Beatriz Geraldi Lacaz Prof. Orientador
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Beatriz Geraldi Lacaz Prof. Orientador
FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ECONOMIA ROOSEVELT, VARGAS E BALANGANDÃS BEATRIZ GERALDI LACAZ Monografia de Conclusão de Curso apresentada à Faculdade de Economia para a obtenção do título de graduação em Relações Internacionais, sob a orientação da Prof. Crislaine Valéria de Toledo-Plaça. São Paulo 2010 ii LACAZ, Beatriz Geraldi. ROOSEVELT, VARGAS E BALANGANDÃS. São Paulo: FAAP, 2010, 85 p. (Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado) Palavras-Chave: Carmen Miranda - Franklin Roosevelt - Getúlio Vargas – soft power – Segunda Guerra Mundial. iii “Sempre fui muito mais desejada do que desejei.” Carmen Miranda iv AGRADECIMENTOS Agradeço à Professora Crislaine que me ajudou, me tranquilizou e me apoiou em todos os momentos. Obrigada por ter me orientado. Agradeço à minha mãe, meu pai e meu irmão: constantemente me ajudando, me dando apoio, força e incentivos. Sempre com novos livros, fotos, palpites e companhia. Sem vocês eu não teria conseguido. Vocês me inspiram todos os dias! Às minha amigas, por todo o carinho, preocupação, figurinhas trocadas, conversas, lamentações e apoio – vocês me ajudaram muito. Ao Mario Cafiero pela inspiração e pela maravilhosa ilustração inicial. Ao Guto, tio e artista, pela ajuda na iconografia. À Kitty, que não fez nada, mas é uma companhia legal. v SUMÁRIO Lista de Figuras Resumo INTRODUÇÃO 1. A ECLOSÃO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 10 12 1.1 Antecedentes 12 1.2 A Eclosão da Guerra 15 1.3 A Entrada dos Estados Unidos no Conflito 16 1.4 O Papel Desempenhado pelo Brasil e pelos Países Latino-Americanos durante a Segunda Guerra Mundial 2. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PERÍODO 2.1 Os Antecedentes Políticos na Década de 1930 20 23 23 2.2 A Era Getúlio Vargas, a Consolidação do Estado Novo e as Políticas Adotadas 27 3. A PEQUENA NOTÁVEL E AS RELAÇÕES ENTRE BRASILESTADOS UNIDOS 3.1 Vida e Obra de Carmen Miranda 34 34 3.2 Soft power: o estilo e a Influência de Carmen Miranda na Cultura e no Comportamento Norte-Americano 38 3.3 A Política da Boa Vizinhança e sua Embaixatriz: o Papel Desempenhado por Carmen nas Relações entre os Países 68 CONCLUSÃO 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 79 vi LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Maria do Carmo Miranda da Cunha. 35 Figura 2 – O adeus a Carmen Miranda: a mobilização e o reconhecimento nacional em torno da morte da cantora do it verde e amarelo. 38 Figura 3 – A baiana de Carmen Miranda – sua interpretação colorida, exuberante e alegre do Brasil. 40 Figura 4 – A baiana ganha destaque na imprensa – Capa da revista Click, Estados Unidos, 1939. 41 Figura 5 – As diferentes interpretações de Carmen Miranda para seu turbante – a reinvenção do turbante. 42 Figura 6 – Carmen Miranda empresta sua imagem ao Marketing: o poder da Pequena Notável em terras estrangeiras (Propaganda da cerveja Rheingold – década de 1940). 46 Figura 7 – Plataformas, balangandãs, turbantes: o it da Pequena Notável. 47 Figura 8 – Carmen e a representação cultural brasileira através de diferentes signos. 52 Figura 9 – Carmen e Aurora Miranda: Cantoras do Rádio (1936). 58 Figura 10 – A Política da Boa Vizinhança: “Heterolateralidade” publicada pela revista O Cruzeiro de 1940 – As relações entre Brasil e Estados Unidos através de símbolos nacionais: Roosevelt e Vargas. 63 Figura 11 – Os frutos da Política de Boa Vizinhança: Roosevelt, Vargas e militares na base americana em Natal, 1943. 64 vii Figura 12 – Pôster da New York World’s Fair – a divulgação em escala continental da Política de Boa Vizinhança. 67 Figura 13 – The Lady with the Tutti-Futti Hat: Carmen Miranda atuando no filme Entre a Loira e a Morena (1943) – O Brasil sempre presente nas apresentações da artista nos Estados Unidos. 71 Figura 14 - Carmen Miranda com Walt Disney e Jorge Guinle no lançamento do Zé Carioca, 1943. 72 Figura 15 - Carmen Miranda e seu papel central nas relações entre Brasil e Estados Unidos durante a Política de Boa Vizinhança. 75 viii RESUMO O presente trabalho procura apresentar o papel relevante que Carmen Miranda desempenhou nas relações diplomáticas entre Brasil e Estado Unidos no período da Segunda Guerra Mundial. Por mais de dez anos a artista ganhou notoriedade como a Embaixatriz da Política de Boa Vizinhança, influenciando a cultura norte-americana com seus filmes, canções, atitudes e balangandãs. A atuação da Pequena Notável no período foi relevante para a adoção de políticas mais brandas de relacionamento entre os Estados (soft power) estabelecida entre Roosevelt e Vargas. Para contextualizar essa tese mostro os acontecimentos marcantes para a eclosão da Segunda Guerra Mundial, bem como seu desenrolar, dando papel de destaque ao posicionamento norte-americano e de países latino-americanos no conflito. Em seguida apresento uma breve síntese sobre a Era Vargas, enfatizando a diplomacia ambígua que acabou levando a aproximação brasileira aos Estados Unidos. Complementando, abordo fatos e curiosidades sobre a vida artística e pessoal de Carmen Miranda, além de mostrar sua influência na moda e cultura daquele país. ix ABSTRACT This paper seeks to explain the role that Carmen Miranda played in diplomatic relations between Brazil and the United States during the Second World War. For over ten years the artist has gained notoriety as the Ambassador of Good Neighbor Policy, influencing American culture with his movies, songs, attitudes and trinkets. The performance of the Brazilian Bombshell in the period was relevant to the adoption of more lenient relationship between states (soft power) is established between Roosevelt and Vargas. To contextualize this thesis show significant events for the outbreak of World War II and its development, giving special prominence to the role of American and Latin American countries in conflict. Then I present a brief summary of the Vargas era, emphasizing the ambiguous diplomacy that won the Brazilian approach to the United States. Addition, I discuss facts and trivia about the personal and artistic life of Carmen Miranda, and to demonstrate its influence on fashion and culture of that country. 10 INTRODUÇÃO O tema da monografia de conclusão de curso procura estabelecer relações entre moda, cultura, soft power e relações internacionais, mostrando a influência de Carmen Miranda no cenário internacional, durante o período da Segunda Guerra Mundial. A importância deste projeto pode ser percebida pelo fato de que a Carmen foi a precursora da propagação cultural brasileira no cenário internacional; tendo como consequência direta o aumento da relevância do país na moda, na cultura, na política e economia; permitindo o desenvolvimento das relações brasileiras com grandes centros mundiais, no período compreendido entre 1939 e 1955. Para que esta discussão pudesse ser realizada, organizo minha monografia de forma que todos os conceitos e conhecimentos necessários à discussão fossem abordados previamente ao último capítulo. Para fundamentar esse trabalho utilizei como metodologia a pesquisa em livros acadêmicos, bibliografias sobre a vida de Carmen Miranda, filmes e sites da internet. Deste modo, no primeiro capítulo desenvolvo um panorama geral sobre a Segunda Guerra Mundial, mostrando os antecedentes do conflito; seu desenrolar; a atuação norte-americana durante a guerra, principalmente com o abandono da posição isolacionista e; por fim, a participação de países latino-americanos, mas principalmente a brasileira ao lado da Grande Aliança no conflito. O capítulo seguinte tem como objetivo apresentar uma breve síntese da situação interna do Brasil, tendo como base a Era Vargas e políticas adotadas. Foi por meio do abandono das decisões tomadas até então, a adoção de um posicionamento ambíguo e, posteriormente a aliança com os Estados Unidos, que a implementação da Política de Boa Vizinhança foi possível. O terceiro e último capítulo tem por finalidade unir todos os conceitos trabalhados, sendo então, possível a discussão da tese central da monografia. Primeiramente farei uma breve síntese da vida de Carmen Miranda, apontando os eventos mais marcantes e decisivos de sua trajetória. Em seguida mostrarei sua influência na cultura e na moda – discutindo, inclusive, importantes premissas destes conceitos – retratando de que forma a influência exercida pela Pequena Notável pode ser considerada como uma atitude de soft power. 11 Carmen Miranda conheceu a fama não apenas no Brasil, mas principalmente nos Estados Unidos, onde conseguiu atingir grande notoriedade, especialmente no que tange aos aspectos culturais. Assim, é possível afirmar que o aumento da importância do Brasil nas relações internacionais a partir da década de 40, teve uma participação significativa da atuação da Pequena Notável. 12 1. A ECLOSÃO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Neste capítulo procuro apresentar um panorama sucinto da Segunda Guerra Mundial, relembrando alguns dos eventos que levaram a sua deflagração; passando por seu término; mostrando, principalmente a atuação do Brasil e de países latinoamericanos; bem como o posicionamento dos Estados Unidos no conflito. 1.1 Antecedentes Com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, ficou evidente a necessidade da reorganização do mapa europeu, uma vez que o conflito não havia resolvido todas as questões que havia gerado (TOTA, 2009b, p. 358). Dito de outra forma, “a Primeira Grande Guerra explica a Segunda e, na verdade, foi sua causa, na medida em que um evento causa outro” (HENIG, 1991, p. 15). A Conferência de Paz de Paris tinha como objetivo a criação de uma nova ordem internacional que tornasse inviável outra grande guerra (MACMILLAN, 2004, p. 6). Os acordos firmados em Paris culminaram no Tratado de Versalhes, ratificado em 1919, que estabeleceu como meta a garantia de paz entre as nações vitoriosas e aquelas derrotadas. Às nações perdedoras ficou determinada a imediata desmilitarização de suas tropas e a redução do contingente militar. Apesar de todos os esforços e negociações durante a Conferência, não foi possível satisfazer a Alemanha que foi considerada pelas demais nações como a grande responsável pelo conflito. Durante as negociações, os peacemakers1 reuniram-se incansavelmente, dia após dia, argumentando, brigando e finalmente, refizeram o mundo (Idem, ibidem, p. 1). Assim, a Conferência de Paris produziu uma aparente reorganização do cenário geopolítico externo, dando uma superficial estabilidade ao cenário mundial; uma vez que muitos eram os países que estavam insatisfeitos com a nova situação internacional. O final da Primeira Guerra Mundial evidenciou de forma bastante clara a instabilidade do Sistema Internacional. A Alemanha, com sua rendição incondicional às tropas Aliadas, estava arruinada econômica, social e politicamente; na Rússia iniciavase um governo de caráter comunista; na Itália havia a ascensão do nacionalismo sob 1 Peacemakers: estadistas incumbidos da missão de paz durante as negociações da Conferência de Paz de Paris 13 comando de Mussolini; por toda a Europa o desenho geográfico havia passado por mudanças consideráveis que não podiam ser ignoradas (TOTA, 2009b, p. 358). A política do apaziguamento, adotada por muitos países no período entre as grandes guerras, principalmente decorrente do Tratado de Versalhes, visava negociações e acordos capazes de evitar novos conflitos. Esta estratégia, entretanto, não assegurou de forma permanente a paz mundial. Não tardou até que regimes e líderes autoritários se consolidassem na Europa, principalmente na Alemanha e Itália, com o objetivo de realizar conquistas territoriais sob Estados mais fracos, ignorando sua soberania e seus direitos. Eric Hobsbawm (1996, p.44) afirma que, independente da instabilidade da paz no período do pós-1918 e da probabilidade do colapso deste arranjo, é inegável que o que provocou a Segunda Guerra Mundial foi a agressão proferida à Polônia pela Alemanha e apoiada por Itália e Japão, ligadas por múltiplos tratados vigentes desde 1930. A guerra iniciada em setembro de 1939 pode ser (...) explicada (...) no contexto da deteriorização da ordem europeia durante a década de 1930, quando a crise econômica, a ascensão de ditaduras autoritárias, as profundas divisões ideológicas, as rivalidades nacionalistas e o colapso dos esforços da Liga das Nações para preservar a paz se combinaram para tornar provável um grande conflito (OVERY, 2009, p. 13). Desta maneira, durante o período que antecedeu a Segunda Grande Guerra, diversos foram os acontecimentos que alteraram o Sistema Internacional; em comum, todos eles evidenciavam que havia em curso uma onda expansionista de Estados autoritários e declínio da Liga das Nações, organização que deveria prover e assegurar a paz. Ainda segundo Hobsbawm (1996, p.31-32), a Segunda Guerra Mundial assumiu um caráter global: de forma geral todos os Estados independentes se envolveram, seja por vontade própria ou não. Deste modo, as colônias das potências imperiais não tiveram escolha; quase todo o globo foi beligerante ou ocupado, ou as duas coisas juntas: 14 A guerra, portanto começou em 1939 como um conflito puramente europeu e, de fato, depois que a Alemanha entrou na Polônia, que foi derrotada e dividida em três semanas com a agora neutra URSS, como uma guerra puramente europeia ocidental de Alemanha contra GrãBretanha e França. Na primavera de 1940, a Alemanha levou de roldão a Noruega, Dinamarca, Países Baixos, Bélgica e França com ridícula facilidade, ocupando os quatro primeiros países e dividindo a França, numa zona diretamente ocupada e administrada pelos alemães vitoriosos e num “Estado” satélite francês (...), com capital num balneário provinciano, Vichy. Só restou em guerra com a Alemanha a Grã-Bretanha, sob uma coalizão de todas as forças nacionais, chefiadas por Winston Churchill e baseada na total recusa a qualquer tipo de acordo com Hitler (Idem, ibidem, p. 46). Durante este período, o mundo assistiu a um crescimento sem precedentes dos Estados Unidos e a adoção de medidas isolacionistas na política externa daquele país. Em 1933, quando da posse de Franklin Delano Roosevelt, a política externa norteamericana baseava-se no princípio da não intervenção em conflitos europeus, princípio encontrado na Lei de Neutralidade promulgada entre 1935 e 1937 pelo Congresso americano (TOTA, 2009, p. 359). Em outras palavras: “os Estados Unidos haviam repudiado o acordo de Versalhes já em novembro de 1919 e não queriam qualquer envolvimento político nas lutas entre potências europeias” (HENIG, 1991, p. 19). Enquanto isso, no mesmo ano, na Alemanha ocorria a posse de Adolf Hitler e do Partido Nazista. Seu principal objetivo era transformar o país em uma potência militar, restaurando os tempos em que o império ditava as regras da política europeia, “Deutschland Erwash, ou „Alemanha Desperta!‟. Assim, os nazistas começaram a reconstruir a Alemanha” (TOTA, 2009, p. 360). Com estes ideais, o Führer instaurou seu Gleichschautung2, momento em que adotou a coordenação de um Estado sob autoridade total de um só líder, visando a imposição da ditadura e a reconstrução do país. Além do desenvolvimento das indústrias pesadas, melhorias das forças aéreas e demais indícios de que os governos totalitários preparavam-se para a guerra, Hitler buscava também a conquista de seu Lebensraum3, destinado à acomodação do povo germânico (Idem, ibidem, p. 359-361). 2 Termo utilizado pelo Partido Nazista para instaurar um sistema totalitário, disseminando uma forma de pensamento e doutrina para todos os alemães. 3 Para a ideologia nazista, os alemães, sendo a raça superior, tinham o direito ao espaço vital. 15 Somado ao rearmamento alemão, outro projeto de grande importância para o país consistia na anexação da Áustria, sob o pretexto de Anschluss4, garantindo a anexação natural de um país que passaria a fazer parte da Grande Alemanha. 1.2 A Eclosão da Guerra Não tardou até que os ataques à Polônia fossem iniciados. Nas palavras de Richard Overy (2009, p. 85): “às 4h45 da madrugada [de 1º de setembro de 1939], o navio-escola alemão Schleswig Holstein, ancorado em frente ao porto de Danzing, abriu fogo contra o forte polonês (...), iniciando a Segunda Guerra Mundial” (TOTA, 2009b, p. 364). Coube aos países aliados à Polônia, França e Grã-Bretanha, o envio de um ultimato à Alemanha decretando o término dos ataques; no entanto Hitler pouco se preocupou com a mobilização e deu continuidade à sua ofensiva; atitude que provocou em 3 de setembro, a declaração de guerra da aliança à Alemanha (Idem, ibidem). Tão logo ocorreu a conquista da Polônia, Hitler voltou seus objetivos para a Europa Ocidental, mais precisamente para a Dinamarca e Noruega que em 9 de abril de 1940 foram atacadas. Ao mesmo tempo, Stálin, na Rússia, planejou e invadiu a Finlândia, entre novembro de 1939 e março de 1940. Do outro lado do mundo, no Oriente, ainda em 1939, o Japão começou um movimento de expansão em busca de matérias-primas necessárias para suprir sua industrialização e seus avanços econômicos. Em 1940 o conflito se acirrou: a Holanda foi tomada entre os dias 10 e 14 de maio e posteriormente a França seria atacada em 4 de junho, quando “(...) as tropas nazistas marcharam pelos bulevares parisienses e a bandeira alemã com a cruz suástica foi fixada na Torre Eiffel” (Idem, ibidem, p. 367). Em 25 de junho, mesmo mês em que ocorreu a entrada italiana na guerra (ao lado do Eixo), os conflitos na capital francesa terminaram com a assinatura do armistício entre França e Alemanha. Com a queda francesa os olhares de Hitler se voltaram para os territórios britânicos. Churchill, agora primeiro-ministro britânico, 4 Hitler acreditava que todos os alemães deveriam concentrar-se dentro de um mesmo território, assim, Anschluss seria a proposta do líder para a constituição de uma pátria alemã que pudesse abrigar todos os alemães. 