PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA

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PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, PESQUISA E EXTENSÃO
MESTRADO EM GESTÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
LOCAL
MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES
PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO
DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS
Belo Horizonte
2014
MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES
PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO
DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Gestão
Social,
Educação
e
Desenvolvimento
Local
do
Centro
Universitário UNA, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Inovações Sociais,
Educação e Desenvolvimento Local.
Linha de pesquisa: Processos políticosociais: articulações interinstitucionais e
desenvolvimento local.
Orientadora: Drª. Matilde Meire Miranda
Cadete.
Coorientadora: Drª. Maria Lúcia Miranda
Afonso.
Belo Horizonte
2014
A474p
Alves, Michelle Alexandra Gomes
Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental entre
crianças e adolescentes do município de Matozinhos. / Michelle Alexandra
Gomes Alves. – 2014.
197f.: il.
Orientador: Profa. Dra. Matilde Meire Miranda Cadete.
Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário UNA, 2014. Curso do Mestrado
em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local.
Bibliografia f. 172-178.
Ficha catalográfica desenvolvida pela Biblioteca UNA campus Guajajaras
1. Jovens – comportamento suicida. 2. Suicídio – prevenção. 3. Promoção da
saúde. 4. Saúde mental. I. Cadete, Matilde Meire Miranda. II. Centro
Universitário UNA. III. Título.
CDU: 658.114.8
Aos meus pais,
que contribuíram imensamente
para minha formação humana e profissional
e possibilitaram a concretização do meu sonho.
E também a minha querida e amada avó,
que infelizmente não está mais presente neste mundo.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida, pela oportunidade de estar neste mundo e tentar fazer da
ciência um instrumento democrático e transformador baseado na solidariedade e
no amor ao próximo.
À minha orientadora, Profa. Matilde Meire Miranda Cadete, e coorientadora, Drª.
Maria Lúcia Miranda Afonso, que acompanharam todos os meus passos e
colaboraram não só para este trabalho, mas para meu crescimento pessoal e
profissional.
A minha família, pelo apoio e compreensão nos momentos tensos deste processo
de aprendizagem.
Aos meus amigos que participaram direta e indiretamente da minha pesquisa.
Aos gestores do município de Matozinhos, por possibilitarem a realização deste
trabalho.
Às crianças e adolescentes que aceitaram participar dos encontros e falar dos
seus sofrimentos.
Ao padre Carlos pela cessão do espaço paroquial para realização dos encontros
com as crianças e os adolescentes.
À Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e ao
Centro Universitário UNA por oferecerem a bolsa de pós-graduação e
possibilitarem a minha formação e qualificação.
E, por fim, aos meus colegas de curso, pelos insights coletivos.
A todos, muito obrigada!
“O corpo fala
O resfriado escorre quando o corpo não chora.
A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições.
O estômago arde quando as raivas não conseguem sair.
O diabetes invade quando a solidão dói.
O corpo engorda quando a insatisfação aperta.
A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam.
O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar.
A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável.
As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas.
O peito aperta quando o orgulho escraviza.
O coração enfarta quando chega a ingratidão.
A pressão sobe quando o medo aprisiona.
As neuroses paralisam quando a criança interna tiraniza.
A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade”.
Autor desconhecido.
E quando o sintoma não resolve,
Passa-se ao ato!
RESUMO
O suicídio é uma violência considerada um problema de saúde pública
multifatorial que preocupa as esferas nacionais e internacionais devido às suas
causas e efeitos. Os dados epidemiológicos, no Brasil, não apresentam números
elevados, pois se sabe da dificuldade nos registros de casos. Quando se trata de
tentativa de suicídio, a subnotificação torna-se mais evidente, principalmente no
público infanto-juvenil. Diante desse contexto, esta pesquisa aborda a tentativa de
suicídio entre crianças e adolescentes, de três a 18 anos, residentes no município
de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. O objetivo
principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes de
Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. Para tanto, este
estudo de abordagem quantiqualitativo dividiu-se em duas etapas distintas, mas
complementares: primeira, buscou-se o conhecimento do quantitativo e da forma
de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes, com coleta dos dados no
setor de epidemiologia do município, e também nos prontuários do ProntoAtendimento (PA) e nas fichas do Ambulatório Infanto-juvenil; estes dados foram
analisados no Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0; na
segunda etapa, procedeu-se à escuta dos sujeitos para assimilação dos motivos
que levam as crianças e adolescentes a tentarem suicídio, usando-se a técnica de
grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças.
Estes dados foram analisados com base nos referenciais de conteúdo de Bardin e
na articulação dos seguintes conceitos: violência, saúde, tentativa de suicídio,
qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento local e
gestão social. Os principais resultados encontrados foram a confirmação da
subnotificação dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a não
implicação dos profissionais de saúde diante dos casos recebidos, além da média
de dois casos de tentativa de suicídio por mês. Quanto aos dados qualitativos,
constatou-se que as relações e os vínculos sociais frágeis estabelecidos pelas
crianças e adolescentes são fatores de risco para a tentativa de suicídio. A
inovação deste trabalho reside na desmitificação, por dados quantitativos e
também qualitativos, de que a criança não tenta suicídio. Diante da escuta desses
sujeitos foi possível construir propostas de intervenção visando à qualidade de
vida a partir da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e
adolescentes do município de Matozinhos. Ou seja, a construção de um projeto
de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de
Matozinhos e de um espaço de apoio, sugerido pelos próprios adolescentes.
Palavras-chave: Tentativa de suicídio. Criança. Adolescente. Prevenção.
Desenvolvimento local. Gestão social.
ABSTRACT
Suicide is a type of violence that is considered a multifactorial public health
problem that concerns the national and international spheres due to its causes and
effects. Epidemiological data, in Brazil, do not have high levels because of the
difficulties to record the cases. When it comes to attempted suicide,
underreporting becomes more evident, especially in children and adolescents.
Given this context, this research approaches the attempted suicide among
children and adolescents, from 3 to 18 years that live in the city of Matozinhos
metropolitan area of Belo Horizonte, Minas Gerais. The primary objective was to
analyze the attempted suicide among children and adolescents of Matozinhos for
the past five years, from the view of these subjects. Therefore, this quantitative
approach study was divided into two distinct but complementary stages: First was
to research the knowledge of quantitative and way of attempted suicide among
children and adolescents, with data collected from the epidemiology section of the
city in the records of the Emergency Department (PA) and the records of the Clinic
of Children and Adolescents; this data was analyzed in StatisticalPackage for
Social Sciences (SPSS) version 19.0; in the second stage, was proceeded the
listening of the subjects to assimilate the reasons why children and teenagers to
attempt suicide, using the technique of group focus with teens and of the sensitive
creative method with children group. These data were analyzed based on the
reference content of Bardin and the articulation of the following concepts: violence,
health, suicide attempt, quality of life, prevention, health promotion, local
development and social management. The main results found were the
confirmation of underreporting of cases of attempted suicide and the abstention of
health professionals with the cases received and an average of two cases of
attempted suicide per month.Regarding the qualitative data, it was found that the
relationships and fragile social bonds established by children and adolescents are
risk factors to suicide attempts. The innovation of this work lies in demystification,
for quantitative and qualitative data, that the child does not attempt suicid. Through
the listening of these subjects was possible to construct proposals for intervention,
aiming at the quality of life through prevention, protection and promotion of mental
health of children and adolescents in Matozinhos through the construction of a
project of intersectoral intervention: "Fórum Municipal da Rede de Apoio Infantojuvenil de Matozinhos" and an area of support, suggested by the adolescents
themselves.
Keywords: Attempted suicide. Child. Adolescent. Prevention. Local development.
Social Management
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figuras
FIGURA 1 - Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas
Gerais, jan/2008-ago/2012..................................................................... 27
FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil
de Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012..........................
29
FIGURA 3 - Tipos e naturezas das principais violências que atingem
crianças e adolescentes......................................................................... 36
FIGURA 4 - Contínuo da autodestruição..................................................... 45
FIGURA 5 - Processo de suicídio................................................................ 48
FIGURA 6 - Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do
município de Matozinhos – 2008 a 2012...............................................
102
FIGURA 7 - Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar
em Matozinhos, 2013.............................................................................
129
FIGURA 8 - Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar
em Matozinhos, 2013.............................................................................
130
FIGURA 9 - Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar
em Matozinhos, 2013.............................................................................
131
FIGURA 10 - Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio,
Matozinhos, 2013...................................................................................
135
FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio,
Matozinhos, 2013...................................................................................
137
FIGURA 12 - Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio,
Matozinhos, 2013..................................................................................
138
Gráficos
GRÁFICO 1 - Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no
município de Matozinhos no período entre 2008-2012.......................... 97
GRÁFICO 2 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2008...................................................................
98
GRÁFICO 3 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2009...................................................................
99
GRÁFICO 4 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2010...................................................................
100
GRÁFICO 5 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2011...................................................................
100
GRÁFICO 6 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2012...................................................................
101
Quadros
QUADRO 1 - Fatores de risco para o suicídio............................................
49
QUADRO 2 - Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas
crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012...................
113
QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos
baseado no esquema de Boronat (2013)............................................... 121
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Fontes dos dados....................................................................
80
TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que
tentaram suicídio entre 2008 e 2012...................................................... 81
TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que
tentaram suicídio entre 2008 e 2012...................................................... 81
TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 20082012.......................................................................................................
82
TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos,
2008-2012..............................................................................................
84
TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos,
2008-2012..............................................................................................
85
TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio,
Matozinhos, 2008-2012.......................................................................... 86
TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa
etária, Matozinhos, 2008-2012............................................................... 90
TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos,
2008-2012..............................................................................................
91
TABELA 10 - Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos,
2008-2012..............................................................................................
96
TABELA 11 - Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio,
Matozinhos, 2008-2012.......................................................................... 96
TABELA 12 - Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos,
2008-2012..............................................................................................
104
TABELA 13 - Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos
bairros de Matozinhos, 2008-2012......................................................... 105
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAPS
Centro de Atenção Psicossocial
CEP
Comitê de Ética em Pesquisa
CID
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde
CRAS
Centro de Referência de Assistência Social
CREAS
Centro de Referência Especializado de Assistência Social
DANT
Doenças e agravos não transmissíveis
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
EUA
Estados Unidos da América
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
NASF
Núcleos de Apoio à Saúde da Família
OMS
Organização Mundial da Saúde
PA
Pronto-atendimento
PSE
Programa Saúde na Escola
PSF
Programa Saúde da Família
SIH
Sistema de Informações Hospitalares
SINAN
Sistema de Informação de Agravos de Notificação
SPSS
Statistical Package for Social Sciences
SUS
Sistema Único de Saúde
TCLE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
WHO
World Health Organization
WHOQOL
World Health Organization Quality of Life
SUMÁRIO1
1 INTRODUÇÃO............................................................................................
16
1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil................................... 17
1.2 Relações de poder na saúde...................................................................
24
1.3 Matozinhos: contextualizando o problema...............................................
25
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA........................................................................ 32
2.1 Saúde e violência.....................................................................................
33
2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes................................ 39
2.3 Visão sociológica do suicídio...................................................................
41
2.4 Visão psicossocial do suicídio.................................................................. 45
2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio..........................................................
51
2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da
saúde.............................................................................................................. 53
2.7 Gestão social e desenvolvimento local....................................................
60
2.8 Considerações.........................................................................................
64
3 OBJETIVOS................................................................................................
66
3.1 Objetivo geral...........................................................................................
66
3.2 Objetivos específicos...............................................................................
66
4 METODOLOGIA.......................................................................................... 67
4.1 Coleta de dados.......................................................................................
69
4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município............................ 69
4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos.....................................................
72
4.2 Aspectos éticos........................................................................................
77
1
Este trabalho foi revisado de acordo com as novas regras ortográficas aprovadas pelo Acordo
Ortográfico assinado entre os países que integram a Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP), em vigor no Brasil desde 2009. E foi formatado de acordo com a ABNT NBR
14724 de 17.04.2011.
5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS.................................................. 78
5.1 Pesquisa quantitativa...............................................................................
78
5.2 Pesquisa qualitativa.................................................................................
106
6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS...................................................................
140
6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de
Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos..............................................................
140
6.2 Espaço de apoio.....................................................................................
145
7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO DA
PARTE OU DO TODO? - SUICIDE ATTEMPTS IN CHILDREN AND
ADOLESCENTS: INJURY OF THE PART OR OF THE ENTIRE?................
147
8 CONCLUSÃO.............................................................................................. 169
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 172
APÊNDICES E ANEXO.................................................................................. 179
16
1 INTRODUÇÃO
Nós devemos às nossas crianças - os cidadãos mais vulneráveis em
qualquer sociedade - uma vida livre de violência e medo. A fim de
assegurar isto, devemos manter-nos incansáveis em nossos esforços
não apenas para alcançar a paz, a justiça e a prosperidade para os
países, mas também para as comunidades e membros da mesma
família. Devemos dirigir nossa atenção para as raízes da violência.
Somente assim transformaremos o legado do século passado de um
fardo opressor em um aviso de alerta.
Nelson Mandela.
A pesquisa realizada para o mestrado em Gestão Social, Educação e
Desenvolvimento Local abordou a questão da tentativa de suicídio infanto-juvenil
no município de Matozinhos, baseada nos conceitos de violência, saúde, tentativa
de suicídio, qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento
local e gestão social. A ideia foi colocar essas concepções para conversarem
sobre um problema complexo, multifacetado, intersetorial e multidisciplinar, na
expectativa de construção de intervenções locais que prevenissem o fato e
reduzissem os danos, possibilitando um atendimento “integral” dos sujeitos
acolhidos.
Seu objetivo principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão
desses sujeitos. E para alcançar esse propósito a investigação foi construída em
três momentos:
a) Conhecer o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos.
b) Identificar os motivos que levaram as crianças e adolescentes, do
município de Matozinhos, a tentar suicídio.
c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir
da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e
adolescentes do município de Matozinhos.
17
Os dois primeiros momentos referem-se à coleta de dados. Com enfoque
quantitativo, primeiro foi realizado o levantamento dos casos de crianças e
adolescentes, de três a 18 anos, que tentaram suicídio nos últimos cinco anos.
Posteriormente, privilegiando a escuta e os métodos qualitativos, a pesquisadora
formou grupos com os adolescentes e as crianças, verificadas no momento
anterior, para conversarem sobre o ato cometido de violência autoinfligida.
Na tentativa de legitimar a abordagem de tal temática e apresentar e justificar a
problemática tratada neste trabalho, optou-se por uma subdivisão entre: políticas
públicas de saúde mental infanto-juvenil; relações de poder na saúde; e
Matozinhos: contextualizando o problema.
1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil
A temática “políticas públicas” abarca vasta gama de definições, é complexa e se
insere no campo multidisciplinar. Neste texto, para trabalhar o conceito de política
pública, parte-se do seu surgimento nos Estados Unidos da América (EUA), como
área do conhecimento no contexto acadêmico, como produto da Guerra Fria e
enfoque nos estudos das ações governamentais como ferramenta para as suas
decisões (SOUZA, 2006).
No geral, essas correntes que conceituam as políticas públicas abrangem
aspectos comuns, tais como: visão globalizante em detrimento da soma das
partes e que, apesar dos conflitos existentes, é necessária a participação dos
envolvidos considerando-se suas inter-relações, interesses e ideologias em
proporções variadas (SOUZA, 2006).
Quanto aos protagonistas desse processo, Lima (2012) apresenta duas
abordagens: estatista e multicêntrica. A primeira deve originar-se do Estado para
que seja considerada política “pública”; já a segunda questiona se o infortúnio é
de ordem “pública”, portanto, não foca o autor da política. Sendo assim, se o
problema for de origem “pública”, então tem-se uma “política pública”.
18
A heterogeneidade desse campo assemelha-se a outra história em construção,
que é o rompimento com o paradigma hospitalocêntrico e a concepção da reforma
psiquiátrica que, com todo o seu esforço multiprofissional, idealizou uma saúde
mental transdisciplinar.
Santos e Bastos (2011) enfatizam que para entender o funcionamento desse
nosso sistema de saúde atual é necessário resgatar nossa história e as
influências do cenário político-social e econômico vivenciadas no Brasil.
Vários são os desafios que envolvem a incorporação dessa nova concepção de
cuidado nos serviços de saúde mental brasileiros. Bezerra Júnior (2007)
menciona alguns e separa-os em planos: assistencial, jurídico, político e
sociocultural. No entanto, é imprescindível salientar que eles se intercruzam e não
são estanques, estão inter-relacionados e dependem da articulação entre eles
para produção de uma verdadeira promoção de saúde.
No âmbito assistencial, o desafio reside na construção de modelos de cuidado e
intervenção diferenciados que abordem a concepção de clínica ampliada.
Ressalta as limitações da clínica tradicional focada no indivíduo como dispositivos
que possibilitem a formação de redes. Para tanto, reforça a necessidade de
formação de recursos humanos críticos, prudentes e autorreflexivos capazes de
reinventar sua prática cotidiana na busca de concretização do ideário reformista.
No entanto, estudo recente, realizado no Distrito Federal, ressalta o adoecimento
do profissional de saúde mental e as dificuldades enfrentadas quanto às
exigências da reforma psiquiátrica no que se refere à inovação, criatividade e
atitude do trabalhador frente aos desafios do serviço, gerando sentimento de
impotência e frustração (ZGIET, 2013). Além disso, Fiorati e Saeki (2013)
denunciam a precarização das relações de trabalho e realização de ações
centralizadas,
principalmente
nas
figuras
médicas,
em
detrimento
do
compartilhamento coletivo e construções intersetoriais.
Nos planos jurídico e político, o grande obstáculo a ser ultrapassado reside no
fato de garantir e promover a inclusão civil e social, além de ampliar a autonomia
dos sujeitos. Ou seja, “[...] o debate ultrapassa os limites da argumentação
19
médica e se insere progressivamente no debate político acerca da inserção no
campo da cidadania” (BEZERRA JÚNIOR, 2007, p. 246).
Este é um desafio atual e preocupante, pois ao analisar o discurso da Política
Nacional de Promoção da Saúde, mais especificamente no item que versa acerca
dos agravos e fatores de risco, o suicídio é visto como violência, constatando-se
“[...] um predomínio de uma perspectiva da promoção da saúde com ancoragem
nas abordagens comportamental e/ou biomética [...]” (RADDATZ et al., 2011,
p. 197, grifo nosso).
O Ministério da Saúde elaborou os “Manuais de Prevenção do Suicídio” para
orientar os profissionais de saúde. Apesar de abordarem os aspectos
sociodemográficos como fatores de risco para o suicídio, os documentos
ressaltam como principais: a história de tentativa de suicídio e os transtornos
mentais (BRASIL, 2006a; 2009). Esse enfoque sugere uma visão biopsíquica,
com foco claro nos aspectos psiquiátricos e psicológicos, tratando as questões
sociais como causas secundárias ou mesmo insignificantes.
Os fatores de risco considerados transtornos mentais ressaltam que estão “[...]
em participação decrescente nos casos de suicídio” (BRASIL, 2006a, p. 15).
Destarte, registra-se a contradição posta no material produzido para orientação
dos profissionais ao se constatar a seguinte afirmação: “[...] estudos em diferentes
regiões do mundo têm demonstrado que, na quase totalidade dos suicídios, os
indivíduos estavam padecendo de um transtorno mental” (BRASIL, 2006a, p. 19).
Já no material produzido para os profissionais da atenção básica também se
encontra a seguinte frase: “A compilação de vários estudos, realizada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), mostrou que em mais de 90% dos
suicídios pode ser feito um diagnóstico de transtorno mental” (BRASIL, 2009, p.
07).
Com esta análise pode-se inferir que a contradição existente no discurso estatal
tende a destacar os transtornos mentais e psicológicos como principais fatores de
risco para o suicídio. Seria esta uma reprodução do discurso médico e uma forma
20
sutil de mascarar a visão higienista dos serviços de saúde mental atuais? Afinal, o
modelo psiquiátrico continua imperando de forma autoritária e perversa com a
anuência do Estado que não mais aprisiona “corpos”, mas sim “subjetividades”.
Resta questionar qual a compreensão de saúde mental que orienta a construção
de políticas públicas, pois além delas possibilitarem mudanças, têm, também,
como função a reprodução da ideologia estatal.
Obviamente que a iniciativa de construção de um material norteador é louvável e
não se questiona a abordagem que trata o suicídio como um problema de saúde
pública; a crítica, porém, reside no fato de desconsiderar ou dar secundária
importância aos fatores sociais. Silva e Abasse (2010), pesquisadores integrantes
do documento Análise da Situação da Saúde em Minas Gerais, que abordou as
doenças e agravos não transmissíveis (DANT)2, consideram fundamental análises
que reflitam a realidade local com todas as suas peculiaridades, além dos fatores
socioculturais, ambientais, tecnológicos e, acrescentando aos dizeres dos
autores: aspectos políticos.
Afirmam, ainda, que as DANTs encontram-se desprivilegiadas diante das
prioridades dos gestores públicos, mesmo apresentando que as “causas
externas” são a terceira causa de morte no estado de Minas Gerais...
Em Matozinhos, a realidade não destoa das prerrogativas estaduais. Não há uma
política pública de saúde mental infanto-juvenil institucionalizada; o que existe é
um serviço público de saúde mental infanto-juvenil incipiente e sem estrutura
básica suficiente para acolhimento da demanda existente.
Por ser a tentativa de suicídio um problema público, a política pública de saúde
mental infanto-juvenil é aqui entendida e baseada na perspectiva da abordagem
multicêntrica (LIMA, 2012) quando incluída toda a sociedade nesse processo de
construção. Ou seja, um instrumento orientador que direciona e unifica conceitos
e ações para viabilizar a prática da prevenção e promoção de saúde mental, com
2
O grupo de doenças e agravos não transmissíveis (DANT) pode ser dividido em dois subgrupos:
doenças não transmissíveis (DNT) e das causas externas. E, por sua vez, dentro de causa
externas, encontramos: acidentes de transporte, suicídio, homicídio, quedas e afogamentos
acidentais e eventos cuja intenção é indeterminada.
21
descrição de objetivos e metas claras e diretrizes para nortear as atuações dos
profissionais envolvidos com o público em questão e, assim, propor possíveis
saídas para resolução deste problema de saúde pública.
O fato de não existir uma política pública precisa ser avaliado e contextualizado,
pois refere-se a um posicionamento do Estado e da própria sociedade. A
invisibilidade dessas crianças e adolescentes é reforçada e mascara algo que
deve ser investigado.
Apesar de se ter ciência do poder do Estado na transmissão de suas ideologias
por meio dos discursos políticos ancorados nos saberes científicos “tradutores da
verdade”, convoca-se também a sociedade para o palco, pois não pode ser isenta
de sua responsabilidade e coparticipação nesse processo cíclico que se
retroalimenta a todo instante. Romper com esse movimento perverso é um
desafio!
É importante demarcar que há um esforço nesse sentido, visto que o Ambulatório
Infanto-juvenil de Saúde Mental foi implantado em Matozinhos, mas as
reivindicações são sempre para suprir e atender a demandas emergenciais e não
para construção de ações e práticas de médio e longo prazo com foco na
prevenção e promoção de saúde. Visam apenas ao “tratamento” imediato
(ALVES; CADETE, 2012).
Nardi e Ramminger (2012) defendem uma política pública cidadã e ética que
tenha a democracia como base fundante e considere a igualdade de direitos e
deveres nas relações cotidianas, assim como a singularidade. Reconhecer a
criança e o adolescente como sujeitos e cidadãos nas suas potencialidades e
sofrimentos e trazê-los à cena é imprescindível para a construção de qualquer
ação efetiva que envolva esse público. Mas, se eles não existem, não é preciso
realizar uma política pública de saúde mental infanto-juvenil.
Por fim, o campo sociocultural apresenta como missão a mobilização e a
sensibilização dos diversos atores sociais para um debate público, que vislumbre
a loucura e o sofrimento psíquico como algo humano. É a tentativa de uma
22
desconstrução social de estigmas substituída pela solidariedade, respeito e
compreensão sobre a diversidade, aliada à implicação e responsabilização de
todos aqueles pertencentes à sociedade (BEZERRA JÚNIOR, 2007).
É importante situar que com a proposta de municipalização da saúde, os
municípios passaram a ser foco central, responsáveis pela execução das políticas
e serviços de saúde e assistência social e nem todos estavam preparados para tal
empreitada. Além de executores, também são gestores! Diante desse novo
cenário, não se pode negar que algumas atividades isoladas, incipientes e
inovadoras foram realizadas por profissionais de saúde mental, apesar das suas
limitações, de acordo com a necessidade, demanda e possibilidades dos
municípios. No entanto, Resende (2007) ressalta essa negligência do poder
público e discute a inexistência de uma política macro para a saúde mental.
Com efeito, a se entender por política, no senso restrito aqui aplicável,
uma equação a dois braços, representada de um lado por um conjunto
de intencionalidades e de outro por práticas concretas, conjunto este que
mostre uma certa continuidade no tempo e significação geográfica que
ultrapasse os limites das experiências microrregionais [...] (RESENDE,
2007, p. 16).
O objetivo do autor foi justamente chamar a atenção para a necessidade de
construção de políticas eficazes e eficientes em âmbito macro ou mesmo
nacional. No entanto, ao destacar as atividades locais realizadas pelos serviços
de saúde mental, pode-se analisar por outro viés e explorar as construções
significativas deste trabalho. Isso não elimina as falhas e precariedades dessas
ações, mas possibilita aos sujeitos um novo uso desses espaços, dando-lhes
novos sentidos, imprimindo marcas e subjetividades. Desta forma, torna-se
interessante associar as “microrregionais” aos “lugares”. Trata-se de lugar de
referência para os usuários do serviço, no qual se reconhecem, se identificam,
socializam e constroem relações com o mundo, modificando seu modo de ser e
estar.
Na visão de Carlos (1996), o lugar permite que o sujeito pense e reelabore o seu
viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu fazer, produzindo a sua existência social.
Sendo as microrregionais “lugares” onde se produz a vida, a subjetividade dos
23
sujeitos, tornam-se relevantes as atividades desempenhadas, pois retratam o
verdadeiro objetivo de construção de uma política para o serviço de saúde mental:
promoção da saúde e cuidado! São essas inovações locais que transformam os
lugares e as pessoas.
É nesse panorama ainda nebuloso e cheio de obstáculos que se têm construído
as políticas públicas de saúde mental. Quando se pensa na saúde mental infantojuvenil, fica evidente que o caminho será um pouco mais árduo, pois o
reconhecimento desses indivíduos, como sujeitos, deu-se recentemente, ou seja,
teoricamente pode-se demarcar esse momento após a promulgação da
Constituição Federal de 88.
O Ministério da Saúde, na tentativa da construção de uma política pública de
saúde mental infanto-juvenil, enumerou os seguintes princípios: criança e
adolescente vistos como sujeitos; acolhimento universal; encaminhamento
implicado; construção permanente de rede; noção de território; intersetorialidade
na ação do cuidado. E como diretrizes destacou o reconhecimento do sujeito e
seu sofrimento psíquico, a responsabilização pelo agenciamento do cuidado,
considerando: a sua dimensão subjetiva e social; a implicação dos responsáveis
(familiares e agentes institucionais) no processo de atenção ao sujeito; a ação do
cuidado fundamentada nos recursos teórico-técnicos e de saber disponíveis aos
profissionais e operar com a lógica de rede ampliada de atenção (BRASIL, 2005).
O Ministério da Saúde objetivou normatizar e institucionalizar um saber e prática
que visam romper com o paradigma hospitalocêntrico e construir “caminhos” que
levem a uma saúde mental humana, ética, solidária e igualitária. No entanto, é
possível perceber alguns equívocos e distorções discursivas. Esse é o momento
crucial, citado por Bezerra Júnior (2007, p. 250), no qual o paradigma reformista
encontra-se: “[...] ou aprofunda seu movimento [...] ou corre o risco de deixar-se
atrair pela força quase irresistível da burocracia e da institucionalização
conservadora”.
A política pública de saúde mental infanto-juvenil é aqui entendida como um
dispositivo em construção que auxilia na gestão e resolução de problemas,
24
determina características de acesso aos serviços, qualidade da atenção e
processo de trabalho, viabilizando a prática focada na prevenção, promoção e
tratamento da saúde mental. Diante dessa visão, é basilar considerar que a
prática é anterior à sua construção e legitimar esse saber tácito (o que funciona e
o que não funciona) torna-se uma estratégia relevante. Afinal, após a formulação
de políticas públicas, o que se espera é sua implementação e que as ações
transformem e possibilitem a resolução ou minimização dos impactos dos
incômodos vivenciados pela sociedade, fazendo uma gestão social efetiva e
consolidando o desenvolvimento local, ou seja, “mudança”, “ruptura”, “construção
coletiva”, “participação social”, “cidadania”!
