antiescravismo europeu do século XVIII. Conclui Penalves que Bonifácio uniu compaixão a argumentos
utilitários, como os danos econômicos dos altos custos do tráfico negreiro. Chegou até a sugerir a doação de
terras para os ex-escravos. Todos os escritores eram membros participantes do governo, e apontam como
soluções o fim do tráfico, a mitigação da escravidão e a gradual abolição. Penalves conclui que a reforma da
escravidão pelo Estado, pleiteada por alguns destes escritores ligados ao governo, quis preservar o status quo
sem pensar nos destinos dos ex-escravos.
12
Poderia ser citada ainda a teoria da hibridação de Nestor García-Canclini (1990). Entretanto, vou me
ater às teorias já expostas por acreditar que estas ainda abordam o tema do relacionamento entre as
diferentes culturas mais amplamente.
13
No livro El Contrapunteo cubano Del tabaco y Del azucar. Havana: Dirección de Publicaciones Universidad
Central de las Villas, 1963.
14
Em ―Aportes culturales y deculturación‖. In África en América Latina, México, UNESCO – siglo XXI, pp.1333, 1977.
15
Sedi Hirano (1997:31-32) explica a noção do capitalismo da chamada Pax Britânica, no período pré-Abolição
no Brasil, e a passagem para um capitalismo da Pax Americana, proveniente dos Estados Unidos após a primeira
23
Abolição o número de escravos já havia baixado para 700 mil e desde o segundo quartel do
século XIX (Silva 1998:14) a mão de obra assalariada de imigrantes europeus já era maioria
em São Paulo.
Como já foi dito, essa época é um momento de discussão sobre a nova nação
brasileira. Das principais mudanças sentidas, há a separação entre Igreja e Estado, toda uma
estrutura civil é montada; a liberdade de culto é promulgada, mas visando ao protestantismo
europeu; o critério para a cidadania ativa (o direito de votar) é ser alfabetizado – embora o
Brasil tivesse 83% de sua população sem alfabetização.
Os agora negros libertos eram geralmente agregados a seus ex-senhores, se assim não
fosse corriam o risco de serem considerados ―vadios‖. As normas de repressão eram bem
amplas, desde a proibição à capoeira até a inclusão no primeiro Código Penal da República
das mesmas leis escravistas. O liberto era obrigado a permanecer no local onde antes vivia por
um certo período de tempo e a liberdade de religião era restrita aos cantos e as sessões, só
com a autorização da Delegacia de Jogos e Costumes (somente em 1938 o uso dos atabaques
seria permitido). Ou seja, havia a libertação, mas com o controle da liberdade de ir e vir e da
regulação do seu próprio trabalho.
Quanto ao voto, por sua notabilidade como figura histórica, é procedente relatar que
Rui Barbosa aludia ao ―perigo‖ da condição do escravo ao se tornar livre, ao mesmo tempo
em que poderia se transformar em um eleitor. O ―perigo‖ era porque lhe faltaria a educação
necessária para discernir as escolhas, ou seja, o país precisaria ser preparado para o sufrágio
universal. José Bonifácio era totalmente contra esta proibição, relembrando que para lutar na
Guerra do Paraguai os negros foram requeridos e agora não serviam mais, devido ―à
soberania da gramática‖?
guerra mundial, e que se tornou hegemônica, após a segunda guerra. A linha básica da Pax é que é necessário
haver paz para o bom funcionamento da economia de mercado.
24
Menezes conclui que o caminho apontado por Rui garantiu que a liberdade não fosse
confundida com igualdade civil ―permitindo que a transição da escravidão para a vida livre se
fizesse sem conflitos, sem sustos, de forma segura. Para os senhores‖.
Maria Luiza Tucci Carneiro (1993:146-147) relata, por meio de dados obtidos em
estudos sobre manicômios e asilos, que o negro livre virou o mendigo, o espoliado e o doente.
Entretanto, para a sociedade ele era um perigo nas ruas, transformando-se em um pária. A
fome e o abandono o levaram ao vício, crime e à loucura. Havia poucas saídas: ―O negro,
quando conseguia um trabalho, era mal pago e identificado com a escravidão.‖
Lilia Moritz Schwarcz (1987:247) analisou jornais da época da abolição da
escravatura e conclui que a maneira quase sempre tangencial como a questão foi normalmente
referida denota não o descaso, não uma postura exterior com relação à questão racial, mas
antes “anterior e mesmo interior”. Ou seja, questões essenciais não são mencionadas
explicitamente.
Schwarcz encontrou certas imagens nos jornais que mostram a questão:
(...) poderíamos observar que as representações encontradas parecem vir ao
encontro das conclusões de estudos já tradicionais sobre identidade étnica, que
delimitam que a identidade é construída antes de tudo de forma contrastativa: (...).
‗‗nós e eles‘‘, ‗‗o branco e o negro‖, ‗‗o nomeado e o desconhecido‖, ―a vítima e o
vilão‖, ―a bela e a fera‖, ―o são e o degenerado‖. (...) Nesse sentido, parece travarse, nesse contexto, um debate delimitado, já que o ―nós‖, presente aberta ou
alusivamente nos artigos, parece remeter a um segmento limitado de brancos,
grandes proprietários, que se opõem a um ―outro‖, ao ―negro‖ absolutamente
adjetivado, que constitui objeto de discurso dos brancos.
(...) do negro ―bárbaro e violento‖, ou do ―cativo fiel‖ dos anos 1880, ou do preto
que vira negro, ou mesmo do elemento degenerado tão presente nos jornais nos
inícios da República, e que basicamente faziam ―par‖, respectivamente, com o
branco vitimizado, ―bom senhor‖, pacífico e civilizado de tantas e tantas notícias.
(...) Esse é o caso do momento em que o negro, caracterizado até então basicamente
como um ser violento e degenerado fisicamente, passa a ser apresentado como um
degenerado moral, o que era reforçado pelo pensamento científico da época, que
lidava largamente, no mesmo sentido, com esse tema e questão.
25
Além dessa imagem, uma outra foi acrescida na seqüência:
(...) A introdução do tema África nos diferentes jornais da época. Assim, se até
meados do século XIX a questão da condição negra e escrava era entendida como
um problema que ―não se colocava‖ (e nesse sentido considerado como uma ―falsa
questão‖), a partir desse momento não só ela era explicada como também
justificada, tendo em vista novos critérios e argumentos: a herança (o continente de
origem), os caracteres hereditários. Ou seja, nesse período e com todo o aparato da
ciência determinista e positivista do século XIX, o negro passa a ser redefinido e
delimitado não só como escravo, mas antes através de características ainda mais
radicais, já que consideradas naturais.
Ou seja, o negro recebe um estigma a mais. Além de ―violento e degenerado‖ é
também o ―estranho‖ e até o ―estrangeiro‖. E, pior ainda, ―o negro não era apenas um
estrangeiro qualquer; era acima de tudo um ‗estrangeiro não desejável‘, principalmente se
lembrarmos que nessa época dá-se a introdução em larga escala do imigrante europeu‖.
Conclui Schwarcz que esta imagem do negro perdurou até o advento das idéias de
miscigenação – principalmente as defendidas por Gilberto Freyre. A partir daí, a questão
racial vai perdendo a voz – para mergulhar em um consensual silêncio.
Algumas considerações podem ser enfatizadas até aqui. Nos anos iniciais da
República, que também eram da Abolição da escravatura, a inquietação com o agora negro
liberto se evidenciou nas medidas de controle tomadas pelo governo. Villa-Lobos nasceu em
uma época histórica de mudança de um regime monárquico para o republicano e de um
sistema escravista para um que principiava a se tornar de trabalho livre e assalariado. O
momento também era de discutir a formação da nação com a preocupação em eleger modelos
e, nesse sentido, houve uma elevação do índio em detrimento do negro e do grande
contingente mestiço do país. O espírito de época vivido pelo compositor foi de uma
depreciação do negro, que na verdade vivia em uma pseudoliberdade; uma ação sistemática
que duraria até as primeiras décadas do século XX, quando, nos anos 30, o ideário da
miscigenação passaria a representar uma ―saída‖ para o dilema da formação da nação.
26
O que se pode concluir então é que a chegada das idéias alusivas à miscigenação na
década de 30 ao mesmo tempo em que escolheram o índio como um símbolo nacional
também conformaram a posição do negro e seus descendentes no arranjo da miscigenação.
Que para a diminuta sociedade branca brasileira a convivência se tornou suportável a partir
deste acomodamento, parece não haver dúvidas.
Em Cuba, o quadro também não foi muito diferente. Segundo Alberto Faya (1990:31),
a aceitação de negros lutando ao lado de brancos pela Independência não seria a mesma
quando da discussão da gestação de uma sociedade criolla para ambos.
Faya também afirma que o conceito de nação cubana esteve ligado ao processo de
libertação da Espanha por meio das guerras na segunda metade do século XIX e uma de suas
conseqüências mais marcantes foi a abolição dos escravos, que ocorreu em 1886. Assim como
no Brasil, os descendentes de negros constituíam grande parte da nação cubana, ligados aos
setores mais despossuídos. Faya conclui que dentro do processo de formação da cultura
nacional é a destas esferas negligenciadas que provêm uma definição mais clara da nação
cubana.
Pitre Vasquez (2000:91) afirma que após a revolução socialista em Cuba e o posterior
isolamento social, econômico, político e cultural imposto pelas grandes potências econômicas
levou a uma introspecção da sociedade cubana. A partir daí o cubano começou a tentar se
reconhecer e conhecer seu próprio território, a fim de identificar os grupos étnicos que
formaram a nacionalidade cubana. Assim, Pitre situa que mais fortemente na década de 70
Cuba desenvolve uma valorização das origens africanas na cultura cubana.
Na obra de Leo Brouwer é muito transparente esta presença citada por Faya e Pitre.
Um exemplo simples disso fornece o musicólogo cubano Danilo Orozco (1999:4), quando diz
que Brouwer esteve interessado no sentido simbólico-musical dos rituais e toques de origem
27
afro-cubano, na tarefa rumbera de certos solares de Havana, tendo manifestado o desejo de se
incursionar em instrumentos de percussão soneros.16
Pelo contato com a bibliografia cubana que tive, pode ser concluído que a tomada do
poder em 1959 pela guerrilha de Fidel Castro é vista como um divisor de águas em quase tudo
da história cubana. A questão do negro também é permeada por esse marco.
1.4. Cuba: fatos históricos antecedentes a 1959.
Leo Brouwer nasceu em 1939 debaixo da conturbada fase que os cubanos chamam
―pseudo-república‖, com forte atuação de Fulgencio Batista. A independência cubana do
domínio espanhol foi obtida em 1902; após isso houve uma seqüência de presidentesditadores no governo da ilha.
Depois da guerra de dez anos, 1868-1878, e da guerra de 1895, da qual o poeta José
Martí foi um dos combatentes, os conflitos se encaminham para um final. Em 1898, com o
afundamento do navio de guerra Maine, os norte-americanos interferem na guerra: ―Os
Estados Unidos tanto eram simpáticos aos rebeldes como interessados em estabelecer sua
própria influência em Cuba, vista como zona estratégica para a defesa do canal do Panamá‖,
diz Vail (1987:16).
Em 1902, um acordo assinado em Paris tornava Cuba um país independente, porém ―a
pacificação interna do país e a defesa da propriedade privada correriam por conta dos
americanos‖ (Loyola Brandão 1979:19). Uma medida em especial foi tomada: a chamada
Emenda Platt, forçosamente acrescentada à Constituição cubana, garantia ao governo norteamericano a ingerência em Cuba17.
16
17
Rumba e Son são dois dos mais típicos ritmos cubanos.
Foi a partir de um dos artigos da Emenda Platt que surgiu a base norte-americana de Guantánamo.
28
Segundo Vail (1987:23), nos anos 20 uma geração de cubanos, nascidos sob o
domínio espanhol, começou a fomentar a idéia de uma identidade nacional. ―Pela primeira
vez, os escritos de José Martí foram avidamente difundidos e discutidos‖. As revoluções
mexicana (1910) e russa (1917) eram exemplos do que Martí pregava – o caminho da
revolução para acabar com a dependência.
O general Gerardo Machado governou de 1924 a 1933, quando uma onda de greves e
manifestações acabou levando à deposição de Machado, que foi substituído por Manuel de
Céspedes, mas só por algumas semanas porque um grupo de oficiais do Exército deu um
golpe militar – o líder do golpe era o sargento Fulgencio Batista. De acordo com Vail, de
1934 em diante sucederam-se presidentes civis e militares, mas o homem forte deles foi
sempre Batista.
Em 1940, quando Leo Brouwer tinha então um ano de idade, Fulgencio Batista
trabalhou sua eleição para presidente e assumiu o poder. Vail diz que ―sua administração foi
marcada por uma alarmante corrupção (...). Batista e sua força policial organizaram um
extenso sistema de extorsão e pagamento de cotas‖.
Os dois próximos presidentes, Ramón Grau San Martín (1944-1948) e Carlos Prío
Socarrás (1948-1952), ainda que tivessem feito algo, também pouco se diferenciaram de
Batista no aspecto da corrupção. Diz Loyola Brandão que eles foram ―os melhores entre os
piores‖.
Em 1951, novas eleições se aproximavam e um novo nome surge – Eduardo Chibás
torna-se o político mais popular de Cuba, sendo que sua eleição para presidência era tida
como certa – até mesmo o jovem Fidel Castro era um simpatizante de sua política e membro
do mesmo partido (Partido Ortodoxo). Mas, inesperadamente, Chibás comete suicídio. Como
diz Vail, ―as esperanças e os sonhos da juventude cubana, que desejavam uma sociedade
honesta e democrática, foram desfeitos no início de 1952‖.
29
Fulgencio Batista aproveitando-se do fato, a três semanas da eleição, depõe o governo
de Prío Socarrás e toma novamente o poder. Imediatamente as garantias constitucionais são
suprimidas; as eleições são proibidas; a liberdade de imprensa é restrita e são limitadas as
atividades partidárias. Dezessete dias após o golpe os Estados Unidos reconhecem
oficialmente o governo de Batista. ―Os partidos oposicionistas estavam em total confusão,
devido à liderança ineficiente e à repressão policial. O único indício de oposição veio dos
estudantes‖. (Vail: 1987:26)
O clima vivido era de exploração e medo. Detenções, prisão sem julgamento e tortura eram
fatos corriqueiros. Loyola Brandão (1979:19) afirma:
Os capitalistas continuavam a avançar. A United Fruit comprou extensas terras, derrubou
toda a mata, instalou usinas. A mão-de-obra era barata, trabalhava em regime escravista.
Em 1955, apesar de somente um terço das usinas serem americanas, elas eram
responsáveis por dois terços da produção açucareira.
O ano seguinte seria verdadeiramente um marco na vida política cubana, pois
organizava-se contra Batista uma ação de opositores ao governo – liderada já por Fidel Castro
– tendo tanto estudantes quanto a classe trabalhadora. Iria se realizar o famoso ataque ao
quartel de Moncada, em 26 de julho de 1953. Esse acontecimento tornar-se-ia um marco na
história cubana porque seria considerado mais tarde como o germe da revolução. Ao mesmo
tempo, embora a ofensiva tivesse fracassado, o levante serviu como estímulo para o povo
cubano. A opressão de Batista tomou maiores proporções e centenas de pessoas eram presas,
interrogadas e torturadas, sendo que a maioria do grupo de Moncada foi executada.
O jovem Brouwer, vivendo debaixo deste regime, muito provavelmente estava a par
das arbitrariedades ocorridas. O próprio afirma (1989:101;85-86) que: ―antes de la
Revolución me veía en situaciones angustiosas, no solo en lo económico, sino también en el
papel social que tenía‖. Este período, ―corresponde, socialmente, a una etapa feroz de la
30
dictadura batistiana, en la cual era preciso reafirmar a nacionalidad por medo de perderla,
dentro do caos político del momento‖.
As atividades culturais estavam em geral ligadas a entidades particulares, sociedades
artísticas como afirma Hernández (2000:21-22): a Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, em
Havana, fundada em 1951, famosa pela promoção de concertos e dirigida por Harold
Gramatges; o Cine Club Vision, também em Havana, fundado em 1956, por jovens
intelectuais, e a Galeria de Artes Plásticas de Santiago de Cuba. Estas foram as três
instituições mais importantes destes tempos, todas as três ligadas ao Partido Socialista
Popular e divulgadoras do que havia de mais moderno na cultura e já as idéias
revolucionárias. Em pelo menos duas – a Nuestro Tiempo e o Cine Vision – Brouwer
participou ativamente, tocando, assistindo ou realizando palestras18.
Ainda que não se possa admitir que só por ser um jovem estudante, Brouwer já tinha
uma posição contrária ao governo de Batista, o que se pode concluir é que sua atuação em
duas instituições ligadas ao Partido Socialista Popular já foi uma escolha de compromisso
político do ainda adolescente Brouwer.
Sua posição junto ao emergente governo revolucionário de 1959 foi bem clara pelo
menos em duas funções: Brouwer atuou junto com o professor Isaac Nicola na elaboração de
um novo currículo para os conservatórios (recém-transformados em escolas públicas) e
aceitou a bolsa de estudos do governo revolucionário para o exterior.
Independente de suas qualidades artísticas, pode-se dizer que a seqüência de funções
que acumulou no governo cubano foi uma conseqüência natural de sua atuação anterior, já
proveniente de uma ação cultural de esquerda. Para se ter uma idéia, praticamente todos os
membros do extinto Cine Club Visión (que teria sido fechado ou incorporado pelo novo
18
Em 12 de dezembro de 1956, o Cine Club Vision realiza o Festival Villa-Lobos, que foi o primeiro evento no
mundo a levar o nome do compositor carioca. O programa constou de uma palestra de José Del Campos Valdéz
– Villa-Lobos cantor del pueblo, tendo como parte musical Leo Brouwer e Jesús Ortega executando alguns dos
estudos e prelúdios para violão de Villa-Lobos.
31
governo já que era uma entidade privada) tornaram-se depois membros do ICAIC – Instituto
Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, inclusive Brouwer.
1.5. “Democracia Racial” (Brasil) e “Fim do Racismo” (Cuba)
Um ponto tocado por Malachias em sua dissertação (1996:22-24) é a questão do
racismo. Como teoria, o racismo emergiu no século XIX. Ao mesmo tempo em que nasciam a
Sociologia de Emile Durkheim, surgiam as teses racistas de Gobineau sobre a superioridade
da raça branca, além do Positivismo de Augusto Comte, o darwinismo social e o
evolucionismo de Spencer. Segundo a autora, o termo racismo só seria empregado em 1930.
As teorias racistas foram utilizadas para explicar o atraso brasileiro. Malachias cita
Renato Ortiz19 que afirma que Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha são
exemplos dessa retórica, ao mesmo tempo em que foram os precursores das Ciências Sociais
no Brasil. Eles teriam sido então o paradigma do período 1888-1903.
Malachias também afirma (1996:45) que Brasil e Cuba constroem, por razões
diversas, as suas identidades nacionais sob o mito da igualdade entre as raças que ao ser
negada ou contestada transforma-se em assunto-tabu. O Brasil defende a democracia racial e
Cuba conclama a vitória revolucionária sobre o racismo.
A autora cita Peter Fry20, ao dizer que a conversão de símbolos étnicos (como o samba
e a feijoada) em símbolos nacionais, com a ação do tempo e dos interesses na divulgação de
um Brasil racialmente democrático, não apenas oculta uma situação de dominação racial, mas
torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. E cita novamente Moreno Fraginals que alude
que é norma corrente que a classe dominante proteja e até estimule o desenvolvimento da
19
A morte branca do feiticeiro negro – Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
Também Lilia Schwarcz (1987:254) cita os mesmos autores.
20
Para Inglês ver – identidade e política na cultura brasileira, Rio de Janeiro: Zahar, 1982
32
classe dominada sempre que estes, de algum modo, contribuam a reforçar a estrutura
estabelecida.
Opinião diversa tem Vianna (1999:20-47) para quem o samba ―ocupa lugar de
destaque como elemento definidor da nacionalidade‖, e não vê razão para se opor a isso: ―por
que fingir que essa interação elite/cultura popular não acontecia? Por que dizer que nossos
músicos populares eram simplesmente reprimidos ou desprezados pela elite brasileira?‖ O
fato é que Vianna aponta uma sociedade contraditória, que ao mesmo tempo condena e
aplaude a cultura popular. Essa contradição da sociedade não é, entretanto, muito bem
estudada em seu texto, pois me parece que faltou dizer que esta ação da sociedade
contraditória estabiliza os aspectos conflitantes e dolorosos da exclusão do negro 21. Creio que
sua conclusão sobre o ―mistério do samba‖ ter passado de música marginal à música oficial da
brasilidade pode levar ao discurso da vitória contra o racismo ―à brasileira‖ (Vianna
1999:152):
(...) ao lado da repressão, outros laços uniram membros da elite brasileira e das
classes populares, possibilitando uma definição da nossa nacionalidade (da qual o
samba é apenas um dos aspectos) centrada em torno do conceito de
―miscigenação‖.
(...) O Brasil foi talvez o primeiro país no qual se tentou, com relativo sucesso, a
fundamentação da ―nacionalidade‖ no orgulho de ser mestiço e em símbolos da
cultura popular – urbanos‖.
Ainda sobre essa questão (do samba e da música popular negra) Wisnik (1982:160161) afirma que essa aparente penetração, durante o populismo de Vargas, atenuou a luta de
classes.
21
Não discuto aqui se houve ou não intencionalidade de Hermano Vianna em minimizar a opressão branca; trato
apenas de estabelecer um critério que o coloque como voz discordante a de outros autores – no caso, Vianna não
compartilha com a idéia da apropriação ou expropriação do samba pela elite. Sobre a eficácia de seu texto, creio
que faltou ao autor mais precisão na análise de por que essa sociedade era contraditória, a quem interessava essa
ambigüidade ou dubiedade nas relações.
33
Pelo lado da intelectualidade, Quintero-Rivera (2000:40) diz que há um interesse pelo
popular como elemento renovador da cultura na procura de respostas ao dilema da integração
nacional22.
Sobre a identidade nacional brasileira, Malachias vê que o que acontece é que ―a
cultura negra seria uma via de identificação positiva, desde que nacionalizada pela
mestiçagem ou embranquecida pela indústria cultural que a massifica‖. Segundo Ronilda
Ribeiro (1997:173-174) também o papel dos livros educativos e da mídia corresponde aos
estereótipos negativos da África, africanos e seus afro-descendentes; relembra que a imagem
do estereótipo veio do imaginário medieval, de mitos e lendas dos viajantes na África, desde o
século XVI.
Malachias conclui que (1996:48):
Em Cuba, ao contrário do Brasil, muitas imagens propagadas refletem os afro-cubanos
em situações mais próximas da auto-estima, como o esporte individual e coletivo, ou
ainda, o mencionado registro historiográfico de personagens importantes da historia do
país. Dados censitários apontam uma população escolarizada, com níveis de primeiro
mundo. Entretanto, essa visibilidade positiva não impede a ocorrência também de uma
limitação dos espaços onde os negros apareceriam, ou seja, atividades culturais e
esportivas, que – afirmamos – não deixam de ser clichês quando se trata da imagem
negra.
A identidade nacional construída no pós-1959 superaria a manifestação ou reivindicação
de uma identidade étnica por parte da população afro-cubana, a qual sentir-se-ia integrada
e partícipe do ―triunfo‖ da revolução. Isso fica obvio quando vistoriamos a bibliografia
sobre a historia cubana, mais precisamente sobre a escravidão e a problemática racial.
Além de estudar autores cubanos que escreveram sobre o fim do racismo com o
advento socialista23, a autora também examinou um autor24, Fuente, pesquisador da
22
A autora também aponta (2000:71-74) os discursos raciais das décadas de 30 e 40 na República Dominicana
em relação ao Haiti e a negação do negro em relação à cultura hispânica e também o discurso indigenista como
―solução eufemística‖ para referir-se à população majoritariamente mulata.
23
Carreras, Julio Angel. Esclavitud, abolicion y racismo. La Habana: Editorial de Ciências Sociales, 1985.
Robaina, Tomás Fernandez. El Negro em Cuba – 1902-1958: Apuntes para la historia de la lucha contra la
discriminacion racial, La Habana: Editorial de Ciências Sociales, 1990.
Serviat, Pedro. El problema negro em Cuba y su solucion definitiva. La Habana: Editora Política, 1986.
34
Universidade de Pittsburgh, que tem dados diferentes a acrescentar – sua tônica é a de que há
um silêncio da questão racial por parte do governo cubano, alegando o fim da discriminação
pela via da igualdade social; de outra parte há os intelectuais cubanos que estes sim apontam
tanto os avanços sociais quanto a continuidade de manifestações racistas em Cuba. A
pesquisadora conclui então que, mesmo com as conquistas sociais em Cuba, é impossível
superar as discriminações em um passe de mágica. Ressalta, no entanto, que os principais
triunfos da revolução cubana – saúde e educação – foram importantes passos para erradicar os
aspectos mais destacados da desigualdade, mas reitera que algumas formas de racismo e
discriminação ainda persistem.
Citando novamente Fry, Ortiz e Hanchard25, Rosângela Malachias (1996:50-54) expõe
também um dos maiores escritos brasileiros, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre – o
famoso autor vem cada vez mais recebendo uma análise atualizada de seu livro fundamental.
Ao re-elaborar as teorias racistas anteriores, Freyre conclui que a miscigenação não é uma
degenerescência, mas sim um aspecto positivo; a miscigenação diminuiria a distância social.
Para Fry e Hanchard, o entrave na teoria de Freyre foi pressupor que porque as três etnias se
fundiam erigiu-se uma coexistência pacífica, baseada na miscigenação, sem revelar a
violência da relação.
1.6. Identidade nacional
Como já foi dito acima, a preocupação com a identidade brasileira vem do século
XIX, principalmente após a Independência do Brasil, passa pela República e penetra a década
24
Fuente, Alejandro de la. Raça e desigualdade em Cuba (1899-1981). In Estudos Afro-Asiáticos (27): 7-43,
abril de 1995.
25
Hanchard, Michael. Fazendo a exceção: narrativas de igualdade racial no Brasil, no México e em Cuba. In
Estudos Afro-Asiáticos (28):203-17, outubro de 1995.
35
de 30, com o Estado Novo. Em Cuba também foi após as guerras de Independência que essa
preocupação se fez mais urgente. Em ambos os países, a abolição da escravatura (em Cuba,
1886 e Brasil, 1888) criou o impasse do que poderia representar a maioria negra na
construção de uma identidade nacional.
Graziella Ravietti (2001:70) afirma que a herança autoritária que a América Latina
possui criou o dilema de não pertencer nem ao Ocidente nem ao ambiente nativo. Fora isso, as
inúmeras mudanças desde a noção iluminista do ser social até o ser atual, em constante
comunicação com outras regiões, traz à tona uma outra versão para a identidade:
As identidades são reconhecidas como relacionais, produto das alianças em que os
sujeitos se envolvem e dos respectivos processos de acomodação a que são
submetidos. Essas alianças e relações em geral determinam as categorias de
pertença a espaços sociais em que os papéis de cada um se articulam segundo as
condições de dominação ou de subalternidade e as permanentes negociações que se
estabelecem entre as duas posições.
Seguindo as definições de Renato Ortiz (2000:58-79) o uso dos termos ―local‖ e
―autêntico‖ perpassa o debate sobre as identidades. O ―local‖ está ligado à ―diversidade‖,
opondo-se ao ―nacional‖ e ao ―global‖, mas somente como abstração – o mais correto seria
falar de ―locais‖, no plural. Cada lugar é uma entidade particular, uma descontinuidade
espacial, por isso, um autor como Gramsci26 dirá que o folclore é formado por pedaços
heteróclitos de cultura.
Já o ―nacional‖ pressupõe um espaço amplo e a ele se agrega ainda uma historicidade.
A nação trilha o caminho da turbulência histórica e se molda de acordo com os interesses de
suas instituições, suas lutas, sua visão do passado, sua política de construção do presente, num
processo longo, que pressupõe a ocupação de uma área geográfica e a invenção de uma
consciência coletiva partilhada por seus cidadãos.
26
A. Gramsci, Literatura e vida nacional. Rio: Civilização Brasileira, 1968.
36
Segundo o autor, existe ―uma‖ cultura nacional, mesmo sabendo que ela se atualiza de
maneira diferenciada nos diversos contextos e que possui conflitos que se expressam nas
contradições entre os regionalismos. O ―nacional‖ engloba, portanto, os ―locais‖, contrastando
com sua diversidade e assume algumas qualidades do ―local‖. Diversidade e autenticidade
tornam-se características suas. A identidade dos povos se apresenta, assim, como diferença
contraposta ao que lhe é exterior. Ela é a expressão da história de cada país.
Ortiz vê a globalização das sociedades e a mundialização da cultura como um
processo que se instaura em nível mundial, mas que não é necessariamente totalizador, a
ponto de nele se incluir, como um megaconjunto, todos os pontos do planeta, ou seja, o autor
aceita a existência de limites estruturais – econômicos, políticos e culturais – à expansão da
―modernidade-mundo‖. Ele diz: ―Minha proposta é tratar o espaço como um conjunto de
planos atravessados por processos sociais diferenciados‖.
Sugere que a mundialização da cultura seja definida como transversalidade: culturamundo, cultura nacional e cultura local, mas sem representar uma oposição entre si e, como
prova disso, aponta o cotidiano. ―Tanto o nacional como o mundial só podem existir quando
resultam em vivências. Este foi afinal o resultado de dois séculos de rotinização dos modos
de vida que denominamos identidades nacionais‖.
Sobre a identidade cultural, Ortiz compara diferentes definições, como a da
Antropologia: é a descrição densa da organização social, das regras de parentesco, dos
mecanismos de trocas, dos rituais religiosos e da vida material – a cultura é antes de mais
nada um todo integrado articulado das diferentes dimensões da vida social; a definição de
teóricos americanos de que a identidade corresponderia ao caráter nacional; e, criticamente,
resume o que já foi definido no Brasil: ―... no Brasil, são vários os autores que descrevem o
brasileiro como ‗indolente‘, ‗preguiçoso‘, ‗inapto para o trabalho‘, ou, numa ótica mais
otimista, como ‗malicioso‘, ‗sensual‘, ‗dionisíaco‘ ‖.
37
Ortiz aponta que para os filósofos, os artistas e os políticos, no debate do dilema da
identidade, buscam apaixonadamente pela sua ―autenticidade‖27. ―Pode-se então falar em
―essência‖ do pensamento latino-americano, algo específico, peculiar ao Eu de uma América
tão latina, contrastante com a parte anglo-saxônica‖.
O autor conclui que a identidade é uma construção simbólica que se faz em relação
a um referente. Ela é um produto da história dos homens.
Rosane Borges (2000:55-65) alude ao ethos construído sobre a identidade nacional no
Brasil – da fábula das três raças, do país tropical, do país do futuro, do Carnaval e da alegria28,
do ―homem cordial‖29 – e afirma que identidade é um termo demasiadamente evanescente
porque cobre uma multiplicidade de sentidos. O aspecto mais restrito dessa multiplicidade
seria o da identidade em relação à formação do Brasil, enquanto nação com sua dinâmica
peculiar. Borges vê com mais afinco a questão da busca pela identidade durante o período da
Independência como o momento para a construção de uma identidade nacional. Na tentativa
de se mostrar diferente da Metrópole, surge a exaltação do índio, como sendo ―genuinamente
nosso‖.
Essa intenção de constituir uma unidade nacional passa a fazer parte de uma agenda
política em fins do século XIX e inicio do XX. Nos anos 30, a obra de Freyre foi decisiva em
conceber a diversidade e o pluralismo étnico-cultural não mais como um entrave à feição da
nação brasileira e, como diz Borges (2000:58), ―a nossa herança climático-telúrica e
multirracial passa a constituir a chave para o entendimento do País e justificar nossos trejeitos
27
Quintero-Rivera (2000:40) alude à tentativa de se afastar do exótico que levou a intelectualidade à busca de
uma autenticidade, uma preocupação que aumentou na década de 30 na criação de modelos para a expressão
folclórica e para a criação erudita.
28
Renato Ortiz (1997:23) também reforça o memorial dos símbolos da identidade brasileira (advindos da era
Vargas): Carnaval, samba e futebol.
29
O epíteto de homem cordial atribuído ao brasileiro nunca esteve tão longe da verdade. Os números da
violência urbana e rural alardeiam para uma estatística que beira a guerra civil. Do passado, também não há o
que comemorar; haja vista a participação do Brasil na Guerra do Paraguai, além de conflitos internos como a
Cabanagem ou Canudos. Acrescente-se ainda o escravismo e a ditadura militar.
38
e idiossincrasias. A miscigenação, a tropicalidade e a cordialidade brasileiras constituem-se,
então, como traços incontestes da nossa singularidade‖.
1.7. Cultura Popular
Definir cultura popular demanda um cuidado especial na escolha do termo, pois
poderia significar a admissão de uma diferenciação de classes – dominantes e dominados – e
em sua conseqüente hierarquização ou na dicotomia ―erudito versus popular‖, já usada em
excesso. Tendo isso como aceito, cultura popular seria a manifestação das classes dominadas,
atuando fora da esfera da cultura da classe dominante, e forçosamente, as definições sobre o
que é ou não é cultura popular terão de passar pelo crivo da cultura dominante. Por outro lado,
definir cultura popular abstendo-se da hierarquia de uma classe sobre outra, significaria
coloca-las em paralelo e, às vezes, em perpendicular e vê-las como um produto de seu tempo,
de sua história. Na dimensão histórica: sim – uma classe oprime a outra.
Ortiz (2000:43-46) afirma que a cultura popular foi um entrave para a modernidade.
―Os românticos podiam viajar pela cultura popular na medida em que ela representava algo de
bizarro, de estranho, a seus modos de homens civilizados‖. A cultura popular estava envolta
em
uma aura, e os intelectuais nutriam, em relação a ela, as mesmas esperanças que
alimentavam os românticos, os folcloristas, ou, na América Latina, os movimentos políticoculturais dos anos 50 e 60. A associação entre o nacional e o popular foi algo tradicional ao
pensamento latino-americano, que foi parte integrante do projeto de construção nacional.
Wisnik afirma (1982:129-190) que durante o populismo de Vargas, o cumprimento de
uma agenda nacionalista aproximou o intelectual e o povo. A interpenetração de culturas
vinha ocorrendo, mas essa aparente penetração na verdade atenuava a luta de classes. A
questão da identidade, a seu ver, estabelece-se por trás da persona europeizante – a definição
39
de uma identidade era feita através dela. Conseqüentemente, ora via-se com superioridade ora
com inferioridade a cultura popular. Às teorias da intelectualidade nacionalista surgiram,
entretanto, um imprevisto: o avanço da cultura popular urbana no mercado, na música
internacional e ao cotidiano citadino, ou seja, a cultura de massas, tornando-se impossível o
retorno à cultura rústica. Talvez o equívoco tenha sido não perceber a dinâmica que envolve
qualquer fato cultural.
Para Villa-Lobos, a cultura popular era a origem de tudo. Por diversas vezes ele
manifestou a cultura do povo como a expressão maior do artista: ―O compositor genuíno, por
mais cosmopolita que seja, é mais do que nada a expressão de um povo, de um ambiente.‖ Ou
ainda: ―Não é justo que se desprezem as manifestações espontâneas, bem populares, da vida
diária de nossa nação.‖30 Seus conceitos sobre a cultura popular eram uma demonstração de
fascínio pela diversidade cultural do Brasil, no entanto, o mesmo povo que Villa-Lobos
admirava precisaria ―ser educado‖, despertado para a ―consciência musical brasileira‖. Suas
críticas à demasiada atenção que se dava ao futebol, Carnaval e ao rádio provinham de uma
chamada ao ―bom senso e da disciplina natural que devem ter todos os povos de boa cultura‖
e faziam coro às queixas dos modernistas quanto ao avanço mercadológico na cultura popular.
Em Leo Brouwer, o interesse pela cultura popular transcendeu a de seu país e pode ser
dito que ele possui muita afinidade com a cultura popular de vários países. Orozco (1999:6)
afirma que nos fins dos anos 60 e início dos 70 quando Brouwer funda e lidera o Grupo de
Experimentación Sonora (que reuniu grandes nomes cubanos, como Pablo Milanés e Silvio
Rodríguez) ele trabalhou com a música popular em amplo espectro – canção, jazz, pop, samba
– isto transformou o Grupo em um paradigma da música popular e cultura cubanas. Comenta
Orozco: ―Leo se constituiu em um estimulador-promotor de uma maneira de assumir a música
30
Presença de Villa-Lobos, volumes IX e XIII, Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, MEC/DAC, 1974, in O
Pensamento Vivo de Heitor Villa-Lobos, São Paulo: Martin Claret,1987, pp.13, 16.
40
popular que muita repercussão teve em diferentes e diversos criadores. Só essa sua ação
promotora já lhe colocaria um lugar no espectro músico-cultural cubano‖31. Orozco ainda cita
―pontos de interação‖ do trabalho de Brouwer com grandes nomes do flamenco, jazz, bluesfolk, rock, pop e latino-americano (Paco de Lucía, Manolo Sanlúcar, Vicente Amigo, John
MacLAughlin, Chick Corea, Scott Joplin, Jimi Hendrix, Beatles, Astor Piazzolla).
Orozco (1999:4) conclui que esta marca do popular em Brouwer está ligada à
―circulação efetiva de elementos expressivos em seu entorno, além de inquietudes e buscas de
referências músico-sonoras populares que no conjunto vai interiorizando por vivências
fundamentais‖32.
1.8. Modernidade e Pós-modernidade
O nome de Heitor Villa-Lobos ligado ao ideal modernista do Brasil, mais do que se
restringir à Semana de Arte Moderna de 1922, é como um binômio, pois ninguém em sua
época obteve com tanta eficácia a mediação que pregava a ―teoria‖ da Modernidade: o uso do
nacional como o modelo que nos tiraria do resquício de uma cultura européia mais a
atualização com o que estava em voga (paradoxalmente em voga na Europa).
Como afirmou o crítico e teórico peruano Juan Acha (1993:29), o homem sempre teve
vontade de mudança, de ruptura com o passado, sempre soube distinguir sua cultura das
vizinhas, mas as rupturas eram escassas. Relembrando várias ocasiões, Acha situa a primeira
grande ruptura no Renascimento, quando a Arte se moderniza, diferenciando-se da religião
(da Arte funcional, utilitária); também destaca Kant, com a postura da autonomia da Arte, e
Walter Benjamin sobre o fim da aura na obra de Arte, devido à possibilidade de sua
31
32
Tradução minha.
Tradução minha.
41
reprodução, e seguem-se séries de rupturas. Com a chegada da Indústria Cultural, o panorama
mundial mostra que uma realidade estética ficará sujeita a esta indústria, controlada por sua
vez pelos países ricos e cujas mensagens fluem dos centros metropolitanos para os periféricos.
Para Ortiz (1994:217), a Arte no contexto da pós-modernidade perderia definitivamente sua
especificidade aurática.
Segundo Acha, o Modernismo teve a vontade de mudar ou renovar. Declinou por
conta de seu radicalismo – perdendo o contato com as maiorias demográficas – e por haver
cumprido já seu papel.
Quintero-Rivera (2000:24-35) relembra que na década de 20 ocorreu o auge na
produção de escritos e movimentos que buscavam a universalidade por meio do
fortalecimento do nacional. Além do Movimento Modernista no Brasil, outros movimentos
latino-americanos aconteceram, como o Minorismo Cubano, formado em 1923, da qual
participou Alejo Carpentier. Além de propor a renovação artística, o grupo cubano tinha uma
preocupação com questões sociais e políticas. Quintero-Rivera compara a atuação de
Carpentier e Mario de Andrade, como representantes da ―vocação nacional-universalista‖.
Carpentier sustentava a singularidade do continente americano ―na capacidade de conciliar os
elementos culturalmente resgatáveis e o avanço do progresso civilizatório‖.
Aracy Amaral (1990:175) tem como clara a postura romântica do Movimento
Modernista: o novo é sermos nós mesmos – uma proposição difícil de encarar teoricamente e
mais ainda de ser posta em prática. Como uma afirmação de valor, o movimento começa no
México a partir de 1910 e assumirá um caráter indigenista-nacionalista político na América
Central e área andina. Compara Jorge Luis Borges, que pontua as diferenças da língua falada
pelos argentinos, em 1927, a Mário de Andrade, que defende, também nos anos 20, em São
Paulo, a implantação de uma língua brasileira, a diferenciar-se da portuguesa.
42
Segundo a autora, a modernidade na América Latina difere muito de uma região a
outra, mas em todas permeia um desejo de afirmação local mesclada a uma linguagem
atualizada, ―moderna‖. Conclui que: ―Deseja-se esquecer e afirmar, simultaneamente, a feição
rural, caipira ou mestiça que sempre caracterizou nossas culturas latino-americanas,
procedentes do colonialismo ibérico e de um século XIX tumultuado e de poucos avanços
sociais‖. Começa-se a ―descobrir‖ nossas manifestações populares.
Da mesma forma que Villa-Lobos tem seu nome ligado ao Modernismo, a obra de Leo
Brouwer, em determinadas instâncias, insere-se na pós-modernidade, em especial a chamada
terceira fase de sua carreira, início da década de 80. Mas, como aponta Orozco (2000:8), até
em obras da fase inicial (anos 50) é possível se surpreender com uma já aparente fusão (pósmoderna) de estilos:
En otra dirección, si el criterio de considerar una etapa postmoderna en el
Brouwer creador, sería la vinculación de varios géneros, estilos, el retro, la fusión,
el cuestionamiento desacralizador de muchos valores y el montaje por lo general
abrupto, este en realidad tiene presencia desde obras tan tempranas como las
Micropiezas del 57, donde además hay una matiz paródico-irónico notorio, menos
equilibrado que en obras recientes, aun que no solamente no sentido que hoy se
consideran ciertos rasgos postmodernos, sino más como parte de la tipificación
desmontadora da sicología cultural cubano-caribeña-latina.
Es decir, en todo caso estamos ante una suerte de “postmodernismo adelantado”
como algunos teóricos han dicho y sucede en otros notables creadores literarios y
musicales latinoamericanos, aunque ojo, más bien como elementos de lenguaje
raigal sui generis (que de momento Occidente reconoce e necesita por su sentir de
agotamiento) o de un probable neobarroco latino-americano (sobre o cual se
polemiza bastante)pero nunca como epígonos e mucho menos como sistema
filosófico en sí.
O pós-modernismo, na opinião de Acha, quando reduzido à ação de passadistas,
neoconservadores, residuais, oficialistas, difunde a idéia de que a arte é expressividade e não
criação, reforçando o ―ideal burguês‖. Mas o autor crê que, com o pós-modernismo, pode
haver uma libertação (e creio que aqui se insere Leo Brouwer) e não uma alienação.
Acha conclui que, melhor do que aderir à pós-modernidade, seria buscar uma redefinição
43
nossa da modernidade, já que sempre foi uma definição imitativa. Esta modernidade nossa
pressupõe uma crítica ao nosso passado e à realidade ocidental em comparação com a nossa.
Alerta que se deve combinar o nacional com o universal, mas que o universal não é somente o
ocidental.33
1.9. Um filho dileto da Revolução.
A ideologia marxista na obra de Leo Brouwer nunca foi negada nem pelos autores que
trataram de estudar sua obra nem por ele próprio. Ela é um agente intrínseco a vida do autor e
uma conseqüência em sua obra. Desde as considerações mais simplistas, como temas alusivos
de suas peças, até exposições mais profundas sobre seu trabalho perpassam pela questão do
marxismo em sua obra. A revolução cubana foi um agente catalisador de opiniões que tanto
causava receio e ojeriza quanto empolgava a geração dos conturbados anos 60.
O escritor Ignácio de Loyola Brandão (1979:10) faz uma sinopse sobre como foi
recebida, no ano de 1959, a notícia do que vinha se estabelecendo em Cuba durante a atuação
dos guerrilheiros cubanos da Sierra Maestra:
A minha geração estava embalada na mística dos jovens barbudos de Sierra
Maestra. Aquela não parecia uma revolução comum, tinha um envolvimento muito
maior. Não existia o bloqueio político e econômico, todas as agências enviavam
informações regulares de Cuba. Foi da UPI a manchete que ―Última Hora‖ deu, 2
de janeiro, sexta-feira: REVOLUÇÃO ESMAGOU DITADURA DE CUBA:
BATISTA FUGIU EM PÂNICO.
No dia 6 de janeiro recebem-se as primeiras notícias sobre fuzilamentos, com
declarações de Camilo Cienfuegos: ―Quem está morrendo são os prepostos de Batista, que
assassinaram e torturaram‖. Diz o escritor:
33
Mosquera (1993:55) também atenta para o fato de o eurocentrismo ser o único etnocentrismo universalizado.
44
A palavra paredón correu o mundo. No Brasil, integrou-se à gíria por algum tempo.
Referindo-se a tubarões, políticos corruptos, comerciantes gananciosos, policiais
violentos e outros, o povo dizia: ―paredón para ele‖.
A rápida passagem de Fidel por São Paulo, no final de abril de 1959, também foi
enfatizada por Loyola Brandão:
Eu estava na redação, quando o chefe de reportagem mandou um grupo, apressadamente, a
Congonhas. Fidel vinha dos Estados Unidos para o Rio de Janeiro, mas uma avaria na pista
do Galeão desviou seu avião, o ―Britannia‖, para São Paulo. Ele chegou faltando vinte para
as nove da noite. Foi recebido pelo General Stenio Caio de Albuquerque Lima, por Diniz Jun
queira (secretário da Justiça) e pelo diplomata Vasco Leitão da Cunha. Houve tumulto. Muita
gente queria ver, tocar, conhecer Fidel. No dia seguinte, ele deu uma coletiva no Hotel
Excelsior, onde a confusão foi maior. Eu me lembro que havia um repórter deitado embaixo
de suas pernas, com o microfone estendido. Os jornais deram em manchete a principal
declaração de Castro: ―Emancipação econômica para salvar a América Latina‖. O líder
cubano apoiou a Operação Pan-Americana, que estava sendo esboçada por Juscelino.
No ano seguinte (agosto de 1960), Sartre visitou o Brasil, vindo diretamente de Cuba
(Jânio tinha sido eleito presidente, Brasília estava inaugurada). Sartre esteve na Bahia, no Rio
de Janeiro, em São Paulo e em Araraquara. Diz Loyola Brandão:
Ele falava exclusivamente de um assunto que interessava a mim, a toda a minha geração, à
América Latina em geral: a Revolução Cubana. No prefácio do seu livro ―Furacão sobre
Cuba‖, lembro-me que dizia (não tenho mais o livro, desapareceu num daqueles pânicos
coletivos em 64 ou 68), mais ou menos: ―Em toda parte no Brasil encontrei uma juventude
arrebatada, cuja primeira pergunta era sempre: ‗E Cuba?‘ E apesar de todas as características
que distinguem um país do outro, acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha
rebelde cubana era falar deles próprios‖.
Pereira (1986:80) afirma que a Revolução Cubana era vista como a grande experiência
de implantação do socialismo na América Latina. Depois que Ernesto Che Guevara foi liderar
a luta revolucionária na Bolívia, esperava-se que o movimento revolucionário se estendesse a
outros países da América do Sul, ―numa verdadeira frente antiimperialista‖.
Ainda segundo Loyola Brandão (1979:19):
Os Estados Unidos sempre estiveram de olho nessa diminuta colônia espanhola. Afinal,
um território a cento e trinta quilômetros de sua costa deve ser visto com muito cuidado.
Os governos fizeram várias propostas de compra, uma delas de cem milhões de dólares, a
Espanha recusou todas. E continuava a administrar mal Cuba. Os governos se sucediam
na América do Norte, mas a obsessão continuava. O Senador Stephen Douglas, em
dezembro de 1858, declarou: ―É nosso destino ter Cuba, e é bobagem discutir o assunto.
45
Ela pertence naturalmente ao continente americano‖34.
O jornalista Jânio de Freitas (2000), presente em Havana no dia da chegada de Fidel, hoje tem
a seguinte opinião sobre a revolução cubana:
(...) a complexidade de desenvolver pela primeira vez, em luta contra os interesses fortes
e as adversidades tradicionais, uma revolução social mantendo os direitos civis e as
liberdades democráticas, como Fidel e seus guerrilheiros propunham, não foi transposta.
À maneira de outras revoluções, o futuro idealizado acabou substituído pelas soluções
tornadas convencionais a partir do Estado leninista. Os cubanos argumentam que a
contra-revolução desfechada pelos Estados Unidos não permitia outro rumo. O que só é
verdadeiro em parte, quem sabe a menor. Os direitos civis, incluída a liberdade de
expressão e de divergência, foram relegados muito cedo.
Quando a guerrilha de Fidel Castro expulsa Fulgencio Batista e assume o controle do
país, não havia, ao que se sabe, a intenção de transformar Cuba na primeira sociedade
socialista das Américas. Segundo Vail (1987:78-85), depois das relações cortadas entre
Estados Unidos e Cuba, em 3 de janeiro de 1961, Castro ainda se mantinha à parte da balança
do poder entre Estados Unidos e União Soviética na chamada Guerra Fria. Após a invasão
norte-americana à Baía dos Porcos, em 17 de abril daquele ano, é que houve muito mais
aproximação com o governo soviético, culminando com a adesão de Cuba em 1.º de maio de
1961, quando o governo cubano anuncia que Cuba era daquele momento em diante um
Estado marxista-leninista. Na seqüência, houve a Crise dos Mísseis35.
34
Sobre a ingerência dos Estados Unidos, a professora Fernanda Wright (1978:21) explica (mais
especificamente sobre o Brasil, mas que repercute como um modelo em toda a América Latina), que a política
externa adotada pelos Estados Unidos em relação ao Brasil provinha do receio que os norte-americanos tinham
quanto às estreitas relações que a corte de D.João VI mantinha com a Inglaterra. O Brasil representava a idéia de
que seria um agente dos interesses europeus – o que iria contra os interesses dos norte-americanos. Antes da
vinda da corte, os Estados Unidos tinham só um cônsul no Brasil, depois passaram a ter toda uma delegação e
vários agentes espalhados em áreas de conflitos. A diplomacia americana começou a propaganda da sua
revolução de 1776 (Estados Unidos foram a primeira colônia a se libertar) e essa propaganda era feita
principalmente por missionários protestantes e houve inclusive apoio para duas lutas brasileiras: a Revolução
Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador (1826). A adoção da doutrina Monroe, de 1823, conhecida
pelo slogan ―América para os americanos‖ é uma amostra disso. De fato, até os anos 30 o Brasil ligava-se à
Inglaterra pelo lado econômico e a França pelo lado cultural. Na década de 30, após a crise de 29, com a quebra
da bolsa de Nova York, o governo estadunidense atingiu sua ingerência no Brasil até tornar-se força
hegemônica no segundo pós-guerra.
35
A posição norte-americana na política externa, desde os seus primórdios, sempre seguiu o paradigma do
determinismo histórico, que atribuía aos ―americanos‖ (eles não se autodenominam estadunidenses ou norte-
46
Silvia Miskulin36 analisa a visita de Sartre e Simone de Beauvoir a Cuba, em março de
1960, a convite do jornal Revolución e do suplemento Lunes de Revolución, como uma
contribuição importante do escritor francês à causa socialista, mas que foi ineficaz devido à
adoção de um estado socialista em Cuba baseado no estilo soviético.