16 tinha consciência de que o objetivo da máquina de guerra nazista era dominar a GrãBretanha (Idem, ibidem). Logo em setembro de 1940, foram iniciados os ataques aéreos contra o sul da Grã-Bretanha, “(...) despejando toneladas de bombas em instalações portuárias e aeródromos. Depois povoados e, em seguida, cidades. Londres foi atingida. No entanto, os aviões alemães encontraram tenaz resistência por parte da RAF” (TOTA, 2009b, p. 367). Dentro deste contexto, Norman Davies (2009, p.107) ressalta que: O fator chave aqui foram os EUA. O presidente Roosevelt mostrou-se solidário ao sofrimento da Grã-Bretanha e ficou determinado a dar toda a ajuda possível, exceto uma declaração de guerra. Não servia aos interesses de longo prazo da América que a Grã-Bretanha caísse. Mas o auxílio tinha que ser sub-reptício. Os EUA não tinham um exército significativo. E o congresso ainda estava dominado pelo isolacionismo. (...) a Marinha dos EUA começou a fornecer cobertura parcial aos comboios do Atlântico. E, em março de 1941, o presidente formalizou o Esquema de Empréstimo e Arrendamento. A GrãBretanha foi salva da insolvência financeira pelos EUA e, desse modo, deixou de ser uma grande potência independente. Churchill foi incumbido, então, de trazer os Estados Unidos para a guerra. Enquanto Roosevelt estava inclinado à aproximar-se e dar apoio a Grã-Bretanha, contando com o aval da população, que havia se solidarizado àquele país, graças à cobertura jornalística empenhada no ocorrido; o Congresso americano, por outro lado, se manteve firme na decisão de não intervir militarmente, pelo menos não antes de 1941. Essa configuração seria alterada já no ano seguinte (Idem, ibidem, p. 179). 1.3 A Entrada dos Estados Unidos no Conflito No início de dezembro de 1941, Washington decifrou mensagens codificadas japonesas que indicavam que as tropas daquele país atacariam Pearl Harbor. “Franklin D. Roosevelt leu o papel e passou-o a Harry L. Hopkins com as palavras: „This means War‟ – „é a guerra‟” (DAHMS, 1968, p. 360). Em paralelo às disputas na Europa, em 7 de dezembro daquele ano, as tropas americanas em Pearl Harbor foram atacadas pelo Exército japonês, ascendendo um 17 pavio perigoso e tornando a guerra, a partir de então, em um conflito verdadeiramente de caráter mundial. Em outras palavras, segundo Sean Prudy (2010, p. 218): A invasão italiana da Etiópia (em 1935), a Guerra Civil Espanhola (de 1936 a 1939) (...) a tomada da Áustria (em 1938) e as invasões da Polônia e da Tchecoslováquia por Hitler (em 1938) – nenhum desses eventos provocou a entrada dos Estados Unidos na guerra. Foi a briga entre os impérios do Pacífico que garantiu a participação dos Estados Unidos no conflito mundial (...). no dia 7 de dezembro de 1941, a força aérea japonesa fez um ataque surpresa a (...) Pearl Harbor (...). No dia seguinte, o Congresso Americano declarou guerra contra o Japão. Hellmuth Dahms (1968, p. 360), bem como Jean Monestier (2010, p. 28-33), afirmam que Roosevelt tinha conhecimento de que a Constituição norte-americana impunha restrições com relação ao direito de declarar guerra, por isso, o presidente não o fez antes dos ataques. Roosevelt esperou que o Japão bombardeasse Pearl Harbor para que a decisão de declarar guerra ao país fosse tomada em conjunto, ou seja, o presidente norte-americano desejava que o ataque japonês provocasse no congresso e na população um movimento favorável à guerra. Assim, o ataque à base norte-americana no Havaí possibilitou ao presidente Roosevelt o abandono da posição isolacionista: Os Estados Unidos abandonavam sua política de isolacionismo. Poucos dias depois, a Itália e a Alemanha declaravam guerra aos Estados Unidos, num ato de solidariedade ao Japão, integrante do Eixo, como ficou conhecida a aliança entre os países nazi-fascistas (Itália e Alemanha) e o Japão (TOTA, 2009b, p. 372). O Japão, ao atacar os Estados Unidos, buscava não apenas aumentar sua influência nas regiões próximas ao país, caso das Filipinas; como também esperava obter fontes de matérias-primas para suas indústrias, uma vez que os Estados Unidos estavam impondo pesadas sanções financeiras aos combustíveis e materiais estratégicos necessários ao desenvolvimento japonês (Idem, ibidem). A partir de então, com a presença norte-americana na guerra, tornou-se possível a consolidação pela Grande Aliança (também conhecida como os “Três Grandes”) (DAVIES, 2009, p. 72), integrada por Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética; que se opunham mutuamente ao Eixo (TOTA, 2009b, p, 372). Assim, fazendo uso das 18 palavras de Davies (Ibidem, p. 72), “os „Três Grandes‟ (...) consistiam no principal capitalista do mundo, no imperialista-democrata mais eloqüente do mundo e no líder comunista mundial”. A entrada dos Estados Unidos no conflito possibilitou que estratégias como o Empréstimo-Arrendamento5 e também a rendição incondicional (Idem, ibidem, p. 77) fossem utilizados. A Alemanha, como integrante do Eixo, declarou guerra aos Estados Unidos, “dando assim ao governo Roosevelt a oportunidade de entrar no conflito europeu ao lado da Grã-Bretanha (...)” (HOBSBAWM, 1996, p. 48). Essa situação foi muito favorável ao governo norte americano que já possuía convicção de que a Alemanha nazista representava uma ameaça à posição de supremacia do país; desta forma, os americanos concentraram-se em ganhar, primeiramente, a guerra contra a Alemanha, e só depois contra o Japão (Idem, ibidem). No ano seguinte, em 1942, Hitler voltou sua atenção à conquista de Stalingrado, representando não somente interesses estratégicos, mas também buscando uma vitória que possuísse um profundo significado simbólico, uma vez que esta era a cidade que possuía Stálin no nome. Com a invasão de Stalingrado e a tomada de seu governo viria a imediata percepção de que o regime soviético não mais existiria, ocorrendo uma imediata subordinação russa e eslava aos alemães (TOTA, 2009b, p. 374). Apesar de todo o entusiasmo que envolvia esta batalha, os planos do Führer não saíram conforme o planejado. Para Hobsbawm, a partir do final de 1942 ninguém duvidou que a Grande Aliança contra o Eixo seria vitoriosa: “os aliados começaram a concentrar-se no que fazer com sua previsível vitória” (1996, p. 49). Enquanto a batalha no Cáucaso se desenrolava, as forças nazi-fascistas percorriam a África em busca de novas conquistas. Em 1942, contando com o apoio bélico norte-americano, os britânicos, durante a batalha de El Alamein, conseguiram provocar a derrota nazi-fascista. Em novembro seguinte, deflagrou-se a Operação Tocha, momento em que uma força naval anglo-americana desembarcou no Marrocos e na Argélia, dominando tropas francesas (TOTA, ibidem, p. 376). O fortalecimento das relações entre Estados Unidos e Grã-Bretanha possibilitou mais um lance no tabuleiro da guerra: a invasão da Sicília em julho de 1943. 5 A lei de Empréstimo e Arrendamento possibilitou aos Estados Unidos efetuar a venda, transferência, troca, arrendamento e também o empréstimo de materiais bélicos a qualquer país sempre que interessasse na defesa do país. 19 Antonio Tota afirma que enquanto as tropas aliadas marchavam em direção ao norte da Itália, o general Dwight Eisenhower6 preparava o desembarque nas praias francesas. Deste modo, “na madrugada de 6 de junho de 1944, o Dia D, (...) uma poderosa força de mais de 6 mil navios, 5 mil aviões e 36 divisões de infantaria, sem contar com para-quedistas, iniciou os desembarques nas praias da Normandia” (2009b, p. 377-378). Com as praias invadidas, as tropas aliadas conseguiram chegar a Paris em 26 de agosto, retomando a capital francesa das mãos nazistas. Entre agosto e outubro daquele ano, ocorreu o levante da Varsóvia, considerado a maior ação militar realizada pelos movimentos de resistência durante a Segunda Guerra Mundial. No final de 1944 e início de 1945, as tropas Aliadas se aproximavam das margens do rio Reno. Com a ocupação de Dresden, em fevereiro de 1945, o fim da guerra começou a ser desenhado. Sob esta conjuntura os Aliados mais uma vez reuniram-se: (...) para decidir o destino da Europa e do mundo do pós-guerra, iniciava-se a Conferência de Yalta. (...) Em fevereiro de 1945, reuniram-se Churchill, Stálin e Franklin Delano Roosevelt (...). Na pauta da reunião havia quatro principais pontos de discussão: a formação das Nações Unidas, a questão da Alemanha, o Leste Europeu e o Extremo Oriente (TOTA, 2009b, p. 382). Na primavera de 1945, Hitler retirou-se ao seu bunker7, de onde não mais sairia com vida, esperando o resultado da guerra. O Exército Vermelho marchava ferozmente em direção a Berlim. O ataque ocorreu em 16 de abril de 1945, dando praticamente nenhuma chance de defesa ao Exército alemão. Não restava muito a se fazer pela Alemanha, a não ser a rendição incondicional. Com o cessar fogo alemão, em maio daquele ano, terminava a guerra na Europa. 6 Dwight Eisenhower (1890-1969): comandante supremo das forças anglo-americanas durante a Segunda Guerra Mundial. Responsável pelos desembarques na Sicília pelos Aliados e na Normandia no Dia D. 7 Bunkers, também conhecidos como Casamatas, são unidades de defesa utilizadas, principalmente, durante as guerras; fabricadas de concreto e com aberturas que viabilizam um contra-ataque. 20 Apesar do final da guerra no continente europeu, os conflitos permaneceram no Oriente, principalmente entre tropas norte-americanas e japonesas, que acabaram por culminar no uso da bomba atômica. O Exército norte-americano avançava progressivamente, cercando o Japão e tomando o controle das ilhas de Iwojima e Okinawa. Em 6 de agosto de 1945, as tropas dos Estados Unidos lançaram a bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima; três dias depois outra foi lançada em Nagasaki. A rendição do Japão ocorreu pouco depois, em 19 de agosto, assim: “a vitória em 1945 foi total, a rendição incondicional” (HOBSBAWM, 1996, p. 49). Tota (2009b, p. 359) afirma que a hegemonia, até então exercida pela Europa deixava de existir, uma vez que suas principais potências haviam sofrido enormes perdas financeiras e humanas. Nesse contexto se consolidou a ascensão norteamericana, tanto militar, quanto econômica e também tecnológica. O término da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos obtiveram crescimento em diversas dimensões, em outras palavras, os Estados Unidos haviam saído da guerra como país vencedor. Sendo vencedor no campo militar e vencedor no campo econômico, assumindo uma posição de fornecedor de materiais bélicos, alimentos e matérias-primas para seus aliados na Europa. Neste contexto, conforme afirma Purdy (2010, p. 217) é possível perceber que: “a guerra pôs fim à Depressão e ao desemprego, dobrando o PIB do país em quatro anos”. 1.4 O Papel Desempenhado pelo Brasil e pelos Países Latino- Americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Até 1942 a guerra parecia distante dos brasileiros. No entanto, esta percepção foi alterada, quando em 15 de agosto daquele ano, a embarcação brasileira Baependi foi torpedeada por um submarino alemão. Não tardou até que movimentos de mobilização anti-Eixo se consolidassem por todo país. Já em 22 de agosto o presidente Getúlio Vargas declarou “estado de beligerância contra o Eixo” (FERRAZ, 2005, p. 7-8). Francisco Ferraz (Ibidem, p. 9) afirma que a guerra em que o país resolveu aderir já era considerada a maior guerra da história, seja pela amplitude geográfica ou 21 pela de recursos bélicos e humanos empregados, assim, “é mais correto dizer que não foram os brasileiros que foram à guerra, mas sim a guerra que chegou aos brasileiros”. Antes mesmo da entrada do Brasil e demais países estratégicos no conflito, a presença brasileira já era sentida através do fornecimento de produtos de grande importância aos países envolvidos. A guerra entre as potências “estava restrita a um bloqueio marítimo britânico contra o fluxo de produtos importados para o esforço bélico do inimigo” (Idem, ibidem, p. 11). Deste modo, havia a necessidade de uma corrida a produtos estratégicos de ambos os lados de influência. A aproximação do conflito nas Américas preocupou os Estados Unidos, uma vez que era possível às tropas alemãs, a tomada do litoral Nordeste brasileiro. Esta invasão teria como objetivo a formação de uma base no Canal do Panamá, grande entreposto para a circulação de bens e materiais estratégicos provenientes dos países latinoamericanos, com destino a territórios norte-americanos. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, não apenas houve a consolidação da Grande Aliança, outra consequência imediata foi a crescente influência e preponderância americana sobre os países da América Latina, assim: Em janeiro de 1942, realizou-se no Rio de Janeiro um encontro dos chanceleres americanos. Na ocasião, os Estados Unidos conseguiram que todos os países da América Latina rompessem relações diplomáticas com o Eixo. Duas exceções: a Argentina e o Chile, que só romperiam com o Eixo praticamente no final da guerra (TOTA, 2009b, p. 373). A declaração de guerra norte-americana ao Eixo provocou a adoção de medidas mais enérgicas por parte dos governos latino-americanos. Dentro deste contexto, Ferraz afirma que “(...) não era mais possível ostentar neutralidade e, pressionada pelo vizinho mais poderoso, a maioria dos países latino-americanos rompeu relações diplomáticas com a Alemanha, a Itália e o Japão, ainda em janeiro de 1942 (...)” (2005, p. 14). O rompimento das relações diplomáticas brasileiras acabou por evidenciar uma situação que já era bastante concreta: Desde o início das hostilidades na Europa, os governos latinoamericanos já eram pressionados por militares e diplomatas dos 22 Estados Unidos para autorizar o uso de bases aéreas e navais por suas Forças Armadas e para fornecer com exclusividade para os Aliados matérias-primas estratégicas (Idem, ibidem, p. 15). Aos poucos, a neutralidade que até então o Brasil havia adotado, deu espaço ao apoio declarado aos Estados Unidos. Coube então ao Brasil um papel de importância estratégica crucial àquele país durante a Segunda Guerra Mundial. Neste período, o Brasil permitiu que o país construísse uma base aeronaval no Rio Grande do Norte, mais precisamente em Natal, denominada de “Trampolim da Vitória” contra a Alemanha. Concomitantemente um contingente de tropas brasileiras foram enviadas para a guerra, dando apoio os Aliados (Idem, ibidem, p 33). Tamanho era o envolvimento brasileiro na questão, que propagandas norteamericanas passaram a ser vinculadas ao Brasil: “„As Américas em guerra!!!‟ Era assim que os programas irradiados diretamente de Nova York para o Brasil e em português, buscavam apoio do povo brasileiro na causa da luta contra o fascismo” (TOTA, 2009b, p. 373). Neste cenário desenvolve-se a “Política de Boa Vizinhança”. Purdy a caracteriza como um instrumento que “pretendia pôr fim às abertas intervenções militares na América Latina em favor de relações econômicas mais estreitas” (2010, p. 214). Roosevelt assinou vários acordos comerciais com países latinoamericanos e os investimentos dos Estados Unidos na região triplicaram entre 1934 e 1941, aumentando a influência política por meio do controle econômico (...). Roosevelt também aumentou as relações formais com os militares latino-americanos e montou os primeiros esquemas de ajuda financeira na área de desenvolvimento social e cultural, visando ao apoio dos países latino-americanos (...) (Idem, ibidem, p. 214-215). Este processo contou principalmente com o apoio do magnata norte-americano Nelson Rockfeller, responsável pelo “Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations Between the Americans Republics, mais tarde rebatizado de Office of the Coordination of Inter-American Affairs, também conhecido como „Birô Interamericano‟” (FERRAZ, 2005, p. 30). Essa agência tinha como atribuição principal manter constantemente uma imagem favorável dos Estados Unidos, “(...) por meio de uma bem montada máquina de propaganda. Foi nessa época que, por exemplo, Walt 23 Disney criou personagens latino-americanos, cujo melhor exemplo foi Zé Carioca” (TOTA, 2009b, p. 373). Era de responsabilidade do Birô: (...) promover medidas para estimular a recuperação das economias da América Latina e produzir programas de educação, cultura e propaganda que disseminassem os valores norte-americanos de maneira a garantir não apenas a proeminência política, econômica e militar dos Estados Unidos, mas também cultural (FERRAZ, 2005, p. 30). Com essa política de aproximação entre os Estados Unidos e a América Latina, diversos filmes, documentários e programas de rádio foram elaborados a fim de promover um maior contato cultural entre os países. Ainda neste período, numa via de mão-dupla, diversos artistas brasileiros ganharam notoriedade e reconhecimento internacional; dentre eles se destaca a cantora Carmen Miranda. Em termos mais simples, o Birô adotou diversas medidas que possibilitaram o desenvolvimento da Política de Boa Vizinhança entre Brasil e Estados Unidos, e, neste sentido, tanto o governo Roosevelt, quanto o de Getúlio Vargas foram fundamentais para sua implementação. 2. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PERÍODO Neste capítulo meu objetivo é mostrar de que forma a atuação do governo de Getúlio Vargas foi relevante para alterar o contexto externo, onde se desenvolvia a Segunda Guerra Mundial e a consequente implementação da Política de Boa Vizinhança. 