1.2 Relações de poder na saúde
É ingênuo negar os conflitos de interesses existentes na construção e execução
de uma política pública e sabe-se que para virar “agenda pública” um problema
deve ser legitimado por determinados poderes. Neste trabalho o objetivo não é
discutir as formas e os tipos de poderes presentes nesse processo, mas alertar
para sua existência e influência diante das decisões a serem tomadas. E lembrar
que essa dinâmica sempre ocorre nas relações estabelecidas “para” e “com” os
sujeitos.
Além disso, conforme expressam Jardim et al. (2009), essas tensões e conflitos
provocados têm repercussões que se refletem por meio das contradições
existentes na própria política de saúde mental e sua execução pelos profissionais
que lidam diariamente com esse antagonismo. Não só os princípios e as diretrizes
para construção de uma política de saúde mental infanto-juvenil são exemplos
dessa reverberação, mas também os manuais escritos para direcionar as ações
dos profissionais de saúde diante de possíveis casos de riscos de suicídio.
Em pesquisa sobre o modelo brasileiro de assistência a pessoas com transtornos
mentais, relacionou-se como categoria central “as relações de poder na forma de
tratamento”, visto que, na política de saúde mental, a desinstitucionalização
representa a desconstrução de saberes psiquiátricos e mudança de foco da
25
doença para o sofrimento dos sujeitos nas suas relações e essa tentativa de
ruptura de paradigma de tratamento para acolhimento pode também ter como
objetivo a redução de custos operacionais para o Estado (LIMA; NOGUEIRA,
2013).
Diante dessas considerações, a pesquisadora considera os riscos de suicídio
como alvo de observações. As provocações aqui abordadas têm como intuito a
reflexão e o posicionamento do leitor diante deste problema de “todos”: política
pública de saúde mental infanto-juvenil.
1.3 Matozinhos: contextualizando o problema
Os elevados índices de tentativas de suicídio e de suicídio caracterizam este tema
como um importante problema de saúde pública. O suicídio é um acontecimento
complexo, universal, abrange todas as classes sociais e possui etiologia
multivariada,
abarcando
desde
elementos
biológicos,
genéticos,
sociais,
psicológicos, até culturais e ambientais relacionados à vida pessoal e coletiva
(WERLANG; BORGES; FENSTERSEIFER, 2005).
A experiência vivida pela pesquisadora no atendimento a crianças e adolescentes
que buscaram interromper o próprio processo de viver, na cidade de Matozinhos,
resultou nesta pesquisa sobre a tentativa de suicídio, compreendida como o ato
humano intencional de autoagressão que não resultou em morte, como foco de
estudo e análise.
Matozinhos é uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte que se
localiza a 47 km da capital mineira e, de acordo com o último Censo Demográfico
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010,
possui 33.955 residentes e apenas 19.272 são naturais do município. Vivem em
área urbana 90,9% da população total e 9,1% na zona rural. Sua população é
predominantemente jovem (somando-se 41,5% das pessoas de zero a 24 anos
de idade, 48,9% de 25 a 59 anos e 9,7% acima de 60 anos) e a organização
familiar é majoritariamente nuclear (total de 9.871 unidades domésticas, 6.843
26
são do tipo nuclear), sendo 65% casal com filho(s), 16,5% casal sem filho, 15,7%
mulher com filho(s) e 2,3% homem com filho(s). Quanto ao rendimento mensal
domiciliar per capita, o valor médio total é de R$536,00 (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE, 2010).
Essa população jovem, eminentemente urbana e, na maioria das vezes,
integrante de família nuclear, sempre que necessário é atendida no Ambulatório
Infanto-juvenil de Saúde Mental. Este foi implantado em 2009 e, desde então,
atende crianças e adolescentes de três a 17 anos, com sofrimento psíquico
considerado de “média complexidade”. Isto é, casos em que a pessoa apresenta
transtorno mental ou sofrimento psíquico de forma moderada, entre eles “[...]
todas as ocorrências de tentativas de autoextermínio apontam para uma condição
de gravidade. Devem ser acolhidas e avaliadas pelas equipes de saúde mental
em qualquer nível de estruturação [...]” (MINAS GERAIS, 2006, p. 202).
As ocorrências de tentativas de suicídio são condições de gravidade e essa
situação tem apresentado significativo crescimento entre as crianças e
adolescentes de nosso país. Segundo o Ministério da Saúde, o comportamento
suicida vem diversificando em relação à faixa etária e, entre os jovens de 15 a 35
anos, destaca-se como a terceira maior causa de morte. No entanto, “os registros
de tentativas de suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se
que seja pelo menos 10 vezes maior do que o número de suicídios” (BRASIL,
2009, p. 6).
No período de jan./2008 a ago./2012 foram registradas 6.883 internações no
estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas voluntariamente. Destas,
1.052 foram de crianças e adolescentes menores de um a 19 anos, o que
equivale a 15,3% do total de casos (BRASIL, 2012a). À primeira vista, o
percentual de casos pode não parecer tão significativo, contudo, é imperativo
considerar que os dados sobre as tentativas de suicídio não são comumente
declarados. Há subnotificação, o que permite afirmar que esse dado não expressa
fielmente a nossa realidade. Como dito anteriormente, estima-se que esse valor
seja muito maior do que o declarado, conforme ilustrado na FIG. 1.
27
FIGURA 1 – Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas Gerais,
jan/2008-ago/2012
Quantidade de internações
700
585
600
500
400
300
208
200
100
146
80
33
0
Menor 1 ano
1 a 4 anos
5 a 9 anos
10 a 14 anos 15 a 19 anos
Faixa etária
Fonte: Brasil (2012a).
A leitura dessa figura remete ao filósofo Heidegger, que em sua obra principal
abordou temas sobre existência, cuidado, angústia, finitude existencial, entre
outros. Heidegger (1998) especifica que o homem é essencialmente ser-para-amorte, o que o privilegia em relação aos demais entes, especialmente na
assimilação mais própria e originária do seu findar.
Esse caráter do ser-para-a-morte não quer dizer, em absoluto, que a existência
humana deva ser tomada em um aspecto de negatividade. Ao contrário, esse
findar conduz o homem para o sentimento da angústia que é desencadeado pela
própria compreensão da finitude. A angústia se apresenta de forma totalizadora,
monopolizando todo o pensar e agir do homem. Tudo fica carente de sentido e a
angústia torna-se o passado e o presente, envolve toda a existência humana.
Continuando, Heidegger (1998) explicita que a angústia é um fenômeno que
difere do medo no sentido de que este tem sempre algo determinado. A angústia
não tem esse “que” determinado, pois o que a ameaça não é identificável. O que
acontece é que diante dela a totalidade de remissões, a totalidade de tudo perde
a importância, tudo se desmancha. É como se o nó que amarrava os sujeitos na
relação uns com os outros se desfizesse e, dessa forma, caíssem no nada.
28
Essas concepções heiddegerianas invocam uma angústia: crianças, em vez de
brincarem, terem o lúdico como norte de suas existências, vivenciam já o vazio
existencial? E os adolescentes veem a vida se desmanchar diante de seus olhos,
sem perspectivas no futuro? Nas relações intersubjetivas, percebem-nas sem
agarras e caindo no nada? Ou não as construíram? Questões dolorosas afloradas
após conhecimento das causas externas de Minas Gerais e, principalmente, pelas
descobertas em Matozinhos.
Retornando, portanto, à cidade de Matozinhos, muitas crianças e adolescentes
chegavam ao ambulatório com a queixa inicial de tentativa de suicídio. Esse fato
era recorrente e aparentemente comum no município, o que gerou grande
estranhamento na profissional de saúde que trabalhava no atendimento clínico
psicológico desses sujeitos. Atender crianças de cinco ou seis anos que tentaram
se enforcar no quintal de casa é assustador! Quanto aos adolescentes, essa
prática era ainda mais comum, com atendimento quase mensal e a grande
maioria utilizava como instrumento para o autoextermínio medicamentos ou
mesmo o “chumbinho”.
Assim, foi realizada uma pesquisa exploratória, não publicada, para dimensionar
tal fato, durante a atuação desta autora como psicóloga do Ambulatório Infantojuvenil de Saúde Mental, o que gerou este trabalho de mestrado. No período de
jun./2009 a abr./2012 foram acolhidas 376 crianças e adolescentes no
ambulatório, sendo que cerca de 10% apresentavam queixas de tentativa de
suicídio. Destas, grande parte era encaminhada pelos serviços de saúde (50%),
seguido pelo Conselho Tutelar (29%), educação (17%), outros (4%) (ALVES,
2012).
Para realização de todos os acolhimentos do Ambulatório Infanto-juvenil, um
Boletim de Encaminhamento Geral é preenchido, preferencialmente, por um
profissional de nível superior. Nesse boletim há um item referente à queixa inicial,
que foi aqui categorizada em: escolar, familiar, social/ pessoal, outras.
29
FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil de
Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012
40
Quantidade (%)
35
30
sociais / pessoais
25
escolares
20
familiares
15
outras
10
5
0
Queixas iniciais
A queixa inicial escolar refere-se ao comportamento da criança ou adolescente na
escola e sua aprendizagem, tais como: confunde as letras com números, não se
interessa pelas atividades, dislexia, quadro de rebeldia na escola, agressividade e
agitação com colegas, baixo desempenho cognitivo, hiperatividade, indisciplina
escolar, dificuldade de aprendizagem, entre outros (ALVES, 2012).
Quanto à categoria familiar, as queixas iniciais retratam, prioritariamente, as
relações familiares conturbadas, elucidados como discussão com padrasto, raiva
da mãe, não aceitação do casamento do pai, só fala no pai que morreu,
agressividade com familiares, desobediência e outros (ALVES, 2012).
Na categoria social/ pessoal incluem-se as queixas referentes às relações sociais
que vão além da escola, da família e trazem algo do sujeito de forma um pouco
mais explícita. Neste caso, são narrados alguns comportamentos, como:
dificuldade de acatar ordens e leis, comportamento antissocial, evitação social,
dificuldade de se relacionar, choro descontrolado, agressividade exacerbada,
apatia, depressão constante, complexo de inferioridade, tentativa de suicídio, não
quer comer, dificuldade com cuidados pessoais, não querer falar, não conseguir
dormir, ver sombras, abusos sexuais, outras (ALVES, 2012).
30
Incluem-se na categoria outras as queixas sem especificações, as solicitações
feitas via judicial, doenças e cárceres.
Cabe, contudo, ressaltar que essa padronização constitui-se como uma forma
didática de apresentar os dados, tendo em vista que as queixas categorizadas
não são estanques e muitas queixas transitam e se imiscuem em vários grupos.
Nestes casos, privilegiou-se apenas uma categoria para sistematizar as
informações, elegendo-se aquela mais enfatizada pelo responsável, pela criança
ou adolescente.
Após a coleta e a sistematização dos dados verificou-se que metade da demanda
de atendimento era feita pelo serviço de saúde e que grande parte das queixas
sociais/ pessoais referia-se à tentativa de suicídio e ao abuso sexual. Os casos
que não apresentavam essa queixa traziam traços considerados como fatores de
riscos pelo Manual de Prevenção ao Suicídio dirigido aos profissionais de saúde
tanto na atenção básica como na saúde mental propriamente dita.
Para o Ministério da Saúde, os fatores de risco para o suicídio são divididos em:
transtornos mentais, sociodemográficos, psicológicos e condições clínicas
incapacitantes. Em transtornos mentais são descritos diversos distúrbios de
humor, ansiedade, personalidade e associação com substâncias psicoativas
(BRASIL, 2006a, p. 15). Os aspectos sociodemográficos acenam para a
predominância do sexo masculino, faixa etária jovem e idosa, residentes em
áreas urbanas, isolamento social, etc. Os fatores psicológicos relacionam-se às
perdas, à dinâmica familiar conturbada, às datas importantes e aos traços de
personalidade. Como condições clínicas incapacitantes eles descrevem algumas
doenças, lesões e traumas (BRASIL, 2006a).
Nos casos analisados, as queixas iniciais trazem diversos fatores de risco, tais
como: isolamento social, agressividade, depressão, complexo de inferioridade e
ver sombras (que é um dos indícios de possível transtorno mental). Desta forma,
pode-se inferir que boa parte desses casos apresenta relatos que vão ao encontro
das orientações de cuidado e alerta preconizadas pelo Estado para os
profissionais de saúde. Ou seja, tem-se considerável número de crianças e
31
adolescentes com “potenciais suicidas”. No entanto, essa constatação não é
confirmada pelos dados oriundos da Prefeitura de Matozinhos.
Diante do exposto, cabe anunciar que se torna visível, na dimensão do existir
humano, que as existências produzem, dialeticamente, o que se traduz como não
existência. E que a sociedade de Matozinhos, juntamente com seus gestores e
profissionais de saúde, não direciona seu olhar para as crianças e adolescentes
que tentaram suicídio. São sujeitos marcados, nesse processo, por silêncio e
invisibilidade.
O município não possui dados sistematizados do quantitativo de tentativas e de
suicídios entre jovens e adultos e o Sistema de Informações Hospitalares do
Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), entre jan./2008 e ago./2012, não apresentou
qualquer registro de casos de internações por causas externas, do grupo X60-X84
(lesões autoprovocadas voluntariamente). Fato incoerente com a observação
realizada na prática do Ambulatório Infanto-juvenil no período de jun./2009 a
abr./2012, visto que eram atendidas diversas crianças e adolescentes “vítimas” da
tentativa de autoextermínio, que após serem internadas e socorridas no prontoatendimento do município eram encaminhadas ao serviço de saúde mental para
acompanhamento psicológico. Pode-se inferir que tal subnotificação mascara um
problema de saúde pública muito sério e que não se sabe exatamente a
dimensão e consequência dessas tentativas de suicídios (BRASIL, 2012a).
Diante desse contexto de invisibilidade do fato e dos sujeitos, a angústia gerada
na pesquisadora possibilitou a construção de um projeto de pesquisa de mestrado
quantiqualitativa que teve como objetivo geral analisar a tentativa de suicídio entre
crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na
visão desses sujeitos.
32
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
O referencial teórico desta pesquisa é denso, pois aborda conceitos e temáticas
diferenciados, mas complementares, exemplificando claramente a proposta
interdisciplinar do Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e
Desenvolvimento Local. Diante disso, optou-se por dividir o texto em quatro temas
que são pilares deste trabalho: saúde e violência; tentativa de suicídio entre
crianças e adolescentes; qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e
promoção da saúde; e, por último, mas não menos importante: gestão social e
desenvolvimento local.
No item saúde e violência, foi considerada a relação existente entre esses dois
temas e como têm sido tratados nos últimos tempos. O texto alerta para os vários
tipos de violência e seus reflexos no contexto da saúde pública, ressaltando a
tentativa de suicídio como um tipo de violência.
O conceito de tentativa de suicídio apresenta-se de forma complexa e, para
trabalhá-lo nesta pesquisa, foram utilizados preceitos e conceitos das visões
sociológica, psicossocial e da saúde. Na visão sociológica, mostrou-se a
discussão sobre o suicídio e sua tentativa ao longo da história, como fruto do
contexto social. Na perspectiva psicossocial, foram abordados os processos que
culminam no suicídio e o papel dos vínculos nesse contexto. Na área da saúde,
percebe-se o fenômeno como um problema de saúde pública e, para abordá-lo,
baseou-se na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados
à Saúde (CID) para possibilitar a unificação e categorização dos casos
analisados, propondo ações de intervenção para prevenção e promoção.
A qualidade de vida é entendida como um processo multidimensional que
envolve aspectos objetivos e subjetivos. Aborda-se também a importância da
prevenção da tentativa de suicídio como estratégia de promoção de saúde e de
possibilidade de qualidade de vida para as crianças e adolescentes residentes no
município de Matozinhos.
33
Os conceitos de gestão social e desenvolvimento local são trazidos como
peças-chave para se entender o processo de implicação social dos gestores e da
sociedade nos atos de tentativa de suicídio e também como concepção basilar
para a construção de propostas vislumbradas para sua prevenção e promoção da
saúde mental infanto-juvenil.
2.1 Saúde e violência
A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a
humanidade há séculos. As discussões em torno dessa temática evidenciam esse
evento como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais estabelecidas
pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito nas relações
como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar esse olhar e
entendê-lo nas suas peculiaridades. Desta forma, a violência é mais um
componente de toda e qualquer sociedade, “[...] é parte intrínseca da vida social e
resultante das relações, da comunicação e dos conflitos de poder”, mas deve e
pode ser prevenida (MINAYO, 2006, p. 15).
Krug et al. (2002, p. 3) também discordam dessa visão fatalista e enfatizam que,
“apesar de a violência sempre ter estado presente, o mundo não tem de aceitá-la
como parte inevitável da condição humana”, portanto, é responsabilidade de
todos construir saídas possíveis para o enfrentamento desse problema mundial.
Apesar do imaginário brasileiro de passividade, não é possível negar que a sua
constituição, desde o “descobrimento”, foi pautada em violência e esta permanece
tornando-nos um povo violento em todas as épocas históricas em que vivemos,
modificando apenas a sua forma e tipologia. Nesse aspecto, salienta-se que não
há uma violência, mas várias e articuladas que se destacam conforme interesses
políticos e sociais de cada momento, pois se apresentam de forma incômoda,
exigindo mudanças (MINAYO, 2006).
Jacques e Olinda (2012) afirmam que a violência está presente em todos os
campos da nossa vida e apresenta-se ora explícita, ora implicitamente nas
34
economias, nas políticas, nas ideologias, nas religiões, nas famílias, nos ensinos,
nas culturas, nas forças armadas e em diversos outros setores onde transitamos.
Mas como definir a violência?
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra
si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, WHO, 2013).
Melo (2010, p. 13) esclarece o conceito da Organização Mundial da Saúde
(OMS), pontuando que a violência é qualquer situação que use do poder, da força
ou da coerção para que o ator social deixe sua condição de sujeito para ser
transformado em mero objeto; seria, então, uma “[...] colonização do mundo da
vida [...]” que gera e replica a violência na nossa sociedade.
É interessante ressaltar que esse conceito amplia o olhar sobre a violência, ou
melhor, sobre as “violências” existentes. Destitui o predomínio das marcas
objetivas e abre espaço para que a subjetividade lesada seja vista e ouvida, pois
a fictícia ideia de “invisibilidade” do dano psíquico pode ser um dificultador nas
ações de prevenção e promoção de saúde. Desta forma, não se pode limitar a
percepção da violência apenas aos aspectos que ressaltam as lesões e mortes,
uma vez que isso inviabiliza que o seu efeito total sobre as pessoas seja
percebido, prevenido e tratado.
As violências existentes podem ser classificadas conforme sua tipologia. Krug et
al. (2002) sugerem três categorias, separadas de acordo com as particularidades
dos sujeitos que as cometem: a) violência dirigida a si mesmo (autoinfligida); b)
violência interpessoal; c) violência coletiva. Segundo esses autores, a violência
autoinfligida divide-se em suicídio (ideações suicidas e tentativas) e autoabuso
(automutilação). É sobre o primeiro caso, mais especificamente sobre a tentativa
de suicídio, que esta pesquisa discorre.
A violência interpessoal também apresenta subcategorias: violência da família e
de parceiro(a) íntimo(a), ou seja, “[...] ocorre entre membros da família e parceiros
35
íntimos [...]”. Como exemplos podem-se citar o abuso cometido contra crianças,
idosos e mulheres; e a violência comunitária que ocorre entre pessoas “[...] sem
laços de parentesco [...]”, como violência juvenil tão preocupante na nossa
contemporaneidade (KRUG et al., 2002, p. 6, grifo nosso).
As violências coletivas são entendidas como “[...] atos violentos que acontecem
nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos e caracterizam a dominação
de grupos e do Estado” (MINAYO, 2006, p. 81). Portanto, é dividida em violência
social, política e econômica.
Minayo (2006, p. 81) acrescenta a essa classificação do relatório mundial sobre
violência e saúde de Krug et al. (2002) a violência estrutural. Afirma que os
outros tipos de violência têm sua base na estrutural, pois ela é silenciosa e se
naturaliza no cotidiano da nossa sociedade, sendo “[...] responsável por privilégios
e formas de dominação” que reproduzem as misérias e desigualdades, mantendo,
inclusive, “[...] o domínio adultocêntrico sobre crianças e adolescentes”.
Para melhor compreensão da violência, Krug et al. (2002) também classificam a
natureza dos atos violentos ou abusos em quatro modalidades: física, sexual,
psicológica e privação ou negligência.
O abuso físico “[...] significa o uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou
incapacidade em outrem”. O abuso sexual é o ato ou jogo sexual com intuito de
“[...] estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas eróticas,
pornográficas e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou
ameaças”. O psicológico caracteriza-se por “[...] agressões verbais ou gestuais
com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou
ainda, isolá-la do convívio social”. Por fim, a privação de cuidados, abandono
ou negligência refere-se à “[...] ausência, à recusa ou à deserção de cuidados
necessários a alguém que deveria receber atenção e cuidados” (MINAYO, 2006,
p. 82).
Essa tipologia e natureza da violência podem ser visualizadas na estrutura
apresentada na FIG. 3. Ressalta-se que esse modelo não é universalmente aceito
36
e existem diversas visões e teorias acerca desta temática complexa e
controversa. Esse quadro serve de base para conhecer-se a multiplicidade de
fatores, causas e nuanças que cercam o fato e, também, as suas possibilidades
de intervenções.
FIGURA 3 – Tipos e naturezas das principais violências que atingem crianças e
adolescentes
Fonte: Krug et al. (2002, p. 07, com modificações).
É importante salientar que há vínculos entre os tipos de violência aqui
apresentados. Na revisão integrativa de literatura realizada com as produções
científicas brasileiras sobre a prevenção da tentativa de suicídio infanto-juvenil
nas últimas décadas (1994-2013)3 foi possível perceber que alguns autores (que
compõem a revisão da literatura feita para este trabalho) vincularam a violência
autoinflingida, no caso a tentativa de suicídio, à violência interpessoal (a partir dos
históricos familiares) e a violência coletiva (inclusão de variáveis tais como:
raça/cor; escolaridade; ocupação e renda ou classe social) ao caracterizarem o
perfil do grupo de risco.
3
Trabalho apresentado no V Congreso Latinoamericano de Estrategias de Prevención del
Suicidio, realizado na cidade de Campeche, no México, nos dias 5, 6 e 7 de setembro de 2013.
37
Mas qual a relação existente entre a saúde e seus serviços e a violência existente
em nossa sociedade?
A violência está inserida no nosso cotidiano, violando direitos dos cidadãos, e é
um problema de saúde pública que influencia a qualidade de vida das pessoas e
as taxas de morbidade e mortalidade. De acordo com Silva e Maeta (2010, p. 81),
isso “[...] repercute na diminuição da expectativa de vida de adolescentes e
jovens, além de produzir altos custos sociais, econômicos, familiares e pessoais”,
seja de forma direta, a partir das suas consequências objetivas e subjetivas, ou
indireta, por exemplo, com base no absenteísmo e produtividade perdida.
É fato que a saúde é seriamente comprometida, com altos índices de violência,
pois esse campo é um dos espaços privilegiados, no qual todas essas demandas
aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais de saúde
recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam uma
prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes (1999)
define a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser
uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por
exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros
setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um
corpo lesionado, mas um sujeito!
A violência aparece para “dramatizar causas” e, desta forma, torna o incômodo
público, o que possibilita o movimento para propor e exigir mudanças, rupturas
(MINAYO, 2003). E não há lugar melhor do que a saúde pública para que esse
problema seja visto e ouvido.
Jacques e Olinda (2012, p. 127) afirmam que “[...] a violência avançou da esfera
governamental-social para sua intersecção com a saúde [...]” e isso se deu não
apenas pelos índices de mortalidade e morbidade, mas pela sua colaboração na
proposição de estratégias preventivas.
A saúde pública brasileira está caminhando e apresenta várias falhas, mas não é
possível negar que tem avançado a passos largos. A tentativa de humanização
38
dos serviços é um grande testemunho desse novo momento. Além disso, Krug et
al. (2002, p. 4) lembram que “[...] a saúde é, acima de tudo, caracterizada por sua
ênfase na prevenção”. Enfatiza que esse setor opera com uma outra lógica e que,
“[...] em vez de simplesmente aceitar ou reagir à violência, seu ponto de partida é
a forte convicção de que tanto o comportamento violento quanto suas
consequências podem ser evitados”.
Definitivamente, isso não significa que a saúde salvará e livrará a sociedade das
violências sofridas e praticadas, pelo contrário, sozinha ela não terá êxito algum.
Sua contribuição reside na mudança de foco! A integralidade do cuidado exige a
intersetorialidade e sabe-se que para a redução da violência é necessário
empenho coletivo voltado para os três níveis de prevenção: primário, secundário e
terciário, envolvendo toda a sociedade nos processos de gestão social para a
construção de propostas viáveis, eficientes e eficazes.
O tema da violência foi incorporado aos poucos na área da saúde pública e ainda,
infelizmente, encontra resistências por meio das condutas dos profissionais que
não reconhecem suas nuanças, apesar dos órgãos gestores implantarem uma
Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Na
verdade, a atuação dos profissionais reflete uma violência institucional que tem
raízes mais profundas e não cabe, neste trabalho, discuti-las (MINAYO, 2006).
O importante é considerar que este assunto é novo para a saúde e apresenta-se
como um grande desafio, pois nos serviços de saúde brasileiros tem-se como
referência a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde (CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008). E a
atual classificação não explicita a questão da violência, pois não é considerada
doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas externas” (V01Y98), que por sua vez são divididas em: não intencional, intencional e evento de
intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange acidente de
trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio, afogamento,
contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões, abelhas, vespas,
complicações da assistência médica e outras. Causa externa intencional abarca
39
suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os eventos de intenção
indeterminada (MINAS GERAIS, 2010).
Desta forma, torna-se imperativo uma ruptura de paradigmas para a construção
de uma “cultura de paz” na nossa sociedade construída:
[...] por sujeitos que a partir do seu cotidiano de trabalho e de vida se
encontram, produzem conhecimento coletivo e se constroem como
sujeitos coletivos, portanto, unificados num projeto maior no qual se
reconhecem e, sobretudo, dentro do qual ainda preservam a sua
autonomia (MELO, 2010, p.13).
Esse é o desafio não só da saúde pública, mas do nosso e de todos os outros
países que encontram na violência um problema complexo que interfere no
desenvolvimento social, econômico, político e humano das nossas nações.
Promover a saúde biopsicossocial e espiritual das pessoas é proporcionar-lhes
oportunidades de serem sujeitos e cidadãos do mundo!
2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes
El suicidio es una cuestión de algunos, el suicida es una cuestión de
todos.
Boronat.
As crianças e adolescentes representam 31,3% da população brasileira, conforme
demonstram os dados colhidos pelo censo demográfico de 2010. Isso equivale a
aproximadamente 60 milhões de pessoas (IBGE, 2010).
De acordo com Waiselfisz (2012), ao longo dos últimos 10 anos a taxa de suicídio
infanto-juvenil
aumentou
quase
26,2%.
Nosso
país
possui
um
índice
relativamente baixo, se comparado com outras nações, mas há que se considerar
alguns agravantes: apesar da existência dos sistemas de notificação de casos de
violência,
os
quantitativos
não
expressam
fielmente
nossa
realidade,
principalmente quando se trata das “tentativas de suicídio”. Outra questão
40
relevante é que o aumento mais expressivo de casos encontra-se na faixa etária
dos jovens. Desta forma, são mais de 24 milhões de adolescentes em risco.
É também comum as pessoas acreditarem que as crianças não tentam suicídio e
esse mito impossibilita o seu registro como violência e são vistos e interpretados
como “acidentes”. O que difere o acidente de uma tentativa de suicídio é
justamente a sua intencionalidade; e a criança, se escutada, dá conta de dizer do
seu sofrimento e da sua intenção. Mas parece ser ameaçador e inconcebível que
uma criança deseje a morte e, assim sendo, os pais não relatam e os
profissionais de saúde não “escutam” também esse pedido de cuidado. Ressaltase, no entanto, que a crença da inocência infantil e incapacidade de tentar a
morte estão aos poucos sendo questionadas (WHO, 2013).
Os adolescentes também são negligenciados e as suas tentativas são vistas
como ações irresponsáveis “pedidoras” de atenção. A partir do uso do poder nos
serviços de atenção e cuidado da criança e do adolescente e também no seio do
núcleo familiar e social, são, algumas vezes, ridicularizadas e discriminadas. Eles,
assim como as crianças, são mais uma vez “violentados” no seu direito de ser
sujeito.
Diante dessa reflexão e da complexidade do tema, propõe-se um percurso por
três visões do suicídio: sociológica, psicossocial e da saúde. A visão sociológica
resgata, brevemente, uma discussão clássica baseada nos estudos de Durkheim
e Marx, considerando o aspecto social do suicídio. A psicossocial apresenta
alguns autores que concebem o fenômeno como uma junção dos aspectos
psíquicos e sociais com foco nos vínculos estabelecidos pelo sujeito e sua
importância nesse ato. Já a saúde apresenta diversos documentos que apostam
em uma política pública, o suicídio, como forma de violência e propõe ações
intersetoriais de prevenção e promoção de saúde.