Sartre afirmou que considerava toda a arte social, e que o problema em Cuba deveria ser
colocado na contribuição do artista em relação ao movimento social no qual tomava parte,
já que seria impossível ao artista e escritor não se preocupar com a Revolução. (...) A
liberdade do escritor e do poeta em seu compromisso não podia ser uma imposição das
leis do Estado, mas sim deveria ser uma tomada de posição espontânea por parte de cada
intelectual.
(...) Na visão de Sartre, a literatura era uma luta, um questionamento da realidade. No
caso cubano, a literatura não estaria mais negando a sociedade, mas aprovando o
movimento revolucionário. Com a Revolução Cubana, os intelectuais e escritores tinham
que se preocupar em manter a autonomia da arte, conservando a sua liberdade de criação,
mas ao mesmo tempo relacionar a arte e a literatura à ação social.
Os escritores, ao realizarem suas atividades de elaboração de uma obra literária, possuíam
um grande poder, que deveria ser canalizado ao tomar parte da Revolução, aderindo a
causa popular.
(...) Sobre o realismo socialista, Sartre analisou o discurso de Zdanov em 1946, na União
Soviética, em que se estabeleceu os parâmetros pelo quais os escritores e artistas
deveriam se guiar para a elaboração de suas obras, que deveriam atender os interesses do
povo soviético. Sartre questionou a literatura realista socialista, já que esta se definia em
relação a um futuro rigoroso, determinado não pelo próprio escritor, mas por um certo
número de escritores que eram representantes do governo e que constituíam a sociedade
de escritores da Revolução Russa. A definição de que já não existiam mais conflitos na
União Soviética e que a literatura e as obras de arte não deveriam representar disputas,
empobrecia e limitava de tal maneira a criação artística, que a qualidade da produção
cultural ficava bastante comprometida com o realismo socialista.
(...) O problema de fundo para Sartre era a existência das editoras do Estado, já que as
editoras estatais eram necessárias para distribuir os livros na sociedade soviética, mas
acabavam limitando que os livros fossem publicados somente pelo Estado, fazendo com
que os escritores desenvolvessem a autocensura para poderem se encaixar nos padrões
definidos pelas editoras estatais.
(...) Ao debater estes temas, Jean-Paul Sarte animou os intelectuais cubanos a refletirem
sobre a situação dos escritores e artistas em Cuba, que estavam vivenciando e apoiando as
transformações que estavam em andamento com a Revolução Cubana e buscavam definir
uma política cultural revolucionária.
(...) Sartre aconselhou que os intelectuais não aceitassem a criação de uma Associação de
Escritores, já que isto levaria ao direcionamento da produção cultural, como o ocorrido na
União Soviética. Entretanto, em agosto de 1961, após a vitória cubana à invasão
patrocinada pelos Estados Unidos na Playa Girón e com a proclamação do caráter
socialista da Revolução Cubana em abril de 1961, criou-se a Unión de Escritores y
Artistas Cubanos em agosto desse mesmo ano.
americanos, mas tão somente ―americanos‖ e, creio que, mais do que etimologicamente, o uso do termo já é uma
intenção de extensão) o domínio das ―outras‖ regiões das três Américas.
36
Em Manifestações artísticas e política cultural em Cuba – comunicação feita durante o XV Congresso da
Associação Nacional dos Professores de História – Anpuh, julho de 2000, texto a ser publicado.
47
(...) O ecletismo da publicação (Lunes de Revolucion), que editava textos do
existencialismo, de correntes vanguardistas que primavam pelo experimentalismo
estético, entrava em choque com uma concepção de cultura que era direcionada a
responder os anseios do povo cubano, exclusivamente relacionada com a realidade da
Revolução e com a tradição popular cubana.
(...) O compromisso do intelectual defendido por Sartre em sua obra e ao longo de sua
vida, foi compartilhado e divulgado pelos editores de Lunes de Revolución, que
defenderam a Revolução Cubana em todos os seus momentos de dificuldades no seu
primeiro triênio. Entretanto em 1961, com a definição do caráter socialista da Revolução,
o governo revolucionário organizou o Primeiro Encontro Nacional de Artistas e
Escritores, estabelecendo a União de Artistas e Escritores de Cuba, que passou a
centralizar as atividades culturais, sobretudo das edições de revistas e suplementos. A
Uneac passou a publicar a revista La Gaceta de Cuba e Lunes de Revolución foi fechado
em novembro de 1961, já que extrapolava em muito as concepções do realismo socialista,
do qual o governo revolucionário e a direção cultural cada vez mais foi se aproximando.
A adoção do marxismo-leninismo em uma sociedade como a cubana prossegue sendo
um tema polêmico. No ensaio de Jorge de la Fuente (1991), professor da Universidade de
Havana, o autor estuda o encontro entre Arte e Ideologia.
No Marxismo, a arte reproduz e expressa determinados valores ideológicos; a ideologia
é vista como um conjunto de idéias, valores, ―estruturas simbólicas‖ e esquemas de
comportamento que expressam, direta ou indiretamente, as necessidades e interesses de uma
determinada classe social. Fuente discorda da afirmação de alguns teóricos sobre a
impossibilidade de um ―encontro fecundo‖ entre a Ideologia e a Arte, porque uma limitaria a
outra. Diz Fuente (1991:14):
En la teoría marxista el concepto de ideología está referido fundamentalmente – aunque
no exclusivamente – a aquellas esferas de la conciencia social que al alcanzar un cierto
grado de articulación conceptual aparecen como “sistemas de ideas”, vinculados
íntimamente con una plataforma valorativa que traduce y expresa los intereses y
aspiraciones de determinadas clases sociales. En este sentido, la ideología es
equiparable a la ciencia y a la teoría porque lo que se toma en cuenta para su definición
es la coherencia y la sistematicidad de procesos conceptuales discursivos. Sin embargo,
existen elementos y aspectos de la ideología no sistémicos con tanto se integran a la
práctica cotidiana de los hombres “disolviéndose” en representaciones, los sentimientos,
las creencias y los hábitos de conducta enmarcables bajo el concepto de “mentalidad
social”.
48
Citando Vigotski37, Fuente defende que a Forma é que distingue a Arte da não Arte e
não o Conteúdo. O Conteúdo pode existir como um fato não-artístico. Crê que o erro está em
afirmar que a verdadeira Arte exclui a ideologia porque a ideologia não pode expressar-se
artisticamente. Baseado nos próprios escritos de Marx e Engels, Fuente diz que não é lícito
estabelecer teoricamente um signo de igualdade mecânico entre as ideologias de um autor e o
sentido ideológico do que este produz artisticamente. Isso aponta em direção às diferenças
para a estruturação artística do real, para outras formas de discurso cognitivo e valorativo e
indica a dimensão não mimética da arte quanto aos elementos extra-artísticos que assimila a
realidade justamente porque no processo artístico não só se ilustra ou reflete-se a ideologia
mas sim também se cria.
Afirma Fuente que o ilustrativismo ideológico da ex-União Soviética foi um casolimite da presença da ideologia na Arte. No aspecto prático, indica que o adequado é saber
―como puede el arte ser más productivo ideológicamente sin dejar de provocar el ‗efecto
estético‘ implícito en la esencia de su funcionalidad social‖.
Cita a concepção dialógica de Mikhail Baktin, de ver a ideologia como um diálogo,
um intercâmbio constante de significados vinculados com a ideologia. A ideologia para
Baktin é um processo vivo, bem próximo à dinâmica da pratica social e atitude valorativa. E
afirma: ―la ideología artística delimita sus significados en el diálogo vivo con la cultura en
que se inserta y con la tradición a que se abscribe (sic).‖
En conclusión, cualquier análisis concreto sobre la ideología artística debe partir de la
premisa de que las ideas, los sentimientos, las representaciones y los valores que el arte
trasmite están fundidos indisolublemente con su peculiaridad estética y funcional. De
aquí que el llamado mensaje ideológico del arte más autentico no sea directo, autoritario
y vertical sino más bien indirecto, sugerente y hasta contradictorio...
(...) la esencia de la ideología artística: existir y funcionar sin que se vea.
37
Vigotski, Lev. Psicologia del Arte, Barcelona: Barral, 1977.
49
Nas muitas entrevistas com Brouwer, em páginas da Internet, em textos sobre o
compositor ou nos artigos de sua própria autoria, não me deparei com qualquer menção sua de
crítica ao governo socialista cubano. O máximo que pude perceber foi uma série de artigos da
década de 70 reunidos em uma publicação (1989) na qual Brouwer alude, ou quase defende,
uma série de procedimentos de vanguarda. Acosta (1989) chega a citar que o Grupo de
Experimentación Sonora passou por uma fase inicial de isolamento causada por parte de
organismos governamentais que nutriam desconfiança, ceticismo, insensibilidade burocrática
e preconceitos.
No artigo ―La Música, lo Cubano y la Innovación” (1989:16)38 Brouwer alude aos
princípios da Revolução Cubana para explicar a incorporação dos meios técnicos mais
avançados:
La incorporación de los medios técnicos más avanzados no representa peligro alguno de
“deformación” puesto que es línea de la Revolución Cubana llegar a la más alta
tecnificación de la producción.
(...) Innovar es (...) una condición de las revoluciones.
(...) La música conservadora responde a las necesidades y demandas de un ordenador
(que puede ser un público o un “patrón”) que exige una música que lo represente. Esta
metodología es puesta en práctica por la alta cultura del capitalismo representado por la
“élite” .
(...) En una revolución permanente se revolucionan o transforman todas las partes o
mecanismos que es necesario cambiar.
Finalmente, lo que más frena la innovación es concebir que los parámetros
fundamentales no pueden ser substituidos.
Em outro ensaio, “La Vanguardia en la Música Cubana‖ (1989:24), Brouwer coloca a
questão em termos de ―liberdade e compromisso‖: “La vanguardia em Cuba tiene resuelta la
doble problemática del compositor actual: la libertad de creación y la “razón de ser” de esa
libertad inmediata: el público”.
Sobre o relacionamento do criador com o público, Brouwer (1989: 80-81) mostrou
mais uma vez uma defesa dos novos procedimentos adotados por ele:
38
Publicado originalmente no boletim Cine Cubano, número 69, 1970.
50
La llamada música nueva, en un país como el nuestro, tiene una razón de ser esencial.
(...) No importa que tengamos orquesta sinfónica, solistas, grupos destacados de música
popular: una radiodifusión inteligente o no, televisión... si la información está cortada.
(...) Una revolución plantea en primer lugar, pone en duda, cuestiona todos los elementos
de una tradición de la que puede dudarse. En ese momento en que una revolución pone
en duda un pasado, lo cuestiona, nosotros empezamos por cuestionar la validez de toda
una serie de cosas establecidas, de métodos establecidos, de la llamada cultura
establecida.
51
CAPÍTULO 2. O VIOLÃO NO BRASIL E EM CUBA
Na história da música brasileira, o violão recebeu, por um longo tempo, o papel de
instrumento acompanhador de melodias cantadas até chegar a instrumento solista em salas de
concerto. Inicialmente, foi por meio da viola, trazida pelos jesuítas portugueses, que surgiram
as primeiras notícias de um instrumento da família do violão em terras brasileiras (Andrade:
1983, Kiefer: 1989, Dudeque: 1994).
A existência de músicos mestiços ―tocadores de viola‖ surge em relatos de viajantes
europeus, que são as referências da vida musical nos primeiros duzentos anos de colonização
no Brasil. Após este longo período, já no século XVIII, a próxima referência à viola surge no
gênero de canção chamado ―modinha‖, que teve em Domingos Caldas Barbosa (c. 17401800) o primeiro compositor e intérprete reconhecido39.
A modinha tratava diretamente de temas de amor sensual em suas letras. Em um
segundo momento, tornou-se tão conhecida em Portugal que compositores eruditos passaram
também a compor neste estilo. Ocorre que Portugal estava ligado à tradição do melodismo
italiano de óperas, e não tardou para que a modinha se alterasse em suas formas originais,
chegando a ser confundida pelos compositores da época com árias de ópera e a ser
apresentada em teatros por cantores líricos, acompanhados por cravo e piano.
Com a vinda da corte portuguesa ao Brasil em 1808, a modinha, transformada em
música dos salões nobres, volta a encontrar espaço nas camadas populares. Pouco a pouco, o
cravo e o piano - que substituíram a viola na fase do bel canto da modinha - são por sua vez
substituídos pelo violão.
A modinha chega então, em meados do século XIX, à canção camerística, tanto no
salão quanto nas típicas serenatas de ruas, retomando sua tradição de gênero popular pelos
1
KIEFER, Bruno. A Modinha e o Lundu. Porto Alegre: Movimento, 1977, pp.17-21.
52
músicos mestiços e, agora, tocadores de violão. Posteriormente, a flauta e o cavaquinho
unem-se ao violão, formando em pouco tempo o trio instrumental por excelência do choro
carioca.
Enquanto o violão no Brasil fazia esta trajetória - da viola como instrumento
acompanhador de melodias cantadas para o violão de estilo instrumental de serenatas -,
muitos países da Europa como Espanha, França, Itália, Inglaterra, Áustria, Alemanha, Rússia
e Checoslováquia possuíam já de longa data suas respectivas escolas violonísticas, com
muitos tratados e métodos. Somente com a chegada de imigrantes italianos, espanhóis e
portugueses e a vinda de viajantes estrangeiros no começo do século XX é que os brasileiros
passariam a conhecer a vertente clássica do instrumento40, mais precisamente no eixo Rio-São
Paulo.
Entre estes estrangeiros, atuantes em São Paulo, há notícias sobre o trabalho do
professor português Alberto Baltar (em 1912-1915) e do italiano Eugene Pingitore. O
paraguaio Agustín Barrios (1885-1944) esteve em São Paulo em 1916 e em 1917, no Rio de
Janeiro, onde realizou uma série de recitais tocando o instrumento de forma nunca antes
ouvida. No mesmo ano, a espanhola Josefina Robledo (1897-1931), estabelece no Rio de
Janeiro, os fundamentos da escola do mestre espanhol Francisco Tárrega (1852-1909), o
idealizador da escola moderna de violão (Simões 1967:25-29 e Dudeque 1994: 101-102).
O primeiro grande nome do violão brasileiro é Américo Jacomino (1889-1928), o
Canhoto, filho de imigrantes italianos, nascido em São Paulo, e considerado por
pesquisadores41 como o primeiro grande intérprete de violão do país. Além de exímio
violonista, era compositor de obras ligadas ao estilo seresteiro, principalmente valsas, entre as
2
Conforme Dudeque (1994:101), Simões (1967:25-29), Bartoloni (1993: 93-94), Gloeden (1997) e Alan
(1995).
3
Castagna e Antunes (1994: 3-7).
53
quais a consagrada ―Abismo de Rosas‖. Também trabalhou por muito tempo acompanhando o
cantor Paraguaçu, atuando em cinemas pela cidade de São Paulo. Seguem-se após Canhoto,
Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955), o Garoto, e Dilermando Reis (1916-1977).
Já na cidade do Rio de Janeiro, é Quincas Laranjeiras (1873-1935) o pioneiro do
instrumento, fundador de uma revista e adepto da escola de Tárrega. Também é nome
fundamental o pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, João Teixeira Guimarães (18831947), o João Pernambuco.
No campo didático, o trabalho de maior destaque foi realizado pelo professor uruguaio
Isaias Sávio (1900-1977) que imigrou em 1932 para o Brasil, radicando-se em São Paulo,
criando em 1947 o primeiro curso de violão do Brasil, iniciando uma linhagem de professores
brasileiros42.
Mas é somente com a ação de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que dedicou uma
pequena, mas excepcional, parte de seu trabalho ao violão, compondo mais de 20 peças, que o
violão atingiria um alto nível de execução. Sobre esta contribuição de Villa-Lobos, afirma-se
mesmo que a música brasileira para violão está vivendo até hoje à sombra do seu trabalho e
que sua obra seja a mais conhecida nos meios violonísticos nacionais e internacionais.
(Dudeque 1994:89-90,104).
Dentro da América Latina, afirmamos que o melhor país para ser comparado ao
Brasil, referente à obra violonística do porte de Heitor Villa-Lobos, seria Cuba, na figura do
compositor Leo Brouwer.
A escolha se baseou em um grande número de fatos. Primeiramente, ambos são
considerados como os maiores compositores latino-americanos do instrumento; suas obras são
citadas entre os violonistas de carreira internacional como peças de caráter obrigatório43,
4
5
Conforme Bartoloni (1993:97-98) e Dudeque (1994:101)
Como por exemplo, o violonista uruguaio Oscar Cáceres (Weiss 1996:14-15) e o argentino Eduardo Isaac
(Denis 1997:25).
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algumas semelhanças em suas trajetórias também influenciaram nossa opção, tais como a
ressonância da música popular em seus trabalhos, ao mesmo tempo em que estiveram atentos
às novas linguagens, e o fato de que ambos participaram à frente de projetos do Ministério da
Cultura de seus países.
Ambos dedicaram ao violão parte de seu trabalho composicional, sendo que suas
obras são consideradas peças standard em escolas e universidades de Música do mundo todo.
Há também uma visão no meio musical que considera Leo Brouwer como um herdeiro de
Villa-Lobos, tanto por estas semelhanças na carreira e reputação mundial, obtida na mesma
proporção à de Villa-Lobos até o momento, quanto ao próprio trabalho composicional
propriamente dito.
Assim como o violão no Brasil percorreu um variado caminho até chegar ao trabalho
consagrado de Villa-Lobos, a história do violão em Cuba é plena de fatos que também se
interligaram até chegar à figura central do violão em Cuba, que é Leo Brouwer. Ainda que
este trabalho não tenha por finalidade contar a história do instrumento em cada um dos dois
países, isto se faz necessário para demonstrar as semelhanças entre ambos e para se ponderar
sobre o fato de que a grande atuação de Villa-Lobos e Brouwer não foi uma atitude isolada,
mas sim que ambos são produtos de uma espécie de genealogia do violão em seus países, que
em seus muitos entroncamentos, principalmente com a vertente popular e as novas
linguagens, conformou uma maneira de se expressar por meio do instrumento, que
caracterizou fortemente seus trabalhos.
A guitarra chegou a Cuba44 por meio dos navegantes espanhóis. Pela região de
Baracoa entraram violão, vihuela, alaúde e outros instrumentos de cordas. Os colonizadores
6
Somente nesta parte altero o termo violão por guitarra, pelo fato de o violão, na conformação que conhecemos
hoje só viria a se estabelecer após o chamado ―modelo de Antonio Torres‖, espanhol, construtor de violões, o
que só aconteceria em fins do século XIX. Foi utilizado para esse levantamento histórico do violão em Cuba, os
autores Acosta (1986), Amador, Perez, constantes da Bibliografia final.
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espanhóis eram em sua maioria provenientes das regiões de Extremadura e Andaluzia. Perez
(1986:50) destaca que muito provavelmente estes espanhóis se fizeram acompanhar nas
longas travessias entre o Velho e o Novo Mundo por uma guitarra, atrelando o instrumento
dos trovadores e jograis europeus ao instrumento que se converteria, no decorrer do tempo,
em companheiro tanto dos gaúchos payadores quanto dos cantantes criollos da América
Latina. Perez conclui que como resultado do aporte hispânico à cultura latino-americana
durante o processo histórico de conquista e colonização das terras do Novo Mundo, a guitarra
obteve na América Latina a categoria de instrumento continental. Com o passar do tempo, por
sua aclimatação e enraizamento tão profundo na maioria destes países, se converteu, ademais,
no instrumento nacional por excelência.
Junto com a vihuela, a bandurría, o alaúde, o tiple e a guitarra são trazidos por
soldados músicos que acompanhavam Diego Velásquez em sua missão de ocupar a ilha
cubana. A primeira notícia sobre o instrumento surge em 1680 na qual afirma-se o nome de
Don Lucas Pérez de Alaiz como um tocador de guitarra (Amador 1992:18). Na Villa de
Trinidad e em Santiago havia pequenos conjuntos de guitarras e bandolas durante o século
XVIII, além de bailes populares nos quais se executavam uma ou duas guitarras e
instrumentos de percussão. Mais tarde, durante o primeiro terço do século XIX foi famoso
Antonio Flores, primeiro trovador cubano, apelidado ―El Tirano‖ por improvisar tiranas
(estilo musical proveniente da guitarra flamenca).
Do estilo romancero espanhol inicial, a ilha foi se povoando de gêneros importados da
Europa, como seguidillas, pólos, tiranas, boleros, tonadillas cênicas e canções da ―mais baixa
ralé‖, segundo critério censor da época (Perez 1986: 52). O teatro desempenharia um
importante papel na canção cubana ao aparecer nos começo do século 19, substituindo as
tonadilhas cênicas por guarachas de tom humorístico.
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Existirá na mesma época a canção representativa da alta sociedade, dos salões
elegantes, a partir da invasão do bel canto durante o século XVIII. O aspecto de cubanía ou
acriollismo de certas canções surge durante os anos de movimento de libertação nacional. Nos
movimentos de libertação de 1868 a 1895 a canção patriótica ia adquirindo força à medida em
que o sentimento de identidade nacional também crescia. E a guitarra era o instrumento oficial
para acompanhar essas melodias tanto nos campos, na voz dos guajiros tocadores de tres,
bandurria e alaúde (antigos instrumentos de cordas pertencentes à família do violão) quanto
nas cidades nas mãos dos trovadores.
A popularização do violão se deu no século XIX com o advento da trova cubana. Por
esta época eram comuns as serenatas na cidade. A música em vigor era essencialmente
européia, mas em meados do século, os bairros populares de Santiago começam a entoar
canções e guarachas, acompanhadas de violão, com um valor indiscutivelmente criollo.
O pioneiro dos trovadores é José Sánchez, Pepe, nascido em 1856, que deu um
impulso à expressividade cubana. Com Pepe, se define o formato do bolero e que serviria de
modelo muitos anos depois aos trovadores posteriores, como Sindo Garay e Alberto Villalón.
Os trovadores cubanos que viveram na segunda metade do século XIX se
relacionaram com grandes músicos acadêmicos cubanos, como José White, Brindis de Salas,
Ignácio Cervantes, Lico Jiménez, Ernesto Lecuona. Segundo Amador, o violão, por sua parte,
tanto na técnica quanto no produto artístico, recebeu influência por um processo acumulativo,
como aconteceu em toda a cultura cubana. O clássico e o popular se interagiram.
Amador coloca como exemplo disso a pessoa de Vicente Gonzalez Rubiera, o Guyún,
nascido em Santiago. Guyún conviveu com Sindo Garay e Miguel Matamoros. A partir de
1924, mudou-se para Havana, desenvolvendo um trabalho como trovador, profissão que
abandona em 1940 para estudar técnica musical e violão clássico, com Severino López,
estudando a escola de Tárrega. Alberto Villalón também estudaria técnica violonística e
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aplicaria os recursos a suas canções, principalmente ligados, arpegios, contrapontos de baixos
com as vozes superiores etc..
O trio mexicano ―Los Panchos‖, com o violonista Alfredo Gil, conhecedor do violão
clássico, incorpora muitos recursos e influi notadamente nos trios cubanos que também
começam a empregar escalas, arpegios, ligados e trêmolos.
O processo também se produziu ao contrário. Ezequiel Cuevas, um maestro espanhol
radicado em Cuba, decide elaborar um simples método e a ensinar violão também por
posições, devido à grande solicitação de seus alunos. Também Clara Romero de Nicola
incorporou a seu método de violão muitas lições para o conhecimento dos ritmos da música
popular e os acordes.
Em suma, os trovadores, soneros (adeptos do estilo musical cubano do son), músicos
campesinos, os cultores do feeling45 todos eles utilizaram o violão, fornecendo soluções
técnicas que enriqueceram a gama de recursos e a forma de utilizar os efeitos próprios do
violão, de uma maneira singular que foi dando forma às particularidades de um modo de
fazer cubano.
No século XIX a guitarra em Cuba não esteve associada à música de teatros e salões; o
piano, os conjuntos de câmara, as óperas e as orquestras sim eram a preferência da elite. Esta
situação perduraria em Cuba, assim como em várias outras partes do mundo. Em Valência, na
Espanha, a atuação de Francisco Tárrega (1852-1909) vem modificar o status do (agora sim)
violão, que adentra as salas de concerto e, mais ainda, dá um novo aspecto didático ao ensino
do instrumento, a chamada ―Escola de Tárrega‖, da qual praticamente todos os países latinoamericanos são herdeiros.
Nesse período, foi praticamente inexistente o registro de violonistas concertistas em
Cuba; a função principal do violão parece mesmo ter sido a de acompanhar o canto. Entre os
7
Movimento musical dos anos 40 e 50 em Cuba, que utilizou procedimentos do jazz.
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poucos concertistas conhecidos, destacou-se José Prudêncio Mungol, nascido em Havana
(1837-1890). Mungol estudou em Barcelona e voltou a Cuba como um notável concertista,
entretanto não sobraram registros de suas obras. Outro nome foi Juan Sábio (1868-?) que foi
intérprete e professor.
Em 1901 chega a Havana José Vallalta Ausina, discípulo de Tárrega. Vallalta ministra
aulas, forma conjuntos e uma academia, na qual também leciona Pascual Roch, ouvinte nas
aulas de Tárrega na Espanha, além de luthier (designação francesa para construtor de
instrumentos), radicado em Havana desde 1911. Por meio deles chegam os primeiros
informes sobre a escola de Tárrega em Cuba.
A filha de Vallalta, Francisqueta, violonista e pioneira em programas de rádio sobre
violão, é figura de relevo por seus conjuntos de violões, um dos quais chegou a ter 80
integrantes. Também se destacou como professora, dando aulas em mais de oito centros. Seu
trabalho como intérprete foi elogiado pela imprensa da década de 20, e abarcou quase todas as
salas e teatros do país até aproximadamente 1935.
Um caso singular desta época é Vicente Gelabert, espanhol e discípulo de Tárrega. Ele
realizou muitos concertos, mas não exerceu atividade didática com regularidade. Com
Gelabert, pela primeira vez, se dá a conhecer a obra musical de Tárrega.
Severino López, cubano, discípulo de Pascual Roch e na Espanha de Miguel Llobet,
escreveu estudos para violão, transcrições e um método: El Acompañante Técnico. Chegou a
alcançar um nível de concertista, realizando muitos concertos na década de 20, inclusive se
apresentou no Carnegie Hall de Nova York. López foi professor de José Rey de la Torre, José
Antonio Mercadal e a Maria Nela Bonet.
Durante o período de luta contra o governo de Fulgêncio Batista, Severino López
formou parte do exército guerrilheiro, tendo patente de capitão. Compôs nos últimos anos de
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sua vida obras de caráter patriótico, motivado por seu período de permanência na Sierra
Maestra. Uma canção foi inclusive dedicada a Che Guevara.
Clara Romero de Nicola foi quem veio dar continuidade ao ensino de violão em Cuba.
Ela fundou a cátedra de violão no Conservatório Municipal (hoje ―Amadeo Roldán‖) em
1931. Além disso, fundou a Sociedade Violonística de Cuba em 1939, com a revista Guitarra.
Clara Romero se situa entre os grandes percussores do violão em Cuba e seu nome se vincula
em definitivo ao de Isaac Nicola, seu filho.
É de consenso entre os autores cubanos que Isaac Nicola e Leo Brouwer são os dois
pilares de uma possível escola cubana de violão. Brouwer alude (Hernández 2000:178) que a
existência de uma escola cubana foi criada mais para cobrir um repertório. É de relevância
também citar o seu pensamento sobre diferenças entre alguns grupos de violonistas46:
Aun los norteamericanos que a través del jazz tienen un desarrollo considerable
del factor ritmo que los ha llevado al mundo de la llamada música beat o música
del folklore universal, aún los norteamericanos, cuando tocan la guitarra clásica o
algún repertorio latinoamericano, no le imprimen la vitalidad rítmica que le
imprime, por ejemplo, el guitarrista cubano o el brasilero, los más fuertes y ricos
del género.
(...) Cuba tiene la suerte (a través del fenómeno revolucionario, que es un fenómeno
social y histórico) de promover en el campo de la música y de la guitarra, un movimiento
polivalente que incluye la trova, la guitarra popular y la poesía, ambas distantes como
técnica básica, pero unidas a través de la canción popular. La guitarra clásica con sus
complejidades no es fácil que se hubiera difundido si no es por el desarrollo que le
imprimen los organismos revolucionarios, en este caso los de enseñanza musical en todo
el país.
Nicola iniciou seus estudos com Clara Romero na escola Municipal e posteriormente
com Emilio Pujol, na Espanha. Aprendeu também com Pujol a tocar a vihuela e na volta a
8
O violonista, professor e compositor uruguaio Abel Carlevaro (1918-2000) também já havia comentado
diferenças de interpretação, principalmente entre os latino-americanos e os europeus e norte-americanos. Os
latino-americanos seriam mais sentimentais e menos ―mecânicos‖ que os demais (Soares e Antunes 1997:4-5).
60
Cuba ofereceu uma série de recitais, sendo que em 1941, realizou o primeiro concerto de
vihuela de Cuba. Passou a dar aulas e depois da tomada do poder por Fidel Castro, ao acabar
com os conservatórios privados e unificar o sistema de ensino em todo o país, o método de
ensino de Nicola se tornou nacional.
Na revisão e criação de materiais didáticos, junto a Nicola tiveram um papel
importante os seus alunos: Leo Brouwer, Jesús Ortega, Marta Cuervo e Clarita Nicola. Nicola
foi também diretor de escolas, assessor nacional de violão, chefe de cátedra, chefe do Instituto
Superior de Arte, presidente e membro de júris nacionais e internacionais, além de títulos que
recebeu do governo.
De Leo Brouwer, basta, por ora, registrar a afirmação que dele fez o consagrado
violonista e professor espanhol Emílio Pujol (1886-1980), quando conheceu o trabalho de
Brouwer ainda bem jovem: a de que ele teria iniciado (por meio da peça Canticum, em 1968)
uma nova etapa na história do violão mundial.
61
CAPÍTULO 3. Biografia de Heitor Villa-Lobos.
A data de nascimento de Heitor Villa-Lobos variava em publicações entre os anos
1881 e 1891. Foi Vasco Mariz, por ocasião da preparação de seu livro, publicado em 1949,
quem conseguiu descobrir a data correta, indo até a Igreja São José, na qual Villa-Lobos foi
batizado.
Heitor Villa-Lobos nasceu no dia 5 de março no Rio de Janeiro. Foi o segundo de oito
filhos do casal Raul Villa-Lobos e Noêmia Monteiro Villa-Lobos. Seu pai, funcionário da
Biblioteca Nacional e músico amador, foi quem decidiu dar a Villa-Lobos uma educação que
incluísse a música. Ensinou o filho a tocar violoncelo, aos 6 anos de idade, além de teoria
musical. O clarinete, o pai lhe ensinou aos 11 anos. Sobre seu pai, Villa-Lobos afirmou
(Mariz 1989:22): ―Com ele, assistia sempre a ensaios, concertos e óperas (...) Aprendi
também a tocar clarinete e era obrigado a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das
obras, como a declarar com presteza o nome da nota, dos sons ou ruídos‖.
Além do pai, uma tia, Zizinha, que era pianista, executante do Cravo Bem-temperado
de Johann Sebastian Bach, também teve papel um importante por apresentar-lhe a obra de
Bach, que o marcou para sempre.
Em 1892, Raul Villa-Lobos manifestou-se publicamente contra o então presidente
Marechal Floriano Peixoto e foi obrigado a sair do Rio de Janeiro com a família, perseguidos
pela polícia, indo se refugiar em Minas Gerais por um período de seis meses. A causa da
perseguição política foi uma série de artigos que ele escreveu contra o marechal Floriano, que
realmente foi um governo tumultuado. Em 1899, quando Villa-Lobos estava com 12 anos de
idade, seu pai morre de febre amarela.
Em 1903, Villa-Lobos terminou os estudos básicos no Mosteiro de São Bento. A
maioria dos biógrafos afirma que sua mãe desejava que ele seguisse a carreira de médico. Mas
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o jovem Villa-Lobos não tinha interesse pelos estudos; saía de casa às escondidas e passou a
estudar violão.
Em uma ocasião, aos 16 anos de idade, ele fugiu para casa de sua madrinha, tia Fifina
(Leopoldina do Amaral), em busca de maior liberdade. Juntava-se aos grupos de choro, pelo
qual começou a se interessar, tocando violão em bares, festas e serenatas. Em pouco tempo,
Villa-Lobos passou a tocar violoncelo profissionalmente em teatros, cafés e bailes, sem o
estudo da música formal.
Tocou no Teatro Recreio um repertório do mais variado, que incluía óperas, operetas e
zarzuelas. Apresentou-se no Cine Odeon e em bares, hotéis e cabarés. Suas composições
dessa época são valsas, dobrados, polcas e música popular. Conviveu com uma série de
cantores populares como Cadete, Eduardo das Neves e Olímpio Bezerra e com compositores
mais originais como Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros.
Em 1906, com 19 anos, partiu em viagem pelo Brasil. Visitou os estados de Espírito
Santo, Bahia e Pernambuco. Segundo informa Mariz (1989:39):
Meteu-se pelos bairros mais duvidosos da cidade de Salvador e do Recife, em busca de
aspectos curiosos do populário local, embrenhou-se nos sertões daqueles Estados,
passou curtas temporadas em engenhos e fazendas do interior. A experiência recolhida
nessa viagem foi bastante grande. A música dos cantadores, a empostação (ou
desempostação) no cantar, a afinação de seus instrumentos primitivos, os aboios dos
vaqueiros, os autos e as danças dramáticas, os desafios, tudo interessou-o vivamente e
despertou-lhe o sentido de brasilidade que trazia no sangue.
No ano seguinte resolveu aceitar o convite de um amigo e empreender viagem para o
Sul. Em Paranaguá, trabalhou em uma oficina de fósforos, permanecendo por oito meses,
dando concertos em cidades vizinhas e compondo. Provavelmente no ano de 1905, VillaLobos passou a percorrer o interior brasileiro, e, como dizem os autores, ―coletando material
folclórico‖, absorvendo tudo o que ouviu, ―recebendo inúmeras influências sonoras‖, as quais
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mais tarde resultariam em um de seus trabalhos mais importantes, o Guia Prático, uma
coletânea de canções folclóricas destinadas à educação musical nas escolas.
Béhague (1994) concorda com a data de 1905, embora não haja confirmação
documentada deste empreendimento. Béhague lembra que Villa-Lobos vendeu livros do pai e
foi ao Espírito Santo, Bahia, Pernambuco por um ano – sem planejamento e resultado
hipotético.
Quanto à segunda viagem, a de 1906, aos estados do Sul, por quase dois anos, Mariz
disse que Villa-Lobos informou seu desapontamento no Sul com a falta de riqueza e pureza
do material folclórico em relação ao do Nordeste (Mariz 1989:39).
Na verdade, como não se tem o registro seguro desta empreitada, a maioria dos
autores fica no campo das especulações quanto a o que efetivamente Villa-Lobos trouxe de
material folclórico dessa viagem, ou em que medida ele apreendeu isto. Os autores costumam
afirmar que ele reuniu parte disso em seu Guia Prático entre 1932 – 1937, entretanto Béhague
constata que a maioria das canções é de cantigas de roda e não de caráter regional.
Em 1907, aos 20 anos, tentou estudar sistematicamente harmonia, contraponto, fuga e
composição com Frederico Nascimento no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, e
com Agnello França e Francisco Braga, além de Francês. Mas, alguns meses depois sai do
curso de Harmonia para ir a São Paulo, Mato Grosso e Goiás.
Em sua quarta viagem, a segunda para o Nordeste, foi com o amigo Donizetti,
permanecendo no Norte e Nordeste por mais de três anos. Já em 1908 Villa-Lobos viajou para
o oeste brasileiro e em 1910 foi contratado como violoncelista de uma companhia de operetas
que, depois, se dissolveu, no Recife. Foi a Fortaleza, Belém, Amazonas e chegou à ilha de
Barbados, onde começa a escrever as Danças Características Africanas.
Em 1912, estudou o Cours de Composition Musicale de Vincent d'Indy (o mais
famoso discípulo de César Franck). Segundo Mariz, Villa-lobos estudou também partituras de
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autores clássicos e românticos, o Tristão de Wagner, obras de Puccini. As óperas de VillaLobos tinham grande influência da orquestração wagneriana e vestígios de linha pucciniana,
mas teria sido uma influência passageira, no entanto.
Segundo Béhague, a segunda fase da vida de Villa-Lobos acontece quando ele
conhece em 1912 Lucília Guimarães (1886-1966), que se tornaria sua esposa. Lucília era
pianista de formação clássica e compositora, principalmente de peças corais. Estreou peças do
marido em seus primeiros concertos em 1915, além da Semana de 22 e em Paris. Casaram-se
em 12 de novembro de 1913, vivendo juntos por 23 anos. Lucília dava aulas em casa e VillaLobos tocava violoncelo em orquestras de teatro e cinemas, inclusive na Confeitaria Colombo
e no Café Assírio.
Em 1915 ocorre a sua estréia oficial como compositor. A primeira apresentação teria
sido em Friburgo, com Villa-Lobos ao violoncelo, Lucília ao piano e o flautista Agenor Bens,
seguido de outro recital, em julho, no Teatro São Pedro do Rio de Janeiro. No final do ano, no
Rio, Villa-Lobos fez uma série de concertos. Segundo Mariz, suas primeiras apresentações já
geraram polêmicas, porque suas obras eram cheias de inovações para a época. Seus concertos
passaram a ser alvos da crítica, que os considerava ―modernos demais‖ para o público
brasileiro. As reações negativas partiram principalmente dos críticos Vicenzo Cernicchiaro
(1859-1928) e Oscar Guanabarino de Souza e Silva (1851-1937), destacando-se este como o
crítico mais reacionário da obra de Villa-Lobos e da música moderna em geral.
Segundo Béhague, já no concerto do dia 13 de novembro de 1915 – o primeiro
concerto inteiramente dedicado a suas peças no Jornal do Comércio – Villa-Lobos alcançou a
fama de ―enfant terrible‖ da nova música brasileira, graças às reações negativas de
Cernicchiaro e Guanabarino, ambos críticos do Jornal do Comércio.
Em 1916 já tinha mais de 100 peças, inclusive a Suíte Popular Brasileira (1908-12). E
em 1917 Villa-Lobos foi apresentado ao compositor francês Darius Milhaud, que nessa época
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era secretário do Embaixador da França no Brasil, Paul Claudel. Datam deste ano os bailados
Amazonas e Uirapuru, tidos como primeiros marcos do seu estilo.
No ano seguinte, 1918, foi apresentado ao pianista polonês Arthur Rubinstein (18871982), a quem mostra algumas obras, inclusive a recém-composta suíte para piano Prole do
Bebê n. º 1. Rubinstein apreciou muito a suíte e passou a executá-la em suas turnês.
No mesmo ano, Villa-Lobos realiza mais três concertos no salão do Jornal do
Comércio. Mais uma vez há críticas a seu trabalho; além dos costumeiros comentários de
Guanabarino, Villa-Lobos envolveu-se também com uma polêmica com os músicos de
orquestra no Instituto Nacional de Música, durante os ensaios de obras suas, que se
recusariam a tocar sua música.
Em 1919, vai a Buenos Aires a convite da Associação Wagneriana para um concerto
com obras suas, sendo bem-recebido pela crítica do La Prensa. Em 1920, escreve os Choros
n. º1, para violão, dedicado a Ernesto Nazareth, e a Lenda do Caboclo, para piano. Em 1921
compõe a suíte Prole do Bebê n. º 2.
À medida que se apresentava em teatros no Rio e São Paulo, suas composições
ganhavam notoriedade, passando a ser conhecido como um compositor ―moderno e
diferente‖. O fato de ser sempre tão criticado causou-lhe uma aura de músico antiestablisment
o que acabou favorecendo na escolha de seu nome para a Semana de 22. Sobre a Semana,
Villa-Lobos tem a consagrada frase: ―Tive a certeza de a minha obra atingir um ideal, tais
foram as vaias que me cobriram de louros‖.
Incentivado por Rubinstein e pela cantora Vera Janacopulos, Villa-Lobos viajou para
Paris em 30 de junho de 1923, financiado por mecenas do Rio de Janeiro, principalmente os
irmãos Guinle. Também consegue um apoio da Câmara de Deputados recebendo uma
pequena subvenção em dinheiro.
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Lá conhece os músicos mais em voga da Europa: Roussel, Dukas, Florent Schmitt,
Honegger, d‘Indy, Ravel, de Falla, Stravinsky, Prokofiev, Casella, Varèse, Segovia, Tomás
Terán, Joaquín Nin, além dos críticos musicais: Henry Prunières, Paul Le Flem, Tristan
Klingsor, que manifestaram-se favoravelmente à sua obra.
Em 9 de abril e 30 de maio de 1924 realiza dois concertos só com obras suas (este
último promovido pela Max Eschig na Salle des Agriculteurs, com a presença de Rubinstein).
A reação do público foi dividida, mas a imprensa exaltou as qualidades. O Jornal Liberte
avaliou sua produção musical como ―um modernismo avançado‖ e Villa-Lobos como ―uma
personalidade forte e atraente‖.
É em Paris, ainda em 1924, que escreve os Choros n.º 2 e n.º 7, mas devido à falta de
recursos financeiros, Villa-Lobos retorna ao Brasil no final deste ano. Segundo Gerard
Béhague, sua primeira viagem a Paris ―serviu para confirmar o nível internacional de sua
estética musical prévia‖ (1994:17).
Em 1925, em São Paulo, Villa-Lobos dirige três concertos na Sociedade de Concertos
Sinfônicos e Cultura Artística. Surgem notícias sobre peças suas tocadas em Londres, Paris e
Veneza. Neste ano compõe os Choros nº 3, nº 8 e nº 10, além das Serestas, para voz e piano.
Em 1926 foi para Buenos Aires, onde realizou, com êxito, três concertos para a
Associação Wagneriana. Em especial no dia 15 de novembro de 1926, consegue sucesso
estrondoso no Teatro Lírico do Rio de Janeiro com os Choros n.º 3 e Choros n.º 10. O Jornal
do Comércio faz uma crítica favorável.
Em 1927 suas dificuldades financeiras perduravam no Brasil. Villa-Lobos resolve
retornar a Paris acompanhado de sua esposa Lucília Guimarães, a fim de realizar novos
concertos e iniciar negociações com a Max Eschig. Arthur Rubinstein intercedeu junto a
Carlos Guinle para que ele financiasse a primeira edição de suas peças na editora francesa.
Guinle também cedeu-lhe um apartamento em Paris, que tornou-se um ponto de referência
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para músicos sul-americanos e europeus. Para sobreviver, Villa-Lobos dava aulas e revisava
partituras da Max Eschig. Segundo Mariz (1989):
A popularidade de Villa-Lobos em Paris cresceu com o debatidíssimo artigo do
Intransigeant de outubro de 1927, sobre o compositor brasileiro, que se preparava para
dar um concerto com orquestra na Sala Gaveau. A poetisa Lucie Delarue Mardrus se
tornara amiga de Villa-Lobos, viu certa vez na residência do maestro o livro Viagem do
Brasil do viajante alemão de 1600, Hans Staden. Pediu-o emprestado e o levou pra casa.
Qual seria a surpresa de todos os brasileiros residentes em Paris quando o Intransigeant,
com grande destaque, publicou um artigo daquela escritora que atribuía a Villa-Lobos as
aventuras de Hans Staden em pleno século vinte! ! Villa-Lobos, membro de uma
expedição científica alemã, é capturado por índios antropófagos, que o amarram a um
poste, bailam em torno dele e se preparam para assa-lo! O leitor compreenderá a
indignação dos brasileiros residentes em Paris para com o que eles acreditavam fosse
‗mais uma‘ de Villa-Lobos. O artigo se intitulava ―L‟Aventure d‟un CompositeurMusique Canibale”.
No final desse ano, dois concertos realizados na Salle Gaveau, a 24 de outubro e a 5 de
dezembro, inclusive com a execução dos Choros n.º 10, projetaram seu nome. Mariz (1989:
68) afirma que a partir de esse momento Villa-Lobos adquiriu renome em Paris e no mundo
musical europeu. Foi a Londres, Amsterdã, Viena, Berlim, Madri, Liége, Lyon, Amiens,
Poitiers, Barcelona e Lisboa. Em Paris foi professor de composição no Conservatório
Internacional, além de alunos de Isidor Phillip e Marguérite Long, famosos professores de
piano, que queriam aprender sua música.
Em 1928 compôs os Choros Bis e o Choros nº 11. Já em 1929, escreveu o Choros n.º
9 e finalizou os 12 Estudos para violão. Neste ano esteve no Brasil por pouco tempo para
organizar concertos e reger no Rio de Janeiro e em São Paulo. Voltou a Paris, passando por
Barcelona para apresentações. Mariz (1989:69) afirma que nesta época público e músicos
parisienses o reconheciam, mas os mesmo críticos dos vanguardistas belgas e franceses, não.
Em 1930 apresenta-se em Paris na Salle Gaveau em duas ocasiões. Seu nome já estava
estabelecido internacionalmente. Conduziu em Bruxelas, Liége, Viena, Berlim, Amsterdã,
Londres e províncias francesas. Deixa Paris em fim de maio 1930 para compromisso de
concerto em São Paulo, a convite de Olívia Penteado, (antes já havia passado por Recife, onde
68
organizou concertos). São Paulo, porém, passava por agitações políticas e Villa-Lobos não
pôde realizar todos os concertos que planejara.
Neste ano, acontecia a campanha eleitoral de Júlio Prestes para a presidência da
República. Enquanto esteve em São Paulo, Villa-Lobos fez críticas às condições do ensino de
música nas escolas públicas e apresentou um plano ao secretário de Educação de São Paulo –
plano este que ele teve a oportunidade, na casa de Olívia Penteado, de expor ao então
candidato à presidência da República, Júlio Prestes, que demonstrou interesse em concretizálo.
A disputa eleitoral foi acirrada, ganhando Júlio Prestes. Porém, o candidato Getúlio
Vargas, apoiado pela coligação Aliança Liberal, formada pelos estados da Paraíba, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul, acusava o paulista de fraude e exigia anulação do pleito. Como se
sabe, o assassinato de João Pessoa na Paraíba exaltou os ânimos políticos, e Getúlio e seus
aliados tomaram o poder, em outubro de 1930.
Villa-Lobos é chamado pelo interventor do governo provisório de São Paulo, coronel
João Alberto Lins de Barros, para que expusesse suas idéias. O resultado desta conversa foi o
apoio oficial a seu projeto pelo governo de Vargas. Aqui inicia a colaboração de Villa-Lobos
com o governo Vargas, que lhe rendeu a denominação de patriarca de educação musical, mas
também, por vezes, apontado como apoiador de uma ditadura.
Em 1931, com o patrocínio do governo paulista, iniciou a ―Excursão Artística VillaLobos‖, reunindo artistas como os pianistas Antonieta Rudge, Guiomar Novais e Souza Lima
para excursões pelo interior de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, com o objetivo de divulgar
a arte brasileira. Entretanto, o repertório da Excursão era formado basicamente por músicas
européias, o que levou Gerard Béhague (1994:22) a concluir que o verdadeiro objetivo da
excursão era impor a cultura da classe dominante numa sociedade estratificada e, assim,
moldar o gosto artístico por meio da cultura de elite.
69
Sua volta ao Brasil em 1930, é também marcada por críticas de Mario de Andrade a
aspectos apresentados no livro de Suzanne Demarques e sobre seu trabalho como regente,
além de críticas a respeito da série de concertos em São Paulo, na qual mostrou obras de
Milhaud, Honegger e Florent Schmitt. Andrade também realçou no trabalho de Villa-Lobos o
que chamou de ―ausência de autocrítica, uma perigosa complacência que o deixa aceitar
livremente tudo o que sua imaginação criativa lhe dita‖.
Em 31 de maio de 1931, ocorre a primeira das muitas manifestações de ―exortação
cívica‖: um coro de 12 mil vozes – trabalhadores, soldados, estudantes e professores –
apresenta-se em São Paulo sob regência de Villa-Lobos. Era o início do Canto Orfeônico.
Villa-Lobos pretendia que esta tradição possibilitasse a educação das massas em
música geral e em música brasileira, e que incutisse o sentimento de patriotismo e identidade
nacional. Ele escreveu (1940:10):
... o canto coletivo, com o seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no
momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na
comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de renúncia e da
disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção
de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção
das grandes nacionalidades.
Em 1932, depois de residir por dois anos em São Paulo, fixa residência no Rio de Janeiro,
após ser convidado por Anísio Teixeira, Secretário de Educação, para presidir a
Superintendência de Educação Musical e Artística – SEMA, cargo que chefiaria de 1932 a
1941. O presidente Vargas assinou um decreto que tornava obrigatório o ensino de canto
orfeônico nas escolas.
Em cerimônia oficial realizada na Universidade do Rio de Janeiro, Villa-Lobos
anunciou seu programa cultural, que atacava os professores de música e criticava o futebol e o
rádio. Suas idéias ganhavam destaque e quase tudo que declarava gerava muita polêmica.
Idealizou a ―manossolfa‖: sistema de sinais feitos com as mãos para facilitar o ensino
do ritmo, notação musical e regência de corais, evitando, de início o ensino de notação
70
musical. Compôs então o que foi um destaque de seu projeto educacional, o Guia Prático uma
coleção de temas populares harmonizados ao piano, em 6 volumes e ampliado para 12
volumes.
O canto orfeônico era apresentado nas exortações cívicas, e ganharam enorme alcance
no governo Vargas, transformando-se em manifestações públicas de apoio e homenagem à
figura do presidente. Os espetáculos corais marcavam todos os feriados nacionais: Dia do
Trabalho, Independência do Brasil, Proclamação da República, Dia da Bandeira. Possuíam
dimensões gigantescas e eram apresentados geralmente em estádios de futebol.
Junto a este projeto, foram promovidos pela primeira vez os ―Concertos para a
Juventude‖ no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, conduzidos por Walter Burle-Marx
(1902), pianista, maestro e compositor, nos quais Villa-Lobos explicava as obras. Em 1933,
organizou a Orquestra Villa-Lobos, também com finalidades educativas, cívico-artísticas e
culturais. Em 1935, regeu três concertos sinfônicos no Teatro Cólon de Buenos Aires.
Em 1936, representa o Brasil em Praga no Congresso de Educação Musical Popular. E
em Viena, foi um dos jurados no Concurso de Canto e Piano, além de realizar conferências
sobre seu projeto educacional em Berlim, Paris e Barcelona.
De Berlim, envia carta à Lucília Guimarães, anunciando sua decisão de terminar o
casamento. De volta ao Brasil, passou a viver com Arminda Neves de Almeida (Mindinha), a
quem dedicou muitas obras, e que seria no futuro a fundadora do Museu Villa-Lobos. No
mesmo ano compõe o Ciclo Brasileiro para piano e iniciou a partitura do Descobrimento do
Brasil para o filme do mesmo nome produzido por Humberto Mauro (a pedido de Getúlio
Vargas). Nesse período da vida de Villa-Lobos, muitas obras de peso foram compostas, em
especial as Bachianas Brasileiras n.º 3, n.º 5 e n.º 6 e para violão os 5 Prelúdios (1940).