2.1 Os Antecedentes Políticos na Década de 1930 A chegada do século XX provocou uma americanização (OLIVEIRA, 2005, p. 29) da política externa brasileira, centralizada principalmente na atuação do Barão de 24 Rio Branco8. Esta mudança na forma de condução da política externa representou um maior interesse brasileiro em romper com o isolacionismo vigente, passando a atuar de forma mais categórica também no cenário internacional, principalmente no continente americano, onde tinha como objetivo a aproximação com os Estados Unidos (Idem, ibidem). Para Rubens Ricupero (2006, p. 18-19), Rio Branco procurou consolidar uma “unwritten alliance” com o intuito de aumentar o poder de barganha brasileiro, através do apoio do Brasil às medidas adotas pelos Estados Unidos, mesmo que estas fossem extremamente criticadas pelos demais países latino-americanos. Assim, o Barão visava estimular ações de amizade com os países do continente, além de integrar o movimento do Pan-americanismo como forma de eliminar desavenças entre os países do continente. De acordo com Henrique de Oliveira (2005, p. 35), a formação de uma aliança entre Brasil e Estados Unidos durante o reinado (RICUPERO, 2006, p. 16) de Rio Branco, visava a consolidação de fronteiras naturais e a redução da influência europeia na região. Com o deslocamento do eixo de Londres para Washington, o Brasil adquiriu maior autonomia no Sistema Internacional, ficando claro que a política externa vigente até a década de 1930 representava a continuidade da forma de atuação aplicada por Rio Branco. Neste contexto, a americanização da política externa brasileira representou um processo de alinhamento automático, onde tanto as questões político-diplomáticas, quanto as questões de cunho econômico e comercial passaram a ganhar relevância. Em toda a América Latina o cataclisma representado pela crise de 1929 mostrou consequências profundas: os problemas sociais assumiram proporções assustadoras e a organização política dos países latino-americanos foi abalada nos seus alicerces (MOURA, 1991, p. 25). A crise mundial trazia consigo consequências diretas à produção agrícola, deixando-a sem mercado e com fazendeiros indo à falência, além de elevadas taxas de desemprego (FAUSTO, 2002, p. 185). Com a crise veio a derrocada do modelo primário-exportador, fazendo-se necessária a reconstrução das economias nacionais dos países latino-americanos, principalmente com a alteração do centro dinâmico destas economias que passaram a voltar-se para o mercado interno 8 José Maria da Silva Paranhos Júnior, conhecido como Barão do Rio Branco, foi jornalista, diplomata, historiador, professor, político e biógrafo. Nasceu no Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1845 e faleceu em 10 de fevereiro de 1912. 25 (MENDONÇA; PIRES, 2002, p. 228-229). Diante deste contexto, Gerson Moura (1991, p. 25) afirma que: Os governos (...) pareciam impotentes para solucionar os problemas do dia; movimentos radicais de várias matrizes clamavam por mudanças drásticas e por todo lado emergiam regimes ditatoriais de cunho ultranacionalista, que anunciavam o fim das liberdades democráticas e o estabelecimento de uma „nova ordem‟. No plano das relações internacionais (...) [houve] desorganização e diminuição do comércio internacional, com reflexos imediatos sobre as economias industriais e não-industriais; adoção de rígidas medidas protecionistas e reforço de laços imperiais (...) e o desafio das potências do Eixo – Japão, Itália e Alemanha – às posições hegemônicas que Grã-Bretanha e França ainda defendiam dentro e fora da Europa e que os EUA detinham no continente americano e no Pacífico. Por outro lado, no Brasil, os anos de 1930 trouxeram o enfraquecimento de uma das heranças do Barão de Rio Branco: o componente ideológico. A competição existente entre democratas liberais e o nazi-fascismo, “[encontrava] eco na divisão da elite dirigente e da opinião pública no Brasil”. Com a diluição da convergência ideológica, o governo brasileiro passou a utilizar-se dos elementos pragmáticos, podendo então ser percebido através da tentativa de manter tanto o acordo comercial de 19359 com os Estados Unidos, quanto os acordos de „marcos de compensação‟ com a Alemanha nazista (RICUPERO, 2006, p. 22). Por outro lado, durante a década de 1930 verificou-se a tentativa de dar continuidade às políticas de Rio Branco, principalmente no tocante à política de amizade com as nações americanas – leia-se Estados Unidos (CERVO; BUENO, 1986, p. 68). As oligarquias que antes comandavam pretendiam, na década de 1930, reconstruir o Estado nos velhos moldes. Opondo-se a essas ideias estavam os tenentes que passaram a apoiar Getúlio Vargas, sendo sua meta aumentar o poder central do governo em todas as esferas possíveis. O desenrolar de tal objetivo teve início durante a década de 1920, quando vários grupos já haviam mostrado descontentamento com relação ao governo oligárquico (PRIORI; VENANCIO, 2010, p. 248). Na década seguinte Vargas dissolveu o Congresso Nacional assumindo os poderes executivo e legislativo. No campo econômico ratificou a importância do café, evitando o excesso de 9 Acordo baseado no princípio da Nação Mais Favorecida 26 demanda e assegurando a manutenção dos preços estabelecidos (FAUSTO, 2002, p. 186). Nas palavras de Oliveira (2005, p. 45): O esquema da política exterior dos anos 20, voltado para as relações privilegiadas com os Estados Unidos e o apoio financeiro inglês no sentido de manter os preços do café, não se revela adequado na década seguinte. Vargas chegou ao poder com a responsabilidade de proceder a nova adequação entre as necessidades sociais e as políticas públicas: emprego para as massas urbanas, indústrias para os operários e burguesia nacional, modernos meios de segurança para as Forças Armadas, mercados externos para produtos agrícolas, ferro e aço para mover o sistema de seu conjunto. Durante a primeira metade da década de 1930 houve um grande surto de industrialização, acompanhado por uma onda nacionalista apoiada tanto pelo Partido Comunista Brasileiro, quanto pelo Integralismo e também pelo Centro Liberal (JAGUARIBE, 2006, p. 3). Boris Fausto (2002, p. 189 e 293) ressalta que de 1930 a 1934, dois pontos interrelacionados são importantes para a definição do processo político brasileiro: o tenentismo e a luta entre o poder central e os grupos regionais. A década de 1930 provocou mudanças sociopolíticas no Brasil: o que antes era conhecida como a sociedade de notáveis, passou a dar lugar à classe média e à elaboração da Constituição de 1934, que estabeleceu uma república federativa baseada na Constituição alemã de Weimar. Há também que se ressaltar que: “o fortalecimento das Forças Armadas, especialmente do Exército, caracterizou a história dos anos 1930-1945. Ele se expressou pelo crescimento do número de efetivos, pelo reequipamento e pela obtenção de posição de prestígio” (FAUSTO, 2002, p. 196). No entanto esta organização militar não se tornou coesa, o que possibilitou o surgimento de um grupo que apoiava Vargas, sendo este chefiado principalmente por: (...) Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. Góis era um formulador da política do Exército e Dutra o principal executor. Os dois monopolizaram os principais cargos militares depois de 1937. Góis foi chefe do Estado-maior de 1937 a 1943; Dutra foi ministro da Guerra 27 de 1937 a 1945, quando se afastou para concorrer à Presidência da República (Idem, ibidem). Deste modo, é possível notar que no contexto político brasileiro onde as tensões entre esquerda (Aliança Nacional Libertadora) e a direita (Integralismo), somadas à intentona comunista de 1935, proporcionaram um clima propício à instituição do Estado Novo (JAGUARIBE, 2006, p. 4). 2.2 A Era Getúlio Vargas, a Consolidação do Estado Novo e as Políticas Adotadas Segundo Fausto (2002, p. 200), “no dia 10 de novembro de 1937, tropas da polícia militar cercaram o congresso e impediram a entrada dos congressistas”, dando a Vargas o poder para estabelecer uma nova ordem política, a chamada ditadura do Estado Novo: O regime foi implementado no estilo autoritário (...). O movimento popular e os comunistas tinham sido abatidos e não poderiam reagir; a classe dominante aceitava o golpe como (...) inevitável e até benéfico. O Congresso dissolvido submeteu-se quando vários de seus colegas estavam presos (Idem, ibidem). Contudo, o Estado Novo não representou um corte integral nas políticas até então adotadas, uma vez que diversas de suas instituições e modus operandi datavam do período compreendido entre 1930 a 1937; principalmente no tocante às relações comerciais que continuaram baseadas nas exportações e adoção da prática de substituição de importação (Idem, ibidem, p. 201-203). No entanto, de 1937 a 1945, Vargas com suas ações que muito se assemelhavam aos ideais fascistas europeus, “torna-se um chefe militar em escala nacional” (PRIORI; VENANCIO, 2010, p. 253). Vargas tinha como ideal centralizar todas as ações de política econômica, paralelamente à defesa do setor cafeeiro. Assim, as medidas implementadas provocaram mudanças e reajustes nas relações de diferentes classes e segmentos em relação ao Estado e também alterou “a natureza do próprio Estado, do sistema institucional e do processo político” (MENDONÇA; PIRES, 2002, p. 210). 28 No aspecto socioeconômico o governo de Vargas representou uma aliança entre a burguesia industrial e a burocracia civil e militar, tendo como objetivo semelhante promover a industrialização brasileira, sem que houvesse danos gravosos à sociedade (FAUSTO, 2002, p. 201). Em outras palavras, “(...) por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. (...) Pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassa a agrícola como principal atividade da economia” (PRIORI; VENANCIO, 2010, p. 254). As Forças Armadas exerceram sua influência no governo através de diversos organismos técnicos e sua coesão ocorria em torno de um objetivo comum: a modernização do país segundo o modelo autoritário. A partir de 1942, com a entrada norte-americana na Segunda Guerra Mundial e com o consequente apoio brasileiro ao país, tanto Dutra quanto Góis Monteiro passaram a se opor ao apoio, sendo considerados dentro das Forças Armadas, praticantes de atividade subversiva (FAUSTO, 2002, p. 203). Durante os anos de 1938 a 1942, houve melhoras nas relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, inclusive com a assinatura de diversos tratados e, principalmente, com a implementação da missão Aranha (CERVO; BUENO, 1986, p. 72). Fausto (2002, p. 209) afirma que analisando o período de 1930 a 1945, a política externa brasileira pode ser compreendida através de sucessivos “alinhamentos e realinhamentos” que colocaram o Brasil na rota das principais potências mundiais. Em outros termos: A crise mundial acentuou o declínio da hegemonia inglesa e a emergência dos Estados Unidos. Isso se deu, sobretudo a partir do momento em que as medidas do presidente Roosevelt, de combate à crise, começaram a surtir efeito. Ao mesmo tempo, surgiu outro competidor na cena internacional – a Alemanha nazista, a partir de 1933. Diante desse quadro, o governo brasileiro adotou uma orientação pragmática; tratou de negociar com quem lhe oferecesse melhores condições de tirar vantagem da rivalidade entre as grandes potências (Idem, ibidem). Como decorrência destas mudanças, a política externa brasileira passou a envolver-se mais com questões que tangenciavam os países latino-americanos, nunca deixando de lado, entretanto, as relações com os Estados Unidos, “(...) o Brasil substitui 29 o alinhamento automático por uma política mais pragmática, levando em conta seus interesses junto à Alemanha (...)” (JAGUARIBE, 2006, p.4). No âmbito comercial, as relações entre o Brasil e a Alemanha aumentaram principalmente como decorrência do comércio compensado, levando os alemães a comprarem produtos de procedência brasileira devendo, então, haver a reciprocidade brasileira. Não tardou até que a presença comercial alemã no Brasil passasse por um grande crescimento que afetou, dentre outras coisas, a posição comercial norteamericana (CERVO; BUENO, 1986, p. 71). O período de 1934-1940 caracterizou-se pela crescente participação da Alemanha no comércio exterior do Brasil. Ela se tornou a principal compradora do algodão brasileiro e o segundo mercado para o café. Foi sobretudo no setor de importações que a influência alemã cresceu (...). As transações com a Alemanha eram atraentes não só para (...) grupos exportadores como também para os que defendiam a necessidade de modernizar e industrializar o país. Os alemães acenaram sempre com a possibilidade de romper a linha tradicional do comércio exterior das grandes nações (...) (FAUSTO, 2002, p. 202). Conforme Hélio Jaguaribe (2006, p. 4), “a política externa do Estado Novo é, (...) marcada por deliberada ambiguidade. O regime de Vargas, embora (...) distante do nazi-fascismo (...) era (...) próximo ao estadismo burocrático de Salazar”. Assim, é possível afirmar que Vargas não pretendia identificar-se com o Eixo, principalmente em decorrência da política de aproximação com os Estados Unidos; nem mesmo desejava tornar-se seu inimigo. Diante do avanço alemão, os Estados Unidos adotaram uma política combinada de pressão e ao mesmo tempo cautela. Enquanto grupos econômicos norte-americanos desejavam a aplicação de medidas de represália contra o Brasil; Roosevelt preferiu se opor a qualquer medida extrema que pudesse aproximar ainda mais o país da Alemanha (FAUSTO, 2002, p. 209-210). Vargas, diante de tamanha ambiguidade, em discurso proferido em 11 de junho de 1940, ao mesmo tempo em que “elogiou de modo eloquente os sistemas totalitários de governo e previu o fim das democracias”, também “(...) garantiu às autoridades norte-americanas que o Brasil não se afastaria da solidariedade pan-americana” 30 (CERVO; BUENO, 1986, p. 72-73). Desta forma, durante a Segunda Guerra Mundial, o presidente brasileiro demonstrou apoio tanto ao Eixo, quanto às nações democráticas: A derrota da França, com a ocupação de grande parte de seu território, parece indicar uma tendência à vitória da Alemanha. Pronunciamentos de Vargas em 1941 abrem espaço para um possível futuro ajustamento do Brasil ao Eixo. Na medida, entretanto, em que a resistência soviética logra deter o avanço germânico e em que a intervenção americana desequilibra as relações de força a favor dos Aliados, Vargas compreende que o Eixo perderá a guerra e passa a apoiar a coligação democrática (JAGUARIBE, 2006, p. 4). Embora no início da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos permanecessem neutros, tinham conhecimento de que a situação na América Latina era preocupante, dada a crescente presença alemã. Assim, segundo Oliveira (2005, p. 49): “Se, por um lado, a guerra aumentou a polarização absoluta tornando a neutralidade difícil para os países pequenos, por outro lado, dava inesperada importância a alguns deles”, sendo este o caso brasileiro, principalmente durante a década de 1940, quando os políticos brasileiros tiveram que demonstrar uma posição menos neutra e mais parcial a um dos lados. Para Moura (1991, p. 26), os interesses alemães na América Latina se justificariam uma vez que haveria ênfase no autoritarismo antiparlamentar, protecionismo econômico e nacionalismo militar, em outras palavras: Os planos alemães para a América Latina eram de natureza principalmente comercial. A Alemanha desejava garantir novos clientes para melhorar sua situação econômica interna (...). A partir do „Novo Plano‟ ou („Plano Schacht‟) de 1934, o governo alemão adotou uma série de medidas protecionistas, como a criação de uma moeda especial, a prática de dumping e acordos bilaterais de compensação. Para os países latino-americanos envolvidos nessa política econômica, seus efeitos foram de grande importância, já que criaram opções para um crescente comércio exterior. Outro ponto que a Alemanha buscava alcançar na América Latina dizia respeito às influências políticas e ideológicas. Estas influências ocorriam através de “canais diplomáticos e econômicos”, capazes de criar um ambiente propício à entrada alemã na 31 região. Com relação à influência militar alemã nos países latino-americanos, ela ocorreu através de “missões militares para treinamento de exércitos latino-americanos” (Idem, ibidem, p. 27). Assim, a Alemanha e os Estados Unidos tinham conhecimento de que a recuperação de suas economias dependeria, em grande escala, da reativação do comércio mundial, sendo que este estaria principalmente vinculado à América Latina (PINHEIRO, 2004, p. 22). Para Oliveira (2005, p. 46), a política externa brasileira a partir de 1930 passou então a ser influenciada de forma direta por fatores de caráter interno, onde “a disputa pelo setor tradicional, agroexportador e defensor do livre comércio e a burguesia industrial favorável à proteção do mercado nacional como (...) alavanca do desenvolvimento industrial”. Além disso, a política externa também sofria pressões vindas de fora de sua fronteira, principalmente como decorrência dos dois modelos de poder vigentes e suas respectivas formas de defesa do livre mercado ou das práticas protecionistas. Getúlio Vargas vendo a crescente importância da América Latina no Sistema Internacional, principalmente na década de 1930, passou a mover-se de forma mais cuidadosa, sabendo que as conexões estabelecidas poderiam ser de extrema importância ao país. Até o momento derradeiro, Vargas optou por aliar-se a ambos os lados, o que ocasionou em uma elevação no poder de barganha internacional do Brasil. Dentro deste contexto, a América Latina passou a constituir uma área de reforço e manutenção de “seus sistemas de poder” (Idem, ibidem, p. 44-45). Do ponto de vista político e econômico, por um lado, a Grã-Bretanha, já enfraquecida, tentava assegurar sua posição de domínio, enquanto os Estados Unidos e a Alemanha “constituíam potências emergentes, cujo crescimento as colocava em posições antagônicas, no que se refere à América Latina”. A América Latina não era apenas o palco para uma guerra comercial, era também o cenário para conflitos políticos e ideológicos (MOURA, 1991, p. 26). Já os Estados Unidos, durante o mesmo período, tinham a necessidade de buscar outras economias que auxiliassem o país a sair da situação da recessão, visando sua recuperação e seu crescimento. A América Latina “despontava como um elementochave em função de seu papel de fornecedor de matérias-primas e de importação de 32 manufaturados, além de área para investimentos”; além disso, os Estados Unidos praticavam a defesa do livre-comércio, visando o total escoamento de seus produtos manufaturados e matérias-primas para todo o mercado mundial (OLIVEIRA, 2005, p. 45). Para Letícia Pinheiro (2004, p. 22), assim como para Moura (1991, p. 26), “os Estados Unidos buscavam garantir sua liderança na região pelo livre-comércio e o culto à liberal democracia”. Internamente outro conflito aflorava: se por um lado Osvaldo Aranha e Valentim Bouças alinharam-se aos norte-americanos; por outro lado, aqueles mais ligados à cúpula militar, como Góis Monteiro e Dutra, preferiram apoiar a Alemanha (FAUSTO, 2002, p. 210). Essa situação de instabilidade logo foi resolvida: com a