Essas três perspectivas de estudo do suicídio não são as únicas e
separadamente não dão conta de explicar a complexidade do problema. Optou-se
por utilizar essas referências na expectativa de que abordem o fato,
complementarmente, de forma mais sistêmica e corresponsável, pois se acredita
41
na responsabilidade de TODOS diante do fenômeno. No entanto, este trabalho
não pretende, de forma alguma, esgotar o tema, pois é sabido das limitações
existentes em cada abordagem por tratar-se de fenômeno complexo e
multifatorial. A tentativa é trazer algumas concepções que possibilitem ajudar na
discussão e compreensão dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil
pesquisados no município de Matozinhos, nos últimos cinco anos.
2.3 Visão sociológica do suicídio
Inicialmente, faz-se necessário resgatar uma discussão clássica que circunda
esta temática tão delicada: o suicídio.
De acordo com Durkheim (1897/2000), o suicídio foi muito frequente entre os
povos primitivos. No entanto, apresentava características distintas entre si com
foco maior nas questões culturais. Ele agrupa os suicídios realizados na época
em três categorias:
1º. Suicídios de homens que chegam ao limiar da velhice ou são
afetados por doenças.
2º. Suicídios de mulheres por ocasião da morte do marido.
3º. Suicídios de clientes ou servidores por ocasião da morte de seus
chefes (DURKHEIM, 2000, p. 272, publicação 1897).
Essa categorização e o relato dos fatos ocorridos fazem com que o autor conclua
que “a sociedade pesa sobre o indivíduo”, de forma a “levá-lo a se destruir”
(DURKHEIM, 1897/2000, p. 273). Caso o fato não fosse concretizado, o indivíduo
era punido com a desonra e castigos religiosos.
Quando se refere às cidades greco-latinas, Durkheim (1897/2000) descreve uma
“legislação do suicídio”, que passou por duas fases: a primeira, na qual o ato de
autoextermínio só era “[...] considerado ilegítimo quando não tinha autorização do
Estado” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426).
42
Aquele que não deseja viver por mais tempo deve expor suas razões ao
Senado e, depois de ter obtido dispensa, deixar a vida. Se a existência
te é tediosa, morre; se estás oprimido pela fortuna, bebe cicuta. Se
estás arqueado pela dor, abandona a vida. Que o infeliz conte seu
infortúnio, que o magistrado lhe forneça remédio e tua miséria terá fim
(DURKHEIM, 2000, p. 427, grifo do autor, publicação 1897).
O remédio referido era veneno, substância que ficava em posse de todos os
magistrados. Caso a autorização não fosse concedida e o ato cometido, havia
penalizações: eram recusadas as honras da sepultura e a “[...] mão do cadáver
era cortada e enterrada à parte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426).
Na segunda fase, a condenação do suicídio era absoluta e sem qualquer
exceção. Desta forma, tanto o indivíduo quanto a sociedade perdem o “direito de
escolha pela morte”. E, segundo Durkheim (1897/2000), à medida que o tempo
passa, essa proibição torna-se ainda mais radical, mas não evitou que o fato
ocorresse. Marx (1846/2006), em seu livro “Sobre o Suicídio”, alerta sobre esse
fracasso, quando diz dessa crença em conter o autoextermínio com base em
penalidades, sejam elas morais ou jurídicas.
Vê-se que o suicídio não é, definitivamente, evento recente em nossa sociedade.
Na linha histórica tem-se desde ato “heróico”, honroso, até penalizações e sanção
desse “direito” (DURKHEIM, 1897/2000). Mas, realmente, o que vem a ser o
suicídio?
As abordagens sociais referem-se àquelas que buscam respostas nas ciências
sociais. Essa vertente entende o suicídio como fato e sintoma social.
Responsabiliza não só o indivíduo, mas toda sociedade sobre cada ato de
autoextermínio. O foco é a sociedade e suas mazelas, seus vínculos e forma de
funcionamento.
Segundo Rodrigues (2009), apesar de Marx e Durkheim partirem de pontos de
vistas diferentes, eles chegam à conclusão de que a “causa” desse sintoma é
social. Marx faz um estudo de casos analisando a “vida privada” e Durkheim parte
de uma análise do “exterior”, da sociedade, do contexto. Rodrigues (2009, p. 706)
afirma que, “[...] como Durkheim, Marx também acreditava que os valores sociais
43
são determinados pela natureza particular das sociedades e [...]”. Como somos
parte integrante desse sistema, não há como eleger privilegiados para
determinados sintomas, pois “[...] uma sociedade de natureza desumana fere
todos, das mais diversas origens sociais”.
Essa sociedade fere todos, mas apenas alguns cometem suicídio. Com base
nessa afirmação, é necessário pensar na necessidade de “[...] lançar mão de
múltiplos olhares que focalizem a relação que travamos entre o interior/exterior”
(RODRIGUES, 2009, p. 708). Por intermédio das palavras de Enderle (1846, apud
MARX, 2006, capa do livro de MARX) percebe-se essa ampliação de perspectiva
quando se referir ao suicídio:
[...] uma correta compreensão do suicídio não pode limitar-se a causas
puramente psicológicas, tampouco reduzir este fenômeno a uma
variável condicionada por fatos sociais exteriores ao indivíduo. [...] o
suicídio possui, em Marx e Peuchet, o alcance de uma renúncia do
indivíduo a uma existência inautêntica, apartada do gênero humano.
Suas raízes não se encontram, portanto, em nenhuma individualidade
ou sociedade cristalizadas, mas sim no âmago daquele vivo e sempre
mutável complexo de categorias que chamamos de ser social.
É justamente esse ser social que tenta o autoextermínio que se busca, neste
trabalho, pesquisar, compreendendo esse fenômeno como um ato complexo e
multidimensional.
Assim, aqui suicídio é conceituado como “[...] todo caso de morte que resulta
direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria
vítima e que ela sabia que produziria esse resultado” (DURKHEIM, 1897/2000, p.
14). E para esse autor, o suicídio possui três tipos: egoísta, altruísta e anômico. O
egoísta resulta de uma falha da integração do indivíduo com o seu meio social,
ou seja, há excesso de individualização e o vínculo se perde, fazendo com que a
pessoa não tenha mais sentimentos de coletividade e a sua vida seja
insignificante para o “todo”. O altruísta é o oposto; o indivíduo está unificado ao
social de tal forma que não existe na sua singularidade, não há individualidade;
depende e está totalmente integrado ao meio social. O terceiro e último é o
anômico, um estado de desregramento, uma fraca regulação social na qual o
44
indivíduo não encontra razão em si nem no meio social, está sem freio para
dominar suas paixões.
Suicídio é um ato praticado por um indivíduo, porém suas causas não são
puramente subjetivas; são sociais, referem-se à sociedade na qual ele pertence.
Acredita-se que o suicídio é um “[...] sintoma da organização deficiente de nossa
sociedade” (MARX, 1846/2006, p. 23-24). E que “[...] os motivos pessoais que
levam os indivíduos a buscarem a morte de maneira deliberada podem funcionar
como canais por onde forças coletivas também passam” (RODRIGUES, 2009, p.
700).
Nesse contexto, a tentativa de suicídio seria justamente um esforço sem êxito,
“[...] interrompido antes que dele resulte a morte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 14).
Nessa perspectiva sociológica, o suicídio e a tentativa são produtos das relações
que se presentificam nos âmbitos sociais de uma sociedade “adoecida” e
“perversa”. Durkheim e Marx consideram o sujeito um integrante de uma cena do
contexto social e o foco privilegia esse cenário.
Atualmente, uma socióloga de nome Maria Cecília de Souza Minayo, estudiosa
sobre o assunto, assim como vários outros autores, faz algumas reflexões mais
ampliadas, abordando a temática por meio de uma interseção com a saúde e
tratando o fato como violência estrutural e grave problema de saúde pública.
Resgata a história brasileira marcada pelas diversas violências e, recentemente,
em estudo realizado com outros pesquisadores, apresenta uma metodologia
psicossocial para autópsias psicológicas e psicossoais, na qual busca diversificar
as interlocuções, apostando que o suicídio é multicausal, multidimensional, social,
mas também singular, pois “[...] cada pessoa reage e interpreta o sofrimento que
a atinge de um modo particular” (CAVALCANTE et al., 2012, p. 2051). Essa nova
visão é um convite à transdisciplinaridade!
45
2.4 Visão psicossocial do suicídio
Para apresentar a visão psicossocial, utilizar-se-ão três autores, que são
complementares, para expressar a compreensão do suicídio e da tentativa nesta
perspectiva.
Bastos (2009, p. 72) considera que as tentativas de autoextermínio são diferentes
do suicídio fatal, pois há um “desejo ambíguo” entre a vida e a morte e “[...] nem
todo paciente que tenta se matar necessariamente tornar-se um suicida de fato”.
Baseado em estudos de Stubbe e Bojanovsky, ele apresenta passos gradativos
antes de se chegar ao suicídio propriamente dito, conforme FIG. 4:
FIGURA 4 – Contínuo da autodestruição
1º Grau de suicídio
2º Grau de suicídio 3º Grau de suicídio
VIDA
MORTE
Fantasias suicidas
Tentativas de suicídios Suicídios exitosos
Fonte: adaptado de Bastos (2009, p. 71) com adaptações.
O autor defende a visão psicanalítica e declara que o primeiro grau de suicídio
refere-se ao nosso inconsciente e que todos o apresentam, o que não significa,
necessariamente, que venhamos a tentar suicídio ou de fato nos matar. O
segundo grau de suicídio é considerado uma fase intermediária na qual “[...]
realiza-se alguma atitude que põe em risco a sua própria vida [...]” (BASTOS,
2009, p. 72), o que não significa, objetivamente, que essa pessoa se tornará “um
suicida de fato”. Porém, existe o alerta para que não haja negligência do
profissional clínico diante do ato. O terceiro grau caracteriza-se pelo “forte e firme
desejo” que a pessoa tem de se matar, com grandes possibilidades de
concretização do ato de autoextermínio.
Assim, o ciclo do suicídio teria essas três fases, que são separadas em graus,
trazendo as características peculiares de cada um. Bastos (2009) também
46
recomenda para tratamento dos primeiros graus um trabalho com equipe
multiprofissional para reversão dessa “tendência autodestrutiva”. E ressalta a
necessidade de verificar o contexto político e social que inclui esse sujeito, pois é
em função dele “[...] que poderemos ler qual desses fatores ou patamares poderá
estar preponderando na tentativa da morte de si mesmo ou no suicídio fatal”
(BASTOS, 2009, p. 68).
Boronat (2013)4, baseado em muitos estudos sobre o tema, construiu um
esquema que seria uma síntese do processo do suicídio que ultrapassa e
completa a ideia de Bastos. Ele parte dos fatos cotidianos vivenciados por todos
nós e ressalta que as nossas ações são escolhas e possuem intenções com foco
no alcance e na conquista de algo. Quando fazemos escolhas que dificultam ou
impossibilitam a conquista daquilo que desejamos, temos um problema: “[…] En
la medida que aparecen las dificultades, cualquier situación puede transformarse
en un problema cuando no encontramos alguna alternativa posible y sustitutiva”
(“[…] Na medida em que aparecem as dificuldades, qualquer situação pode
transformar-se em um problema quando não encontramos alguma alternativa
possível ou substitutiva” – tradução livre) (BORONAT, 2013, s.p.).
Podem-se encontrar soluções para alguns problemas e conviver com outros, no
entanto, alguns se agravam nessa ausência de possibilidades na qual as
soluções não são aquelas desejadas ou aceitas; e assim tem-se um conflito. Até
então, fatos cotidianos, problemas e conflitos são comuns nos sujeitos e fazem
parte da nossa existência. O que difere uma pessoa da outra é, entre várias
outras peculiaridades, justamente as suas relações consigo, com os outros e com
o mundo, que são influenciadas pelo ambiente político, histórico, social e subjetivo
(psíquico) (BORONAT, 2013, s.p.).
Esse conflito, quando não resolvido, torna-se insuportável para o sujeito e tem-se
uma crise. Para Boronat (2013), a crise é totalizadora e a pessoa deseja a todo o
instante acabar com a angústia que sente, pois se confunde com a dor que é da
ordem do insuportável. Nessa fase tem-se baixo potencial suicida.
4
Boronat enviou a apresentação por e-mail e autorizou o uso do seu esquema, ainda não
publicado.
47
Caso a crise não seja vista, escutada e tratada, a pessoa passa a ter
pensamentos de fuga, pois não consegue distanciar-se do seu sofrimento. E
“sumir, fugir, distanciar” são soluções vistas para encerrar com o insuportável.
São fantasias negativas que geralmente a pessoa verbaliza antecipando as suas
decisões. Boronat (2013) destaca alguns comportamentos característicos dessa
fase: “[...] síndrome pre-suicida (germina la idea); pérdida de intereses, repliegue
sobre sí mismo; Suspensión de las vivencias en el tiempo; Inhibición de la
agresividad” (“[…] síndrome pré-suicida (nasce a ideia); perda de interesse, volta
para si mesmo, suspensão das experiências exteriores, inibição da agressividade”
– tradução livre) . Nesta fase, o potencial suicida é mediano e o autor ressalta a
possibilidade e necessidade de “prevenção”, de ações interventivas e preventivas.
Boronat (2013, s.p.) preleciona: “[…] La fantasía permanente de huída, el
sentimiento de soledad y de que no existe solución ni comprensión para su
sufrimiento, transforma el deseo de alejamiento en la idea de desaparecer, de
matarse” (“[…] A fantasia permanente de ruína, o sentimento de solidão e de que
não existe solução nem compreensão para o seu sofrimento, transforma o desejo
de afastamento em uma ideia de desaparecer, de matar-se” – tradução livre).
Essa é a fantasia de morte, também chamada de ideação suicida. Nesse
momento, há um planejamento da ação com detalhes do tipo: onde, quando,
como e que, variando, para o autor, segundo a situação e personalidade do
sujeito. O potencial suicida é alto e, geralmente, há mensagens das intenções.
O desenvolvimento da ideação suicida é detalhado por Boronat (2013, s.p.,
trasdução livre), sugerindo que os três momentos são preveníveis:
Consideración: El suicidio es una vía de escape de los conflictos.
Ambivalencia: Lucha interna entre las tendencias destructivas y de
conservación.
Decisión: Aparece una brusca tranquilidad “siniestra”.
Aparecen actos preparatorios, planificación concreta.
Consideração: O suicidio é uma via de escape dos conflitos.
Ambivalência: Luta interna entre as tendencias destrutivas e de
conservação.
Decisão: Aparece uma brusca tranquilidade “sinistra”
Aparece matos preparatórios, planejamento concreto.
48
Essa ideia, quando concretizada e não ocasiona imediatamente a morte, recebe o
nome de tentativa de suicídio. Podem ocorrer várias tentativas e quando não
são escutadas e assistidas em tempo possivelmente serão repetidas no prazo de
três a seis meses. Para Boronat (2013), os “intentos” são ensaios ou buscas de
mudanças no seu entorno para término do sofrimento sentido. E ressalta que são
imprescindíveis a assistência e o cuidado da pessoa nesse momento.
Caso a tentativa seja “exitosa” tem-se o suicídio em si e o que resta a fazer, de
acordo com o autor, é decodificar as mensagens deixadas pela pessoa para
interpretar os motivos e causas, a partir das autópsias psicológicas. Pontua,
também, que a família deve reordenar-se diante desse contexto e acrescenta que
ações pontuais e até preventivas no núcleo familiar deverão ocorrer, pois é sabido
na literatura que a existência de casos de suicídio na família pode ser dispositivo
para que outros consanguíneos repitam a ação (BORONAT, 2013).
Conforme explanação anterior e FIG. 5, percebe-se que esse é um processo
contínuo e crescente que se inicia com um fato corriqueiro e no meio do caminho
são transmitidos vários sinais de que devem ser escutados para que esse “ciclo”
não se conclua e não seja preciso perder mais vidas. Assim, a proposta de
prevenção para interrupção do agravamento dessas fases torna-se prioridade.
FIGURA 5 - Processo de suicídio
Fonte: adaptado de Boronat (2013).
O contínuo de autodestruição apresentado por Bastos (2009) e o processo do
suicídio construído por Boronat (2013) explicam o fato de forma psíquica,
49
subjetiva e contribuem de forma efetiva para a construção de intervenções
preventivas clínicas e sociais, baseadas no funcionamento e procedimentos
característicos do suicídio e dos sujeitos que cometem ou são “acometidos” por
ele.
Bentancurt (2011) acredita que existem características de personalidade que
propiciam o suicídio, mas aposta em uma visão mais sistêmica e inclui a família e
o contexto social, pois acredita que o conflito não é individual.
Assim sendo, a autora apresenta, no QUADRO 1, algumas características que
estão na base, são causas primárias de um suicídio ou da tentativa.
QUADRO 1 – Fatores de risco para o suicídio
Familiares
Sociais
Antecedentes familiares de conduta Exposição a outro suicídio, de um
suicida
companheiro, amigo ou conhecido
Disponibilidade de meios em casa
Acesso a meios letais e meios de
comunicação irresponsáveis
Antecedentes de depressão ou Estigma negativo associado à procura
enfermidade mental na família
por ajuda e falta de acesso aos
serviços de ajuda
Mudanças na estrutura familiar e Morte inesperada e outros eventos de
também mudanças constantes de perda
residência
Família
disfuncional:
violência; Violência estrutural e problemas com
dificuldades de comunicação; abuso a lei
de álcool ou drogas; pais incoerentes,
imprevisíveis ou muito rígidos
Isolamento
Isolamento ou discriminação social
Expectativas paternas afastadas da Altos níveis de pressão, inclusive para
realidade (sobre-exigência)
ter êxito
Bullying, cyberbullying ou eventos
Família pouco afetiva ou excludente
humilhantes
Fonte: adaptado de Bentancurt (2013), que autorizou por e-mail o uso da sua apresentação, com a
devida referência para citação que foi fornecida por ela.
Nesse quadro didático e aparentemente simples é possível visualizar que o
suicídio é um fenômeno multifatorial, complexo, social e histórico, que extrapola
as características de personalidades. A questão familiar explora desde o ambiente
físico e concreto até as relações e vínculos estabelecidos, passando, inclusive,
50
pelo imaginário quanto ao desempenho dos papéis dos seus membros. No social,
percebe-se a ampliação do círculo desse sujeito, com fatos que extrapolam a sua
“autonomia”, pois estão presentes para todos e o diferencial será justamente a
forma como lidar com eles.
A ideia apresentada complementa os autores anteriores, ressaltando a
contribuição desses fatores “externos” ao sujeito para que decida por ações que
visam à morte ou ao alívio de um sofrimento (BENTANCURT, 2011).
O mais interessante é que Bentancurt (2011) apresenta possibilidades de
prevenção e tratamento e denomina DE “recursos” capazes de ajudar o sujeito.
São baseados no QUADRO 1, no qual se incluem as características e ações
pessoais, familiares e sociais necessárias para a promoção de saúde da pessoa.
Como traços pessoais ou de personalidade, cita a criatividade, adequada
autoestima,
capacidade
prospectiva,
autoexigência
proporcional
às
suas
capacidades, etc. Na parte das relações familiares, afirma serem necessários:
relações afetivas, tolerância com erros, apoio incondicional, reconhecimento,
comunicação favorável, etc. Em relação às características sociais, menciona as
amizades e relações emocionalmente significativas; acesso a oportunidades de
desenvolvimento pessoal integral, e adequada resolução de conflitos.
O sujeito transita, então, pela sua psique, sua família e pelo item social. E a partir
das relações que constrói e que são estabelecidas consigo, com outro e com o
mundo
encontra
fatores
que
favorecem
ou
não
o
risco
do
suicídio
(BENTANCURT, 2011).
Neste texto, foi possível verificar que, por ser extremamente complexo, o suicídio
deve ser percebido, estudado e tratado por diversas fontes, que ao conversarem
entre si identificam as peculiaridades e diferentes ressalvas sobre o mesmo fato.
51
2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) afirma que o suicídio refere-se
diretamente à agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido
sobre si mesmo, com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as
20 maiores causas de morte mundiais para todas as idades e que a cada 40
segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador!
Principalmente ao se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou
ao nível de, na atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco. Cabe
ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também multifatorial,
sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não menos densos.
O suicídio é um fato antigo, mas que se apresenta na atualidade como problema
de saúde pública. Tardiamente incluído na agenda pública, mobilizou parte da
sociedade e do poder público para construção de políticas e ações de prevenção.
A tentativa de suicídio, ainda mais complexa, por sua dificuldade de registro,
destaca o imperativo de intervenções urgentes. Essa assertiva encontra eco nas
dizeres do Ministério da Saúde, quando afirma que os registros de tentativas de
suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo
menos 10 vezes maior do que o número de suicídios (BRASIL, 2009).
[...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as
informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum
nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade,
método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços
de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de
suicídio não são claramente conhecidos (OMS, 2002, p.187).
Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo
profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa
que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte a todo o
momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados
sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e
processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e
opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” escolhe por ela.
Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida
52
diariamente com pessoas, em tenra idade e, ao que tudo indica, que não veem
pela frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a
morte não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime
significado aos objetos e atos que executa. Dessa maneira, não se pensa na
violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado
por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas
representações e significações referentes à vida e à morte.
Os profissionais da saúde lidam com suas questões subjetivas e também as
objetivas que otimizam e viabilizam o trabalho. Como exemplo, pode-se citar a
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde
(CID), que enquadra e caracteriza o suicídio como lesão autoprovocada
intencionalmente (X60 a X84). É esse código que aparece, ou deveria aparecer,
nos prontuários para determinar e orientar a atuação diante desse tipo de
violência, pois o profissional é obrigado a notificar em formulário específico tal fato
(CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008).
Com base nesses dados e em estudos, percebeu-se a necessidade de construir
políticas públicas de prevenção do suicídio e promoção da saúde. O suicídio é
visto como um grave problema de saúde pública que afeta todos e pode ser
prevenido e, para tanto, várias portarias foram criadas. Entre elas, destacam-se:
a) Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001, que dispõe sobre a Política
Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências,
cujo objetivo é estabelecer diretrizes e responsabilidades institucionais em
que se contemplem e valorizem medidas inerentes à promoção da saúde e
à prevenção de agravos externos (BRASIL, 2001);
b) Portaria nº 936, de 19 de maio de 2004, que dispõe sobre a estruturação
da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a
implantação e implementação de núcleos de prevenção à violência em
estados e municípios (BRASIL, 2004a);
c) Portaria nº 1876, de 14 de agosto de 2006, que institui Diretrizes
Nacionais para Prevenção do Suicídio, a serem implantadas em todas
53
as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de
gestão (BRASIL, 2006b).
As proposições dessas portarias possibilitaram a construção de ações de
prevenção da violência e promoção da saúde. Alguns manuais foram criados para
orientar os profissionais de saúde, dos diferentes níveis de complexidade, nas
ações de prevenção do suicídio. Apesar de algumas iniciativas reforçarem a visão
biomédica do fenômeno, não se pode negar que o tema entrou para pauta da
saúde e isso trouxe benefícios. Também é importante destacar que essa inclusão
deu-se por fatores econômicos, inclusive, pois o custo de vitimados pela violência
nos serviços de urgência é altíssimo. De acordo com informações do site do
Ministério da Saúde (SIH–SUS), em 2003 aproximadamente, 724 mil pessoas
foram internadas por causas externas e o custo disso aos cofres públicos foi de
R$ 466.412.502,80 (BRASIL, 2012a). Portanto, não sejamos ingênuos de
acreditar que a “cultura pela paz” se dá meramente pela filosofia “cristã” e
solidária de um governo; o suicídio é um problema histórico, social, político,
econômico e psíquico.
2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da
saúde
A discussão sobre o conceito de qualidade de vida aborda diferentes olhares
sobre a temática, destacando aspectos objetivos, subjetivos, econômicos e
sociais, dependendo da perspectiva e do campo semântico que será analisado.
Na verdade, o ponto comum é seu aspecto multidimensional, sua multiplicidade e
variedade de fatores que influenciam sua composição.
Minayo (2000) afirma que a relação estabelecida entre saúde e qualidade de vida
é antiga e existe desde o século XVIII, quando surgiu a Medicina social. Naquele
tempo, o termo utilizado era: condições de vida. Outro ponto importante para
ressaltar é que as pesquisas realizadas com esse viés subsidiaram algumas
políticas públicas e movimentos sociais.
54
Atualmente, existem indicadores e diversos instrumentos utilizados para medir a
qualidade de vida de determinados grupos e sociedades, inclusive brasileiros
(final dos anos 80), que se basearam na compreensão da nossa realidade social,
considerando as desigualdades existentes na perspectiva microrregional, com
foco local (MINAYO et al., 2000).
De acordo com Silveira et al. (2013, p. 2008), “[...] há uma escassez de estudos
sobre a qualidade de vida entre adolescentes brasileiros” e urge a necessidade de
mais estudos para esta população, visando à elaboração de políticas públicas de
prevenção e promoção de saúde. E quando se pensa na violência juvenil
existente em nosso país, esta temática torna-se relevante e preocupante, pois os
dados vistos vão de encontro ao que se considera qualidade de vida para as
crianças e adolescentes.
Minayo (2000, p. 10) destaca essa preocupação, afirmando que “[...] no mundo
ocidental atual, por exemplo, é possível dizer também que desemprego, exclusão
social e violência são, de forma objetiva, reconhecidos como a negação da
qualidade de vida”. Mas o que consideramos como qualidade de vida?
Antes de apresentar o conceito, cabe refletir acerca das palavras de Herculano
(2000), que salienta a necessidade de abordar a qualidade de vida como base
para a construção de uma sociedade ética, humanizada e que respeite a vida e as
potencialidades humanas sem destruir a natureza. Nessa consideração, pode-se
verificar que a qualidade de vida é mais que um simples conceito, é uma visão de
mundo que orienta ações e constrói sujeitos.
A esse respeito, Rufino Netto (1994, apud MINAYO, 2000, p. 8), no II Congresso
de Epidemiologia, considera:
[...] como qualidade de vida boa ou excelente aquela que ofereça um
mínimo de condições para que os indivíduos nela inseridos possam
desenvolver o máximo de suas potencialidades, sejam estas: viver, sentir
ou amar, trabalhar, produzindo bens e serviços, fazendo ciência ou artes.
Qualidade de vida, então, é um misto de objetividades e subjetividades que vão
possibilitar a saúde e existência diferenciada dos sujeitos no mundo. Erik Allardt
55
(1993, apud VITTE, 2009), enfatiza que as necessidades individuais podem ser
resumidas em três verbos: ter, amar e ser. O verbo ter estaria ligado às condições
materiais, “necessidades básicas, de sobrevivência”. O amar seria aquela
necessidade de relacionar-se com outras pessoas, formando identidades sociais;
são os aspectos afetivos e de “solidariedade intragrupos”. O ser ultrapassa e
engloba a integração com a sociedade pelo viés da participação: em que medida
uma pessoa participa nas decisões e atividades coletivas que influenciam sua
vida, atividades políticas, oportunidades de tempo de lazer, etc.
Essa proposta aparentemente simples abrange diversas dimensões humanas que
propiciam, ou não, a qualidade de vida. O ter está relacionado às condições de
vida das pessoas e é preponderante que essa pessoa tenha moradia,
alimentação, saneamento e acesso aos setores e serviços básicos para que se
relacione com o mundo de forma diferenciada e positiva (ALLARDT, 1993 apud
VITTE, 2009).
Na dimensão do verbo amar é interessante resgatar “[...] as ideias de
desenvolvimento sustentável e ecologia humana”, destacados pela autora Minayo
(2000, p. 10). É essa solidariedade e consciência coletiva que torna o ser humano
capaz de construir uma forma diferenciada de ser e estar no mundo, garantindo o
seu bem-estar e a qualidade de vida de todos.
O verbo ser remete à dimensão de sujeito, cidadão e “[...] relaciona-se ao campo
da democracia, do desenvolvimento e dos direitos humanos e sociais” (MINAYO,
2000, p. 10). E sabe-se que a relação estabelecida entre a democracia e a
qualidade de vida é íntima, pois “[...] quanto mais aprimorada a democracia, mais
ampla é a noção de qualidade de vida, do grau de bem-estar da sociedade e da
equidade ao acesso aos bens materiais e culturais” (MINAYO, 2000, p. 11).
Assim sendo, ter, amar e ser são fundamentais para a construção da qualidade
de vida. Qualidade de vida, então, é um processo multidimensional de construção
do seu lugar no mundo, considerando os aspectos biológicos (necessidades
básicas), psicológicos, políticos, sociais e ambientais.
56
Alguns pesquisadores discutem a temática e preocupam-se com os instrumentos
utilizados para a sua medição, sua avaliação. Segundo Fleck (2000), a OMS
desenvolveu um instrumento para avaliação da qualidade de vida chamado World
Health Organization Quality of Life (WHOQOL-100) e, posteriormente, criou sua
versão resumida com apenas 26 questões (WHOQOL-Bref). Seidl e Zannon
(2004) abordaram a construção desse instrumento como um projeto multicêntrico
baseado em quatro grandes dimensões: física, psicológica, relacionamento social
e ambiente. Essas dimensões são também contempladas nos verbos, ter, amar e
ser, destacados por Erik Allardt (apud VITTE, 2009). Desta forma, percebe-se
que, no seu aspecto prático e objetivo, é possível mensurar esses pressupostos,
principalmente porque a avaliação do grau de qualidade de vida em que a pessoa
se encontra é explicitado de forma subjetiva.