Causou muita polêmica quando Villa-Lobos encarregou-se de fazer os escolares
aprenderem corretamente o Hino Nacional Brasileiro, proibindo sua execução até que erros de
71
ritmo e entonação fossem corrigidos. Um decreto governamental foi assinado para a revisão
de Villa-Lobos no Hino em 31 de julho de 1942.
A partir de 1942 os entendimentos políticos entre Brasil e Estados Unidos, a chamada
―Política da Boa Vizinhança‖, estabelecem uma série de contatos entre artistas dos dois
países. O maestro Leopold Stokowsky realizou concertos no Rio de Janeiro e solicitou a
Villa-Lobos que selecionasse músicos populares brasileiros para a gravação de uma coleção
de discos, Brazilian Native Music, pela Columbia Records. Villa-Lobos convidou então
Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola, Jararaca e Ratinho, Zé Espinguela e muitos
outros. Além da gravação, realizaram apresentações para a missão norte-americana que se
encontrava no Brasil.
Com essa política cultural em vigor, Villa-Lobos realiza muitas viagens aos Estados
Unidos, onde várias obras suas são executadas e outras lhe são encomendadas. Nesta fase
consolida-se a consagração do compositor carioca. Além de Stokowsky, Serge Koussevitsky,
diretor da Orquestra de Boston, passa a incluir obras de Villa-Lobos em suas apresentações.
No Brasil, em 1945, Villa-Lobos fundou a Academia Brasileira de Música, da qual foi
o primeiro presidente, e cujos 50 primeiros membros ele mesmo designou.
Em 1947 viaja novamente aos Estados Unidos, acompanhado do pianista José Vieira
Brandão. Conduz orquestras em Roma, Lisboa e Paris. No começo de 1948, ficou poucos
meses em Paris, realizando concertos. No segundo semestre deste ano, submete-se a uma
cirurgia de emergência no Memorial Hospital de Nova York, para retirada de um tumor.
Alguns autores costumam colocar esse acontecimento como o fator de diminuição das
atividades do compositor.
Em 1949 realiza constantes viagens a França e Estados Unidos. Neste período, VillaLobos volta sempre para Paris, residindo no Hotel Bedford. Em 1951, escreve o Quarteto de
72
cordas n.º 13, a Sinfonia n.º 9 e o Concerto para violão e orquestra. Sobre este concerto,
Mariz afirmou: (1989: 143):
Em 1951, acedendo a insistentes pedidos de Andrés Segovia, decidiu escrever um
Concerto para violão e orquestra, em quatro movimentos. O grande guitarrista espanhol
estreou a obra a 6 de fevereiro de 1956, em Houston, Texas, acompanhado pela Sinfônica
local. A princípio Villa-Lobos pensou em fazer uma fantasia concertante, que afinal
desenvolveu em concerto, embora para pequena orquestra. O violão se arrisca a perder-se
entre a orquestra, nos dos primeiros movimentos, até que o autor lhe oferece uma longa
cadenza, onde o instrumento desenvolve belos e ricos comentários aos temas principais.
A obra tem grande efeito de gravação, mas deixa a desejar em sonoridade nas grandes
salas. É um trabalho nitidamente lírico e o único senão que se pode encontrar é a eventual
falta de intensidade.
Em 1952 aceitou uma encomenda do governo do estado de São Paulo para uma obra
comemorativa ao IV Centenário da capital paulista. Esta obra foi a sua Sinfonia n.º 10,
intitulada Sume Pater Patrium. Neste mesmo ano recebe medalha do ministro da educação da
França.
Villa-Lobos teve também uma experiência em Hollywood, em 1957; a Metro
Goldwyn Mayer o contrata para compor a trilha musical do filme Green Mansions (no Brasil,
o filme recebeu o nome de A Flor que Não Morreu, com os atores Anthony Perkins e Audrey
Hepburn), cuja música mais tarde ele intitulou Floresta do Amazonas.
Por ocasião de seu 70.º aniversário, foi tema do editorial do The New York Times. A
cidade de Nova York lhe oferece a medalha do município por ―Serviços Meritórios
Excepcionais‖. No Brasil, o ano de 1957 é instituído como o ―Ano Villa-Lobos‖ e em São
Paulo acontece a ―Semana Villa-Lobos‖ com concertos e conferências.
Em 1958 regeu a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de Janeiro, em primeira
audição, o Magnificat Alleluia, peça encomendada pelo Vaticano. Em Paris, recebeu o
―Grande Prêmio‖ do disco pela gravação das suítes Descobrimento do Brasil.
Em janeiro de 1959 foi jurado no Concurso Internacional de Violoncelo Pablo Casals
na cidade do México, viajando depois para Europa (Paris, Londres, Itália e Espanha) e
Estados Unidos, para outra série de concertos. Em julho retorna ao Rio de Janeiro para as
73
comemorações do 50.º aniversário do Teatro Municipal. Seu estado de saúde piora e a 12 de
julho, Villa-Lobos regeu seu último concerto, em Nova York. Com o agravamento de sua
doença, é forçado a internar-se no Hospital dos Estrangeiros, na cidade do Rio de Janeiro,
vindo a falecer em 17 de Novembro de 1959.
CRONOLOGIA
1887 - Heitor Villa-Lobos nasce a 5 de março, no Rio de Janeiro.
1899 - Morte de Raul Villa-Lobos. Compõe sua primeira peça, a pedido da mãe, Noêmia
Monteiro Villa-Lobos, uma cançoneta: Os sedutores.
1900 - Compõe A Panqueca, para violão.
1903 - Aos 16 anos, vai morar com sua tia, Fifina. Junta-se aos grupos de choro, tocando
violão em bares, festas e serenatas.
1904 - Compõe a Valsa de Concerto n.º 2 para violão.
1905 - Aos 18 anos, percorre o norte e nordeste brasileiros.
1907 - Estuda harmonia, contraponto, fuga e composição com Frederico Nascimento, Agnello
França e Francisco Braga. Viaja ao sul do país.
1908 - Em Paranaguá, realiza a primeira audição de uma peça sua. Viaja para o oeste
brasileiro - Mato Grosso e Goiás. Compõe as primeiras peças da Suíte Popular Brasileira
para violão.
1910 - É contratado como violoncelista de uma companhia de operetas que se dissolve em
Recife. Vai a Fortaleza, Belém, Amazonas e chega à ilha de Barbados.
1912 - No Rio, estuda o Cours de Composition Musicale de Vincent d'Indy. Trabalha em
cinemas, tocando violoncelo na projeção de filmes. Conhece a pianista Lucília Guimarães.
74
1913 - Casa-se com Lucília.
1915 - Realiza o primeiro concerto só de obras suas em teatro de Friburgo, estado do Rio de
Janeiro.
1917 - Conhece Darius Milhaud, compositor francês, secretário do Embaixador da França no
Brasil.
1918 - Conhece Arthur Rubinstein.
1919 - A Associação Wagneriana de Buenos Aires apresenta seu Quarteto de cordas n.º 2.
1920 - Escreve o Choros n.º 1 , para violão.
1922 - Participa da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.
1923 - Viaja para Paris. Compõe o Chorinho para violão (Suite Popular). Conhece Andrés
Segovia.
1924 – Em Paris, Villa-Lobos assiste à apresentação da Sagração da Primavera de Igor
Stravinsky, considerando esta como a maior emoção musical de sua vida. Inicia a composição
dos 12 Estudos.
1925 – Volta ao Brasil. Realiza série de concertos.
1927 - Volta a Paris. A Casa Max Eschig realiza a primeira edição de suas peças.
1929 – Finaliza os 12 Estudos para violão.
1930 - Villa-Lobos inicia em São Paulo seu plano de educação musical.
1931 - Realiza a Excursão Artística. Ocorre em São Paulo a primeira concentração orfeônica.
1932 - De volta ao Rio, é nomeado supervisor da educação musical no Brasil.
1933 - É criada a Orquestra Villa-Lobos.
1936 - Vai ao Congresso de Educação Musical Popular em Praga, e participa como jurado do
Concurso Internacional de Canto e Piano em Viena. Separa-se de Lucília Guimarães e passa a
viver com Arminda Neves d‘Almeida (Mindinha).
1940 - Compõe 5 Prelúdios para violão.
75
1942 - Ocorre seu primeiro contato com a política cultural norte-americana.
1943 - Recebe o título de Doutor ―Honoris Causa‖, pela Universidade de Nova York.
1944 - Viaja aos Estados Unidos para reger. O Occidental College de Los Angeles lhe outorga
o título Doutor em Leis Musicais.
1945 - Funda a Academia Brasileira de Música, da qual foi o primeiro presidente, e cujos 50
primeiros membros ele mesmo designou.
1946 - Recebe o prêmio de Música, concedido pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência
e Cultura.
1947 a 1949 - Viaja constantemente aos Estados Unidos e a França.
1951 - Compõe o Concerto para violão e orquestra, dedicado a Andrés Segovia.
1952 - Torna-se membro do Instituto da França, na vaga de Manuel de Falla.
1956 - No Brasil, é inocentado do processo de plágio que lhe movia o espólio de Catulo da
Paixão Cearense por sua utilização, no Choros n.º 10, da letra para o schottisch ―Yara‖, de
Anacleto de Medeiros.
1957 - É convidado pela Metro Goldwyn Mayer para compor a trilha musical do filme ―Green
Mansions‖. É tema do editorial do ―The New York Times‖ por ocasião de seu 70.º
aniversário. São Paulo promove a Semana Villa-Lobos e recebe o título de Cidadão
Paulistano.
1959 - Em julho, realiza seu último concerto em Nova York. Morre em seu apartamento no
dia 17 de novembro.
1960 – Mindinha funda o Museu Villa-Lobos, por decreto assinado pelo presidente da
República Juscelino Kubitscheck.
76
3.1. A OBRA PARA VIOLÃO DE HEITOR VILLA-LOBOS
A obra para violão de Heitor Villa-Lobos tornou-se uma das partes mais
representativas de sua produção musical. Ainda que este número de obras seja pequeno em
relação ao total de opus relacionados no Catálogo Oficial (mais de mil obras), foi a constância
de execuções em várias partes do mundo que fez o repertório para violão tornar-se um dos
maiores êxitos do compositor47. Estima-se que depois das Bachianas Brasileiras e da música
para piano a obra para violão seja o conjunto de peças mais gravado no mundo todo 48.
Percebe-se também a dimensão que o instrumento assumiu em sua produção pelo fato de a
maioria dos livros que tratam de analisar sua obra sempre dedicarem especial atenção à parte
violonística.
É interessante perceber como por intermédio das anotações das memórias de Lucília,
pode-se chegar ao pensamento corrente da época na qual ambos se conheceram, no que se
refere ao violão. O referido texto encontra-se no livro Villa-Lobos visto da platéia e na
intimidade, (Guimarães 1972), escrito pelos irmãos de Lucília. O livro quer demonstrar a
importância de Lucília Guimarães na carreira do marido por meio de relatos sobre os anos de
convivência das duas famílias. No capítulo intitulado Villa-Lobos e Lucília (p. 223), é
transcrito um trecho de suas anotações, onde ela escreve:
Foi no dia de Todos os Santos (1/11/1912) que recebemos a visita de Villa-Lobos. Trazido por
um amigo de meus Pais, Arthur Alves, o motivo era que iríamos ouvir um rapaz que tocava
muito bem violão.
Morávamos, então eu, Minha mãe e seis irmãos, n‘uma vila, na rua Haddock Lobo (Vila Ítala)
hoje rua Domicio da Gama.
Havia terminado meu curso de piano no Instituto Nacional de Música (hoje Escola Nacional
de Música) e lecionava piano no Colégio Sacré-Coeur, assim como também tinha algumas
alunas particulares, de piano e de solfejo.
A noitada de música correu muito bem, extremamente agradável, e, para nós, foi um sucesso o
violão nas mãos de Villa-Lobos.
Terminando sua exibição, Villa-Lobos manifestou desejo de ouvir a pianista, e toquei, a
seguir, alguns números de Chopin, cuja execução me pareceu ter impressionado bem, na
técnica, e na interpretação.
Villa-Lobos, porém, se sentiu constrangido; talvez mesmo inferiorizado, pois naquela época o
violão não era instrumento de salão, de música de verdade, e sem instrumento vulgar, de
chorões e seresteiros. Subitamente, vencendo como que uma depressão, declarou que o seu
verdadeiro instrumento era o violoncelo, e que fazia questão de combinar uma reunião, em
nossa casa, para se fazer ouvir em seu violoncelo.
1
Autores como Vasco Mariz, Gerard Béhague e Eeros Tarasti compartilham a idéia do grau de importância
atribuído ao violão na obra de Villa-Lobos.
2
Mariz (1989:221) afirma os seguintes dados sobre o número de gravações: piano em 1.º, com 160 registros,
violão em 2.º lugar , 120, Bachianas Brasileiras, 115 (dados de 1989). O CD-Rom Vida e Obra de Heitor VillaLobos, da LN Comunicações, de 1997, também confirma os números.
77
Um contraponto a este relato é o testemunho do pianista e maestro Alceo Bocchino,
que está no CD Repertório Rádio MEC n.º 2, só sobre Heitor Villa-Lobos, que traz entre
outras obras o Trio n.º1 em Dó menor:
...Villa-Lobos convidou o violinista Célio Nogueira para formar um trio
comigo e com Iberê (Gomes Grosso). Após os primeiros ensaios
particulares, Villa-Lobos quis ouvir o seu Trio. Fomos à sua casa. Eu estava
preocupado porque existem, nesse Trio, algumas passagens pianísticas
complicadas. Complicadas até se descobrir o segredo delas, o jeito de sua
realização. Eu havia resolvido os problemas, mas continuava apreensivo, ao
mesmo tempo me perguntando por que Villa-Lobos escrevera –
principalmente certa escala ascendente em velocidade – daquela maneira!?
Comentando com ele esse momento da obra, aliás de grande brilho e efeito,
respondeu-me sorrindo:
- Ora, em 1911 eu não conhecia muito bem o piano!...Baseava-me, apenas,
no violão.
- Mas o senhor foi fazer logo um Trio, que é como um concerto de piano
acompanhado de violino e violoncelo?
- E o que você acha disso?
- Bom, acho que o senhor realizou o impossível, finalizei, e
maravilhosamente bem!
No Brasil, teses sobre a obra de Villa-Lobos para violão foram realizadas por Eduardo
Meirinhos no Departamento de Música da escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, e por Krishna Salinas no Departamento de Música da Universidade Federal da
Bahia. Quanto a livros, há o do violonista, professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e diretor do Museu Villa-Lobos, Turíbio Santos, intitulado Heitor Villa-Lobos e o
violão de 1975, editado pelo próprio Museu, e o do violonista Marco Pereira, Villa-Lobos, sua
obra para violão, de 1984. No exterior, é de nosso conhecimento a dissertação de Mestrado
do brasileiro Fábio Zanon para a Royal Academy de Londres.
O importante trabalho composicional para o violão de Villa-Lobos atinge um ponto
em que suas obras para este instrumento se tornaram parte do currículo de escolas e
universidades de Música em várias partes do mundo. Norton Dudeque (1994:104) chega a
afirmar que: ―a música brasileira para violão tem se desenvolvido, praticamente, à sombra da
excepcional, embora pequena, obra de Villa-Lobos, que continua sendo a mais conhecida nos
meios violonísticos nacionais e internacionais‖.
O musicólogo Gerard Béhague (1994: 135-138) conclui que Villa-Lobos contribuiu
com o mais substancial conjunto de peças para violão do século XX e que os Estudos fazem
78
parte do repertório de todo profissional não somente pela riqueza técnica, mas também pelo
diverso e requintado tratamento à capacidade tímbrica e à textura do instrumento, o que
requer alto nível de virtuosidade, entendimento intelectual e sensibilidade de interpretação,
ultrapassando as linguagens clássica e romântica às quais o violão ainda pertencia. Já os
Prelúdios estariam mais ligados ao credo nacionalista de Villa-Lobos.
Vasco Mariz é o autor brasileiro que possui o maior número de livros editado sobre a
biografia de Villa-Lobos; seu livro Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, escrito em
1949, está na 11.ª edição e tem traduções em Castelhano, Francês, Inglês, Italiano e Russo.
Segundo afirma (1989:164), o violão no contexto da obra villalobiana tomou proporções de
grande significância:
Parece-me indispensável uma referência à parte e muito especial às
composições para violão de Heitor Villa-Lobos, que gozam de grande
popularidade no Brasil e no exterior. Sem ser um violonista concertista, o
compositor tinha muita prática e muito gosto no manuseio do violão,
herdados provavelmente do tempo de sua convivência com os chorões.
(...) À medida em que os anos passam, observa-se que a obra para violão de
Villa-Lobos é, talvez, o setor de sua numerosa criação artística que maior
vitalidade internacional parece conservar.
Outro autor muito conhecido é Adhemar Nóbrega, que fez análises sobre a série dos
Choros e das Bachianas. Nóbrega realça (1973:27) o desempenho que os dois instrumentos –
violão e violoncelo – tiveram nas duas grandes séries: ―O instrumentista Villa-Lobos projetou
o compositor no início de dois ciclos de marcante significação em sua obra: o violoncelista
levando-o a destinar a uma orquestra de celos (sic) a primeira das Bachianas e o violonista
seresteiro consagrando ao violão o Choros N.º 1‖.
Uma opinião sobre o instrumento na carreira de Villa-Lobos nos dá o violonista e
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Turíbio Santos49:
Heitor Villa-Lobos, durante toda sua vida, fez do violão seu caderno de
anotações musicais. Este registro começou na juventude, no momento em
que o discípulo do próprio pai decidiu, percorrendo musicalmente as ruas do
Rio de Janeiro, subverter sua formação tipicamente européia. Se com a
influência paterna Villa-Lobos conheceu o que se costumava chamar a
‗grande música‘, nas ruas de sua cidade ele fez contato direto com a nascente
cultura musical brasileira. A música negra estava ainda restrita às classes
mais baixas pelo preconceito de uma sociedade que planejava um futuro
branco para si mesma. Mas as primeiras portas começavam a se abrir para a
influência africana, principalmente através do choro.
3
In Revista do Brasil, Rio de Janeiro, RioArte, Fundação Rio, ano 4, n.o 1, p. 97.
79
Em outra análise, Santos (1977:5-6) reafirma a importância do instrumento:
O violão foi seu grande arquivo musical. Desnecessários apontamentos se o
instrumento estivesse por perto. Nele se registraram as primeiras impressões
de Bach, o Cravo Bem Temperado do piano da tia Zizinha, as rodas de choro
do Rio de Janeiro, as melodias recolhidas através de todo o Brasil, e a
própria literatura clássica do violão.
(...) O violão seria ponto de referência a partir dai. Sua presença na obra de
Heitor Villa-Lobos era também a das Rodas de Choro, dos personagens que
compunham esse ambiente musical peculiar do Rio de Janeiro, das melodias,
harmonias e ritmos da música popular instrumental.
O violonista espanhol Andrés Segovia, a quem Villa-Lobos dedicou os 12 Estudos e o
Concerto, relata seu encontro com o compositor em Paris (Santos 1977:12). Na ocasião,
Villa-Lobos, já sem a prática constante do instrumento, cometeu diversos deslizes na
execução de suas próprias peças, mas ainda assim Segovia reconheceu o valor do músico na
figura do compositor:
(...) os poucos compassos que tocou foram suficientes para revelar, primeiro,
que aquele mau intérprete era um grande músico, pois os acordes que
conseguiu produzir encerravam fascinantes dissonâncias, os fragmentos
melódicos possuíam originalidade, os ritmos eram novos e incisivos e até a
dedilhação era engenhosa; segundo, que ele era um verdadeiro amante do
violão. No calor desse sentimento, nasceu entre nós uma sólida amizade.
Hoje o mundo da música reconhece que a contribuição desse gênio para o
repertório violonístico constituiu uma bênção tanto para o instrumento como
para mim.
Pelo catálogo do Museu Villa-Lobos, as partituras editadas para violão solo perfazem um
número de 23 peças:
Suíte Popular Brasileira – 1908-1912 composta de:
I. Mazurka-chôro,
II. Schottisch-chôro,
III. Valsa-chôro,
IV. Gavota-chôro,
V. Chorinho (Paris, 1923).
Choros n.º 1 - 1920
12 Estudos - Paris, 1924-1929
5 Prelúdios - 1940
80
Em música de câmara há o inusitado Sexteto Místico (1917) original para flauta, oboé,
sax alto, harpa, violoncelo e violão, e a Distribuição de Flores (1937) original para coro e
transcrito para violão e flauta. As transcrições mais conhecidas do autor são: Ária das
Bachianas Brasileiras N.º 5 (1938), Modinha (1926), Canção do Amor (1958) e outras - a
maioria foi encomendada pela violonista Olga Praguer Coelho. Há também o concerto para
violão e orquestra (1951), encomendado pelo violonista espanhol Andrés Segovia.
Ainda há mais de dez obras originais para violão solo cujas partituras não foram
localizadas. Estas obras variam entre os anos de 1900 a 1911, incluindo aí a Panqueca (1900).
Mariz (1989:164) declara: ―(...) não esqueçamos que as primeiras obras de Villa-Lobos foram
para violão solo; a Panqueca e a Mazurca em ré maior, de 1900 e 1901, respectivamente,
embora Herminio Bello de Carvalho situe a segunda em 1899, o que lhe daria a primazia na
cronologia da obra inteira do mestre‖.
Das partituras não localizadas, uma das mais importantes seria o Prelúdio n.º 6, o qual
possui o comentário, não comprovado, de que teria se perdido durante a Guerra Civil
Espanhola na casa de Andrés Segovia. Recentemente, uma outra obra foi localizada; o
manuscrito da Valsa Concerto n.º 2, também chamada Valsa Brilhante, foi encontrado em
1996 pelo pianista, compositor e pesquisador Amaral Vieira. Um livreiro carioca ligou para
Vieira dizendo que havia encontrado este manuscrito assim como fotografias, muitas delas
inéditas, de Heitor Villa-Lobos. Tanto as fotos quanto a Valsa foram apresentadas no MIS
(Museu da Imagem e do Som, em São Paulo) em um concerto do violonista Ricardo Simões,
que também a gravou pelo selo Paulus. Esta valsa consta do catálogo de obras de Villa-Lobos
onde se lê: ―manuscrita, extraviada‖ . A Valsa Concerto n.º 2 foi escrita em 1904 quando
Villa-Lobos tinha 17 anos.
A descoberta da peça obteve cobertura da grande Imprensa, embora no meio
violonístico tenha sido pouco considerada na ocasião. A ausência de alguns compassos e a
falta de finalização da peça que, via de regra, impossibilitariam a apresentação da obra, ou
seja, esta aparência de ―rascunho‖ da Valsa, podem ser uma explicação para o fato de os
violonistas não terem considerado tanto a descoberta nem incluído a peça no repertório. O
violonista Ricardo Simões optou por escrever cerca de 15 compassos para dar um final à obra.
Já Turíbio Santos decidiu gravar a peça exatamente como foi encontrada no manuscrito,
apenas realizando um retorno à primeira parte à guisa de final.
As obras para violão de Heitor Villa-lobos acompanharam seus diferentes períodos de
estilo composicional. Na primeira fase, a Suíte Popular Brasileira é proveniente de uma
época de início de carreira e forte ligação com os elementos da música popular urbana de
81
então, polcas e valsas especialmente. A fase seguinte, já em Paris e balizado pela Semana de
Arte Moderna de 22, Villa-Lobos está ligado às formas composicionais mais modernas,
surgindo daí os 12 Estudos; um material que rompe com a linguagem violonística ligada à
tradição da era clássica. Seu período seguinte, de volta ao Brasil e envolvimento com o
governo de Getúlio Vargas, é a fase do Canto Orfeônico, das Bachianas Brasileiras e no
violão surgem as transcrições e os Prelúdios. Já nos anos 50, consagrado internacionalmente,
em um tempo em que não se fixou em lugar algum, realizando turnês entre Europa e Estados
Unidos, Villa-Lobos compôs o Concerto para violão e orquestra.
O presente trabalho está delimitado às obras para violão solo do repertório do
compositor, por isso neste estudo não iremos considerar as transcrições, a música de câmara e
o Concerto.
Sobre a Suíte Popular Brasileira, pode-se afirmar que é um conjunto de cinco peças
da chamada ―primeira fase‖50 do autor, no qual seu envolvimento com a música popular era
muito grande. É de conhecimento geral sua atuação em rodas de choro da cidade do Rio de
Janeiro51 e a suíte demonstra bem o caráter popular que reflete o momento histórico entre
1908 e 1912, datas atribuídas às peças.
Segundo Marco Pereira (Pereira: 1984: 87), sobre a Suíte Popular Brasileira:
As peças são todas muito simples; nenhuma inovação especialmente
importante, tanto ao nível da realização puramente técnica quanto ao nível
do desenvolvimento musical. (...) As pulsações rítmicas da Gavota, Valsa,
Schottish e Mazurka, na Suíte Popular Brasileira, são espelhos do caráter ora
nostálgico, ora gracioso, da música popular instrumental da época.
Evidentemente, estas peças já apresentam elementos musicais mais ricos em
relação àqueles utilizados pelos compositores populares mas, em sua essência, nada é diferente.
Já Turíbio Santos (1977:52,8)afirma que Villa-Lobos não estava contente com o termo
―suíte‖:
Villa-Lobos disse-me, que a denominação de Suíte a essas cinco obras
foi dada à sua revelia. E que não tolerava isso. ―Era suíte coisa alguma‖. Agora,
4
A primeira fase é identificada pela maioria dos autores estudados (Mariz, Béhague, Souza Lima, Tarasti) como
sendo a época de suas primeiras obras, incluindo as viagens ao Sul, Norte e Nordeste do Brasil. A segunda fase
se inicia com sua primeira viagem a Paris – 1923.
5
A informação de que Villa-Lobos ter freqüentado as rodas de choro consta em praticamente todos os livros
biográficos e em depoimentos do próprio Villa-Lobos.
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através de Mindinha52, sei que foi o próprio Maestro quem pôs essa denominação.
Contradições enfim, que fazem história e que ajudam a colocar de cabelos brancos os
pesquisadores da música, muito sujeitos a essa engrenagem complicada, que são os
compositores.
(...) Villa-Lobos não gostava do título dessa obra, dado mais por razões de
edição que propriamente por uma intenção elaborada. O Chorinho, porque
termina a Suíte, foi composto bem mais tarde, em 1923 em Paris.
Em todo caso, essa coleção de músicas corresponde ao retrato musical do
Rio de Janeiro no começo do século. Os títulos são sugestivos: MazurkaChoro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro, Gavotta-Choro e Chorinho. Aí, já
estava o embrião dos Estudos e Prelúdios, mas é interessante notar que em
nenhuma delas, (exceto o Chorinho) a região grave do instrumento tem papel
preponderante, como sucederá a partir dos Doze Estudos, compostos em
1929.
De fato o Chorinho, composto então em 1923, por ocasião da primeira estada de VillaLobos em Paris, é uma peça que, apesar de estar junto às outras da Suíte, possui outras
características que não as da música popular pura e simplesmente como apontado pelos dois
autores anteriores. No Chorinho já se nota uma harmonia mais elaborada e mudanças
rítmicas complexas.
Outro aspecto que demonstra a importância dada pelo compositor ao instrumento
foi a inclusão do violão na série denominada Choros – apontada pelos biógrafos e
musicólogos como uma das mais importantes realizações de Villa-Lobos. Trata-se de 14
Choros, os quais diferentes agrupações musicais são elencados, desde o violão ou piano
solo passando por coro e orquestra.
Os Choros n.º 1 que inicia a grande série é uma peça solo de violão, funcionando
como um ponto de partida para as demais formações instrumentais que virão em seqüência.
Segundo Béhague (1994:156), a série Choros, em especial, representa o primeiro grande
passo em direção não somente à incorporação da inspiração nativa, mas também à
assimilação de muitas técnicas composicionais contemporâneas européias. Conclui
Béhague que para executar a série, Villa-Lobos começou com a expressão simplista do
gênero urbano (Choros No. 1) e construiu gradualmente formas e expressões mais
complexas em uma amálgama de batidas e peças de música tradicional nativa e Afrobrasileira, canções de roda, e outros gêneros de música de dança popular urbana,
6
Mindinha era o apelido de Arminda Neves D‘Almeida, segunda mulher de Villa-Lobos, que foi a fundadora e
primeira diretora do Museu Villa-Lobos. Turíbio Santos e Mindinha Villa-Lobos tiveram uma longa
convivência.
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freqüentemente em uma atmosfera de acontecimento carnavalesco, e tudo com um
vocabulário técnico decididamente modernista.
Dentro da atividade musical, as obras direcionadas à formação técnica de um
instrumentista, os chamados ―estudos‖, são de grande importância. No violão, há diversos
compositores que dedicaram estudos para capacitar o violonista, em especial italianos e
espanhóis, autores de vários tratados musicais, destacando-se Ferdinando Carulli (1770-1841)
Mauro Giuliani (1781-1829), Matteo Carcassi (1792—1853), Fernando Sor (1778-1839),
Dionísio Aguado (1784-1849) e mais tarde Francisco Tárrega (1852-1909)53.
É de consenso geral que os 12 Estudos de Heitor Villa-Lobos revolucionaram a
história do violão – são o grande legado do compositor às gerações futuras de violonistas; os
Estudos se tornaram uma obra standard a todo violonista.
Análises sobre os Estudos voltaram à tona recentemente devido à divulgação pelo
Museu Villa-Lobos de novos manuscritos do compositor, nos quais surgem diferenças da
versão publicada pela editora francesa Max Eschig. Acontece que a versão publicada foi
baseada em originais, mas ainda havia uma outra versão do compositor (em posse do Museu),
com algumas partes que são até muito diferentes da versão editada. Sabe-se, além disso, que
há um terceiro material, pertencente ao violonista e professor uruguaio Abel Carlevaro (19182001). Carlevaro manteve contato direto com Villa-Lobos, foi ele inclusive quem estreou os 5
Prelúdios.
Os estudos de Villa-Lobos para violão são comparados muitas vezes aos de Chopin.
Os aspectos revolucionários podem ser sentidos pelo fato de que pela primeira vez o violão é
explorado em sua dimensão física e ainda resultou em um material musical de grande
expressão. Uma enorme gama de possibilidades técnicas foram trabalhadas e no resultado
sonoro da partitura, pode-se depreender tanto Bach quanto Aguado54, sem esquecer de
melodias brasileiras.
Segundo Tarasti (1994: 241), os estudos têm como seus inegáveis paradigmas as
entonações da música popular do Rio, mas carregam em si a referência das séries de estudos
comuns à literatura musical do Ocidente (Bach, Chopin, Paganini, Liszt, Debussy).
Os 5 Prelúdios estão entre as peças mais conhecidas do autor. Em sua origem o
termo ―prelúdio‖ denota a introdução de uma obra musical ou a primeira peça que abre uma
seqüência. No caso dos 5 Prelúdios para violão de Villa-Lobos, as peças são muitas vezes
apresentadas como um conjunto só. Embora os prelúdios tenham sido todos dedicados à
7
Em 1992 realizei junto com a violonista Rosimary Parra Gomes um trabalho monográfico de iniciação à
pesquisa sobre o tema, intitulado O Desenvolvimento das Escolas Violonísticas de 1750 a 1850.
8
Dionísio Aguado (1784.-1849) nascido na Espanha. Um dos pilares do violão no período clássico.
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Arminda Villa-Lobos, cada prelúdio recebeu um título dado pelo próprio autor, em
homenagens e reverências:
1 – Melodia Lírica - Homenagem ao sertanejo brasileiro.
2 – Melodia Capadócia – Melodia Capoeira – Homenagem ao Malandro Carioca.
3 – Homenagem a Bach.
4 – Homenagem ao Índio Brasileiro.
5 – Homenagem à Vida Social – Aos rapazinhos e mocinhas fresquinhos que freqüentam os
concertos e os teatros do Rio.
Turíbio Santos (1977:33) assim se pronunciou sobre os Prelúdios: ―As Baladas de
Chopin são o piano. Os Prelúdios de Villa-Lobos são o violão‖.
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87
CAPÍTULO 4. Biografia de Leo Brouwer.
Juan Leovigildo Brouwer Mezquida nasceu em 1.º de março de 1939 em Havana. Seu
pai era de origem holandesa, médico oncologista, aficionado por violão. A mãe de Brouwer
morreu pouco antes de ele completar 12 anos. Ernesto Lecuona, o compositor de muitas
músicas de sucesso, entre as quais Granada, era seu tio-avô, mas Brouwer não teve quase
nenhuma convivência com ele. Uma influência maior teve mesmo sua mãe, que era musicista
(Brouwer 1989:110):
Mi madre si tuvo mas influencia – indirectamente, porque ella murió cuando yo tenía diez
o once años – pues integró aquellas orquesta femeninas de los Aires Libres, como la
Anacaona; tocaba la flauta, el clarinete, el piano, el saxofón, la batería, cantaba, fue
solista de Lecuona y así conoció a mi padre; fue alumna de Ondina, de Junco, y su
influencia fue muy importante para mi.
Brouwer passou a viver com a tia materna Caridad Mezquida e começou a tocar violão
aos 13 anos. Interessou-se pelo instrumento em uma das visitas à casa de seu pai, um amador
do violão que nunca havia lido notação musical, apesar de sua família ser de músicos
conhecidos (os Lecuona). Com Caridad, também aos 13 anos, ele inicia os estudos teóricos.
Hernandez (2000:9) afirma que o pai de Brouwer tocava de ouvido, principalmente
Granados, Tárrega, Albeniz, canções de César Portillo de la Luz, flamenco, os Choros n.º 1
de Villa-Lobos. Brouwer diz que ele tocava tudo de ouvido e sem uma nota errada. Em
poucos dias ele já tocava farrucas e tanguillos. O entusiasmo pelo flamenco veio já daí. Em
quatro ou cinco meses depois, tocava de ouvido também peças de concerto.
Pouco tempo depois, Brouwer foi encaminhado para ter aulas com Isaac Nicola, o
grande nome do violão clássico de Cuba. Por diversas vezes a importância desse encontro é
relembrada (Brouwer 1989:109):
Yo tenía doce o trece anos y estaba enamorado del flamenco, tocado como lo hacían
Sabicas o Montoya, y una tarde Nicola me tocó la música del renacimiento, de los siglos
XVIII e XIX, y supe entonces de mundos extraordinarios que me llegaron
profundamente. En esto, por supuesto, decidió la sensibilidad y no la cultura, porque yo
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era totalmente acrítico en cuestiones culturales. Eso es lo fundamental cuando pienso en
Nicola.
Ainda sobre Nicola, Brouwer esclarece a escolha pelo violão:
(...)Yo no escogí la guitarra; la guitarra me escogió a mí. En La Habana de mi
adolescencia, además del ejemplo de mi padre, que en su proyección bohemia guitarreaba
muy bien, el instrumento se me facilitaba por su presencia constante en la cultura popular
y lo accesible que resultaba para quienes no podíamos soñar con los recursos de que
disponían las élites para su iniciación musical. El flamenco me tenía loco y yo quería ser
un tocador de flamenco, pero con Isaac Nicola se me amplió el horizonte y descubrí un
universo insospechado entre las seis cuerdas (...) El maestro y amigo (...) no sólo nos puso
frente a una tradición, la española, y ante el modo en que ésta se fundía con nuestra
identidad.
(...) Pero lo cierto es que Nicola fue más allá de concebir un método y transmitir
enseñanzas académicas. Su gran mérito radica en habernos incitado a entender la guitarra
como una aventura intelectual, en hacernos saber que ese instrumento era tan respetable
como el que más, en que la aparente humildad de la guitarra escondía una nobleza
indescriptible e infinita. (Hoz 1999)
Orozco (1999:4) afirma que Brouwer teve como nutrientes de seu panorama sonoro a
música popular de seu entorno, a prática musical da mãe e a afinidade violonística do pai.
Além do interesse pelo violão flamenco, Orozco afirma que Brouwer esteve sempre muito
interessado nos rituais e toques de origem afro-cubana.
Brouwer graduou-se no Conservatório de Peyrellade em 1955, enquanto estudava
violão com Nicola. Hernández (2000:13-14) tem dados mais específicos sobre essa ocasião:
Brouwer tocou para a banca examinadora obras de Fernando Sor, Isaac Albeniz, Villa-Lobos,
que não se tocava muito. Poucos meses depois, fez seu debut em 22 de julho 1955 no Lyceum
Lawn Tennis Club tocando o mesmo que na prova: Milan, Sor, Handel, Bach, Tárrega,
Granados, Pujol, Albeniz, Ponce, Buffaletti, Torroba e Villa-Lobos (um estudo).
Como observa Orozco (1999:4), seu aprendizado e período de formação como
violonista durou três ou quatro anos somente, quase paralelos às suas primeiras composições
violonísticas e de câmara. Hernández (2000:12) comprova que os primeiros trabalhos de
Brouwer já datam de 1954, eram arranjos somente, até que Nicola sugeriu que ele compusesse
algo. Ele então fez exercícios de composição e estudos simples com influência de Sor,
89
Tárrega, Carcassi e Aguado (os baluartes da escola clássica de violão), além de alguns
prelúdios. A Fuga n.º 1 já vem daí, assim como as Piezas sin titulo entre 1954 e 1955.
Alguns autores, como Century (1987:162) e Wistuba (1991:30), apontam o estudo da
pintura, anterior ao da música, em especial a pintura de Paul Klee e alguns aspectos da
estética da escola de Bauhaus como um outro interesse do jovem Brouwer. Certos traços do
trabalho visual de Klee e das partituras de Brouwer já foram comparados esporadicamente por
estes dois autores.
Após seu debut, segue-se uma série de recitais em sociedades culturais. Brouwer
também iniciou um trabalho em duo com o amigo e violonista Jesus Ortega. Segundo
Hernandez (2000:25), desde muito cedo, com menos de 18 anos, Brouwer freqüentava
círculos de debates e palestras em Havana, nos quais se discutiam temas como cinema, artes
plásticas e música. A Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, em Havana, o Cine Club Visión,
também em Havana, e a Galeria de Artes Plásticas de Santiago de Cuba eram três instituições
importantes antes da Revolução, todas as três ligadas ao Partido Socialista Popular e
divulgadoras do que havia de mais moderno na cultura e já as idéias revolucionárias. Na
Nuestro Tiempo e no Cine Club Visión – Brouwer participou ativamente, tocando, assistindo
ou realizando palestras.
O Cine Club Visión foi responsável pela realização do primeiro evento no mundo a
levar o nome de Villa-Lobos: em 12 de dezembro de 1956 aconteceu o ―Festival VillaLobos‖, com uma palestra de José del Campos Valdés intitulada “Villa-Lobos, cantor de un
pueblo”. Depois da palestra, Leo Brouwer tocou quatro Estudos de Villa-Lobos e Jesus
Ortega tocou dois Prelúdios e os Choros n.º 1. Brouwer estava com 17 anos e Ortega, 21.
Após a Revolução Cubana de 1959, uma equipe de educadores reformulou a
educação: o sistema de ensino foi unificado em todo o país e os conservatórios privados foram
assimilados pelo novo governo. Leo Brouwer colaborou na elaboração do currículo no ensino
90
de violão em Cuba. Como já era um destaque na música cubana, ele foi indicado a receber
uma bolsa de estudos. Embarcou a 14 de outubro de 1959 para Nova York, para estudar na
Julliard School of Music onde teve aulas de composição principalmente com Vincent
Persichetti. Na Universidade de Hartford, em Connecticut, Leonard Rose ofereceu a Brouwer
dar aulas de violão em troca de estudos com Isador Freed. Ficou nos Estados Unidos durante
quase um ano, e teve chance de permanecer, pois já tinha uma posição de professor dentro de
uma grande universidade. A 24 de julho de 1960, Brouwer volta a Havana, devido ao
agravamento das relações diplomáticas entre os dois países.
Segundo Brouwer, sua ida para os Estados Unidos serviu mais para ele entrar em
contato com o grande acervo de livros, partituras e gravações das quais fez um estudo
rigoroso. Apesar das aulas que teve, continuou se considerando um autodidata e não houve
substancialmente qualquer influência perceptível dessa estada norte-americana em sua obra.
No curto período nos Estados Unidos, Brouwer teve alguns alunos particulares, e compôs a
primeira série dos Estudios Sencillos, fruto de uma preocupação com os aprendizes do
instrumento.
Century (1987:152-153) afirma que o trabalho composicional que Brouwer começou a
empreender foi essencialmente autodidata, desenvolvendo uma disciplina composicional,
escrevendo para muitos outros instrumentos, além do violão. As primeiras obras foram feitas,
segundo o próprio Brouwer (Century 1987:153, Gordon 1986), para suprir uma lacuna do
repertório, já que o jovem instrumentista gostaria de tocar no violão obras similares às de
Bartók, Debussy e Stravinsky. Century constata que desde as primeiras peças, havia uma
tendência à musica contemporânea. Sua primeira peça orquestral, as Tres Danzas
Concertantes (1957) para violão e orquestra, representa um importante passo em direção à
música do século XX.
91
Imediatamente após sua volta a Havana, devido à crise política entre Estados Unidos e
Cuba, Brouwer começa a dar aulas de Harmonia e Contraponto no Conservatório Amadeo
Roldán. Inicia também um trabalho junto ao ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Indústria
Cinematográfica55. Também realiza uma turnê pelo país todo.
Nesta fase, envolve-se com a chamada vanguarda européia, em especial os países do
Leste Europeu, com o qual Cuba começa a se ligar mais devido à opção ideológica. O Centro
Nacional de Cultura envia Brouwer para representar Cuba no V Festival de Música
Contemporânea Outono em Varsóvia, em 1961. Lá Brouwer assistiu a muitas palestras e a
que mais impacto lhe causou, segundo informa Hernández (2000:60) foi sobre meios digitais
na música eletrônica e concreta, oferecida por um membro da Faculdade de Música da
Universidade de Colômbia, Nova York, além das estréias de Trenody em homenagem as
vítimas de Hiroshima de Krzysztof Penderecki, Zyklus para percussionista de Stockhausen,
técnicas modernas de vários instrumentos como percussão, flauta (Severino Gazzelloni) e
piano com o duo Kontarki da Polônia, além de obras de Cage, Maderna, Berio, Bussoti,
Matsudaira, Varése, Boulez, Gorecki, Kilar. Brouwer afirma (1989: 22-27) que quatro anos
antes de ir a Varsóvia havia ouvido gravações de Stockhausen, Boulez e Feldman que
causaram impacto a ele e a já outros colegas.
Diz também Hernández que sua ida ao Festival contribuiu para o intercâmbio entre
Cuba e Polônia. Brouwer afirma (McKenna 1989) que na volta a Cuba ele trouxe uma série de
partituras de compositores do evento - Penderecki, Tadeusz Baird e Bussotti – e, neste
sentido, o contexto cubano, do qual Brouwer começa a emergir como uma liderança,
aproxima-se muito da chamada escola polonesa, a qual apesar de integrar o bloco socialista
1
Para o cinema cubano, Brouwer comporia mais de uma centena de trilhas sonoras. Receberam destaque Hanói,
Martes 13 (1967), Memórias Del Subdesarrollo e Lucia (1968). Um filme premiado em Veneza foi: La primera
carga al machete de 1969, comparado a Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber, por causa do uso do
trovador que narra a história. No filme cubano, o trovador é Pablo Milanés.
92
diferenciou-se por uma liberdade baseada na sua tradição cultural e forte catolicismo. É
pertinente mencionar que, em agosto de 1961, o Primeiro Encontro Nacional de Artistas e
Escritores define como prioridades: a alfabetização, a valorização das tradições nacionais e a
criação da UNEAC – União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba.
Nessa ocasião, Brouwer realiza masterclasses no exterior, escreve um pequeno
compêndio de Harmonia Contemporânea, além de dar assessoria musical à Rádio La Habana.
Acosta (1989) relata que Brouwer também teve experiência na área popular por anos de
trabalho no Teatro Musical de La Habana. Segundo Century (1987:157), Brouwer inspirou
uma nova geração de estudantes cubanos de música no pós-revolução.
Nesta época, Brouwer trabalha com Juan Blanco (1920-), um importante compositor
cubano de uma geração anterior a de Brouwer, que iniciou o emprego de técnicas
contemporâneas em suas composições. Blanco obteve estas técnicas por meio do contato
direto com a criação internacional em festivais e intercâmbios com a Europa, em especial a
escola polonesa. Segundo Cantero (1990), Blanco, em uma terceira fase de seu processo
composicional, esteve à frente do movimento da vanguarda cubana da década de 60 por uma
necessidade de ruptura com uma linguagem e desejo de criar outra.
Ocorre então uma associação entre Blanco, Brouwer e Manuel Duchesne Cuzán,
regente da Orquestra Sinfônica Nacional de Cuba, que decidem empreender um programa de
obras de vanguarda, compondo e estreando o material inovador. Mas, segundo Cantero e
Hernández (2000:90), os artistas tiveram de enfrentar incompreensões quanto à estética das
obras compostas. As obras de Blanco, Brouwer e Carlos Fariñas foram as primeiras a
expressar um afã de renovação da vanguarda musical. Segundo Wistuba (1991), com a peça
Sonograma I de 1963 para piano preparado, Brouwer se destaca na chamada Vanguarda
Cubana, ao lado de Juan Blanco, Carlos Farinãs e Roberto Valera. Variantes para un
93
percusionista (1962) é também um marco da obra da vanguarda internacional, sendo a
primeira obra de música aleatória escrita em Cuba.
Ao mesmo tempo, Brouwer não se esquiva da área popular e em 1963 realiza um
trabalho paralelo ao atuar com Chucho Valdés, Paquito D‘Rivera e grupo Irakere no Teatro
Municipal de Havana. A pedido de Luis Trápaga, compõe um balé, Elogio de la Danza
(1964), talvez a sua obra mais executada e gravada.
Em 1964 Brouwer chefia a Divisão de Música do ICAIC e no mesmo ano ocorre a
primeira audição de música concreta e eletroacústica com obras de Blanco, Fariñas e
Brouwer, sob regência de Duchesne, à frente da Sinfônica Nacional. Este é também o ano do
embargo das nações, liderado pelos Estados Unidos, às atividades econômicas com Cuba.
Durante todo esse tempo, Brouwer não deixou de se apresentar como intérprete ao
violão, em muitos teatros de Cuba e alguns do Leste-europeu. Um evento em especial,
aconteceu em 1964, no Palácio de Bellas Artes, em 7 de setembro, com um programa
dedicado integralmente à música de Villa-Lobos. Nesta ocasião se celebrou a Festa Nacional
Brasileira, como parte da Jornada por la solidaridad Brasil-Cuba. Brouwer interpretou os
Choros, alguns Prelúdios e Estudos.
Juan Blanco, a partir de 1968, introduziu a música de vanguarda no cotidiano do
homem cubano – hospitais, pavilhões de exposições, cinema. Leo Brouwer, próximo a ele,
dizia que essas ações expressavam ―a participação constante do criador nas tarefas sociais‖
(Cantero 1990).
Ao criar-se o GES, Grupo de Experimentación Sonora, do ICAIC, Leo Brouwer
realiza um importante trabalho docente que frutificaria no movimento musical da Nueva
Trova Cubana - Silvio Rodriguez e Pablo Milanés são os dois nomes mais lembrados deste
grupo.
94
Sobre este importante período da produção de Brouwer, Leonardo Acosta (1989), um
dos participantes do grupo, afirmou que o GES, fundado em 1969, foi idéia de Alfredo
Guevara, então diretor do ICAIC, inspirado e impactado pelo que havia ouvido e visto no
Brasil - um movimento musical renovador (o Tropicalismo): Chico Buarque56, Gilberto Gil,
Elis Regina, Baden Powell, Edu Lobo, Caetano Veloso, Jorge Benjor (então Jorge Ben), Gal
Costa, Milton Nascimento, Maria Bethânia. O GES partiria de raízes próprias para fazer uma
renovação, aproveitando o que pudesse para enriquecer o trabalho: nova canção (ou nova
trova), jazz, rock, samba, novas técnicas eletrônicas, e de gravação, ou músicas como barroca
ou até hindu.
A obra do GES encaminhou a nova canção cubana ao Movimiento Nueva Trova,
iniciado em 1972, dentro de parâmetros e contextos musicais mais amplos. Pablo Milanés,
Silvio Rodriguez, Noel Nicola, Eduardo Ramos eram os nomes mais conhecidos da Nova
Trova. Todos tocavam violão, e Sergio Vitier, também violonista, foi encarregado por Leo
Brouwer a arregimentar outros compositores para que participassem dos cursos.
Os estudos no GES eram teóricos e práticos, que se combinavam com audições de
uma gama de estilos: Beethoven a John Coltrane, Gilberto Gil a Ravi Shankar, Webern e
Xenakis, Zappa e Sindo Garay, Juan Blanco, enfim de Bach a Beatles. Além de Leo Brouwer,
os professores foram Juan Elósegui e Federico Smith. Brouwer deu aulas de harmonia,
instrumentação, orquestração, contraponto, fuga, formas musicais e composição. Segundo
Acosta, o resultado foi positivo, pois em um tempo curto quase todos os estudantes foram
capazes de escrever uma partitura para cinema ou realizar a orquestração de uma canção.
A princípio, diz Acosta, o GES foi visto com desconfiança e ceticismo pelo corpo
administrativo do ICAIC e pelos próprios diretores de cinema, mas pouco a pouco os
2
O evento mais importante do GES foi o Festival Brasil-Cuba em setembro de 1973, com a apresentação de
obras (censuradas no Brasil) de Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Gilberto Gil. Brouwer realizou
versões de Deus lhe Pague, Samba de Orly, e Construção.
95
cineastas começaram a se aproximar do grupo e a encomendar seus serviços. Em seus
primeiros anos o GES viveu essa situação de isolamento, chegando até a acontecer de alguns
organismos se negarem a difundir a música feita pelo GES, inclusive órgãos de difusão oficial
como TV, rádio e disco. Dirigentes do ICAIC, como Manuel Duchesne Cuzán, também era
um dos descrentes.
Leo Brouwer por várias vezes saiu em defesa das formas experimentais do ensino e da
própria música em geral. É muito possível que tenha encontrado oposição de setores
governamentais cubanos, cultores de uma tradição nacional. Por meio de seus muitos artigos
em revistas e boletins do governo cubano nos anos 70, percebe-se que o compositor cubano
esteve em uma posição de defensiva a estas possíveis críticas. O tom geral dos artigos em
questão defendem que não há necessidade de se fazer concessão para estar mais próximo do
público em geral, mesmo porque Brouwer não subestimava o discernimento do público, e em
seus recitais sempre mantinha um diálogo com a platéia. Além disso, inovar para ele era uma
condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução; restringir ou subestimar as massas é que
seria uma atitude burguesa.
Por coincidência ou não, uma das obras de maior repercussão de Leo Brouwer neste
período é La tradición se rompe... pero costa trabajo (1967-69), funcionando quase como
uma ressonância musical ao momento. Na peça, Brouwer quis mostrar todos os tempos
convivendo em um mesmo tempo: trechos de músicas de Bach, Beethoven, Mendelssohn,
Bartók, Haendel, Liszt são apresentados com várias superposições, para mostrar a
convivência possível de culturas simultâneas, e em um cartaz levantado pelo maestro, está
escrito: ―Nessa obra, o público se manifesta‖. O resultado sonoro foi surpreendente e a
partitura tornou-se um hit entre os adeptos e o público de música de vanguarda.