eclosão do conflito mundial, o bloqueio inglês fez cair a participação da Alemanha no comércio com a América Latina, contudo, a Inglaterra não possuía os requisitos essenciais para que os novos mercados fossem supridos e é neste contexto que a presença norteamericana nos países latino-americanos tem uma grande ascensão. Não tardou até que estrategistas norte-americanos lançassem as Conferências Pan-americanas visando a defesa da América. Outra importante ação aplicada no período abordou a questão econômica que seria seguida pelo governo norte-americano, atitude que fez o país voltar suas atenções aos produtos estratégicos essenciais à guerra (FAUSTO, 2002, p. 210-211). As autoridades do Estado Novo tinham consciência de que qualquer forma de envolvimento brasileiro na guerra poderia representar uma ameaça à sobrevivência do regime, uma vez que seus princípios assemelhavam-se ao fascismo e não aos ideais defendidos pelas democracias. Para resolver essa questão, o governo brasileiro teve que adotar um novo posicionamento: No âmbito externo, apoiava os Aliados, em nome das democracias e liberdades; no âmbito interno, em nome da mesma defesa das democracias e das liberdades, mantinha-as restringidas, estimulando a mobilização popular contra os inimigos „totalitários‟ (...) sem, contudo, ameaçar o regime (FERRAZ, 2005, p. 21). Entretanto, em 1942, durante a Reunião de Consulta no Rio de Janeiro, Vargas, apesar da oposição de Dutra e Góis Monteiro, rompeu com o Eixo e aconselhou os demais governos do continente a abandonem as relações diplomáticas com Alemanha, 33 Itália e Japão (MOURA, 2006, p. 83). Deste modo, segundo Ricupero (2006, p. 22) e Tullo Vigevani (2006, p. 74-75), a partir do rompimento com o Eixo o engajamento do Brasil foi concreto e significativo, seja através de tropas, bases ou produtos estratégicos disponibilizados aos Estados Unidos. Moura (2006, p. 83) afirma que esta Conferência no Rio de Janeiro foi um marco significativo ao Brasil, uma vez que intensificou as negociações políticas e econômicas com aquele país, gerando por fim, relações especiais entre eles. Para Francisco Ferraz (2005, p. 38-39), a importância da Conferência reside no fato de que romper relações diplomáticas com o Eixo não significava apenas fechar embaixadas e consulados, na verdade esta atitude representava um condicionamento do comércio e defesa interna aos interesses dos Aliados. O ano de 1942, conforme Moura (2006, p. 83), representa o período mais importante para a aproximação do Brasil com os Estados Unidos, uma vez que se daria o rompimento com o Eixo; a consolidação de acordos - bilaterais - econômicos e militares entre os países; a cobeligerância contra o Eixo; a declaração de guerra brasileira contra a Alemanha e Itália; e, por fim, a decisão de concretização de uma força expedicionária brasileira. Principalmente a Itália e também a Alemanha não tardaram a reagir à aproximação entre Brasil e Estados Unidos, afundando diversos navios nacionais mercantes e de passageiros; atitude esta que impulsionou a entrada brasileira no conflito (CERVO; BUENO, 1986, p. 75). Para os Estados Unidos, essa aproximação com a América Latina, e especialmente com o Brasil, foi de extrema importância na medida em que possibilitou o desenvolvimento de três bases essenciais aos norte-americanos: aquisição de materiais estratégicos; a utilização de bases militares no nordeste do Brasil e a força conjunta entre Brasil e Estados Unidos para o patrulhamento do Atlântico Sul; e o apoio político ao governo brasileiro (MOURA, 1991, p. 38). É neste contexto que os Estados Unidos começam a lançar os fundamentos da Política de Boa Vizinhança, pregando uma maior colaboração econômica e militar em conjunto a um incremento das relações diplomáticas como elemento capaz de reduzir a influência europeia na América Latina, assegurando, a influência americana na região 34 (PINHEIRO, 2004, p. 24) e, ainda encorajando a estabilidade política dos países latinoamericanos (MOURA, 1991, p. 28). A Política da Boa Vizinhança acabou por evidenciar os interesses norteamericanos na região, ou seja: É bem verdade que os EUA precisavam de colaboração estrita dos vizinhos em mais de um aspecto: 1º) precisavam de suas matérias primas industriais, especialmente materiais estratégicos (...); 2º) precisavam de bases terrestres e navais para assegurar (...) a defesa do hemisfério (...); 3º) precisavam de apoio político, que se manifestasse em respaldo às posições internacionais dos EUA e em combate aos agentes e colaboradores do Eixo atuando em todo o continente (Idem, ibidem, p. 32). Em meio a esse panorama, com Getúlio Vargas no poder e consolidando o Estado Novo, a ascensão de Carmen Miranda ganhou forma. Rapidamente a Pequena Notável se tornou a mais notória representante cultural brasileira no cenário internacional, sendo considerada uma personagem essencial ao estreitamento das relações entre o Brasil e os Estados Unidos. 3. A PEQUENA NOTÁVEL E AS RELAÇÕES BRASIL ESTADOS UNIDOS Neste capítulo integro todas as ideias até aqui apresentadas, agregando a atuação de Carmen Miranda no período da Segunda Guerra Mundial como personagem relevante nas relações entre os países. Para tanto, será apresentado, de forma breve, apenas os pontos de relevância para o trabalho, um resumo da vida da Pequena Notável. Também serão discutidos alguns conceitos essenciais para que o objetivo da monografia seja alcançado. 3.1 Vida e Obra de Carmen Miranda Maria do Carmo Miranda da Cunha, a Carmen Miranda, nasceu em Portugal no dia 9 de fevereiro de 1909 e logo criança, em 1910, veio com sua mãe e irmãos para o Brasil. Viveu sua infância no Rio de Janeiro, no bairro da Lapa, na Travessa do 35 Comércio, onde a família mantinha uma hospedaria. Quando jovem Carmen trabalhou em diversos estabelecimentos comerciais, alguns já relacionados ao ramo da moda, até firmar-se como cantora com o lançamento de Tai10 em 1930, o que lhe deu a oportunidade de trabalhar no rádio e cinema nacionais. Em 1939, já consagrada nos meios de comunicação, principalmente no rádio e em revistas periódicas, deixou o Brasil para trabalhar nos Estados Unidos, onde permaneceu até o fim da vida, em 1955 (GARCIA, 2004, p. 13). Foi casada com David Sebastian, um americano com quem teve um relacionamento extremamente conturbado e que após sua morte deixou a família Miranda sem grande parte dos bens que Carmen havia conquistado ao longo da vida. Figura 1 – Maria do Carmo Miranda da Cunha. Fonte: arquivo pessoal. Carmen tinha um it e isso era fácil de perceber, seja por sua imagem ou por seu “jeito de cantar: por seu visual, interpretativo, cheio de ademanes vocais e um jogo de mãos e braços” (CASTRO, 2005, p. 39). Ainda nas palavras de Ruy Castro (Ibidem, p. 10 Marcha-canção escrita por Joubert de Carvalho e gravada pela gravadora Victor 36 92), “aos olhos e ouvidos do público, era a primeira mulher brasileira a criar uma personalidade pública – e viver dela”. Quando chegou aos Estados Unidos, Carmen acompanhada do Bando da Lua11 ocupava uma posição de celebridade nacional, não tardou até que passasse a ser reconhecida também como uma estrela naquele país, onde coube a ela a difícil missão de representar o Brasil no cenário internacional (MENDONÇA, 1999, p. 9-10). Nos Estados Unidos a artista atuou na Broadway, sendo South American Way sua primeira canção em um filme estrangeiro. Enquanto contratada da 20th Century-Fox, de 1941 a 1946, atuou em dez produções cinematográficas. Com o término do contrato atuou em mais quatro produções, realizando, durante todo o tempo milhares de shows pelos Estados Unidos e também em diversos outros países (GARCIA, 2004, p. 14) 12. Para Eduardo Dussek (2000, p. 15), Carmen virou um símbolo turístico-musical que mais do que ninguém foi capaz de representar o Brasil diante do mundo. A artista foi a mais autêntica e perfeita imagem da música, por seu visual espalhafatoso e coreografia exótica. Aquela mulher pequenina, explosiva e tropical era danada e podia ficar enorme! Usou o seu grande carisma, sua autenticidade e um incrível senso de oportunidade de marketing, para impulsionar-se como a primeira brasileira candidata a virar a cara do Brasil (Idem, ibidem, p. 16). Após o sucesso obtido por Carmen no exterior, tendo inclusive a oportunidade de cantar no aniversário do sétimo ano do governo do presidente Franklin Roosevelt na Casa Branca, a Pequena Notável voltou ao Brasil, em 1940 para se apresentar no Cassino na Urca onde a nata da sociedade carioca estaria presente. Animada com a oportunidade, nem se deu conta de que iniciara a apresentação cumprimentando o público em inglês, para desagrado de seus expectadores. Nesta apresentação, Carmen 11 O Bando da Lua era o grupo musical que tocava junto com Carmen Miranda. Quando a artista se mudou para os Estados Unidos fez questão de que a banda fosse com ela, chegando a pagar algumas das passagens dos integrantes no navio. 12 No Brasil atuou em: O Carnaval Cantado de 1932; A Voz do Carnaval (1933); Alô, Alô Brasil (1935); Estudantes (1935); Alô, Alô Carnaval! (1935); Banana da Terra (1938). Nos Estados Unidos – 20th Century-Fox; Serenata Tropical (1940); Uma Noite no Rio (1941); Aconteceu em Havana (1941); Minha Secretária Brasileira (1942); Entre a Loira e a Morena (1943); Quatro Moças num Jeep (1943); Serenata Boêmia (1944); Alegria, Rapazes! (1944); Sonhos de Estrela (1945); Se Eu Fosse Feliz (1946). Outras produções nos Estados Unidos: Copacabana (1946); O Príncipe Encantado (1948); Romance Carioca (1950); Morrendo de Medo (1952). 37 cantou diversas músicas em inglês, para descontentamento do público que via na artista todos os símbolos tipicamente nacionais e, portanto, a língua por ela cantada deveria ser o português. Com o final do show Carmen ficou arrasada, não entendia como sua nação de coração tinha sido capaz de rejeitá-la. A reação veio em forma de música: Disseram que voltei americanizada13 era uma resposta a toda a sociedade e jornais que a haviam criticado. Na música a Pequena Notável expressava sua frustração com a reação do público brasileiro: Me disseram que eu voltei americanizada. Com o burro do dinheiro. Que estou muito rica. Que não suporto mais o breque do pandeiro. E fico arrepiada ouvindo uma cuíca. Disseram que com as mãos. Estou preocupada. E corre por aí. Que eu sei certo zum zum. Que já não tenho molho, ritmo, nem nada. E dos balangandans já "nem" existe mais nenhum. Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno. Eu posso lá ficar americanizada. Eu que nasci com o samba e vivo no sereno. Topando a noite inteira a velha batucada. Nas rodas de malandro minhas preferidas. Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you. Enquanto houver Brasil. Na hora da comidas. Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu. Apesar da volta por cima, Carmen Miranda se sentiu traída por sua pátria, isolando-se nos Estados Unidos de onde voltaria apenas mais uma vez ao Brasil com vida, em 1954, oportunidade que aproveitou para realizar uma reabilitação para que pudesse se livrar dos problemas com álcool e remédios. Tamanho seu sucesso internacional, conquistou também Hollywood, o que lhe conferiu um lugar na calçada do Chinese Theater – a calçada da fama (MENDONÇA, 1999, p. 95). 13 Música de Luis Peixoto e Vicente Paiva. 38 Em 6 de agosto de 1955 o Brasil, mas principalmente o Rio de Janeiro “parou sob os acordes de „Adeus Batucada‟”. Maria do Carmo Miranda da Cunha morreu, eternizando, porém, a Carmen Miranda, para sempre a Pequena Notável (GILMONTEIRO, 1989, p.1). Figura 2 – O adeus a Carmen Miranda: a mobilização e o reconhecimento nacional em torno da morte da cantora do it verde e amarelo. Fonte: EGO GALERIA DE FOTOS – CARMEN MIRANDA. Disponível em: http://ego.globo.com/Gente/Fotos/0,,GF67797-9801,00CARMEN+MIRANDA+FARIA+ANOS+NO+DIA+VEJA+FOTOS+DE+SUA+TRAJETORIA .html#fotogaleria=11. Acessado em 31 de outubro de 2010. 3.2 Soft power: o estilo e a Influência de Carmen Miranda na Cultura e no Comportamento Norte-Americano A Pequena Notável foi e ainda é considerada a maior expressão da música popular brasileira entre as artistas da década de 1940. Não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, foi tida como a rainha absoluta da chamada “Fase de Ouro” da música brasileira, gravando sambas, marchas e choros. Mesmo os discos que gravou naquele país não negavam sua paixão pelo Brasil, uma vez que não era raro 39 encontrar músicas gravadas em português em seus álbuns americanos (SAIA, 1984, p.10). Ainda 1934 Carmen passou a fazer uso de suas plataformas altíssimas (afinal, media apenas 1,52 metro) e de seus turbantes, que apesar de já utilizados por alguns artistas, não ganharam tanta notoriedade como quando Carmen começou a usá-los, já que ela os adornava de tal maneira que estes adquiriam uma personalidade e um caráter vanguardista únicos. Estes elementos do vestuário tornam-se o estereótipo de Carmen Miranda, nas palavras de Castro (2005, p. 110): “a combinação de turbante e plataforma, aliada à brejeirice radical, deu a Carmen o toque absoluto, alegria e extravagância que passou a caracterizá-la”. Antes de alcançar o reconhecimento nos Estados Unidos, a Pequena Notável passou a ser notória na América do Sul, segundo Dulce Damasceno (1986, p. 102), Carmen “[tornou-se] estrelíssima do „show business‟ sul-americano”; fato comprovado durante turnê em 1936 à Argentina, ocasião em que suas roupas fizeram tanto sucesso entre as mulheres que elas fizeram filas na saída de seu camarim com o objetivo de tocar, observar e copiar suas vestimentas (Idem, ibidem, p. 142). Carmen, desde o seu último filme brasileiro Banana da Terra, lançou seu traje de baiana revolucionando a moda mundial com seu estilo brasileiro; assegurando que seu Miranda Look (SAIA, 1984, p. 7) permanecesse a seu lado durante toda sua trajetória artística. A roupa de baiana surgiu com a música O que é que a baiana tem de Dorival Caymmi e sua repercussão foi imediata: se antes essa fantasia era pouco utilizada nos bailes de carnaval da alta sociedade, por ser considerada simples e até mesmo vulgar, com Carmen a mudança foi radical; a fantasia passou a ser disputadíssima entre os bailes da alta sociedade, inclusive passando a ser utilizada por homens, mulheres, gays e crianças: O que é que a baiana tem? O que é que a baiana tem? Tem torso de seda tem (tem) Tem brinco de ouro tem (tem) Corrente de ouro tem (tem) Tem pano da Costa tem (tem) Tem bata rendada tem (tem) Pulseira de ouro tem (tem) E tem saia engomada tem (tem) 40 Tem sandália enfeitada tem (tem) E tem graça como ninguém...! ... Um rosário de ouro, uma bolota assim Ai, quem não tem balangandãs não vai no Bonfim Ôi, quem não tem balangandãs Não vai no Bonfim Ôi, não vai no Bonfim... Figura 3 - A baiana de Carmen Miranda – sua interpretação colorida, exuberante e alegre do Brasil Fonte: CASTRO, 2005, p. 2. Para Alessander Kerber (2005, p. 130), o impacto deste samba para a identidade cultural brasileira é bastante profundo, uma vez que retrata a miscigenação encontrada no Brasil: O pano da Costa, lembrando a herança africana, o Bonfim, que lembrava o candomblé, logo após o rosário de ouro, que lembrava a Igreja Católica. Enfim, a baiana seria a representação que melhor expressaria essa forma de síntese do Brasil. E, importante, uma síntese harmônica, que representava as camadas populares brasileiras em 41 convívio pacífico com as elite, diferentemente do malandro, que era a representação daquelas camadas em forte atrito com estas e com toda a nova organização político-econômico-social que se estabelecia. Figura 4 – A baiana ganha destaque na imprensa – Capa da revista Click, Estados Unidos, 1939. Fonte: CARMEN MIRANDA: A Pequena Notável. Disponível em: http://www.carmenmiranda.hpg.ig.com.br/cm_galeria.htm. Acessado em 31 de outubro de 2010. A partir de então Carmen aderiu a seu guarda-roupa diversas roupas de baiana, algumas adotavam uma identidade mais estilizada, outras lembravam o estilo de fantasias e outras seguiam uma linha mais formal e clássica, quase como roupas utilizadas em bailes de gala. Os turbantes começaram a crescer, acomodando cada vez mais cestinhas e frutas, que por vezes eram substituídas por arranjos de folhas. Nas palavras de Castro (2005, p. 173): “a palavra mágica eram os balangandãs: se eles existiam, tudo era permitido. A baiana tornou-se apenas um veículo para o que se quisesse pôr em cima dela”: 42 A baiana da Banana da terra foi a primeira de Carmen e uma criação dela própria, seguindo o figurino da letra de Caymmi. E o que é que essa baiana tinha? Tudo o que a letra dizia, mas foram os toques pessoais de Carmen que fizeram a diferença. O turbante ainda era modesto para os padrões futuros – a cestinha, menor que um tamborim – mas já levava apliques de pérolas e pedras. Os brincos enormes eram duas argolas de contas. O xale era de renda, com fios dourados, disparando uma profusão de brilhos para a câmera. A bata e a saia eram de cetim, em listras verdes, douradas e vermelho-fúcsia (...). A bata muito sensual, deixava entrever os ombros e o estômago (mas não o umbigo) e quase desaparecia sobre a gargantilha dourada, com colares de contas graúdas e a torrente de balangandãs: rosários, correntes e bolotas „de ouro‟ como usadas pelas grandes negras baianas (...). A saia (...) dispensava as anáguas e tinha um caimento natural até o chão (...) (Idem, ibidem, p. 172). Figura 5 – As diferentes interpretações de Carmen Miranda para seu turbante – a reinvenção do turbante. 43 Fonte: TIERNEY, 1982, p. 2-3, 6-7. Com a chegada de Lee Shubert14 ao Rio de Janeiro, alguns dias antes do carnaval de 1939, surgiu a oportunidade da ascensão internacional da Embaixatriz do Samba. Shubert foi levado ao Cassino da Urca onde a artista estava se apresentando. A surpresa ao se deparar com Carmen não poderia ter sido maior: “(...) tinha torso de seda (...), pano da costa, bata rendada e saia engomada também. Brinco, corrente, pulseira, rosário de ouro. Tinha sandália enfeitada. E frutas (...). Mas Carmen tinha, sobretudo, 14 Levi „Lee‟ Shubert nasceu em 25 de março de 1871 e faleceu em 25 de dezembro de 1953. Era dono de teatros, operador e produtor de peças, o que lhe conferiu a posição de magnata no show business de Nova Iorque. 