É subjetivo porque “a qualidade de vida só pode ser avaliada pela própria pessoa”
(SEIDL; ZANNON, 2004, p. 582). E assim tem-se a definição de qualidade de vida
pelo grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde como “a
percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no panorama da cultura e
dos sistemas de valores nos quais ele vive e em relação a seus objetivos,
expectativas, padrões e preocupações” (SILVEIRA et al., 2013, p. 2008). Isso não
descaracteriza sua multidimensionalidade, visto que é composta de: “[...] um
híbrido biológico-social, mediado por condições mentais, ambientais e culturais”
(MINAYO, 2000, p. 12).
Sendo a qualidade de vida um conceito tão complexo e inesgotável, salienta-se
um aspecto de grande importância e que necessita de todas as dimensões: ter,
amar e ser para se efetivar. Fala-se, neste momento, da prevenção da violência
autoinfligida e da promoção da saúde como uma das formas de construção e
efetivação da qualidade de vida.
Por fim, esta pontuação convoca à reflexão de Rodrigues (2009, p. 711), que
suplica a formulação de políticas públicas que, “[...] levando em consideração
quem somos, ajudem-nos a não desperdiçar mais vidas” e a pensar em
intervenções locais que considerem a prevenção e a promoção da saúde com
enfoque na qualidade de vida como estratégias para ter, amar e ser.
57
A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências
foi promulgada em 2001, por intermédio da Portaria GM/MS nº 737/2001, e tem
como objetivo central o estabelecimento de diretrizes e responsabilidades
institucionais visando ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos
externos (BRASIL, 2001). Para sua implementação, em 2004 foi estruturada a
Rede Nacional de Prevenção de Acidentes e Violências com base em três
estratégias centrais: informação e gestão em rede; criação de núcleos estaduais,
municipais e acadêmicos; indicadores de gestão. As diretrizes dessa política
preveem ações de prevenção nos três níveis, a partir de investimentos na
promoção da saúde, assistência multidisciplinar e intersetorial, sistematização dos
dados, qualificação dos recursos humanos e estudos e pesquisas na área.
É interessante registrar que, como há dificuldade em inserir no cotidiano dos
profissionais essas diretrizes e práxis e a assistência aos “vitimados” pela
violência, principalmente aqueles que tentaram suicídio são vistos como “não
sujeitos” que escolheram a morte e, portanto, salvar sua vida não é prioridade nos
atendimentos, seja na atenção primária, ambulatórios ou urgências (MELO,
2010).
Melo (2010, p. 15) explicita a “não existência” desses sujeitos, que são reduzidos,
quando muito, a apenas um corpo doente, reproduzindo a ideologia e o poder
biomédico no setor público de saúde. Propõe que o combate à violência recupere
“[...] em cada espaço, no cotidiano, essa competência que nos dá, a todos, a
condição de sujeitos, a fala; e explorar, ao máximo, em todos os espaços, as
suas potencialidades interativas” (grifo nosso). Para isso, é preciso ouvir e
mapear o problema para, assim, construir estratégias de prevenção e promoção
da saúde.
Elaborar propostas de prevenção e promoção são ações difíceis e devem ser
pensadas e construídas em conjunto com todos os envolvidos. Considerar os três
tipos de prevenção também é interessante para delimitar em qual nível ou quais
níveis as intervenções ocorrerão. Tem-se, assim, de acordo com Krug et al.
(2002, p. 15), a seguinte classificação:
58
· Prevenção primária - abordagens que visam a evitar a violência antes
que ela ocorra.
· Prevenção secundária - abordagens que têm como foco as respostas
mais imediatas à violência, tais como assistência pré-hospitalar, serviços
de emergência ou tratamento de doenças sexualmente transmitidas após
um estupro.
· Prevenção terciária - abordagens que visam à assistência em longo
prazo no caso de violência, tais como reabilitação e reintegração, e
tentam diminuir o trauma ou reduzir a invalidez de longo prazo associada
à violência (grifo nosso).
Mesmo na prevenção secundária, em que há “mais” urgência na atuação dos
profissionais, é possível e preciso escutar esse sujeito para além das suas lesões.
É necessário perceber as crianças e os adolescentes que tentaram suicídio e
chegam aos serviços de urgência e emergência como sujeitos e não apenas
pequenos corpos lesionados que precisam de sutura, lavagem gástrica ou demais
procedimentos. É pela saúde que eles pedem socorro e esse grito deve ser
também “tratado”. Não há como acolher, atender e tratar os sujeitos sem escutálos, muito menos criar projetos de intervenções sem incluí-los no processo.
Sejam políticas locais ou globais, a presença e participação dos cidadãos torna-se
fator indispensável para sua realização. A construção de redes e parcerias entre
os setores e as pessoas possibilita uma ação eficiente e eficaz no combate à
violência e na mobilização para uma cultura da paz. Sem ingenuidades, aqui não
se desconsideram os poderes e interesses existentes na perpetuação e
manutenção na violência, nem mesmo o recurso financeiro para sua manutenção.
A crença é de que esse fenômeno pode ser prevenido e reduzido, de forma que
se preservem as vidas, principalmente das nossas crianças e adolescentes, pois
a vida vale muito, literalmente! (SILVA; MAETA, 2010).
Silva e Maeta (2010) compartilham dessa visão e afirmam que a saúde deve atuar
intersetorialmente e intervir nos fatores determinantes e condicionantes da
violência, desenvolvendo ações de vigilância, promoção e prevenção.
Através de articulações intra e intersetoriais, deve-se buscar a
construção de redes de solidariedade, a garantia de direitos, a promoção
de uma cultura de paz e uma atenção integral e humanizada as pessoas
que sofreram violência ou estão em vulnerabilidade às violências. Dentre
as ações desenvolvidas pelo setor saúde, destacam-se também as
articulações feitas no sentido de implementar medidas promotoras da
qualidade de vida e de leis que sejam protetoras e que garantam direitos
59
humanos. Outra grande ação é a avaliação de políticas e programas e a
formação de recursos humanos, dentro de uma perspectiva de educação
permanente (SILVA; MAETA, 2010, p. 85).
Ressalta-se, no entanto, que a “atenção integral” é uma utopia a ser alcançada e
que a saúde não é a salvadora do mundo nem a aniquiladora da violência, pois
esta é um fato complexo e multicausal. No entanto, cobrar sua implicação nesse
problema de saúde pública fortalece a rede e instrumentaliza as ações e as
intervenções intersetoriais. A inclusão na agenda escancara o problema como
sendo de TODOS os setores, serviços, profissionais e cidadãos.
Assim sendo, é necessário criar ações estratégicas transversais que perpassam
por várias políticas públicas para alcançar resultados positivos a partir da
prevenção e da promoção.
A Política de Promoção da Saúde foi aprovada em 2006, por meio da Portaria
MS/GM nº 687, e ultrapassa o discurso de cura e reabilitação, focando a
prevenção. Para tanto, aposta em intervenções intersetoriais que consideram
também os aspectos políticos, sociais e ambientais da saúde e as ações são
voltadas para os seus determinantes e condicionantes, ou seja, “[...] fatores da
vida que colocam as coletividades em situação de iniquidade e vulnerabilidade“
(BRASIL, 2012b, p. 11).
Promover a saúde é buscar qualidade de vida da sociedade e, para tanto, faz-se
necessária a sua participação ativa, a partir de gestão compartilhada entre todos
os usuários, os movimentos sociais, os trabalhadores e os gestores públicos e
também privados construindo uma rede baseada na corresponsabilização dos
atores, preservando a autonomia e as peculiaridades (BRASIL, 2010).
Entende-se, portanto, que a promoção da saúde é uma estratégia de
articulação transversal na qual se confere visibilidade aos fatores que
colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre
necessidades, territórios e culturas presentes no nosso país, visando à
criação de mecanismos que reduzam as situações de vulnerabilidade,
defendam radicalmente a equidade e incorporem a participação e o
controle sociais na gestão das políticas públicas (BRASIL, 2010, p. 12).
60
Desta forma, promover a saúde ultrapassa o pensamento biomédico e insere-se
como direito e dever de todo cidadão e esse processo possibilita a ampliação das
perspectivas sobre os problemas existentes, tratando as questões por meio de
uma vertente intersetorial, pois o sujeito é único e suas necessidades diversas.
Não se trata, porém, de atender às demandas existentes, mas de escutá-las e
corresponsabilizar os cidadãos para que também saiam do lugar da simples
“queixa”. A palavra de ordem será: “participação ativa” de todos os envolvidos
para que ações eficientes e eficazes possibilitem saídas para os problemas
multifatoriais e multicausais.
Para resumir o posicionamento adotado neste texto, exibe-se a citação trazida na
Política Nacional de Promoção da Saúde:
Entende-se que a promoção da saúde apresenta-se como um
mecanismo de fortalecimento e implantação de uma política
transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas
áreas do setor sanitário, os outros setores do governo, o setor privado e
não governamental e a sociedade, compondo redes de compromisso e
corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em
que todos sejam partícipes na proteção e no cuidado com a vida
(BRASIL, 2010, p. 15, grifo nosso).
É justamente essa proteção e cuidado com a vida que devem ser pensados
quando se trata de uma temática tão complexa como a violência, em especial a
tentativa de suicídio. Como propor ações efetivas, eficientes e eficazes com
responsabilidades múltiplas, mobilizando recursos humanos e financeiros de
diversos setores e representações, para promover a saúde infanto-juvenil e
reduzir os índices de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do
município de Matozinhos? Eis a questão!
2.7 Gestão social e desenvolvimento local
Na tentativa de articulação dos conceitos e ideias trazidos anteriormente,
elegeram-se a gestão social e o desenvolvimento local como referenciais
transversais para possibilitar reflexões e ações de prevenção à violência e
promoção da saúde no município de Matozinhos.
61
Gestão social e desenvolvimento local são conceitos analisados amplamente na
nossa sociedade. Na verdade, estão intrinsecamente ligados e torna-se tarefa
difícil desmembrá-los, mesmo que para efeitos conceituais e didáticos.
O município é carente de infraestrutura e de espaços que possibilitem o lazer aos
seus moradores. Registra-se que a maioria da população é formada por jovens e
que alguns destes queixavam-se no Ambulatório Infanto-juvenil sobre ausência de
atividades no tempo livre e à falta de opção oferecida pela cidade.
Duas questões precisam ser discutidas nesse aspecto: a real falta de opção de
lazer nos tempos livres e a apropriação dos espaços públicos.
Em Matozinhos, há falta de instrumentos e de ações que estimulem o lazer como
qualidade de vida e o tempo livre passa a ser utilizado de formas diferenciadas
(uso e abuso de drogas, adoecimentos, homicídios, suicídios, etc.) aumentando o
número de pessoas atendidas pelos serviços de saúde mental do município.
O Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental é um lugar onde isso aparece mais
evidente e talvez seja justamente por isso que a escuta do sofrimento desses
sujeitos seja tão importante. Mas ressalta-se que esse não é, ou não deveria ser,
o único espaço. É fundamental ouvir o que eles têm a dizer sobre a morte, a vida,
os sentidos do viver e a qualidade de vida. Soares et al. (2011, p. 3197) destacam
no seu estudo esse movimento de “[...] valorização da perspectiva da criança e do
adolescente como relator de sua experiência de vida [...]” e que além de oferecer
um espaço de escuta é preciso transformar. Transformar esse lugar!
Esse lugar é aqui entendido como referência para as pessoas, no qual se
reconhecem, se identificam, socializam e constroem relações com o mundo,
modificando seu modo de ser e estar. Na visão de Carlos (1996), o lugar permite
que o sujeito pense e reelabore o seu viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu
fazer, produzindo a sua existência social. O Ambulatório Infanto-juvenil pode ser
reconhecido como “lugar” onde se discutem a morte, a vida e a subjetividade dos
sujeitos, pois retrata o objetivo de construção de uma política para o serviço de
saúde mental: proteção e cuidado!
62
É certo que se deseja um desenvolvimento local que ultrapasse as paredes de um
serviço de saúde mental institucionalizado, no entanto, perceber a ressignificação
da subjetividade e relação desses sujeitos é muito gratificante e torna a ação mais
que válida, inovadora! Principalmente quando esse serviço pode contar com os
demais atores da rede de acolhimento, atenção e promoção de saúde.
Essa transformação local, pessoal e social visa ao desenvolvimento. Mas o que
seria, então, um “desenvolvimento local”? Tem-se estudado e abordado tal tema
sob diferentes olhares. Uns enfatizam o caráter econômico, outros o social, o
humano, o ambiental, a junção deles, e assim por diante. Na verdade, o que se
percebe é que não há consenso conceitual sobre o tema. O conceito e as ações
estão em processo de construção. Nessa perspectiva, aborda-se, neste trabalho,
uma visão mais humanista e para sustentar essa crença serão utilizados alguns
autores que compartilham dessa idéia.
O desenvolvimento local valoriza as ações “microrregionais” e intersetoriais.
Proporciona aos atores o verdadeiro protagonismo, estabelecendo redes,
parcerias e encontrando formas “micro” de resolver problemas e dificuldades
“regionais”. Oferece aos cidadãos a autonomia, a liberdade e a oportunidade de
construção de uma vida melhor: “qualidade de vida”. Enfatizar o local como
âmbito de história, vida, sentido e transformação.
Sen (1999) concebe o desenvolvimento local como “um processo de expansão
das liberdades” e ressalta que o papel dos sujeitos, como instrumentos de
transformação, deve ultrapassar a visão econômica e incluir a perspectiva social e
humana. Não nega o econômico, mas transcende-o, tornando-o social, cultural e
humano, para a promoção do bem-estar e, por que não, da “qualidade de vida”.
Para que essa transformação econômica, política, cultural e social ocorra é
necessário que as pessoas se tornem sujeitos, cidadãos ativos de seu processo
de crescimento e desenvolvimento. Na construção desse processo a informação,
ou melhor, a educação faz-se primordial para sermos atores principais nas nossas
63
mudanças. De acordo com Dowbor (2007), a ação do cidadão depende da
informação contextualizada que acontece desde a infância.
A ideia da educação para o desenvolvimento local está diretamente
vinculada a essa compreensão e à necessidade de se formarem
pessoas que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas
capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas
(DOWBOR, 2007, p. 76).
Diante desta discussão, percebe-se a necessidade de intervenções pontuais e
transversais que colaborem para o desenvolvimento social, econômico e humano.
O município de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, compartilha
das limitações nacionais no que se refere à saúde, principalmente saúde mental
de sua população. Crianças, adolescentes e adultos jovens tentam suicídio
frequentemente e não há trabalhos preventivos implantados, apenas tratamento
paliativo e para poucos, pois a estrutura física e profissional não suporta toda a
demanda.
Urge a construção e implantação de uma proposta de intervenção com foco na
promoção da saúde que seja construída em conjunto com a população, baseada
nos princípios de democracia, cidadania, educação e desenvolvimento.
Essa escolha vai ao encontro de uma visão que favorece a gestão social, aqui
pensada como sinônimo de participação, justiça, igualdade e liberdade que visa à
transformação da sociedade.
[...] gestão social como um conjunto de processos sociais com potencial
viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório e
transformador. É fundada nos valores, práticas e formação da
democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões
da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da
afirmação dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova
civilidade. Construção realizada em pactuação democrática, nos
âmbitos local, nacional e mundial; entre os agentes das esferas da
sociedade civil, sociedade política e da economia, com efetiva
participação dos cidadãos historicamente excluídos dos processos de
distribuição das riquezas e do poder (MAIA, 2005, p. 15-16, grifo nosso).
Segundo Maia (2005), apesar de diferentes enfoques dados pelos estudiosos de
gestão social, todos possuem como valores fundantes a democracia e a cidadania
e será nessa perspectiva que a intervenção em saúde mental será construída,
64
pois pressupõe a corresponsabilidade. Nessa construção, serão pensadas
estratégias locais possíveis envolvendo a comunidade, as famílias e o poder
público, visando a prevenção, a proteção, a promoção e o melhor acolhimento e
atendimento das crianças e adolescentes em tratamento.
É escutando os sujeitos e convidando para a construção das ações intersetoriais,
em parceria com os demais integrantes da rede, que será possível implantar
propostas de prevenção da tentativa de suicídio e de promoção da saúde infantojuvenil.
2.8 Considerações
Os temas foram separados de forma didática para que esclarecessem seus
pontos de origem e discussões, mas na verdade o intuito desta explanação foi
traçar um diálogo entre essas visões que tivessem como fio condutor a tentativa
de suicídio infanto-juvenil.
A inclusão da violência como temática referente à saúde é um processo lento e
árduo, porém fundamental para a quebra do paradigma biomédico e ampliação da
visão humana de forma mais holística, proporcionando a construção de políticas
públicas transversais e intersetoriais com foco na prevenção e na promoção da
saúde.
Conceituar a tentativa de suicídio como uma forma de violência e escancarar a
sua urgência como um problema de saúde pública possibilita a desmistificação de
alguns mitos e torna a ação um fato concreto, principalmente quando se depara
com uma política pública que busca estruturar uma Rede Nacional de Prevenção
da Violência e Promoção da Saúde. É unânime considerar que algo deve ser feito
quanto à tentativa de suicídio, independentemente da abordagem que seja
privilegiada para sua discussão, para que mais vidas não sejam desperdiçadas.
E promover a saúde é ofertar uma das condições para que os sujeitos tenham
qualidade de vida. Ao ampliar o conceito de saúde e considerar os seus fatores
65
determinantes e condicionantes, tem-se como meta proporcionar aos cidadãos
melhores condições de existência nos seus aspectos físicos, psíquicos, sociais,
políticos e espirituais.
A gestão social democrática, cidadã e compartilhada coloca os “usuários” na cena
e cobra-lhes participação ativa para transformação e desenvolvimento social e
humano. Na atualidade tem-se uma gestão “do” social ou “para” o social e a
proposta e convite feitos, neste trabalho, é que as pessoas reflitam e se
empoderem do seu discurso e poder para saírem do lugar da simples queixa e
promoverem ações efetivas de prevenção e promoção visando melhor qualidade
de vida.
Desta forma, não há como pesquisar a tentativa de suicídio infanto-juvenil sem
passar pela saúde, violência, democracia, cidadania e qualidade de vida. Dar voz
para esses sujeitos e corresponsabilizá-los é primordial para efetivar qualquer
ação.
66
3 OBJETIVOS
Os objetivos desta pesquisa foram divididos em geral e específicos, sendo que
todas as ações desempenhadas foram construídas com este foco.
3.1 Objetivo geral
Analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de
Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos.
3.2 Objetivos específicos
a) Descrever o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças
e adolescentes do município de Matozinhos.
b) Identificar os motivos que levam as crianças e adolescentes do município
de Matozinhos a tentarem suicídio.
c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir
da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e
adolescentes do município de Matozinhos.
67
4 METODOLOGIA
A metodologia é uma das partes mais importantes de toda a pesquisa e sua
escolha está intrinsecamente ligada ao seu problema e objetivo. Geralmente, é
conceituada como um conjunto de normas, técnicas e métodos científicos
sistematizados utilizados para a resolução de problemas e aquisição de
conhecimento.
Minayo (2008, p. 14) extrapola esse conceito e ressalta que a metodologia é a
articulação da teoria e dos pensamentos sobre a realidade. Afirma que “a
metodologia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (o método), os
instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade
do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade)”.
Considerar a criatividade e até mesmo a subjetividade do pesquisador como parte
integrante da metodologia é um diferencial essencial para as pesquisas realizadas
nas “ciências humanas e sociais”, principalmente quando abordam temáticas
delicadas, tal como, tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes.
Nessa acepção, a forma de apreensão e aquisição do conhecimento escolhida,
para a pesquisa, foi a dialética. Esta considera que o sentido das coisas é
historicamente construído, que o sujeito não está deslocado do objeto e visa a
compreender a conexão existente entre a superfície e a essência do fato 5. Konder
(2004) reforça essa ideia ao dizer que a dialética é o modo de se pensarem as
contradições da nossa realidade que permanece em constante transformação.
Para investigar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município
de Matozinhos nos últimos cinco anos, tornou-se primordial adotar uma
concepção que valoriza a dimensão subjetiva e que se preocupa com o fenômeno
no seu contexto psicossocial, histórico e político.
5
Informações retiradas de anotações feitas em sala, no dia 23/03/2012, na disciplina de
Metodologia da Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela professora Dra. Maria Lúcia
Miranda Afonso.
68
Na dialética, “não existe dado sem a relação do pesquisador! Sujeito e objeto
estão relacionados intersubjetivamente e objetivamente no contexto social e
histórico”6. Sousa Santos (1988, p. 16, grifo do autor) esclarece tal afirmativa ao
descrever que:
A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente
catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais
coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do
conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca
o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há
natureza humana porque toda natureza é humana.
O pesquisador, sendo também autor e sujeito no e do mundo em busca de
significados e conhecimentos acerca de uma realidade deve, no encontro com
seus “pesquisados”, ouvi-los crítica e empaticamente. Desta forma, a melhor
linguagem para a descrição da realidade retratada na pesquisa foi a
quantiqualitativa.
Apesar da discussão feita em torno da utilização de métodos quantitativos e/ou
qualitativos e de afirmarem a existência de antagonismo entre eles, compartilhase da visão de Minayo e Sanches (1993, p. 247) quando realçam que “[...] são de
natureza diferenciada, mas se complementam na compreensão da realidade
social”.
Pesquisa qualitativa é aquela que se preocupa com a apreensão do
conhecimento de questões sociais e culturais ao longo do vivido, do sentido, do
valor, do contexto, da subjetividade. De acordo com Serapioni (2000, p. 190), ela
tem a “[...] capacidade de fazer emergir aspectos novos, de ir ao fundo do
significado e de estar na perspectiva do sujeito [...]”, pensando a formação e
relação com o social para construção do saber.
A pesquisa quantitativa preocupa-se mais com os aspectos objetivos e, segundo
Serapioni (2000), seu enfoque é na realidade, mas com o objetivo de produção de
dados numéricos, indicadores e tendências observáveis.
6
Frase retirada de anotações feitas em sala, no dia 30/03/2012, na disciplina de Metodologia da
a
Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela Professora Dr . Maria Lúcia Miranda Afonso.
69
Acreditando que há uma complementaridade entre as duas abordagens e que
essa junção foi necessária e benéfica na aquisição dos dados para responder à
questão da pesquisa, a escolha pela pesquisa quantiqualitativa foi fundamental.
Nesta dissertação caracteriza-se como pesquisa quantiqualitativa mais que uma
simples união de dois métodos. É uma construção de um método científico único
que utiliza técnicas rigorosas e diferenciadas para obtenção de dados, com o
objetivo de responder ao problema inicial e possibilitar uma intervenção social.
4.1 Coleta de dados
Para melhor sistematização da pesquisa, a coleta dos dados foi feita em etapas,
visando à concretização dos objetivos propostos e é minuciosamente descrita a
seguir.
4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município
A busca de dados quantitativos justificou-se pelo fato de o município não ter
registros dos casos de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes e
porque se considerou imprescindível conhecer a magnitude do fenômeno, suas
dimensões e especificações locais.
Inicialmente, foram realizados levantamentos, nos últimos cinco anos, dos casos
de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes (de três a 17 anos), na
Prefeitura de Matozinhos. A separação da faixa etária fundamentou-se no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (MINAS GERAIS, 2012), que
considera crianças aquelas de até 12 anos incompletos e como adolescentes
aqueles entre 12 e 18 anos. No entanto, para este trabalho consideraram-se
crianças a partir de três anos, visto que esta é a idade mínima estabelecida pelo
Ambulatório de Saúde Mental Infanto-juvenil para atendimento psicológico.
70
A busca pelos casos de tentativas de suicídio foi realizada no setor de
epidemiologia do município, nos prontuários do pronto-atendimento (PA) do
município (serviço de urgência onde eles eram atendidos e internados) e também
do Ambulatório Infanto-juvenil (local onde faziam acompanhamento psicológico
após alta da internação). É importante ressalvar que o Ambulatório Infanto-juvenil
foi criado em 2009, o que, por si só, define os três últimos anos como o período
de coleta dos dados, nesse cenário.
Essa coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou no final de maio. O
primeiro local pesquisado foi o Ambulatório Infanto-juvenil. Foram verificadas
aproximadamente 400 fichas, o que corresponde a todos os casos existentes no
serviço, desde sua implantação. As fichas tinham os dados pessoais das crianças
e adolescentes, local de encaminhamento e queixa inicial. O critério de seleção
para a pesquisa foram os casos que tinham como queixa inicial a tentativa de
suicídio, assim como casos que estavam em atendimento cujos sujeitos
cometeram o ato durante o tempo de atendimento, mesmo que a demanda
primária tenha sido outra.
Após a leitura exaustiva dos prontuários e a coleta dos dados das crianças e
adolescentes e das características e demais informações sobre a tentativa de
suicídio, partiu-se para a busca no PA: porta de entrada das urgências e
emergências.
Nesse intervalo, foram solicitados aos profissionais do setor de epidemiologia
dados sobre os casos de tentativa de suicídio registrados no município nas Fichas
do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Foram entregues
registros apenas de 2011 e 2012, pois relataram que eram os únicos existentes.
No PA, as fichas estavam em um arquivo e foi permitido total acesso. As pessoas
que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para posterior triagem
(pré-consulta) com os profissionais de enfermagem, que avaliarão cada caso de
acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são repassadas para o
médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com risco de morte, são
primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências burocráticas.
71
Algumas intercorrências fizeram-se presentes e percebeu-se a necessidade de
registro das atividades de coleta de dados em um diário de campo. Os prontuários
estavam em caixas-box que continham, cada uma, cerca de 1.100 fichas: em
2008 verificaram-se 25 caixas; em 2009 foram 28; em 2010 foram 21; em 2011
foram 27; por fim, em 2012 foram 24 caixas. Totalizando, a leitura foi de
aproximadamente 137.500 prontuários (DIÁRIO DE CAMPO, fev. 2013).
Ressalta-se que uma caixa estava vazia (2009) e que algumas fichas estavam
com dados incompletos, letra ilegível e informando que o paciente foi embora
antes de ser atendido pela triagem.
O critério de inclusão foram todas as fichas apresentaram hipótese diagnóstica de
tentativa de suicídio ou outras descrições que sugeriam tal fato, baseado nas
orientações do CID (X60-X84 – lesões autoprovocadas intencionalmente). Todos
esses dados foram organizados em planilha do Excel para posterior análise pelo
Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0. Todas as
informações recolhidas nas diversas fontes de dados foram categorizadas da
seguinte forma:
1. Fonte dos dados: PA, Ambulatório, SINAN
2. Local de nascimento
3. Data de nascimento
4. Idade: 3 a 18 anos
5. Bairros
6. Data da tentativa de suicídio: 2008 a 2012
7. Tipo
de
tentativa
de
suicídio:
corte,
intoxicação,
queimadura,
eletrocussão, enforcamento, queda / precipitação
8. Local de origem
9. Classificação dos casos: casos com CID; casos sem CID, mas escritos
por extenso; casos com outro CID, mas escritos por extenso; casos
suspeitos sem CID; casos suspeitos com outro CID.
10. Procedimentos adotados
11. Encaminhamentos feitos
12. Reincidências
13. Gravidez
72
Foram investigadas as frequências simples e realizados alguns cruzamentos de
dados para melhor análise e visualização do problema.
4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos
Esse momento foi importante e necessário para estabelecer uma “[...] articulação
das informações compreensivas com dados quantitativos sobre os fenômenos,
buscando responder a questões da prática [...]” (MINAYO, 2006, p. 113). Ouvir os
sujeitos que tentaram suicídio é trazê-los para a cena e retirá-los da invisibilidade
em que se encontram. Assim, foram coletados os dados qualitativos por meio de
grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças:
A) Grupo focal com adolescentes
Houve certa dificuldade para contatar os sujeitos. No primeiro momento foram
enviadas cartas-convites para as casas das crianças e adolescentes aos cuidados
destes e seus responsáveis para se encontrarem com a pesquisadora em dia e
local agendado. As cartas foram entregues pelos agentes de saúde do município,
que informaram a mudança de endereço de três famílias.
A escolha desses sujeitos considerou a data de nascimento, pelo menos dois de
cada idade, e pelo menos um representante de cada tipo de tentativa de suicídio,
incluindo os casos suspeitos cuja intencionalidade apresentava-se mais explícita.
Dos 40 sujeitos convidados por meio de cartas, apenas uma criança e um
adolescente compareceram com os responsáveis, deixando o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado. Outra estratégia então foi
pensada: consideraram-se todas as crianças e adolescentes que tinham número
de contato.