Century (12987:158) conclui que os anos 60 foram um período de grande criatividade
artística na Cuba socialista, mas este período de experimentação foi quebrado em 1970 com a
96
crise econômica provocada pela queda do açúcar no mercado internacional. As lideranças
políticas deram prioridade a uma volta às tradições nas Artes.
Uma virada na carreira de Brouwer ocorreu nesta ocasião. Os acontecimentos
antecedentes foram as presenças dos compositores Hans Werner Henze (1926-) e Luigi Nono
(1924-1990) que estiveram em Cuba em 1967 e de 1969 a 1970, respectivamente. Os dois
conheceram o trabalho de Leo Brouwer e a partir daí sua música tornou-se conhecida
internacionalmente (Europa). Então, em 1971, a convite da Academia Alemã de Artes,
Brouwer realizou uma turnê na Alemanha, na qual executou a parte do violão na obra El
Cimarrón de Henze. Nesta oportunidade, conduziu sua própria sinfonia Exaedros II com a
Filarmônica de Berlim, além de ter gravado discos para a Deutsche Grammophon.
De 1972 a 1973, Brouwer deu aulas em Berlim (Oriental), enquanto dedicou-se a
finalizar uma tetralogia: La Espiral Eterna, para violão solo, Per Sonare a Due, para dois
violões, Per Sonare a Tre para flauta, viola e violão, e o Concerto n.º 1 para violão e pequena
orquestra. Esta tetralogia é um marco dentro do período de vanguarda do compositor.
Apesar da oportunidade de permanência na Alemanha, o compositor decidiu retornar a
Cuba. Em entrevista concedida a Rodolfo Betancourt (1998), o compositor esclareceu que
nunca foi influenciado por Henze ou Nono, nomes a quem ele deve a difusão de sua música.
Agradecimentos, Brouwer faz sim à Revolução Cubana, motivo pelo qual, segundo ele, os
dois músicos europeus (Henze e Nono) foram atraídos à ilha. De volta a Havana, continuou a
produzir mais e mais, só que com a diferença de que agora seu nome era constantemente
solicitado na Europa. Sobre a experiência dessa época na Alemanha, Brouwer afirmou
(Hernández 2000:142):
Tuve la experiência en Europa de que mi música se llamó cubana, eminentemente
cubana, por críticos muy sérios que a se vez han celebrado la actualidad de esta música y
su autenticidad. Mi obra no fue recibida como exótica y es una Victoria. El elogio que se
hace de un Julio Cortazar o de un Gabriel García Márquez en la novelísitcaa universal, es
97
el que pude percibir directamente en estas audiciones de mi música a través de la crítica.
Ya no tenemos aqui el exotismo de la maracá y el bongó.
Nos anos 80, após 600 recitais em três décadas de atividade, Brouwer sofre um
acidente na mão (uma infecção em uma das unhas) que o afasta da atividade de concertista e o
aproxima mais das atividades como regente. O violonista brasileiro Fábio Zanon (1999) assim
se expressou sobre Leo Brouwer intérprete:
Na verdade, Brouwer era um intérprete excepcional. Ele não soa polido o suficiente para
os padrões de hoje, mas era um desbravador: caloroso, inventivo, com uma ampla gama
de colorido. Nas suas gravações e inúmeros vídeos piratas que ainda circulam, tem-se a
forte impressão de improviso controlado. Em alguns momentos, a pulsação é pensada
mais em períodos que em compassos, o fraseado segue o temperamento mais que uma
rígida lógica estrutural. Por outro lado, em peças atonais, de maior complexidade rítmica,
ele é muito mais rigoroso - à exceção de suas próprias obras, que são tocadas sempre com
uma atitude mais poética que arquitetônica. O disco que fez para a Deutsche
Grammophon traz um repertório - Halffter, Arrigo, Bussotti - que nenhum outro
violonista poderia sonhar em tocar na época. Sua presença cênica era (e é) marcante: um
problema de coluna não permitia que olhasse para o braço do violão, mantendo sempre a
cabeça ereta, o que lhe dava um ar reverente; e a vocação teatral já se evidenciava na
gestualidade. Ademais, foi um dos primeiros violonistas a incorporar as investigações
estilísticas na interpretação de música antiga, optando por um método de articulações
curtas e uma profusão ornamental que soa até um pouco maneirista demais para os
padrões atuais (basta examinar sua gravação de sonatas de Scarlatti). Uma de suas últimas
apresentações, no Festival de Toronto em 1984, incluiu, num programa de 3 horas de
duração, uma improvisação sobre a ―Chaconne‖ de Bach que ganhou um status quase
legendário.
Como compositor, sua carreira entra na terceira fase, chamada ―Nueva Simplicidad‖, a
qual regressa à linguagem tradicional e coloca à sua disposição música popular, folclórica, de
vanguarda e erudita – El Decameron Negro é a obra solo que melhor representa essa fase.
Como professor e regente seu nome é cada vez mais exigido no exterior. Já conduziu grandes
orquestras, em destaque a Orquestra Filarmônica de Berlim, Orquestra Sinfônica Nacional
Escocesa, Orquestra de Concertos da BBC e Orquestra Sinfônica Nacional do México. Sua
discografia abarca mais de 150 gravações, entre seu trabalho de intérprete e regente até a
gravação de obras suas por outros intérpretes.
98
Em 1980 Brouwer é escolhido como representante no Conselho Internacional de
Música da UNESCO e em 1987 é indicado para Membro de Honra da UNESCO, máxima
distinção a um músico por sua atividade musical. Em 1982 Leo Brouwer cria e preside o
Concurso e Festival Internacional de Violão de Havana, que acontece a cada dois anos.
Outros cargos pelos quais exerceu função foram: supervisor musical do Ministério da Cultura
de Cuba e diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Havana. Regeu a Filarmônica de Berlim,
a Orquestra da BBC de Londres e de Toronto, foi diretor de festivais de violão na Martinica,
Canadá, França, Bélgica, Finlândia, Hungria, Alemanha e Japão. É membro do comitê
honorário da Instituzione Musicale Italo-Latinoamericana em 1989. Também passou a
organizar eventos violonísticos, na maioria, em vários países.
A partir de 1992, torna-se o diretor de uma nova orquestra da região de Andaluzia, que
encamparia as cidades de Sevilha, Granada e Málaga; é a Orquestra de Córdoba, feita
principalmente para difundir a imagem da região. Tem se destacado à frente dessa orquestra, à
qual também se dedica a tarefas educacionais e de formação de público.57
Tem acumulado várias honrarias: em 1982, recebe a Medalha Alejo Carpentier,
outorgada pelo governo de Cuba; em 1985, por ocasião dos 30 anos de atividades o governo
cubano homenageia-o com uma série de eventos, exposições e concertos; na mesma ocasião a
UNESCO também o homenageia com um concerto na Alemanha; em 1993, recebe o prêmio
Cordobés del año; em abril de 1999 recebe em Andaluzia, Espanha, o Prêmio Manuel de
Falla; em maio do mesmo ano, em Havana, recebe o Prêmio Nacional de Música do Instituto
Cubano de Música.
3
Segundo Hernández (2000:312), ao final de 1993, mais de 5 mil alunos já haviam assistido a orquestra, que
realiza concertos didáticos.
99
Cronologia
1939 – A 1.º de março, nasce Juan Leovigildo Brouwer Mezquida.
1952 – Aos 13 anos inicia seus estudos violonísticos com seu pai e estudos teórico-musicais
com sua tia Caridad Mezquida. Em pouco tempo passa a ter aulas com Isaac Nicola.
1955 – Gradua-se no Conservatório de Peyrellade enquanto prossegue as aulas com Nicola.
1956 – Começa a compor.
1957 – Compõe sua primeira obra orquestral Tres Danzas Concertantes, para violão e
orquestra.
1959 – Triunfa a Revolução Cubana. O ensino é reformado. Todas as escolas particulares
tornam-se públicas. Brouwer recebe uma bolsa para estudar nos Estados Unidos.
1960 – Retorna a Cuba devido à crise política entre EUA e Cuba.
1961 – Participa do Festival de Inverno de Varsóvia, no qual entra em contato com a
linguagem de vanguarda. De volta a Havana, reúne um grupo de colegas que passa a compor
várias obras no estilo da linguagem de vanguarda. Acumula os cargos de diretor do
Departamento de Música do ICAIC, cátedra de Composição no Conservatório ―Amadeo
Roldan‖ e assessoria de música na Rádio Havana.
1969 – Participa do Grupo de Experimentación Sonora – como professor de técnicas de
composição para artistas como Pablo Milanés e Silvio Rodríguez.
1971 – É convidado para uma turnê na Alemanha, na qual realiza a parte do violão na obra El
Cimarron de H. W. Henze, além de conduzir a sua sinfonia Exaedros II com a Filarmônica de
Berlim e gravar discos solos para a Deutsche Gramophon.
1972-73 – Dá aulas em Berlim e compõe a trilogia Per Sonare a Due, Per Sonare a Tre e o
Concerto n.º 1 para violão e orquestra.
100
1973 – Retorna a Cuba.
1980 – É escolhido representante no Conselho Internacional de Música da UNESCO.
1982 - Cria e preside o Concurso e Festival Internacional de Violão de Havana, que acontece
a cada dois anos.
1986 – Recebe em Havana homenagens por seus 30 anos de vida artística.
1987 – É escolhido para Membro de Honra da UNESCO
1992 – Torna-se o regente da Orquestra de Córdoba na Espanha.
1998 – Recebe o prêmio Manuel de Falla, na Espanha.
1999 – Recebe em Havana o Prêmio Nacional de Música do Instituto Cubano de Música.
101
4.1. A OBRA PARA VIOLÃO DE LEO BROUWER
Até bem recentemente, não se havia chegado a um consenso sobre o número total de
obras para violão de Leo Brouwer. Mesmo seu conjunto total de peças não estava disponível
em nenhuma fonte biográfica. Isto aconteceu porque o próprio Brouwer não se preocupou em
datar as primeiras obras e chegou mesmo a jogar fora algumas peças, salvas em parte por
amigos do compositor. Com o trabalho da pesquisadora Isabelle Hernández concluído em
2000, por fim o primeiro catálogo completo do compositor foi realizado. Graças a esse
material, o número exato de seu conjunto de obras para violão solo está em 38 títulos,
iniciados em 1954, sendo a peça mais recente datada de 2000 (Veja catálogo ao final deste
capítulo).
Leo Brouwer começou sua carreira de compositor escrevendo obras para o violão,
instrumento no qual iniciou seu aprendizado musical. O tratamento que deu ao instrumento
contribuiu em trazer1:
1. novos efeitos técnicos (pizzicati alla Bartók, a percussão com ambas as mãos nas cordas do
instrumento)2;
2. fatores extra-violonísticos (tocar com arco, bater no tampo do violão, apoiar o instrumento
sobre as pernas e utilizar artefatos metálicos e de cristal);
3. mudanças morfológicas (utilizar procedimentos de outros estilos e trazê-los
simultaneamente para o violão clássico, como rasgueados do flamenco, glissandi do blues, e
usar afinações não-tradicionais ao instrumento)58.
1
Estes procedimentos são apresentados por Schorn (1995), Hernandez (2000: 240) e o próprio Brouwer
(1989:88)
2
O pizzicato é um recurso utilizado em instrumentos de arcos no qual se pulsa a corda com o dedo (em vez do
arco); já no pizzicato alla Bartók trata-se dos pizzicatos estalados, criados por Bartók, que Brouwer trouxe para o
violão e que produzem um som percussivo.
3
Rasgueados são os movimentos típicos do violão flamenco, no qual a mão direita executa volteios com os
dedos e parte das mãos, de acordo com a escolha do executante.
Glissandi são os efeitos produzidos pelo escorregar de uma nota, passando por todos os sons, até chegar à nota
destinada, dando um efeito sonoro de continuidade.
102
Estes procedimentos adotados pelo compositor advêm de seu propósito, precocemente
idealizado, de tratar o violão ―como se fosse uma orquestra‖ (Gordon: 1986, Betancourt:
1999, Schorn 1995, Brouwer 1989:88), motivo pelo qual afirma ser ―o instrumento portátil
mais completo‖ (Hoz:1998).
Suas primeiras composições datam da época ainda de estudante, aos 15 anos, quando
era aluno de Isaac Nicola. A carreira como compositor e intérprete caminharam lado a lado,
até o momento em que Brouwer decidiu-se exclusivamente pela composição. De acordo com
Century (1985:153) e Gordon, após conhecer com uma rapidez impressionante toda a
literatura existente para violão, Brouwer sentiu a necessidade de começar a compor. Isto se
deu pelo fato de que ele gostaria de oferecer ao instrumento um paralelo às peças de Bartók,
Manuel de Falla, Stravinsky e Debussy. A primeira vez que compôs, declarou a Century
(1985:152), sentiu uma mudança radical em sua vida, que ele chamou de ―um momento
mágico‖, no qual se realizou imensamente. Ainda assim, suas atividades como intérprete
prosseguiram por um longo tempo.
Suas primeiras peças são marcadas por elementos populares unidos a um
desenvolvimento artístico já presente, como em Prelúdio (1956), Pieza sin Titulo n.º 1 (1956),
Danza Característica (1957) e Estudios Sencillos (1959-61). Em pouco tempo Brouwer
passou a compor também para outros instrumentos e formações camerísticas diversas,
incluindo orquestrações (Tres Danzas Concertantes, para violão e orquestra, 1957). Sobre a
Pieza sinTítulo n.º 1, o violonista brasileiro Fábio Zanon (1999:13) ressalta:
A ―Pieza sin titulo n.º 1‖ já traz a certeza da forma, a economia de material, o uso da
essência rítmica do folclorismo ao invés da cópia de clichês, a perfeição na condução das
vozes – tudo isso numa experienciazinha de 2 minutos de uma rapaz de 17 anos, uma
micro obra-prima.
.
103
Após a Revolução Cubana de 1959, a equipe de educadores do governo de Fidel Castro
reformulou todo o sistema de ensino do país. Isaac Nicola e alguns de seus alunos, entre os
quais Leo Brouwer, ficaram responsáveis pelas mudanças no ensino de violão (Amador
1992:19). No mesmo ano, o governo cubano ofereceu a Brouwer uma bolsa para estudar em
Nova York, na Julliard School of Music e na Hartford University.
Em Nova York, Brouwer compôs uma das principais páginas do repertório
violonístico, a primeira série de seus Estudios Sencillos (estudos simples). Para auxiliar sua
sobrevivência na cidade norte-americana, Brouwer dava aulas particulares, daí surgiram estes
estudos que ele ia compondo de acordo com as necessidades de cada aluno. O conjunto destas
peças está entre as obras mais tocadas pelos estudantes de violão e, muitas vezes, é
apresentado em recitais.
Imediatamente após sua volta a Havana, devido à crise política entre Estados Unidos e
Cuba, Brouwer se envolve com a chamada vanguarda européia, em especial os países do
Leste Europeu, especialmente depois de sua ida ao Festival de Outono de Varsóvia, na
Polônia, em 1961, no qual o jovem compositor presenciou as estréias mundiais de obras de
Witold Lutoslawsky (1913-1994), Iannis Xenakis (1922-), Gyorgy Ligeti (1923-), Karlheinz
Stockhausen (1928-) e Kristof Penderecki (1933-).
O contato, entretanto, não o desviou de seu estilo composicional; Brouwer utiliza os
elementos da vanguarda como ferramentas de trabalho, ligando-os aos traços da música
cubana, iniciando uma nova fase, junto com outros compositores – Juan Blanco (1920),
Héctor Ângulo (1932), Carlos Fariñas (1934), Roberto Valera (1938). As obras mais
significativas deste período para o violão são Canticum (1968), La Espiral Eterna (1970),
Parábola (1973) e Tarantos (1974). Como prova de que Brouwer não se fixa a um elemento
como única forma de trabalho composicional, é que em 1964, em plena fase vanguardística,
104
ele compôs Elogio de la Danza, que em termos de linguagem é um retorno à expressão
tradicional cubana.
Quando os compositores Hans Werner Henze (1926-) e Luigi Nono (1924-1990)
estiveram em Cuba em 1967 e de 1969 a 1970, respectivamente, conheceram o trabalho de
Leo Brouwer. O contato de Brouwer e Henze rendeu o trabalho de composição El Cimarrón
de Henze, que tem uma parte de violão especialmente composta para Brouwer, que auxiliou
na adoção de idéias para a parte. Em 1971, a convite da Academia Alemã de Artes, Brouwer
realizou uma turnê na Alemanha, na qual executou a parte do violão na obra El Cimarrón.
Nesta oportunidade, conduziu sua própria sinfonia Exaedros II com a Filarmônica de Berlim,
além de ter gravado discos para a Deutsche Grammophon. Ficou em Berlim (Oriental), onde
deu aulas, até 1973, e dedicou-se a finalizar uma tetralogia que é um marco dentro do período
de vanguarda do compositor: La Espiral Eterna, para violão solo, Per Sonare a Due, para
dois violões, Per Sonare a Tre para flauta, viola e violão, e o Concerto n.º 1 para violão e
pequena orquestra.
Na volta a Cuba, seu estilo composicional retorna a valores nacionais; sua explicação
para este retorno, no entanto, passa por uma questão de ―saturação da linguagem‖
(Betancourt:1998). Sustenta Brouwer59 que, após um pouco mais de uma década de utilização
dos elementos de vanguarda, ele ficou saturado com a dita linguagem, por suas características
pulverizadas, ásperas e, principalmente, tensionais, das quais ela não conseguiu se livrar até
hoje, causando a este tipo de música um defeito relacionado com a essência do balanço
composicional, um conceito que está presente na história: movimento, tensão e seu
conseqüente relaxamento. Em suma, a vanguarda, na opinião de Brouwer, carece de um
relaxamento das tensões, indo contrariamente às leis da natureza, na qual os opostos, ou os
contrastes, estão sempre atuando – não há ser vivo que não descanse – diz o cubano. Assim,
59
Entrevistas em Betancourt e Wistuba (1989)
105
decidiu por uma regressão (palavras dele) que o trouxe de volta a uma simplificação dos
materiais composicionais. Além desse retorno a uma linguagem mais acessível ao público, à
utilização simultânea de música erudita, de vanguarda popular e folclórica, Brouwer também
passa a fazer uso do minimalismo.60
Desta nova fase, destacam-se as obras El Decameron Negro (1981), a trilogia Paisaje
Cubano con Lluvia (1984), para orquestra de violões, Paisaje Cubano con Rumba (1985),
para quarteto de violões e Paisaje Cubano con Campanas (1986) para violão solo.
Os termos usados para esta nova fase do compositor cubano variam muito em vários
autores: pós-vanguarda, Hiper-Romantismo Nacionalista, neo-romantismo, minimalista ...
mas Brouwer tem afirmado o termo Nueva Simplicidad como o mais afim a suas intenções,
que passam pela convivência entre as diferentes linguagens: os elementos advindos da música
popular, da música clássica e da música de vanguarda.
As considerações que músicos consagrados já fizeram de seu trabalho, demonstram ao
mesmo tempo respeito e certeza de um futuro garantido em suas mãos. O compositor cubano
Harold Gramatges (1988:16) afirmou que sua fértil imaginação e maestria técnica abriram
caminhos inimagináveis ao mundo tímbrico do violão; com seus conjuros mágicos
surpreendeu ao criador musical contemporâneo.
Colin Cooper (1985:13), editor da revista inglesa Classical Guitar, a mais importante
publicação de violão existente, afirmou que Brouwer é o maior compositor vivo do violão:
―Não é uma frase fácil para qualquer contexto, mas considerando todos os feitos é impossível
pensar em outro compositor com um melhor direito a essa designação‖ (tradução minha).
Norton Dudeque (1994:98) também não hesita em admitir Brouwer como o grande
nome da atualidade:
60
O Minimalismo é um procedimento usado em composição, mais fortemente ligado aos nomes dos norteamericanos Philip Glass e Steve Reich. No minimalismo são utilizadas estruturas mínimas (células) que são
repetidas em várias seqüências.
106
(...) sem dúvida, e reconhecidarnente, a figura mais importante da música latinoamericana atual para violão é o cubano Leo Brouwer.
(...) Também é importante sua contribuição como violonista, com excelentes gravações de
obras contemporâneas.
A obra musical para violão de Brouwer é uma das mais importantes do repertório atual.
Na década de 80, a intelectualidade cubana discutiu muito se poderia afirmar-se a
existência de uma escola cubana de violão, assim como se considerava a escola de balé.
Leonardo Acosta (1986) confirmou a papel preponderante de Brouwer nessa designação de
escola cubana, sem entretanto deixar de ponderar sobre o momento histórico e a presença de
outras personagens:
(...) a escola cubana de violão é uma realidade incontestável. Isso se deve por uma parte à
crescente relevância da figura de Leo Brouwer no mundo violonístico contemporâneo, da
Europa até o Japão e as duas Américas, por outro lado o êxito de alguns jovens
violonistas formados por escolas após a Revolução e em terceiro lugar por causa de
compositores como Harold Gramatges, Héctor Ângulo e Carlos Fariñas. E, finalmente,
por causa do surgimento de escolas violonísticas afins como Argentina, Brasil, República
Democrática Alemã, Canadá, Tchecoslováquia, Japão etc..
Aqui é o momento também para esclarecer que a música de Brouwer surge em uma
época profícua do violão mundial. O violão moderno passou por três fases de relevo: a época
de Francisco Tárrega, criador de uma escola, com novos aportes técnicos, embasados também
pela definição da estrutura física do instrumento; a fase dos anos 20, quando Andrés Segovia
se uniu a grandes nomes da composição mundial e obteve uma ampliação do repertório
violonístico; e a fase dos anos 60 e 70, chamada de boom mundial do violão, favorecida pela
grande atuação de intérpretes e autores. O boom aconteceu por causa da atuação de muitos
nomes como Julian Bream, John Williams, Ida Presti, Alexandre Lagoya, Turibio Santos,
Irmãos Abreu e promoveu na juventude da época o interesse em tocar o violão clássico (e não
só o piano, ou o violino ou o violoncelo...).
107
Impressiona o número de depoimentos em muitos artigos de revistas, mais do que em
livros, de contemporâneos de Brouwer, que se manifestam sobre seu trabalho. O professor
cubano Efraín Amador (1986:21) resumiu assim o trabalho de Brouwer:
Em sua música para violão, e em busca de uma forma de expressão pessoal, soube
assimilar a rica herança violonística, proveniente da música popular, e com ela pôde
integrar de uma forma muito própria, revolucionária e inovadora, para dar à luz obras que
há poucos anos de criadas se converteram em repertório ―clássico‖ obrigatório de todos
os violonistas no mundo: ―Elogio de la Danza‖, ―La espiral Eterna‖, ―Canticum‖, seus
Estudos, já formam parte dos programas oficiais nos mais prestigiosos conservatórios do
mundo. Emilio Pujol em carta a seu discípulo Javier Hinojosa assinalava a obra
―Canticum‖ como a mais importante desde ‗Homenagem a Debussy‖ de Manuel de Falla,
e com a qual Brouwer inicia uma nova etapa para o violão.
Da mesma forma, o jornalista cubano Pedro de la Hoz (1998) situa o compositor
(tradução minha):
Leo Brouwer (...) capitaliza uma posição de zênite: lhe ocupam e lhe preocupam, com
profundo conhecimento de causa e a partir de um exercício lúcido e exemplar, todas as
músicas e suas funções, a composição e a interpretação, a direção e a docência, o encargo
e a inspiração, a vanguarda experimental e a trova canção, o volume sinfônico e a síntese
digital do som.
Mas o alfa e o omega do atual diretor geral da instituição Filarmônica Nacional, do
Instituto Cubano da Música, e titular da Sinfônica da cidade espanhola de Córdoba, é o
violão. Não por acaso é considerado o expoente autoral e interpretativo máximo da escola
cubana deste instrumento.
Não somente os cubanos se interessam em analisar a obra de Brouwer. É de nosso
conhecimento a realização de três teses de Mestrado na Universidade da Califórnia. Entre as
quais a de Paul Century. Em um artigo, Century (1985:151) concluiu que Brouwer contribuiu
com um componente essencial ao repertório do violão, com muitos de seus trabalhos servindo
de suporte pedagógico fundamental ao currículo dos violonistas clássicos. E a jornalista norteamericana Diane Gordon (1986) o compara com outros nomes (tradução minha):
No começo dos anos 70, sua experimentação com música eletrônica o levou a compor
―La Espiral Eterna‖, um trabalho que agora é considerado uma das obras primas da
literatura violonística do século XX, tendo seu lugar ao lado do ―Nocturnal‖ de Benjamin
Britten e dos ―Cinco Prelúdios‖ de Villa-Lobos.
108
Embora Brouwer seja um dos mais populares compositores contemporâneos do violão
clássico, ele também escreveu acima de 170 composições para praticamente cada idioma
musical.
Intérpretes consagrados do violão também já demonstraram um reconhecimento à sua
obra. Destes, o uruguaio Oscar Cáceres afirmou (Weiss 1996:15) que Brouwer sempre
proclamou seu desejo de renovar o catálogo sonoro do violão e provou isso com Canticum, e
com a ruptura com o violão do passado, consumada pela composição de La Espiral Eterna.
De uma geração intermediária, a norte-americana Sharon Isbin e o argentino Eduardo
Isaac concordam com a posição de destaque do cubano. Isbin, a quem muitos compositores já
dedicaram músicas, afirmou (Saba 1996:16) que para mostrar aos compositores que desejam
utilizar o violão, ela costuma indicar as peças de Brouwer porque possuem uma grande
afinidade natural e real com o instrumento. Entre os compositores atuais, Isaac considera
Brouwer ―o verdadeiro chefe da fila‖ (Denis 1997:25)
Por ocasião da gravação do Concerto n.º 1 o violonista inglês John Williams afirmou
(Hernández 2000:181):
(...) yo conozco a Leo muy bien y he hablado com él, no solamente sobre musica, sobre
política y todo, que conozco su actitud hacia la música; y él trata esas cosas liberalmente;
que sus sentidos son una guia hacia el sentimiento.
Da mais nova geração, o violonista brasileiro Fabio Zanon (1999:13-15) reitera todas as
posições anteriores e assim se expressou sobre a personagem Leo Brouwer:
Último de uma linhagem de violonistas-compositores que vai de Sor a Villa-Lobos, o
conjunto de suas obras é um monumento. Seguir o caminho que vai dos ―Estúdios
Sencillos‖ até o Concerto de Helsinki é confrontar um microcosmos das tendências
composicionais da segunda metade do século e entender como elas podem ser aplicadas
ao violão.
(...) Brouwer, aos 60 (anos), já deixou uma marca profunda. Gente no mundo inteiro
cresce no violão tocando suas obras. Praticamente nenhum outro compositor-violonista de
hoje remotamente se lhe compara em alcance, abrangência e qualidade.
109
LEO BROUWER
Catálogo de obras de violão solo (baseado em Hernandez 2000):
1954
Suíte n.º 2
Amalgama
Recitativo
1956
Prelúdio em conga
Prelúdio
Pieza sin Título n.º 1
Danza Característica
1957
Fuga n.º 1
Pieza sin Título n.º 2
Dos Aires populares cubanos – Guajira Criolla, Zapateo cubano
Dos temas populares cubanos – Dos Temas Populares, Ojos Brujos
1959
Tres Apuntes
Estudios Sencillos (caderno I)
1960
Estudios Sencillos (continuação)
110
1961
Estudios Sencillos (caderno II)
1962
Tres piezas latinoamericanas - Danza Del Aliplano, Triste Argentino,Tango
Pieza sin Título n.º 3
1963
Pieza Sin Titulo n.º 3
1964
Elogio de la Danza
1968
Canticum
1970
Memórias de “El Cimarrón”
La Espiral Eterna
1972
Tres Estudios em Sonoridades
1973
Parábola
111
1974
Tarantos
Metáfora del amor (para violão e fita magnética)
Três temas de Beatles (para violão e fita magnética ou dois violões)
1981
Estudios Sencillos (Cadernos III e IV)
El Decamerón Negro
Prelúdios Epigramáticos (seis)
1986
Paisaje Cubano con Campanas
1990
Sonata
1993
Rito de los Orishas
1996
Hoja de álbum “La Gota de Água”
Hika: In Memoriam Toru Takemitsu
Paisaje Cubano con tristeza
112
1999
Passacaglia para Eli
2000
Viaje a la semilla
113
CAPÍTULO 5. Análise de peças de Heitor Villa-Lobos: a importância do choro.
Na obra violonística de Villa-Lobos, o estilo denominado ―choro‖ esteve presente nas
seguintes peças: Choros n.º 1, que abre a extensa série de Choros, Chorinho da Suíte Popular
Brasileira e Prelúdio n.º 2, dedicado ao ―Capadócio‖. Nóbrega (1971:37-38) cita termos de
dicionário para definir a expressão capadócio – ―charlatão, parlapatão, trapaceiro‖ ou ainda:
―aquele que de noite vai tocar e descantar sob as janelas da namorada‖ – e afirma que a
palavra capadócio é:
... o tipo urbano hábil e maneiroso, fértil em expedientes, mentiroso e impostor, é alem
disso muito dado à música, cantador de modinhas e tocador de violão, do que se serve
como recurso de insinuação pessoal. Esta conotação musical é tão significativa que um
método popular de violão muito usado até vinte anos atrás tinha por título ―O
CAPADÓCIO‖ e a seguir: ―Método prático para aprender a tocar o VIOLÃO em pouco
tempo e sem precisão de mestre, contendo tôdas as pôsições pelo conhecido
PARAGUASSU‖.
Citando o próprio Villa-Lobos, Nóbrega reproduz a versão do compositor para o
termo: ―é um tipo de variadas manifestações psicológicas, sentimental e dramático, lírico,
patético e trágico‖.
O choro já obteve diversas definições desde seu aparecimento. Renato de Almeida
(1926:112), um dos mais antigos estudiosos da música brasileira, deu uma das primeiras
definições do estilo:
Choro é um nome genérico com várias aplicações. Pode designar um conjunto
instrumental, em geral com flauta, oficleide, bandolim, clarineta, violão, cavaquinho,
piston e trombone, com um deles solando. Por extensão, chamam-se choros também as
músicas executadas por esses grupos instrumentais que acabaram tomando aspecto
próprio e característico. Por fim, o Choro é a denominação de certos bailaricos populares,
também conhecidos por ―Assustados‖ ou ―Arrasta-pés‖. Essa parece ter sido mesmo a
origem da palavra, conforme explica Jacques Raimundo, que diz ser originária da ContraCosta, havendo entre os cafres uma festança, espécie de concerto vocal com danças,
chamado ―Xôlo‖. Os nossos negros faziam, em certos dias, como São João, ou por
ocasião de festas nas fazendas, os seus bailes, que chamavam ―Xôlo‖, expressão que por
confusão com a parônima portuguesa, passou a dizer-se ―Xôro‖ e, chegando à cidade, foi
grafada ―Choro‖ com ―ch‖. Como várias expressões do nosso populário, teve logo a
forma diminutiva de Chorinho.
114
E o choro, em definições mais atualizadas, como a de Gerard Béhague (1994:75), tem
outros enfoques:
Como uma expressão popular, os choros do século 19 foram essencialmente conjuntos
populares que apareceram primeiro no Rio por volta de 1870-1880 e envolvendo músicos
amadores cujo caráter de fazer musical triste e choroso justificou o nome choro e chorão.
O feitio instrumental desses grupos antigos envolvia na maioria flauta para a melodia, e
violão e cavaquinho para harmonia e ritmo. O mulato virtuoso flautista Joaquim Antonio
da Silva Calado (1848-1880) é dito ter organizado um dos primeiros grupos. Suas
composições, valsas, polcas e quadrilhas revelam a nacionalização sutil de danças
européias da época. Aos conjuntos originais foram se assomando, pelos idos de 1890,
instrumentos de banda e outros de cordas (tal como bandolim) que participavam no
conjunto tanto no solo quanto função de contramelodia, dependendo da habilidade
específica dos músicos. A variação improvisional e, ao mesmo tempo, um contraponto
mais ou menos elaborado caracterizaram muito da prática performática. Com o tempo, o
termo choro passou a denotar toda forma de dança, valsas, mazurcas, polcas, schottisches,
tangos, habaneras, lundus e maxixes, por um lado, e canções sentimentais como a
modinha, para serenatas, por outro. Eventualmente, de 1910 em diante, o choro pertenceu
à designação de um gênero de dança especificamente carioca com uma estrutura rítmica
similar (especialmente figuras binárias sincopadas) à do samba (trad. minha).
O choro é também entendido como conjunto de câmara e estilo musical, como afirma,
entre outros, Marco Pereira (1984:100):
... o Choro representava, antigamente, um grupo de executantes instrumentistas que
tinham valsas, polcas, schottishes, no seu repertório. Em seguida, a palavra Choro
designou um certo ritmo.
(...) O Choro como forma musical, segundo o conceito atual, é coisa mais recente e pode
ser assimilado ao rondó em cinco seções.
Como já foi citado no item Biografia, Villa-Lobos teve uma convivência com os
grupos de choro da cidade do Rio de Janeiro, tendo pertencido a alguns destes conjuntos;
segundo Mariz (1989:26):
Villa-Lobos pertenceu a um grupo de seresteiros de escol. Seu quartel-general era o
Cavaquinho de Ouro, na rua da Carioca, onde recebiam convites de toda espécie para
tocar nos lugares mais diversos. Faziam parte do grupo, cujo chefe era Quincas
Laranjeiras, os seguintes chorões: Luiz de Souza e Luiz Gonzaga da Horta (pistão-baixo),
Anacleto de Medeiros (saxofone), Macário e Irineu de Almeida (oficleide), Zé do
Cavaquinho (cavaquinho), Juca Kalu, Spíndola e Felisberto Marques (flauta). O
repertório abrangia peças de Calado, Nazareth, Luiz de Souza e Viriato.
(...) Villa-Lobos tirou dos chorões ambiente para criar uma atmosfera nova de música.
Naquele meio, formou uma faceta da sua personalidade, aproveitando o que havia de
115
original. Entre os chorões, Villa-Lobos era o violão clássico e chegou mesmo a
influenciá-los, pois, à sua sugestão Nazareth escreveu Batuques, Fantasias e Estudos.
Para Béhague (1994:4), a música dos chorões foi a música que mais fascinou VillaLobos durante toda sua vida e que, como violonista e ―chorão‖ que era, esta música
representou para ele mesmo uma verdadeira experiência de educação musical e de uma
afinidade estética tão forte que permaneceu em seu período adulto. Béhague também relembra
que, de suas primeiras composições, a obra de maior destaque dos anos 20 recebeu a
denominação de Choros. Na opinião de Béhague, apesar de a música de câmara ser feita no
lar dos Villa-Lobos, foi a música popular que o cativou e exerceu uma influência até o final
de sua obra, e exemplifica que ele tentou aprender violão sozinho, longe de casa.
Béhague afirma (1994:4-5) que os anos de formação de Villa-Lobos não estão
devidamente documentados. Cita como exemplo o testemunho de Donga (Ernesto Joaquim
dos Santos, 1899-1974) que conferia a Villa-Lobos uma qualidade técnica ao violão já nos
anos em que se iniciou nas rodas de choro (Villa-Lobos era chamado, segundo Donga, de ―o
Violão Clássico‖). Béhague põe em dúvida o julgamento de Donga, mais provavelmente
reforçado por uma admiração. Entretanto, um ponto a favor de Donga seria a gravação do
Choros n.º 1 feita pelo próprio Villa-Lobos em disco comercial, na qual demonstra sua
capacidade de interpretação do instrumento, realmente apreciável.
Béhague também questiona se houve mesmo uma relação de amizade entre VillaLobos e Ernesto Nazareth, como afirmam outros autores; crê sim que Villa-Lobos teria sido
um grande admirador das valsas, polcas e tangos de Nazareth. Mas um fato que se configura
como uma impressão dessa amizade é a dedicatória dos Choros n.º 1 a Ernesto Nazareth,
116
composto em 1921, para violão, já que, posteriormente, Nazareth dedicaria a Villa-Lobos a
peça Improviso, como afirma, Luiz Antonio de Almeida61, biógrafo de Nazareth:
Improviso, estudo para concerto, composto entre 1922 e 1926. Villa-Lobos, mais um
amigo inseparável de Nazareth (grifo meu), dedicou-lhe, em 1921, o seu Choros n.º 1,
para violão; e o homenageado retribuiu a gentileza dedicando-lhe este estudo que, porém,
somente seria impresso em 1931.
Béhague (1994:72) aponta a posição especial que teve a composição dos Choros na
obra total, pois com essa série Villa-Lobos definiu sua posição estética, tornando-se o portavoz do nacionalismo musical no Brasil. Nóbrega (1975:21-22) também alude a importância
dos Choros na carreira de Villa-Lobos, representando a primeira grande afirmação de VillaLobos como criador; ―o ciclo dos Choros revestiu-se da importância decisiva de um divisor de
águas na produção do autor, com imediatos reflexos em sua projeção no mundo musical
europeu‖.
Segundo Béhague (1994:156), o ideal do Modernismo, para literatos e músicos era:
... basicamente uma justificação para a absorção (literalmente a deglutinação) das
experiências artísticas e musicais estrangeiras para as necessidades específicas do
momento. E Villa-Lobos na maioria de seus trabalhos pode ser interpretado como parte
desse processo, mas a série Choros especialmente representa o primeiro grande passo em
direção não somente a incorporação da inspiração nativa e documentação, mas a
assimilação de muitas técnicas composicionais contemporâneas européias. Não por
coincidência ele começou com a expressão simplista do gênero urbano (Choros No. 1) e
construiu gradualmente a formas e expressões mais complexas em uma amálgama de
batidas e peças de música tradicional nativa e Afro-brasileira, canções de roda, e outros
gêneros de música de dança popular urbana, freqüentemente em uma atmosfera de
acontecimento carnavalesco, mas tudo com um vocabulário técnico decididamente
modernista (trad. minha).
Turíbio Santos (1977:4-5) em seu livro sobre o compositor também se dedica a
estabelecer a importância do papel do choro na obra de Villa-Lobos:
Quincas Laranjeiras, Anacleto de Medeiros, Zé do Cavaquinho, Catulo da Paixão
Cearense, João Pernambuco, Ernesto Nazareth, Sátiro Bilhar, Donga foram algumas das
61
Encarte do CD Tributo a Ernesto Nazareth, de Tânia Mara Lopes Cançado. Karmim 1993.
117
testemunhas do traço de união violão-música popular brasileira na vida de Heitor VillaLobos.
(...) Até há pouco, Donga evocava com emoção o músico ou os músicos Heitor VillaLobos. Por um lado a grande habilidade de acompanhador e improvisador, por outro o
virtuosismo que o levaria a gravar o Choros n.º 1 em disco comercial.
O duplo aprendizado do instrumento favoreceu semelhante horizonte. Por um lado toda a
metodologia existente dos dois séculos precedentes: Carulli, Carcassi, Aguado, Coste,
Sor, Giuliani por outro a convivência com Zé do Cavaquinho e os boêmios chorões do
Rio de Janeiro.
(...) O violão seria ponto de referência a partir daí. Sua presença na obra de Heitor VillaLobos era também a das Rodas de Choro, dos personagens que compunham esse
ambiente musical peculiar do Rio de Janeiro, das melodias, harmonias e ritmos da música
popular instrumental.
No começo do século todos os chorões se conheciam na cidade. Embora os pequenos
grupos se encontrassem em cada bairro a reputação individual dos músicos ultrapassava
esses limites e os melhores acabavam por encontrar-se.
A edição das partituras dos Choros n.º 3 pela editora francesa Max Eschig em 1928
traz essa explanação de Villa-Lobos sobre o que são os Choros e o que há em comum com o
estilo popular:
Os Choros representam uma nova forma de composição musical na qual são sintetizadas
diferentes modalidades de música brasileira, indígena e popular, tendo como elementos
principais o ritmo e qualquer melodia típica de caráter popular que apareça aqui e ali
acidentalmente, sempre transformado de acordo com a personalidade do autor. Os
procedimentos harmônicos, também, são quase uma estilização completa do original.
Nóbrega (1975:10) acrescenta ainda a essa definição inicial de Villa-Lobos uma outra
que ele teria citado a Nóbrega anos depois:
Os Choros são construídos ―segundo uma forma técnica especial, baseada nas
manifestações sonoras dos hábitos e costumes dos nativos brasileiros, assim como nas
impressões psicológicas que trazem certos tipos populares, extremamente marcantes e
originais‖.
A opinião de Tarasti (1996:87) sobre os Choros de Villa-Lobos é destacada também:
Alguém pode presumir que os Choros como composições representam alguma nova
estética e forma técnica. Se alguém quer determinar qual inovação Villa-Lobos trouxe
para a música séria do século 20 tanto quanto a forma musical é considerada, a série de
Choros é talvez a mais significante em toda sua produção (trad. minha).
118
Tarasti (1996:86) afirma que os Choros de Villa-Lobos eram provenientes de uma
relação com os músicos de rua do Rio, mas já possuíam algo de impressionismo e
vanguardismo. A questão, segundo Tarasti, é: ―são os Choros realmente uma nova forma
de composição?‖ Tarasti aponta que ―os choros não são meramente uma invenção do
compositor para aparecer como um compositor brasileiro nos círculos musicais europeus
dos anos 20‖ – como teria afirmado Peppercorn (1991). Para Tarasti, ―a verdade é que ele
também compôs numerosos trabalhos similares sem, entretanto, por alguma razão chamálos de choros‖.
Guerra-Peixe (1989:43) apontou que algumas inconsistências são empregadas por VillaLobos na Suíte Popular. Os procedimentos da Suíte estariam mais ligados à música de salão
em vez do choro autêntico, já que as quatro peças iniciais carecem dos típicos baixos. Analisa
também que na peça Chorinho ocorreu o uso do tango brasileiro no lugar do choro.
119
5.1. Valsa-choro da Suíte Popular Brasileira
Dentro da Suíte Popular Brasileira, a Valsa-Choro pode servir como exemplo do
caráter geral do conjunto das quatro peças iniciais que formam a suíte: Mazurka-Choro,
Schottisch-Choro, Valsa-Choro e Gavota-Choro. Este caráter geral diz respeito ao resultado
sonoro do grupo de peças como uma demonstração do panorama da música do início do
século na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente de serenatas e danças de salão. A
data da composição das quatro peças da suíte está situada entre os anos de 1908 e 1912, sendo
que o Chorinho só seria composto 11 anos depois e anexado à suíte.
Composta no Rio de Janeiro em 1912, a Valsa-Choro foi editada em 1923 pela editora
francesa Max Eschig, durante a primeira estada de Villa-Lobos em Paris. A obra pertence à
primeira fase do autor, na qual a aproximação com o choro exerceu papel importante em sua
formação. Como já foi dito, o choro pode ser entendido como uma tentativa de nacionalização
de danças européias por parte dos músicos cariocas. Ao unir o termo choro a cada uma das
denominações de danças européias, Villa-Lobos estaria almejando dar um reforço justamente
a este princípio de adaptação.
Béhague (1994:134) afirma que a Suíte é historicamente significante por refletir a
consciência do jovem compositor da nacionalização da música de salão européia do fim do
século XIX como uma importante fonte da música popular urbana brasileira. Já Marco Pereira
(1984:87), critica o aspecto técnico da Suíte por achar que não é tão relevante em comparação
com as demais peças da obra violonística do compositor, pela falta de proposições mais
arrojadas, e aponta a semelhança com a música popular de outros autores da época.
Pereira (1984:91) também fala em seu livro sobre as diferenças entre a valsa européia
e a valsa brasileira:
A grosso modo, a Valsa é uma dança rápida, escrita em compasso
ternário, que utiliza na sua configuração melódica valores simples e
120
compostos (da mínima à colcheia). No acompanhamento harmônico,
o que lhe é mais característico, a armação rítmica é feita a partir de um
baixo sobre o primeiro tempo (representado por uma mínima
pontuada) e de dois acordes iguais colocados sobre o segundo e
terceiro tempos (representados por semínimas). Uma antecipação
muito sutil e uma certa elasticidade no segundo tempo lhe dá um
balanço bem particular. O termo Valsa deriva do termo alemão
―Walzen‖ que significa rodar, dar voltas. É mais ou menos por volta
de 1700 que a Valsa entra na moda e sua maneira de dançar atrai a
atenção da burguesia e da nobreza. A forma como os pares se
enlaçavam ficava em completa oposição à rigidez das cerimônias
dançantes da sociedade da época, como o Minueto, por exemplo. (...)
A Valsa-Choro é do tipo lento e melancólico, qualidade inerente à Valsa
brasileira. Sobretudo valsas cantadas pelos boêmios, contemporâneos
e amigos de Villa-Lobos.
Assim como as outras três peças da suíte, a Valsa-Choro está dividida em cinco seções
e é apresentada em forma rondó A-B-A-C-A, ou seja, cada parte é seguida de uma repetição
do primeiro tema (A).
Como em várias obras de sua autoria, Villa-Lobos utiliza termos brasileiros para
indicar o andamento; aqui é solicitado um andamento de “Valsa Lenta”. A tonalidade está
em mi menor e a harmonia se movimenta normalmente dentro deste tom, sendo que o uso
do acorde de V grau com 13.ª no compasso 7 é o fato mais significante, no aspecto
harmônico.
A melodia tem início na voz mais aguda, com uma obstinada nota mi sendo repetida
por vezes:
Entre os compassos 8 e 12 acontece uma alternância entre a voz mais aguda e a
mais grave, sugerindo um diálogo entre as vozes e um procedimento de seresta com a
utilização de um fraseado de baixos, a modo de violão 7 cordas.
121
Após isso, a melodia se torna incessante, sempre em semínimas. No compasso 24
um outro fraseado de baixos aparece para retomar o tema e finalizar essa primeira parte da
Valsa-Choro:
A segunda parte está em tonalidade de lá menor, ou seja, subdominante do tom
principal (mi menor). O início da melodia está em região não tão aguda quanto a parte
anterior, mas algumas notas em acompanhamento fazem surgir algumas dissonâncias 62, como
o terceiro tempo do primeiro e terceiro compassos, que resulta um acorde de lá menor com
9.ª:
Depois, a melodia se encaminha para a região mais aguda e no acompanhamento ainda
acontecem algumas dissonâncias como o segundo e o terceiro tempos do compasso 6:
62
Dentro do universo sonoro, algumas combinações de notas, com o passar do uso no tempo, conformaram um
arsenal de significados pelos quais se definiu as consonâncias e as dissonâncias. Em uma explicação
simplificada, a consonância não destoa, não choca os ouvidos como a dissonância – obviamente o padrão é
diverso, variando de povo a povo e às vezes até em um mesmo grupo social.
122
No compasso 8 a melodia que vinha se mantendo extremamente metódica em semínimas tem
agora uma figuração em tercinas63.
Ainda que com limitada significância, no compasso 10, Villa-Lobos demonstra o seu bom
conhecimento das possibilidades do violão ao colocar o que há de bem característico no
instrumento – uma melodia acompanhada de acordes e de baixos – simultaneamente:
Do compasso 11 em diante, a melodia se torna mais cheia, pois muda sua figuração
para colcheias. No compasso 14, o uso de dissonâncias retorna por meio de um
acompanhamento da melodia, que trabalha em sentidos contrários (ré# ré dó# do si – sol# lá
sib si), ocasionando intervalos64 de segundas e nonas:
A partir daí, a peça dirige-se para o ponto culminante e a sua resolução. Caminhando cada vez
mais para a região aguda, a melodia atinge o seu clímax no compasso 24, mais uma vez com a
figuração em tercinas:
63
Tercinas são um conjunto de três notas agrupadas para serem tocadas com a duração de tempo de uma nota.
Ou seja, tocam-se 3 notas no tempo de uma nota só.
64
Intervalos são as diferenças de freqüências sonoras entre as notas. Se fosse possível ―ver‖ esses intervalos,
seria como visualizar a distância entre objetos. Algumas freqüências são mais acessíveis para um tipo de público,
por já serem muito utilizados no cotidiano. Um exemplo comum disso é a campainha de dois sons, que é um
intervalo de 4.ª (justa, descendente).
123
A terceira parte, Piu Mosso, está em Lá Maior, e, mais uma vez, harmonicamente, os
acordes e o acompanhamento se movimentam em conformidade com este tom. É a parte
contrastante da peça.
A melodia dessa parte está toda em semínimas o que a torna muito próxima do
Prelúdio 5 nesse aspecto (que seria composto quase 30 anos depois).
Nos compassos 9 e 10 a harmonia torna-se mais uma vez dissonante.
Os compassos 11, 12 e 13 possuem um clichê no acompanhamento que consiste em, mais do
que uma função harmônica, caminhar com as terças (fá-re; do-mi; sib-ré) para as duas casas seguintes
no braço do violão. O resultado sonoro também causa dissonância.
A Valsa-Choro, embora de simples apresentação, já demonstra o conhecimento que
Villa-Lobos tinha do instrumento. Note-se que uma boa extensão do violão é utilizada – do
uso de baixos da 6.ª corda até a casa 13 da 1.ª corda. Suas idéias musicais estão somente no
começo e o arsenal obtido até este momento apontam o bom domínio da linguagem popular,
que ele tanto prezava e freqüentava, e um conhecimento das possibilidades do violão já
razoável.
124
5.2. Chorinho da Suíte Popular Brasileira
Composta em 1923, durante a primeira estadia de Villa-Lobos em Paris, o Chorinho
foi utilizado para encerrar a Suíte Popular Brasileira. São 11 anos de intervalo entre esta peça
e as demais da suíte. Pode-se perceber que devido a esse intervalo o Chorinho possui um
caráter musical já diferenciado das quatro primeiras obras. Esse caráter diferenciado vai tanto
no formato - a obra possui três partes e dois temas, quer dizer não possui mais uma formarondó (A-B-A-C-A) - quanto na harmonia, que possui características distintas das anteriores.
Nessa ocasião, Villa-Lobos já havia escrito o Choros n.º 1(1920), e no Chorinho o compositor
carioca já está indo para uma segunda fase de sua carreira.
Segundo Marco Pereira (1984:95): ―O Chorinho, em relação às outras peças da Suíte,
tem uma harmonização bem mais rebuscada‖, destacando o paralelismo de acordes e
movimentos cromáticos entre as notas.
A primeira parte tem uma introdução de quatro compassos, cuja melodia
está nos baixos e este trecho possui acentuações rítmicas únicas na obra
violonística de Villa-Lobos.
Depois, a melodia-tema entra, toda gingada, por meio do uso de: síncopes65, fermatas,
tercinas, arrastes e ritenutos66, que favorecem e bem representam a ginga do estilo, quebrando
a constância do ritmo.
65
Síncope é o deslocamento do tempo fraco para o tempo forte seguinte, dando a sensação auditiva de
prolongamento do som. Usa-se em geral o sinal  para indicar a síncope.
125
Em seguida, uma pequena passagem (ou ponte) faz com que uma reprise do tema seja
apresentada.