44 graça como ninguém”. Shubert ficou maravilhado com a artista, para ele o Brasil todo estava cantando, dançando, gesticulando e rindo na sua frente, ela era a representação personificada do Brasil (MENDONÇA, 1999, p. 18-19). Shubert registrou o impacto. Como não entendia o que Carmen estava dizendo, foi o geral que o interessou: a gesticulação da cantora, seus olhos, seu magnetismo, seu ritmo e aquela roupa maluca, com o turbante, os colares e os sapatos. Pela excitação provocada por Carmen, Shubert concluiu que a ida à Urca para vê-la já tinha se justificado. Mas daí a contratá-la ia uma certa distância: o que fazer em Nova York com uma artista sul-americana que ninguém conhecia e que, com toda a certeza, não falava inglês? Se Lee Shubert (...) não soubesse a resposta, ninguém mais saberia (CASTRO, 2005, p. 182). Shubert, ainda naquele ano, a contratou para ser uma das principais intérpretes da revista musical Streets of Paris, na Broadway. A figura de Carmen fez sucesso em todo os Estados Unidos. Para os americanos era a primeira vez que eles tinham contato com “uma exuberante criatura, exoticamente vestida, „cantando‟ com as mãos, com os olhos, com os pés e com os quadris”. Mesmo que Carmen não entendesse ainda o inglês e seu público não soubesse uma palavra de português, foi considerada “a rainha da comunicação internacional” (BRITO, 1986, p. 103). Quando em maio, Carmen Miranda embarcou rumo aos Estados Unidos, tinha como missão introduzir o samba na Broadway, sendo consagrada, a partir de então, a Embaixatriz do Samba. Vestindo suas baianas e usando seus trejeitos extravagantes, Carmen conseguiu atender às necessidades do povo norte-americano de consumir o exótico. Seus trajes, seu jeito único de cantar, seus gestos e sua dança, fizeram com que a Pequena Notável conquistasse a glória (SAIA, 1984, p.11). A cantora do it verde e amarelo quando partiu para sua carreira internacional tinha um compromisso inicial de propagar o gênero musical de que ela tanto gostava (o samba) para o povo norte-americano, adotando consequentemente uma posição de representante da identidade cultural em terras estrangeiras (GARCIA, 2004, p. 186). Ainda segundo Luis Henrique Saia (1984, p. 41), sua chegada foi manchete em todos os meios de comunicação daquele país, sendo vista como a sensação do momento. Fruto planejado ou não da Política de Boa Vizinhança, Carmen Miranda foi recebida de braços abertos por toda a colônia de Hollywood. Castro (2005, p. 201) relata de forma 45 muito divertida o impacto da chegada do navio que levava Carmen do Brasil à Nova Iorque. Quando Miranda desceu da embarcação, pronta para realizar sua primeira entrevista nos Estados Unidos, a cantora sentou-se em um de seus baús e na primeira oportunidade que lhe deram de falar inglês não perdeu a chance: Ao responder sobre que palavras sabia dizer na língua de seu novo país, Carmen disparou: „I say money [pronunciando mónei], money, money. I say money, money, money and I say hot dog. I say yes, and I say no, and I say money, money, money. And I say turkey sandwich, and I say grape juice. Em Streets of Paris Carmen interpretava South American Way, canção originalmente composta em inglês, mas que acabou sendo adaptada para que Carmen a cantasse em português: Ai, ai, ai, ai É o canto do pregoneiro Que com sua harmonia Traz alegria In South American Way Ai, ai, ai, ai E o que traz no seu tabuleiro Vende pra ioiô Vende pra iaiá In South American Way E vende vatapá E vende caruru E vende munguzá E vende umbu No tabuleiro tem de tudo que convém Mas só lhe falta, ai, ai berenguendéns Ai, ai, ai, ai É o canto do pregoneiro Que com sua harmonia Traz alegria In South American Way Ai, ai, ai, ai Da letra em português apenas o verso-título ao fim da primeira estrofe foi conservado, “verso esse que Carmen, sem querer pronunciou „Souse American Way‟ – e provocou uma explosão de riso em todos os americanos no recinto. „Souce‟ queria dizer bêbado”. Apesar da falha, o público a recebeu muito bem e este erro de pronuncia acabou ficando conhecido como uma das marcas de Carmen Miranda, que mesmo 46 meses depois, quando já sabia falar inglês perfeitamente, durante suas apresentação ainda carregava o sotaque e pronunciava muitas vezes algumas palavras de maneira incorreta, como forma de evidenciar sua origem latino-americana (Idem, ibidem, p. 206). A artista deixou marcas que ultrapassaram os limites musicais. Foram seus trajes sociais e figurinos incrementados que consagraram a moda brasileira e os estilos que a compõem, dando a ela o reconhecimento e permitindo ao Brasil cada vez mais proeminência internacional. As lojas luxuosas da Quinta Avenida, em Nova Iorque, substituíram as criações dos já consagrados estilistas como Dior e Chanel pelas fantasias de baiana de Carmen, desde os sapatos aos balangandãs, ela estava por toda parte (BRITO, 1986, p. 103). Nos letreiros da Broadway e nas melhores casas de espetáculos, Carmen Miranda era o suficiente para garantir o sucesso de qualquer espetáculo. Impulsionada por Claude Gleneker, começa a ensinar em páginas inteiras de jornais e revistas como fazer e usar um turbante e as vitrinas das lojas da 5ª avenida só mostravam trajes inspirados em seu visual: saias rodadas multicoloridas, balangandãs nos braços e pescoço, turbantes enormes enfeitados com frutas e flores, tamancos de saltos altíssimos, brilho fulgurante de lantejoulas e lamês e as unhas e os lábios vermelho-escarlate... era assim a imagem americana da badaladíssima show-woman (SAIA, 1984, p.47). De acordo com Martha Gil-Monteiro (1989, p. 90-91), diversos foram os artistas que passaram a interpretar, por conta de Carmen, uma baiana em seus espetáculos. Não tardou até que a figura da Brazilian Bombshell15 passasse a ser também associada a diversos produtos através das propagandas publicitárias: “surgiram comerciais da Cerveja Rheingold Extra Dry (...) e apareceram em profusão em publicações de moda fotos suas vestidas com seu traje e turbante de baiana” (Ibidem, p. 91), ponto de vista também apresentado por Abel Cardoso Junior (1978, p. 153) que ainda complementa: “jornais importantes dedicaram-lhe páginas inteiras – revistas de grande tiragem (...) fazem reportagens fartamente ilustradas, e mesmo outras publicações de alta roda (...) como „Vogue‟, „Esquire‟ e „Harper‟s Bazaar‟, estampam fotografias suas (...)”. Sua imagem passou a ser utilizada como um instrumento muito eficaz para o marketing: 15 Brazilian Bombshell foi um dos apelidos dados à Carmen Miranda durante sua carreira internacional. Seu significado pode ser entendido como “a explosão brasileira” ou “a grande surpresa brasileira”. 47 Figura 6 – Carmen Miranda empresta sua imagem ao Marketing – o poder da Pequena Notável em terras estrangeiras (Propaganda da cerveja Rheingold – década de 1940). Fonte: CARMEN MIRANDA: a Pequena Notável. Disponível em: http://www.carmenmiranda.hpg.ig.com.br/cm_galeria.htm. Acessado em 31 de outubro de 2010 As maiores butiques dos Estados Unidos disputavam a venda de produtos relacionados à Carmen. Ana Rita Mendonça (1999, p. 77) afirma que lojas como a Macy‟s, a Bonwit Teller e até mesmo a joalheria Leo Glass, expuseram nas vitrines a brasilidade de Carmen. Gil-Monteiro (1989, p. 91) destaca que inclusive as sapatarias já haviam adotado o estilo único das plataformas altíssimas. Figura 7 – Plataformas, balangandãs, turbantes: o it da Pequena Notável. 48 Fonte: CARMEN MIRANDA – SITE OFICIAL. Disponível em: http://www.carmenmiranda.com.br. Acessado em 31 de outubro de 2010. No Brasil a propaganda que a Brazilian Bombshlell e seu it verde amarelo faziam em terras estrangeiras era muito reconhecida no cenário nacional. Revistas da época afirmavam que Carmen estava popularizando o samba e exportando a roupa típica de baiana para outros países, possibilitando ao Brasil um reconhecimento que até então eram desconhecidos, trazendo à tona ao brasileiro um orgulho que estava, até então, escondido (GARCIA, 2004, p. 118-119). Kerber (2005, p. 122) complementa esta ideia, afirmando que “Carmen tentava se apresentar como uma síntese do Brasil”, havendo tanto por parte do público, quanto por parte do Estado um apreço a este papel. (...) começou no Brasil (...) uma valorização, pelos brasileiros, de suas frutas (...). Uma valorização, também, de suas tradições de modos tradicionais de residirem e de mobilizarem suas residências (...). E essa valorização de sentido ecológico juntou-se a da substituição de arremedos de trajos e chapéus ortodoxamente europeus por crescentes à-vontades brasileiros nos estilos dos homens, mulheres e crianças se vestirem e calçarem (FREYRE, 2009, p. 81). Avaliando a atuação de Carmen nos Estados Unidos é possível traçar um paralelo relacionando cultura e comportamento como instrumentos de política internacional, em particular quando inseridos num contexto de soft power, como foi o caso da Política de Boa Vizinhança. 49 Segundo Nye (2002, p. 36), as relações entre os Estados podem ser percebidas de duas formas distintas: de acordo com uma atuação mais bruta, através de ameaças; ou buscando uma atuação de forma indireta, ou seja, os Estados conseguem atingir seus objetivos porque outros Estados desejam acompanhá-lo, uma vez que admiram seus valores, seu nível de liberdade e prosperidade. Deste modo, é possível tanto cooptar um Estado, quanto coagi-lo. Em termos mais simples, este poder mais brando, o soft power, é capaz de seduzir e atrair, por meio da argumentação, o que invariavelmente leva a equiescência e imitação. Assim, o poder é vivenciado pela da atração ideológica e cultural, bem como pela influência e não pelo do uso da força. É a busca das partes pelo consenso, através da persuasão e atração; colocando o uso da força em segundo plano (Idem, ibidem, p. 37). Soft power é mais do que o poder de persuasão, ou habilidade de influenciar as pessoas através de argumentos, culturas e símbolos. Esta forma de poder envolve uma capacidade de atrair, sendo esta a chave fundamental que resulta na obediência sem que haja a existência de conflitos; é importante ressaltar que a forma como o Estado age e o que ele faz são essenciais para que haja a atração por parte de outros Estados. Se a Política da Boa Vizinhança dos Estados Unidos em relação ao Brasil pode ser considerada uma forma de atuação de soft power, a influência exercida por Carmen Miranda retrata todas estas premissas, uma vez que não houve apenas a intensificação cultural, econômica e política entre os países, mas também possibilitou o reconhecimento mundial da cultura e comportamento brasileiros perante o mundo, principalmente na década de 1940. A habilidade da Brazilian Bombshell para influenciar o comportamento e interesses dos cidadãos norte-americanos, é percebida de forma bastante contundente quando se trata da moda. O Miranda Look foi, e ainda é tão poderoso que seu traje de baiana sobreviveu a ela. Quando chegou nos Estados Unidos, a artista fez sucesso imediato e nas lojas, (...) os manequins tinham o rosto e os gestos da Brazilian Bombshell. Um jornal declarava (...): „Carmen Miranda introduziu em Nova Iorque alguma coisa que até agora estava faltando, alguma coisa que até neste momento era desconhecida do povo norte-americano: a dinâmica personalidade de uma sul-americana que provou não ser necessária a nudez para causar sensação. Carmen Miranda serviu igualmente para fomentar aquilo que se chamava „febre sul- 50 americana‟. E mais que tudo, por ter invadido um campo que até agora era apenas de Paris: o campo da moda feminina. Carmen introduziu os enormes e coloridos turbantes com que se apresentava na revista Streets of Paris e, desde então, os modistas passaram a desenhar os „turbantes à Carmen Miranda‟ ou „turbantes à sul-americana‟ (...) (SAIA, 1984, p.51-52). A Pequena Notável pode ser considerada uma pioneira, performista e ícone da moda de uma época. Articulou-se através do talento e do vestuário sem ter como objetivo principal revolucionar a moda, porém veio posteriormente despertar o tropicalismo16 (GUEDES et al., 2009). Seu estilo único foi o elemento impulsionador para que o mundo da moda brasileiro fosse inserido no cenário internacional, lhe conferindo cada vez mais notoriedade. Assim, Carmen se destacou como peça central na construção da imagem de moda que o Brasil adquiriu no exterior. A artista criou uma personagem colorida e alegre, que rapidamente transformouse na maior simbolização da brasilidade até então conhecido. Por ser a primeira artista latina a criar e exportar a moda brasileira aos Estados Unidos tornou-se ainda mais influente. Carmen, principalmente ao fazer uso de sua baiana, destacou-se na medida em que agregou um valor ainda maior para os elementos culturais brasileiros, ressaltando as tradições de vestuário, cultura, comunicação, comida. Neste contexto, (...) os significados inicialmente codificados nos bens culturais são selecionados e recompostos de maneiras inusitadas: uma prática de um artefato cultural reputado intrinsecamente banal ou desinteressante pode – com base em sua produção no uso, dentro de relações específicas (emocionais, cognitivas, sociais) de consumo – ser julgado como de grande originalidade e relevância cultural (FILHO, 2006, p. 31). Segundo Káthia Castilho e Marcelo Martins (2008, p. 19-28), a moda ganhou cada vez mais poder, permitindo que Carmen adquirisse um espaço maior nos diversos meios de comunicação, que iam desde revistas periódicas femininas até publicações semanais de conteúdo geral. Assim, a moda acaba por “concretizar desejos e necessidades de uma determinada época, circunscrevendo os sujeitos num determinado espaço de significação”. A moda é capaz de evidenciar a identidade da pessoa, uma vez 16 Tropicalismo: movimento cultural brasileiro que teve origem nas correntes artísticas vanguardistas e de cultura pop. Apresentou-se em diversos espectros da cultura brasileira, bem como em inovações estéticas. 51 que ela é entendida como um extensor do sujeito que a carrega. Em termos mais simples: os balangandãs, as roupas e os turbantes, sendo elementos que destacavam a brasilidade que Carmen representava, eram fundamentais para que a visão de mundo por ela gerada fosse disseminada para os Estados Unidos e, consequentemente, para o mundo. Principalmente a Europa e também os Estados Unidos, durante a década de 1940, viram seu contexto com relação a moda feminina sofrer alterações significativas: o vestuário feminino passou a ganhar elementos mais masculinos e utilitários (influência dos uniformes dos soldados na guerra) além de características de recessão e racionamento. O uso de duas peças por mulheres passou a ser comum, uma vez que era necessário que elas abandonassem seus afazeres domésticos para trabalhar nas fábricas; os tecidos utilizados não eram mais abundantes, passando a haver uma racionalização e empobrecimento da qualidade dos mesmos. Em outros termos, a moda acabou se tornando monótona e monocromática, principalmente nos principais centros urbanos mundiais. Se durante esse período as mulheres faziam uso de turbantes, chapéus, redes e lenços como parte do uniforme de trabalho visando uma maior proteção e segurança; com a ascensão de Carmen Miranda estes acessórios passam a ganhar as prateleiras das butiques, permitindo que houvesse sua “glamorização” e popularização (BRAGA, 2009, p. 79-80). Carmen através de sua influência nos mais variados campos de performance, possibilitou uma maior inserção brasileira na arte e na política, permitindo que interações que até então eram limitadas às relações internacionais ganhassem uma nova esfera de atuação. Ou seja, as relações entre Brasil e Estados Unidos que antes se pautavam a tratados e acordos, passaram a ser discutidas no cinema, na música, em exposições. Lars Svendsen (2010, p. 11) complementa esta ideia, ressaltando a importância da moda para a construção da identidade, mostrando que ela pode atuar em todos os aspectos de uma sociedade. Carmen utilizou seu vestuário para evidenciar o Brasil e a brasilidade nos Estados Unidos, diferenciando-se dos demais artistas e performistas ao permitir que suas roupas contassem uma história. Mundo afora, o estilo Carmen Miranda vez por outra volta às páginas de moda. Por vezes de forma vaga aparece em anúncios de produtos brasileiros ou latino-americanos. Também figura em cartoons animados ou não, identificada ou não. Muitos estrangeiros da nova geração não sabem quem inspirou os chapéus tutti-frutti que evocam a América Latina. Carmen Miranda se tornou uma foto sem legenda. 52 Mas para nós, brasileiros, ecoa interminavelmente „Carmen Miranda da da da da‟” (MENDONÇA, 1999, p. 168-169). A moda tem uma íntima relação com aquilo que é novo, de tal modo que é a novidade que acaba tornando a moda atraente (LIPOVETSKY, 2009, p. 90). Em sua carreira internacional, a Pequena Notável se destacou pelo seu jeito de cantar, por seus gestos, mas principalmente por suas roupas que eram novidade e completamente diferentes dos padrões até então encontrados naquele país e, tudo isso, acabou por tornar a sua aceitação pelo público norte-americano muito mais natural e tranquila: os norteamericanos queriam se deixar influenciar por aquela figura que era tão exótica, mas ao mesmo tempo tão atraente, assim: Nascemos nus e vivemos vestidos. É justamente o modo como cobrimos e descobrimos nosso corpo que faz „a‟ diferença. A sociedade (...) que (...) privilegia a imagem, a forma, os adornos e trajes como sistema de significação, de caráter simbólico, é quem faz com que tipos de trajes e objetos readquiram uma grande importância (CASTILHO; MARTINS, 2008, p. 32) Neste deste contexto, Paula Monteiro (2003, p. 232) ressalta que um dos sintomas decorrentes das diferenças culturais é o surgimento do racismo como forma de diminuir a outra cultura em nome da pureza da cultura em questão. Talvez, se Carmen Miranda fosse uma artista brasileira comum - sem grandes destaques, excentricidades ou peculiaridades, seu processo de internacionalização para os Estados Unidos teria sido cercado por preconceitos e racismos. Entretanto, o fato da artista ser tão exuberante, tão carismática e conseguir, de forma tão direta responder aos anseios do povo norteamericano de consumir o diferente, fez com que houvesse o surgimento de uma curiosidade por parte dos norte-americanos para com a cultura brasileira, provocando então um movimento oposto que culminou em uma aproximação entre os países. Carmen permitiu que sua identidade cultural fosse retratada em suas roupas, consentindo que outras culturas tivessem acesso a elementos característicos brasileiros e possibilitando que a moda brasileira ganhasse seu espaço no exterior, assim, “cada corpo se presentifica como construção cultural”, estabelecendo relações com diferentes mundos (CASTILHO; MARTINS, 2008, p. 36). 