A pesquisadora ligou para 30 adolescentes, explicou sobre a pesquisa e agendou
encontros individuais para a assinatura no TCLE: três não aceitaram o convite,
uma mudou de município (para Ribeirão das Neves), em 13 o telefone não existia
ou estava fora de área e os demais aceitaram e se comprometeram com o
73
encontro, mas apenas quatro apareceram para a assinatura no TCLE. Foram
feitos novos contatos, sem sucesso. Totalizaram-se cinco adolescentes. Desta
forma, foi alcançado o número mínimo para a realização do nosso grupo focal.
Os GFs são grupos de discussão que dialogam sobre um tema em
particular, ao receberem estímulos apropriados para o debate. Essa
técnica distingue-se por suas características próprias, principalmente
pelo processo de interação grupal, que é uma resultante da procura
de dados (RESSEL et al., 2008, p. 780, grifo do autor).
A escolha por essa técnica de coleta de dados justifica-se pela necessidade de se
ouvirem as concepções, pensamentos e sentimentos desse público e dialogar
sobre a tentativa de suicídio no município. Afinal, de acordo com Lervolino e
Pelicioni (2001, p. 116), o “[...] grupo focal tem como uma de suas maiores
riquezas basear-se na tendência humana de formar opiniões e atitudes na
interação com outros indivíduos”.
Complementando esses dizeres, Lervolino e Pelicioni (2001, p. 116, grifo do
autor) explicitam que:
Os procedimentos qualitativos têm sido utilizados quando o objetivo do
investigador é verificar como as pessoas avaliam uma experiência,
ideia ou evento; como definem um problema e quais opiniões,
sentimentos
e
significados
encontram-se
associados
a
determinados fenômenos.
O diálogo, os estímulos e o processo de interação nos grupos focais respeitaram
seus sujeitos e buscaram preservar a integridade física, psíquica e moral de cada
um.
O grupo encontrou-se em um sábado pela manhã (23/11/2013), no salão
paroquial do município (espaço cedido pelo padre), conforme disponibilidade de
todos. Apresentaram-se quatro adolescentes, sendo que um chegou um pouco
atrasado e o pai de um outro foi para explicar a ausência do jovem, que resolveu
não comparecer ao encontro agendado.
Após a acolhida do grupo, cada um fez uma apresentação rápida, dizendo nome,
idade e bairro em que mora. Em seguida, a pesquisadora apresentou uma figura
74
e pediu que olhassem com calma e pensassem o que significava: era o mapa da
cidade. A partir desse momento o grupo seguiu, quase espontaneamente, o
roteiro de questões que abordavam temas sobre a visão e relação com município,
com amigos, familiares e com a VIDA (APÊNDICE A – Roteiro de Grupo Focal
com Adolescentes).
As conversas foram gravadas e também se contou com a presença de um
observador externo que relatou as impressões verbais e não verbais do grupo.
Ao final, houve o agradecimento da pesquisadora, o convite para um lanche e o
ressarcimento dos gastos com deslocamento.
Concernente ao papel do pesquisador no grupo, tem-se como premissa que:
A pesquisa é vista como prática social que apreende as determinações
econômicas, sociais e políticas, sendo a possibilidade de desvelar as
contradições a causa responsável pelas mudanças sociais. Sendo
assim, a atitude do pesquisador dialético não é a de um sujeito
cognoscente que simplesmente examina objetos, mas de um
sujeito que age objetiva e praticamente a partir das condições que
o rodeiam (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153, grifo do autor).
Nessa relação intersubjetiva com os integrantes do grupo focal foram colhidos
dados necessários para a apreensão dos motivos/problema da tentativa de
suicídio. A discussão em grupo teve, em segundo plano, caráter mobilizador para
proporcionar reflexão e uma ação acerca desse problema de saúde pública.
B) Método criativo sensível com crianças
No caso das crianças, como apenas uma compareceu ao encontro agendado por
meio das cartas-convites, a pesquisadora buscou 23 crianças cujo contato estava
nas fichas pesquisadas. Ligou para os responsáveis e não foi possível falar com
10 famílias porque o telefone não existia ou estava fora de área. Uma criança
mudou-se para Vespasiano para morar com a mãe e as demais foram convidadas
por intermédio de seus responsáveis, que se comprometeram a encontrarem-se
com a pesquisadora dias antes da realização do encontro para assinarem o
75
TCLE, mas apenas quatro cumpriram o combinado. Totalizaram-se cinco
crianças para participação da pesquisa pelo método criativo sensível.
O método criativo sensível (APÊNDICE B) foi criado pela pesquisadora Cabral, no
século XX, em sua tese de doutorado em Enfermagem, no estado do Rio de
Janeiro. Essa inovação foi baseada nas teorias de Paulo Freire (método críticoreflexivo) e René Barbier (criatividade e sensibilidade) e caracteriza-se pela
confluência das singularidades dos sujeitos em uma experiência coletiva
(GAUTHIER et al., 1998).
Segundo Gauthier et al. (1998, p. 177,187), o método criativo sensível é a “[...]
junção de estratégias e métodos de interação grupal [...] com métodos já
consolidados de pesquisa e de educação [...]”. É uma tríade entre a “[...]
discussão de grupo, observação participante e dinâmicas de criatividade e
sensibilidade/produção artística [...]”.
A riqueza dos encontros grupais não é novidade, mas a inclusão da criatividade e
da produção artística na coleta de dados e o compartilhamento e construção de
conhecimentos com crianças torna esse método propício à realização e validação
de trabalhos qualitativos com temas tão complexos: tentativa de suicídio infantojuvenil.
A reunião da ciência e da arte torna o método peculiar, pois proporciona ao sujeito
participante da pesquisa a expressão da sua criatividade e sensibilidade de
maneira espontânea. Desta forma, “[...] as produções artísticas deixam
transparecer o imaginário, [...] apontando as contradições [...]” (GAUTHIER et al.,
1998, p. 179). Gauthier et al. (1998, p. 191) propõem que o método criativo
sensível seja concretizado em cinco momentos:
a) Organização
b) Apresentação
c) Explicação da dinâmica
d) Trabalho individual e enunciação da experiência individual no plano coletivo
e) Coletivização e análise dos dados
76
O encontro com as crianças aconteceu em um sábado (23/11/2013), no salão
paroquial do município, durante a tarde. Apenas três crianças compareceram. O
pai de uma ligou e justificou a ausência devido à falta do transporte coletivo.
Apesar de a autora propor cinco momentos para aplicação do método e incluir a
análise dos dados nessa estrutura, decidiu-se inovar. O encontro foi realizado em
seis momentos e a análise dos dados não foi incluída nesta fase.
Primeiramente, elas foram acolhidas e fez-se a apresentação; no segundo
momento, foi explicado às crianças o funcionamento da dinâmica proposta e as
suas duas fases distintas e complementares, apresentando as questões
norteadoras:
Primeira fase: entregou-se uma folha A4 com o limite territorial do município de
Matozinhos e foi perguntado se eles conheciam a figura. Depois foi solicitado que
respondessem, de forma criativa, as questões a seguir:
1 - Como é morar aqui em Matozinhos?
2 - O que você gosta de fazer e com quem?
Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram.
Segunda fase: entregou-se uma folha A3 e pediu-se que expressassem seus
sentimentos de forma livre e criativa, baseados nas questões a seguir:
3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste?
4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer?
5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer?
Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram.
Após o esclarecimento da dinâmica, partiu-se para a composição das
produções e foram disponibilizados os seguintes materiais: lápis de cor e de
escrever, borracha, giz de cera, canetinha, o mapa do município na primeira fase
e folha A3 na segunda fase.
Encerradas as produções, partiu-se para o momento de compartilhar, ocasião
em que as crianças apresentaram e discutiram sobre suas criações temáticas.
77
Esse momento foi feito nas duas fases do encontro e após a segunda foi pedido
às crianças que fizessem uma avaliação do encontro como forma de conclusão
daquele trabalho, fechamento daquele grupo. Em seguida, procedeu-se ao
momento de descontração, no qual foi oferecido um lanche e as crianças ficaram
à vontade.
Todo o encontro foi gravado com prévia autorização dos responsáveis no TCLE e
também se contou com a colaboração de um observador para registro das
linguagens não verbais e de expressões significativas das atividades práticas. Os
responsáveis também foram ressarcidos dos gastos com transporte.
4.2 Aspectos éticos
Esta pesquisa foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro
Universitário UNA (CEP/UNA) para análise e deliberação. Sua aprovação
aconteceu em dezembro/2012 e a coleta de dados só foi iniciada após geração
CAAE 11451412.2.0000.5098 (ANEXO A).
Conforme as deliberações da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do
Conselho Nacional de Saúde, esta pesquisa seguiu todos os aspectos éticos
envolvendo seres humanos e resguardou os sujeitos, garantindo o anonimato e a
confidencialidade dos dados no TCLE.
Os TCLEs, em número de três, um para cada segmento de sujeitos, foram
assinados antes de dar-se início à coleta dos dados (APÊNDICES C, D, E).
78
5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS
Por tratar-se de uma pesquisa quantiqualitativa desmembrada em dois momentos
distintos, mas complementares, optou-se por descrever e analisar os resultados
obtidos de forma separada e ao concluir fazer a junção e relação entre o que foi
observado nas etapas.
5.1 Pesquisa quantitativa
Os dados objetivos coletados foram submetidos à tabulação manual e analisados
por meio do programa SPSS versão 19.0, privilegiando as frequências simples
dos indicadores: fonte dos dados, faixa etária, bairro, tipo de tentativa de suicídio
(agregado e desagredado), classificação dos casos, data da tentativa de suicídio,
procedimentos, encaminhamentos, reincidência e gravidez. Também foi realizado
o cruzamento desses indicadores para verificar relação possível entre os dados
coletados. Ressalta-se que o local e a data de nascimento, assim como o local de
origem, foram encontrados apenas nos prontuários do Ambulatório Infanto-juvenil.
Desta forma, optou-se por excluí-los da análise de dados.
As fontes municipais de dados foram: Ambulatório Infanto-juvenil, PA e SINAN,
ressaltando-se que alguns casos foram encontrados em mais de um local. A faixa
etária variou de três a 18 anos e foram abordados apenas os bairros que
apareceram nos prontuários analisados.
O Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009. As crianças e adolescentes
são encaminhadas formalmente para o serviço de saúde mental, para serem
acolhidas e, posteriormente, se for o caso, atendidas pela psicóloga. Só são
atendidas aquelas pessoas que apresentem quadro de sofrimento psíquico
intenso, casos considerados de média complexidade. Quando acolhidas, o
profissional preenche uma ficha com os dados pessoais, queixa inicial descrita no
encaminhamento, local de origem, impressões e conduta adotada.
79
Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do
atendimento. Por esse motivo, têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o
cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas
não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as
duas situações, mas em menor número.
Quanto ao tipo de tentativa de suicídio, separou-se de forma agregada, ou seja,
grupos
descritos
conforme
CID
(X60-X84
–
lesões
autoprovocadas
intencionalmente) que estavam presentes nos casos verificados e que
englobavam todas as ocorrências: corte, corte e intoxicação, intoxicação,
eletrocussão, enforcamento, queda/precipitação, queimadura, outros e não
especificado. Ao desagregar citaram-se, detalhadamente, todas as tentativas de
suicídio encontradas.
Como havia grande diversidade de apresentação dos fatos nos prontuários
pesquisados, optou-se por classificar os casos encontrados da seguinte forma:
casos com CID, casos com outro CID, mas escritos por extenso, casos sem CID,
mas escritos por extenso, casos suspeitos com outro CID e, por fim, casos
suspeitos sem CID. Os casos suspeitos são aqueles em que não há dados
suficientes para verificar a intencionalidade e também situações nas quais foram
registradas apenas as consequências de determinado ato.
Os procedimentos adotados nem sempre estavam descritos nas fichas, mas foi
possível inferir as seguintes categorias: alta, contato com Hospital João XXIII,
outro, sem informação.
Os encaminhamentos realizados também não foram expressos em todos os
prontuários, mas citaram-se: Ambulatório, Centro de Atenção Psicossocial CAPS, Psiquiatra, Psicologia, outro, sem informação.
A reincidência e a gravidez também foram registradas em poucos casos.
A coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou em maio do mesmo
ano. Foram analisados aproximadamente 137 mil prontuários ao total e, destes,
80
apenas 185 casos encontrados de tentativas de suicídio entre crianças e
adolescentes, conforme a TAB. 1.
TABELA 1 - Fontes dos dados
%
N
%
Ambulatório Infanto-juvenil
13
7,0
7,0
PA
160
86,5
93,5
SINAN
2
1,1
94,6
PA e Ambulatório Infanto-juvenil
8
4,3
98,9
PA, Ambulatório Infanto-juvenil e SINAN
2
1,1
100,0
185
100,0
Total
acumulado
SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; PA: Pronto-atendimento.
É importante ressaltar que os dados coletados incluíram os últimos cinco anos.
No entanto, o Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009 e no setor de
Epidemiologia só havia fichas SINAN de 2011 e 2012. Outra questão importante a
ser salientada é que há precariedade de informações nos prontuários analisados
e também houve subnotificação. De acordo com Silva e Maeta (2010), a
notificação é um instrumento complexo e poderoso que possibilita a ação da
vigilância epidemiológica, a intersetorialidade, a organização da rede dos serviços
de saúde, além de ser uma ferramenta que garante os direitos básicos
constitucionais.
Quanto à intersetorialidade entre os serviços de saúde do município, percebe-se
que apenas 10 casos foram acolhidos ou registrados em mais de um serviço.
Ao analisar o perfil das pessoas que tentaram suicídio em Matozinhos, tabulou-se
por idade, sexo e tipo de tentativa. Outros dados, tal como a associação com a
gravidez, foi irrisória, apresentando o registro de dois casos; e a taxa de
reincidência das tentativas foi de aproximadamente 5%, ou seja, foi obtida em 10
casos (ALVES; CADETE, 2013). Geralmente, a taxa de reincidência é baixa e
apenas em estudos de Santos et al. (2009) e Feijó et al. (1996) foram
encontrados percentuais elevados: 51 e 53,8%, respectivamente.
81
Quanto às faixas etárias, foi encontrado elevado número de casos entre
adolescentes, mas a expressiva quantidade de tentativas entre pessoas até cinco
anos de idade desconstrói o mito de que criança não tenta suicídio. No entanto,
destaca-se que em nenhum dos prontuários infantis (três a 11 anos) havia registro
explícito de tentativa de suicídio, eram todos casos suspeitos. Nenhum artigo
brasileiro foi encontrado disponível nas bases de dados brasileiras, que versasse
especificamente
sobre
o
público
infantil.
Alguns
trabalhos classificaram
adolescentes em diferentes faixas etárias, que variaram de 10 a 29 anos,
conforme revisão integrativa realizada (ALVES; CADETE, 2013).
TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram
suicídio entre 2008 e 2012
N
%
Até 5 anos
De 6 a 9 anos
De 10 a 14 anos
De 15 a 18 anos
33
13
49
88
17,8
7,0
26,5
47,6
%
acumulado
17,8
24,9
51,4
98,9
Sem informação
2
1,1
100,0
185
100,0
Total
Foram 107 casos com pessoas do sexo feminino - sendo que de duas não havia
informação sobre idade - e 78 do sexo masculino.
TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que
tentaram suicídio entre 2008 e 2012
Idade
Sexo
Feminino
Masculino
%
3 a 11
21
38
32%
12 a 18
84
40
67%
Sem informação
2
Total
107
1%
78
100%
Nas crianças, o sexo que prevalece é o masculino, mas na adolescência há uma
inversão e as meninas superam. Interessante observar que na adolescência o
82
número de meninas que tentaram suicídio é mais que o dobro dos meninos e os
casos totais que ocorreram entre 12 e 18 anos são 35% a mais que os infantis.
Esse predomínio feminino nas tentativas de suicídio na adolescência coincide
com pesquisas já realizadas por diversos autores, conforme revisão integrativa de
literatura brasileira das últimas décadas! (ALVES; CADETE, 2013).
A contribuição desta pesquisa está justamente nos dados infantis, que são pouco
encontrados nos estudos realizados, e descobriu-se que não seguem a tendência
“feminina” da adolescência, representando 32% dos casos registrados.
Baseado na classificação das lesões autoprovocadas intencionalmente descritas
na CID, foi possível listar os tipos de tentativa de suicídio que apareceram no
município de Matozinhos.
TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 2008-2012
%
N
%
Corte
21
11,4
11,4
Corte e intoxicação
2
1,1
12,4
127
68,6
81,1
Eletrocussão
1
,5
81,6
Enforcamento
1
,5
82,2
Queda / Precipitação
8
4,3
86,5
Queimadura
18
9,7
96,2
Outros e não especificado
7
3,8
100,0
185
100,0
Intoxicação
Total
acumulado
Constatou-se que o maior número de registros indicou a intoxicação, seguida de
corte e queimadura. Este dado confirmou observação feita pela psicóloga do
serviço, que destacou o uso de chumbinho e medicação, principalmente, pelos
adolescentes, para tentativa de morte. E também vai ao encontro dos resultados
registrados na literatura brasileira sobre o assunto, que afirma que o
envenenamento é, geralmente, a forma eleita e o que varia é a escolha entre
83
medicamentos e pesticidas (ALVES; CADETE, 2013). Na categoria outros
encontraram-se: ingestão de objetos, descrições ilegíveis e casos não
especificados.
Ao
detalhar melhor essas
categorias,
percebe-se
que
intoxicação
por
medicamento, álcool/droga, agentes tóxicos e chumbinho são os métodos mais
utilizados. Nas queimaduras destacam-se as categorias outras, que não
apresentam a substância que ocasionou a lesão, sendo a água e o álcool também
utilizados.
Estudo brasileiro realizado por Leão et al. (2011) especificamente com tentativas
de suicídio por queimaduras revelou que a forma mais utilizada é pelo álcool. Nos
cortes, a não especificação do objeto utilizado também lidera, juntamente com a
faca e o vidro. As quedas apresentam oito casos e, entre eles, é imprescindível
citar a precipitação de um adolescente de um carro em movimento para
exemplificar a categoria.
Detectou-se a escolha por mais de um meio para tentar suicídio, mas de forma
não muito expressiva, apenas sete casos.
84
TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos, 2008-2012
%
Corte e intoxicação
%
acumulado
N
1,1
Eletrocussão
1
,5
1,6
Enforcamento
1
,5
2,2
Queda / precipitação
8
4,3
6,5
Outros e não especificado
7
3,8
10,3
Corte - vidro
3
1,6
11,9
Corte - faca
4
2,2
14,1
Corte - gilete
1
,5
14,6
Corte - não especificado
13
7,0
21,6
Intoxicação - medicamento
49
26,5
48,1
Intoxicação - medicação + álcool
1
,5
48,6
Intoxicação - álcool / droga
32
17,3
65,9
Intoxicação - planta
5
2,7
68,6
Intoxicação - chumbinho
7
3,8
72,4
Intoxicação - chumbinho + medicação
3
1,6
74,1
Intoxicação - outro
4
2,2
76,2
Intoxicação - agente tóxico
25
13,5
89,7
Intoxicação e lesão por arma de fogo
1
,5
90,3
Queimadura álcool
3
1,6
91,9
Queimadura água
4
2,2
94,1
Queimadura óleo
1
,5
94,6
Queimadura gordura
1
,5
95,1
Queimadura outros
9
4,9
100,0
185
100,0
Total
Quando se cruzam os dados dos tipos de tentativa de suicídio e a faixa etária,
constata-se que as crianças até cinco anos optam pela autointoxicação, seguida
do corte. Aquelas que possuem seis a nove anos ficam divididas entre a
intoxicação, a queda/precipitação e a queimadura de forma bastante equilibrada.
Na faixa etária de 10 a 14 anos é expressiva a escolha pela autointoxicação e em
85
menor número a queimadura e o corte. Já os adolescentes de 15 a 18 anos
optam pela autointoxicação, de forma quase unânime.
TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012
Faixa etária
Corte
Até 5
De 6 a
anos
9 anos
15,2%
15,4%
Corte/ intoxicação
Intoxicação
Tipo de
tentativa agregada
72,7%
23,1%
Eletrocussão
De 10
De 15
a 14
a 18
anos
anos
10,2%
10,2%
11,4%
2,0%
1,1%
1,1%
61,2%
77,3%
Sem
informação
100,0%
2,0%
Enforcamento
Total
68,6%
,5%
7,7%
,5%
Queda/
precipitação
3,0%
23,1%
6,1%
1,1%
4,3%
Queimadura
9,1%
23,1%
12,2%
6,8%
9,7%
7,7%
6,1%
3,4%
3,8%
Outros e não
especificado
Total
100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
100,0%
100,0%
Devido aos incipientes registros contidos nas Fichas Ambulatoriais - com poucas
informações e, quando presentes, não são detalhadas - e a ausência de dados
importantes, optou-se por classificar os dados encontrados da seguinte forma,
conforme explicitado anteriormente: casos com CID; casos com outro CID, mas
escritos por extenso; casos sem CID, mas escritos por extenso; casos suspeitos
com outro CID, casos suspeitos sem CID.
Trata-se de um problema recidivo e generalizado, também reafirmado por Minayo
et al. (2003) ao tecerem críticas às estatísticas hospitalares, devido à falta de
qualidade de suas informações. Contudo, apesar de se saber da precariedade
dos dados, é o melhor lugar para realização de pesquisas sobre essa temática,
pois concentra as informações necessárias. Afinal de contas, o hospital ou PA são
a porta de entrada para casos de urgência. E a forma encontrada para
86
sistematizar as precárias e controversas informações recolhidas foi agrupando
todos os casos encontrados (TAB. 7).
TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio, Matozinhos, 20082012
%
N
%
Caso com CID
1
,5
,5
Caso com outro CID, mas escrito por extenso
6
3,2
3,8
Caso sem CID, mas escrito por extenso
34
18,4
22,2
Caso suspeito com outro CID
62
33,5
55,7
Caso suspeito sem CID
82
44,3
100,0
Total
185
100,0
acumulado
Apreende-se que apenas um caso apresentou CID correspondente aos descritos
como lesões autoprovocadas intencionalmente (X60-X84) e foi uma ficha
recolhida no setor de epidemiologia registrado no SINAN. Os outros três casos,
também registrados no sistema, ou não apresentavam CID ou continham outro
que não era condizente com o evento; descreviam apenas a lesão. Esses dados
evidenciam subnotificação dos casos pelos profissionais de saúde.
Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de
saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil
produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se
implicarem? Ou na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo
impessoal, pela tradição e pela inautenticidade?
Não se pode esquecer que os profissionais de saúde são, antes de tudo: sujeitos
biopsicossociais. A profissão carrega consigo o peso de “salvar vidas”, mas
daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça de morte. No entanto, a
dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que esses sujeitos e também
profissionais de saúde percebam uma urgência na pessoa sadia que escolheu
morrer.
87
A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das
pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no
paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão
é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o
braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o
braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty (1999): “eu não tenho
corpo, eu sou o corpo”.
Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é
justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte nos
pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que
a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua
lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma
hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e mais que isso: escutá-lo! Claro que
merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional.
A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito
para além de sua lesão. Tentar compreender o todo!
Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde
para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam. Em
recente estudo de Santos et al. (2012), apesar do foco de investigação ser outro,
conclui-se que há sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que
este é suprimido, de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. E Afonso
(2013) vai um pouco mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o
Morrer”, acentuando que o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a
morte e que tanto os médicos como os demais profissionais de saúde que estão
inseridos nesse quadro não sabem lidar com essa situação na relação com o
sujeito que precisa e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam
sobre a própria morte e que usem do processo empático e se coloquem no lugar
daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu
suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o
trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato
praticado ou sofrido por determinada pessoa.
88
Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima
ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no
todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de
“[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de
trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os
profissionais de saúde respeitem as diferenças e as necessidades do sujeito
(BRASIL, 2004b, p. 02).
Machin (2009) realizou pesquisa em um hospital público de São Paulo com
profissionais de saúde que lidam com situações de lesões autoprovocadas e
apurou também, além da subnotificação, a estigmatização desse público por
causa da sua escolha afetando (fragilizando) a dimensão do cuidado. E identificou
a necessidade do resgate da verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao
trabalho da autora outras duas questões: ruptura de paradigma (visão global
desse sujeito que sofre), humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e
escuta do sujeito que sofre.
Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito
do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde
de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua
função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o
acolhimento universal, equânime e integral (COMBINATO; QUEIROZ, 2006).
A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que
é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a
inexistência do problema. Logo, pouco investimento financeiro, político e social na
construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência que
se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação e se embravece
com algumas características do que está posto e ambiciona transcendê-las.
Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa
valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e
sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar pela inseparabilidade
do sujeito e dos serviços de saúde.
89
Conforme a TAB. 7, em Matozinhos houve 41 casos declarados de tentativa de
suicídio e 144 suspeitos. Elegeram-se como casos suspeitos aqueles em que há
uma lesão característica da tentativa de suicídio, porém não há explicitação da
intencionalidade da criança ou adolescente e esse fato impossibilita a afirmação
sem a escuta prévia dos sujeitos.
Um dos aspectos mais complexos da definição é a questão da
intencionalidade. Dois pontos importantes devem ser observados aqui.
Em primeiro lugar, mesmo a violência sendo distinta de eventos não
intencionais que resultam em lesões, a presença de uma intenção de
usar a força não necessariamente significa que houve uma intenção de
causar dano. Na verdade, pode haver uma grande disparidade entre o
comportamento pretendido e a consequência pretendida. Um
perpetrador pode cometer intencionalmente um ato que, por padrões
objetivos, é considerado perigoso e com alta possibilidade de resultar em
efeitos adversos à saúde, mas o perpetrador pode não perceber seu ato
dessa forma (KRUG et al., 2002, p. 5).
Já na TAB. 8 os casos de crianças até cinco anos são, em sua totalidade,
suspeitos com ou sem CID. Na faixa etária de seis a nove anos, admite-se uma
pequena porcentagem de tentativas de suicídio, mas é inferior a 10%. Na faixa
etária de 10 a 14 anos, têm-se 32,6% de casos declarados e o fato curioso é que
nos adolescentes de 15 a 18 anos esse número reduz-se para 27,2%. Seria
razoável que esse número aumentasse visto que há uma mitificação de que
criança não tenta suicídio. No entanto, quando se considera a faixa etária 10 a 14
anos, incluem-se crianças de 10 e 11 anos e adolescentes de 12, 13 e 14. Desta
forma, pode-se inferir que à medida que a idade aumenta torna-se mais explícito
o fenômeno.
90
TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa etária,
Matozinhos, 2008-2012
Faixa etária
Classificação dos casos categorizada
Até
De 6 a
De 10 a
5 anos 9 anos
14 anos
Caso com CID
De
Sem
Total
15 a 18 informaanos
ção
1,1%
,5%
6,1%
3,4%
3,2%
7,7%
26,5%
22,7%
18,4%
33,5%
Caso com outro CID, mas
escrito por extenso
Caso sem CID, mas escrito
por extenso
Caso suspeito c/outro CID
42,4%
23,1%
24,5%
37,5%
Caso suspeito sem CID
57,6%
69,2%
42,9%
35,2%
Total
100,0% 100,0%
100,0%
44,3%
100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Quando se associam as porcentagens dos tipos de tentativa com a classificação
dos casos, detecta-se que 77,8% são suspeitos. E com exceção do
enforcamento, que foi apenas um episódio, e do corte e intoxicação, todos os
outros tipos apresentam seu maior quantitativo nos casos suspeitos.
91
TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos, 2008-2012
Tipo de tentativa – agregada
Classificação dos
Corte e
casos categorizada
Corte intoxica-
Intoxica- Eletrocus- Enforcação
ção
Casos com CID
são
mento
Queda /
Outros e
precipita- Queimação
dura
Total
não
especificado
,8%
,5%
4,7%
3,2%
Caso com outro CID,
mas escrito por
extenso
Caso sem CID, mas
escrito por extenso
Caso suspeito com
outro CID
Caso suspeito sem
CID
Total
9,5%
50,0%
19,7%
23,8%
50,0%
30,7%
66,7%
100,0% 100,0%
100,0%
100,0%
44,1%
100,0%
100,0%
100,0%
71,4%
37,5%
72,2%
33,5%
62,5%
27,8%
28,6%
44,3%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
Para melhor esclarecer o que foi citado em cada categoria de classificação dos
casos, será descrita e exemplificada cada uma delas, logo a seguir.
A) Caso com CID (X60-X84)
Foi encontrado apenas um caso registrado em novembro de 2012 no SINAN, de
uma adolescente de 17 anos que tomou medicamentos e o diagnóstico foi X64 –
autointoxicação por exposição, intencional, a outras drogas, medicamentos e
substâncias biológicas e às não especificadas.
B) Casos com outro CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou
tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)
Nos casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram encontradas,
entre outras, as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não
especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
álcool - síndrome de dependência).
18,4%
92
Destaca-se que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas de morte
e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os códigos dos
capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de
causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa de morbidade e de
mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível, deve-se eleger
como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX) (CENTRO
BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008).
Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para
hipótese diagnóstica e eles estão “presos, limitados” nas consequências dos atos
praticados, ou seja, veem apenas a lesão, fratura, intoxicação. Assim sendo, não
chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu
sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o
procedimento se limitará à “sutura” e a hipótese diagnóstica será “ferimento de
região não especificada do corpo” (grifo nosso).
C) Casos sem CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou
tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)
Nesta categoria está contido o maior número de casos declarados como tentativa
de suicídio. Os profissionais de saúde registram por extenso o fato ocorrido, mas
não o classificam como lesão autoprovocada intencionalmente. São indícios de
uma atitude profissional aética, irresponsável, imprópria e indigna para com o
sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que impossibilita ações e procedimentos
que garantam a integralidade do cuidado. Sabe-se que as necessidades de ações
de saúde, como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores
de risco, delineiam um sentido da integralidade.
Outra hipótese aventada é o fato de o profissional não querer se implicar, tomar
decisões que convocam outras ações que demandam assumir o sujeito em seu
sofrimento com implicações outras como referências, discussão de caso clínico
em rede, compartilhamento de informações e outras ações e cuidados que vão
além da simples “sutura” corriqueira.
93
D) Casos suspeitos com outro CID
Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo
narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com
outro CID.
Caso 1 – Adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa:
“Intoxicação exógena por “chumbinho” há 3 horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de
substância não especificada).
A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a
intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não
especificada”? Este caso não é exceção, pois vários outros com essa incoerência
foram encontrados nas fichas.
Caso 2 – Criança de 04 anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa:
“Começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona
há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas
das vias aéreas inferiores).
Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o
dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua
demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é
preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário
expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo,
equânime e igualitário?
Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é,
há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas
práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é
corporificada (OMS, 2006).
Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes
classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
94
álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não
especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não
especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos
mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta),
T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte
do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não
especificada), J.22 (infecções agudas não especificadas das vias aéreas
inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de
estomatite).
Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos
com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação
implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de
suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de PA do município. Afinal, o que é
tentativa de suicídio para os profissionais de saúde de Matozinhos?
E) Casos suspeitos sem CID
No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem
informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se
mais dois casos:
Caso 1 – Criança de 05 anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa:
“Corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado.
Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o
fato pode ter sido apenas “acidental”. Ressalta-se, porém, uma possível
negligência que deve ser também escutada. No entanto, diante da omissão
expressa nos outros relatos esse discurso não deve ser aceito como verdade
imediatamente; é preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios
sujeitos sua versão sobre os atos praticados.
95
Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da
queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão
artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado.
Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi
inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais
abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social tornase impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão
de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao
não descreverem a classificação de tal problema. Sobressai, também, que não há
registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como este
adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo corte
no pulso é absolutamente inaceitável.
A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID”, e sim
em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde
de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de consolo para lidar com o
horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa acepção,
Combinato e Queiroz (2006, p. 210) expõem que, apesar de ser um fato natural,
“para o homem ocidental moderno a morte passou a ser sinônimo de fracasso,
impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito
não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm
consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou
prevenir torna-se “desnecessário”.
Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes
e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e
visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde,
quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade
interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em
metrópoles.
96
Nas TAB. 10 e 11 encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e
interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando a
“não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito.
TABELA 10 – Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos, 20082012
%
N
%
164
88,6
88,6
Ambulatório
2
1,1
89,7
CAPS
5
2,7
92,4
Outro
9
4,9
97,3
Psiquiatria
3
1,6
98,9
Psicologia
2
1,1
100,0
185
100,0
Não se aplica/sem informação
Total
acumulado
Pensando em trabalho em rede e intersetorialidade dos serviços, apenas 21
foram encaminhados para outros serviços de saúde e em 15 casos foi feito
contato com a rede extensa para obter informações de como proceder no caso
recebido, o que sugere duas coisas: não sabem como proceder diante de um
caso de tentativa de suicídio e/ou estão interessados na discussão de caso clínico
para melhor resolução do caso.
TABELA 11 – Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio, Matozinhos,
2008-2012
%
N
%
Alta
4
2,2
2,2
Contato com Hospital João XXIII
15
8,1
10,3
Outro
6
3,2
13,5
Não se aplica/sem informação
160
86,5
100,0
Total
185
100,0
acumulado
97
Curioso
é
que
após
a
implantação
do
Ambulatório
Infanto-juvenil
os
encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete
a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao
encaminhamento
implicado:
como
esses
serviços
se
articulam?
São
intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho
desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do
município? Percebem o sistema de forma integrada?
Esses questionamentos indicam uma visão da fragmentação do sujeito como ser
existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em
partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à
queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização
pela vida.
Ao analisar os dados ao longo do tempo, foi possível notar, conforme o GRÁF. 1,
que no decorrer dos meses os casos de tentativa de suicídio e os casos suspeitos
mantiveram certa regularidade nesse período de cinco anos.
GRÁFICO 1 – Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no município
de Matozinhos no período entre 2008-2012
98
Destacam-se os meses de julho, com o menor número de casos (sete), e de
novembro, com a maior quantidade registrada (24 casos). É importante pontuar
que, mesmo mantendo certo padrão, os resultados encontrados revelam maior
concentração no segundo semestre (98 casos), conclusão também encontrada
em um estudo realizado no Ceará em 2005, por Pordeus et al. (2009).
Houve constância também no número de casos, perpassando média de 37 casos
por ano, ou seja, três casos mensais, sendo que em 2009 foram registrados 33
casos e em 2012 o maior índice, com 44 casos.
Em 2008 foram registrados 34 casos de tentativas, incluindo aqueles
considerados suspeitos, sendo que 12 eram crianças de três a 11 anos e 22
adolescentes de 12 a 18 anos. Conforme o GRÁF. 2, só foram registrados casos
de intoxicação e corte, sendo o último pouco expressivo. Junho e outubro não
apresentaram registro algum.
GRÁFICO 2 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2008
Foi quantificado, em 2009, o menor valor de casos, no entanto, a categoria de
queimadura apareceu de forma pouco expressiva, mas superou o número de
cortes. Nesse ano também prevaleceu a faixa etária dos adolescentes de 12 a 18
99
anos, com 21 casos, sendo quase o dobro das crianças (12 casos). Não houve
registro no mês de março.
GRÁFICO 3 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2009
No ano de 2010, a maioria dos casos também foi com adolescentes e repetiu a
tendência dos anos anteriores. Houve mais destaque para as queimaduras no
mês de novembro e as quedas/precipitações no primeiro semestre do ano. Houve
pelo menos um caso em todos os meses do ano.
100
GRÁFICO 4 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2010
Fato curioso ocorreu em 2011, quando apenas seis crianças de três a 11 anos
tentaram suicídio, em contraponto aos 32 casos de adolescentes. Outra
observação importante é o aparecimento de novas modalidades de tentativas e
também a junção de mais de um método.
GRÁFICO 5 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2011
101
No último ano, não foi verificado algum caso no mês de fevereiro e a eletrocussão
e o enforcamento não foram mais utilizados como forma de tentativa, mas houve
a inclusão de instrumento mais letal: arma de fogo, que até o momento não havia
aparecido. Apesar de ser inexpressivo numericamente, apresenta intensificação
da letalidade dos instrumentos e formas utilizadas ao longo desse período. Foram
44 casos, sendo que 15 eram crianças e 29 adolescentes.
GRÁFICO 6 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos
registrados no ano de 2012
Em todos os gráficos apresentados anteriormente é possível perceber a
prevalência de casos de intoxicação e que ao longo do tempo foram aumentando
as categorias das formas como as crianças e os adolescentes tentaram suicídio,
juntamente com seu poder de letalidade. Pode-se inferir que a procura por
instrumentos e métodos “mais perigosos” ao longo desse período retrata uma
busca incessante para serem vistos, escutados como sujeitos.
Na busca pela compreensão do fenômeno de tentativa de suicídio infanto-juvenil
nos últimos cinco anos, no município de Matozinhos, também foi possível situar
espacialmente a ocorrência dos casos, localizando no território e fazendo o
cruzamento com os tipos de tentativas cometidas e as idades.
102
FIGURA 6 – Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do município
de Matozinhos – 2008 a 2012
Nesse mapa estão os casos com endereço completo e que foram localizados por
meio do google maps. Nota-se que os casos de tentativa de suicídio infantojuvenil de Matozinhos ocorreram em diversos bairros do município, distribuídos
quase que simetricamente dentro do território. No entanto, em alguns bairros
houve mais frequência de casos: Bom Jesus, Cruzeiro, Florestal, São Miguel,
Vista Alegre, Centro e Mocambeiro. Outra questão a ser considerada é que
alguns poucos endereços registrados nas fichas dos serviços de saúde foram
discordantes do programa de busca, mas isso não inviabiliza sua utilização, pois
os casos foram encontrados em quase todo o território.
Ao visualizar as ocorrências, conclui-se que a tentativa de suicídio infanto-juvenil
é um fenômeno municipal e não se concentra em apenas um local específico. Os
bairros que se destacaram têm características distintas e podem ser tomados
como territórios para propostas de projetos pilotos, mas jamais se deve suprimir a
dimensão global e esquecer que o fato está presente em todo o município. As
tentativas de suicídio estão nas periferias e, também, no centro de Matozinhos.
103
Pires et al. (2012), Veras e Katz (2011), Souza et al. (2010), Botega et al. (2009) e
Marcondes Filho et al. (2002) são alguns dos autores que incluíram a categoria
renda ou classe social na construção do perfil dos sujeitos que tentaram suicídio e
constataram que a maioria era de classe baixa ou média. Neste estudo não se
avaliaram a renda ou classe social, mas se se considerar a infraestrutura e a
localização dos bairros, pode-se abstrair que os casos abrangem todas as
classes, visto que, com exceção das “Quintas das Fazendinhas” (área com
grande concentração de sítios e fazendas), o Centro é uma área de expressivo
valor imobiliário da região, pois possui todo o suporte disponível para o município.
Optou-se por englobar os bairros Bom Jesus e Vista Alegre e suas respectivas
subdivisões, visto que eles encontram-se muito próximos e a sua delimitação
espacial é confusa. É como se fosse um bairro dividido em três partes. Conforme
informações da TAB. 12, o bairro Bom Jesus, juntamente com suas divisões,
representa 18,1% dos casos de intoxicação, seguido do Cruzeiro (15%), Florestal
(13,4%) e Vista Alegre com “agregados” (9,4%). No Bom Jesus também ocorreu o
maior número de casos de queda/precipitação. No Centro é alto o número de
casos de queimadura, queda/precipitação e corte, este último expressivo também
em Mocambeiro. No bairro São Miguel encontrou-se o único caso de eletrocussão
e a quantidade de queimaduras é expressiva. É interessante observar em Bom
Jesus II e em São Miguel o quantitativo de 28,6% de casos categorizados como
outros ou não especificado. No Cruzeiro viu-se o único caso de enforcamento,
que foi ouvido na pesquisa qualitativa.
104
TABELA 12 – Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 20082012
Bairro por tipo de tentativa
Tipo de tentativa - agregada
Corte e
Bairros
Corte
Bom Jesus
4,8%
Bom Jesus I
4,8%
Bom Jesus II
9,5%
Cruzeiro
Florestal
ção
ção
cussão mento
13,4%
50,0%
4,8%
Precipitação
Total
Queimadura
Outros
5,6%
14,3% 12,4%
1,6%
2,2%
3,1%
5,6%
100,0%
12,5%
28,6%
11,1%
4,9%
12,4%
13,4%
7,9%
4,8%
Queda /
37,5%
15,0%
São Miguel
Vista Alegre
intoxica-
Intoxica- Eletro- Enforca-
9,7%
100,0%
5,5%
16,7%
12,5%
28,6%
8,6%
4,9%
Vista Alegre I
,8%
,5%
Vista Alegre II
3,1%
2,2%
Centro
Mocambeiro
19,0%
14,3%
3,9%
5,5%
12,5%
16,7%
7,0%
5,4%
Quando se organizam as tentativas de suicídio por faixa etária distribuídas nos
bairros com maior incidência, obtém-se que nos bairros Cruzeiro, Bom Jesus,
Florestal e São Miguel concentram-se os casos daqueles com idades entre 10 e
18 anos (TAB. 13). No Centro, São Miguel, Bom Jesus, Cruzeiro e Florestal estão
as ocorrências infantis de três a nove anos.
105
TABELA 13 – Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos bairros de
Matozinhos, 2008-2012
Bairro por faixa etária
Faixa etária
Bairro
Até 5
De 6 a 9 De 10 a De 15 a
anos
anos
Bom Jesus
3,0%
15,4%
Bom Jesus I
3,0%
Bom Jesus II
3,0%
Cruzeiro
9,1%
Florestal
12,1%
São Miguel
6,1%
Vista Alegre
9,1%
Sem
Total
14 anos 18 anos informação
16,3%
13,6%
12,4%
2,0%
2,3%
2,2%
7,7%
6,1%
4,5%
4,9%
7,7%
8,2%
15,9%
4,1%
13,6%
9,7%
16,3%
4,5%
8,6%
6,1%
3,4%
4,9%
Vista Alegre I
1,1%
,5%
Vista Alegre II
4,5%
2,2%
2,0%
3,4%
7,0%
8,2%
5,7%
5,4%
Centro
18,2%
Mocambeiro
3,0%
15,4%
23,1%
50,0%
12,4%
Em suma, esta primeira etapa da pesquisa abordou o perfil dos casos de tentativa
de suicídio infanto-juvenil de Matozinhos nos últimos cinco anos. Descobriu-se
que 86,5% são acolhidos no PA e que esse serviço apresenta subnotificações e
condutas profissionais insuficientes para atendimento ético e humano da
demanda recebida. Foram realizados 21 encaminhamentos para a rede de saúde
municipal e apenas um prontuário continha CID; a maioria dos casos foi
considerada “suspeita” (77,8%).
Seguindo os resultados encontrados nos diversos estudos brasileiros realizados,
concluiu-se que a maioria daqueles que tentaram suicídio eram adolescentes, do
sexo feminino e utilizaram a intoxicação como método (68,6%), com prevalência
do uso da medicação. A média de casos por ano foi de 37, mantendo certa
regularidade ao longo desses cinco últimos anos. Houve maior concentração no
segundo semestre, mas não muito expressiva (53%), e também progressivo
aumento da letalidade dos métodos escolhidos e utilizados para tentativa de
106
suicídio. E os casos foram bem distribuídos, territorialmente, mas nos bairros
Cruzeiro, Bom Jesus, Florestal e São Miguel concentraram-se os adolescentes.
A inovação deste trabalho reside na construção do perfil infantil de sujeitos que
tentaram suicídio no município de Matozinhos. A maioria das crianças tem até
cinco anos, é do sexo masculino e também escolhe a autointoxicação como
método, concentrando-se no bairro Centro.
Diante destas conclusões, justifica-se um encontro com os profissionais da rede
de atenção e cuidado à criança e ao adolescente do município para discussão
dos perfis encontrados e construção de fluxos de acolhimento e direcionamento
dos casos de tentativa de suicídio, pensando em ações de prevenção e promoção
de saúde. Neste sentido, a proposta de intervenção intersetorial prevê um curso
de capacitação profissional participativo com os trabalhadores da rede de atenção
e cuidado à criança e ao adolescente do município de Matozinhos, dividido em
módulos e que ao final, prevê a construção de uma rede de apoio e fluxo de
funcionamento de atendimento da demanda, das necessidades apresentadas
pelos usuários.
5.2 Pesquisa qualitativa
Os dados coletados por meio dos grupos focais e método sensível criativo foram
transcritos, uma vez que se pediu autorização para gravar os depoimentos e
discussões em grupos, com vistas à manutenção da fidedignidade das falas.
Foram analisadas juntamente com o texto do relator. As produções criativas e
sensíveis feitas pelas crianças foram recolhidas e digitalizadas para posterior
avaliação, juntamente com o discurso do sujeito e o relatório do observador.
Assim, de posse dos discursos, eles passaram pela análise de conteúdo baseada
nos referenciais de Bardin (2010). Foram seguidas as três fases cronológicas
sugeridas pela autora: pré-análise, exploração do material e tratamento dos
resultados. Deste modo, em um primeiro momento, foi feita a leitura flutuante de
cada discurso oriundo dos grupos, com vistas à familiarização com o seu
107
conteúdo. Posteriormente, foram realizadas novas leituras para pinçamento das
unidades de registro, ou seja, das frases ou parágrafos que respondem às
questões estimuladoras da obtenção dos depoimentos. A partir da codificação de
todo o material por meio dos recortes em unidades de registro, elas foram unidas
por convergência e passou-se para a fase de interpretação ou análises reflexivas.
A interpretação do conteúdo foi baseada em uma análise qualitativa que
considera a presença ou ausência de características peculiares nos depoimentos
dos sujeitos escutados.
Os grupos foram analisados separadamente, demarcando as respectivas
unidades de registro e categorias, resguardando-se a singularidade de cada
discurso. Afinal, Bardin (2010) ressalta que não existe uma análise de conteúdo
padronizada a priori. O que há é um conjunto de técnicas, de regras que servem
apenas de base para realizar a investigação, mas que deve ser adaptável, deve
ser reinventada a todo o momento para se adequar ao objeto estudado, pois a
interpretação vai além da obviedade do que é dito pelo sujeito.
A) Grupo focal com adolescentes
O grupo focal foi realizado com quatro adolescentes na faixa etária de 14 a 19
anos, sendo duas meninas e dois meninos. Apenas uma menina não reside nos
bairros que apresentaram maior número de casos. O jovem de 19 anos foi
incluído no estudo porque no seu prontuário só havia registro da sua idade e não
da data de nascimento, por isso, quando aceitou o convite revelou que tinha 19
anos, mas gostaria de participar. Dois tiveram a tentativa de suicídio registrada
em 2010 e os outros em 2011 e todos por autointoxicação. Para preservar a
identidade dos sujeitos, serão representados pela letra A, seguida de um número
em ordem decrescente de acordo com a idade atual.
A1 é um jovem de 19 anos. No seu prontuário constava que ele tentou suicídio
tomando um vidro de medicação desconhecida, a mando das vozes. Foi acolhido
pelo Ambulatório Infanto-juvenil em junho de 2011, quando tinha 16 anos. Foi
encaminhado pelo Programa Saúde da Família (PSF) da sua área, que declarou a
108
tentativa de suicídio. No seu relato ele apresenta diversas tentativas de suicídio,
desde corte até enforcamento. O caso foi classificado como sem CID, mas escrito
por extenso (tentou suicídio tomando vidro de medicação desconhecida).
Conforme informação da sua ficha, o adolescente não retornou para
acompanhamento psicológico.
A2 é uma adolescente de 18 anos que tentou suicídio por autointoxicação
(medicação) em janeiro de 2010 aos 14 anos e foi atendida no PA. Apesar de
declarar no grupo que tentou se matar, no prontuário estava escrito que foi uma
“intoxicação exógena: tomou vários comprimidos” e classificou-se como caso
suspeito sem CID.
A3 é uma adolescente de 17 anos que foi atendida no PA e depois acolhida pelo
ambulatório, com encaminhamento do PSF, em maio de 2011, aos 14 anos. No
PA o caso foi classificado como suspeito com outro CID - intoxicação exógena (1
cartela fluoxetina + 1 cartela paroxetna) – CID: T65.9 (efeito tóxico de substância
não especificada). No ambulatório, caso sem CID, mas escrito por extenso tentativa de suicídio, pois veio com essa queixa declarada pelo PSF. Para
tabulação, permaneceu a classificação do primeiro local em que ela passou, ou
seja, PA. Adolescente fez acompanhamento psicológico.
A4 é um adolescente de 14 anos que foi encaminhado pelo PSF e acolhido pelo
Ambulatório Infanto-juvenil em maio de 2010, aos 10 anos. A queixa inicial era de
que estava em sofrimento com perda de ente querido. “Fala que quer morrer e ir
pra perto de Deus!” Na anamnese foi relatada história de autoextermínio, com a
ingestão de uma planta “venenosa” (comigo-ninguém-pode). Classificado como
caso sem CID, mas escrito por extenso (história e relato de autoextermínio).
Criança fez acompanhamento psicológico.
Estes são os sujeitos da pesquisa descritos pelo prontuário, mas a partir da
análise do discurso possibilitado por meio do grupo focal foi possível perceber e
escutar que esses jovens são muito mais complexos que seus sintomas.
109
Baseado no roteiro seguido para a coleta de dados com os adolescentes,
estabeleceram-se três categorias:
a) Relações sociais
b) Tentativa de suicídio
c) Proposta de intervenção
Em cada categoria foram listadas as unidades de registro respectivas,
considerando a presença/ausência de algumas características, sua frequência,
intensidade, ordem de aparição e repetição de ocorrências.
Para a análise das relações sociais, a pesquisadora baseou-se nas respostas
das seguintes questões:
1. O que é pra vocês morar aqui em Matozinhos?
2. Como é o dia-a-dia de vocês? O que fazem nos finais de semana?
3. O que vocês gostam de fazer para se divertirem aqui em Matozinhos
(momento de lazer)?
4. Vocês acham que a cidade oferece lugares para lazer / diversão?
5. Vocês têm amigos? Como é a relação com eles? O que fazem juntos?
6. Como é a relação com seus familiares? O que fazem juntos?
Nesta categoria, os adolescentes trouxeram o município a partir das suas
relações com os espaços, as pessoas e os problemas que eles percebem que
envolvem os jovens residentes. Diante destas subcategorias, foram retiradas
como unidades de registros: diversão / lazer; amigos; família; drogas.
Os discursos resgatam as discussões sobre qualidade de vida, enfocando o
aspecto local e as relações que eles estabelecem com os espaços que o
município possui.
De acordo com Bacheladenski e Matiello Júnior (2010), foi no início do século XX
que o Brasil passou a preocupar-se com o lazer como forma de saúde dos
trabalhadores e recuperação da mão-de-obra explorada e deteriorada. Para os
110
adolescentes, lazer e diversão estão associados e reclamam da falta de espaços
e atividades, conforme depoimentos a seguir:
A1: É só na quadra do Caíque de vez em quanto o povo abre lá pra
gente jogá bola. E tem esse campo, esse campo que nós távamos
conversano, então só os dois, a quadra e o campo de bola, porque
aqui na praça mesmo, no centro aqui, não tem nada. Não tem nada.
Igual nós lá távamos falano de ter uma pracinha pra gente sentá,
conversá, lá também não tem. Então a única coisa que tem lá pra nós é
só o campo, que tá avacalhado, mas tem o campo e a quadra de bola.
Pra nós é só. [...] Não tem um lugar, por exemplo, igual a gente mora
lá no bairro, num tem lugar pra a gente ir.
Então não tem um lugar pra ocê saí, então a gente fica brincano na rua,
porque não tem. Igual os amigos falam: vamo ali tomá um açaí? O que
acontece? A gente tem que vim aqui pra praça. Aí fica muito ruim. Num
tem praticamente nada lá no bairro [...]”.
A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, não tenho. Eu acho que
lazer aqui eu não tenho. [...] Eu não acho que aqui tem espaço,
porque cultura… aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas para
interagi com gente jovem não tem. É muito difícil. Se tem é porque
cada um caça seu rumo e num expõe o que tá ruim.
Diante da exposição de falta de espaços de lazer, questiona-se a real falta de
opção de lazer nos tempos livres e a apropriação, pelos adolescentes, desses
espaços públicos. Ao mesmo tempo em que eles relatam não haver investimento
estatal para construção ou recuperação de locais para atividades prazerosas,
divertidas, de lazer, eles apresentam outras opções: música, relações sociais,
brincar na rua, jogar bola, pegar “traseirão”.
A1: Olha, a minha diversão é cantá, porque, igual eu falei, sou
evangélico, vou na igreja evangélica, e eu canto, onde me convidam
para está cantano eu canto.
A3: Com relação a lazer… o que eu não consigo falá com os meus
pais eu falo com amigo ou outro parente. Na diversão eu procuro…
eu sempre falo com a minha mãe, o que me distrai, deixa mais feliz
assim quando eu tou com raiva e tudo, é escutano música. É uma
coisa que eu gosto muito, escutá música. Em termos de saí, eu não
saio muito, não gosto de saí pra festa, essas coisas, até porque hoje em
dia tá muita bagunça, certas festas nem compensa você ir. E como eu
namoro também, então assim, a minha diversão é saí com meu
namorado, às vezes tem uma festa em casa de família ou aniversário,
essa que é a minha diversão.
A4: A mesma coisa. A gente mora perto. A única coisa que tem é isso.
A quadra e o campo, porque o resto…
A4: Tem vez que os meninos vão diverti na BR, pega traseirão.
111
A1: Fala assim: eu vô pegá o traseirão ali, vô segurá no caminhão e
vô brincá de anda. Ou então… deixa eu vê que mais… brincá também
na rua. A gente também, de vez enquanto, brinca na rua também,
com os amigos. Porque quando tá de noite num tem lugá procê ir, num
tem.
Entre essas opções apresentadas, é interessante perceber que esse “lugar” do
lazer, da diversão está intrinsecamente ligado às relações sociais estabelecidas e
à oportunidade de expressão de sentimentos e pensamentos. Assim como para
os trabalhadores do início do século XX, o lazer é uma válvula de escape para as
pressões externas e internas sofridas por esses adolescentes; é uma
possibilidade de SER. Entende-se “lugar” conforme conceituação de Carlos
(1996), que entende como uma maneira de viabilizar a ressignificação do viver do
sujeito, a partir das suas relações com o mundo e produzindo a sua existência
social. Nas falas a seguir, percebe-se claramente que a função desse “lugar” de
diversão na vida desses adolescentes ultrapassa a ruptura com o tédio da vida
diária, para transformar-se em suporte existencial para lidar com as adversidades
vivenciadas.
A1: Então o que acontece? A minha diversão é essa, é cantá, porque
quando eu tô triste eu canto, quando eu tô alegre eu canto. Então
tipo assim, a maneira deu me expressá quando eu tô com raiva,
que eu tô nervoso, que eu não quero vê ninguém é eu cantá. Isso
me desabafa. Então eu fico muito feliz, porque onde eu tenho passado
pra cantá é muito gratificante as pessoas me receberem de braços
abertos e graças a Deus é menos de um ano e já tô com mais de
duzentas cópias vendidas. Então é muito gratificante da minha família
ter visto isso aí e ter investido em mim.
A4: A minha diversão é jogá bola, gosto muito de jogá bola, porque
quando eu tô jogano bola eu num lembro de nada de mau, num
lembro de nada, só fico na minha, feliz, jogano bola. Tem vez que
tentam me derrubá, mas tá bom, gosto demais de jogá bola.
A3: Bom, lazer é meio difícil aqui, esse espaço, porque num tem. A
única coisa que lá no bairro que eu moro, que… é assim, é um
encontro, que lá tinha o encontro dos jovens, que era no salão
paroquial, no dia de domingo tinha esse encontro aí a gente fazia
dinâmicas, essas coisas, era muito bom. Só que agora os meninos
brigaram e tudo, aí parou de ter. Mas era um encontro muito bom. E era
um meio de lazer porque a gente tinha que fazê dinâmica,
conversava, interagia, então era muito bom.
Outra questão é tratar o lazer de forma mercadológica. Conforme Bacheladenski
e Matiello Júnior (2010), o lazer tornou-se um produto, uma mercadoria, um
objeto, uma diversão de e para o consumo. Vê-se este discurso também
112
impregnado nos adolescentes, apesar de indicarem formas alternativas e “não
pagas” de lazer.
A1: Igual se a gente quiser, igual tomá um sorvete, comê uma pizza,
tem que vim aqui no centro. Lá tem é um negócio lá (palavra
incompreensível). Então só tem hamburgue e o pessoal tá cansado de
comê hamburgue. Então num tem um lugar pra você saí, então a
gente fica brincano na rua, porque não tem. Igual os amigos falam:
vamos ali tomá um açaí? O que acontece? A gente tem que vim aqui
pra praça. Aí fica muito ruim. Não tem praticamente nada lá no bairro.
A2: Se eu quero passeá, assisti um filme, ir no cinema, se quero ir
no shopping, fazê alguma coisa diferente eu vou no shopping de Pedro
Leopoldo, ou então vou em Sete Lagoas.
E, afinal, que “lugar” é esse que eles dizem não ter? Será que a reclamação é um
reflexo da invisibilidade, da “não existência” neste território, nesta sociedade?