Uma nova parte agora é desenvolvida por meio de uma seqüência de tríades (acordes
de três notas) de voz média acompanhadas de um baixo ostinato em lá, como uma percussão.
Uma nova ponte restabelece o tema para seguir em um tipo de variação do motivo inicial.
66
Arrastes são, como o próprio nome diz, a ação de arrastar as notas para chegar em uma outra nota. Não são
como os glissandos, que depois de arrastados não necessitam de mais um toque na última nota.
Ritenutos são pequenas retenções de notas, visando a ênfase, a quebra no andamento ou para denotar algo que
está para acontecer.
126
Essa variação acontece na região de voz aguda do violão, e está acompanha por sextinas e
fermatas67, representando uma espécie de improviso, típico da roda de choro, na qual a invenção em
cima de um tema dá a medida do intérprete.
Acontece uma volta para o motivo de tríades e, sem uma preparação maior a não ser o
pedido de um rallentando68, chega-se a uma segunda parte da obra, de caráter contrastante,
rítmico e harmônico, em Lá maior, que é introduzida por seis compassos, caracterizada
fortemente como um batuque.
67
Sextinas são um conjunto de seis notas agrupadas para serem tocadas com a duração de tempo de uma nota.
Ou seja, tocam-se 6 notas no tempo de uma nota só.
Fermatas (literalmente ―parada‖ em Italiano) são pontos de chegada na obra, podem ser utilizadas ao final ou no
decorrer da peça.
68
Rallentar é o termo para diminuir o andamento da peça, para preparar o início de uma nova parte, sendo bem
comum nas finalizações das obras.
127
Esta parte possui, além do uso contínuo das fermatas, uma força maior nos baixos que,
a modo de uma exibição de um violão 7 cordas, são baixos cantados e condutores de vozes.
sobre o trabalho de violão no grupo de choro Marco Pereira (1984:100) explica:
Dos grupos de Choro tradicionalmente estabelecidos, fazem parte dois violonistas,
tocando instrumentos distintos. O primeiro (...) tem a função de contrapontear com a
melodia e preencher as lacunas dos finais de frase. Este instrumento tem uma sétima
corda suplementar (dó) e o executante utiliza-se de um mediador, preso ao polegar
(dedeira) para ferir as cordas. Os dedos i, m, a69 formam uma unidade para os desenhos
rítmicos do acompanhamento harmônico. O segundo, que se utiliza de um violão clássico
normal, ocupa-se, sobretudo, dos encadeamentos harmônicos e do ritmo. Às vezes segue
as idéias melódicas do primeiro, num movimento de terceiras paralelas.
Existe um terceiro tipo de violão, também empregado no Choro, mais raramente,
denominado violão tenor. O violão tenor tem o tamanho de um violão clássico normal
porém com quatro cordas somente. Seu executante desempenha o papel de solista assim
como o de acompanhador, seguindo os desenhos melódicos dados pelo violão de sete
cordas.
Outra observação refere-se à Harmonia, na qual é empregado um clichê, o ―paralelismo de
acordes e cromatismo das notas‖70, dos quais falava Pereira.
69
70
Abreviatura dos dedos indicador, médio e anelar.
Paralelismo de acordes é a repetição da disposição de um acorde em várias partes do braço do violão (ou no teclado do piano etc.), nas
quais não é necessário ―desmontar‖ a posição criada pela mão esquerda; só vai saltando de uma parte a outra do instrumento.
128
Para finalizar, uma ponte leva ao retorno Da Capo e à coda final71.
Em comparação com os Choros n.º 1 e as peças populares de época, o Chorinho não possui
a terceira parte nostálgica, como diz Turíbio (1977:8): ―O Choros n.º 1 corresponde
perfeitamente à forma tradicional popular. As partes são A-B-A-C-A, sendo, conforme a
tradição, a terceira nostálgica. Efeito que os músicos obtinham com modulações ou mudanças
de ritmo‖. Mas, possui semelhanças no ritmo (fermatas, ginga) e no uso de baixos. Neste
sentido, a afirmação de Turíbio (1977:8) sobre o Choros 1 pode bem servir ao Chorinho
também: ―No Choros n.º 1, a melodia faz parte da harmonia e permite a qualquer momento a
parada inesperada, maliciosa. Enquanto isso, na região grave do instrumento, é sempre
preparada a intervenção de algum acorde. Ou como diria um chorão uma boa ‗baixaria‘ ‖.
Um aspecto importante do Chorinho é que na terceira parte há a caracterização forte do
batuque, talvez sua mais forte alusão à cultura afro-brasileira nas obras para violão72.
Cromatismo é a seqüência de notas vizinhas, por exemplo, do - do# - ré - ré# ...
71
Da capo: da cabeça, do início da peça.
Coda: trecho que leva ao final da música.
72
Há algumas peças de Villa-Lobos para canto e piano em que ele aludiu mais diretamente a cultura afro-brasileira: das Canções Típicas
Brasileiras Xangô, Estrela é Lua Nova, (1919) ambas baseadas em textos religiosos; do álbum n.º 1 Modinhas e Canções: Cantilena, (1938)
conhecida também por seu primeiro verso ―O Rei Mandou me Chamá‖, motivo dos negros do Recôncavo Baiano,
recolhido por Sodré Viana; Remeiro do São Francisco, (1941) tema dos mestiços do Rio São Francisco.
129
5.3. A fase inovadora dos 12 Estudos.
Afirmam muitos pesquisadores, como Mariz (1989:47), Tarasti (1994:241) e Béhague
(1994:69), que nos anos 20 inicia-se na carreira de Heitor Villa-Lobos uma maior
representação de correntes estéticas vanguardistas. Dois acontecimentos marcam essa fase: a
participação de Villa-Lobos na Semana de 22, em São Paulo, e sua ida a Paris em 1923.
Entretanto, estes autores destacam que não foi só a partir destes marcos que Villa-Lobos
passou a compor de maneira mais conectada com o pensamento estético de linha moderna.
Segundo Béhague (1994:150), Villa-Lobos acreditava mesmo que todos os seus
trabalhos anteriores já refletiam a ideologia modernista. Dizia que já era revolucionário antes
da semana de 22, pois suas músicas desafiavam a tradição do século XIX, subordinada ainda
aos padrões italiano e francês. Mariz (1989:16) também alude a uma antecipação de VillaLobos.
Wisnik (in Béhague 1994:150-151) afirma que a música de Villa-Lobos personificou a
ideologia de um país imaginado como em franco progresso e que seu trabalho correspondeu
às necessidades do contexto da década de 20, reconciliando aparentemente o projeto da nova
arte com a perspectiva otimista de um novo país que estava nascendo.
Já Mário de Andrade, citado por Béhague (1994:150-151), em seu Ensaio sobre a
música brasileira, datado de 1929, ao falar sobre a música nacionalista, disse que a mera
utilização de música folclórica como um elemento exótico deve ser rejeitada em favor de uma
expressão de nacionalidade natural e necessária. Enquanto reconhece a grande qualidade da
música de Villa-Lobos, Andrade denuncia a ―música pseudo-índia‖ em alguns de seus
primeiros trabalhos como um indesejável elemento de exotismo. Todavia, Andrade
reconheceria em 1941 que depois da experiência da Semana de 22, Villa-Lobos abandonou
130
conscientemente seu internacionalismo francês para tornar-se o iniciador e a figura máxima
da fase do Nacionalismo.
Em Paris, Villa-Lobos conheceu músicos como Paul Dukas, Vincent d‘Indy, Igor
Stravinsky, Sergei Prokofiev, Edgard Varèse e outros. De acordo com Béhague (1994:72), sua
primeira viagem a Paris serviu para reforçar e confirmar a aceitação internacional de sua
―tendência estética prévia‖. Béhague conclui que cerca de dois terços das 130 obras de VillaLobos compostas entre 1922 e 1930 correspondem a um anseio nacionalista, mas também
representam a fase mais experimental e inovadora de sua expressão nacionalista. E dentro
desta fase do compositor, encontram-se os 12 Estudos para violão.
Os 12 Estudos, compostos entre os anos de 1924 e 1929, têm, segundo Tarasti (1994:
241), como paradigma as entonações da música popular carioca, nas figuras dos músicos que
Villa-Lobos respeitava muito, como Quincas Laranjeiras, Anacleto de Medeiros, Sátiro
Bilhar, Ernesto Nazareth e outros, por outro lado, o título 12 Estudos em si mesmo é uma
referência que remonta a numerosas coleções de peças na arte musical do Ocidente, tais como
as séries de estudos de Chopin, Paganini, Liszt, Debussy e Bach.
Conclui Tarasti que os anos em que Villa-Lobos escreveu os estudos revelam a
natureza polimórfica do seu pensamento musical; este é precisamente o período de sua maior
produção de trabalhos de vanguarda (configurada no uso de dissonâncias e polirritmias), mas,
na opinião do autor, é somente refletido ligeiramente na textura dos estudos para violão.
Entretanto, aponta que o processo foi o mesmo em Chopin, que em seus estudos alargou as
possibilidades técnicas e sonoras do piano, embora a estrutura tonal tivesse permanecido
relativamente estável (comparada a Czerny, Hummel, Weber e todos os precedentes da
literatura de piano). Do mesmo modo, os estudos de Villa-Lobos contêm referências à
131
literatura violonística clássica ao passo que abrem novas possibilidades para o uso do
instrumento.
Escritos durante a permanência do autor na capital francesa, os 12 Estudos
revolucionaram a história do violão. Compostos a pedido de Andrés Segovia, os estudos
porém não foram do agrado do mestre espanhol devido à sua linguagem moderna, enquanto
que Segovia desejava algo mais romântico73. Somente os Estudos 1, 7 e 8 foram estreados e
gravados por Segovia em 1947. A publicação pela editora francesa Max Eschig se deu em
1953 e a performance completa, inclusive a gravação, foi do violonista brasileiro Turíbio
Santos em 1962.
Até onde se sabe, a versão publicada foi baseada em um dos originais da editora
francesa Max Eschig, mas ainda havia uma outra (atualmente em posse do Museu VillaLobos), contendo muitas indicações de dinâmica e dedilhados 74 e, algumas partes são até
muito diferentes da versão editada75. Além disso, há um terceiro material, pertencente ao
violonista e professor uruguaio Abel Carlevaro (1917-2001), que recebeu das mãos de VillaLobos quando teve aulas com o compositor nos anos 40.
Os aspectos revolucionários dos 12 Estudos podem ser sentidos pelo fato de que o
violão é explorado em uma dimensão até então inédita, ainda resultando em um material
musical expressivo. Várias possibilidades foram trabalhadas: arpejos, posições fixas e
posições de alta movimentação na mão direita, acordes repetidos e cordas soltas, escalas
virtuosísticas, rasgueados, ligados, glissandos76, e ainda o uso alternado destas
73
Na correspondência entre Segovia e o compositor mexicano Manuel Ponce, Segovia confidencia a questão.
Dedilhados na linguagem violonística são sugestões de posicionamento dos dedos no corpo do instrumento. A
nomenclatura de dedilhado da mão direita é: (P) polegar, (i) indicador, (m) médio e (a) anular; da mão esquerda
é: (1) indicador, (2) médio, (3) anular e (4) mínimo. As sugestões do dedilhado podem ser dadas pelo compositor
ou a critério do intérprete.
74
75
Eduardo Meirinhos em sua dissertação de Mestrado na Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP analisou
os 12 Estudos a partir dos manuscritos.
76
Rasgueados são os movimentos típicos do violão flamenco, no qual a mão direita executa volteios com os
dedos e parte das mãos, de acordo com a escolha do executante. Em violão, Ligados são passagens na mão
132
possibilidades. Na música, pode-se depreender tanto o estilo barroco de Bach quanto o de
obras clássicas do violão, além de uma harmonia muitas vezes impressionista, atonal ou
pseudo-tonal, e a inclusão de melodias brasileiras.
Entre todas as diferenças sobre a edição da Max Eschig e do manuscrito, o Estudo 10
possui uma mais marcante: a versão manuscrita tem 33 compassos a mais que a versão oficial,
impressa pela editora francesa. O Estudo 11, também apresenta alterações consideráveis,
revelando uma nova dimensão deste que é o mais revolucionário da série.
Segundo Turíbio Santos (1977:15), embora esta coleção de obras tenha
sido composta entre 1924 e 1929, muitas de suas idéias e formas já estariam armazenadas no
mundo musical de Villa-Lobos há muito tempo:
Alguns arcabouços muito próximos do acompanhamento popular (Estudo n.0 4, Estudo n.0
6), desenvolvimento de fórmulas idênticas às da Carcassi, Carulli, ou Aguado, mas
sempre com o sabor do acompanhamento (Estudos 2, 3 e 9) mostram a influência do
chorão, embora dominada totalmente pelo criador erudito buscando preencher lacunas no
repertório do instrumento.
Turíbio acrescenta (1977) que o oposto também acontece, isto é, que
em alguns dos Estudos veremos idéias que serão utilizadas mais tarde nos Prelúdios (1940),
por exemplo, principalmente os três últimos Estudos:
É interessante notar que os três últimos Estudos são constituídos por três partes sendo a
terceira, uma retomada da primeira que em todos três as partes centrais se diferenciam
muito das outras que nos rabiscos do Estudo 11 já estão esboçadas algumas idéias do
Prelúdio n.0 1. Em suma, que os três últimos Estudos, anunciam, já, o aparecimento dos
Prelúdios em 1940.
esquerda de uma nota para outra, executando somente um movimento entre as notas na mão direita, isto é, a
segunda nota vai soar sem que na verdade tenha sido tocada pela mão direita.
Glissandos são os efeitos produzidos pelo escorregar de uma nota, passando por todos os sons, até chegar à nota
destinada, dando um efeito sonoro de continuidade.
133
Fabio Zanon (1991) teve como tema de sua dissertação de Mestrado na Royal
Academy of Music, Londres, Inglaterra, os 12 Estudos para violão de Villa-Lobos como fonte
para música de violão do século XX. O violonista concluiu em seu trabalho que os estudos
possuem inovações fundamentais como: exploração de diversos modelos de arpegios;
exploração sistemática de posições fixas em conjunto com cordas soltas; incorporação de
cordas abertas à harmonia, em contextos estáticos; enriquecimento do aspecto tímbrico;
rápida alternância de elementos contrastantes; vozes inusitadas em escrita polifônica;
apresentações da linha melódica sobre um modelo arpegiado; uso de glissando em notas
sozinhas ou em blocos; obtenção simultânea de traços melódicos e técnicos. Zanon completa
que estes modelos depois seriam encontrados em peças para violão de Leo Brouwer, Núncio
d‘Angelo, Maurice Ohana, Hans Werner Henze, Stephen Dodgson, Marlos Nobre, William
Walton, Eliot Carter, Milton Babbit, Alberto Ginastera, Camargo Guarnieri, Lennox
Berkeley, Benjamim Britten e outros.
O Museu Villa-Lobos, situado na cidade do Rio de Janeiro, possui vasto material de
partituras, objetos pessoais e os instrumentos de Heitor Villa-Lobos: o piano Gaveau, o
violoncelo e o violão presenteado por Tereza Terán, restaurado pelo luthier Sérgio Abreu. O
montante de partituras (mais de mil obras) ocupa quase toda a parte de cima do Museu. Lá
estão localizados os manuscritos dos 12 Estudos na versão diferenciada da editora francesa
Max Eschig.
Em entrevista na qualidade de diretor do Museu, o violonista Turíbio Santos explicou
a questão dos manuscritos77:
Os manuscritos do Villa-Lobos nós, durante um certo tempo, protegemos e evitamos a
fotocópia porque havia uma promessa da Max Eschig de editar o fac-símile. Como a Max
77
Entrevista em setembro de 1999. Publicada parcialmente em Violão Intercâmbio n.º 38.
134
Eschig não cumpriu, eu liberei. Hoje em dia qualquer pessoa que venha aqui pode
fotocopiar os fac-símiles. Agora, eu tenho a minha opinião própria sobre eles. Eu acho
que à medida em que, por exemplo, se observam os três manuscritos de uma obra só - o
Estudo n.º 1- tem três originais ali, é uma seqüência; ele fez um rascunho, fez a cópia, e
fez a cópia pra edição. Eu acho que o ideal é sempre tocar o que está editado porque o
que está editado foi a decisão estética do próprio Villa-Lobos, a decisão final dele. Têm
aparecido gravações, por exemplo, do Estudo 10, com pedaços que ele retirou. Eu acho
que como laboratório, como pesquisa, é válido, mas a decisão estética do Villa-Lobos foi
aquela que foi editada. Você pode até corrigir uma notinha ali, uma acolá, até por uma
questão de lógica você pode chegar: ―Não, isso aqui não, por uma questão de lógica, já
que na reprise está de uma tal maneira, na primeira parte não poderia ter esta nota‖, por
exemplo. Você deduz, dá pra deduzir e fazer uma boa revisão, entende? Mas é essa a
minha opinião - as pessoas devem tocar realmente o que está editado.
Como já foi dito, os 12 Estudos foram compostos a pedido de Segovia e dedicados a
ele. Sobre o papel de Segovia no desenvolvimento dos Estudos, Turíbio afirma:
Tem uma carta no Museu ( de Segovia a Villa-Lobos, em 1.º de maio de 1952, em posse
do Museu Villa-Lobos) dizendo assim: ―Eu não sei se você se lembra que nós mudamos
alguma coisa no estudo 7. Em todo caso, se a edição vai aparecer em seguida, avise-me e
eu lhe enviarei uma cópia com as mudanças que nós concordamos na ocasião de nosso
encontro em Paris‖. Quer dizer, o Segovia tinha revisado o Estudo 7 e aí eu digo o que eu
ouvi o Villa-Lobos dizer78 - ―Faz como o Segovia fez no disco, assim é que eu queria‖,
mas não teve tempo, a edição saiu na frente.
Sobre possíveis revisões dentro da editora francesa Max Eschig na obra de VillaLobos, Turíbio declara:
Há editoras que são rápidas e eficientes e outras que são lentas. Mas às vezes tem algum
imperativo comercial (...) Mas no caso aí destas antigas editoras, os prazos às vezes
dependiam até de financiamento, por exemplo, a família Guinle do Rio de Janeiro,
investia dinheiro na Max Eschig pra que eles copiassem o material de Villa-Lobos, e
copiar o material de uma sinfonia é um pacotão desse tamanho, é muito dinheiro de
investimento. Mesmo uma obra pequena como os 12 Estudos tem revisor. O revisor aí,
não é revisor do conteúdo da obra, é revisor das notas, mesmo assim têm várias revisões,
aí o gravador pode errar novamente, perder uma chapa.
78
Turíbio Santos teve um encontro com Heitor Villa-Lobos em 1956 em uma palestra no Rio de Janeiro.
135
5.4. Estudo 10.
Segundo Tarasti (1994: 246), o Estudo 10 é ritmicamente um dos mais complexos da
série toda: ―Aqui há a polirritmia de Villa-Lobos dos anos 20 penetrada no violão pela
primeira vez‖. Afirma que o tratamento do instrumento é quase percussivo e a estrutura
formal é convencional ABA.
Pereira analisou a forma como o Estudo 10 é apresentado:
A - B - ponte - A1 - coda
A - (compassos 1-20)
B - (compassos 21-56)
ponte - (compassos 57-65)
A1 - coda (compassos 66-73)
Na seção A, a tensão é criada com uma linha ascendente cromática e ritmos
adicionados: 4/8, 3/8 e 2/8 , isto é, as métricas são alternadas rapidamente e as frases são
pontuadas por figuras ornamentais. A seção B, que é alcançada pela execução de 16 notas,
prossegue para um motivo ostinato79 (como em Prole do Bebê e Rudepoema).
Tarasti também analisa que uma caracterização africana na música é evidente no
estudo todo – não somente no sentido da herança brasileira, mas também comparado à moda
negra na Europa durante os anos 20 e a aparição de nomes como Francis Poulenc, Darius
Milhaud e outros compositores do período.
Segundo Marco Pereira (1984: 54-57), ―tecnicamente, o Estudo n.º 10 pode ser
classificado como um dos mais difíceis da série devido à sua parte central onde o compositor
pede um ligado constante sobre grupos de quatro notas‖. E mais adiante afirma:
136
A execução desse grupo rítmico é praticamente impossível segundo a idéia de VillaLobos pois, paradoxalmente ao geral de suas obras, é anti-violonístico pondo em risco a
clareza da execução. A saída que os instrumentistas encontraram e que hoje está por
quase todos adotada é a de fazer a ligadura somente sobre três notas.
Béhague (1994:140), provavelmente apoiando-se em Turíbio e Pereira, também afirma
que no Estudo n.º 10 a passagem do ligado de quatro notas é ―praticamente considerada
impossível de se executar segundo os intérpretes, e que estes aplicam o legato de três notas
somente‖. E pondera que talvez a mais ousada experiência nos últimos três estudos venha da
dinâmica, contraste e inovação rítmica, derivada de reminiscências de modelos rítmicos afrobrasileiros, mudando os acentos e ostinatos nos estudos de n.º 10 e 12.
Atualmente não há mais essa consideração da impossibilidade da execução do ligado de
quatro notas. Toca-se normalmente, como está escrito na partitura.
Sobre a tonalidade e posições fixas de mão esquerda, afirma Marco Pereira (1982:54):
O Estudo 10 não deve ser analisado de um ponto de vista tonal apesar de Villa-Lobos
haver colocado alterações na clave sugerindo uma possível tonalidade de si menor80.
Outra vez Villa-Lobos utiliza a fórmula fixa para a mão esquerda e, em cima dela, faz
diferentes combinações rítmicas. Ele consegue, através do deslocamento da mão esquerda
com apresentação fixa (somado às três cordas soltas do violão - notas que não se
movimentam) harmonias de grande efeito.
Segundo Turíbio Santos (1977:19), o Estudo 10 assim como os Estudos 7, 11 e 12,
representam um
grande desafio à técnica e às inovações; os acordes iniciais são
amalgamados com formas de appogiaturas81 nos graves. No un peu anime (um pouco
animado) os baixos desenvolverão uma melodia, enquanto na região aguda, uma appogiatura
bastante semelhante à inicial, pode sugerir um canto de pássaros. Na opinião de Turíbio,
voltando à parte inicial Villa-Lobos aborda células rítmicas oriundas do samba ou da música
79
Ostinato, como o próprio nome diz, é um movimento obstinado de repetição de algum grupo de notas ou
célula motívica.
80
Clave é o sinal gráfico que aparece no início da pauta musical. Em violão, lê-se a partitura em clave de sol (
). Alterações na clave são sinais de sustenidos (#) ou bemóis (b) que se colocam logo no início da clave,
alterando a tonalidade da peça.
81
Appogiaturas são ornamentos nas notas ou em acordes.
137
africana, e em algumas passagens deste Estudo, pode-se empregar o dedo mínimo da mão
direita82.
O andamento inicial solicitado é Très anime (muito animado). Os dois sustenidos na
clave indicariam a tonalidade de si menor, mas o acorde de si desde o começo da peça não
apresenta a terça83 do acorde. Parece, portanto, ser mais uma comodidade quanto à escrita do
que uma relação harmônica.
A primeira parte assemelha-se a uma introdução da peça; a melodia está nos graves,
acompanhada de acordes, iniciados como acordes normais, mas envolvidos pelas notas mi e
si, a primeira e a segunda cordas do violão, respectivamente. Pereira diz sobre essa parte
(1984:55)
Villa-Lobos emprega uma fórmula fixa para a mão esquerda: dedos 1,
3 e 4 que formam respectivamente uma quinta e uma oitava com a
nota fundamental ou de base. O acorde que se forma não determina
uma tonalidade pela falta da terceira e o caráter ―flutuante‖ cria um
efeito de tensão que aumenta segundo o deslocamento cromático
ascendente dessas três notas.
Este tipo de procedimento tornou-se muito usado no instrumento e várias peças,
inclusive o Decameron Negro de Brouwer, utilizam este estilo de formação do acorde. No
Prelúdio 2 (1940), o próprio Villa-Lobos retomaria este clichê.
82
A escola clássica de violão não tem por hábito a utilização do dedo mínimo da mão direita, embora não haja
nenhum impedimento técnico para o seu emprego. Atualmente, seu uso está a critério dos intérpretes.
83
Em harmonia, um acorde pode ser caracterizado em Maior ou menor, de acordo com a colocação de sua terça
– para ser um acorde de si menor, a terça apresentada deveria ser ré, mas aqui está ausente no acorde.
138
Do compasso 1 ao 6 o acorde de Si sem a terça encaminha-se para o mesmo desenho
agora para um acorde de Dó (é o paralelismo de acordes novamente), do compasso 7 ao 10, e
depois para Do#, entre os compassos 11 e 16, ambos sem a terça.
É importante frisar que este caminho cromático de Si-Do-Do# e a não fixação de uma
tonalidade são demonstrações práticas que é nos Estudos que Villa-Lobos se desvencilha do
tradicional. Aqui a simetria é mais elaborada nos movimentos das partes e está desimpedida
pela lógica da Harmonia tradicional – outro exemplo disso é que a nota mi, da primeira corda
solta, soa livremente, independente da composição harmônica à qual possa se ligar nos
acordes, como acontece nos compassos 3, 6 e 9. Ou a nota si, na segunda corda solta, que
também acompanha os movimentos simétricos em todos os compassos deste trecho – mais
para formar o desenho do movimento do que uma ligação com os acordes.
No compasso 19, uma escala em andamento Vif também parece mais seguir um clichê
físico do instrumento, do que ter alguma razão harmônica de modulação para a parte seguinte.
Pereira diz (1984:55):
Uma escala ―vif‖ faz a ligação entre as duas partes. A seção B é desenvolvida em duas vozes:
um ―ostinado‖ rítmico formado por um grupo de quatro colcheias ligadas por um arco e um
―cantus firmus‖ de caráter modal, na região grave do instrumento. O modelo rítmico do grupo
de quatro semi-colcheias foi retirado da primeira seção (A).
139
A parte seguinte, Un peu animé já descarta, por meio dos dois bequadros84 no início da pauta,
a tonalidade anterior, e também não se coaduna com as tonalidades possíveis: Do Maior ou lá
menor. Pode até ser cogitada aqui alguma possibilidade de tom, como Sol Maior, mas não há
realmente prova plena.
O acompanhamento que introduz a melodia principal está em uma voz mais aguda,
que se alterna entre a primeira e a segunda cordas e, mais uma vez, se aproxima mais das
possibilidades físicas do violão do que um acompanhamento harmônico. Sobre esse
acompanhamento, trata-se de um ligado de 4 notas que já obteve algumas considerações
anteriores (Pereira 1982: e Santos 1977: ) quanto à dificuldade ou até a impossibilidade de
ser executado. Hoje, sabe-se que não há nada de contestável nele, e várias gravações,
nacionais e internacionais, comprovam isso. Esse ligado de 4 notas, como comenta Zanon
(1991), relembra o ornamento (a appogiatura) da parte anterior.
A melodia principal surge no compasso 2 e muda três vezes de tessitura: de fá para lá
e depois para sol. Somente quatro notas, alargadas pela figura de mínimas é que fazem a
melodia principal, que recorda alguma reminiscência de material folclórico (talvez o Sapo
Cururu):
84
O sinal gráfico de bequadro anula os acidentes anteriores, fossem sustenidos ou bemóis. Portanto, o início da
segunda parte indicaria que não há mais acidentes e que a harmonia se voltaria para os possíveis tons de Do
maior ou lá menor – que são as tonalidades quando não há acidentes na pauta.
140
Depois de passar por esses três tons, a melodia se fixa na nota si, variando agora de
figuração métrica entre semínimas e tercinas:
O acompanhamento tem agora uma extensão não mais das duas primeiras cordas, mas
sim as seis cordas do violão, em um movimento simétrico ora ascendente ora descendente.
Uma rápida volta para o início da parte retoma uma vez mais a possível cantiga de roda, para
chegar a uma seqüência de Fá# na qual a linha melódica está na ponta dos acordes formados,
todos a partir do Fá #, até que uma movimentação simétrica do mesmo tipo leva o
acompanhamento e a melodia para o Fá e depois para o Mi:
141
Finalizando o Estudo, em andamento Vif, a melodia é a mesma do começo da peça,
mas com uma movimentação simétrica maior: de Si (Casa 2) para Ré (Casa 5), Fá (Casa 8),
Sol (Casa 10) e Si (Casa 14), que atinge o clímax também rítmico, com a indicação de
sextinas. A peça termina com um grande harpejo em quintinas85 e o acorde inicial de Si sem a
terça86:
Sobre esse final, Pereira afirma:
Na coda, Villa-Lobos, utilizando-se do motivo inicial, cria riquíssimas variações rítmicas
entre polegar indicador, médio, anular. As quintas e oitavas paralelas, deslocando-se em
saltos de terceira menor, tendo como pedal a segunda e a sexta corda, engendram uma
tensão magnífica atingindo seu ápice num rasgueado em seis-quiálteras87 sobre o acorde
do início transportado para a oitava superior.
85
Quintinas são grupos de notas (5), como as tercinas (3) e as sextinas (6), tocadas a um só tempo.
A terça dentro de um acorde é a nota que o qualifica como de tom maior ou menor.
87
As sextinas também são chamadas por seis-quiálteras.
86
142
5.5. Estudo 11.
O Estudo 11 está na tonalidade de Mi menor, seu andamento é Lento com alterações
para Piu Mosso e Animé em várias partes. Como afirma Turíbio Santos (1977:20), trata-se de
um estudo de arpejos e acordes, com extensões para a mão esquerda e grande utilização do
polegar direito: ―Um contraste se estabelece entre o canto brasileiro imitando o violoncelo e a
ornamentação ligeiramente impressionista imitando a harpa. A influência da música francesa
dá uma pincelada no mais brasileiro dos Estudos‖.
Sobre este estudo, o violonista Marco Pereira (1982: 57) afirma que possui uma das
mais geniais proposições do compositor ao nível da criatividade na técnica instrumental e
possuidor de um resultado sonoro inusitado.
Para Tarasti (1994:247-248), o Estudo 11 pode ser visto pelo esquema formal ABCBA
ou entendido como o C sendo uma variante do A (A B A‘ B A). A seu ver, ao redor deste
simples esquema Villa-Lobos forma um efetivo drama musical. Tarasti opina que o sabor
narrativo do Estudo remonta uma balada e lembra os romances de Jorge Amado, descrevendo
o Nordeste. Assim como todos os outros autores estudados, Tarasti também concorda que
neste estudo Villa-Lobos alarga radicalmente o escopo expressivo do violão. Em sua visão, a
melodia da parte A soa como um violoncelo e a da parte B, como uma harpa. Na parte A,
aponta a presença de muitos tonalidades (como na peça Amazonas) e sextinas como no Estudo
8. Na parte B, Tarasti afirma que criou-se uma atmosfera sonora única, e a impressão que fica
e de uma narrativa épica. A volta ao tema (na parte final) refletiria ―a solidão e a melancolia
sem fim de uma terra desolada‖, afirma Tarasti.
Na parte harmônica, a peça é iniciada na subdominante (lá menor) e a segunda parte
será desenvolvida na tonalidade de Dó maior.
A análise de Pereira (1982:57) é de que o Estudo 11 foi concebido numa estrutura
similar à do rondó em cinco seções e dois temas: A – B – A1 – B1 – A e a harmonia da peça
143
possui traços dissonantes:
A frase dos quatro primeiros compassos tem início sobre a subdominante e se desenvolve
na região intermediária do quadro harmônico. Esta melodia é sustentada pelo baixo e
colorida por acordes dissonantes.
As variações rítmicas da frase subseqüente são feitas baseadas no intervalo de quinta
diminuída: mi — si bemol, combinado com acordes de tônica (sem terceira) onde a sexta
tem o papel da picardia.
O tema inicial se divide em Lento e Piu Mosso. No Lento, a melodia está na quarta
corda do violão, na qual o autor pede ―bem cantado e muito expressivo sobre a corda Ré
(“Bien chanté et très expressif dans la corde (D)). Este canto inicial ressoa como uma corda
de violoncelo, recurso que Villa-Lobos utilizaria mais tarde no tema do Prelúdio 1 e também
na segunda parte do Prelúdio 5:
Tema da 2.ª parte – Prelúdio 5:
Tema do Prelúdio 1:
144
No quarto compasso surge já um contraste a esta melodia lânguida, por meio do
pedido de um andamento Piu mosso (mais movimentado). Zanon (1991) comenta que há
traços que lembram A Cabana de Baba-Yaga do compositor russo Modest Mussorgsky (18391881) do Quadros de uma Exposição, e aponta os compassos de 4 a 7, ou seja o Piu Mosso,
como exatamente as mesmas notas da seção intermediária do Baba-Yaga.
A parte B, Animé, provem ainda do Piu Mosso da parte anterior. O Animé tem uma
melodia embutida, contornada por terças (nas notas si e sol, respectivamente as 2.ª e a 3.ª
cordas soltas do violão). O andamento é animado, introduzindo uma segunda melodia,
acompanhada das terças, e alternada por grandes arpejos.
Pereira (1982:59) diz:
A seção B que será desenvolvida na tonalidade de do maior, apresenta um novo tema. Esse
tema é feito da combinação de um motivo rítmico-pedal e de um motivo melódico, um estático e o
outro móvel ambos formados pelo intervalo de terceira maior.
O harpejo (seis-quiálteras e tercina) no compasso 5/4, sobre o acorde de tônica confirma a tonalidade
da seção.
O ritmo das terceiras móveis é bastante especial podendo ser associado a uma Conga lenta.
145
Sobre a utilização das terças maiores na parte B, Zanon (1991) afirma que isso
remonta mais uma vez à utilização da sonoridade da viola caipira e a violência (sforzzatos)
com que o baixo é solicitado sugere o som do berimbau. A comparação com o som do
berimbau na obra violonística de Villa-Lobos também já foi feita por Béhague (1994:142), só
que no Prelúdio 2 (na segunda seção).
As questões técnicas do Estudo 11 começam nessa parte, pois o longo arpejo
solicitado, formado por seis quiálteras e uma tercina, solicitam a utilização na mão direita do
dedo anelar para executar um rasgueado, em um movimento muito próximo do violão estilo
flamenco. Com isso, Villa-Lobos amplia em muito a extensão do arpejo do violão.
Este movimento de andamento Poco Meno atinge um dos pontos-altos da escrita
violonística. A melodia embutida nesta parte é o tema inicial da peça, apresentado agora de
forma alargada e somente na 5.ª corda do violão (antes estava na 4.ª corda) e é entrecortada
sempre por três acordes (como faria também de maneira aproximada no Prelúdio 4). A
dinâmica, no meio dessa profusão de notas na qual se alcança um dos maiores volumes de
som do instrumento, é assinalada em acentuações de crescendo e decrescendo.
Esta parte central da peça possui um dos maiores avanços em termos de inventividade
na escrita para violão. Grande conhecedor que era do instrumento, Villa-Lobos concebeu
146
apresentar a tônica (mi) em cinco cordas diferentes, por meio de seis quiálteras:
na 6.ª corda (solta),
na 5.ª corda casa 7,
na 1.ª corda (solta),
na 2.ª corda casa 5,
e na 3.ª corda casa 9.
Tudo isso auxiliado por um arpejo de ida e volta com os dedos indicador, médio e
anular. Turíbio (1977:20) diz sobre este trecho: ―Na parte central o efeito de Campanela88,
utilizando em determinados momentos cinco ‗mis‘ do violão e fazendo-os contrastar com o ré
da quarta corda, marca data na história do instrumento‖.
Em seguida, há o retorno à segunda parte, Movido, acrescida de uma pequena
alteração e, depois, o retorno à melodia-tema, com pequenas alterações, que mais parecem
equívocos da edição da partitura, mas que têm sido seguidos à risca pelos intérpretes.
88
Campanela é o efeito de reproduzir a mesma nota em distintas partes do instrumento.
147
5.6. A série de 5 Prelúdios.
Após a série de 12 Estudos (1929), Villa-Lobos ficaria onze anos sem compor para
violão. Mas, segundo Turíbio Santos (1977:23), a presença do instrumento se faria notar de
outras formas, por exemplo, a composição de Distribuição das Flores (1937) para coro
feminino, flauta e violão e a transcrição para violão a Ária de Bachianas Brasileiras n.º 5
(1938) por solicitação da cantora e violonista Olga Praguer Coelho. Turíbio também alude ao
fato de que o violão estaria presente subliminarmente no emprego de certos temas ibéricos no
Descobrimento do Brasil, em 1937, principalmente o tema de Canários.
Em 1940, Villa-Lobos retoma o instrumento e compõe os Prelúdios, sendo que um
sexto prelúdio estaria perdido até hoje. Turíbio (1977:25) afirma sobre isso:
Nós realizamos algumas pesquisas sobre esse desaparecimento. Várias versões foram
propostas. Vejamos algumas delas.
Segundo uma delas o sexto Prelúdio teria desaparecido durante a Guerra Civil
Espanhola, numa residência de Andrés Segovia, bombardeada. Segundo outra, estaria
ainda dormindo em alguma prateleira esquecida numa casa de edições ou no longo
caminho que segue um original até sua gravura final. Mais outras: teria sido
surrupiado por algum admirador doentio (chegamos mesmo a contatar um senhor
inglês que se jactava de possuir vários originais de Villa-Lobos, pura fantasia), ou a
melhor de todas: como Villa-Lobos teria composto somente cinco Prelúdios, e a fim
de não contrair a tradição musical dos múltiplos de seis, o último seria puramente
imaginário. Ora, se esta última versão fosse verídica, teríamos um caso de alucinação
coletiva pois recolhemos vários testemunhos (inclusive o de Andrés Segovia e
Arminda Villa-Lobos) sobre a existência do Sexto Prelúdio.
Béhague (1994: 140-141) afirma que os Prelúdios representam algo da mais profunda
e afeiçoada expressão da alma musical brasileira de Villa-Lobos; cada um retrata traços
específicos do que é essa alma de uma maneira mais sincera e direta. Também destaca que a
popularidade destas peças provém não somente do caráter romântico em geral de modelos
populares que os inspiraram, mas também da altamente sofisticada e habilidosa exploração do
instrumento. Villa-Lobos nomeou cada Prelúdio com uma dedicatória:
148
Prelúdio n.º 1 – Homenagem ao Sertanejo Brasileiro
Prelúdio n.º 2 – Homenagem ao Capadócio
Prelúdio n.º 3 – Homenagem a Bach
Prelúdio n.º 4 – Homenagem ao índio brasileiro
Prelúdio n.º 5 – Homenagem a vida social.
Ainda segundo Béhague (1994:141-142), os Prelúdios são muito próximos em estilo
às Bachianas, na forma melódica, no idioma harmônico e nas práticas modulatórias e, embora
não sejam tecnicamente inovadores como os Estudos, eles têm um lugar especial na música de
Villa-Lobos, pois pertencem à área da expressão de sentimentos de brasilidade do compositor,
sem recorrer a estilos mais óbvios.
Como relembra Tarasti (1994:239), os Prelúdios estão entre as obras mais executadas
de Villa-Lobos e incorporaram todo os traços standard do estilo violonístico villalobiano,
citando-os: movimento paralelo de acordes; ambigüidade tonal; politonalidade embora não
sistemática. Na seleção de acordes, uma particular função expressiva é dada aos acordes
menores com 7.ª.
Tarasti (1994:240) crê que na produção de Villa-Lobos, os Prelúdios para violão
pertencem ao romantismo nacional de sua fase intermediária, da mesma forma que o Ciclo
Brasileiro está para o piano.
Sobre a importância dos Prelúdios, Turíbio (1977:28) destaca-os como livres do ―ranço
nacionalista‖:
Os Prelúdios, no fundo, são retratos musicais (...) de um povo, de um país. Uma gama
infinita de sentimentos profundamente brasileiros desfila nessas cinco peças. E tudo sem
o ranço nacionalista, sem o chachado [sic] ou o baião obrigatório. Nada mais que um
clima, um temperamento, um ambiente.
Essa fase da vida de Villa-Lobos é fortemente marcada por sua atuação junto ao
governo Vargas; é a era das grandes manifestações do Canto Orfeônico. Vasco Mariz
149
(1989:223-224) é um dos autores que defende a posição de Villa-Lobos como um ser
apolítico.
Após os Prelúdios, Villa-Lobos tornaria ao instrumento somente para escrever
transcrições, como a Canção do Poeta do Século XVIII (escrita para piano e voz em 1943 e
refeita para canto e orquestra em 1958) transcrita em 1953; a Canção do Amor para canto e
violão e o Veleiro para canto e dois violões em 1958, escritas ambas para o filme Green
Mansions (no Brasil, A Flor que não Morreu). Posteriormente a música do filme é editada em
disco com a denominação de Floresta do Amazonas; a Modinha, Seresta n.º 5 da série de 14
Serestas, escritas em 1925, é transcrita também a pedido de Olga Praguer Coelho.
150
5.7. PRELÚDIO 4
Tarasti (1994:240) diz que o Prelúdio 4 é como uma balada no mesmo sentido do
Estudo 11. A seção B é também um tipo de bachianismo, uma textura que Villa-Lobos
prontamente adaptava para outros instrumentos também.
Béhague (1994:142) concorda com a ligação feita com a música de Bach. Critica,
entretanto, as alusões a uma intenção indianista deste quarto prelúdio, afirmando que esta é de
difícil verificação, a menos que alguém esteja inclinado a reconhecer as fórmulas
estereotipadas associadas à música indígena da época – a saber, frases curtas, modalismo e
ritmo estático, como tentativas de evocações de uma música primitiva.
Marco Pereira (1983:69), é um dos que justamente mencionam essa ligação entre a
simplicidade do tema e uma evocação ao indígena:
O tema do Prelúdio 4, por sua simplicidade, nos evoca o índio. Seu material temático foi
tirado de uma série de harmônicos naturais que se encontram na parte central da peça. (...)
Frases curtas de um compasso (em compasso ternário) intercaladas por um motivo rítmico
ostinato (em compasso quaternário). E esse motivo rítmico, apoiado no modalismo do tema,
que dá todo o caráter primitivo à peça.
Turíbio Santos (1977:27), relembra a dedicatória da peça: ―Homenagem ao Índio
Brasileiro‖ e a simplicidade da construção:
O Prelúdio 4, apesar de totalmente despojado e de uma construção claríssima - a melodia que
alterna com o bloco de acordes possui a força de uma orquestra, graças à utilização perfeita
das ressonâncias simpáticas do violão. Elas aparecem em toda a obra de Villa-Lobos mas aqui
são vestidas, ademais, pela melodia reproduzida com os harmônicos naturais.
O tema A é uma melodia com um canto bem destacado do acompanhamento, e que é
entrecortada por três acordes (como Villa-Lobos já havia feito no Estudo 11). A harmonia da
peça está dentro do campo tonal. A melodia caminha da nota mi, solicitada na 3.ª corda (mas
que a maioria dos intérpretes reproduz na 4.ª corda, para obter um som mais volumoso) até o
mi da 6.ª corda, e Villa-Lobos demonstra sua grande afinidade com o violão.
151
O tema B é uma melodia acompanhada por arpegios, também de mi a mi.
.
Uma ponte leva para a parte seguinte:
A próxima parte é uma melodia feita por harmônicos89, que reprisa o tema A:
152
Para finalizar, um retorno ao tema A e um acorde final, que mescla as duas tonalidades
possíveis – mi menor e Sol Maior.
Justamente, o ponto-forte do Prelúdio 4 é a simplicidade e a lógica da construção que,
diferentemente da ingenuidade das peças da Suíte Popular, demonstram um domínio grande
do instrumento a ponto de saber exatamente o que é próprio de sua linguagem e ao mesmo
tempo tão despojado na comunicação.
A produção de harmônicos é um fenômeno acústico que consiste em uma ressonância natural de notas em várias partes dos instrumentos. No
violão produz-se o harmônico de forma natural, tocando levemente as cordas em pontos determinados por distâncias físicas no braço do
violão, ou produz-se os chamados ―harmônicos oitavados‖, com uma técnica própria na mão direita.
153
5.8. PRELÚDIO 5
O Prelúdio n.º 5, ―Homenagem à Vida Social‖, possui a pitoresca dedicatória: ―Aos
rapazinhos e mocinhas fresquinhos que freqüentam os concertos e os teatros no Rio‖ (sic).
Como afirma Turíbio (1977: 27-28), trata-se de um retorno às origens, da Suíte
Popular Brasileira:
Ele completa todo um ciclo de composições. E a volta da Suíte Popular Brasileira, da
melodia bem comportada, pacata, burguesa. Se não fosse pela segunda parte — onde a
melodia é violoncelo puro — este Prelúdio estaria quase mais coerente, dentro da Suíte
Popular. Mas não! Ele faz parte do retrato brasileiro. Não poderia deixar de estar entre os
Prelúdios. Confirmando também essa qualidade extraordinária do compositor, de reter um
tema ou uma idéia anos à fio, para utilizá-lo no momento oportuno.
Béhague (1994:142) ressalta que a valsa romântica, cultivada por numerosos
seresteiros, inspirou o Prelúdio 5, e que, embora não tenha sido escrito como uma valsa
convencional, esta peça é tida como uma nostálgica lembrança da elegância da valsa, outrora
dançada no Rio de Janeiro pela classe alta.
Pereira (1983:71-72) menciona estes seresteiros que se inspiraram na valsa:
Um dos ritmos mais utilizados pela velha geração de compositores populares
do Rio de Janeiro foi indubitavelmente a valsa. Em compasso ternário, a
valsa brasileira, profundamente romântica, foi fonte de inspiração de artistas
como Pixinguinha, Nazareth, Jacomino, Garôto, Reis e outros. Foi cavalo de
batalha de cantores seresteiros em suas andanças noturnas pela capital
carioca. A valsa brasileira mudava de compasso segundo a idéia que se
queria expressar indo do rápido/vivo (para coisas alegres e quando a intenção
era evidenciar o virtuosismo do executante instrumentista) ao lento
―choroso‖ (sobretudo para as melodias cantadas). Dois exemplos são as
valsas ―Desvairada‖ de Garôto e ―Rosa‖ de Pixinguinha.
Tarasti (1994:240) diz que o Prelúdio 5 representa o mais convencional ―violonismo‖
na série de Prelúdios e, em parte, pega emprestado alguns motivos das outras peças da série.
154
A peça é dividida pelas partes: A – B – C – A.
A tonalidade está em Ré Maior e a harmonia é apresentada de forma comum dentro desse tom.
A primeira parte é em andamento Poco Animato, em compasso binário composto 64 em
ritmo claramente ligado à valsa.
A melodia90 está na voz mais aguda e é um canto contínuo, incessante, todo em
semínimas, somente interrompido ao final da parte quando surge um diálogo entre esse canto
e uma voz no baixo, que reprisa a melodia-tema:
A segunda parte está na tonalidade de si menor, ou seja, na tônica relativa menor, e o
andamento indicado é Meno. A melodia principal está agora na voz grave e imita uma corda
de violoncelo, a exemplo do Estudo 11 (1929), Prelúdio 1 (1940) e Prelúdio 4 (1940):
90
Esse início da melodia tema do Prelúdio 5 assemelha-se a melodia Sonho de Magia de João Pernambuco,
destacado violonista que esteve presente em uma polêmica na vida de Villa-Lobos. A questão começou quando
foi movido um processo contra Villa-Lobos por José Martins Moreira Guimarães, cessionário das obras de
Catulo da Paixão Cearense, por causa da utilização do tema de Yara de Anacleto de Medeiros nos Choros 10,
que com o título de Rasga Coração possuía letra de Catulo. O processo envolveu João Pernambuco, Alfredo
Dutra, e as obras Luar do Sertão, Caboca di Caxangá, Engenho de Humaitá, e Tu Passaste por este Jardim. A
história e o processo são por demais longos, mas ao cabo de alguns anos, Villa-Lobos é inocentado. O caso
mereceu até o comentário de um dos maiores intelectuais da América Latina, o cubano Alejo Carpentier, que em
um irônico artigo no jornal El Nacional de Caracas em 5 de dezembro de 1953 defendeu o maestro
(Carpentier:1991). Nesta história toda, um nome parece ter sido o mais prejudicado de todos, João Pernambuco,
que na Justiça continuou destituído da autoria de Caboca di Caxangá e Luar do Sertão.
155
No compasso 4, assim como nos compassos 7, 8, 12 e 13, uma voz de acompanhamento surge
na ponta do acorde para uma espécie de resposta da melodia grave, e que contribui para variar a
seqüência.
A terceira parte está em ritmo contrastante, Piu Mosso, e em tonalidade de Mi Maior.
A melodia agora se alterna entre as vozes aguda e grave, sendo que nesta última a figuração
rítmica passa de semínima para colcheia, e depois para tercinas, o que produz mais
movimento à melodia.
156
Para finalizar o Prelúdio, há um retorno à parte A.
157
CAPÍTULO 6. Análise das peças de Leo Brouwer.
Como já foi observado anteriormente, Leo Brouwer tem suas primeiras experiências
com a composição pouco tempo depois de ter-se iniciado no violão. A data mais provável
desse início é 1954. Essa fase da história cubana vivido pelo Brouwer adolescente e por seus
contemporâneos é o período dos últimos e conturbados anos do governo do ditador Fulgêncio
Batista.
Segundo o jornalista Jânio de Freitas (2000:6) presente em Havana na chegada de
Fidel Castro em janeiro de 1959, Castro já era o símbolo de oposição e combate à ditadura do
general Batista desde 1953, quando em 26 de julho, respondeu à suspensão das eleições,
decidida pelos militares, comandando o ataque de um numeroso grupo de jovens armados ao
quartel de Moncada. O ataque, embora tenha sido um fracasso do ponto de vista militar, foi
uma importante vitória política (Vail 1987: 30), ficando conhecido como ―Movimento 26 de
Julho‖.
1956 é um ano sacudido por manifestações de estudantes, uma greve de mais de meio
milhão de trabalhadores de açúcar. A bordo do iate Granma, em uma histórica viagem cheia
de dificuldades, Fidel (preso e anistiado depois da ação de Moncada, Castro vai para o
México preparar nova ofensiva a Batista) e seus homens retornaram a Cuba em novembro de
1956, indo em direção a Sierra Maestra.
Nesse período os guerrilheiros ameaçavam os proprietários de engenho com
queimadas em suas plantações de açúcar, casos se recusassem a aumentar o ganho dos
camponeses; assim a guerrilha conquistava o campesinato. Enquanto isso, em Havana, a
insatisfação com o governo aumentava, principalmente entre a massa estudantil e alguns
jornais.
De acordo com Freitas (2000:8), os estudantes mantinham outra guerrilha contra
Batista na Sierra de Escambray, enquanto os líderes da Federação de Estudantes
158
Universitários idealizaram uma ação ofensiva contra Batista, que escapou por muito pouco.
―Cuba tornara-se uma fogueira oposicionista, à qual nem mais a alta burguesia negava
colaboração, por intermédio de setores não ligados ao capital externo‖, afirma Freitas.
Em 1958 a guerrilha avançava mês a mês em direção a Havana, enfrentando as tropas
do exército, que se mostrou incapaz de impedir o cerco rebelde. Em 31 de dezembro, Guevara
toma a cidade de Santa Clara. Na madrugada do reveillon, Batista e seus seguidores mais
íntimos fogem de avião para a República Dominicana. Fidel Castro se encaminha para
Havana, sendo saudado pela população durante o trajeto, e chega à capital em 8 de janeiro de
1959. Milhares de cubanos enchiam as ruas e praças à espera do líder revolucionário, para
ouvir o primeiro de uma série de seus famosos discursos.