53 Figura 8 – Carmen e a representação cultural brasileira através de diferentes signos. Fonte: TIERNEY, 1982, p. 16. A partir de 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, nos cenários externo e interno o Brasil, sob comando de Vargas, se viu envolvido numa emergência de ideais nacionalistas, momento que propiciou favorável para que a música popular e ao cinema brasileiro se consolidassem de forma categórica. Durante este processo, Carmen Miranda desempenhou um papel central, possibilitando ao país uma voz no Sistema Internacional, conforme afirmam Maria Rita Mourtinho e Másvola Valença (2005, p. 136). Os símbolos que Carmen transmitia pressupunham, ao mesmo tempo, uma ideia de “separação e unificação” (CASTILHO; MARTINS, 2008, p. 41), onde havia uma clara segregação entre o que era proveniente dos Estados Unidos e o que era de origem brasileira, mas ao mesmo tempo promovia uma cooperação entre as partes no contexto da Segunda Guerra Mundial. O vestuário é uma linguagem, é um idioma visual (SVENDSEN, 2010, p. 7071). Para Carmen seus figurinos possibilitavam uma internacionalização da brasilidade, 54 em outras palavras: “(...) as alterações feitas por Carmen na sua baiana não respondiam apenas a excentricidades suas, mas tinham relação com a sua própria brasilidade que ela queria transmitir” (KERBER, 2005, p. 132). A Brazilian Bombshell queria transmitir a seu público, principalmente os estrangeiros, o que de fato era o Brasil, ou seja: através das cores transmitia o carnaval, a diversidade étnica e as belezas naturais; as frutas que estilizavam os turbantes também eram elementos que representavam a diversidade nacional. Não somente suas roupas extravagantes ganharam notoriedade, suas bijuterias, turbantes e plataformas; bem como seu estilo de cantar e de se movimentar, tudo isso foi capaz de atrair pessoas ao redor do mundo. Uma identidade brasileira foi construída na medida em que Carmen conseguiu misturar elementos sensuais, como os bustiês, barriga a mostra, fendas nos vestidos e quadris marcados, aliado ao exagero dos bordados tipicamente enraizados na cultura brasileira. Carmen possuia elementos vanguardistas, sendo capaz de fazer moda e de agregar à ela elementos dadaístas, o que lhe conferiu identidade de uma das pessoas mais originais e influentes na moda mundial. Malcom Barnard (2003, p. 29) complementa as palavras de Svendsen, afirmando que aquilo que as pessoas vestem pode ao mesmo tempo ser usado para representar sua individualidade como também para expressar o seu grupo cultural, ou seja, Carmen se vestia de forma única procurando expressar sua individualidade sem ligar para “o que estava na moda”, vestindo também aquilo que as pessoas no Brasil utilizavam, seja nas cores, nos tecidos, nas roupas ou balangandãs; para Gilberto Freyre (2009, p. 80) essa ideia pode ser resumida no conceito de “diplomacia cultural”, que nada mais é do que uma forma de atuação dentro do conceito de soft power. (...) a moda deve ser reconhecida como estruturada por todo um sistema visual de significados e, portanto, é importante que tenhamos subsídios para entendê-la como meio de comunicação, de linguagem e, assim, a partir disso, construída como expressão de significados provenientes de co-presença de linguagens significantes (CASTILHO, MARTINS, 2008, p. 44) Freyre (2009, p. 15) expressa que a moda não aborda necessariamente os sapatos, penteados e vestidos, a moda também retrata ideias, ideologias e teorias, em 55 outras palavras, a cultura brasileira é, para o brasileiro, algo que lhe pertence, “como se fosse parte do corpo e do âmbito de cada um” (Ibidem, p. 19). Parece chegado o momento de essa espécie de moda – a brasileira – ser apresentada como uma expressão tão característica da cultura nacional e, dentro dessa cultura, como uma afirmação da criatividade brasileira, tão importante e cada vez mais evidente, como na música, como a que fez notar na arquitetura (...) todas essas criações, testemunhos de um crescente domínio, pelo brasileiro, de valores ecologicamente tropicais (...) (Idem, ibidem. p. 173) Renato Ortiz (2006, p. 13) relaciona a questão da identidade nacional à cultura popular e ao Estado, afirmando que “falar em cultura brasileira é discutir os destinos políticos de um país”. A partir desta afirmação, percebe-se a grande importância de Carmen Miranda para as relações entre Brasil e Estados Unidos, uma vez que através da cultura e do soft power, a artista foi capaz de aproximar os países e dar ao Brasil uma posição de destaque. A cultura pode ser entendida segundo duas concepções, a primeira diz respeito a todos os aspectos de uma realidade social, enquanto que a outra concepção aborda o conhecimento, as ideias e crenças inerentes à sociedade (SANTOS, 2006, p. 23). O conceito de cultura se encontrava associada ao hábito de cultivar, proteger, honrar com adoração, estando, portanto relacionada a ideias de cultivo e de cuidado. A partir do século XVI, porém, este conceito passou a retratar um processo de desenvolvimento humano, onde cada cultura possui atividades e padrões que lhes são específicos, permitindo que o que é natural a uma sociedade não seja visto da mesma forma por outra sociedade (BARNARD, 2003, p. 57-61). Para Ortiz (Ibidem, p. 44-47), a nação rompe com o isolacionismo local na medida em que envolve os indivíduos de forma transcendental, ou seja: a nação é um processo de desenraizamento, de desterritorialização, dando ao indivíduo a chance do contato com outras culturas que não a sua. Esse fenômeno, entretanto, só se explica através do surgimento da modernidade enquanto uma organização social, permitindo a circulação de informações, pessoas e culturas. Há, portanto, uma desterritorialização das relações sociais, A modernidade se associa à racionalização da sociedade, em seus diversos níveis, econômico, político e cultural. Ela revela um tipo de 56 organização social „desencaixada‟, privilegiando qualidades como, funcionalidade, mobilidade e racionalidade. Pensada desta forma, a sociedade é um conjunto destorritorializado de relações sociais articuladas entre si. Por isso os meios de comunicação desempenham um papel tão fundamental. (...) a nação é uma primeira afirmação de mundialidade. Ela carrega em seu bojo uma mundialidade-mundo (ORTIZ, 2003, p. 50). O fato de sociedades não serem estáticas faz com que diferentes sociedades interajam, provocando uma difusão cultural que pode ser entendido como “processo pelo qual os elementos ou sistemas de cultura se espalham” (ORTIZ, 2003, p. 74). Nesse contexto, então, é possível afirmar que não houve um processo de difusão cultural, assim, a importância de Carmen no contato da cultura brasileira para os demais países, mas principalmente os Estados Unidos, acabou por gerar um fortalecimento cultural nacional e promovendo a propagação da diversidade naquele país (Idem, 2007, p. 15), ainda nas palavras do autor (2003, p. 74): O conceito pressupõe a existência de um centro difusor e um espaço comum partilhado pelas culturas que interagem entre si. Por isso o difusionismo se interessa tanto pela comparação entre as áreas da civilização, e pela migração dos traços culturais de uma área para outra. Isso fica claro quando abordamos os fenômenos de aculturação. Portanto, a partir das críticas construídas por Ortiz, a respeito da difusão cultural, é possível afirmar que este fenômeno não tomou forma uma vez que: se olharmos de forma superficial, concluiremos que este processo de difusão gerou uma americanização dos países latinos e, principalmente, do Brasil, entretanto, analisando a atuação de Carmen Miranda no cenário internacional, fica claro que houve, na realidade, um processo de contato cultural. Neste contexto, por um lado os Estados Unidos trouxeram elementos que se sobrepuseram à política, passando a influenciar aqueles países de outra forma; por outro lado, o Brasil obteve um papel de destaque na sociedade norte-americana da década de 1940, através de elementos culturais. Desta forma, o processo de americanização ocorreu na mesma escala em que houve uma latina-americanização dos Estados Unidos, sem que houvesse, entretanto, a completa perda de traços culturais de ambas as sociedades, mas sim um processo de agregação cultural. 57 A difusão cultural, então, somente tomaria forma a partir da existência de um centro difusor cultural, que a espalharia para os locais periféricos situados sob sua área de influência; estes elementos nacionais quando difundidos para outros Estados, levariam ao esquecimento dos símbolos nacionais do país dominado (ORTIZ, 2003, p. 94). Carmen por meio de seu it impossibilitou que este processo acontecesse, possibilitando que a cultura nacional brasileira também atingisse os Estados Unidos. Em outros termos, a difusão cultural e o processo de americanização não ocorreu, uma vez que Carmen Miranda foi capaz de remontar a brasilidade naquele país, enquanto que a cultura norte-americana atingiu o Brasil sem que acabasse suprimindo as demais culturas locais. Segundo Monteiro (2003, p. 233), nenhum grupo é capaz, sozinho, de produzir sua definição identitária, uma vez que ela seria decorrente do jogo entre oposição e contraste; assim, se a cultura brasileira passou a receber tamanho reconhecimento internacional, isso é decorrente também da postura dos Estados Unidos diante de Carmen, passando a buscar a identidade do Brasil e dando sempre mais destaque a certos componentes da cultura brasileira. Dois aspectos muito marcantes da cultura brasileira, a música e a dança passaram a ser percebidos como elementos que auxiliaram a construção da identidade nacional desde o regime de Vargas, quando a “diplomacia musical” ultrapassou as fronteiras e alcançou os Estados Unidos (PERRONE; DUNN, 2001, p. 1-2), nas palavras de Ortiz (2006, p. 38-39): (...) a sociedade brasileira, particularmente após a Segunda Guerra Mundial, se moderniza em diferentes setores. A velha sociologia do desenvolvimento costumava descrever essas mudanças sublinhando fenômenos como o crescimento da industrialização e da urbanização, a transformação do sistema de estratificação social com a expansão da classe operária e das camadas médias, o advento da burocracia e das novas formas de controle gerencial, o aumento populacional, o desenvolvimento do setor terciário em detrimento do setor agrário. É dentro desse contexto mais amplo que são redefinidos os antigos meios (imprensa, rádio e cinema) (...). Tanto o rádio, quanto o cinema e também a imprensa foram meios de comunicação muito associados a Carmen, seja por vontade própria ou não. O cinema já estava em evidência desde a Primeira Guerra Mundial, sendo utilizado, inclusive pelos movimentos vanguardistas que procuravam transmitir suas ideologias através das 58 telonas (HOBSBAWM, 1996, p. 182). Durante a Segunda Guerra Mundial, no entanto, o cinema passou a ser percebido como instrumento para influenciar e transmitir ideias às nações aliadas da “Grande Aliança”, mas principalmente aos países latinoamericanos. As revistas impressas e jornais, durante esse período, acabaram servindo tanto como um meio de informação sobre os acontecimentos da guerra, quanto como uma válvula de escape, onde as pessoas buscavam entretenimento. O rádio que desde 1922 já havia sido introduzido no Brasil, era capaz de atingir muitas pessoas ao mesmo tempo, sendo considerado um importante instrumento de informação em massa, onde governantes e anunciantes tinham um espaço que possibilitava a aproximação com os ouvintes. Se desde a década de 1920 o rádio já estava no Brasil, foi apenas em 1932 que ele passou a ser utilizado como um instrumento comercial, onde era possível se fazer propagandas e anúncios – políticos ou não. Se antes o rádio viveu um período de experimentação, o qual tocava basicamente músicas eruditas e lítero-musical; na década seguinte passou a ser um veículo de comunicação mais barato (decorrência da mudança tecnológica e do início das propagandas) e eficiente. Com um aumento no alcance dos programas de rádio, veio a necessidade de adaptação cultural dos programas que seriam apresentados, assim, o samba passou a ser reproduzido nos rádios. Carmen Miranda teve sua ascensão durante este período, quando teve a oportunidade de levar sua música para o Brasil e, depois, para o mundo (ORTIZ, 2006, p. 39-40). Em 1936 Carmen Miranda e sua irmã Aurora Miranda gravaram Cantoras do Radio17 música que deixou claro o alcance daquele veículo, não apenas no plano geográfico, mas também no aspecto político e social (CALDAS, 1985, p. 39): Nós somos as cantoras do rádio, Levamos a vida a cantar. De noite embalamos teu sono, De manhã nós vamos te acordar. Nós somos as cantoras do rádio. Nossas canções cruzando o espaço azul Vão reunindo num grande abraço Corações de norte a sul Figura 9 – Carmen e Aurora Miranda: Cantoras do Rádio (1936). 17 Composta por: Lamartine Babo, João de Barro e Alberto Ribeiro. 59 Fonte: GARCIA, 2004, p. 103. A cantora do it verde e amarelo, através destes instrumentos, provocou um incremento da onda de nacionalismo que levou à valorização da cultura nacional, principalmente decorrente do advento do samba, nas palavras de Hobsbawm (1996, p. 196): “o samba, destinado a simbolizar o Brasil como o tango na Argentina, é filho da democratização do Carnaval no Rio na década de 1920”. Leandro Narloch (2009, p. 143) vai além e afirma que o samba se transformou em música regional no Brasil muito em decorrência de Getúlio Vargas, mas também como influência de um famoso personagem: o Pato Donald. Para Kerber (2005, p. 130-131) alguns elementos foram fundamentais para que houvesse a legitimação da baiana de Carmen Miranda como um símbolo verdadeiramente cultural do Brasil. Em primeiro lugar é preciso lembrar que a baiana é encontrada na Bahia, primeiro território encontrado pelos portugueses. Assim a Bahia pode ser entendida como o território que fundou todo o Brasil, é “o marco inicial da nacionalidade brasileira”. Em segundo lugar, o autor ressalta que Salvador durante a maior parte do período colonial, foi considerada a capital brasileira e, portanto, remete para brasileiros e estrangeiros o passado histórico do país. Por fim, especialmente no 60 período da República Velha, houve uma emigração de baianos para o Rio de Janeiro, levando às cidades cariocas diversos elementos culturais baianos que acabaram sendo incorporados às demais culturas regionais. Percebeu-se neste período, que as artes deixaram de ser vistas apenas nos tradicionais pólos culturais, houve, portanto, uma mudança geográfica destes centros (Hobsbawm, 1996, p. 485), o que possibilitou que o Brasil recebesse notoriedade como um país de cultura inigualável. Em outras palavras, se as culturas e sociedades se relacionam de modo desigual, conforme há um sentimento de aproximação entre as diferentes culturas, estas passam a se relacionar de forma muito mais próxima (SANTOS, 2006, p. 17-18), fato percebido no estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos, principalmente com a atuação de Carmen Miranda. O Brasil durante a década de 1940, encontrava seus meios de comunicação mais populares sob o julgo domínio do Estado Novo, ou seja, o caráter autoritário e a proposta de utilização destes meios como forma de propaganda política, visando atingir a todos, é inegável. Diante deste contexto, nesse mesmo ano, Carmen gravou a música Recenseamento de Assis Valente, segundo Kerber (2005, p. 125), “a letra desse samba remete ao discurso oficial, que tentava (...) restringir as rivalidades regionais, pensando em identidades regionais como um conjunto de harmonia”: Em 1940 lá no morro começaram o recenseamento E o agente recenseador esmiuçou a minha vida foi um horror E quando viu a minha mão sem aliança encarou para a criança que no chão dormia E perguntou se meu moreno era decente E se era do batente ou era da folia Obediente eu sou a tudo que é da lei fiquei logo sossegada e falei então: O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro, e é quem sai com a bandeira do seu batalhão! A nossa casa não tem nada de grandeza nós vivemos na pobreza, sem dever tostão Tem um pandeiro, uma cuíca, um tamborim um reco-reco, um cavaquinho e um violão Fiquei pensando e comecei a descrever tudo, tudo de valor que meu Brasil me deu 61 Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo um pano verde-amarelo Tudo isso é meu! Tem feriado que pra mim vale fortuna a Retirada de Laguna vale um cabedal! Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia um conjunto de harmonia que não tem rival Percebe-se que foi pela atuação da Pequena Notável que tanto os estilistas nacionais adquiriram visibilidade no cenário internacional, quanto a indústria de moda brasileira pôde se desenvolver e ganhar reconhecimento internacional (ARTIGAS, 2006). Pautando-se na cultura local, sobretudo na baiana, a Brazilian Bombshell conseguiu se expressar através do cinema e também da música. Seu estilo foi copiado pelas principais lojas de roupa norte-americana, abrindo portas para que seu estilo ultrapassasse fronteiras. Consagrou-se como estrela internacional e mais notadamente com uma influência cultural, capaz de promover um contato cultural que tornou inviável o processo de americanização, mas que, ao mesmo tempo, possibilitou que o Brasil ganhasse um reconhecimento no Sistema Internacional. Carmen atuou de forma direta para que o Brasil, através do soft power, pudesse influenciar todo o pensamento artístico, político, social e econômico da década de 1940. 