A1: E eu acho que muitas das vezes os jovens ficam revoltados, por
conta disso, porque os jovens vê que tem gente que tem capacidade de
ajudá e num ajuda. Eu acho que é isso. No meu entender. [...] Porque
as pessoas acham que é só colocá o médico aqui, eles acham que é só
falá eu vô te dá uma cesta básica e tá tudo bem. E eu acho que com o
jovem num dá certo, porque no meu caso se o jovem não trabalha,
ele dá trabalho. Porque o jovem tá precisano envolvê com mais jovens,
precisano conversá mais e o que tá aconteceno é que o jovem tá
ficano muito de lado, muito de canto, tipo assim, é só os mais
velhos agora, é só os que tão trabalhano na obra. Igual esses jovens
que tão nesse mundo aí, tem muitas pessoas que… eu não tenho nada
contra, mas tem muitas pessoas que dizem assim: vai sê um marginal,
vai sê um assassino, então tipo assim, a sociedade mesmo tá
julgano muitos os jovens e é isso que eu acho que é por isso que
os jovens tão muito revoltados assim, porque se eu acho que se as
pessoas estendessem a mão pra esses jovens e num jogasse pedra
neles, no modo de dizê, e sim estendesse a mão pra ele e falasse com
ele: você vai saí dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vô te mostrá o lugá
que cê pode tá conversano, pode tá expressano tudo aquilo que
ocê tá sentino. Então, o que acontece? No meu entendimento não tá
aconteceno isso, eles só tão quereno criticá aqueles que tão nesse
mundo e num é assim. Eles são feito de carne e osso como a gente
mesmo.
A1: Porque, tipo assim, já que num querem fazer nada por nós
mesmo, então já tá tudo perdido. Assim, no pensamento dos jovens
que eu converso com eles, eles falam comigo: “A1, já que tá desse
jeito aqui, vamo acabá de coisa já”.
Esse espaço para conversar, ser acolhido, visto e escutado, sem críticas é a
grande reivindicação. É a solicitação por um papel social que não seja aquele de
“bode expiatório”. Serem cidadãos, saírem também da passividade que sempre
aguardam alguém fazer algo por eles! Diante desta reflexão, Bacheladenski e
113
Matiello Júnior (2010, p. 2576) tratam o lazer como forma de promoção da saúde
(lazerania) e também de cidadania: “[...] eles podem e devem reivindicar o seu
direito a um espaço público e de qualidade para vivenciar [...] o seu lazer”.
Acrescenta-se a requisição pelo reconhecimento dessas crianças e adolescentes
como sujeitos, seja para usufruir do lazer, da saúde, do cuidado, da vida. Que
essa luta pela diversão represente também uma luta por um “lugar” na sociedade,
afinal, “[...] o lazer que se propõe é em favor da emancipação humana e em
resposta a todas as formas de exploração [...]” (BACHELADENSKI; MATIELLO
JÚNIOR, 2010, p. 2577).
Outra questão que esse grupo possibilitou resgatar foi a percepção das relações e
dos vínculos sociais frágeis como fatores de risco para tentativa de suicídio, de
acordo com o QUADRO 2 de Bentancurt (2011). Nos seus relatos, os
adolescentes contaram suas histórias e trouxeram fatos e situações que
desvelaram a presença de elementos propulsores para o suicídio. Com base nas
assertivas de Bentancurt (2011), elaborou-se um quadro com trechos que
exemplificam o que a autora considera como “fatores de risco”. Aproveitou-se
para incluir as falas das crianças que também foram escutadas pelo método
sensível criativo, tornando-se um quadro infanto-juvenil único.
QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e
pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua
Familiares
Antecedentes
familiares
conduta suicida
de
Apesar da adolescente (A3) não
relatar, foi verificado na sua ficha
que a mãe também tentou suicídio.
Sociais
Exposição a outro suicídio, de um companheiro, amigo
ou conhecido
Falam da “influência” que um jovem ou familiar tem sobre
o outro:
A1: Porque influencia, sem querer influencia...
A4: Influencia. Às vezes vai pensar que é bom, porque ele
tá fumano, tá bebeno, deve se bom...
A1: Foi criança igual ele foi criança, e simplesmente foi por
um caminho errado, por influência de alguém. Então
na influência ali daquela pessoa, daquele baque, ela
falô assim: o que eu tenho para fazê?
A3: [...] porque um incentiva o outro, um que leva o outro.
E quem é cabeça mais fraca cai, quem num tem
personalidade forte, que tudo que fala… “Vou fazer
porque fulano faz.” Então acho que tem muito jovem
assim, que tá precisano de tê personalidade mais
forte, mais firme e sabe fala um não...
114
QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e
pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua
Disponibilidade de meios em casa
Intoxicação
A2: ... eu tomei… meus avós tinha problema
de coração, pressão alta, eles tinham
acabado de comprá os remédio, eu tinha
pegado todos os remédios deles e tinha
tomado café com eles...
A3: Eu tomei uns remédios, tomei muitos
remédios...
A4: ... aí tinha uma planta lá que um dia a
minha tia e meu tio falô que a planta era
venenosa, aí eu peguei um pedaço da
planta...
Antecedentes
de
depressão
ou
enfermidade mental na família
Antecedentes familiares
Apesar da criança (B2) não relatar, foi
verificado na sua ficha que a mãe fazia
acompanhamento psiquiátrico no CAPS do
município.
Acesso a meios letais e meios de comunicação
irresponsáveis
Criança (B1) enforcou-se no quintal de casa com um
varal: ... quando eu tava na casa do meu avô, lá
tinha uma corda, eu enrolei ela no meu pescoço...
cortou aqui...
Estigma negativo associado à procura por ajuda
e falta de acesso aos serviços de ajuda
Estigma negativo
A1: Para quem disse que eu ia ficá internado, que ia
sê doido, e hoje eu encontro apoio em você,
Michelle, que conversa muito com a gente, na
minha família, encontrei apoio, esse abraço
seguro. E aí é isso que eu sempre quero frisá, é
isso que a gente tá precisano, de apoio, de dar a
mão.
Acesso aos serviços
A1: Eu mesmo não queria o tratamento mais, porque
eu falava que era muito longe. Aí mesmo que a
gente vê, nessa área aí, tá muito prejudicada,
porque se um jovem tá precisano de um
acompanhamento ele não vai ter, ele vai ter que
sai daqui pra ir pra Belo Horizonte. E aí o que
acontece? Ele vai fala: “não, é muito cansativo.”
Igual a gente pega o carro da assistência aqui
pra gente ir pra lá, quando a gente chega lá eles
largam a gente lá. A gente pega o carro aqui
quatro horas da manhã, a gente chega lá umas
cinco e meia da manhã e a gente fica de cinco e
meia até três horas, quatro horas da tarde. O
que acontece? Se a pessoa num tive um
dinheiro pra comprar uma coisa pra comer, a
pessoa vai ficar ali com fome. Porque num tem o
apoio ali. Então como aqui num tinha psiquiatra,
num tinha psicólogo e eu tive que ir pra Belo
Horizonte, eu achava ruim, mas na mesma hora
que eu achava ruim eu achava bom, porque ali
eu tava recebeno apoio que eu estava
necessitano...
115
QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e
pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua
Mudanças na estrutura familiar e também
mudanças constantes de residência
Mudança
A2: [...] não sei se era porque eu não morava
com meus pais, então quando ocê tá
morano numa casa, mesmo que seja dos
seus avós, viveno de favô, tinha aquela
obrigação, aquele trem, era muito difícil...
Separação dos pais
A4: [...] meu pai saiu de casa, agora tem a
minha mãe, tá tudo bem agora... Até que
a minha mãe e o meu pai se separaram,
aí eu fiquei mal porque o meu pai saiu de
casa, eu gostava muito dele e da minha
mãe. Eu fiquei muito mal. Fiquei mal.
Fiquei sozinho, sem meu pai, eu via as
criança com o pai deles, eu chorava,
fiquei muito mal por causa disso...
Família
disfuncional:
violência;
dificuldades de comunicação; abuso de
álcool ou drogas; pais incoerentes,
imprevisíveis ou muito rígidos
Comunicação
A3: [...] num tinha aquela comunicação com
meus pais, porque eles num davam
liberdade pra mim falá, pra eu me
expressá o que eu tava sentino... Bom, eu
assim, o meu pai era… ele é muito
fechado, até hoje, ele comunica bem
pouco dentro de casa. A minha mãe é tipo
explosiva, nervosa demais, então assim, a
gente não… às vezes o assunto que eu
queria falá com ela eu num conseguia, por
ela ser muito nervosa ela não dava
liberdade de eu comunicá...
A2: [...] para tê um diálogo mesmo com seus
pais é muito difícil, adolescência também
num tive...
A4: Antes também a minha mãe e o meu pai
só vivia brigano, ia lá, eles brigava,
quando eles brigava eu sentia mal, eu
sentia que era eu que tava fazeno eles
brigarem...
B2: [...] eu fiquei com medo da minha mãe
sabe... Porque se ela soube ela vai me
xingá.
P: - Então o que você contou aqui pra gente a
sua mãe não sabe e você tem medo dela
sabe.
B2: - Tenho.
Morte inesperada e outros eventos de perda
Morte
Apesar do adolescente (A4) não relatar, no seu
encaminhamento a queixa inicial era de que
estava em sofrimento com perda de ente
querido. “Fala que quer morrer e ir pra perto de
Deus!”
Violência estrutural e problemas com a lei
Sociedade
A1: Não é só julgá e falá: cê vai morrê, cê vai sê
ladrão. A sociedade julga, ladrão, ladrão. Não...
Ausência de espaços de lazer
A3: Bom, lazê é meio difícil aqui, esse espaço,
porque num tem...
A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, num
tenho. Eu acho que laze aqui eu não tenho... Eu
não acho que aqui tem espaço, porque cultura…
aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas
para interagi com gente jovem num tem. É muito
difícil. Se tem é porque cada um caça seu rumo
e num expõe o que tá ruim...
Escola
A4: Eu vejo isso. Tanto é que na escola tem menino
(palavra incompreensível) que pensa em matá.
Tipo assim, a menina tá ali, eu vou mexê com
ela, ela vai lá e chama alguém para defendê, aí
vai lá, o menino num vai deixá, num vai fica só
ali... Num vai ficá sozinho. Vai buscá alguma
coisa aí acaba nisso, acaba em morte. Morte na
escola, tem mais isso aqui, morte na escola...
A1: E sempre influência da escola, porque na escola
eles lá que resolve, as professoras, diretora, aí
na rua é a polícia. Aí sai com aquela mágoa de
dentro da escola e vai resolve na rua...
Lei
116
QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e
pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua
Abuso de álcool ou drogas
A1: Tem altos e baixos… igual, o meu pai
bebe muito, então ele briga, xinga, fala,
então quando ele se acalma, a gente se
abraça e a gente fala eu te amo. Então o
que acontece? A gente vê que quando ele
tá sem beber, sem nada, ele é um amor
de pessoa...
A2: Sabe quando você tem… a minha mãe foi
viciada em drogas...
A4: Igual tem vez que eu vejo o meu tio
fumano, alguém vê o tio dele fumano, aí
eles vão querê fazê a mesma coisa...
Violência psicológica
A1: ... porque o meu pai me xingava bastante,
ele me xingava bastante. Igual ele bebia,
como eu falei, ele bebia e vinha descontá
tudo em mim. Então era só eu que era o
errado, era só eu que era culpado de
tudo. Então ele fala essas coisas eu
mesmo me sentia culpado de tudo, aí
pegava e me sentia culpado e ele me
xingava bastante. Aí eu peguei e falei, vou
te matá também. Ocê tá me matano, eu
vô te matá...
B2: [...] achei que o meu pai ia entendê, aí só
falou assim: “Cê por acaso é um gigante?”
Eu falei assim: também num sô anão não.
Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com
muita raiva...
Isolamento
A2: ... mas só que antes eu num tinha
liberdade pra saí, eu num pude aproveita
a minha adolescência... Podê saí, podê
conversá mais com os amigos. Num tinha
lazê, eles não levava a gente pra passear.
Quando era criança num podia aproveita
porque era criança, pra saí, pra tê um
diálogo mesmo com seus pais é muito
difícil, adolescência também num tive...
A3: [...] mas aquela angústia que eu sentia
era tão grande que eu chorava, ficava
mais dentro do quarto, num comunicava
com a minha família...
B2: [...] Num tem a sorveteria? Então, aí cê
desce até a rua da igreja. Então, sabe
aquelas árvore altona? Então, quando eu
tô triste eu subo lá, fico lá em cima...
A4: Desobedece pai, desobedece mãe...
A3: E acaba descontando nas pessoas inocentes,
porque a gente hoje em dia, pra você saí de
casa ocê fica com medo, fica constrangida, cê
sai de casa e num sabe se vai voltá. Porque às
vezes acontece… tá aconteceno na rua briga,
igual aconteceu aquela briga para mata...
A3: Então, principalmente em trânsito que sai esses
menino todo novinho dirigino carro, num tem
carteira, sai alcoolizado, mata pessoa, idoso
atravessano… eles num tão nem aí...
Drogas
A4: Os meus amigo mexe com isso. Tenho amigo
que mexe com isso. Então, eles faz isso achano
que melhora, tipo melhora, mas isso num
melhora, é uma coisa ruim, porque eles quer é
diversão mesmo, mas isso num traz diversão,
traz morte...
A3: Então eu acho assim, que os jovens hoje em
dia, a droga pra eles, viraram uma diversão pra
eles. Isso pra eles agora… ou não… eu vou usá
pra mim esquecê os problemas...
A1: Porque ele fala que quando eles fuma lá, cheira,
sei lá, eles fala que eles esquece dos pobrema,
eles ficam doidão. Só que nesse meio tempo de
ficá doidão é que prejudica aqueles que num
tem nada a vê com os pobrema e com as
dificuldade que eles têm passado...
A3: Então eles tão tipo, revidano, desfocano o que
eles sente por dentro, porque quando eles tão lá
eles ficam doido, eles esquecem mesmo. Então eu
acho que isso virou um meio deles, tipo colocarem
pra fora o que tá sentino. Eu acho que
principalmente dentro de casa, porque tem uns
jovens, tipo assim, eles busca esse meio pra pode
descarregar aquela… tudo que vem guardano...
Isolamento ou discriminação social
Discriminação
A1: [...] mas tem muitas pessoas que dizem assim:
“vai sê um marginal, vai sê um assassino”, então
tipo assim, a sociedade mesmo tá julgano muito
os jovem e é isso que eu acho que é por isso
que os jovens tão muito revoltado assim, porque
se eu acho que se as pessoas estendesse as
mãos pra esses jovens e num jogasse pedra
neles, no modo de dizer, e sim estendesse a
mão pra ele e falasse com ele: você vai saí
dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vou te mostrar o
lugá que cê pode tá conversano, pode ta
expressano tudo aquilo que cê tá sentino. Então
o que acontece? No meu entendimento num tá
aconteceno isso, eles só tão quereno criticá
aqueles que tão nesse mundo e num é assim...
117
QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e
pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - conclui
Expectativas
paternas
afastadas
realidade (sobre-exigência)
da
Não houve ocorrência nos relatos
pesquisa.
Família pouco afetiva ou excludente
da
Altos níveis de pressão, inclusive para ter êxito
Não houve ocorrência nos relatos da pesquisa.
Afetividade
A2: [...] eu achava que a minha família era
muito desligada... o meu pai, ele começô
a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro,
era 24 por 24. Então eu num tenho… até
hoje eu num tenho um abraço de pai, não
tenho. Sabe quando ocê sente falta de
carinho?
A1: Porque se a família assim… o tratamento
da família for aquele lá de desprezá, aí a
pessoa vai crescê com aquela revolta,
assim, num tê aquele amor, aquele
aconchego da família...
Bullying, cyberbullying ou eventos humilhantes
Bullying
B2: Foi na escola que a professora foi lá, me
chamou de anão eu fui e saí da sala, fiquei
escondido lá no lugar que fica as cadeira lá, matei a
aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a
minha mãe foi lá na escola e me buscô, achei que o
meu pai ia entendê, aí só falô assim: “Cê por acaso
é um gigante?” Eu falei assim: também num sô anão
não. Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com muita
raiva...
Percebe-se que a maioria dos fatores familiares foi claramente descrita pelos
adolescentes e os sociais expressos de forma mais camuflada, mas ambos
presentes. É importante salientar que este é um compilado de elementos e que a
intenção não era encontrar correspondente para todos, mas é assustador
constatar tantas verbalizações sobre os fatores de risco nas relações familiares e
sociais e alguns apresentarem-se como “motivos” para tentativa de suicídio.
Registra-se que essa categorização é didática e que diversas falas podem ser
incluídas em mais de um fator.
Pode-se também dizer das outras violências sofridas por esses adolescentes, que
estendem o âmbito privado e são percebidas e colocadas como problemas sociais
que afetam a vida desses sujeitos, seja direta ou indiretamente. Eles apresentam,
então, as drogas e a tentativa de suicídio como resposta violenta às agressões
sofridas pela sociedade.
Seguindo a tipologia das violências, pode-se verificar que nos relatos dos
adolescentes há a presença de todas. Sem dúvida, a violência interpessoal, mais
especificamente a intrafamiliar, esteve presente em todo o discurso apresentado
pelos adolescentes. A queixa apresenta-se por meio da natureza psíquica e
118
também da privação de cuidados sofridas por eles. As falas sobre a falta de
afetividade familiar são muito claras ao relatarem esaa indiferença, esse
abandono.
A violência coletiva e estrutural também se presentificaram de forma naturalizada,
pelos relatos da visão que a sociedade tem dos jovens e de como julgam suas
ações; da falta de acesso aos serviços públicos em detrimento das políticas e
ações governamentais existentes; da ausência de políticas e espaços para lazer e
diversão; da escola como um espaço de reprodução da violência sofrida,
vivenciada, realizada e silenciada; da droga como um mecanismo de “diversão”,
de saída, de pedido de socorro e inserção social e também de auto e
heteroagressão; da discriminação social que mascara as desigualdades de
raça/cor, de renda ou classe social por meio de outros subterfúgios; do fracasso
da internalização da lei e, por fim, do abuso de poder em relação desigual e
manutenção da visão adultocêntrica.
Na violência autoprovocada, foco deste trabalho, a natureza mais explícita foi a
violência psicológica e a privação de cuidados ou negligência/abandono. Diante
dessa ausência, os sujeitos tentam produzir sentido para sua existência e Melo
(2010, p. 14-15) afirma de forma simples e resumida tudo o que esses
adolescentes e também crianças expuseram como angústia e sofrimento:
Se falta sentido, vínculo, sentimento de identidade e de pertença, falta o
próprio sujeito - não há reprodução simbólica da sociedade. O vazio
resultante, sem dúvida, demandará ser preenchido: é necessário
“empanturrar” de coisas e, uma vez que o outro não conta, entra-se no
jogo do vale tudo – comida, mercadorias, emoções fortes, “adrenalina”,
prazeres perversos, agressões, vandalismo, destruição, etc. –, numa
tentativa vã de recuperar o sentido da própria existência. Nessa
situação, a violência passa a ser o único e mais eficiente mediador
das relações humanas e seus conflitos, impregnando-as e aos
sujeitos e suas concepções (grifo nosso).
Como dados para a escuta da tentativa de suicídio, os sujeitos deste estudo
expressaram-se extrapolando as questões pensadas para abordar o tema:
1. Como vocês percebem as suas vidas hoje? O que consideram como
positivo e negativo na vida de vocês?
119
2. Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer? O
que fizeram? (Explorar mais).
3. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida?
As unidades de registro citadas foram: invisibilidade, vínculo, escola/estudo,
depressão, rede de apoio.
Os relatos sugerem uma invisibilidade sentida e vivida pelos adolescentes e
remetem à visão sociológica do suicídio, quando se pensa no lugar desse jovem
na nossa sociedade, e também à visão psicossocial, quando se aborda a
subjetividade desse sujeito e as suas relações estabelecidas. Ressalta-se que
eles expuseram sua subjetividade, mas não estavam sós, era na relação com o
outro.
A1: [...] o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que
ninguém num tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo,
pronto e acabô. Então a primeira coisa que eu fiz foi tentá cortá os
meus pulsos, num consegui, porque… graças a Deus, porque a minha
mãe pegô e viu, a minha mãe escondeu todas as facas.
A2: E nisso, o meu pai… um dos pontos de eu tê feito isso, eu falei com
meu pai que eu queria vê minha irmã, então ele deixô eu viajá, foi aí
que eu vi, nossa, agora eu tô livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que
eu vou sê amada, que eu vou tê alguém pra conversá comigo, então
eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei mais ou menos um mês. Sabe
quando ocê vê outras pessoas, cê respira outros ares, ocê vê que cê é
importante, foi assim que eu me senti a primeira vez que eu viajei.
A3: Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que, tipo, me deram
as costas, num viam que… parecia que eu tava pedino aquele
socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu
isso, muitas pessoa olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei
a fazê o tratamento [... ] Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios.
Só que aí a minha mãe viu, me levô pro médico.
A4: Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai
num queria mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava
pensano nisso. Era o único jeito.
Os atos eram endereçados e a vinculação com a família e o social foram
determinantes para precipitar o fato e também para o “resgate”. São os sujeitos
sociais que “socorrem”.
120
A1: ... a minha mãe escondeu todas as facas. Aí depois eu peguei o
garfo, quis enfiá o garfo assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o
cabo da colhé assim, tentano me furá com o cabo da colhé, também
nada. Peguei o caco de vidro, quebrei a garrafa assim e queria me
cortá. Ela também, graças a Deus tava lá também e num deixou eu
me cortá... Aí a minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os
garfo, todas as colher, todas as garrafa, até garrafa de água, de
geladeira que tava lá. Loça, prato, tudo. Ela tirou tudo. Deixô a casa
limpinha. Porque eu já tinha quebrado um bocado de coisa, então ela
tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava reformano tudo aquilo
que eu quebrei, todos os prato, todas os jogos de talher, tudo. Aí ela
falou assim: “Meu Deus eu num posso deixá o meu filho fazê isso.
O que eu vou fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte
demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino [...] Aí, tipo assim, eu
peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha cabeça, porque eu falei:
eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha mãe. Então, tipo
assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali naquela hora [...]
Aí a minha mãe ligô pro hospital pra eles virem me buscá, porque eu ia
arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo todo [...] Eu tava ficano
tão ruim, mas tão ruim que eles falaram com a minha mãe que parecia
que não tinha jeito mais. Então a minha mãe cuidô de mim
juntamente com a equipe médica. Eu gostei muito, porque quando eu
chegava no hospital, os médico tudo parava tudo que tavam fazeno
e vinha conversa comigo. Poderia tá atendeno um paciente chegô o
A1, eu vou lá conversá com ele, então todos da equipe médica, que era
do PA, do PA e até as faxineira iam lá pra conversa comigo, então isso
aí foi muito bom [...] A minha mãe também, sou muito grato por tudo
que ela fez por mim, porque num é qualquer uma que larga a vida
dela pra cuidá do filho, não é qualquer mãe que deixa de vivê a vida
dela para ajudá o filho a vivê a vida dele. Num é qualqué mãe. E a
minha mãe saiu do serviço e falô assim… olha pra você vê, a minha
mãe falou assim: eu enfrento tudo, enfrento todos pelo meu filho.
Então eu achei assim, muito gratificante da minha mãe falá isso.
Porque se as pessoas tão me julgano, que ele ia atrás deles. Tanto que
a minha mãe falava assim: eu vou contra eles na fúria da leoa, quando
a leoa tem o filhotinho, eu vou na fúria da leoa, porque o meu filho, se
ele tá passano por isso, ele num qué isso, ele num qué isso, ele tá
passano por isso, ele num tem culpa dele tá passano por isso. Então o
que acontece? A minha mãe me ajudô bastante. A minha mãe, ocês,
me ajudaram bastante. E graças a Deus eu tô aí.
A2: O meu pai me levou pro PA, no PA eu senti vontade de sê social
[palavra incompreensível]. Então lá tinha esses dois policial comigo,
aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial,
então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a
sonda que ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim.
A3: [...] a minha mãe me levou pra fazê o tratamento, então depois
disso, que aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajudá, foi
quando me levou pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorô,
foi por causa disso.
A4: [...] aí foi lá e a minha mente ficou muito melhó, fiquei conversano
muito com a minha família, relacionei muito melhor com a minha
família, falava os segredo tudo com a minha família [...] Aí eu
escondi no banheiro, fiquei batendo na porta do banheiro, fiquei fazeno
um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversô comigo, aí
foi lá, eu parei.
121
Foi possível verificar que o relato dos adolescentes sobre o ocorrido trouxe de
forma muito clara os motivos objetivos da tentativa, a forma, seus pensamentos e
sentimentos naquele momento, que exemplificam o esquema sobre o processo do
suicídio apresentado por Boronat (2013).
QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos baseado no
esquema de Boronat (2013)
Processo
do
suicídio
Fato
cotidiano
Problema
Conflito
Crise
Fantasias
negativas
Fantasias
de morte
Tentativa
de
suicídio
Suicídio
A1
Adolescentes (relatos na íntegra no APÊNDICE F)
A2
A3
Relação com o pai
Sentir
que
todo
mundo está com
raiva e falando mal
de você. Sentir-se
culpado
pelos
problemas familiares
e externos
Nada estava bom,
tudo estava ruim, era
muito triste, chorava
bastante, não queria
ver ninguém
Crise
nervosa,
depressão profunda
(ouvir
vozes
de
comando)
Família
“desligada”
Limitação
da
liberdade,
morando
de
“favor” com avós,
falta de carinho
dos pais
Falta de diálogo
familiar
Decepção com
amigos
Triste, angustiada, Angústia
sem amigos, sem
ninguém
Pai não autoriza
viagem para ver a
irmã,
sente-se
sufocada
Isolamento, só
chorava,
tudo
estava
ruim:
depressão
Queria
fugir,
ir Sem solução para Não querer mais
embora,
esconder mais nada
existir, cansada
para
resolver
o
de viver
“problema”
[...]
queria
me [...] tinha nada na Melhor acabar
suicidá,
queria minha frente que com tudo de vez:
amarrá uma corda e pudesse falá fica, [...] única saída
me
enforcá
[...] você é importante pra deprimido é
Acabá com a vida pra mim, num droga ou suicídio
porque num tinha tinha ninguém [...] [...]
mais solução.
[...] pegava uma faca Tomou todos os Tomou
pra cortá o meu remédios
dos medicação em
pulso [...] tentei fugi avós
casa
pra me afogá na
lagoa [...] Eu pulei lá
de cima da varanda
lá em baixo [...]
Nenhum dos adolescentes chegou nesta fase, pois receberam
e o apoio que tanto demandaram.
A4
Briga dos pais
Separação
pais
dos
Morar com a mãe
e ficar longe do
pai. Ficou mal,
sozinho,
triste,
chorava
Retorno do pai
para
buscá-lo,
desespero,
choro, fuga para
casa da tia
Pensava que os
pais não queriam
mais que ele
existisse
Morrê é a única
forma de num dá
mais trabalho pra
minha mãe, pra
ninguém
Comer a planta
venenosa
da
casa da tia
acompanhamento
122
Esse painel reforça o QUADRO 2, resgatando os vínculos familiares e sociais
como estratégias para intervenções em casos de tentativa de suicídio. Viu-se que
as ações são endereçadas e que a angústia é da ordem do insuportável, mas é
imprescindível destacar que a invisibilidade dos sujeitos e a fragilidade das
relações estabelecidas são peças fundamentais nesse quebra-cabeça. É preciso
resgatar e reconstruir as relações familiares e sociais para que o sentido do “ser
nada” se recomponha no “ser existente” e, conforme atesta Heidegger (1998), a
totalidade de tudo ganha sentido e significado.
Após exposição da tentativa de suicídio é importante verificar a existência de
plano futuro. Os adolescentes apresentam a escola como espaço de vida, de
continuidade, de futuro, de projeto de vida.
A2: [...] fazer curso de Marketing, de Administração, mas tô achano as
coisas tão difíceis. Tem que estudá bastante. Pra ser sincera eu num sô
muito inteligente, então eu acho as coisas tão difíceis, é tão complicado.
É muito difícil [...] É estuda, entrá pra uma faculdade, mas o que, em
mente eu num sei, é no futuro.
A3: O meu projeto de vida, eu quero estudá. Esse ano eu vou formá,
então eu quero saí da escola, começá uma faculdade, agora e…
porque eu tenho muita vontade de começá a estudá, tê uma
profissão boa pra eu podê morá sozinha. Essa é a minha vontade
daqui pra frente.
A4: Minha vontade é ser jogadô de futebol profissional. E estudá muito.
Estudá inglês, espanhol, pra eu dá um futuro pra minha família.
Essas falas expressam que o espaço escolar é fundamental na construção de
qualquer ação intersetorial, pois é nesse espaço que eles estão (ou deveriam
estar) e criam vínculos, seja para um passado, presente ou futuro.
Resgatando
Dowbor (2007), é
justamente
na
escola
que
se
formam
multiplicadores, seja para o exercício pleno da cidadania, da cultura da paz, da
promoção e prevenção da vida ou para a replicação da violência existente. E para
que
haja
desenvolvimento
local,
o
investimento
nesse
setor
torna-se
indispensável. Ao longo dos discursos, os adolescentes trazem a escola como
espaço de vida e morte, local que será utilizado conforme as relações que foram e
são estabelecidas, ou seja, querem existir nesse lugar também e serem
escutados. Diante disso, qualquer proposta de prevenção deve ser intersetorial e
123
considerar esse espaço de oportunidades como ponto-chave para intervenções
infanto-juvenis.