Neste conturbado período principiado mais precisamente em 1953, Leo Brouwer era
um estudante iniciado um ano antes pelo pai ao violão e pela tia Caridad Mezquida em teoria.
Brouwer definiu a época da pré-Revolução Cubana como um constante viver em ―situações
angustiantes‖ (Brouwer 1989: 101) tanto no aspecto econômico quanto no social. Estes anos
são refletidos na chamada primeira fase de seu trabalho, uma fase de caráter nacionalista, que
segundo o próprio Brouwer (1989: 85-86): ―...corresponde, socialmente, a uma etapa feroz da
ditadura batistiana, na qual era preciso reafirmar a nacionalidade por medo de perdê-la, dentro
do caos político do momento‖.
As datas desta primeira fase composicional de Leo Brouwer vão de 1954 – ano em que
há o primeiro registro escrito de uma peça, mas que não necessariamente foi a primeira obra
sua, pois o compositor se desfez de peças ou esboços iniciais (veja capítulo Biografia) – a
1960, ano em que Brouwer retorna dos Estados Unidos, aonde havia estudado após a
Revolução Cubana, que havia lhe outorgado uma bolsa de estudos.
As duas peças escolhidas aqui para ilustrar esta primeira fase composicional de Leo
Brouwer são a Danza Característica (1957) e o Estudo n.º 5 (1960).
159
Neste período inicial de composições, Brouwer reafirma seu contato com a cultura
popular, principalmente com as raízes africanas de Cuba, em especial os rituais (Betancourt
1999). Segundo Danilo Orozco (1999: 4) Brouwer tinha como um nutriente contextual no
panorama sonoro-popular de seu entorno – a prática musical da mãe, o entusiasmo
violonístico do pai e também as referências sonoro-culturais; Brouwer interessou-se pelo
sentido simbólico-musical dos rituais e toques de origem afro-cubano, na tarefa rumbera,
tendo também se interessado em aprender a marimba e o bongó soneros. Diz Brouwer
(Bettancourt 1999):
I started composing in 1955. I had very strong contact in this first period with popular
[vernacular] culture, a culture with roots in African rituals that have a tradition of
almost 500 years in Cuba. It was the pillar for the thematic materials of my music, the
source of its Afro-Cuban taste, of course with a sophisticated harmony.
Brouwer já afirmava em 1970 (Brouwer 1989: 14) que todo o aparato sonoro (em
Cuba) é uma ampliação ou transformação da percussão e do violão e que por meio do fator
rítmico de procedência e traços africanos (que sobrevivem até hoje) se unem todos os demais
parâmetros da música cubana. Deste ―entorno‖ formador de Brouwer, como já disse Orozco,
destacam-se alguns gêneros da música popular cubana, como a rumba e o son.
Dentro destes gêneros, Vladimir Wistuba (1991: 26) afirma que a Clave, uma célula
rítmica de dois compassos, (mostrada abaixo), é a pedra angular da música cubana e afrocaribenha (não só Wistuba afirma isso, mas é um fato de consenso entre os musicólogos),
composta por um compasso ―fechado‖ e outro ―aberto‖; ou seja um compasso completo e
outro com pausas:
.       
160
Wistuba constatou a presença da Clave na obra de Leo Brouwer em grande profusão,
citando em especial Danza Característica e Fuga n.º 1 (1957). Em seu estudo, ele conclui que
uma ―marca de cubanidade‖ na obra de Brouwer seria a utilização de motivos e padrões
rítmicos como a Clave, além do chamado Cinquillo cubano:
5


e o denominado Baixo Antecipado, que aparece na música popular cubana preferencialmente
na seção do Montuno (a segunda parte improvisada do son cubano, que será demonstrado
mais adiante na análise da peça Estudo n.º 5).
6.1. Danza Característica
A Danza Característica é dedicada a Isaac Nicola, seu professor, e tem por subtítulo:
Para el “Quítate de la Acera” que segundo Jesús Ortega (texto da capa do disco Música para
guitarra de autores cubanos - abril de 1961) é um estribilho de uma conga popular de
Havana. Literalmente a tradução é uma ordem: ―Retire-se da calçada‖.
Além do ritmo denominado Clave, há na peça um outro ritmo básico cubano que é a
rumba, que merece maior atenção nesta análise.
O famoso gênero conhecido como rumba, teve grande penetração internacional como
música do tipo comercial, para se cantar e bailar. Sua origem é afro-espanhola, sendo na
vertente africana de origem Bantu (representados em Cuba pela etnia dos congos). Segundo
Acosta (1986), a rumba surgiu no século passado, havendo informações de sua prática antes
da década de 1880 (libertação dos escravos) nos barracões e em certas festividades
consentidas pelos brancos. No ambiente urbano a rumba passou a ser ouvida em solares e
161
portos e, para Acosta, é fato inegável que sua origem tenha sido urbana e suburbana. No
ambiente rural, a rumba é ouvida nos engenhos.
O verbete rumba está assim descrito no dicionário da música cubana de Helio Orovio
(1981):
RUMBA, LA. Género cantable y bailable, nacido da vertiente afro-española, con especial
marca do primero elemento. Tuve su origen en el marco urbano donde abundaba la
populación negra humilde (cuarterías, solares) e no semi-rural, alrededor de los ingenios
azucareros. Se interpreta percutiendo tambores (tumba, llamador e quinto) o
simplemente maderas (cajón de bacalao, cajita de velas) acompañadas por claves e, as
veces, cucharas. Fiesta colectiva. O aporte africano se acentúa no rítmico, carece de
elementos rituales, es música completamente profana.
O instrumental da rumba é formado geralmente por percussão de tambores,
acompanhados de claves (no Brasil é chamado pau-de-rumba). Segundo Acosta (1986:13), o
tambor seria o símbolo abarcador da resistência ao colonizador, tendo sua música ressoado na
música culta cubana como na obra de Roldán e Caturla. Acosta afirma que essa música, em
vez de ser cristalizada como a do século XIX, é uma música ahistórica porque vive um eterno
presente, e que um etnólogo não hesitaria em chamá-la de folclore. Também destaca que a
rumba em sua série de variantes possui em seus textos verdadeiras crônicas da vida nacional
(1986:52). No estilo de rumba chamado de guaguancó, que se toca, se baila e se canta, foi na
cidade uma espécie de crônica social dos despossuídos, humildes e marginalizados.
A rumba acontece em festas coletivas da comunidade, sem intuito religioso. O aporte
africano se acentua no ritmo e na alternância do pregão e coro e seu bailado é mímico. A
participação do cantor solista se inicia com a diana (uma espécie de introdução, um chamado)
e depois se apresenta com seu texto e assunto, que dá motivo à rumba. Logo em seguida o
cantor ―rompe‖ a rumba com a entrada dos instrumentos e o coro.
A rumba é um gênero muito complexo com algumas divisões como o Yambú, que
possui andamento lento e de origem urbana; o Guaguancó que tem uma intenção narrativa em
seu texto (um pouco à maneira do romanceiro espanhol), iniciada pelo cantor, que recorre a
162
um característico lalaleo ou diana. E a Columbia, de origem rural, e de todas as variantes da
rumba é a más rápida. Algumas vezes se remete aos passos do dançarino Abakuá
(representado em Cuba pela etnia dos carabalís) dos bailes congos e os movimentos gestuais
do dançarino (Acosta 1986).
Acosta relembra ainda que a rumba tem também múltiplas conotações convertendo-se
em várias coisas distintas para vários públicos distintos: nos anos 20, a rumba obtém êxito
internacional-comercial, no que ele define como um processo de mistificação da música
cubana, e que teve no maestro Xavier Cugat e suas versões açucaradas a maior reprodução.
Por outro lado, a rumba se imortalizaria na obra para orquestra sinfônica e voz solista de
Alejandro García Caturla sobre o poema La rumba de José Z. Tallet. Uma série de
compositores cubanos – Lecuona, Eliseo Grenet, Moisés Simons – contribuíram para a
consolidação mundial da rumba.
Leo Brouwer por diversas vezes utilizou a rumba em suas obras para violão, além da
Danza Característica, há Paisaje Cubano con Rumba para quarteto de violões. Sobre a
situação da rumba Brouwer assinala (Wistuba 1989):
La rumba no es obviamente lo que piensa el público europeo: una danza agradable,
exótica, con maracas y mulatas lindas desnudas, no. La rumba es el complejo rítmico
urbano más cercano al ritual africano puro que pueda haber, más cercano aun que las
formas brasileiras de la maxixa, del choro, ... mucho más cercano, más puro todavía. Y
posiblemente aún más que la música del Peru negro, del Peru costero, es esta rumba negra
cubana que nada tiene que ver con lo que el mundo entero conoce como rumba.
La rumba es un rito, no una fiesta, es una celebración particular que no es fiesta, nunca
em una fiesta se baila rumba. Ella es un rito que siempre esta paralelo a la celebración
mítica. Es un complejo polirritmico de danza en pareja con canto y coro que viene de la
forma del ritual: es el ritual trasplantado a la vida urbana. Entonces, yo sencillamente me
conozco todos los toques del complejo rítmico de la rumba y estos como forma, como
punto de partida, como raíz, la uso hasta en formas universales, en Canción de Gesta, una
obra para orquesta grabada por la Pittsburgh Synphony, la introducción es el tema de
Water Music de Händel y la forma como lo planteo en la trompeta es una Diana, o sea,
una llamada de rumba, complejo rítmico que después aparece el final.
163
A diferença maior entre a rumba e a Conga é que a conga necessita de espaços abertos
das ruas, para acontecer, em troca, a rumba se conforma com um pequeno espaço, um quarto,
um círculo.
A partitura da Danza Característica está composta na forma A-B-C-A. Brouwer pede
que o andamento da peça seja em tempo Allegro (=116-120)
Como acontece em muitas obras para violão, existe a possibilidade de se alterar a
afinação da 6.ª corda, e Brouwer solicita nesta peça que a 6.ª corda seja abaixada em um tom,
passando de mi para ré.
A obra não possui acidentes na pauta, mas percebe-se que na parte A o tema inicial
está em sol menor pela formação de um possível acorde de sol menor (sol, si bemol, re); este
fato interessa mais adiante quando se verifica como Brouwer, um compositor ainda
extremamente novato, obtém a contento uma distribuição equilibrada e inovadora das
tonalidades da peça.
O tema é apresentado por quatro compassos iniciais:
intercalados com outros 4 compassos (rítmico)que carregam em si o ritmo da Clave
164
E nos dois compassos seguintes Brouwer apresenta brevemente uma ponte para
retornar ao tema inicial de quatro compassos. Daí se encaminha para um contraponto no qual
uma melodia de pergunta e resposta é apresentado:
Em seguida surge pela primeira vez a melodia do coro da famosa conga Quítate de la
acera que possui a célula rítmica padrão da conga:       .   
165
Na parte B da peça, o tema inicial que antes estava em sol menor, passa agora para re
menor:
Se tivesse ido para Ré maior, poderia se afirmar que a música, harmonicamente
falando, se encaminhou tradicionalmente para a Dominante, mas aqui o que se pode dizer é
que Brouwer iniciou a parte B na dominante menor ou simplesmente aproveitou a afinação da
sexta corda em Ré para dispor o tema em uma variante de tonalidade.
No desenvolvimento deste tema, Brouwer apresenta a célula rítmica da Clave de
maneira invertida da exposição anterior na parte A:
Clave da parte A: .         
Clave da parte B:        .  
Nos quatro compassos seguintes, uma cadência ascendente leva a um retorno ao tema
rítmico (clave) da parte A:
166
Do tema inicial da peça, estando em sol menor, poderia se dizer que se encaminhou
para a dominante menor (ré menor) ou que foi uma alteração pelo uso das possibilidades
naturais do violão, cujo traçado físico, aliado ao uso de pestanas e a afinação da 6.ª corda em
ré facilitariam essa escolha de Brouwer na mudança de tonalidades de um trecho a outro.
Agora a peça apresenta uma ―reprise‖ do tema anterior (ré menor) só que desta vez na
tonalidade de mi menor.
Na parte C (poco meno), Brouwer reapresenta a melodia da Conga Quítate...
produzindo um efeito de alargamento no tempo da conga, por meio da utilização de tercinas,
semínimas e semibreves pontuadas. Sonoramente, há também mudanças no caráter deste
trecho, já que Brouwer pede que a melodia seja feita em harmônicos oitavados, em pianíssimo
o que vai dar um contraste grande, já que o movimento anterior terminou em um fortíssimo,
167
aliado ao uso da tambora (golpe percussivo no violão, com a mão direita). Além disso, a
melodia do Quítate passa de uma voz para outra, em um contraponto simples, mas funcional.
Uma ponte realiza a volta Da Capo e toda a parte A é reprisada.
A música se encaminha para uma volta ao tema principal da parte B (ré menor):
168
E uma pequena coda de 4 compassos ainda com menções aos ritmos da conga e da
clave finalizam a peça, que além disso ironicamente (ou, como é expresso pelo autor na
partitura, humorístico) conta com um final na Dominante desta parte (lá) e sua respectiva
Tônica (ré).
169
6.2. Estudo n.º 5 da série Estudos Sencillos
Ainda que esteja esteticamente ligado à primeira fase de composições de Leo
Brouwer, o Estudo n.º 5 está inserido em outro contexto histórico-social da vida cubana.
Brouwer iniciou seu trabalho de compositor alguns anos antes (1954) da tomada de
poder por Fidel Castro (1959). No período imediato, o governo revolucionário toma uma série
de medidas. No campo educacional, uma importante mudança é a unificação do sistema de
ensino em todo o país. Diz-se que de todas as transformações ocorridas depois da Revolução,
a educação prossegue sendo o saldo mais positivo (Freitas 2000). É famoso o exemplo da
erradicação do analfabetismo na ilha ainda no ano de 1959.
Na área musical foi decretado o fim dos conservatórios privados, sendo que no ensino
de violão o método de Isaac Nicola, professor de Leo Brouwer, é adotado em nível nacional.
Segundo Amador (1992), na revisão e criação de materiais didáticos, junto a Nicola tiveram
um papel importante os seus alunos: Leo Brouwer, Jesús Ortega, Marta Cuervo e Clarita
Nicola.
A diferença do tratamento da carreira entre o curto espaço de tempo em que se iniciou
na Música - antes da Revolução - e depois da tomada de poder de Fidel Castro, já foi várias
vezes mencionada por Brouwer, favoravelmente ao novo governo (Brouwer 1989:101):
Con el advenimiento de la Revolución, en Cuba la situación del artista, y de un
profesional cualquiera, cambió notablemente (...) Las transformaciones sociales fueron
radicales, fueron muy serias; si antes de la Revolución me veía en situaciones
angustiosas, no solo en lo económico, sino también en el papel social que tenía, esto dejó
de ser una preocupación para convertirse en un alivio con la nueva etapa histórica y social
que vivimos en mi país. Pasó lo siguiente: la diferencia entre tener que buscar cualquier
medio de vida para subsistir y vivir como ser humano, como un trabajador más de nuestra
propia música, de nuestra cultura, creo que fue un paso radical, enorme.
Como já foi exposto no item de sua biografia, Brouwer destacou-se rapidamente como
aluno, e em pouco tempo leu toda a literatura violonística possível na época. Em 1959 o
170
governo cubano outorgou várias bolsas para jovens estudantes, e Brouwer, como já havia se
profissionalizado e adquirido certo nome, recebeu uma bolsa para estudar nos Estados Unidos
na Escola Juilliard.
Nesta ocasião, Cuba e Estados Unidos ainda mantinham relações diplomáticas. O
jornalista Jânio de Freitas, presente ao primeiro discurso de Fidel Castro, em 8 de janeiro de
1959, relembra a posição de Fidel quanto aos Estados Unidos na ocasião e nos meses
subseqüentes:
Fidel comunicou que logo se iniciariam as desapropriações de certos tipos de empresas e
a interdição de várias atividades.
Americanos controlavam a economia e as finanças públicas de Cuba, por dominarem os
dois setores vitais: do cultivo da cana à exportação do açúcar e o cultivo e a indústria do
fumo. Os cassinos, os bordéis de luxo, a prostituição para o turismo sexual, as grandes
casas noturnas pertenciam a uma máfia americana.
(...) Os mafiosos americanos da noite e da prostituição, fechados os seus negócios,
montaram rico sistema de campanha contra ―o comunismo de Cuba‖, com a pronta
adesão dos controladores do açúcar e do fumo.
(...) O governo americano não faltou com apoio àquela ação, mas, na condição de
governo propiamente, estava aturdido. Não achava resposta respeitável para as evidências
de que as medidas revolucionárias agiam contra negócios sórdidos e contra a exploração
desumana de quase metade dos cubanos na agroindústria. (...)
Em sua única tentativa de dirimir o confronto, Fidel viajou aos Estados Unidos para
explicar na ONU a Revolução Cubana e, pelos meios de comunicação, convencer os
americanos de que Cuba não era comunista, mas uma democracia socialista. Se alguém se
convenceu com os sólidos argumentos de Fidel, os meios de comunicação cuidaram de
desconvencê-lo nos meses seguintes.
(...) O aniversário de 61 do ataque ao quartel Moncada, 26 de julho, foi um novo e mais
importante marco desde a posse de Fidel no governo. O próprio Fidel comunicou o
nascimento do Partido Unido da Revolução Socialista, Unido por ser a fusão dos
revolucionários castristas e dos comunistas.
Era uma virada nos princípios originais da revolução e a culminância de um processo,
transcorrido nos 12 meses entre o grande socorro soviético e a fusão interna, sobre o qual
nada se sabe. A URSS exigiu? Ou Fidel e seu estado-maior converteram-se por convicção
e adotaram os comunistas cubanos por vontade própria?
Os acontecimentos imediatos desta opção foram a famosa crise dos mísseis e o
bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos.
Leo Brouwer esteve em Havana nos primeiros meses da revolução, mas logo em
meados ainda de 1959 ele se encaminha para Nova York, onde permanece até a crise do
171
açúcar de 1960, quando então tem de voltar pelo abalo das relações diplomáticas entre
Estados Unidos e Cuba.
Enquanto esteve nos Estados Unidos, além de ter tido a oportunidade de entrar em
contato com Vincent Persechetti (orquestração) na Juilliard School e com Isador Freed
(análise) na Universidade de Hartford, Brouwer deu aulas particulares de violão para
melhorar sua sobrevivência no estrangeiro. Deste trabalho de professor, surgiu a necessidade
de compor um material próprio para utilizar em suas aulas, daí nasceu a primeira série dos
Estudios Sencillos, um conjunto de 10 peças que abarca algumas das dificuldades técnicas
iniciais dos estudantes de violão. A série (assim como a seqüência escrita nos anos 80)
tornou-se muito eficaz para a didática do violão e é amplamente adotada por professores e,
mais que isso, é tida muitas vezes como material de concerto e vem sendo bastante executada.
O grande achado na primeira série de 10 estudos é que um violonista ainda novato
consegue tocar as peças e ao mesmo tempo ser iniciado em qualidades interpretativas como
colorido, fraseado, definição de vozes e ainda um material moderno e vibrante, distante do
contexto clássico europeu ao qual o violão esteve ligado.
Um fato que merece ser mencionado é alguma possível relação com os 12 Estudos de
Villa-Lobos, que embora tenham sido escritos em 1929, só se tornaram mais conhecidos nos
anos 60 e 70, a partir do chamado boom violonístico mundial. Como já foi analisado (ver item
Estudos de Villa-Lobos), o aspecto geral dos 12 Estudos era moderno e em linhas gerais
distante do material clássico, entretanto impossível de ser tocado por alunos novatos, pois
demandam técnica e musicalidade mais avançadas.
O Estudo n.º 5 pertence a essa primeira série de 10 estudos. Foi gravado pela
primeira vez pelo violonista uruguaio Oscar Cáceres, pela gravadora francesa Erato. Em
172
cada um dos estudos, Brouwer faz uma indicação de como a peça deve ser interpretada em
relação ao tempo e, às vezes, aponta para um aspecto a que se destina o estudo. Assim:
1) Movido – cantado el bajo
2) Coral – Lento
3) Rapido
4) Cômodo (Allegretto)
O Estudo n.º 5 é a primeira peça da série de 10 estudos de Brouwer que apresenta
um grau de dificuldade maior na leitura pois, ao contrário das peças anteriores (em sua
maioria estão em colcheias, associando-se a uma leitura praticamente linear), possui células
rítmicas sincopadas, o que implica um nível de leitura melhor por parte do estudante, para
poder manter o controle de deslocamento dos tempos fortes. No cabeçalho, o estudo
apresenta a indicação:
Allegretto (montune)
As características gerais do montuno (está grafado montune na partitura por se tratar
de uma edição francesa da Max Eschig) são a síncope e o deslocamento do acento para o
tempo fraco da célula rítmica. O montuno está ligado a um dos estilos mais famosos da
música cubana, o Son, um ritmo bailável, com importância no canto. Diz Acosta (1986:52)
que o son é um estilo de música dos mais populares em Cuba, quase sempre cantado, e
provém do campo das regiões orientais, de onde se estendeu a todo o país na década de 20.
Basicamente, o montuno pode ser entendido como um estribilho em vários estilos
musicais, estando mais associado ao son e ao danzón.
Segundo Odilio Urfé (in Orovio 1981:391-392),o son:
es el exponente sonoro mas sincrético de la identidad cultural nacional... su existencia
verificada comienza en las postrimerías del siglo XIX- en una ubicación zonal múltiple
173
que comprende los suburbios montuneros de algunas ciudades orientales.”
O son tem suas origens no século XX e possui elementos procedentes da música Bantu
e espanholas. Baila-se a dois e o instrumental pode ser desde um violão ou até grandes
orquestras.
Segundo Clara Díaz Perez (1986: 50), o son mais puro ficou com o Trio Matamoros e
Ignácio Piñeiro, enquanto outros eram de linha comercial, com derivações do tipo ―congafox‖, ―capricho-afro‖, ―rumba-fox‖, ―canción-blue‖, ―bolero-beguine‖, ―canción slow‖ etc..
Era uma época de interesse comercial pela ―música tropical‖.
Segundo Wistuba (1991), uma das marcas de ―cubanidade‖ é o uso do denominado
Baixo Antecipado,
. . .
que aparece na música popular cubana preferencialmente na seção do Montuno – essa
segunda parte improvisada do Son cubano.
O montuno também está ligado às origens do Mambo, pois, segundo Maria Teresa
Linares(1974:159-160), a primeira vez em que se utilizou o termo mambo foi na orquestra de
Arcaño y Sus Maravillas em 1938 por Orestes López com sua composição intitulada Mambo
– um danzón.
A ele (Orestes López) se deve o danzon Mambo, criado em 1938 que deu início a um
novo estilo de danzon. (...) Posteriormente, o baixo sincopado do mencionado danzon (...)
deu origem em parte ao gênero bailável chamado mambo, criado por Damaso Perez Prado
(...) No danzon do novo ritmo se incluía , no terceiro danzon ou montuno, o ritmo
sincopado dos treseros orientais que tocavam sones, usando-o também – como no baile
que se chamou mambo posteriormente – uma troca de planos instrumentais, usando a
tumbadora para determinados acentos. A este novo montuno do danzon, donde seu tema
principal – de dois a quatro compassos – adquiria um caráter especial sincopado, deramlhe o nome genérico de mambo (tradução minha).
Segundo Acosta (1986), os montunos são estribilhos freqüentes na música de baile e
que é feita para dar mais expansão aos bailadores e dotar a peça de um clímax, tanto
174
―dançável‖ quanto na parte musical. A particularidade deste fragmento é que ele é em geral de
quatro compassos e multiplicável (sem limite definido) em seu caráter instrumental,
contrariamente a um estribilho comum. E a prática de incluir uma passagem de mambo em
uma peça bailável se estendeu aos conjuntos de jazzbands, de modo que um instrumentista de
qualquer orquestra podia encontrar sobre a estante, em sua parte do arranjo ou orquestração,
uma passagem que diria ―estribilho‖ ou ―montuno‖ e de 1938 em diante outra passagem que
diria ―mambo‖.
A importância do son como um gênero complexo de expressão da identidade cultural
do povo cubano já foi estudada por Maria Teresa Linares, Argeliers Leon, Leonardo Acosta e
Danilo Orozco.
O tema do Estudo n.º5 é apresentado por uma célula rítmica de um compasso, no qual
já se apresenta a síncope:
    
e que se repete nos quatro compassos iniciais da peça:
Do compasso 5 ao 8, o uso do Baixo Antecipado, típico do montuno, aparece para dar uma
175
pequena variante no tema:
O compasso 9 apresenta uma curta passagem para uma segunda variante, dos
compassos 10 ao 13, que, desta vez, mescla o primeiro e o segundo movimento, utilizando-se
ora da síncope simples, ora do Baixo Antecipado:
Na seqüência, dois compassos insistem no Baixo Antecipado:
E nos dois compassos seguintes uma mostra do uso da síncope de forma alargada, depois, de
forma estreita:
176
Do compasso 18 ao 21 há uma reprise do tema, e na seqüência, a modo de Final, Brouwer
intercala mais uma vez um compasso de síncope com um de Baixo Antecipado.
Se em termos de nível de dificuldade de leitura o Estudo 5 é o primeiro a enfatizar
uma atenção do intérprete na parte rítmica, o mesmo não se pode dizer das indicações quanto
à dinâmica [note-se a grande marcação de sinais de crescendo e diminuindo (<) (>), na qual o
executante visualiza plenamente a dinâmica desejada pelo autor], pois desde o Estudo n.º 1 e
em todos os demais é grande a marcação de dinâmica.
177
6.3. Canticum.
A segunda etapa da carreira de Leo Brouwer acontece nos anos 60. O marco inicial
desta fase ocorre por volta de 1961, quando ele retorna de um festival de música em Varsóvia
(veja item Biografia), onde entrou em um contato mais direto com linguagens de vanguarda
européia.
O ambiente político-social de Cuba nestes primeiros anos da década de 60 era: crise
do açúcar, bloqueio econômico e a questão dos mísseis entre Estados Unidos e União
Soviética.
Em Cuba, Leo Brouwer inicia junto com outros compositores uma fase de músicas
experimentais, como Sonograma I (1963) para piano preparado e as Variantes de Percusión
de 1961-1962. Um pouco depois, em 1964, Brouwer comporia para violão Elogio de la
Danza, música de balé que, embora esteja cronologicamente dentro desta segunda fase, possui
elementos que retornam à etapa anterior. Brouwer disse sobre isso (Betancourt 1998) que
nunca abandona um elemento composicional que lhe seja necessário como ferramenta de
trabalho.
Este procedimento de Brouwer, de nunca deixar para trás elementos composicionais
de outras fases, é uma constante em toda a sua carreira, entretanto, neste período dos anos 60
e 70, pode-se afirmar que algumas idéias se fixaram em seu método, como:
- as chamadas ―formas abertas‖ de composição,
- um aleatorismo parcialmente controlado (a improvisação aleatória),
- o uso mais constante de cromatismo, politonalidade, polirritmia, variações
timbrísticas e células melódicas (temas) curtas e similares entre si.
Estes aspectos tornaram-se marcantes nas músicas deste período, mais até, e
sobretudo, que quaisquer formas acadêmicas que, se já eram poucas em seu primeiro período,
178
se tornaram mais raras nesta fase. As formas estruturais criadas por ele mesmo acabaram por
se tornar uma marca de sua obra, muitas vezes recorrente em peças futuras. No ensaio de sua
autoria La Improvisación Aleatória de 1971 (in Brouwer 1989:28-36), há muitas referências a
estes procedimentos adotados na época, por ele e por outros compositores cubanos.
Canticum foi composta em 1968 e está dedicada a Carlos Molina (é provável que se
trate de um violonista cubano). A peça está dividida em duas partes:
I – Eclosión
II – Ditirambo
O cântico, por definição clássica, é uma forma de composição musical das mais
antigas do Ocidente, situando-se na música religiosa, dentro da homilia. Vários compositores
de épocas distintas escreveram cânticos, destacando-se Palestrina que compôs Canticum
Canticorum e Igor Stravinsky, Canticum Sacrum, além de Luciano Bério, Ronaldo Miranda e
outros. Não há na peça musical de Brouwer nenhuma mostra de religiosidade deste tipo no
termo Canticum adotado, mas, provavelmente, pode estar ligado às formas gregas de canto
elegíaco – a segunda parte da peça, Ditirambo, sustentaria essa versão.
Segundo conta Efraim Amador (1992: 21), Emilio Pujol91, em carta a seu discípulo Javier
Hinojosa, assinalava a obra Canticum como a mais importante desde Homenaje pour le
Tambeau de Claude Debussy de Manuel de Falla (1876-1946), composta em 1920, e Pujol
ainda destacou que com Canticum Brouwer, a exemplo de Falla, iniciou uma nova etapa para
o violão.
91
O espanhol Emilio Pujol (1886-1980) foi um importante musicólogo, discípulo e grande divulgador de
Francisco Tárrega (1852-1909). Sua obra mais importante é o método Escuela Razonada de la Guitarra, em
quatro volumes, que sistematizou a obra de Tárrega. Foi também o primeiro a difundir a obra dos vihuelistas por
meio de transcrições para violão, estudos e edições. Escreveu artigos, livros e proferiu conferências sobre o
violão e sua história. Compôs algumas obras para o instrumento (Dudeque 1994: 81).
179
Brouwer disse (Hernandez 2000:113) que Canticum é uma obra didática, na qual
pretendeu mostrar resumidamente uma série de procedimentos da chamada vanguarda.
I - Eclosión
A primeira parte da peça, Eclosión, segundo intérpretes que já estiveram com o
autor92, é a representação do processo pelo qual um inseto adulto emerge do seu casulo.
A obra inicia tipicamente como uma forma aberta; não possui fórmula nem barras de
compasso, no entanto, o controle está configurado na sugestão do autor (no alto da página da
partitura) na duração da música, algo em torno de 4 a 4‘30‘‘.
A introdução é feita a partir de uma seqüência de três acordes em cluster93, nos quais
Brouwer pede para deixar vibrar94 (dejar vibrar), alternados com uma grande pausa (G. P.).
Já se vê o uso do aleatorismo controlado nas indicações da duração em segundos que devem
ter cada acorde e cada pausa (6‖, 4‖ etc.). O ritmo, no entanto fica livre e a cargo do
intérprete, porque está baseado na forma de rasgueados (simbolizados por:  segue) o
que possibilita a cada um fazer mais ou menos movimentos.
Essa introdução da peça causa grande surpresa e impacto na audição, pois coloca um
92
Alvise Migoto, Andy Daly.
Cluster é uma combinação cromática de um grupo de notas com o efeito de provocar dissonância. Geralmente
é representado na forma de um acorde.
94
Deixar vibrar é permitir que os sons produzidos se apaguem naturalmente, deixando-os soar até o som
desaparecer.
93
180
meio tradicional violonístico como o rasgueado, inserido em dois procedimentos de
vanguarda: o cluster e as grandes pausas, ou seja, são sons fortes e dissonantes entrecortados
por grandes silêncios. Muito apropriadamente, o violonista Fabio Zanon (1999) disse:
Suas obras entre 65 e 79 - ―Elogio de la Danza‖, ―Canticum‖, ―La Espiral Eterna‖,
―Parabola‖ e ―Tarantos‖ são concisas, equilibradas, fáceis de entender, bem
escritas para o instrumento, verdadeiros clássicos do modernismo. São as
obras que eu escolheria para introduzir a música do pós-guerra a um público
leigo. Com um pouco de explicação, peças como ―Canticum‖ ou ―Tarantos‖
podem ser tocadas para qualquer público, até o mais conservador.
Como afirma Isabelle Hernández (2000:111-113), Brouwer trouxe para o violão a
linguagem contemporânea que havia incorporado, e desde o início dos anos 60 passou a expor
também fatores extramusicais. Para Hernandez, com Canticum, Brouwer sistematizou seu
método de composição por meio de células – e no caso de Canticum parte-se de um motivo de
três notas.
Las obras que hace en esos anos presentan fundamentalmente dos aspectos, o mejor dos
procesos compositivos de base. Uno es el devenir de la obra en el tiempo,
marcada en su desarrollo que puede ser abierto y gradual, es decir la obra
misma es compositiva en su proceso y evolución interna. El otro elemento
es el de la composición modular. Tales módulos parten de formas y
contenidos universales como, por ejemplo, la estructura de una hoja de un
árbol. A esto hay que sumar su método de elaboración a través de células
que es permanente en su obra.
O compositor Marcelo Mello95 também faz uma interessante análise do Canticum onde
vê as relações estruturais entre as notas da peça. Segundo ele:
Elas [as notas] parecem se basear numa relação (...) entre si desde o primeiro
acorde, no qual a nota mi da 6.ª corda parece fazer o papel de ―equilibradora‖ das
seqüências (...). Em cada parte, parece haver a inclusão de um elemento a mais
dentro da estrutura, criando assim um acúmulo de elementos a ser reprisado no
Ditirambo.
95
Mello, Marcelo. Prolegômenos a uma análise do Canticum de Leo Brouwer, estudo não publicado,
gentilmente oferecido a este trabalho em 10/4/2001.
181
Na primeira linha melódica vê-se que as notas são provenientes dos acordes iniciais da
obra. Já surge aqui a célula motívica de três notas que irá nortear toda a peça (sol b - fá - sol):
Em seqüência, surge um glissando de seis notas entre sol# e ré# (sol# sol fá# fá mi
ré#) e um míni-cluster (la, sib, si), com ritmo imposto pelas marcação que indica aumento
de velocidade, ao fim da frase.
Uma vez mais, Mello atenta para a expansão cromática das notas tanto neste trecho
como no anterior ( sol b-sol; sol#-la-sib-si ): ―(...) já ocorre o uso de notas com intervalos de
semitom (indicados por pequenas ligaduras) de uma maneira como que de ‗expansão‘ da
tessitura a partir de um ponto inicial específico‖.
De um outro modo, o cromatismo prossegue no próximo segmento, só que agora
descendente (sib – la – lab) e ressurge a célula motívica em um expansão de quatro notas (fá#
- ré – sol – lab):
182
Sobre este trecho, Mello também tem uma visão própria: ―(...) a repetição do
fragmento melódico e sua organização apresenta os intervalos de terça como ‗separadores‘ de
novas aparições dos termos anteriores‖.
Em seguida, Brouwer faz o uso do cromatismo em dois encadeamentos. No primeiro,
o cromatismo se verifica de duas em duas notas simultâneas: ré# - mi; fá# - sol; lá# si
De acordo com Mello, em relação ao primeiro encadeamento, o elemento de repetição
em velocidade crescente baseia-se na justaposição de tríades menores separadas por semitom
(ré menor e mi menor), que surgem em blocos de duas notas separadas por terças.
No segundo encadeamento, o cromatismo não tem a mesma simetria do segmento
anterior; em vez de duas notas tocadas ao mesmo tempo, Brouwer desloca as notas
cromáticas: do - do# - ré - mi - fá.
Em ambos segmentos, o ritmo é controlado pela marcação gradativa da velocidade das
notas, das mais longas até as mais rápidas (semínima pontuada – semínima – tercinas –
colcheias – semicolcheias), até repousar na fermata.
Reaparece agora a célula melódica (sol - fá# - lá), alternada com diversas figuras:
- com tambora:
183
- com uma variação de dinâmica que vai de pianissimo a mezzoforte (pp < mf >),
executada com os dedos sobre o tampo do violão;
- ou com resposta timbre e velocidade:
Estas várias representações da idéia-tema reforçam a afirmação do procedimento
adotado então pelo autor de trabalhar com uma célula motívica e buscar desenvolvê-la ao
máximo, e vêm no encontro da idéia de expansão defendida por Mello:
a reaparição do motivo de ―expansão‖ (...), colocado primeiro a partir de uma
relação de quinta (e de terça com o baixo), e depois a partir de uma relação de terça
(e quarta com o baixo), para logo após anunciar com um trítono uma nova situação
do elemento de aceleração rítmica.
O uso de intervalos de terças, quartas, quintas e de trítonos ou, em determinadas partes,
até mesmo o cromatismo poderiam ser explicados pela intenção da expansão, como é
assinalado por Mello, mas não se pode deixar de apontar também que do ponto de vista físico
184
do instrumento são trechos de extrema afinidade com o violão: realizar os intervalos
apontados é tarefa muito própria do instrumento, pois é grande o uso de cordas soltas na peça
e há bastante simetria entre as linhas melódicas, o que às vezes nos remete a um tipo de
desenho da partitura.
Na seqüência, prosseguem as alternâncias da célula motívica com outras variações
como aceleração rítmica e campanella (exemplo abaixo)
Em seguida surgem novos elementos: um arpegio de oito notas que se verifica tratarse de cinco notas cromáticas: mi - fá - fá# - sol – lá,
Este arpegio parece servir de ponte para uma re-exposição inventiva das intenções
melódicas e dos acordes iniciais da peça:
Mello afirma sobre este trecho: ―A figura rítmica da 8.ª linha e também sua
configuração intervalar parece remeter de maneira um tanto vaga e truncada aos semitons e
aos ornamentos da 3.ª linha. O acorde que se segue talvez se remeta também ao início, com
185
uma 3.ª (do-mi) como função ‗equilibradora‘ ‖.
Agora as novas variantes que surgem estão alternadas com a célula melódica
decrescente do início da peça:
Estas novas variantes são arpegios com notas cromáticas, trinados96, bordaduras97,
além de variantes de timbre: dolce, metálico, junto al puente98 e encaminham a peça para
mais um motivo cromático (lá - lá# - si) que será ornamentado até o final desta parte. O
comentário que Mello faz sobre o fim deste trecho pôde ser constatado: ―Os motivos surgidos
na 10.ª linha e desenvolvidos na 11.ª e 12.ª vão tendendo ao tonalismo (acorde de sol maior) e
a uma rarefação das estruturas (p. ex. as 3 últimas notas da linha 11) [fá# - sol - láb mais um
cromatismo]‖.
96
Trinados são efeitos nas notas com o intuito de ornamentá-las, alternando rapidamente uma nota à nota
original.
97
Bordaduras também são ornamentos à nota original.
98
Variantes de timbre como dolce, metálico, junto al puente referem-se a regiões do violão nas quais o som
altera seu timbre (como as cores quando mudam de tonalidade).
186
II - Ditirambo
O termo Ditirambo vem do mundo cultural grego e sua definição está mais
normalmente ligada à área de teatro, pois segundo Aristóteles (na Poética, 1449 a.C.)
Ditirambo é um canto coral em honra a Dionísio do qual teria se originado a tragédia grega.
Depois, o termo foi empregado para a composição de versos e contos que exprimem
admiração ou delírio, com o intuito de realizar um elogio entusiástico até o exagero.
Pode-se dizer que a afinação neste trecho é inusitada, pois é solicitado que se baixe a
afinação da 6.ª corda de Mi para Mib
99
, logo após o término da parte anterior, ou seja, em
plena execução.
A parte começa com três baixos de Mib, nos quais Brouwer pede Pesante. Estes
baixos serão tocados até o final da música em ostinato, isto é, obstinadamente. A sensação
que se produz com isso é de uma segunda voz insistente e quase percussiva, como de um
tambor acompanhando a melodia principal.
Os três baixos em Mib anunciam o tema recorrente da célula-tema, advinda da parte
Eclosión. A célula da mesma forma que na primeira parte irá se desenvolver, se expandir
pouco a pouco.
99
Impromptus n.º 3 do inglês Richard Rodney Bennett (1936-), composta também em 1968, utiliza este
procedimento.
187
Brouwer encontrou diversas maneiras de realizar expansões e variantes desta célula,
como clusters de três notas, com ritmo em tercina e sextina, arpegios, ritmos e trinados
advindos também da primeira parte, até que uma reprise do glissando do início da peça e um
cluster de três notas em mínimas encaminham a peça para seu final.
O final ocorre com uma sensação de repouso, pois Brouwer coloca ré natural e mi
bemol, o que pode ser entendido como um último som ligado ao cromatismo (ré-mib), ou a
chegada a nota base, ou de equilíbrio – como afirma Mello, da peça, Mib, ou ainda entender o
ré como a 7.ª de Mib para finalizar harmonicamente em uma espécie de Dominante e Tônica.
A engenhosidade das idéias musicais e o approuch com o instrumento fazem de Canticum
uma das peças mais marcantes e bem-sucedidas do repertório violonístico. Com ela, ficou
comprovado que o violão além de possuir uma longa história, que o liga às tradições mais
remotas, tem a capacidade de se abrir às novas linguagens. Como disse Carlevaro: ―O violão é
como a água que se molda a qualquer recipiente‖100.
100
Soares e Antunes (1997).
188
6.4. La Espiral Eterna.
A Espiral Eterna foi composta entre 1970 e 1971 e pode-se dizer que é uma das peças
violonísticas em que Brouwer mais representou as escolas de vanguarda européia, mas
deixando, como em várias outras ocasiões, transparecer a sua marca como cubano. A partitura
alterna momentos de procedimentos da técnica de composição vanguardística com a
utilização de constantes rítmicas tradicionais cubanas que perpassam por quase toda a obra de
Brouwer. Se em Canticum Brouwer quis trazer os clichês da música de vanguarda para o
violão, em La Espiral Eterna essa intenção se maximiza, mas sua busca não se limitou
somente à mera utilização destes procedimentos, pois idealizou aspectos extramusicais para
inserir na partitura. O autor dá essa definição sobre a peça (Hernandez 2000:143):
La espiral... comienza con tres notas que son el centro y se van expandiendo una por
una, desde un registro central, como si estuviéramos flotando, nunca llega a estallar.
Ella se expande, vuelve a recogerse, va y viene y se concentra en una nota. Baja y sube,
pero no sube demasiado. Hay un área del espacio que se expande y se contrae
continuamente y cuando llega a esa nota termina con una intensidad que conduce a
otra lectura, que es el símbolo del átomo, los anillos y los puntos. Esto es una variación
de la espiral y adentro están esos átomos. Mi espiral sube y vuelve a centrarse y da pie
a la figura atómica y todo va desde el sonido organizado gradual hasta el sonido
desorganizado. Mi fiesta va de abajo hacia arriba, como una pirámide infinita.
Outras definições anteriores do autor (em Wistuba 1991:24) sintetizam suas intenções sobre a
espiral:
La Espiral como forma es común a la naturaleza desde la galaxia hasta el caracol y
corresponde a una forma de comportamiento en la sociedad de acuerdo a mi criterio
(...)
... continuamente nos volvemos a encontrar en el mismo punto, pero desarrollado. Una
vez mas nos encontramos con la música del siglo XIX, pero a un nivel de mayor
expresividad. No quiero decir que sobrepasaremos a Mahler o Brahms. Repito, no
hablo de calidad. Es un paso más allá en la remodelación de todo el asunto.
A partitura já foi analisada algumas vezes por: Eduardo Fernandez (1998), violonista e
professor uruguaio, que fez um artigo na revista norte-americana Guitar Review; há uma
189
página na Internet de autoria de Alejandro L. Madrid Gonzalez, de 1997, que também analisa
a peça; Isabelle Hernandez também a cita em seu livro (2000:143-145). De todas, a de
Eduardo Fernandez, embora esteja plena de tabelas e dados, foi a que não se limitou à uma
análise acadêmica – trata-se de uma interpretação de um artista sobre a obra de outro:
Fernandez vê em La Espiral Eterna o surgimento de uma estrela: seu nascimento, seu auge e
seu apagar.
A idéia da espiral como forma geométrica presente na Natureza e no Cosmos é uma
visão muito antiga, proveniente mesmo da matemática euclidiana, mas que em termos de
formalização teórica tem nos escritos de Leonardo Fibonacci (1170-1230) talvez o referencial
mais divulgado no Ocidente. Esse matemático italiano raciocinou a respeito das formas
contidas na Natureza, como a concha de um caracol, os traços de uma folha, os galhos das
árvores, enfim as curvas e seus números correspondentes que surgem na Natureza. Seus
estudos o levaram a formular a chamada ―seção áurea‖, procedimento matemático pelo qual
acha-se o ponto de partida de uma espiral até a sua abertura cada vez maior, ad infinitum. A
série de números de Fibonacci é iniciada com a soma de dois números em seqüência, a partir
do zero:
0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21 ...
Este procedimento sem fim cria ao mesmo tempo uma constante em função da razão obtida
entre os dois números antes somados, mas agora divididos:
1:0= 0
1:1= 1
2:1= 2
3:2= 1,5
5:3= 1,666...
190
8:5= 1,6
13:8= 1,625
21:13= 1,6153846
Da mesma forma, ao dividir inversamente, obtém-se uma constante:
1:2=0,5
2:3= 0,666...
3:5=0,6
5:8= 0,625
8:13= 0,6153846
13:21= 0,6190476
E assim por diante. Os números que foram fixados para se encontrar a seção áurea são 1,618
e 0,618.
A noção de proporcionalidade ou simetria foi exaustivamente utilizada e analisada na história,
seja em Arquitetura, Artes Plásticas, Botânica, Zoologia, Biologia etc. Na Música, a
construção de instrumentos também tomou por base as noções de simetria e
proporcionalidade, mas um dos exemplos mais conhecidos do uso da seção áurea relaciona-se
ao nome de Béla Bartók (1881-1945). Sua obra de maior destaque quanto à seção áurea é a
Música para Cordas, Tímpano e Celesta (1936), na qual a noção da simetria atinge níveis
excepcionais em sua concepção.
Enquanto a simetria como meio de se atingir a perfeição, ou seja, reproduzir
procedimentos da Natureza, foi utilizada nas Artes Plásticas e na Arquitetura por meio da
precisão nas medidas, em Música a aplicação do número de Fibonacci relaciona-se com a
duração da música. Por exemplo, se um compositor adepto da simetria e da seção áurea (como
Bartók) definir a duração da música em ―x‖ minutos, essa minutagem deve ser
191
multiplicada pela constante 0,618 que assim será encontrado o clímax da peça, a sua seção
áurea. Teoricamente, pelo número de compassos também se pode achar a seção áurea, como
por exemplo, uma peça de 100 compassos terá seu clímax por volta do compasso 62 (100 .
0,618 = 61,8).
O violonista Sidney Molina (2001) teve a oportunidade de perguntar a Leo Brouwer
de que maneira a seção áurea é utilizada em sua obra:
Depende da obra. Em La Espiral Eterna está presente nas proporções periódicas básicas;
já em Lágrima, para orquestra de cordas, está presente nos conjuntos de sons que se
agrupam em períodos. Esta forma era, aliás, utilizada pelo compositor Béla Bartók, um
dos maiores músicos de todos os tempos. Na verdade nunca parto de relações formais
apriorísticas. Eu componho de maneira tal que o som possa gerar o seu próprio
desenvolvimento. Não se pode aprisionar os sons. Cada som tem sua personalidade, e eu,
como compositor, não posso impedir a manifestação dessa personalidade.
Segundo assinala Isabelle Hernandez (2000:144), os números de Fibonacci são
encontrados nas seções A e B da partitura de Brouwer. Creio que essa maneira que Hernandez
aponta é uma interpretação um tanto quanto livre, isto é, os números não estão exatamente na
conformação original (0,1,1,2,3,5,8...) o que até descaracterizaria a série. Mas a autora
esclarece:
En la seccíón A de La espiral eterna, el compositor adopta de un modo muy ingenioso
esta serie, quizás no en su orden real y consecutivo, pero sí como concepto de
organización intercelular (grifo meu). De los 24 módulos de células de esa parte A, se
encuentran subconjuntos de 8 y 13 unidades. Tal similitud es obvia, el maestro tuvo en
cuenta la serie de Fibonacci. Asimismo en la parte B, la segunda sección presenta un
movimiento cromático en pizzicato, cuya secuencia repetitiva incluye los números 8, 5 y
3 en ascenso para luego descender a partir de 5, 3 y 2, lo cual sugiere una vez más dicha
serie.
Creio que o mais válido seria, já que estamos lidando com a série mais conhecida dos
números de Fibonacci, não abandonar os números e as regras que governam estas séries. A
recorrência de um outro número põe em risco a utilização real da série – isto causaria
192
problema de que outros números também representados ali (nos 24 módulos da seção A e nos
pizzicatos da seção B de La Espiral) fossem ignorados, tais como: 4, 6, 7 e outros.
Por outro lado, comparando La Espiral Eterna com a peça para quarteto de violões Paisaje
Cubano com Lluvia (1984) pode-se sim confirmar o uso da série de Fibonacci na Paisaje...,
logo no tema inicial, como afirmou o autor (Wistuba 1989:52):
Lo que hay (em comparação com La Espiral...) es la visión monotemática celular que en
este caso (de Paisaje...) ya es esencial porque parte de una nota, después dos, luego tres,
después cinco, posteriormente ocho, voy siguiendo la progresión no matemáticamente
exacta, pero si la de Fibonacci, no literalmente porque no me interesa tener una
construcción de esa índole, pero fue el punto de partida (grifo meu). Empieza una nota,
después dos, tres, cinco, o sea, la suma de los números anteriores y así se va creando la
sección áurea que me fascina de toda la vida..
Pela fala anterior, Leo Brouwer está querendo dizer que Arte não é Ciência, só a
utiliza como ponto de partida.
Mais importante que encontrar a série exata de Fibonacci na partitura foi determinar a
seção áurea da peça, que por vários fatores parece mesmo encontrar-se na seção C, como
demonstra o cálculo matemático:
O tempo total da partitura deve ser multiplicado pela constante 0,618 para se encontrar
o clímax da música. As durações de cada trecho de La Espiral... estão indicados por Brouwer
a cada final ou início de seção, acrescido de alguns segundos de pausas. Somente na seção D a
duração exata não está fixada; a parte D-1 deve variar entre 10 e 15‖ e a D-2 entre 40 e 45‖.
Tempo mínimo
Seção A: 120‖
Seção B: 120‖
Seção C: 45‖
Seção D: 1- 10‖
2- 40‖
3- 50‖
4- 25‖
Total: 410‖
Cálculo: 410‖ . 0,618= 253, 38
Tempo máximo
Seção A: 120‖
Seção B: 120‖
Seção C: 45‖
Seção D: 1- 15‖
2- 45‖
3- 50‖
4- 25‖
Total: 420‖
Cálculo: 420‖ . 0,618= 259,56
Então, o resultado da marca do clímax da partitura seria algo entre 253 e 260 segundos
aproximadamente, o que recai justamente na seção C. Além de esse cálculo matemático
incidir exatamente na seção C, dois outros fatores assinalam a parte C como a seção áurea. A
primeira, uma declaração de Brouwer (Wistuba 1987:59 in Wistuba 1991:30):
La estructura de la Espiral Eterna parte de una nota real (ou seja, na seção
A) y gradualmente va oscureciendo las alturas con el pizzicato continuo
(seção B) y luego con el sonido indeterminado hasta llegar a la percusión
como ruido (seção C), como última forma de la atomización del sonido real
(grifo meu).
Neste sentido, analisando essa fala de Brouwer, a seção C é o aviso de chegada do
auge da peça. Caberá à seção D fazer o caminho de volta da espiral, só que agora de uma
maneira ―desenvolvida‖, como afirmou antes Brouwer.