3.3 A Política da Boa Vizinhança e sua Embaixatriz: o Papel Desempenhado por Carmen nas Relações entre os Países No âmbito cultural, a Política de Boa Vizinhança possibilitou o intercâmbio de artistas entre os Estados Unidos e os países sul-americanos. Foi durante essa onda de descobrimento dos novos artistas latino-americanos que o fenômeno Carmen Miranda tomou forma. A Revolução de 1930 trouxe ao Brasil um período de amplas transformações econômicas e políticas, gerando impactos imediatos na política externa do país. Nesse mesmo período, nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt assumiu, em 1932, o poder, gerando um novo cenário interno. Roosevelt, no plano externo, teve como objetivo romper com o isolacionismo vigente, adotando um programa de liderança internacional com o intuito de estabelecer a paz e a estabilidade econômica, principalmente dentro do continente americano. Estas mudanças promovidas por Roosevelt acabaram impactando de forma direta os países latino-americanos, na medida em que a Política de Boa 62 Vizinhança estabelecia um novo paradigma de relacionamento para os países do continente, melhorando o diálogo e interações entre eles. Haveria então, um reforço da presença norte-americana nestes países, através do estreitamento de vínculos militares, econômicos e culturais (HIRST, 2009, p. 25-26). É importante relembrar que embora tenha sido Roosevelt que na década 1930 introduziu o conceito de Política de Boa Vizinhança, este termo foi inicialmente cunhado por outro presidente norte-americano: Herbert Hoover, em 1928 (MENDONÇA, 1999, p. 64). A Política de Boa Vizinhança era um instrumento de amplo espectro que tinha como objetivo a americanização, ou seja, a implementação de ideologias norteamericanas nos países sul-americanos, principalmente no Brasil. Algumas das mais importantes premissas do americanismo, a democracia, era um componente que não deixava de aparecer quando a ideologia era propagada. Outro componente importante, mas este de caráter ideológico era o progressivismo, termo que remete “à ideia de um mundo de abundância” retratando também a “capacidade criativa do homem americano” (TOTA, 2000, p. 19). Para assegurar que o American Way of Life atingisse a América do Sul, os Estados Unidos disseminariam seus valores através do cinema, imprensa e rádio. A intenção era que as ideologias alemãs e europeias não atingissem o continente, havendo, portanto um único modelo a ser seguido: o norte-americano. Assim, as instituições estatais dos Estados Unidos faziam propagandas visando a defesa hemisférica (MENDONÇA, 1999, p. 62-65). O Progressivismo tinha como premissa máxima: trabalhar, produzir, ganhar dinheiro e consumir. Desta forma, a conquista dos mercados latino-americanos era essencial para que o americanismo fosse aplicado nestes países, daí a importância de se afastar o modelo germânico que era baseado na expansão auto-sustentada, aliado à combinação entre a cultura tradicional, o racismo e o racionalismo iluminista (TOTA, 2009a, p. 21-25). Se antes a política externa norte-americana era orientada para o isolacionismo, com a deflagração do conflito mundial os Estados Unidos passam a ver os países latinoamericanos como aliados estratégicos. A Política de Boa Vizinhança foi, então, colocada em prática. Sua missão consistia em: 63 (...) ajudar a criar em níveis doméstico e internacional, uma atmosfera de apreciação e respeito pela cultura da América Ibérica ao mesmo tempo em que deveriam mobilizar a opinião pública latino-americana em favor dos interesses e objetivos dos EUA no contexto da Segunda Guerra Mundial (FREIRE-MEDEIROS, 2005, p.10). O Big Stick foi colocado de lado para que surgisse a Good Neighbor Policy. Segundo Roosevelt “bons vizinhos devem cumprir acordos e respeitar tratados” (TOTA, 2009a, p. 160). Nas palavras de Moura (1984, p. 8-9) essa nova forma de relação entre os países implicaria num “(...) convívio harmônico e respeitoso entre as partes do continente”, haveria, portanto, uma “(...) troca generalizada de mercadorias, valores e bens culturais entre os Estados Unidos e o restante da América”. Essa política representava uma via de mão-dupla, onde haveria um maior contato de ambas as sociedades com a cultura do outro e assim, elementos simbólicos dos Estados Unidos foram apresentados ao Brasil, enquanto que a cultura brasileira através, principalmente, de Carmen Miranda foi levada aos norte-americanos. Se a Política de Boa Vizinhança tinha como intenção promover o americanismo da América Latina, ou seja, uma difusão cultural; o que de fato ocorreu foi o contato cultural. A partir de 1940, como decorrência da aproximação dos Estados Unidos ao conflito mundial, os esforços para a cooperação continental foram acirrados. Em 16 de agosto foi criada uma agência especialmente destinada a lidar com a América Latina, o Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations Between the Americans Republics, posteriormente renomeado de Office of the Cordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), dirigido por Nelson Rockfeller18, que permaneceu em sua direção até o encerramento das atividades em 1946. Suas incumbências diziam respeito a “transmitir a ideia de que os Estados Unidos queriam cultivar uma amizade sincera, sem interesse com seus vizinhos”. Para tanto, diversas atividades foram propostas, dentre elas, a promoção de programas de saneamento para o combate a doenças tropicais e elaborou projetos para o desenvolvimento de regiões subdesenvolvidas do continente (TOTA, 2009a, p.160). 18 Nelson Aldrich Rockfeller nasceu em 8 de julho de 1908 e morreu em 26 de janeiro de 1979: magnata norte-americano cuja família era dona da Standard Oil Company. 64 Figura 10 – A Política da Boa Vizinhança: “Heterolateralidade” publicada pela revista O Cruzeiro de 1940 – As relações entre Brasil e Estados Unidos através de símbolos nacionais: Roosevelt e Vargas. Fonte: GARCIA, 2003, p. 236. Figura 11 – Os frutos da Política de Boa Vizinhança: Roosevelt, Vargas e militares na base americana em Natal, 1943. 65 Fonte: TOTA, 2000. A respeito do OCIAA, Tânia da Costa Garcia (2003, p. 37-38) afirma que esta era uma: (...) superagência para assuntos estratégicos (...) com sede no Rio de Janeiro, cujo objetivo era obter apoio dos governantes e das sociedades latino-americanas para a causa dos Estados Unidos: leia-se para a definitiva supremacia norte-americana na América Latina. Para justificar a presença do Birô recorreu-se ao pan-americanismo – a cooperação entre as duas Américas, tendo em vista ideais comuns: organização republicana,democracia, liberdade e dignidade do indivíduo e por fim uma soberania nacional. Atuava nas seguintes áreas: comunicações, relações culturais, saúde, comércio e finanças. Embora os métodos tivessem mudado, o objetivo ainda era o mesmo: minimizar a influência de países europeus na América Latina (MOURA, 1984, p. 18). Assim, o Birô Interamericano era visto como uma agência coordenadora de esforços, ligada à segurança nacional dos Estados Unidos, estando, portanto, subordinado ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos. 66 A estrutura do Birô era subdividida em quatro esferas: comunicações, relações culturais, saúde, comercial/financeira, sendo que cada uma delas tinha uma vasta margem de atuação. Deste modo, as comunicações abrangiam: rádio, cinema, viagens, esportes, imprensa; as relações culturais envolviam a música, arte, as literaturas e publicações, intercâmbio e educação; a saúde abordava problemas sanitários de forma geral; o comercial/financeiro era voltado para as questões relativas à exportação, finanças, desenvolvimento e transporte (Idem, ibidem, p. 22-23). A intensificação das relações entre o Brasil e Estados Unidos só foi possível pela utilização de instrumentos que melhoraram o contato cultural entre os países. Se a Política de Boa Vizinhança tinha como premissa “ganhar os corações e mentes dos líderes políticos e militares brasileiros” (Idem, ibidem, p. 31), a atuação do Birô se resumia à aplicação de instrumentos de soft power de forma que houvesse o desejo de atração de países latino-americanos, mas principalmente do Brasil, em relação aos Estados Unidos. Através da capacidade de influenciar, Carmen Miranda acabaria se tornando um exemplo de atuação de soft power, ou seja, embora não fosse uma atitude consciente, ela conseguiu atrair a atenção dos norte-americanos para o Brasil, mostrando que o país não era apenas privilegiado na natureza, era também um país moderno, dinâmico (MENDONÇA, 1999, p. 80) e que merecia uma posição de destaque no Sistema Internacional. Embora antes da Segunda Guerra Mundial já houvessem sido produzidos filmes com a intenção de influenciar os países do continente, nada se compara aos esforços realizados durante a Política de Boa Vizinhança (GARCIA, 2003, p. 38). Foi neste período que Walt Disney criou o Zé Carioca e que Carmen deslanchou em sua carreira internacional. Apesar de ter chegado aos Estados Unidos um ano antes da adoção da Política de Boa Vizinhança, Carmen Miranda sempre foi identificada como a artista de maior sucesso desse projeto, uma vez que a política auxiliou no lançamento de sua carreira, abrindo portas e aumentando sua visibilidade. Carmen Miranda foi nossa primeira e única estrela a brilhar em Hollywood, que comprou para difundir a imagem de um trópico exuberante, colorido, onde ela recebeu nova embalagem e o mundo inteiro pagou para vê-la. Sua viagem aos EUA (no momento em que o prólogo da II Guerra já estava destinado a colocar definitivamente o Brasil no âmbito das influências sócio-econômicas dos EUA) deu 67 início aos ciclos das excursões de artistas brasileiros àquele país, numa campanha de propaganda preparatória à “Política da Boa Vizinhança”, do presidente Roosevelt. A campanha predispunha o espírito do povo norte-americano a aceitar e curtir as novidades do Terceiro mundo (...) (SAIA, 1984, p. 7-8). Segundo Mendonça (1999, p. 11), não se pode confundir o sucesso de Carmen nos Estados Unidos com a Política de Boa Vizinhança, afinal, a Pequena Notável chegou aos Estados Unidos antes da implantação da política, e mesmo depois do término das atuações do Birô, Carmen continuou a interpretar suas baianas sem que o público norte-americano mostrasse qualquer forma de desinteresse. O sucesso obtido por ela decorre única e exclusivamente de seu talento e trabalho. Nesse processo a imprensa teve um papel importante para que as informações fossem difundidas. O Birô “promovia negociações com agências de notícias United Press e Associated Press” visando que notícias positivas dos Estados Unidos fossem propagadas para o resto do continente e vice-versa; havendo, então, um intercâmbio de notícias. Além de jornais impressos, folhetos de diversos cunhos também eram distribuídos entre os países (MOURA, 1984, p. 33-35). No tocante aos intercâmbios realizados entre os países, a atuação do Birô foi avassaladora, para Moura (Ibidem, p. 50) os brasileiros iam para os Estados Unidos para aprender, enquanto que os americanos vinham ao Brasil para ensinar. Entretanto, o que se percebe é que os Estados Unidos, ao realizarem esses intercâmbios estavam, na verdade, querendo disseminar suas ideologias e valores por toda a América Latina. Desse modo, para que o imperialismo norte-americano tomasse forma na América Latina, ele dependeria tanto das produções materiais, quanto das produções culturais, ou seja, a “produção cultural faz parte das relações de interdependência” (IANNI, 1976, p. 7). A Feira de Nova Iorque (New York World‟s Fair), de 1939, também teve um papel central, na medida em que recebia pavilhões de diversos países do continente, com a intenção de retratar costumes, ideologias e culturas destes para os demais Estados. No caso brasileiro, foi mostrado o que se tinha de melhor: a arquitetura de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a música, Carmen Miranda e o Bando da Lua, “café, babaçu, quartzo, comida baiana...” (TOTA, 2000, p 96). 68 Figura 12 – Pôster da New York World’s Fair – a divulgação em escala continental da Política de Boa Vizinhança. Fonte: TOTA, 2000. A Política de Boa Vizinhança foi muito propagada graças à radiodifusão que tinha a capacidade de informar de forma muito mais rápida que os jornais impressos, dando aos ouvintes a capacidade de se atualizar, ouvir programas humorísticos e também a músicas (CALABRE, 2004, p. 30). A política adotada pelo Birô, no que dizia respeito ao rádio, consistiu em colocar programas norte-americanos nas estações locais no restante do continente, contratando jornalistas locais capazes de transmitir e adaptar as notícias vindas dos Estados Unidos para o público. Propagandas e programas músicas, bem como programas esportivos eram produzidos pelo Birô, que posteriormente fazia enquetes para saber a aceitação do público latino com relação a estes programas (MOURA, 1984, p. 44-46). Carmen participou, em 29 de junho de 1939, do programa de rádio Ruddy Vallee Show, um dos mais populares programas de rádio dos Estados Unidos. Seu apresentador fez questão de ressaltar que aquela era a primeira participação de Carmen em um programa de rádio (TOTA, 2000, p. 114): 69 Um violão acompanhado de um tamborim fazia adivinhar algum número tropical e exótico. O locutor apresentou Carmen Miranda: “Where does she come from? From Brazil. I don‟t speak any Portuguese and „Señorita‟ Miranda doesn‟t speak any English. But that doesn‟t matter because…” Carmen cantou “O que é que a baiana tem?”. Carmen fazia as perguntas e o Bando da Lua respondia em coro. Depois era a vez do Bando da Lua perguntar e Carmen responder com “hum...hummm”, com um jeito malicioso. Recebeu muitos aplausos. O locutor perguntou: “Do you understand now?”. O cinema ganhou notoriedade neste processo na medida em que se revelava um instrumento de informação em massa que tinha um grande poder de penetração ideológica a custos relativamente baixos, assim, eram produzidos filmes e documentários que exaltavam tanto os países latinos quanto os Estados Unidos. Neste contexto “tournées de astros e estrelas de Hollywood à América Latina e artistas latinoamericanos aos Estados Unidos” foram financiadas pelo Birô (MOURA, 1984, p. 3538). Nas palavras de Hobsbawm (1996, p. 193), “o cinema foi quase desde o início um veículo de massa internacional”; e a atuação do Birô para a produção de filmes que aproximassem a relação entre Brasil e os Estados Unidos pode ser entendida através das palavras de Gil-Monteiro (1989, p. 121): De fato, uma das principais tarefas da Seção Cinematográfica era promover a utilização de talentos latino-americanos em filmes que cônscios produtores permitiam à CIAA usar como uma de suas principais armas de dupla campanha (visando ao mesmo tempo conquistar o coração e a mente de vizinhos latinos e convencer os americanos dos benefícios da amizade pan-americana). Carmen Miranda era, dentre todas as artistas brasileiras de destaque internacional, a mais notória personagem a ser explorada, sua influência cultural e política tornou-a uma verdadeira “Embaixatriz da brasilianização”. A Pequena Notável não apenas era reconhecida como uma latino-americana em terras norte-americanas, era também extremante talentosa – sabia cantar, fazer piadas e atuar, e por isso, foi selecionada para ser a estrela destes filmes. Além disso, ela encantava o público com seu colorido, com suas frutas na cabeça, com seu sotaque carregado que remetia aos países latinos (Idem, ibidem, p. 121-122). Em outras palavras, a baiana de Carmen era 70 capaz ao mesmo tempo, de responder às expectativas do imaginário norte-americano sobre a América Latina, mas também ser capaz de agradar ao público latino-americano (GARCIA, 2004, p. 133). Se nas décadas de 1940 e 1950 o cinema passou a se tornar um bem de consumo, especialmente com a presença de filmes americanos no mercado latinoamericano, isso foi decorrente da Política de Boa Vizinhança que fez com que a indústria cinematográfica de Hollywood passasse a dar atenção àqueles mercados (ORTIZ, 2006, p. 41). Na maioria das produções realizadas pelo Birô, a América Latina era representada como atrasada em relação ao colosso norte-americano, no entanto, as belezas naturais, bem como a multiplicidade cultural eram retratadas de forma precisa. Embora houvesse uma equipe de especialistas em América Latina para evitar que gafes fossem cometidas, elas acabaram sendo inevitáveis. (MENDONÇA, 1999, p. 90). Outra análise pode ser feita como relação à imagem passada por estes filmes: Nas comédias musicais da 20th Century Fox com a participação de Carmen Miranda, as oposições não ficavam só a cargo dos protagonistas, mas são enfatizadas pela relação entre os aspectos de uma América do Norte civilizada (apolínea) e de uma América Latina Wild (dionisíaca). O apolíneo manifesta-se no american way of life das personagens – a disciplina, o controle, a relação puritana com o mundo do trabalho, a estética eugênica, o nacionalismo, a familiaridade com as vantagens do mundo moderno, expressa muitas vezes pelo estranhamento da realidade latino americana. O dionisíaco é representado pelo wilderness latino-americano – o atraso tecnológico, a incipiente urbanização e o comportamento primitivo que caracterizam as personagens – em oposição a racionalidade da sociedade yankee (GARCIA, 2004, p. 174). Serenata Tropical (Down Argentine Way) de 1939, primeiro filme estrelado por Carmen nos Estados Unidos, embora não tivesse sido produzido pela Política de Boa Vizinhança, acabou ganhando uma posição precursora neste tipo de filme: paisagens exóticas, com a presença marcante da Pequena Notável e muitas cores para os americanos apreciarem. O enredo era baseado em um milionário que conhecia uma jovem herdeira e a acompanhava até a Argentina. O filme, entretanto, não foi bem recebido pelos argentinos, o que provocou uma necessária refilmagem de determinadas cenas, para tanto, o Birô – que já estava em funcionamento, disponibilizou verba extra que possibilitasse esses ajustes, adequando o filme à política vigente. Os esforços, 71 entretanto, não foram bem recebidos pelo público daquele país, que continuou a negar o filme (CASTRO, 2005, p. 265-267). Uma Noite no Rio (That Night in Rio, 1941) foi o segundo filme de Carmen nos Estados Unidos e a primeira produção que de fato se enquadrava nos moldes da Política de Boa Vizinhança, preocupando-se em não cometer erros básicos, como: “(...) pôr brasileiros para falar espanhol, chamar Buenos Aires de capital do Rio de Janeiro, ou colocar índios nus dentro de um ônibus na avenida Rio Branco” (Idem, ibidem, p. 267). Neste filme, Carmen representava a ciumenta namorada que vivia jogando bolsas em seu namorado. No filme Aconteceu em Havana (Weekend in Havana), Carmen interpreta Rosita – uma jovem vendedora que ganha uma viagem para Havana e acaba se apaixonando por um executivo. Em Minha Secretária Brasileira (Springtime in the Rockies), Carmen apresentava o número Chatanoonga Choo Choo e a música Tique Taque do Meu Coração. Em Entre a Loira e a Morena (The Gang‟s all Here) Carmen apresentou seu mais conhecido número: The Lady with the Tutti-Futti Hat, onde cantava em um cenário super tropical, rodeada por bananas e morangos e com um turbante que faria inveja a qualquer macaco (SAIA, 1984, p. 43-44). Carmen Miranda na pele de suas Rositas, Doritas, Chitas e Chiquitas da 20th Century Fox, representava exatamente esta América Latina difundida pelo cinema norte-americano. Comporta-se como um animal selvagem, arranhando e/ou mordendo seus parceiros; sua libido é descontrolada, desejando a todos os homens de seu convívio. É indolente ou malandra, avessa ao mundo do trabalho, prefere os prazeres da vida (a festa, o riso, a dança, a música). É também grotesca na interpretação caricaturada que faz das suas personagens, na pronúncia errada das palavras em inglês, na singularidade de seu comportamento que a torna um outsider frente ao mundo civilizado. O traje das personagens latino-americanas interpretadas por Carmen, embora mantenha a base da indumentária criada pela artista no Brasil (...) sofre as mais variadas modificações e combinações, intencionando representar a “totalidade” da cultura latino-americana e, ao mesmo tempo marcar a diferença em relação ao american way of life (GARCIA, 2003, p. 41). Figura 13 – The Lady with the Tutti-Futti Hat: Carmen Miranda atuando no filme Entre a Loira e a Morena (1943) – O Brasil sempre presente nas apresentações da artista nos Estados Unidos. 