A segunda confirmação de que a seção C é mesmo a seção áurea, o clímax da
partitura, provém da própria execução da peça, pois a seção C é sonoramente e tecnicamente o
ponto culminante da execução, já que demanda habilidade (raras vezes solicitada na música
para violão) de tocar o braço do violão com as duas mãos como se este fosse verdadeiramente
um instrumento de percussão.
La Espiral Eterna está apresentada em 4 seções A B C D, sendo que na última página há uma
―bula‖ para explicar algumas indicações da partitura:
194
A seção A é a parte que mais representa a noção de espiral porque as notas ficam
sendo repetidas como se estivessem girando ao redor de si mesmas e passando de um módulo
a outro, ora aumentando de extensão ora diluindo essa diferença. A seção possui 24 módulos,
com extensão de 15 notas no total, de Fá#3 a Sol#4 (obtendo o intervalo de 9.ª Maior – uma
oitava e 2.ª Maior). As notas Mi e Si são recorrentes em todos os módulos e parecem ser o
centro do movimento; poderiam ser comparadas a uma espécie de Finalis e Cofinalis, ou uma
forçada relação de tônica e dominante. Pode-se depreender mais análises daí: caso se pense
em Mi como a ―nota real‖ citada por Brouwer, da qual parte o movimento de espiral, o ré e o
ré# seriam suas bordaduras; se pensar em termos de cromatismo, as notas mi, ré# e ré são a
execução de um cluster.
O início, Lo mas rapido posible, mostra a célula básica que irá conduzir a obra, assim
como fez em Canticum. Essa célula básica é formada por três notas simples (ré – mi – ré#)
encontradas dentro de um módulo e, como diz a bula, a música contida em cada um dos 24
módulos deve ser repetida, aleatoriamente pelo intérprete o que sugere também uma
improvisação ao mesmo tempo controlada pelo limite de tempo (2 minutos) desta primeira
parte da obra. A cada módulo vai sendo acrescida uma ou mais notas, ampliando a curva da
espiral, mas logo chega a um ponto de retorno ao tamanho original, isto é, de três notas.
O resultado sonoro deste trecho é um continuum em que se destaca a proximidade
entre as notas, quase o tempo todo em cromatismo. A dinâmica é suave, com o pedido de
195
variação de som de um ppp até um mf com várias indicações de < e > (crescendo e
decrescendo). Ao final desta parte um pizzicato alla Bartók é solicitado, assim como uma
pausa de dois segundos. O controle sobre a interpretação da peça é percebido pela indicação
da duração da obra, que até aqui deve ser de 2 minutos.
A seção B possui três subseções: 1- Un poco lento, 2 - Rápido e 3 – non pizz. Aqui
estão alguns números de Fibonacci (no começo da seção 2: 8, 5, 3 e no fim desta seção 5, 3,
2, citados por Hernandez), embora intercalados por outros números fora da série.
A seção funciona com a alternação de três ou quatro notas em cromatismo repetidas em
Pizzicato com duração indicada pelos colchetes, com uma nota em Sforzzato101 e Glissando.
101
Sforzatto (sffz) é a solicitação para que uma nota seja tocada com maior destaque.
196
Segundo Hernandez (2000:145) assinala, esta seção representa o movimento dos átomos
girando ao redor do seu núcleo e como afirmou Brouwer o pizzicato está em ―som contínuo
com alturas obscurecidas‖. Hernández também aponta o efeito de stop-motion do movimento
nas notas em Sforzzato e Glissando.
A finalização desta seção ocorre quando as notas então em pizzicato passam a notas de
entonação apagada, por meio do apoio dos dedos da mão esquerda sem peso sobre a primeira
corda, cabendo agora ao executante visualizar o desenho curvilíneo que se forma para
ascender ou descender pela corda. Chega-se assim ao ―som indeterminado‖, intenção de
Brouwer.
Esta seção B também tem duração indicada de 2 minutos. Como disse Brouwer, do
som indeterminado (vindo da seção B) passa-se ao som de percussão, ―como ruído como
última forma de atomização do som real‖. Utilizando a técnica de percussão com as duas
mãos, o executante deve alterná-las por meio das indicações na partitura quanto à escolha dos
dedos de ambas as mãos: indicador (i), médio (m) ou anular (a) da mão direita; com os dedos
1 (indicador), 2 (médio) ou 3 (anular) da mão esquerda, além disso, o andamento sugerido,
Rapido, Irregolare, é obtido com a colocação de valor entre colcheias e fusas muito velozes,
também em ascenso e descenso, e as alturas das notas são apontadas pela região aproximada
em que se situam no pentagrama:
197
A duração prevista desta seção é de 45 segundos.
D – Esta seção representa o retorno “desenvolvido” da Espiral, ao qual o autor se
referia. Está dividida em quatro subseções, todas com marcação de duração de tempo em
segundos ou por intermédio de sugestão de metrônomo ou de andamento:
D-1: 10‖a 15‖ e  = 60-72
D-2: 40‖a 45‖e  = 92
D-3: Rapidísimo e 50‖
D-4: 25‖
A seção D-1 tem a figuração de um cluster alargado, no qual se solicita a
improvisação entre 10 e 15 segundos nestas notas apresentadas. Em seguida, o improviso tem
como base os ritmos afrocubanos, como Brouwer afirmou em 1978 (in Brouwer 1989:91): ―
... dentro del aleatorismo, en la Espiral para guitarra hay una sección completa que es un
toque de tambores de rumba-guaguancó propiamente – con el quinteo, con el bajo ostinato,
con su complejo rítmico -, y se inserta muy bien dentro de la atmósfera total de la obra”.
A partir da segunda parte (D-2) a melodia inicial é acompanhada de uma segunda
melodia, também com ritmos afrocubanos.
198
Na parte D-3, configura-se a representação do intento maior do compositor, a de que a
espiral retorne de forma mais desenvolvida. Enquanto a seção A mais bem representa a idéia
de uma espiral, a parte D-3 concebe a espiral expandida, inclusive pela extensão física do
violão (note-se ainda que o desenho obtido tem um aspecto piramidal), pois se vai da nota
mais grave do instrumento, o Mi da 6.ª corda, até o si da 1.ª corda, casa 17 do violão, e vai
diminuindo de extensão, até atingir o Mi grave e um cluster de duas notas, em pizzicato alla
Bartók:
199
Para finalizar, um Lento, proveniente do final do D-3, faz ressurgir a célula inicial de três
notas, alternada com o pizzicato alla Bartók, como no final da seção A, e que passará para
outra célula repetitiva e similarmente alternado com um pizzicato alla Bartók. Por fim, a parte
D-4 traz as últimas três notas em cluster em dó, dó# e ré, na qual se solicita a permanência do
movimento de repetição da melodia durante 25 segundos, em um desenho de dinâmica que
deve ser executado.
Entre aleatorismo e improvisação, a partitura ficou assim representada:
Seção A – Repetição de melodia cromática indicada dentro dos retângulos, durante 2 minutos.
O improviso fica a cargo do intérprete em relação a quantas vezes repetirá a melodia de cada
módulo, sempre observando a duração definida em 2 minutos.
Seção B – No final da seção a solicitação de que as notas tenham sua entonação apagada
aponta para o aleatorismo da altura das notas, determinada agora pela improvisação na
execução do intérprete de acordo com sua visão do desenho curvilíneo da melodia. Imposição
de 2 minutos também para esta seção.
Seção C – Aleatorismo das notas e improvisação a critério do intérprete, observando os
desenhos de dinâmica e altura propostos, durante 45 segundos.
200
Seção D – Improvisação sobre as notas dispostas em um largo cluster e depois com as
mesmas notas só que tendo como base os ritmos afrocubanos ali representados. A marcação
da duração dos tempos sugere sempre um improviso controlado.
La Espiral Eterna sintetiza a bagagem cultural de Leo Brouwer. A partitura se
dimensiona pela inserção de vários mundos – europeu, africano, latino-americano. O termo
―espiral‖ transformou-se em um epíteto do próprio Brouwer.
201
6.5. El Decamerón Negro.
A obra El Decameron Negro é inspirada no livro homônimo do antropólogo alemão
Leo Frobenius (1873 - 1938), cuja primeira edição em Castelhano foi feita em 1925, pela
editora espanhola Alianza Editorial. Conhecer a obra literária que levou Brouwer a compor a
peça contribuirá para as análise e interpretação musicais.
O livro El Decamerón Negro é uma antologia de contos que narram feitos heróicos e
fábulas de animais, à moda de nossos equivalentes ocidentais como as histórias dos cavaleiros
medievais e as famosas fábulas de La Fontaine.
Na introdução do livro, Frobenius explica o porquê desses interessantes relatos.
Acontece que em algumas sociedades tradicionais africanas, os filhos dos nobres, em idade
adulta, saem à procura de aventuras, glórias, amor e de sua própria fortuna, por isso tantos
acontecimentos foram relatados, servindo de motes para muitas narrativas.
Sobre o uso do termo ―Decamerón‖ só se pode concluir que Leo Frobenius quis ligar a
narrativa africana à famosa antologia do italiano Bocaccio autor de Decameron. Frobenius
não é o autor das histórias do El Decamerón Negro. Ele as coletou de profissionais
extremamente especializados que passam a vida dedicando-se ao arquivamento da história
tradicional africana: são os chamados griots (pronuncia-se ―griô‖ - palavra estereotipada
advinda do colonizador francês para caracterizar, erroneamente, um indivíduo que utilizaria
feitiçaria). Muitos autores, como Frobenius mesmo, costumam comparar os griots às figuras
dos bardos e trovadores.
Ser um griot é um dos mais ativos papéis sociais dentro da sociedade tradicional
africana. Segundo Djibril Tamsir Niane (1982:7) é o griot quem garante a preservação da
memória de um povo. Chamado por outro autor, Hampaté Bâ (1982:181), de ―autêntica
biblioteca pública‖, o griot exerce sua profissão de perpetuar a história por meio da chamada
202
―tradição oral‖; não há registro escrito de todas as épocas que um griot sabe e cita de memória
- memória esta que é sua ferramenta de trabalho.
Interessante notar que na introdução do livro de Niane (1982:5) este alude ao fato de
os griots serem geralmente excelentes poetas, e que a arte de tocar e cantar teria vindo por
último entre as funções do griot. Lamenta, entretanto, que hoje em dia a denominação griot
esteja mais ligada à seguinte definição:
‗casta de músicos profissionais‘ feita para viver às custas dos outros; desde de que se
menciona um griot, pensa-se nesses numerosos violonistas que povoam nossas cidades e
que vão vender sua ‗música‘ nos estúdios de gravação de Dakar e Abdjian (...) Se, hoje, o
griot se vê reduzido a tirar partido de sua arte musical (...) nem sempre foi assim na
África antiga.
Sobre essa reclamação de Niane, é necessário explicar que era (e por certo ainda é em
muitos lugares da sociedade tradicional africana) obrigação de um griot falar em nome de seu
nobre, negociar, informar sobre a ascendência, contar os feitos da árvore genealógica de uma
família. Em troca, o griot receberia a hospitalidade e o sustento. Quando um nobre alcançava
estabilidade financeira, o griot reconhecidamente vivia às custas do seu senhor, acumulando
presentes, recebidos pelos serviços prestados. Dentre estes serviços de um griot poderiam
estar desde uma negociação de paz sobre alguma desavença entre famílias até uma canção
feita para exaltar as qualidades de seu senhor (a bondade, a força, a sabedoria, a beleza etc.)
ou uma canção para o nascimento de um filho etc..
Com o inevitável contato entre as civilizações européia e africana, a figura do griot
alterou-se significativamente, a ponto de se tornar um comércio, daí a reclamação de Niane
sobre a relação do griot com o show-business. Atualmente, com a tecnologia da TV a cabo ou
por satélite, não é difícil encontrar griots apresentando-se em programas nos canais de língua
francesa, e há hoje em dia muitos Compact Discs de etnomusic ou worldmusic gravados por
griots advindos de famílias tradicionais africanas, que continuam cantando suas canções ou
executando suas músicas instrumentais, incluindo algumas que narram epopéias,
203
completamente ininteligíveis ou desconhecidas do Ocidente e muitas vezes visadas e
popularizadas somente pelo ritmo - característica mais reconhecível pelo público ocidental
como o que se espera da música africana.
No caso da obra musical, El Decamerón Negro foi composta em 1981 e dedicada à
violonista norte-americana Sharon Isbin (1950- ), pertencendo à terceira fase do compositor,
Nueva Simplicidad. Leo Brouwer é um admirador dos griots tocadores de kora102, diz que são
verdadeiros exemplos de virtuoses porque ―têm ao mesmo tempo a agressividade e a leveza
necessárias‖ (Gordon 1986). Durante a execução do Decameron percebe-se essa alternância
entre leveza e agressividade em trechos contrastantes.
Nota-se pela temática apresentada na obra musical que Brouwer ficou mais com a
primeira parte do livro, na qual são narradas as aventuras de nobres da região entre o sul do
deserto do Saara e a floresta do Níger. Esta é uma região geográfica familiar a brasileiros e
cubanos, pois foi de onde foram trazidos à força boa parte dos africanos para o trabalho
escravo no continente americano.
A maioria das histórias narradas no El Decamerón Negro mostra o difícil caminho do
jovem guerreiro em se tornar reconhecido, começando geralmente por ser um anti-herói,
muitas vezes tomado por covarde, até conseguir provar sua dignidade por meio de feitos
heróicos em batalhas ou demonstrações extremas de coragem, conquistando a glória almejada
e o coração de uma mulher.
A série de seis contos narrados na primeira parte do El Decamerón Negro como um
todo inspirou Brouwer que, em vez de seguir passo a passo um ou outro conto do livro optou
por narrar a essência da obra: um guerreiro está à procura de feitos gloriosos, consegue
realizá-los, é reconhecido pela amada e será imortalizado em uma canção feita pelo griot.
102
A kora é um instrumento africano de 21 cordas tocadas com a ajuda de duas baquetas, uma em cada mão, que
pinçam as cordas estiradas em uma cabaça que serve como caixa de ressonância.
204
Entretanto o conto de número 5, El Laúd de Gassire (O Alaúde de Gassire), parece ser
de fato a história que mais se aproxima à obra musical de Brouwer 103. Uma comparação pode
ser feita já pelo título do primeiro movimento El Arpa del Guerrero (A Harpa do Guerreiro)
com El Laúd de Gassire, mas as comparações literais começam e terminam por aí.
Este quinto conto do livro de Frobenius relata a história de um guerreiro, Gassire, que
ansiava por assumir o trono de seu pai, que já era de idade avançada. Consultando um
adivinho, ele fica sabendo que jamais herdará a espada e o escudo de seu pai. Um alaúde tem
um importante papel na história; os ―poderes‖ do instrumento são descritos com bastante
lirismo; diz-se que é capaz de eternizar os feitos dos homens com suas canções e que estes
feitos superarão sua morte.
Poderia ser interpretado que no primeiro movimento da peça (El Arpa del Guerrero)
Brouwer está representando aqui a ―voz‖ da harpa contando a história do guerreiro (enquanto
que no conto do livro, é o alaúde quem ―fala‖). Entretanto, parece que Brouwer inspirou-se
nas narrativas, mas quis ―acrescentar‖ ele mesmo uma nova história à coletânea, como se
estivesse assumindo um papel imaginário de griot ou, mais ainda, que todo o intérprete da
peça seria um griot. Brouwer falou o seguinte sobre o livro e a sua peça (Hernández
2000:216):
Tomé una historia del libro El decamerón negro de León Frobenius, un sociólogo y
científico que fue a África a estudiar la cultura de ese continente a principios del siglo
XX. Muchas historias les fueron reveladas por los griot ancianos que conocían muy bien
las leyendas. Con estos cuentos recogidos él armó un maravilloso libro, que además tuvo
gran influencia en la literatura europea, incluso Picasso recibió su influencia de forma
revolucionaria en sus máscaras negras y todo el asunto de la „negritud‟, bien como la
llamó Jean Paul Sartre. El libro entero tiene que ver con la guerra, el amor, tabúes y un
poco en homenaje a Bocaccio, Frobenius parafraseó el título del renacentista italiano y
por tal razón lo tituló El decamerón negro. De aquí sólo trabajé una historia que dividí
en tres partes. La primera es de un guerrero que quería ser músico y tocar un arpa. La
situación de castas era muy estricta, en un primer término estaban precisamente los
guerreros, luego los sacerdotes, los cultivadores, y en el fondo de esa escalera están los
músicos. ¿Como fue posible entonces que un grandioso guerrero del clan quisiera ser un
músico? Este guerrero al dejar de serlo, fue desechado por el clan y expulsado de la
103
Segundo nos informa o violonista Gilson Antunes: durante masterclass do violonista uruguaio Eduardo
Fernández sobre a obra, em 1996, na Unirio, ele afirmou que embora o livro como um todo tenha sido
importante, este conto foi o que mais inspirou Brouwer.
205
tribu. Entonces se fue a las montañas, pero sucedió que la tribu comenzó a perder todas
sus batallas y es cuando lo van a buscar, le piden, casi de rodillas, que los ayude, a ese
que ya no era guerrero, sino músico. Baja de las montañas, gana todas las guerras y
regresa a las montañas para convertirse en músico una vez más. Aquí también hay una
historia de amor. Después de ser expulsado, ya no podía ver a su mujer, luego de vencer
las batallas se la llevó con él. Esa es, simplificada, la historia El decamerón negro.
As partes La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos (A Fuga dos Amantes
pelo Vale dos Ecos) e a Balada de la Doncella Enamorada (Balada da Donzela Enamorada),
referem-se ao papel feminino em vários contos do livro como parte da vitória do guerreiro na
sua aventura.
Brouwer afirmou que fatores técnicos não têm tanto valor para ele (Gordon 1986)
como têm os fatores extramusicais, embora ressalve que é necessário conhecer primeiro todas
as técnicas para poder fazer escolhas livres. Duas coisas importantes ele já disse sobre compor
para violão: quando compõe, pensa primeiro na música e depois transcreve para o violão (Hoz
1999) e que crê que sua música para violão é do tipo de um ―violão-harpa‖ (Gordon). Neste
sentido, os padrões de arpegios que ele utiliza funcionam como vibrações, ressonâncias que
quer dar em uma obra. As palavras de Brouwer (Bettancourt 1999) foram:
The guitar harp is a guitar-orchestra in which all the orchestral compositional elements
are closer to the orchestra than to the traditional guitar clichés. I always use the "GuitarHarp", a resonant guitar. I try to avoid the percussive or melodic guitar. The basic
harmonies I use, when they are simple chords, are chords that rest obeying the "law of
opposing forces". These harmonies involve small -I could say even miserable- thematic
materials. Four foolish notes give me the pretext to compose a work of big dimensions.
[O ―Violão-Harpa é um violão-orquestra no qual todos os elementos
composicionais estão mais próximos à orquestra do que a tradicionais clichês
violonísticos. Sempre uso o "Violão-Harpa", um violão ressonante, não o violão
percussivo ou melódico. As harmonias básicas que uso, quando são acordes
simples, são harmonias que descansam obedecendo à ―lei dos contrários‖. Estas
harmonias envolvem materiais temáticos ínfimos – eu diria até míseros. Quatro
notas tolas me dão um pretexto para compor uma obra de grandes dimensões.]
(tradução minha)
No Decameron Brouwer utilizou, de forma geral, o formato A-B-A em cada uma das
três partes da peça, isto é, a peça tem um tema inicial (A), um desenvolvimento no meio (B) e
um retorno à primeira parte (A).
206
Uma das técnicas de composição que está presente no Decameron é o Minimalismo,
assim como em outras obras de Brouwer, (destacando-se Estudo n.º 20 para violão, Chanson
de Geste, para orquestra de sopros). O termo Minimalismo entrou mais em voga nos anos 70
por meio da obra dos norte-americanos Steve Reich e Philip Glass, este último tornando-se
um dos nomes mais conhecidos no gênero. Mas Brouwer declara que há muito tempo já se
fazia música minimalista no mundo – ele disse (Bettancourt 1999):
I took minimalism as a very important compositional element because it is inherent to my
cultural roots from the "third world". Africa, Asia manifest themselves in a minimalist
way. These marvelous creators of North American minimalism discovered that fact,
perhaps late.
[Tomei o minimalismo como um elemento composicional muito importante porque ele é
inerente às minhas raízes culturais de ―terceiro mundo‖. África, Ásia manifestam-se de
um modo minimalista. Estes maravilhosos criadores do minimalismo norte-americano
descobriram este fato, talvez tardiamente.] (tradução minha)
No Decameron a harmonia possui tonalidades dúbias e há uma ausência de
progressões harmônicas, fato comum a quase todas as obras de Brouwer. Há uma profusão de
vozes imitativas e registros alternados de vozes.
O fraseado, na maior parte da obra, aparece como um trecho curto que vai crescendo
aos poucos quase em uma progressão matemática; essa ampliação às vezes se ―resolve‖, isto é
se limita, e retorna ao tamanho original. Brouwer utiliza uma progressão matemática, mas
sem uma ordem pré-estabelecida, fixa ou rígida como na Espiral Eterna.
A partitura está dividida em três partes e em algumas seções internas.
A primeira parte, intitulada El Arpa del Guerrero, introduz a ―história‖ em dois
compassos com três ligados ascendentes que chamam a atenção para o início da narrativa.
Esta primeira parte está dividida pelos temas:
A - B (lírico) - A - C (tranquillo) - A‘- B‘- A -C‘ -A‘‘- coda final.
O tema A possui um aumento progressivo na linha melódica. Os arpegios são
seqüencialmente interrompidos por um fraseio curto, até progredirem cada vez mais, tanto no
número de arpegios quanto nas frases:
207
2 arpegios - uma frase;
3 arpegios - a frase anterior acrescida de outra;
4 arpegios - as 2 frases anteriores acrescidas de mais uma nova frase.
Os motivos seguintes - os dois un poco sostenuto e os dois tranquillo - até a coda vivo,
seguirão este modelo de alternar arpegios com linhas melódicas curtas.
É de se notar que o tratamento de arpegios de 10 notas pode ser uma tentativa de
imitação da kora. Como Brouwer mesmo já citou os arpegios em suas obras aparecem sempre
como ressonâncias e o motivo melódico é mínimo.
E é o que acontece no tema B (lírico); o motivo melódico é pequeno, acompanhado de
arpegios. Aqui é um momento de contraste, como a oposição entre agressividade e leveza,
citado anteriormente, necessários ao intérprete. Na seqüência do lírico, há um retorno à parte
A.
208
Em seguida, o tema C (tranquillo), diferente do que vinha ocorrendo até aqui, tem a
melodia apresentada verticalmente, isto é, em acordes, cabendo ao intérprete destacar a
melodia que está embutida nestes acordes. Este tema, apresentado em forma vertical, surge
como um contraste à profusão de melodias horizontais vigentes.
Percebe-se que ao final desta parte C, o compositor dá sinais de um procedimento de
sobreposição de vozes, que surgirão com maior profusão nas partes II (Fuga dos Amantes...) e
III (Balada da donzela...).
Recomeça uma exposição A- B- A: o tema da introdução é estendido; o Lírico agora
passa a uma 4.ª acima104 que vai levar a uma apresentação em acordes para retornar ao tema A
e ao novo Tranquillo também uma 4.ª acima.
Há um retorno parcial ao tema A, seguindo para uma coda (Vivo) com grandes
arpegios de 10 notas, e finaliza definindo a tonalidade em Mi maior.
104
Passar para 4.ª acima (ou qualquer outro intervalo) significa alterar a tessitura do trecho; no caso aqui a frase
musical (Lírico) ficou mais aguda.
209
A segunda parte, intitulada La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos‖, ou ―A
Fuga dos Amantes pelo Vale dos Ecos‖, está dividida em 9 seções, que em seus títulos
revelam o espírito descritivo que o compositor quis dar, como por exemplo na passagem que
indica a iminência de que algo está para acontecer, no declamato pesante e no presage, ou na
representação de uma ação como no primer galope de los amantes.
Esta parte refere-se ao papel feminino em vários contos do livro como parte da vitória
do guerreiro na sua aventura.
A introdução A- Declamato Pesante tem (como na primeira parte) o alargamento da
melodia a cada frase e esta melodia será o tema recorrente da parte toda.
Na seção B -Pressage nota-se que a partir do arpegio se sobressai a melodia anterior.
O final de cada frase com a nota se repetindo e diminuindo assinala a sensação de eco que o
autor já quer passar.
A seção C- Primer Galope de los Amantes, utiliza várias quiálteras, e é dominada por
Minimalismo. Estes dois procedimentos vêm no encontro da sensação de eco que se quer
produzir e à idéia do galope, além do já estabelecido uso de arpegio. O uso do Minimalismo é
controlado pela solicitação da repetição de quatro vezes (x4) cada módulo e há uma idéia de
alongar cada vez mais o movimento até atingir um auge e começar uma volta, diminuindo os
movimentos. Nota-se mais uma vez a grande semelhança com a sonoridade da Kora.
210
Na seção D- Pressagio, retoma-se a forma do Pressage. As seções E- Declamato e FRecuerdo possuem o mesmo tema da Introdução (Declamato Pesante), que mais uma vez vai
sendo ampliado no fraseado e agora recebem um contraponto imitativo na segunda voz, o que
refaz a sensação de eco.
Na seção G- Por el Valle de los Ecos, o tema é ainda o mesmo da Introdução só que
agora bem mais dimensionado e, por inventividade do autor, o final de cada frase está
apresentado na forma de ecos, incumbindo o intérprete de melhor representar esta sensação.
Os aspectos minimalistas e dos arpegios são ampliados aqui, como forma de demonstrar a
sensação de eco e de um galope.
Na seção H- Retorno, ocorre a volta aos primeiros compassos da parte G (Por el
Valle...)105. Na seção I- Epílogo há uma volta ao tema do B- Pressage, mas agora invertendose a ordem dos compassos:
105
Estranhamente, neste Retorno há uma alteração na fórmula de compasso de 68 para 88 o que pode ter sido um
equívoco da edição da partitura (Edições Transatlantiques - Paris), já que claramente fica evidenciado que a
seção H é um retorno e, portanto, deveria seguir exatamente a marcação anterior da fórmula de compasso.
211
A terceira parte, intitulada Balada de la Doncella Enamorada, ―Balada da Donzela
Enamorada‖, já foi comparada por Carlos Barbosa Lima, violonista brasileiro de carreira
internacional, a uma balada-rock (Gordon 1986).
A Balada está apresentada em: A - B - A - C - A.
A parte A (moderato), começa com um pequena introdução de dois compassos, com
caráter rítmico mostrando já um deslocamento de tempos (síncope) que irá prevalecer nesta
parte toda. Nesta terceira parte em especial percebe-se uma noção de tonalidade – Ré maior.
O tema principal desta parte, Sempre Lírico, além das muitas síncopes, tem a melodia
acompanhada de baixos.
Após isso, o tema é desenvolvido brevemente e é finalizado com uma alusão aos
compassos da introdução.
No B- Piu mosso, a célula rítmica da parte A (moderato) será o elemento de fundo que
acompanha obstinadamente uma melodia em semínimas (  ):
212
Essa melodia simples em semínimas vai sendo acrescida de uma nota, depois duas,
formando por fim uma tríade menor.
Após isso, surge uma ponte de sete compassos que leva a uma nova temática. Nesta, a
célula rítmica de acompanhamento está agora na voz aguda, enquanto que a melodia em
semínimas está na voz grave. Há um retorno a melodia da passagem anterior (ponte), com
algumas variantes até voltar ao tema principal Sempre Lírico.
A parte C é um novo Piu mosso que surge com a mesma célula rítmica da introdução
nos baixos, mas agora com uma melodia intercalada, em uma espécie de ponteio, que durará
até o fim desta parte.
213
Surgem arpegios e rasgueados106 alternando-se com os baixos e ―ponteios‖ anteriores.
Há mais um retorno ao tema Sempre Lírico e finaliza-se a peça com a célula rítmica da
Introdução que foi o fundamento desta parte:
Pode-se concluir que o uso de arpegios foi o procedimento que mais apareceu na obra
e que serviu de elo entre as três partes.
106
Note-se que o uso de rasgueados, teoricamente um procedimento do violão flamenco, em uma peça que tem
como pano-de-fundo aspectos da cultura africana é normal aqui porque Brouwer traz para o violão essa mescla
de linguagens. Além disso, os rasgueados também lembram o som da Kora – Brouwer tem uma interessante
214
6.6. Rito de los Orishas.
A peça Rito de los Orishas de Leo Brouwer pertence à fase mais recente do
compositor; o terceiro período chamado por ele de ―Nueva Simplicidade‖ e por alguns
especialistas de ―Hiper-romantismo nacionalista‖. O que chamou a atenção para escolher a
peça foi a sua temática, por demonstrar o encontro entre os contextos religioso e musical.
O culto aos orixás praticado em Cuba é advindo da África Ocidental, na região de
Nigéria e Benin, no mapa ocidental. O culto foi trazido a Cuba pelos africanos de origem
ioruba, durante a forçada vinda para o trabalho escravo nas lavouras canavieiras. Em terras
cubanas, os iorubas receberam a denominação geral de Lucumí. Após séculos de constantes
dificuldades em manter vivo o manancial cultural dessa sociedade, durante o longo processo
de sincretismo, a religião Lucumí sobreviveu até os dias de hoje na chamada prática da
Santeria cubana.
Composta em 1993, Rito de los Orishas, Rito dos Orixás em Português, foi dedicada ao
violonista argentino Álvaro Pierri. A peça tem como tema alguns aspectos do culto aos orixás
em Cuba e está apresentada da seguinte forma:
1. Exordium-conjuro
2. Danza de las diosas negras
Danza I
Danza II
Evocación I
Evocación II
Danza III
―tese‖: a de que os aspectos essenciais das diversas culturas são abstratos e na verdade se tocam, se aproximam,
215
Segundo o prefácio da edição, os dois títulos principais acima sugerem primeiramente
um rito no qual maus espíritos são afastados, e uma segunda parte na qual acontece a dança
das deusas negras.
A primeira parte está representada pela idéia do Exordium-conjuro, (exórdio - começo
de um discurso; conjuro - afastar perigo, mal iminente, segundo o Dicionário Aurélio), ou
seja, é uma representação da abertura de uma seção de culto ao orixá em que o sacerdote é o
encarregado dessa tarefa, pois não se começa nenhum rito sem uma invocação (oral) ao orixá
mediador Echú ou Eléggua, a cargo dos babalaos (sacerdotes) e na qual suas fórmulas de
conjuro são ditas em voz baixa (Ortiz 1981: 170-172).
No aspecto sonoro, o pronunciamento do sacerdote pode estar demonstrado nos 18
compassos de abertura da peça:
Em seguida, segundo marcação de Brouwer, um tema anuncia a dança ritual
(Annoncant la danse rituelle/Indication of the ritual dance), e prossegue em dois Vivace,
nesta abstração (McKenna 1989).
216
sendo o último como um ritornello a princípio, mas com uma melodia variada nos baixos.
Para finalizar esta parte, um trecho em Tempo libero leva a um desfecho Lento que nos
encaminha agora ao segundo movimento da obra.
Geralmente, há duas grandes partes em cerimônias - a primeira é o chamado do orixá e
a segunda é a sua chegada (Brendon 1997:147). Pode-se deduzir que Brouwer vem seguindo
até aqui as formas tradicionais de um culto: uma abertura que afasta os males (conjuro) por
meio de um discurso (exórdio), e em seguida o chamado dos orixás (anúncio da dança ritual)
e segue para outra grande parte da cerimônia que conta com a presença do orixá a quem a
cerimônia é consagrada.
Por indicação de Brouwer na partitura, o segundo movimento deve começar sem
interrupção: attaca (a última nota da parte anterior) i danza ritual. Conclui-se que este ataque
sem interrupção para a dança ritual é o momento da chegada do orixá, que seria de modo
repentino (em uma seção real), e por isso Brouwer também pode ter almejado, por meio desta
indicação, realçar a sensação da chegada repentina do orixá.
A Danza de las diosas negras inicia com uma introdução de 10 compassos e segue
para a Danza I.
217
A Danza I começa com um andamento rápido que depois vai sendo reduzido: inicia
com um Allegro, na seqüência vai para Un poco sost./ ben articolato, caindo mais ainda em
outro poco sost. de cinco compassos. Da mesma forma, ressurge o Tempo di Danza I em um
andamento leggero que diminui para un poco sost. e depois em Lento (de apenas um
compasso) que finaliza a primeira Danza.
Já a Danza II tem uma introdução de seis compassos que Brouwer pede secco.
218
Em seguida, o tema surge na voz mais aguda acompanhado pela mesma harmonia
vinda da Introdução, até que um sinal de respiração (‘) passa para uma reexposição do tema
da Introdução, uma oitava acima e depois na oitava original, variando em seguida para uma
oitava abaixo, isso em cinco compassos. Um rallentando finaliza a seção.
219
O que fica evidenciado é que em ambas introduções das duas danças denota-se a
chegada do orixá e os temas indicam suas exibições. Contribuem para isso diferenças de
caráter entre as partes (introdução e tema), pois enquanto as introduções têm um caráter
maestoso, os dois temas são de caráter movido, dançante.
Outros aspectos podem ser trazidos à tona aqui. O primeiro, sobre a denominação (ou
a ausência de denominação por parte do autor) das deusas negras – quem são elas? Sabe-se
que há no culto aos orixás da chamada Santería alguns orixás femininos que se reúnem mais
comumente, por afinidade. Segundo Ortiz, Yemayá (―rainha do mar e da água salgada‖) e
Ochún (―deusa do rio‖) podem se encontrar nas cerimônias e ambas apresentam seus passos
em conjunto, a ―danza de la orilla‖ (Ortiz 1981:344-345, 359-360). Brendon (1997:147)
acrescenta ter assistido a uma cerimônia na qual até três orixás femininos se encontraram:
Yemayá, Ochún e Oya, e que estas são consideradas irmãs. Poderia se concluir então que a
Danza de las diosas negras refere-se a estes tipos de encontros citados107.
Há uma outra, porém remota, possibilidade. Ainda segundo Ortiz (1983:296-350),
cada orixá recebe, durante uma seção real, um certo número de danças em seqüência, e a estes
orixás femininos são comumente dedicadas três danças. Note-se que Brouwer apresentará
também três danças (a terceira será após as duas Evocações). Entre as duas possibilidades,
acredito que a primeira é mais coerente, ou seja, a do encontro das deusas por afinidade108.
107
A respeito da denominação geral de ―deusas negras‖, também é bom aludir a mais um aspecto. Na tradição
ioruba, gerada na África, o único orixá feminino é Yemayá, tida como a mãe (geradora) de todos os orixás,
identificada com o próprio mar, enquanto que Ochún é um rio, mas não se afirma ser um orixá feminino
(Janheinz Jahn 1963:86,89). No gradual processo de sincretismo que se desenvolveu ao longo do tempo e por
meio de um número de diferentes estágios em Cuba, a Santería cultua Yemayá e Ochún como duas orixás ligadas
à idéia de maternidade e fertilidade, e relaciona suas imagens a Nossa Senhora de Regla e Nossa Senhora da
Caridade del Cobre, respectivamente (Brendon 1993:77), sendo que a Virgem del Cobre (padroeira de Cuba)
está ―representada por uma mestiça de pele negra‖ (Silva 1998).
108
Ainda sobre a ausência da denominação de qualquer orixá na partitura, pode-se concluir que é do
conhecimento do autor a força que assume o nome de um orixá dentro dos fundamentos da crença, a ponto de o
nome ser o próprio orixá onde quer que seja mencionado (Brendon 1997:152), daí a ausência de nomes poder ser
um sinal de deferência ao culto real, sendo a partitura apenas um simulacro da ação verdadeira.
220
A próxima parte, Evocación I, inicia com um Lento sem tempo de compasso (0), com
indicação de l.v. sempre (lasciare vibrare)109 e que segue para um Quasi lento, movendo poco
a poco. Até que um contrasto subito caminha para um rallentando e finaliza esta parte. Há
trechos melódicos com o tema da introdução da Danza II.
A Evocación II, de igual forma, inicia com um Lento sem indicação de compasso, com
variações de cor (suono ord. e oscuro sul tasto). Em seguida, o andamento cresce e no quarto
compasso dessa seqüência ressurge o tema da Introdução da Danza II em uma reprise que
passará para uma 4.ª abaixo somente para repassar o tema agora em três oitavas diferentes.
Um compasso de quasi improvisato de variações de cor (sul tasto e ord.) dá passagem para
uma reexposição do tema da introdução da Danza II até que em Un poco meno mosso servirá
como passagem ao Tempo di Danza III e à própria Danza III.
109
Lasciare vibrare, literalmente ―deixar vibrar‖ o som até que desapareça naturalmente.
221
Essa seção está dominada por evocações de temas já apresentados na peça; há várias
citações de trechos das danças anteriores que se intercalam com novas melodias110.
A Danza III possui 5 compassos de Introdução antes da entrada do Tema, no qual
Brouwer pede marcato mf il canto. Este tema é intercalado com o canto da Introdução e com
um canto colore sfz, prosseguindo assim durante 19 compassos. Surge um tema em sostenuto
de dois compassos, intercalado em seguida com um brusco ff. A melodia da Introdução da
Danza II reaparece em uma oitava mais grave. Em seqüência, a mesma melodia é agora
transfigurada pelo pedido de slaps un poco pesante (golpes) na 5.ª e na 6.ª cordas, até que um
molto articolato reprisa o tema da Introdução da Danza I 111.
110
As citações de trechos anteriores da peça podem denotar uma seqüência do cerimonial, na qual, segundo Ortiz
(1981:352-354), a festividade continua após a saudação a quem é dedicado a solenidade (no caso aqui, às deusas
negras), estando livre agora para a vinda de outros orixás, embora geralmente predominem os orixás já saudados.
Esta parte da festividade não tem uma duração pré-determinada nem um número de danças pré-fixado; os toques
têm agora o intuito de chamar os orixás para a possessão coletiva e promover uma convivência com o conjunto
de seus crentes. Na partitura, a convivência entre os diversos orixás poderia ser uma explicação para as várias
citações de trechos das danças anteriores, se intercalando com novas melodias, mas este comentário fundamentase apenas na concepção do que seria uma seção real, se Brouwer estiver seguindo literalmente a seqüência de um
rito.
111
Pelo uso constante de temas das danças III, II e I, é na Danza III que pode acontecer a reunião das duas orixás
(Yemayá e Ochún), no momento em que juntas se exibem na chamada ―danza de la orilla‖ (Ortiz: 359-360),
dança da onda, por ambas terem as afinidades já mencionadas.
222
Para encerrar, um Vivace leggero encaminha a peça para um Lento que reprisa o tema
do Exordium-conjuro durante oito compassos, até que um Vivace marcato sempre (de apenas
um compasso) leva a peça ao final em um acorde fortíssimo de ré sem a terça.
Este final, que retoma o primeiro tema da obra, alude ao final do culto, quando se
solicita a Echú, mais uma vez, um rito de ―conjuro‖ para encerrar a cerimônia.
223
Leo Brouwer já afirmou que não tem dificuldades em ―assumir a cultura‖ de qualquer
parte do mundo contanto que esta não entre em contradição com seu propósito de criação
(Schörn 1995), quanto mais então em incorporar uma faceta tão concreta da sociedade
cubana. Por isso elaboramos estes comentários, acreditando nos conhecimentos específicos de
Brouwer sobre a Santería, sem os quais teria sido difícil proporcionar a sensação que a
partitura produz. Brouwer confirma recentemente (Molina 2001) a importância da herança
africana e o seu contato com ela:
Nossos países, Brasil e Cuba, têm uma cultura popular viva bastante intensa. Isso é
óbvio. No meu caso particular, é importante ressaltar que, desde criança, tive um
choque muito forte a partir do contato com a cultura ioruba. (...) Nela há origens
comuns com a música medieval européia, há a escala pentatônica – utilizada há
mais de dois mil anos –, há uma série de ritmos ritualísticos básicos, etc. Tais
elementos escapam ao nacional e ao folclore. Nesse sentido, nunca concebi tais
raízes como algo ligado ao entretenimento, a uma música ―fácil‖.
Especificamente em Rito de los Orishas, células rítmicas provenientes de trabalhos
anteriores podem ser detectados na partitura, como entre o tema do Exordium-conjuro e o
tema do Elogio de la Danza, entre a Danza I, allegro, a Danza III e o Estudio Sencillo n.º 9 e
224
também a Danza Característica. A solicitação na partitura para a utilização de slaps
(procedimento comum em guitarras elétricas, no qual se golpeiam as cordas com o polegar
direito) demonstra o que autor frisa como ―convivência entre as linguagens‖.
225
CAPÍTULO 7. COMPARAÇÕES ENTRE VILLA-LOBOS E BROUWER.
Como já foi exposto na introdução deste trabalho, há muitas semelhanças entre a
trajetória de Villa-Lobos e Brouwer passíveis de comparação e interpretação. Há diferenças
tocantes na questão política e cultural de ambos, o que não invalida, entretanto, a validade e a
conveniência de se efetuar uma comparação.
7.1. Nacionalismo
O conceito político de Nacionalismo refere-se à série de movimentos que aconteceu na
Europa nas décadas iniciais do século XIX, na Itália, Polônia, Suíça, Alemanha, França e
Irlanda. A ação destes movimentos deu-se em duas frentes: as lutas pela separação nacional,
especialmente a independência da Bélgica, Grécia, Bulgária, a anexação da Bósnia e da
Herzegovínia ao império austro-húngaro e as tentativas de independência na América Latina,
e as lutas pela unificação política de um território, como os movimentos de constituição de
dois importantes Estados nacionais europeus: a Itália e a Alemanha.
Mauro (1997:15) explica que a formação dos Estados nacionais provém já do século
XIV:
A Europa conheceu uma organização fundada no desenvolvimento dos Estados
nacionais. Cada povo queria ser senhor de seu destino e constituir um Estado
Nacional. Os que não puderam fazê-lo com a esperada rapidez revoltaram-se contra
sua sorte e foram arrastados pelo turbilhão das nacionalidades. Esse movimento, a
partir do século XVIII, liga-se ao movimento das ―Luzes‖ e logo à ―Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão‖.
Antes do século XIV a rede feudal cobria a Europa e correspondia bem às
necessidades técnicas, militares, econômicas e políticas da época. Mas, ―a partir do século
XIV, na Itália, e do século XV, em outras regiões, as coisas começam a mudar profundamente
nessa sociedade de nações cristãs que é a Europa Ocidental. O comércio, a indústria artesanal,
226
tudo conhece um novo impulso. (...) É o capitalismo comercial‖. O sistema feudal torna-se
então ineficiente para as novas demandas.
Mauro aponta nesse quadro a formação de duas novas formas de Estado: ―o Estado
territorial de grandeza média, que tende a substituir a cidade-Estado (...) e o grande Estado
nacional, que soube vencer os particularismos feudais e criar um vasto espaço econômico‖.
Eis, pois, o Estado nacional (...) conforme às necessidades de uma política interna e
externa, de uma técnica e de uma economia. Ele se mostra igualmente um quadro melhor
para o ―saber‖, que utiliza sua língua para exprimir-se. (...) Conhece uma certa unidade
espiritual graças à aplicação do princípio cujus regio ejus religio (tal a religião do
príncipe, tal a do país).
O Estado nacional, conclui Mauro, adaptou-se bem à Europa do século XIX e a alguns
países da Ásia, no entanto, não conseguiu implantar-se por toda parte, pois subsistiram
microestados, remanescentes da época feudal ou das cidades-Estado.
O Nacionalismo, além de suscitar revoltas armadas, encontrou na cultura uma aliada
de peso para manifestar seus conflitos. O vocábulo folklore surgiu nessa época, em 1846,
adaptado pelo inglês William Thoms, para englobar todas as iniciativas anteriores de
investigar e recuperar os vestígios dos tempos passados, por meio de um trabalho de
compilação de contos, lendas, canções e danças de herança popular.
Na música, a corrente nacionalista se insere no período do Romantismo, e despontou
mais fortemente como uma oposição às ―três grandes escolas‖: italiana, francesa e alemã
como diz Mario de Andrade (1987: 149-150). As primeiras demonstrações organizadas desta
música surgiram na região da Boêmia, nas figuras de Bedřich Smetana e Antonín Dvořak, e
na Rússia, com os nomes de Mikhail Glinka e o Grupo dos Cinco – Balakirev, Cui, Borodin,
Mussorgsky e Rimsky-Korsakov, e em algumas instâncias, Pyotr Ilitch Tchaikovsky.
Segundo Andrade, ―a orientação que todos seguiram foi buscar nos elementos populares uma
caracterização racial já definida‖ e para isso foi forte o emprego de elementos folclóricos.
227
Praticamente em toda a Europa existiram nomes ligados ao Nacionalismo: Chopin –
Polônia, Albeniz e Granados – Espanha, Grieg – Noruega, Sibelius – Finlândia, Bartók –
Hungria. Na América Latina, destacaram-se Ponce e Chávez no México, Sanches de Fuentes,
Roldán e Caturla em Cuba, Alberto Williams na Argentina, Humberto Allende no Chile, E.
Fabini, Afonso Broqua e C. Pedrell no Uruguai. No Brasil, Mario de Andrade destaca Carlos
Gomes, Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno, e afirma que a música no Brasil até a
primeira década do século XX era subserviente a Europa.
O mesmo pensa Bruno Kiefer (1982: 38-39) quando coloca que a música erudita no
Brasil do período colonial é extremamente europeizada, com pouca ressonância dos sons das
terras brasileiras e incluam-se aí os ritmos africanos. Kiefer explica que não seriam os
compositores mulatos – ávidos por ascenderem na escala social – quem trariam para suas
obras os ecos de suas origens. Declara o autor que não houve em Música um ser como o
Aleijadinho nas Artes Plásticas, que não abafou sua herança africana. Há na chamada Escola
Mineira um bom número de compositores mulatos, mas todos nesta linha de obras
europeizadas.
O tom europeu das obras dos compositores brasileiros ainda prosseguiria durante o
período seguinte, o Romantismo. Porém, com a já proclamada independência do Brasil em
relação a Portugal, começam a surgir ―tendências criadoras‖ (Kiefer 1982:75), embora
tímidas, de ao menos tornar mais brasileiro os temas das obras, como aconteceu nas primeiras
óperas nacionais, na década de 1850, desembocando em nomes como o de Carlos Gomes,
Henrique Alves de Mesquita, Brazílio Itiberê da Cunha, Alexandre Levy, Alberto
Nepomuceno e outros.
O relevante nesse período é que começa a se produzir, paralelamente às obras de
características estrangeiras, uma outra de feições mais brasileiras, principalmente os
chamados lundus e modinhas. De Carlos Gomes, a famosa A Cayumba, cujo epíteto era: ― –
228
dança dos negros, música original e de um gosto todo novo para piano‖ (Kiefer 1982:106). De
Brazílio Itiberê, também Bacharel em Direito e abolicionista, surge A Sertaneja, música de
salão. Do paulista Alexandre Levy, temos as Variações para piano sobre o tema folclórico
Vem cá, bitu e a Suíte Brasileira, para orquestra, cujo último movimento Samba, tornou-se
bem popular, utilizando a melodia folclórica do Balaio, meu bem, balaio. O Samba de Levy
obteve grande sucesso tanto de público quanto de crítica, embora a tônica dos comentários
publicados pela Imprensa demonstre o mesmo pensamento do Brasil colonial, isto é, o do
samba ser um ritmo ―chulo, indigno‖ salvo pela habilidade do compositor. De Alberto
Nepomuceno há suas canções e de Ernesto Nazareth, os inúmeros tangos brasileiros, maxixes,
batuques e sambas.
Mario de Andrade (1987:183) coloca apropriadamente no final da Primeira Guerra
Mundial o marco da tentativa de renovação cultural como forma de ultrapassar de vez o
século XIX. Houve também uma nova exacerbação nacionalista que veio justificar e expandir
o processo iniciado nas décadas anteriores ao conflito mundial.
Com o advento da Semana de 22, na capital paulista, o objetivo modernista de reunir em um
só termo uma música nacional com o que havia de mais moderno nas Artes (proveniente da
Europa) encontra em Villa-Lobos uma figura idealizada. Diz Andrade (em Coli: 1998:172):
―... é logo após a Semana de Arte Moderna, que o compositor principia se preocupando com a
solução nacional de sua música, e se atira ao aproveitamento do folclore‖.
Andrade então define o primeiro período de Villa-Lobos como de inspiração debussyana, o
segundo quando ―o artista encara o problema da música brasileira‖ e o terceiro:
Com a revolução de 30 a vida do compositor se transforma por completo e isso lhe afeta a
obra e a psicologia. Vila Lobos (sic) se torna um artista condutício, anexado aos poderes
públicos, bem pago, não mais exatamente brasileiro mas nacionalista. E enfim
empregado-público. Isso faz lhe baixar de golpe a produção, que se torna de muitas caras,
conforme os ventos sopram.
229
No Nacionalismo, em regra, a discordância de opiniões não é aceita porque não
colabora para a integração nacional. Na ditadura Vargas, o Brasil esteve à mercê deste
consenso produzido (o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP – era a concretização
dos meios para obtenção desse acordo); a Era Vargas queria convencer a nação com a retórica
da construção e integração do país, assim algumas medidas foram tomadas no tocante à
identidade cultural: o índio passou a ser elevado como o elemento-parceiro da miscigenação,
em detrimento do negro; houve uma aproximação entre o intelectual e o povo para se
encontrar as nossas ―verdadeiras raízes‖; a aparente penetração entre as camadas sociais
atenuou a luta de classes; surgem os referenciais nacionais como o samba, o Carnaval e o
futebol.
Como se sabe, o relacionamento entre Mario de Andrade e Villa-Lobos foi algo
singular. Apesar das idiossincrasias de Villa-Lobos, apontadas várias vezes por Mario de
Andrade, o notável crítico que era Andrade nunca se furtou a enaltecer Villa-Lobos como um
compositor maior. Algumas informações de Andrade até aqui, porém, devem ser aproveitadas
e outras afastadas no tocante à produção de peças para o violão. Na primeira fase, a que Mario
chama de ―sob o signo do Impressionismo e se inspira nas soluções de Debussy‖ corresponde
ao início do século XX e à década de 10, e na obra violonística corresponderia às primeiras
peças (que estão desaparecidas) e à Suíte Popular Brasileira. Na Suíte, a presença da música
popular urbana carioca é marcante; as peças da Suíte intituladas Mazurka-Choro, Gavottachoro, Schottishc-Choro, Valsa-Choro, já são uma alusão à música de salão e de seresta das
ruas do Rio de Janeiro – o máximo que se pode pensar em Impressionismo é algum uso de
graus conjuntos (caso se admita o uso de graus conjuntos como marca exclusiva do
Impressionismo) que resultarão algo dissonantes no encaminhamento de vozes, como na
Valsa-Choro (Vide capítulo da análise de partituras).
230
A respeito do material folclórico, no caso do violão especificamente, ele surge nos 12
Estudos, principalmente nos de número 5, 8, 10, 11 e nos 5 Prelúdios, em especial no de
número 1. A maneira como esse material folclórico aparece é mais acertado afirmar o uso
imitativo de ponteios de viola em todos eles e de alguns temas que remontam ao acervo de
cantigas de roda, como no Estudo 10. A aceitação maior do elemento indígena (em
comparação ao componente negro) em sua obra também deve ser apontada, principalmente no
Estudo 11 e nos Prelúdios 2 e 4. Como alguns autores apontam, a temática indígena utilizada
por Villa-Lobos é de caráter já extremamente decodificado, originário principalmente do
material de Roquette Pinto (Peppercorn 2000 , Nóbrega 1973:17) e de natureza simplificada
(Béhague 1994).