72 Fonte: HOUSE OF MIRTH AND MOVIES. Diponível em: <http://houseofmirthandmovies.com/2009/08/24/the-gangs-all-here-berkeley-1943/>. Acessado em 3 de novembro de 2010. O Birô negociou com a Disney para que fosse criado um personagem que fosse capaz de intensificar as relações pan-americanas. Desse esforço nasceu o Zé Carioca – papagaio verde e amarelo que nada mais era do que uma releitura do Pato Donald, “símbolo por excelência do americano comum”. O Zé Carioca é “falador, esperto e fã do Pato Donald”, e por isso mesmo, Zé o levou para conhecer as maravilhas do Brasil (MOURA, 1995, p. 39). O personagem aparece no filme Alô Amigos! de 1943 – filme que mesclava animação com cenas reais, tocando pela primeira vez o samba de Ary Barroso e interpretado por Aloysio de Oliveira, Aquarela do Brasil. O filme narrava a história de um grupo que saia da Disney com a missão de encontrar novos personagens na América Latina. Quando eles chegavam ao Rio de Janeiro em pleno carnaval (TOTA, 2000, p. 136-137), Zé estende um cartão de visita a Donald. Este faz o mesmo para Zé, que imediatamente reconhece a estrela de Hollywood (...). Um abraço apertado do Zé “Brasileiro” Carioca conquista Donald. Zé fala rápido, como convém um malandro. Donald não entende. Zé resume em bom inglês: “Let‟s go see the town”. (...) Samba é a primeira lição. As notas de “Tico-tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, já bastante conhecido do público americano na voz de Carmen, saem do guardachuva de Zé (...). Num bar, Donald experimenta a indefectível cachaça. Do bar para o Cassino da Urca. O show do cassino é mostrado (...). No espetáculo, obviamente, não falta uma baiana rebolando (Idem, ibidem, p. 137). 73 Figura 14 – Carmen Miranda com Walt Disney e Jorge Guinle no lançamento do Zé Carioca, 1943. Fonte: CARMEN MIRANDA: a Pequena Notável. Disponível em: http://www.carmenmiranda.hpg.ig.com.br/cm_galeria.htm. Acessado em 31 de outubro de 2010. O Birô, além de se preocupar com a elaboração de filmes e documentários, também se responsabilizava por sua distribuição. Para tanto, contava com a ajuda do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado durante o Estado Novo, em 1939, com a finalidade de fundamentar o regime junto à opinião pública, censurando, também, aquilo que não lhe agradava (GARCIA, 2003, p. 43). O DIP, então, procurava consolidar o regime através da coesão que a cultura popular, mas especialmente a música, gerava, controlando a mídia impressa e os meios de entretenimento (PERRONE; DUNN, 2001, p. 12). A relação que ocorria entre o Estado Novo e os meios de comunicação em massa pode ser entendida através do desejo que o Estado tinha de controlar as informações que eram passadas ao público. Assim, o DIP era a concretização da meta de se repassar ao grande público apenas aquilo que fosse de interesse do governo, difundindo “uma concepção de mundo para o conjunto da sociedade” (ORTIZ, 2006, p. 51-52). Se, por um lado, o DIP censurava rádios e jornais, amedrontava escritores e artistas e proibia imigrantes europeus de falarem a língua estrangeira em público; também financiava blocos de carnaval e concursos carnavalescos com o intuito de tornar o samba mais popular, elevando Carmen Miranda no cenário internacional à posição de Embaixatriz do samba e dando a ela todo o apoio necessário para que a 74 cultura brasileira fosse difundida em terras norte-americanas (NARLOCH, 2009, p. 143). A relação do filme com a sociedade que o produz, levando em conta variáveis não cinematográficas como as condições de produção, financiamento, comercialização, deve ser analisada para que se entenda de fato a importância deste meio de comunicação no contexto onde se encontrava inserido (KORNIS, 2008, p. 27). Os Estados Unidos, ao produzirem os filmes com a intenção de promover o intercâmbio cultural, preocuparamse em abordar apenas pontos que não pudessem gerar polêmicas, deixando de fora qualquer elemento que pudesse gerar controvérsias. O filme Alô, Amigos é um exemplo deste fato: quando se representa o Carnaval não é retratado nenhum afrodescendente, assim, todas as passistas são brancas, o que faz lembrar a descendência europeia do povo brasileiro; isso porque o Birô não queria que houvesse o surgimento de preconceitos ou discriminação. Com o término da Segunda Guerra Mundial, a preocupação dos Estados Unidos para com os países latino-americanos sofreu uma vertiginosa queda. Nos países latinos a primazia norte-americana era indiscutível, entretanto, diante do novo contexto, os Estados Unidos se voltaram novamente para a Europa, onde os principais mercados estavam situados, nas palavras de Moura (1984, p. 73): O tratamento intensivo aplicado pelo Birô Interamericano ao Brasil durou de 1940 a 1946. Finda a guerra, os motivos imediatos para sua criação cessaram; as questões importantes agora eram outras, assim como eram diferentes as condições gerais da política internacional. Contudo, a fama de Carmen Miranda permaneceu inalterada, o que lhe possibilitou continuar a fazer muitos shows e apresentações (MENDONÇA, 1999, p. 105-106). Sua notoriedade como a embaixatriz da Política de Boa Vizinhança permanece inalterada até os dias de hoje, sendo indiscutível sua atuação relevante dentro do soft power. O papel desempenhado pela Pequena Notável nos Estados Unidos deixa claro que, embora sua carreira corresse em paralelo à nova política estabelecida, não é possível dissociar sua atuação da política adotada. Assim, seu reconhecimento internacional foi e ainda é indiscutível. Há quem afirme que Carmen Miranda foi fruto 75 da Política de Boa Vizinhança, entretanto, estes não consideram que ela chegou naquele país antes do início da Segunda Guerra Mundial e, portanto, antes da adoção da política e permaneceu por lá anos depois do encerramento das atividades do Birô, tendo inclusive atuado em diversos filmes neste período. Carmen teve um papel central para as Relações Internacionais do Brasil. Através do seu poder de influência – na moda, na música, na cultura, no cinema e no comportamento -, conseguiu colocar o Brasil numa posição de destaque, aumentando sua inserção na economia mundial e elevando sua posição no Sistema Internacional. Carmen foi responsável pela mudança do rumo da política brasileira, provocando um alinhamento brasileiro com os países da Grande Aliança e afastando-o de vez das influências do Eixo. A Brazilian Bombshell pode, deste modo, ser considerada além de um fenômeno, uma personificação do soft power e da diplomacia cultural, conseguindo estreitar as relações entre Brasil e Estados Unidos de forma positiva para ambos os países. Embora, no início de sua carreira, não falasse praticamente nada em inglês, Carmen se fez entender. Não precisava de palavras para que seu recado fosse passado: ela estava ali para mostrar o Brasil para o mundo e, para tanto, utilizava o ritmo marcante do samba, seu rebolado, suas roupas, seus turbantes e seus balangandãs. Mesmo depois, quando dominava perfeitamente aquela língua, fazia questão de cantar também músicas em português, assegurando que a língua brasileira não fosse suprimida pelo inglês, tanto é que: (...) em janeiro de 1949, numa das escalas de sua excursão por várias cidades com os Anjos do Inferno, Carmen teve uma surpresa. Das mãos de Vera Sauer, consulesa do Brasil na Filadélfia, recebeu no palco uma placa do Itamaraty por seus “relevantes serviços prestados à divulgação da cultura brasileira e ao estabelecimento de relações artísticas entre o Brasil e os Estados Unidos” (CASTRO, 2005, p. 465) Figura 15 – Carmen Miranda e seu papel central nas relações entre Brasil e Estados Unidos durante a Política de Boa Vizinhança. 76 Fonte: MENDONÇA, 1999. Assim como Pierre Bourdieu (1983, p. 160-161) afirma, a linguagem não se resume apenas a um instrumento de comunicação ou de conhecimento, a linguagem é também um instrumento de poder, uma vez que “não procuramos somente ser compreendidos, mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos”. Carmen não precisava de nada além de sua imagem e de sua voz para se fazer escutar em terras estrangeiras. Por meio de suas apresentações ela dava cada vez mais reconhecimento ao Brasil no cenário externo. Nas palavras de Joseph Nye (2002, p. 40), o soft power não se resume unicamente ao componente cultural. Para o autor, esta forma de poder mais branda é baseada também em algumas variáveis de grande importância: “os valores que o nosso governo representa em seu comportamento interno (...), nas instituições internacionais (...) e na política externa (...)”. Sendo assim, em todos estes componentes, Carmen Miranda marcou presença: sua forma de cantar, de agir, de falar, de representar a cultura brasileira – principalmente o samba, roupas, cores e comidas -, possibilitou que houvesse um crescimento do interesse norte-americano em relação ao Brasil, o que 77 acabou por impactar diretamente no sucesso da Política de Boa Vizinhança e na inserção de forma mais categórica do Brasil nas Relações Internacionais. Se a Primeira Guerra Mundial pode, numa análise mais superficial, ser entendida como uma guerra “acidental”, a Segunda Guerra Mundial, por outro lado, foi um conflito muito bem planejado, onde as ações dos Estados foram feitas e refeitas diversas vezes com o intuito de se evitar os erros do primeiro conflito (NYE, 2009b, p. 135). Neste modo a adoção da política que visava a aproximação do continente americano é um claro exemplo desta guerra pensada Roosevelt procurava aumentar a importância norte-americana na região, criando um contexto de interdependência, que nas palavras de Robert Keohane e Joseph Nye (2001, p. 7) é entendido como uma atitude política que gera efeitos recíprocos para todos os atores envolvidos. Estes efeitos podem resultar de transações internacionais, sejam elas financeiras, comerciais ou mesmo de pessoas – o caso da Pequena Notável. Assim, a Política de Boa Vizinhança era uma medida para que os Estados Unidos aumentassem seu poder, levando a uma americanização dos valores daquela sociedade. Entretanto, a ascensão de Carmen Miranda neste contexto, possibilitou que este processo fosse também percebido no sentido contrário: uma “brazializnização” dos Estados Unidos. Enquanto os países estavam, segundo a premissa realista19, buscando a obtenção de poder por meio do hard power20 durante a Segunda Guerra Mundial; Carmen Miranda e seu it, por meio do soft power, conquistavam um espaço de prestígio nos Estados Unidos, tornando capaz o aumento do poder de barganha brasileiro no Sistema Internacional. Ainda hoje a presença de Carmen Miranda é sentida. As consequências de sua atuação podem ainda ser sentida, agora mais como um ícone da cultura pósmodernidade que influenciou profundamente o universo cultural norte-americano. CONCLUSÃO 19 A teoria realista diz que os Estados, visando a obtenção de poder, são os únicos atores que atuam nas relações internacionais, tendo uma visão pessimista da natureza humana e uma concepção anárquica do sistema internacional. Para os realistas, as relações internacionais são, obrigatoriamente, conflituosas e conflitos internacionais devem ser resolvidos por meio da guerra, por isso que valores como o da segurança nacional e sobrevivência estatal possuem um significado tão importante para esta corrente teórica (JACKSON; SORENSEN, 2007, p. 102). 20 Hard power é o poder oposto do Soft power. Visa o uso do poder militar (força bélica) para que um Estado consiga fazer com que outro execute aquilo que lhe é de interesse. 78 Neste trabalho tentei mostrar a relevância de Carmen Miranda para as relações internacionais entre o Brasil e Estados Unidos durante o período da Segunda Guerra Mundial, tendo como base sua influência cultural. Deste modo, procurei retratar de que forma a atuação da artista na música, na moda e no comportamento possibilitou colocar o Brasil num papel de destaque no Sistema Internacional. Como foi visto, os Estados envolvidos na Primeira Guerra Mundial saíram do conflito com uma paz muito superficial que não foi capaz de evitar novos conflitos; sendo a Segunda Guerra Mundial o resultado da falta de controle e do fracasso da Liga das Nações. Durante a Segunda Grande Guerra, dois grupos opostos de influência se formaram: o primeiro contava com a presença dos Estados Unidos, enquanto o segundo tinha como integrante a Alemanha. Em comum ambos desejavam obter a maior quantidade de Estados sob sua égide de controle. Como forma de assegurar que as Américas não se aliassem à Alemanha, os Estados Unidos desenvolveram a Política de Boa Vizinhança, visando uma maior cooperação entre os países do continente. Diversas eram as áreas de atuação dessa política, entretanto, o componente cultural foi o que mais se destacou. Durante o período compreendido entre os anos de 1940 e 1946, o Birô Interamericano propiciou o intercâmbio cultural de diversos artistas, fossem eles vindos da América Latina para os Estados Unidos ou o contrário. Filmes, musicais, feiras internacionais, programas de rádio e revistas eram utilizados como meios que possibilitavam o contato cultural e a propagação do American Way of Life. Carmen Miranda, já reconhecida e adorada no Brasil desde 1930, viu sua ascensão internacional em 1939, quando Lee Shubert assistiu uma apresentação sua e a convidou para participar de Streets of Paris nos Estados Unidos. Neste mesmo ano a Pequena Notável se mudou para o país, sendo a representante mais notória da cultura brasileira em terras estrangeiras. Miranda chegou àquele país antes que a Política de Boa Vizinhança fosse adotada, conforme mostrado, entretanto, tamanho seu sucesso e reconhecimento nos Estados Unidos, que acabou sendo vista como uma das artistas que mais influenciou e foi influenciada pela política adotada pelos governos. 79 Fruto da Política de Boa Vizinhança ou não, o que não se pode negar é que Carmen Miranda foi capaz de levar ao público norte-americano e, posteriormente ao mundo, os traços culturais brasileiros. Suas roupas, músicas, turbantes, balangandãs, sotaque e trejeitos não deixavam dúvida: ela era a personificação do Brasil. Sua influência não atingiu apenas a moda mundial, Carmen teve uma importância ímpar para a inserção do Brasil nas relações internacionais. Com a artista fazendo grande sucesso nos Estados Unidos, a Política de Boa Vizinhança que inicialmente não passava de um processo que tinha como objetivo a americanização do Brasil, passou também a ser vista como um instrumento de mãodupla para a propagação de valores culturais, sociais, políticos e ideológicos. Neste contexto o Brasil passou a ganhar notoriedade no cenário internacional, mas principalmente nos Estados Unidos. Enquanto os demais países baseavam suas relações em atitudes pautadas no hard power durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil, pela da atuação de Carmen no exterior, conseguiu uma posição de destaque no soft power, melhorando as relações com os países do continente e ganhando visibilidade nos Estados Unidos. Desta forma, embora a Pequena Notável não soubesse que estava agindo de forma a buscar uma influência através da atração – segundo essa forma de poder mais branda -, a artista pode ser considerada como uma personagem atuante do modelo de soft power, além de responsável pela inserção do Brasil na moda e na cultura mundial durante o período compreendido entre a década de 1930 e meados da década de 1950. 80 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTIGAS, Laura. Carmen Miranda e Alceu Penna Um pouco de história da moda brasileira. Brasil, 2006. Disponível em: <http://www.modapraler.com/2006/04/carmen-miranda-e-alceu-penna-umpouco.html>. Acessado em 11/10/2010. BALDWIN, H. J. Batalhas Ganhas e Perdidas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1978. BARNARD, M. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 25-37. BISHOP, C.; MACNAB, C. II Guerra Mundial: campanhas dia a dia. São Paulo: Escala, 2009. BRAGA, J. História da Moda: uma narrativa. 8. ed. rev. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2009. BRITO, D. 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