Conclui-se então que o Nacionalismo na obra violonística de Villa-Lobos desponta na
Suíte Popular e no Choros n.º 1 pelo uso da música popular urbana carioca e nos Estudos pelo
uso de material que diz mais respeito ao folclore brasileiro, como ponteado de viola e
melodias tidas como de conceituação indígena na época, e nos Prelúdios há uma volta à
utilização das melodias populares urbanas e à caracterização indígena.
Em Cuba, o Nacionalismo esteve também associado às lutas pela independência da
Espanha. O poeta José Martí é considerado o grande símbolo da nacionalidade cubana e suas
idéias inspiraram até a guerrilha de Fidel Castro.
Basicamente, na área da música de concerto, Manuel Saumell (1817-1870) e Ignacio
Cervantes (1847-1905) são os compositores que concebem os primeiros traços de uma música
cubana. Após eles, os dois primeiros nomes que melhor representam a música já de caráter
nacionalista são Amadeo Roldán (1900-1939) e Alejandro García Caturla (1906-1940).
No âmbito popular, Clara Díaz Peres (1986:50-52) afirma que os aspectos de cubanía
ou acriollismo de certas canções surgem durante os anos de movimento de libertação nacional
231
da colônia, derivando da canção amorosa, onde o motivo da mulher era utilizado como um
símbolo da pátria. Com os movimentos de libertação de 1868 a 1895, a canção patriótica ia
adquirindo força à medida que o sentimento de identidade nacional também crescia. A Guerra
dos Dez Anos iniciada em 1868 criou condições para o desenvolvimento dos valores culturais
do país. Segundo Olga Fernandez Valdés (1984: 38), durante o movimento nacionalista de
1895 o danzon era criticado pelo governo espanhol, por estar junto às lutas de independência,
sendo utilizado com estribilhos que criticavam os colonizadores.
Em fins do século XIX surgem cantores de índole eminentemente nacional, se autointitulando trovadores. José Pepe Sanchez é o mais representativo, surgindo depois:
Gumersindo – Sindo – Garay (1867-1968) e muitos outros. Além do tema de amor à mulher,
vinculado ao sentimento à pátria, há canções de crítica à frustrada república. Este movimento
acontece durante os últimos anos do domínio espanhol e a primeira etapa da chamada
―pseudo-república‖, isto é após 1902.
Neste período citado, a injeção de dinheiro norte-americano e estrangeiro incrementa o
mercado de editoras, discos, rádio e cinema. O som mais genuíno ficou com artistas como o
Trio Matamoros e Ignácio Piñeiro, enquanto se fortalecia uma linha comercial, com
derivações do tipo “conga-fox”, “capricho-afro”, “rumba-fox”, “canción-blue”, “bolerobeguine”, “canción slow”... Enfim, era uma época de grande interesse pela ―música tropical‖.
Surge nos anos 30 o trovador Vicente Gonzalez Rubiera, conhecido como Guyún, o
qual cantava e se acompanhava ao violão canções do repertório cubano e latino-americano. Já
nos anos 40 surge o movimento do feeling, que representa segundo Perez (1986: 52) uma
melhor elaboração da melodia, acordes dissonantes na harmonia, menor margem de
improvisação que o son, e a tendência de interpretar a música de forma declamada. Estas
novas sonoridades provinham das harmonias do Impressionismo e pós-Romantismo em geral,
inerentes aos arranjadores norte-americanos, que passaram aos jovens criadores cubanos. Do
232
feeling são representativos: César Portillo de la Luz e Ñico Rojas. Tiveram como grande êxito
ser uma alternativa ao esquema das grandes gravadoras e editoras estrangeiras. O feeling entra
nos anos 50 e decai nos 60, dando vez a Nueva Trova.
Em Cuba, o Nacionalismo só se manifestou abertamente nos anos 60 porque durante o
governo de direita (de 1902 a 1959) e de ingerência norte-americana (desde as lutas de
independência até 1959), a questão da nacionalidade era vista como oposicionista à Espanha e
à subseqüente presença dos Estados Unidos na ilha. Além disso, o controle econômico estava
na mão dos empresários norte-americanos, e não haveria coerência em promover ou divulgar
sentimentos que remontassem a posse legítima do território. Só a partir da Revolução de 1959
é que ocorre uma política de defesa do patrimônio cultural e recuperação de valores da
identidade nacional, em especial a herança africana.
Como já foi apontado no capítulo da Biografia, Brouwer se revela um nacionalista
logo de início de suas atividades como compositor, como meio de se opor à ditadura Batista.
Ele diz (1989:85-86) que este período ―corresponde, socialmente, a una etapa feroz de la
dictadura batistiana, en la cual era preciso reafirmar a nacionalidad por medo de perderla,
dentro do caos político del momento‖.
A Revolução Cubana pautou-se pela defesa do patrimônio cultural e recuperação de
valores da identidade nacional. Faya (1990:31-32) coloca a ação de 1959 como o momento
cultural de mudança contra a interferência norte-americana. Nos primeiros anos da revolução
se produzem os seguintes feitos representativos: a Casa de las Américas promove a pesquisa
de um cancioneiro cubano; ocorre o 1.º Festival del Arte Nacional de la Libertad, com obras
de Harold Gramatges, Leo Brouwer, Carlos Fariñas e Amadeo Roldán; surgem atos populares
como controvérsias campesinas, toques de güiro e bata; o Teatro Nacional de Cuba começa a
trabalhar obras como Mulata de Roldán; ocorre a criação de instituições para difusão da
música e promoção da criação artística em nível popular e o sistema de ensino passa a
233
valorizar muito mais a área popular. Surge ainda o Grupo de Experimentación Sonora que
desemboca no movimento da Nueva Trova.
Como se vê, a fase de Nacionalismo de Leo Brouwer despontou pela atitude de
oposição à ditadura de Batista, e à interferência estadunidense e depois de 1959 ligou-se à
ação coordenada política e socialmente para a produção de uma sociedade centrada na busca
de seus próprios valores. Também o embargo econômico logo nos primeiros anos da
revolução levou a sociedade cubana a buscar um autoconhecimento e uma re-valorização de
sua própria cultura. Houve toda uma política nos primeiros anos da revolução para produzir os
efeitos desejados, como lembra Faya.
No caso de Brouwer, o Nacionalismo como estética localiza-se mais firmemente em
sua obra na ritualística ioruba, como o grupo mais representativo da herança africana, e as
representações geradas a partir daí nos elementos da música popular cubana como a clave, o
son, o cinquillo, o chamado ―complexo da rumba‖. Assim como Leo Brouwer não colocaria
os procedimentos de vanguarda à frente de suas concepções ele também nunca aprovaria a
utilização dos clichês da música latina, especificamente a cubana. Os clichês da música
cubana são uma idealização advinda dos anos 50, quando o ―sabor tropical‖ tomou conta da
radiodifusão mundial. Desta forma, em peças iniciais como a Danza Característica (1957), o
Estúdio Sencillo n.º5 (1961) contêm células rítmicas da rumba, clave e Baixo Antecipado. A
presença da herança afro-cubana poderá ser encontrada, no entanto, em peças altamente
vanguardísticas como La Espiral Eterna(1970) e na fase ―Nova Simplicidade‖, como em El
Decameron Negro (1981) e Rito de los Orishas (1993).
Comentando sobre a série de Paisaje Cubano que Brouwer escreveu, o violonista
Sidney Molina (2001:) perguntou a Leo Brouwer:
234
Nesse sentido, tais ―Paisagens‖ parecem buscar elementos universais presentes na cultura
cubana, e não o ―nacionalista‖ ou ―folclórico‖: que sentido pode ter a expressão
―nacionalismo‖ quando aplicada à sua obra?
Leo Brouwer – Nossos países, Brasil e Cuba, têm uma cultura popular viva bastante
intensa. Isso é óbvio. No meu caso particular, é importante ressaltar que, desde criança,
tive um choque muito forte a partir do contato com a cultura ioruba. Essa herança dos
escravos, essa música de rituais religiosos, é extremamente importante tanto para o Brasil
quanto para Cuba. O impacto de tais atividades religiosas – e aqui eu falo de Xangô,
Iemanjá, etc. – tem força para presentificar elementos sonoros universais: há origens
comuns com a música medieval européia, há a presença da escala pentatônica - utilizada
há mais de dois mil anos-, há uma série de ritmos ritualísticos básicos, etc. Tais elementos
escapam ao nacional e ao folclore. Nesse sentido, nunca concebi tais raízes como algo
ligado ao entretenimento, a uma música ―fácil‖.
O uso do termo Nacionalismo foi aproximado às realidades de cada momento:
durante o período Vargas no Brasil e de Fidel Castro em Cuba. A semelhança do
Nacionalismo em Brouwer e Villa-Lobos é que ambos vieram de situações políticas em que a
agenda nacionalista foi utilizada em todas as instâncias para reforçar o sentimento de
conformação da nação.
7.2. Vanguardas
A fácil assimilação nas camadas populares fez do violão o instrumento mais difundido
da América, mas produziu, entretanto, uma rejeição na área de concerto devido a essa ligação
com a área popular. A conjunção do nome de Andrés Segovia a alguns compositores reverteu
a situação na década de 20 que foi uma época de ouro para o violão112. Nessa ocasião, Heitor
Villa-Lobos e Segovia iniciaram em Paris a amizade que resultaria na composição do grupo
de peças mais importante do século XX: os 12 Estudos (1926-1929), comparados pelo próprio
Segovia aos de Chopin para o piano. Os Estudos ultrapassaram a linguagem romantizada que
o violão mantinha e ao mesmo tempo estavam impregnados do Nacionalismo do autor. Os 12
Estudos representaram uma linguagem inovadora no período, tratando o instrumento como
112
Sobre essa época dos anos 20 como de grande representatividade para o instrumento, veja Gloeden (1997).
235
nunca havia sido feito antes, em oposição a uma linguagem ainda romantizada e protelada
pela atuação de Andrés Segovia, que preconizava uma estética romântica. Segovia só estreou
os estudos 1, 7 e 8, os mais aproximados às suas idéias.
Como já foi analisado anteriormente, em Paris, Villa-Lobos conheceu músicos como
Paul Dukas, Vincent d‘Indy, Igor Stravinsky, Sergei Prokofiev, Edgard Varèse, e como disse
Béhague (1994:72), a viagem a Paris mostrou a aceitação internacional de sua ―tendência
estética prévia‖. Béhague, como os demais autores estudados, sustenta que nos anos 20 ocorre
a fase mais experimental e inovadora de Villa-Lobos. E dentro desta fase inovadora,
encontram-se os 12 Estudos para violão. Tarasti (1994:241) também aponta o período como o
de sua maior produção de trabalhos de vanguarda.
Já Leo Brouwer surge no cenário violonístico como o compositor e intérprete que
trouxe a vanguarda da década de 60 para o violão, fazendo, como Villa-Lobos, a ponte entre a
música tradicional de seu país e a música contemporânea. Cuba vivia uma eufórica etapa
inicial em que revolucionar era a práxis diária. A ida de Brouwer ao Festival de Varsóvia veio
no encontro das idéias que já vinha desenvolvendo e ele soube ligar os valores estéticos de
vanguarda às demandas revolucionárias, colocando a constante inovação como uma condição
intrínseca de um adepto da Revolução.
Brouwer conheceu todas as vertentes da década de 60: politonalidade, atonalidade,
procedimentos seriais, elementos aleatórios, meios eletrônicos, formas abertas e notação
diferenciada e utilizou-as como ferramentas para realizar suas intenções e propostas de
trabalho.
De volta a Havana após o Festival de Varsóvia em 1961, Leo Brouwer iniciou um
movimento de vanguarda junto com outros compositores e apesar deste forte contato com a
vanguarda européia, ele continuou seguindo seu estilo composicional, mas utilizando os
elementos da vanguarda ligando-os aos traços da música cubana.
236
Os exemplos mais fortemente constatáveis de utilização da música de vanguarda
aparecem em obras fora do repertório violonístico como Variantes para un percusionista
(1962) e Sonograma I (1963) para piano preparado que são as duas primeiras partituras de
música aleatória escritas em Cuba. Há quem aponte (Hernández 2000, Orozco 1999) também
uma antecipação do pós-modernismo na obra de Brouwer.
Isto acontece na obra La tradición se rompe... pero costa trabajo (1967-69), para
orquestra. Como um sinal verde à possibilidade da adoção de várias culturas no tempo e
espaço, na peça, Brouwer quis mostrar todos os tempos convivendo ao mesmo tempo, usando
para isso trechos de músicas de Bach, Beethoven, Mendelssohn, Bartók, Haendel, Liszt
apresentados como várias superposições, para mostrar a convivência possível de culturas
simultâneas, e em um cartaz levantado pelo maestro, está escrito: ―Nessa obra, o público se
manifesta‖. O resultado foi surpreendente e a partitura tornou-se um hit entre os adeptos e o
público de música de vanguarda.
Em Canticum (1968) para violão solo ele utiliza uma série de procedimentos da
vanguarda, como clusters, grandes pausas entrecortadas por acordes fortíssimos, trechos de
improvisação etc.. As células motívicas, no entanto, começam a apontar a utilização, pensada
por ele, de módulos, que culminariam na sua grande obra de vanguarda para o violão, La
Espiral Eterna (1971). A Espiral tem como ponto-forte a concepção da peça como um
―resumo‖ da própria idéia do fenômeno sonoro: um som inicial de um módulo de três notas
vai se expandindo e se recolhendo como uma espiral, atingindo em determinado ponto um
som ininteligível e retorna ao ponto inicial só que agora transformado pela experiência
anterior. Brouwer compara a idealização da Espiral com a própria experiência humana,
realizando uma síntese filosófica e histórica na peça.
Pode-se concluir então que enquanto Villa-Lobos aproximou-se da vanguarda dos
anos 20 por uma postura de ―não-alinhamento‖ com a tradição vigente (por vezes ele afirmou
237
que o passado não lhe interessava), Brouwer teve o discernimento de conhecer profundamente
a linguagem de vanguarda dos anos 60 e assimilar o que lhe seria útil como ferramenta de
trabalho.
7.3. Retorno
Tanto Villa-Lobos quanto Leo Brouwer retornaram à linguagem tradicional em uma
fase posterior ao trabalho com a estética mais moderna. Após os anos em Paris, Villa-Lobos
volta ao Brasil e se envolve com a política getulista do Estado Novo, assumindo a
organização do Canto Orfeônico, com o objetivo da manifestação cívica por meio da música.
A temática representada após os anos 30 é do Nacionalismo e de um romantismo tardio,
também chamado de neoclássico.
Na obra para violão, os 5 Prelúdios representam esta fase, e como lembra Béhague
(1994:141-142), têm o estilo aproximado às Bachianas Brasileiras, na forma melódica, no
idioma harmônico e nas práticas modulatórias. Tarasti (1994:239-240) também destaca que
essa fase reforça todo o estilo ―villalobiano‖ em uma fusão de procedimentos e que isso pode
ser encontrado nos Prelúdios. O autor ainda compara os Prelúdios ao Ciclo Brasileiro para
piano, também pertencente a esta fase de romantismo nacional.
A volta de Brouwer também se dá após um período de inovação criadora, no caso, as
vanguardas dos anos 60. Esse período já foi apontado por autores e pelo próprio Brouwer
como hiper-romantismo nacionalista, mas agora Brouwer aprecia mais o uso do termo Nova
Simplicidade.
Em entrevista a Molina (2001) Brouwer explicou o que a corrente ―Nova
Simplicidade‖ significa em sua obra:
Esses elementos essenciais e universais – embora presentes em todas as
fases de sua obra – parecem estar ainda mais explícitos nas composições dos
238
últimos vinte anos, o que tem aproximado sua obra da corrente denominada
―Nova Simplicidade‖. Para você a simplicidade é um ponto de partida ou de
chegada?
Leo Brouwer – É muito interessante essa pergunta, porque se trata realmente de
uma dupla atividade: por um lado, eu acredito que nunca haverá um ponto final na
estética, mas, por outro, a composição sempre fará uso de fatores conhecidos da
história da música, apenas trabalhando-os de uma outra maneira. A diferença de
tratamento que os diversos compositores dão a certos elementos fundamentais
pode ser comparada à observação de um objeto no espaço – com suas cores – ou
ao microscópio; nisso consiste a diferença entre uma abordagem tonal,
minimalista, etc.
Brouwer saiu da fase vanguardista quando quis, sem aparentar nenhuma tensão. A única
explicação que deu foi ter passado por uma saturação da linguagem de vanguarda, segundo
ele, extremamente árida e ressentida de uma comunicação com o grande público.
Sustenta Brouwer113 que, após um pouco mais de uma década de utilização dos
elementos de vanguarda, ele ficou saturado com a dita linguagem, por suas características
pulverizadas, ásperas e, principalmente, tensionais, das quais ela não conseguiu se livrar até
hoje, causando a este tipo de música um defeito relacionado com a essência do balanço
composicional, um conceito que está presente na história: movimento, tensão e seu
conseqüente repouso.
Em suma, a vanguarda, na opinião de Brouwer, carece de um
relaxamento das tensões, indo contrariamente às leis da natureza, na qual os opostos, ou os
contrastes, estão sempre atuando: ―não há ser vivo que não repouse‖, declara o cubano.
Assim, o compositor decidiu por uma regressão (palavras dele) que o trouxe de volta a uma
simplificação dos materiais composicionais.
7.4. Política
Getúlio Vargas tomou o poder em um golpe contra o então vencedor das eleições,
Júlio Prestes. A colaboração de Villa-Lobos com a ditadura de Vargas é uma questão
polêmica em sua trajetória. Seu envolvimento com Vargas era formal, eles se encontravam
239
somente nas celebrações cívicas, e costuma-se avaliar que o compositor carecia de um
engajamento político mais sério e que Villa-Lobos teria afirmado realmente ser um artista sem
uma opção política, defendendo abertamente a liberdade de expressão para compor, sem
ideologias.
Uma prova disso é o fato de que seu projeto de Educação Musical no Brasil foi
apresentado para políticos de São Paulo; uma promessa caso se confirmasse a vitória do
paulista Júlio Prestes na eleição de 30 e, no final das contas, acabou sendo executado
justamente por Vargas, o deflagrador do golpe e opositor de Júlio Prestes.
Muitos autores como Béhague (1994), Ana Stella Schic (1989), Mariz (1989)
concluem que Villa-Lobos não tinha então a menor vocação para a vida política, em um
sentido mais amplo, ideológico. Creio antes que suas idéias políticas chegavam a um termo
mais definido quando se tratava de patriotismo, de uma necessidade de demonstração do
sentimento cívico.
Segundo Béhague (1994:23), Villa-Lobos já pensava em idéias sobre o canto
orfeônico antes da ascensão de Vargas em 1930. Ele elogiava os coros da Alemanha e França
que ele conhecia, então a idéia de instituir o canto orfeônico no Brasil veio do próprio
compositor e não de uma tarefa do novo governo. A ideologia do novo governo pode sim ter
influenciado sua orientação artística em direção a uma forte orientação nacionalista, mas se
Villa-Lobos compartilhou ou não da ideologia sócio-política do Estado Novo ainda é o tema
de um grande debate114. Béhague crê que estes argumentos não negam, entretanto, que a
113
Entrevistas em Bettancourt e Wistuba (1989).
Recentemente, em janeiro de 2001, durante o V Seminário Latino-americano de Musicologia, em Curitiba,
tendo como tema ―Música e Ideologia‖, o historiador Arnaldo Daraya Contier proferiu uma palestra, seguida de
uma mesa-redonda, sobre o envolvimento de Villa-Lobos no governo Vargas. Para Contier, as evidências
apontam para um autoritarismo de Villa-Lobos, sob o pretexto de uma atividade disciplinadora, vigente na
execução do plano do Canto Orfeônico. Já para o professor Alberto Ikeda, a atuação de Villa-Lobos acarretou na
diminuição da importância e da atuação dos demais compositores – devido à atitude monopolizadora do
compositor carioca, vinculada ao cargo de poder que exercia. A posição de Ikeda é semelhante à que GuerraPeixe por muitas vezes defendeu – a de que era necessário passar pelo crivo do compositor para se conseguir ser
aceito no meio.
114
240
música e o programa educacional cívico intencionalmente tornaram-se um instrumento da
ideologia do estado nacionalista.
No final da Segunda Guerra ocorreu a aproximação entre Estados Unidos e os países
da América Latina (a chamada ―política a boa-vizinhança‖) e com isso vários artistas latinoamericanos conquistaram o público norte-americano. Villa-Lobos teve inúmeras obras suas
encomendadas e estreadas a partir de 1945 nos Estados Unidos.
Em resposta àqueles que o acusavam de colaborar com o regime totalitário do Estado
Novo Villa-Lobos declarou em um fórum público em 1954:
Eles querem destruir uma realização, mas eles não podem. Isto não é contra mim,
contra você, é contra a música, contra a arte. Eu não me interesso por qualquer
regime, em um sentido político, e não tenho nem idéias políticas. O que eu quero
é disciplina e amor à arte. Eu quero ver um povo disciplinado. Eu invejo o
estrangeiro. A única coisa que eu invejo no estrangeiro, a única coisa, é a
educação que o estrangeiro tem, que nos não temos.115
Villa-Lobos escreveu (1940:7-9) que a música corresponde a sua mais alta função
somente quando ela serve para promover o progresso da nação e que a instrução dos jovens
pelas canções patrióticas acarretariam o desenvolvimento de seu espírito de brasilidade forte o
suficiente para prever que as futuras gerações colocariam ―o sagrado símbolo da Pátria acima
de todos os interesses humanos‖. Béhague aponta que ―Villa-Lobos pecou por meio de seu
entusiasmo espontâneo, falando e escrevendo precipitadamente‖. Guerra-Peixe (1988) retrata
esta ação de Villa-Lobos como de ―marketing pessoal‖. Horta (1987:63) considera temerário
projetar o pensamento político atual (isto é, distanciado no tempo) ao modo de pensar do
período de atuação de Villa-Lobos, pois se pode incorrer no erro de uma crítica indiferente às
concepções das circunstâncias do momento.
115
Villa-Lobos, o Índio de Casaca. Rede Manchete e Meta Vídeo 1987. In Béhague (1994:162).
241
Béhague conclui que Villa-Lobos foi pragmático em querer desfrutar da patronagem
do Estado para suas intenções de trabalho, o que, no entanto, não justifica nem explica
algumas das atitudes do compositor de um ponto de vista ideológico.
Gilberto Mendes (1994:118) tem o seguinte depoimento, até irônico, sobre o assunto:
É impressionante o esforço que se faz, no Brasil, para rebaixar Villa-Lobos da posição de
destaque, de fato invejável, que ele tem no cenário da música de todo o século XX. Acho
que só Freud pode explicar. Uma das aulas que eu dei na Universidade de WiscosinMilwaukee era sobre música contemporânea e o livro lá adotado – e pelas demais
universidades norte-americanas – tinha um capítulo especial sobre Villa, com uma foto. E
eram poucas as fotos, de Stravinsky, Schoenberg, Ravel, somente de compositores deste
nível. Houve um concerto na Universidade, em que iam tocar Villa-Lobos, e eu falei para
um meu aluno privado, de composição, de quem ficara mais íntimo: ―Ele é do meu país‖.
E o meu aluno questionou, admirado: ―Ele é brasileiro?!‖ Pelo nome e importância que
tinha, Villa-Lobos só poderia ser italiano, ou espanhol, para um estudante norteamericano...
Acho relevante relembrar que todos os teóricos e biógrafos de Villa-Lobos colocam
em seus trabalhos a famosa passagem da perseguição política que a família sofreu quando seu
pai, Raul Villa-Lobos, escreveu os artigos de crítica ao Marechal Floriano Peixoto, o
presidente do Brasil na época, logo após a proclamação da República. Parece-me que foi uma
ação de uma pessoa conscientizada intelectual e politicamente.
Embora sua atitude intempestiva lembre muito o comportamento do filho Heitor, do
ponto de vista político a orientação era totalmente outra, já que Raul era um funcionário
público exemplar (amava os livros, viveu e trabalhou entre eles, era amanuense da Biblioteca
Nacional, e era, muito provavelmente, uma pessoa de cultura mais avançada que a grande
maioria, lembrando que no Brasil da República 83% da população era analfabeta.) e que,
portanto, necessitaria do beneplácito do Estado para sua permanência no cargo ou no mínimo
não deveria arriscar-se a ir contra a representação governamental. Pois Raul foi mais longe –
divulgou suas idéias em jornal, tornando público seu pensamento. A alegada influência de
Raul em Heitor parece não ter surtido efeito no contexto político.
242
O início da atuação de Leo Brouwer é anterior à revolução, mas já com uma presença
em círculos intelectuais de esquerda, como o Cine Club Visión e o Nuestro Tiempo. A questão
política perpassa sua obra como inerente à sua condição de cidadão cubano integrado a uma
sociedade socialista.
Cuba vivia uma eufórica etapa inicial em que revolucionar era a práxis diária;
Brouwer chegou a afirmar que era uma verdadeira catarse (Betancourt:1998). Se existiram
críticas do socialismo cubano ao uso de uma linguagem que normalmente não encontraria
ressonância nas massas, é possível, mas o fato é que ele não abriu mão disso. Neste sentido, o
contexto cubano, do qual Brouwer emerge como uma liderança, aproxima-se muito da
chamada ―escola polonesa‖, a qual apesar de integrar o bloco socialista diferenciou-se por
uma liberdade baseada na sua tradição cultural e forte catolicismo.
Brouwer comprova essa liberdade de ação em entrevista (Molina 2001), comentando
sobre o realismo socialista:
Houve imposições da estética do realismo socialista sobre sua obra?
Leo Brouwer – Por sorte a essência da música é suficientemente abstrata, o que evitou
com que ela caísse tão facilmente em certos erros como os comumente cometidos nas
repúblicas do leste e na cultura socialista de estado da extinta URSS. É possível, no
entanto, que tenha havido algumas influências, sobretudo literárias. Nunca uma censura
explícita; o que acaba acontecendo nesses casos – e isso é uma coisa incrível – é que os
próprios artistas se autocensuram. De toda forma houve, em alguns momentos,
influências literárias, perceptíveis mais diretamente nos textos e no cinema.
Como já foi dito, em várias entrevistas concedidas por Brouwer e em seus artigos não
há uma crítica sua ao governo socialista cubano. Em ensaios da década de 70 (reunidos em
uma publicação de 1989) Brouwer defende, didaticamente às vezes, o uso da vanguarda. Já o
cubano Leonardo Acosta (1989) revela que o Grupo de Experimentación Sonora recebeu sim
críticas116, assim como Valdés Cantero (1990) relembra que o compositor Juan Blanco, Leo
Brouwer e Manuel Duchesne Cuzán, regente da Orquestra Sinfônica Nacional, tiveram que
116
Sobre o trabalho do G.E.S., há uma dissertação de Mestrado de autoria de Mariana Martins Villaça:
Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentación Sonora (1969-1972): engajamento e experimentalismo
243
enfrentar incompreensões quanto a estética. Ou seja, o período de tempo afirmado por
Brouwer como catártico, eufórico em revolucionar, parece não ter sido compartilhado em
todas as esferas ou ter durado pouco, circunscrito talvez ao primeiro triênio da revolução,
como afirma Miskulin (2000), o governo revolucionário e a direção cultural cada vez mais se
aproximaram das concepções do realismo socialista.
E sobre os benefícios da revolução à cultura, Brouwer destaca (Molina 2001) que é
uma constatação eminentemente histórica, evidente, livre de ideologia:
– Sua formação musical básica ocorreu antes da Revolução Cubana. Que contribuições a
revolução trouxe ao ensino musical?
Leo Brouwer – A contribuição foi enorme, porque os conservatórios que existiam antes
da revolução – que eram muito bons, mas como sucede sempre em épocas duras, eram
também pobres – foram atendidos. A revolução cubana de 1959 – e que não se entenda
esse comentário como panfletário, mas apenas como uma constatação histórica –
impulsionou todas as formas de arte: música, literatura, poesia, pintura, etc. Buscou-se
uma integração entre todas as culturas das Américas, uma forma de ver o continente
como um todo policultural e multirracial. As artes foram, assim, privilegiadas em todos os
sentidos. Eu recordo ter promovido mudanças no ensino de harmonia e composição que
jamais haviam feito parte do programa de nenhum conservatório, utilizando recursos
didáticos apenas disponíveis em aulas particulares ou em certas master classes realizadas
nos países mais desenvolvidos. Não estou fazendo, repito, um elogio de cunho político; é
apenas história.
Duas músicas em especial servem para mostrar como Brouwer situava as
possibilidades de inovações na música cubana frente à revolução. Em 1970 escreve Al Asalto
Del Cielo, música eletrônica utilizando fita magnética contendo trechos de discursos de
Lênin, para a comemoração do centenário do revolucionário russo. Provavelmente, não seria
de bom tom algum burocrata do governo cubano censurar o estilo da peça, já que o
compositor reverencia a memória de Lênin, trazendo para as novas gerações a voz do próprio
―pai‖ da revolução maior. Da mesma forma, em 1978, Brouwer compõe Canción de Gesta
para orquestra de sopros, que tem como subtítulo ―Epopeya Del Granma, la nave llena de
futuro‖ referindo-se à viagem de Fidel Castro a bordo do iate Granma. Nesta obra, o sentido
na canção popular, no Brasil e em Cuba, 2000, orientação: Maria Helena Rolim Capelato, na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
244
do pós-modernismo é percebido mais uma vez como a re-memorização de fatos do passado
trazidos ao presente e sintetizados.
Quando Brouwer utilizou a vanguarda em sua obra, não pensou em fazer concessão
para estar mais próximo do público em geral, mesmo porque ele não subestimava o
discernimento do público, e em seus recitais sempre mantinha um diálogo com a platéia.
Além disso, inovar para ele era uma condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução;
restringir ou subestimar as massas é que seria uma atitude burguesa.
7.5. Violão
A obra para violão de Villa-Lobos tornou-se uma das partes mais representativas de
sua produção musical. Ainda que este número de obras seja pequeno em relação ao total de
opus relacionado no Catálogo Oficial, foi a constância de execuções em várias partes do
mundo que fez o repertório para violão tornar-se um dos maiores êxitos do compositor.
Estima-se que depois das Bachianas Brasileiras, e praticamente empatado com a música para
piano, a obra para violão seja o conjunto de peças mais gravado no mundo todo.
Como já foi dito, Segovia estreou os Estudos mais aproximados às suas idéias, e
incluiu poucos deles e alguns Prelúdios de Villa-Lobos no seu repertório a partir de 1948
(Zanon 2001). A edição das partituras dos Estudos pela Max Eschig só ocorreria em 1953.
Esses fatos atrasaram a divulgação dos Estudos na série completa, que somente em 1962
seriam executados integralmente pelo violonista brasileiro Turíbio Santos. A partir daí os 12
Estudos tiveram um reconhecimento mundial, alavancando as demais obras de Villa-Lobos, a
Suíte Popular Brasileira e os 5 Prelúdios, e colaborando no chamado boom violonístico dos
anos 60.
245
Leo Brouwer surge nesse cenário como o homem que trouxe a vanguarda da década
de 60 para o violão, fazendo, como Villa-Lobos, a ponte entre a música tradicional de seu país
e a música contemporânea. O resultado é que a obra violonística de Brouwer e Villa-Lobos é
o conjunto de peças de autores latino-americanos mais conhecido e tocado nos meios
acadêmicos e salas de concerto no mundo. Se por um lado Villa-Lobos era um digno
representante da agenda nacionalista, Brouwer aparece como um ilustre filho da Revolução
Cubana, pautada na defesa do patrimônio cultural e recuperação de valores da identidade
nacional.
A aproximação histórica entre Villa-Lobos e Leo Brouwer ocorre devido a essa
defasagem de tempo na consagração da obra violonística do autor brasileiro. Entrando nos
anos 60, a obra de Villa-lobos encontra-se com o início da obra de Brouwer, que já possuía
boa parte de seu repertório117 e que começa a ser muito executado. Ou seja, com o
desaparecimento de Villa-Lobos (ele faleceu em 1959) é Leo Brouwer quem preenche as
condições ideais para se tornar o próximo grande nome na composição violonística – e é isso
que realmente acontece.
Durante todo o trabalho por diversas vezes foi citado que Villa-Lobos é o nome mais
representativo do violão da primeira metade do século XX e Leo Brouwer o da segunda
metade. No caso de Villa-Lobos, o termo ―mais representativo‖ provém do fato de o
compositor ter representado melhor o momento vivido, ou os vários momentos vividos, no
século XX, em sua primeira metade. Isso porque ele rompeu com a linguagem conservadora
que até então vinha vigorando no violão, linguagem essa advinda principalmente da escola
espanhola, em suas duas frentes – a Clássica, de Fernando Sor (1778-1839) e a Flamenca.
Apesar de nomes como o do mexicano Manuel Ponce (1882-1948), e dos espanhóis
Joaquín Turina (1882-1949), Federico Moreno Torroba (1891-1982) e Joaquín Rodrigo
117
Pieza Sin Título (1956), Prelúdio(1956), Danza Característica(1956), Fuga (1957), Micropiezas (1957) etc..
246
(1902-1999), e do italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968) terem atingido um
patamar alto, suas obras ligam-se à permanência no conservadorismo; o mesmo pode-se dizer
do paraguaio Agustín Barrios (1885-1949), que possui mais de 300 obras, todas circunscritas
à linguagem tradicionais. Não há um demérito na ação destes compositores, somente se avalia
a questão da modernidade ou não de suas obras como parâmetro de representatividade do
século (que em dois períodos distintos – anos 20 e anos 60 – viveu momentos de ruptura com
o passado).
O compositor suíço Frank Martin (1890-1974) escreveu em 1933 sua única peça para
violão Quatre Pièces Brèves, considerada um avanço para a época. Do espanhol Manuel de
Falla118 (1876-1946) - 1 obra -, do mexicano Carlos Chávez (1899-1978) - 1 obra- e, em
parte, do polonês Alexander Tansman (1897-1996) - 6 obras -, pode-se afirmar que se
integraram um pouco mais às linguagens modernas, porém o número de peças não conforma
uma ―obra violonística‖, que apesar do brilhantismo, carece ora de achados técnicos ora de
linguagem idiomática do instrumento ou de uma exposição didática – fatores estes que são
amplamente encontrados na obra villalobiana.
Dudeque (1994:90) tem uma importante conclusão que, posso afirmar, é pensamento
corrente entre os violonistas:
Criticamente, poderíamos reprovar a atitude de Segovia junto aos grandes compositores
da vanguarda musical da primeira metade do século. Compositores como Stravinsky,
Schönberg, Webern, Bartók, Ravel e tantos outros, poderiam ter escritos obras para violão
solo, caso Segovia as tivesse comissionado. No entanto, o trabalho de Segovia resultou
em um grande conjunto de obras compostas por compositores com forte influência
romântica e neoclássica, em que a obra do brasileiro Heitor Villa-Lobos sobressai como a
mais arrojada em termos de linguagem instrumental e originalidade de concepção. 119
Vários compositores brasileiros também já compuseram algumas peças para violão
118
Interessante que, contemporâneo ao nome de Falla, surgiu o ―Grupo de Madri‖, formado por compositores
como Salvador Barcarisse e Antonio José, este o compositor de maior relevo, sendo que a sua Sonata vem sendo
re-valorizada de algum tempo para cá.
119
Ainda assim, o repertório para violão conta com obras destes autores, como: Serenade op.24 (1920-23) de
Schoenberg, Drei Lieder op. 18 (1925) de Webern, Apostel escreveu Sechs Musiken für Gitarre op.25, e Krenek
compôs uma suíte em 1957.
247
após a forte presença da obra de Villa-Lobos. Francisco Mignone (1897-1986) compôs os 12
Estudos (1970), Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), Ponteio, Valsa-Choro e três
Estudos, e Radamés Gnattali (1906-1988), que tem uma obra maior, voltada para a música
popular. Edino Krieger (1928) compôs a Ritmata (1975), importante obra com linguagem
contemporânea, Almeida Prado (1943) também, Marlos Nobre (1939), compôs a série
Momentos e Ricardo Tacuchian (1939) escreveu Lúdica I e II (1981 e 1984).
Também porque rompeu com a linguagem corrente, entrando em contato com a
vanguarda dos anos 60, Leo Brouwer é o compositor que melhor representa a segunda metade
do século XX. A exemplo do que ocorreu com Villa-Lobos, sua obra não tem paralelo, em
termos quantitativos e ligados à qualidade musical.
Os autores que, como Brouwer, entraram mais em contato com a linguagem moderna
pós-60 são os ingleses Stephen Dodgson (1924), Malcolm Arnold (1924), Richard Rodney
Bennet (1936), Michael Tippet (1905), Lennox Berkeley (1903); o alemão Hens Werner
Henze (1926), que escreveu Royal Winter Music e El Cimarrón além de mais duas peças de
câmara; o argentino radicado na Alemanha, Mauricio Kagel (1931) que incluiu o violão em
várias peças de câmara e orquestrais. Pode-se citar ainda composições como a Sarabande
(1960) de Francis Poulenc (1899-1963), Maurice Ohana (1914-1992) com poucas peças e o
seu Concerto Trois Graphiques (1950-57), que já é possuidor de uma linguagem bem
contemporânea. Pierre Boulez (1925) adicionou o violão em muitas obras suas, mas o
destaque fica para a sua obra solo Lê Marteau sanz Maître (1953-55), e o também francês
Francis Kleynjans (1951) tem em A l‟Aube du dernier jour (1980) sua obra mais conhecida.
Dos compositores italianos, há bastante produção esporádica, mas há um destaque
para nomes como Bruno Maderna (1920-1973) - 1 obra - e Luciano Berio (1925) com a
virtuosística Sequenza XI (1988). Os ingleses William Walton (1902-1983), que compôs Five
Bagatelles (1971-1972) e Benjamin Britten (1902-1976), autor de Nocturnal opus 70 (1964),
248
são os dois nomes de maior relevo dessa época, sendo que Nocturnal vem sendo considerada
uma obra-prima do repertório.
Da Espanha, há vários compositores. Cristobal Halfter (1930), Antonio García Abril
(1933), Antonio Ruiz Pipó (1934) e Tomás Marco (1942) têm várias peças para o instrumento
(mas ainda em número menor que Brouwer) e do Leste-Europeu, o destaque fica para Stepan
Rak (1945), da República Checa, o iugoslavo Dusan Bogdanovic (1955), e o russo Nikita
Koshkin. Dos Estados Unidos também vêm uma certa produção, em especial de Milton Babitt
(1916), Elliot Carter (1908), que escreveram obras comissionadas por intérpretes, além do
trabalho de Lukas Foss (1922), American Landscape e Steve Reich (1936), Electric
Counterpoint, utilizando violão e fita magnética.
Como se vê, em termos de conjunto da obra, só Leo Brouwer pode ser considerado o
compositor mais representativo da segunda metade do século XX. O século XX chegou ao
seu final e não foi constatada a presença de um trabalho que representasse a conjunção dos
fatores necessários para a colocação de um outro nome.
Villa-Lobos e Leo Brouwer tornam-se nomes referenciais em seus respectivos países e
no exterior, representando a síntese de qualidade artística, grande quantidade de obras e
repercussão internacional. Ambos são considerados como os maiores compositores latinoamericanos do instrumento; suas obras são citadas entre os violonistas de carreira
internacional como peças de caráter obrigatório nas escolas de Música e universidades do
mundo todo. No tocante ao violão, isso ocorreu porque ambos dominaram a linguagem do
instrumento; recursos técnicos foram amplamente utilizados, foi empregado o conhecimento
das reais possibilidades quanto à qualidade sonora (timbre, dinâmica, volume) e quanto à
Música, os dois compositores apresentaram uma obra de expressão latino-americana, que
inclui tanto aspectos originários (folclore, música popular, música de informação erudita)
quanto originais (incluindo a vanguarda dos anos 20 e 60 e a criação de seus próprios traços).
249
CONCLUSÃO
Apesar do peso que as propostas e formulações iniciais desta dissertação carregaram,
do extenso trabalho de verificação e análise dos conceitos acolhidos, do cuidado em não
admitir um conjunto de idéias pré-concebidas, chego ao final desta pesquisa com a certeza de
que o ponto principal foi atingido: Villa-Lobos e Leo Brouwer são os maiores
representantes da música para violão no século XX e isso se desdobrou em uma série de
outras considerações que surgiram durante a pesquisa e foram apresentadas no corpo do
trabalho.
A primeira conclusão a que se deve chegar, conforme foi mostrado, é que o nome de
Villa-Lobos, já previamente admitido na História da Música como o maior compositor
brasileiro do século XX, é também a maior figura da composição violonística mundial, da
primeira metade do século. Sua produção para o instrumento acompanhou todas as fases de
sua carreira, refletindo-se em cada uma delas. Em seguida, é Leo Brouwer o nome que reúne
as condições necessárias para uma nova guinada do repertório violonístico. Pode-se mesmo
concluir que, encerrado o século XX, após a apresentação de suas obras no panorama
internacional e na checagem com os compositores do século, não há paralelos a seus trabalhos
porque ou foram pouco expressivos em quantidade de obras, não totalizando um produto de
peso, ou não adicionaram nada de novo que já não tivesse sido trabalhado pelos dois autores
em questão.
Claramente, houve uma série de condições históricas reunidas em torno de seus nomes
que possibilitou a ocorrência destes fatos. Na comparação sobre Nacionalismo e Política,
pude perceber, por meio das diversas leituras de seus biógrafos, historiadores e teóricos da
América Latina que o advento do Nacionalismo em suas respectivas épocas históricas
emergiu de contextos de retórica política forte, que buscaram reforçar os sentimentos de
250
conformação da nação. O reflexo disso em seus trabalhos foi a tradicional busca de elementos
folclóricos e da música popular, permeando todas as fases de suas obras.
As implicações sócio-políticas de Villa-Lobos e Brouwer são frutos do arranjo
histórico em que ambos atuaram e das escolhas que fizeram dentro das conjunturas. O produto
de seus trabalhos está intrinsecamente ligado aos ideais que abraçaram – Villa-Lobos
almejando obter o emprego da educação cívica por meio da Música, ligou-se à ditadura
Vargas, com todas as conseqüências que teve de arcar com sua decisão, e Leo Brouwer pela
atuação com o novo regime cubano tentou realizar o seu ideal de fazer Arte dentro de uma
sociedade socialista, também com todas as dificuldades que a situação demandou,
principalmente os problemas financeiros do embargo econômico imposto a Cuba, e as
possíveis críticas e preconceitos pelo emprego da vanguarda, dentro da versão cubana do
socialismo realista.
Na Política, concluo que Brouwer se amolda à imagem revolucionária de seu país,
desde as ações oposicionistas ao final da ditadura de direita, passando pelo governo
revolucionário, até chegar àquela Cuba que poderia ser uma potência, àquela Cuba que jamais
saberemos onde poderia chegar se não fossem as restrições impostas pelo embargo
econômico. Vejo a trajetória de Brouwer como uma analogia à história da própria ilha nos
últimos 40 anos.
Por outro lado, fica a questão do posicionamento político (ou a falta) de Villa-Lobos
como uma escolha pessoal do compositor carioca, proveniente também de sua personalidade
intempestiva e avessa a qualquer lógica – na verdade não vislumbro um fim próximo quanto
ao tema político dentro de sua carreira, a questão é muito mais recente que o montante de
títulos sobre sua obra e tem sido abertamente levantada por historiadores, dos quais Arnaldo
Contier se destaca.
251
Na comparação sobre o uso da Vanguarda, a principal contribuição de Villa-Lobos é
a composição dos 12 Estudos, tida como a entrada do instrumento no novo século, devido às
mudanças trazidas que desviaram o violão do caminho de uma linguagem romantizada para
uma mais moderna, tratando o instrumento como nunca havia sido feito antes. Já Leo
Brouwer, ao iniciar sua atividade composicional na década de 50, entrou na década seguinte
encontrando o boom mundial do violão, um espaço em plena atividade, e colaborou abrindo
maiormente as possibilidades da linguagem. A peça La Espiral Eterna é a composição que
melhor representa o uso da vanguarda no violão. Também, esteticamente, em uma fase
posterior, ambos deixaram de lado o posicionamento inovador que haviam adotado para se
dedicar a uma linguagem tradicional, a uma regressão a expressões mais acessíveis ao
público.
Quanto à música para o violão, objetivei entender a linguagem composicional dos dois
consagrados autores, analisando que tipo de recursos usaram, se entre o ideal pensado para as
peças e o resultado sonoro obtido houve uma congruência à altura. Villa-Lobos afirmava
peremptoriamente que ―sua música não era para ser analisada‖ e posso dizer que por várias
vezes ele até esteve certo, pois as suas idiossincrasias também são apontadas na obra para
violão. Por exemplo, o afã de expressar o indígena brasileiro, tanto em grandes obras como os
Choros 10 quanto em iluminuras como o Prelúdio 4, seguem somente o seu imaginário, e um
imaginário de época também, ou seja, uma experiência indireta (não nego o resultado sonoro
de primeira grandeza); na música popular sim o seu referencial é perfeito, pela atuação in
loco. Não há o que reprovar nos 12 Estudos – a obra para violão solo que o compositor
carioca mais se demorou em finalizar, e talvez por isso tenha obtido resultados tão
profundamente admiráveis por toda a comunidade violonística internacional, a ponto de ser
sempre apontado, lembrado, citado em centenas de ocasiões.
252
De Brouwer, concluo que seu pensamento extramusical, sua vasta cultura, sua postura
intelectual enfim, dimensionam sua obra que, esta sim, é de consistente análise pelos
inúmeros parâmetros que Brouwer possui e utiliza como sofisticadas ferramentas: a literatura,
a filosofia, as artes plásticas, a ideologia assumida – tudo contorna sua obra e sua obra é um
todo. Desde muito jovem ele já possuía em suas primeiras peças uma estética mais voltada a
inovar do que a se enquadrar; muito cedo Brouwer descobriu a sua fórmula, que os cubanos
gostam muito de chamar o seu ―estilema‖, a sua ―marca‖, o seu ―selo‖, baseado na
surpreendentemente adição de elementos díspares, como a tradição da ritualística afro-cubana
com a abstração da vanguarda, justamente por acreditar que esses extremos se tocam. O
resultado, como se viu, foi profícuo para o violão.
Trazer à tona a série de visões, expressões, posturas dos dois grandes nomes,
fortemente interiorizadas e arraigadas a seus momentos históricos, funcionou como um
microcosmo da atuação cultural de uma América Latina que, ainda que por vezes subalterna
na condição de ordem mundial, se manifesta como pode no seu cotidiano, principalmente por
meio da Música, apenas uma das muitas faces da identidade cultural latino-americana.
Podemos afirmar quanto a isso que os resultados do estudo demonstraram uma
sinopse da atividade criadora na América Latina - das primeiras décadas do século XX até a
atualidade. A atuação de Villa-Lobos levou-o aos caminhos que passaram pelo mecenato,
como comprovam as personalidades que o auxiliaram nos anos 20 (Olívia Penteado, Paulo
Prado, Carlos Guinle) para a realização de seus trabalhos e a permanência em Paris; nos anos
30 e 40 suas escolhas foram para a órbita governamental, quando Villa-Lobos aceitou e
trabalhou no governo Vargas, com a inclusão já da ação norte-americana; e quando o
compositor iniciou uma série de turnês e compromissos internacionais, isto lhe conferiu uma
certa estabilidade e independência, especialmente na última década de vida, nos anos 50.
253
Seqüencialmente, dos anos 50 para os 60, com o advento de uma nação socialista
latino-americana – Cuba –, surge o comprometimento público e ideológico em todas as
esferas, incluindo a educação e a arte, de onde emerge Leo Brouwer como uma liderança.
Após representar o nome de Cuba no exterior por diversas vezes, nas décadas de 60 a 80,
principalmente na Europa, nos anos 90 Brouwer passa a viver na Espanha, onde se fixa como
diretor da Orquestra Sinfônica de Córdoba, embora vá a Cuba com freqüência.
Portanto, conclui-se que na América Latina atuaram como importantes promotores da
vida artística: o mecenato da elite do início do século XX; o contato dos artistas latinoamericanos com as idéias européias, de onde provêm as tradições culturais eruditas, com, em
geral, uma intermediação de nomes (Arthur Rubinstein para Villa-Lobos, H. W. Henze para
Brouwer); a atuação em esferas governamentais como meio conveniente de sobrevivência,
ainda que sem garantias da aplicação de idéias e programas, livres de críticas ou de apelo
integracionista; obtenção de uma certa estabilidade e independência a partir de um status
adquirido com o acúmulo de representatividade.
Quanto à proposição do nome dos dois compositores como exemplos da expressão
latino-americana, isto aconteceu porque Villa-Lobos e Brouwer projetaram nossas tradições
– o folclore, a música popular, as versões dos elementos indígena, europeu e africano – pelo
filtro de suas sensibilidades. Por um lado, Villa-Lobos alcança esse status ao ultrapassar o
projeto nacionalizante, até por sua inaptidão em permanecer em qualquer tendência, e de
basicamente fazer somente o que lhe convinha, criando, inventando a sua própria tendência –
ele mesmo afirmou que era individualista demais para se fixar somente na fonte folclórica.
Cabe então definir que sua ―sensibilidade americana‖ à qual se refere Carpentier reside no
fato do compositor carioca ter conseguido demonstrar naturalmente a expressão de um país,
254
de uma parte do mundo, sem na verdade ter seguido um critério para isso, a não ser o seu
próprio.
Leo Brouwer, proveniente de uma outra circunstância, expressa-se como cubano e
latino-americano, sem qualquer marca de exotismo e se ligando a uma atitude intelectual, de
refinamento. Brouwer também não se fixou em uma estética, mas não há no compositor
cubano a intemperança de Villa-Lobos – suas escolhas sempre caminharam pela tomada
consciente de assimilar ou refutar um projeto pelo exercício filosófico, pela ponderação de
idéias. Seus caminhos se cruzam sim no saldo de suas obras e no que elas guardam da
identidade latino-americana.
255
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2001.
266
ANEXO
Gravação em Compact Disc de seis peças de Heitor Villa-Lobos e Leo Brouwer,
constantes da análise na dissertação.
Faixa 1. Chorinho da Suíte Popular Brasileira (1923)
Faixa 2. Estudo 11 da série de 12 Estudos (1929)
Faixa 3. Prelúdio 4 da série de 5 Prelúdios (1940)
Faixa 4. Danza Característica (1957)
Faixa 5. Canticum (1968)
Faixa 6. El Decamerón Negro (1981): I – El Arpa del Guerrero
Faixa 7. II – La Huida de los Amantes por el Valle de los Ecos
Faixa 8. III – Balada de la Doncella Enamorada
Ficha técnica:
Intérprete: Teresinha Prada
Violão: Tessarin 1991
Gravação, edição e mixagem: Ricardo Marui
Assistente: Geisa de Moraes
Gravado em Julho de 2001 – Estúdio GTR – Mairiporã – SP