Os adolescentes também denunciam a ineficiência e ineficácia dos serviços de
saúde municipais e da rede de apoio à criança e adolescente, o que impulsiona
uma reflexão acerca das políticas públicas propostas e implementadas sobre a
prevenção do suicídio e a promoção da saúde.
Matozinhos não possui um projeto claro ou política de prevenção que contemple
as crianças e adolescentes com ideações suicidas. Na saúde, há um Ambulatório
Infanto-juvenil de Saúde Mental, composto por uma psicóloga e uma psiquiatra,
que atendem casos em que existe sofrimento intenso, considerados de média
complexidade. E um PA que também recebe esse público após consumação do
ato. Esses serviços estão situados no que se chama de de prevenção terciária
(assistência para reduzir trauma) e prevenção secundária (resposta imediata à
violência), respectivamente. Na atenção básica não são realizados grupos com
crianças ou adolescentes com essa demanda. Conclui-se, então, pela
necessidade de melhor organização da rede setorial de saúde para que se
desenvolvam ações de prevenção primária, para que efetivamente as crianças e
os adolescentes que ainda não tentaram suicídio sejam acolhidos e escutados
para que não precisem usar da violência para serem vistos.
A Assistência Social também não desenvolve ação específica para esse público,
assim como a Educação, o Esporte, o Conselho Tutelar, o Conselho da Criança e
Adolescente ou o Judiciário. Eles encaminham para o ambulatório ou para o PA.
E como é sabido que um único setor não suporta a resposta interina de um
problema tão complexo, é necessário que esses outros setores conversem, cada
um com sua política e ação específica, para que as intervenções tenham foco no
cidadão matozinhense, nas crianças e adolescentes aí residentes. Ações
transversais e intersetoriais possibilitarão a construção de estratégias inovadoras
para minimização do impacto dessa violência e prevenção de novos casos. E
Silva e Maeta (2010) expressam a importância de vencer esse desafio.
124
Outro desafio é sensibilizar os gestores e profissionais da saúde para a
importância da notificação e do processo de formação permanente,
capacitando-os para atuar nas áreas de vigilância, prevenção, atenção e
promoção da saúde e cultura de paz. Articular, apoiar e fomentar as
redes de atenção e de proteção, através de articulações com outros
setores, como educação, assistência social, órgãos de proteção e
garantia de direitos – conselhos tutelares, Ministério Público,
defensorias, varas e delegacias – é um dos grandes desafios para os
gestores do SUS. Portanto, o desafio é fazer com que as informações
de fato gerem ações de intervenção, garantindo direitos, prevenindo
violências, promovendo qualidade de vida e cidadania (SILVA;
MAETA, 2010, p. 88-89, grifo nosso).
Questiona-se essa invisibilidade do “fato” e negligência da rede de apoio ao
atendimento de uma demanda urgente. A subnotificação presente no setor da
saúde inviabiliza qualquer proposta, pois se o fato não existe, para que mobilizar
e executar ações direcionadas? Mas o questionamento é mais profundo, pois,
segundo as queixas dos adolescentes do grupo focal, são eles que não existem
para esse município. A subnotificação mascara a tentativa de suicídio e revela
que esses sujeitos não possuem um “lugar” nessa sociedade. A rede de apoio
infanto-juvenil perpetua o discurso adultocêntrico e não permite que esses
adolescentes sejam vistos e escutados.
Esta visão está impregnada e até os adolescentes se valem do discurso
biomédico
para
justificarem
suas
angústias,
diagnosticando-se
como
“depressivos”. Será essa uma forma de serem inseridos nessa rede, por meio da
“doença”? Por que a “violência” choca e paralisa os profissionais que deveriam
acolher, escutar, direcionar e apoiar?
A denúncia da falência da rede de apoio é um alerta para a construção de ações
preventivas e de promoção que considerem essas crianças e adolescentes
sujeitos de direitos, deveres e desejos e que possibilitem uma qualidade de vida
que considere as necessidades individuais desse público como o ter, o amar e o
ser, para sejam mais que um simples corpo lesionado (ERICK, 1993, apud
VITTE, 2009).
A proposta de intervenção foi uma inovação dos adolescentes que sugeriram
formas de resolver ou amenizar os danos da problemática, quando foi aberto o
espaço para exporem outras questões:
125
1. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o assunto
e não foi perguntado?
Nesse momento, pode-se entender como unidade de registro as seguintes
palavras: espaço de escuta, apoio, ajuda.
A3: Eu acho que falta um pouco disso. Eu acho que seria bom se
tivesse um local assim, direto, pra jovens tarem se encontrano pra
podê conversa, pra falá o que aconteceu, porque é tão bom cê passa
pra pessoa e a pessoa também lembrá que não foi só ocê que passou
por aquilo, que muitas pessoas passaram e que ainda pode vim a
passar e, às vezes, se tivesse um local de encontro, as pessoas que
tivessem angustiadas, tivessem pensando em fazer isso, escutá a
experiência que nós que já passamos por isso, pra não fazê. Eu
acho que seria muito bom se tivesse um lugar assim pra interagi uns
com os outros [...] Eu acho que seria muito bacana também com os pais
também, porque… contá uns aos outros como tá, o que aconteceu com
os filhos para servi de experiência pro próximo. Eu acho que seria bom.
A2: Porque cê fica guardano procê. Você poderia expressar o que ocê
tá sentino.
A1: Uma ONG de apoio pros jovens.
A1: Eu acho que se tivesse, igual a gente passou por esse problema, eu
acho que se tivesse assim esse momento, igual nós tamos tendo hoje
aqui de conversá, eu acho que… a gente num voltaria, porque a gente é
feito de carne e osso, porque hoje a gente tá em pé aqui hoje, amanhã
a gente pode tropeçá e caí, então eu acho que se tivesse aqui, igual a
gente tá aqui hoje, eu acho que nesse momento de fraqueza, aquilo
que ela me falou ia me fortalecê, aquilo que ela falou ia me ajudá a
vencê aquilo que eu tava passando. Então eu ia falá assim: olha, ela
passou por aquilo e olha o tanto que ela sofreu, eu num vou passá por
isso não, eu vou erguê a minha cabeça, num é? Então eu acho assim,
se tivesse seria muito bom. Aí evita acontecê o que já havia
acontecido na nossa vida pra trás. Evita acontecê no futuro, pra
frente. Eu acho assim.
Os adolescentes apresentaram como proposta para amenizar os problemas
vivenciados por eles e por outros jovens do município a construção de um espaço
para escuta. No entanto, demarcam essa solicitação como um pedido de ajuda e
inserem os pais também como atores necessitados de auxílio. Essa proposta,
aparentemente simples, denuncia uma desfuncionalidade dos serviços públicos
municipais oferecidos, seja pelo desconhecimento dos adolescentes, dos
atendimentos oferecidos ou mesmo dos profissionais que compõem a rede de
apoio a eles e pela burocratização existente.
126
Dizer que não há um espaço no qual possam ser vistos, ouvidos, ajudados e
cuidados significa dizer que nesse município não há desenvolvimento local nem
gestão social. Eles não existem e, logo, não participam do processo democrático,
cidadão, emancipatório e transformador. Mas será que há desenvolvimento local
e gestão social em Matozinhos, conforme descrevem Sen (1999) e Maia (2005)?
Os relatos são enfáticos e acusam a inexistência desses conceitos: não há
expansão de liberdades nem participação democrática. A postura dos
adolescentes também denuncia uma ação destrutiva para conquista de um
espaço e de um direito: é preciso morrer para viver, para existir?
B) Método sensível criativo com crianças
O método sensível criativo foi realizado com três crianças, na faixa etária de oito a
12 anos, sendo todos meninos e apenas um não morava em um dos sete bairros
que apresentaram alta incidência de ocorrências de tentativa de suicídio.
Ressalta-se que, apesar de considerar os 12 anos como adolescente, esse sujeito
foi incluído neste grupo porque, quando foi convidado a participar da pesquisa,
ainda não havia completado essa idade. Os casos de tentativa de suicídio foram
registrados em 2010, 2011 e 2012 e foram, respectivamente, corte, enforcamento
e
queda/precipitação.
Para
preservar a
identidade
dos sujeitos,
serão
representados pela letra B, seguida de um número em ordem decrescente de
acordo com a idade atual.
B1 foi acolhido pelo ambulatório em fevereiro de 2011, aos nove anos, com
queixa de tentativa de suicídio por enforcamento: “enforcou-se com uma corda
(varal) no quintal de casa”. No grupo, verbalmente, ele afirmou e também negou a
sua intenção de morrer, mas sua expressão corporal, facial e seu desenho
confirmaram a sua intenção. Classificado como caso sem CID, mas escrito por
extenso (tentativa de suicídio).
B2 foi acolhido em março de 2010 no ambulatório, aos oito anos, após ser
encaminhado pelo PSF com queixa de automutilação (cortou o braço: sempre
pega a faca e fala que quer morrer). No encontro falou explicitamente da sua
127
vontade de morrer e citou algumas ações que sugerem outras “tentativas”
(precipitações). Classificado como caso suspeito sem CID.
B3 foi atendido no PA em setembro de 2012, aos sete anos, com queixa de queda
de altura (queda da laje + de 2 metros – escoriações face). Falou pouco no
encontro e negou intenção de morte. Foi classificado como caso suspeito sem
CID.
A análise dos dados será realizada de forma qualitativa, articulando os dados do
relatório do encontro com as crianças, as suas produções sensíveis e criativas e a
transcrição dos seus relatos. É importante destacar que, dos três garotos
escutados, dois moravam nos bairros Centro e Florestal, que apresentaram maior
número de casos de tentativa de suicídio infantis. O outro residia em um bairro
novo, no município chamado Presidente.
A pesquisadora acolheu as crianças e pediu que escrevessem os nomes nos
crachás, para posterior apresentação dizendo nome, idade e bairro. Ficaram
todos em silêncio e a investigadora decidiu começar para quebrar o gelo e
estimular o grupo. B3, muito tímido, não quis se apresentar, mas respondeu
quando foi questionado o seu bairro (Florestal) e idade (oito), sempre de cabeça
baixa. Aparentava dúvida quanto às informações que prestava. B2 se apresentou
incluindo a família e falando muito baixinho e com vergonha ([...] moro no Centro,
moro com a minha mãe e duas irmãs [...]). B1 também se apresentou sem
problemas ( [...] eu moro no Presidente… no bairro Presidente Costa e Silva e
tenho 12 anos [...]). Estavam todos sentados em volta de uma mesa, de forma
que B2 ficou ao lado de B3 e B1 de frente para a pesquisadora. Os lugares foram
escolhidos por eles.
Ao explicar o procedimento, todos ficaram muito atentos às falas da pesquisadora
e disseram não terem dúvidas, apesar da expressão facial e corporal de B3 dizer
o contrário (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013).
Foi entregue uma folha com o contorno do mapa de Matozinhos para cada um
deles e questionado se sabiam o que era. B2 respondeu primeiro que era um
128
mapa e os outros concordaram. Geralmente, ele quem iniciava as falas e ações,
para só depois as outras duas crianças tomarem a iniciativa.
Foi solicitado que eles colocassem no mapa como é morar aqui em Matozinhos, o
que eles fazem e com quem. B3 teve um pouco de dificuldade, olhou o que os
outros meninos estavam fazendo, bastante inquieto, e depois questionou se era
só para colorir. Após a intervenção da pesquisadora ele pegou o lápis de cor e
coloriu o contorno do seu mapa. Pareceu que não entendeu o que foi solicitado.
B1 estava pensativo e também olhou para a folha dos colegas. B2 ficou
concentrado e foi o primeiro a terminar todas as atividades. B3 pareceu
incomodado porque os colegas estavam escrevendo, ficou muito inquieto,
respirando fundo e, a todo o momento, olhando para as pessoas do entorno.
Perguntou se poderia escrever o seu nome e escolheu o interior do mapa,
novamente respirando fundo. B1 terminou após B2 e também aguardou B3.
Ambos ficaram em silêncio (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013).
Os desenhos foram digitalizados, com o cuidado de preservar a identidade dos
sujeitos, e podem-se inferir algumas questões da relação que estabelecem com o
território, a partir do lazer e com o social e a família.
Ao falarem sobre o que fizeram na folha, B2 foi o primeiro, sempre falando muito
baixo. B1 balançava o corpo enquanto explicava e sempre muito sucinto. B3 falou
rapidamente e logo baixou a cabeça, tampando o rosto. Só respondia às questões
da pesquisadora “balançando a cabeça”. As outras crianças riram de B3, mas não
aparentava um tom de zombaria.
B2 apresentou a sua produção, frisando que só desenhou o que gosta de fazer:
[...] Soltá pipa, todo dia vô pro campo, solto pipa, depois vô… Quando tá
no tempo de soltá pipa, eu vô todo dia pro campo e solto pipa, fico lá
soltano pipa, depois eu vô pro jogo. De noite eu vô pra praça e fico lá
tomano vitamina de açaí. Só isso... Após esta fala, a criança é
questionada sobre o que acha de morar em Matozinhos e com quem
executá estas atividades e responde que acha muito legal e que [...] de
vez enquanto quando eu acho os meus colegas, eu vô com eles,
quando eu num acho, eu vô sozinho.
129
FIGURA 7 – Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar em
Matozinhos, 2013
B2 fez todos os seus desenhos sem cor, fora do mapa de Matozinhos, e fez essa
pergunta antes, além de exclamar que estava muito difícil pensar em tudo o que
ele fazia. Primeiro ele relata que solta pipa e está sozinho, depois gosta de jogar
bola no campo e inclui alguns amigos e, por último, vai sozinho para a praça
tomar vitamina de açaí. Interessante perceber que, apesar de a criança se
apresentar incluindo a família (mãe e irmãs), esta não está presente em qualquer
atividade que ele desenvolve no município. Essa criança “solitária” deve ser
observada e escutada, principalmente porque durante o encontro esta questão
aparece em diversos momentos: que “solidão” é essa sentida?
A criança B1 escreveu um texto, respondendo à questão:
[...] porque gosto de Matozinhos. Eu gosto de Matozinhos porque é uma
cidade grande e dá para eu fazer o que eu mais gosto, que é jogar bola
e brincar com os meus colegas de soltar papagaio, jogar bola, jogar
videogame e muito mais coisas que dá para fazer; e também eu gosto
de ver jogo do Cruzeiro com os meus colegas...
130
Ele foi o único que virou a folha e escreveu com o mapa “de cabeça para baixo”.
Também possui um colorido discreto, que foi realizado após olhar os mapas dos
colegas, demonstrando certa ansiedade. No seu parágrafo, não há pontuação na
resposta, são muitas coisas e os amigos estão incluídos nas atividades. Já na sua
fala apareceram outras ações de lazer que não estavam no papel: “[...] Eu vou na
aula, eu vejo muito jogo de futebol, videogame, assisto televisão, saio com meus
pais, no shopping, gosto de soltá papagaio na rua, gosto de brincá muito com
meus colega”.
FIGURA 8 – Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar em
Matozinhos, 2013
A escola e os pais foram incluídos, ressaltando-se as suas relações familiares e
sociais estabelecidas cotidianamente no município em que reside. Resgata-se,
nesse momento, o importante papel da escola e da família, relações sociais e
131
familiares, já discutidas na análise dos resultados do grupo com os adolescentes
e também no QUADRO 3, onde os dados encontrados das crianças também
foram inseridos.
FIGURA 9 – Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar em
Matozinhos, 2013
Este é o desenho de B3 e na sua apresentação ele foi quase monossilábico,
dizendo que gosta de morar em Matozinhos e de jogar bola, que é isso que o
deixa feliz. Seu desenho é colorido e extremamente congruente ao revelar um
menino com uma bola, no entanto, ele não tem boca. Sem boca, realmente é
impossível ser mais que monossilábico! Essa criança posicionou-se dessa forma
durante todo o encontro, falando pontualmente, de forma muito breve e com
pouquíssimas palavras. O objetivo não era investigar tal fato, mas pode-se
constatar que existe algo com essa criança que deve ser escutado. O que ou por
que ela não pode ou não quer falar? Interessante também verificar que insere seu
nome dentro do mapa de Matozinhos (o nome foi coberto para preservar a sua
132
identidade), dizendo que está inserido nesse contexto, que gosta deste território,
apesar de se desenhar do lado de fora.
Diferentemente dos adolescentes, as crianças não se queixam da ausência de
espaços de lazer e descrevem muitas atividades que executam sozinhos ou
acompanhados. É imperativo frisar que os tipos de lazer variam conforme a faixa
etária, mas eles encontram formas de brincar e se divertir que extrapolam a
ausência estatal, apesar de todos citarem o “campo de futebol” (tanto as crianças
como os adolescentes). Também se ressalta que os adolescentes têm uma
análise crítica diferenciada da situação. Fato é que a questão do lazer não se
apresenta como problema para as crianças, pelo menos nesse momento.
A pesquisadora propôs uma conversa sobre sentimentos, tristezas e alegrias,
vontade de morrer. Nesse momento, B1 foi o primeiro a falar, acomodando-se à
cadeira e apoiando a cabeça no braço. Ficou extremamente incomodado com a
sua intervenção. B2 falou em seguida, de forma bem vergonhosa, com um sorriso
tímido e meio nervoso, com olhar para baixo, desviando a atenção. B3 disse o
que o deixa feliz e não rendeu muito. B3 e B1 disseram que não tiveram vontade
de morrer e B2, com expressão triste, contou quando sentiu essa vontade. Os
outros ouviram em silêncio, no entanto, B3 estava atento e B1 desviou o olhar e
mostrou-se incomodado com a fala do colega.
Apesar de toda a sua inquietação, B1 conversou:
B1: Eu já senti tristeza, alegria, tudo.
P: E o que deixou você feliz? Teve alguma coisa assim que marcou que
deixou você feliz?
B1: São poucas coisa... [brinca].
P: E quando você está triste assim, como que é, B1, quando acontece
alguma coisa assim ou quando você está se sentindo triste, como que
você fica?
B1: Eu fico quieto, vô pro meu quarto e fico lá.
P: - E você chora?
B1: Não.
133
Em seguida, B2 afirmou:
B2: Quando eu fico triste eu vô pro meu quarto, fico quieto lá, no meu
canto lá. Se eu fico mais nervoso eu começo a quebrá tudo, guarda
roupa, esses negócios assim.
P: - Entendi. E quando você está alegre, quando você está bem assim,
como que é?
B2: - Eu fico brincano, assisto televisão, eu fico feliz.
Como sempre, B3 foi bastante sucinto e negou sentir tristeza:
P: Entendi. B3, e você? (pausa) O que te deixa triste, B3? Ou o que te
deixa feliz?
B3: Jogá bola. Só um está bom.
P: Jogar bola te deixa feliz. Que bacana! E o que te deixa triste?
R3: Nada.
Ausência de tristeza ou ela não pode ser revelada? Eis a questão...
Ao modificar a pergunta e questionar se alguém já viveu uma situação em que
quase morreu, B1 falou o que sente quando fica com raiva e também contou
sobre sua “brincadeira” no quintal de casa, mas negou a intenção e vontade de
morrer, no entanto, sua expressão era de tristeza.
B1: Eu fico bravo com a minha mãe, com o meu pai, com todo mundo.
P: Fica bravo como B1?
B1: Não converso com eles, deixo ficá… fico no quarto, depois vô lá e
peço desculpa, quando eu acalmo.
P: E você tentou alguma vez assim, morrer, para acabar com o
problema, para ficar livre, para não ficar mais sofrendo, mais triste? Você
já quis morrer?
B1: Já. Quando eu tava na casa do meu vô, lá tinha uma corda, eu
enrolei ela no meu pescoço, eu tava brincano, eu escorreguei, caí aí
quase (palavra incompreensível), cortou aqui.
P: Cortou o seu pescoço. E o que você sentiu nessa hora, B1?
B1: Eu pensei que ia morrê.
P: E você queria morrer?
134
B1: Não.
P: O que você queria naquele momento?
B1: Ah! Quase todo dia eu ficava fazendo isso; foi lá, naquele dia eu
escorreguei e caí.
O discurso da criança é incoerente, pois inicialmente afirma o seu desejo de
morrer e quando é inquirido mais diretamente ele nega e apresenta uma resposta
“politicamente correta” para justificar a ação. Brincar todos os dias de tentar se
enforcar? Brincadeira ou pedido de socorro? Uma criança que realiza esse tipo de
ação e trata dessa forma, no mínimo, pode-se inferir que não havia ninguém por
perto “vendo” essa “diversão”. Negligência? Invisibilidade? Tratar a tentativa de
suicídio como uma “brincadeira malsucedida” retira do fato a intencionalidade da
criança e justifica-o de forma amena, ou seja, mascara também a ausência dos
responsáveis.
A criança B2 também expôs seus sentimentos e, em seguida, relatou um caso:
B2: Quando fiquei assim numa solidão terrível eu ficava dando mortal
nas arvores.
B2: Foi na escola que a professora foi lá, me chamou de anão eu fui e
saí da sala, fiquei escondido lá no lugar que fica as cadeiras lá, matei a
aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a minha mãe foi lá na
escola e me buscou, achei que o meu pai ia entender, aí só falou assim:
“Você por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também não sou anão
não. Aí ele começou a me xingar e eu fiquei com muita raiva.
P: E aí me conta como que você se sentiu, B2?
B2: Querendo morrer. Eu fiquei com muita raiva.
B3 não respondeu essa questão verbalmente, apenas balançou a cabeça
negativamente quando perguntado se já teve vontade de morrer.
Solicitou-se que eles colocassem isso no papel de forma livre e criativa. Os três
ficaram em silêncio, concentrados nas suas folhas. A observadora espirrou e B3 e
B1 olharam, mas B2 não; continuou produzindo, concentrado. B2, novamente,
terminou primeiro e com expressão preocupada questionou se a folha seria
mostrada para a mãe. Em seguida baixou a cabeça e ficou pensativo,
aparentemente preocupado. B3 ficou concentrado no seu desenho e terminou em
135
seguida, expressando verbalmente, seguido de um suspiro e cruzando os braços.
No entanto, continuou desenhando e colorindo. B1 terminou e foi o primeiro a
falar, parecia ansioso, pois piscava os olhos com mais intensidade e frequência.
B3 disse que “nada” fez e ficou incomodado quando olhou para a observadora,
cobrindo o rosto com o desenho. B2 explicou seu desenho, baixinho.
O desenho do menino B1 expressa a contradição do seu discurso (FIG. 10).
FIGURA 10 – Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,
2013
Ele escreve que quase morreu enforcado enquanto brincava com a corda no
pescoço. Na sua produção, ele expressa o seu sofrimento e desespero diante da
morte e as lágrimas são visíveis e abundantes. Ele mostra um antes e um depois
e também não há mais alguém na cena, o que sugere o que se inferiu
anteriormente sobre a ausência e negligência dos responsáveis e a invisibilidade
136
dessa criança diante da sua família. Seu sofrimento também pode ser visto na
primeira figura que faz de si, pois não está sorrindo, sua expressão facial é de
“indiferença”, sua boca está “reta”...
Ao ser solicitado que a criança B3 apresentasse a sua produção, ele disse que
“não fez nada”! Foi pontuado, mas ele insistiu na resposta e seu silêncio foi
escutado e respeitado. Seu desenho é muito colorido, traz casas, flores,
borboletas e camas, mas como a criança não comentou, é difícil fazer qualquer
inferência. É possível verificar que existem pessoas de tamanhos diferentes,
deitadas em camas dentro de algumas casas. Estão dormindo? Mortas? E outra
que parece estar em uma gangorra brincando. Pelas cores, parece pouco
provável que seja algo de natureza tão mórbida, a questão que fica é: será que
não ter boca e não poder falar diz de algo que deve permanecer em segredo e ser
camuflado através da felicidade, da alegria? Neste caso, seriam interessantes
novos encontros, talvez individuais, para que essa criança pudesse expressar o
que estes desenhos não deram conta de dizer ou não que a pesquisadora não
deu conta de entender.
137
FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,
2013
B2, antes de iniciar o seu desenho, fez uma confissão de outro episódio no qual
“achou” que iria morrer:
B2: Só teve uma vez que eu quase morri.
P: Como que foi?
B2: Sabe esse prédio novo que tá construino?
P: Onde?
B2: Aqui na praça.
P: Sim.
B2: Eu fiquei andano e fui até lá na ponta, fora do prédio, teve uma hora
que eu escorreguei, quase caí, fiquei pendurado pelas mão.
P: E aí, como que foi isso, B2?
B2: Coração começou a batê, batê, aí eu fui lá e consegui subi, fui lá pra
baixo e num morri não. E num subi lá mais.
P: E o que você pensou, B2, quando você estava lá em cima?
138
B2: Eu pensei que eu ia morrê. Eu estava lá na ponta e lá era alto.
P: E quando você estava lá na ponta, você pensou em pular? (Silêncio)
Pensou? (Silêncio) E o que você sentiu quando você estava lá
pendurado?
B2: Achei que ia morrê. Fiquei com medo.
P: Medo! Você sentiu medo!
Pode-se inferir que esta seja uma tentativa de precipitação? Ou mais uma
brincadeira malsucedida? Quando questionada sobre sua intencionalidade, a
criança cala-se! Esse silêncio deve ser escutado, pois diz, sim, do seu desejo!
FIGURA 12 – Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,
2013
Seu desenho retrata, curiosamente, o momento presente, isto é, todos que
estavam na sala, exceto a observadora. A sua cadeira e a do colega ao lado (B3),
pintadas de vermelho. Sangue? Morte simbólica? E a escolha pelo colega ao
lado, representa algo? Qual o significado desse espaço de escuta para essa
criança? Esta produção faz uma referência à fala dos adolescentes quanto à
importância de serem vistos e escutados por alguém, de existirem para alguém,
139
de receberem apoio e serem acolhidos. Terem um espaço só para eles, para que
possam dizer das suas angústias que não são escutadas pelos familiares e, de
acordo, com B2, também não “podem ser contadas”...
Ao escrever, ele conta o fato da possível “precipitação” e do seu medo da mãe
saber. Que relação é essa que esse menino estabelece com a sua mãe? Que
“medo” é esse? Essa preocupação também remete ao QUADRO 2, quando se
verifica a fragilidade dos vínculos sociais e, principalmente, familiares. A
comunicação e a afetividade não encontram espaço diante de tanto “medo”.
A pesquisadora foi surpreendida quando perguntou se gostaram do encontro, pois
B3 falou bem alto e com sorriso no rosto, que ele achou “legal”. Interessante, pois
em nenhum momento do encontro ele se posicionou de forma tão segura, precisa
e com satisfação. Percebe-se que mesmo que a criança não diga o que aflige ou
sente, o fato de ter atenção e poder ser escutada e vista é uma possibilidade de
transformação da existência, da postura e escolha que se faz diante das
circunstâncias vivenciadas cotidianamente. B1, com expressão desanimada, falou
que achou “chique”; e B2, com aparência envergonhada, disse que também
achou “legal”. Mas todos disseram que voltariam caso fosse necessário. Ao
finalizar, a pesquisadora pediu “segredo” das informações compartilhadas e todos
concordaram, baixando o olhar. Encerrou-se e convidou para o lanche.
140
6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS
6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio
Infanto-juvenil de Matozinhos
Este projeto de intervenção psicossocial terá foco na comunidade, família,
usuários e poder público local, visando a prevenção, proteção e tratamento das
crianças e adolescentes. O objetivo é construir, junto com a população e o poder
público local, um Fórum Presencial de Discussão sobre a Rede de Apoio
Infanto-juvenil do município para a prevenção e tratamento das necessidades
urgentes desse público em Matozinhos. É importante salientar que a tentativa de
suicídio apresenta-se como uma dessas prioridades, conforme pesquisa
quantiqualitativa realizada. Como essa demanda está subnotificada e “invisível”, a
proposta é que as discussões comecem baseadas nos dados encontrados nos
últimos cinco anos.
Esta proposta está de acordo com as Diretrizes Nacionais para Prevenção do
Suicídio (BRASIL, 2006a), principalmente quando a Portaria nº 1.876/2006
destaca no seu art. 2º a construção de uma rede para:
I - desenvolver estratégias de promoção de qualidade de vida, de
educação, de proteção e de recuperação da saúde e de prevenção
de danos;
II - desenvolver estratégias de informação, de comunicação e de
sensibilização da sociedade de que o suicídio é um problema de
saúde pública que pode ser prevenido;
IV - identificar a prevalência dos determinantes e condicionantes do
suicídio e tentativas, assim como os fatores protetores e o
desenvolvimento de ações intersetoriais de responsabilidade
pública, sem excluir a responsabilidade de toda a sociedade;
(BRASIL, 2006a, grifo nosso).
Essa rede é mais complexa e prevê, também segundo a Portaria citada
anteriormente, que ela seja organizada e que implante projetos estratégicos de
intervenções nos casos de tentativa autoextermínio. Ressalta-se que deve:
141
VI - contribuir para o desenvolvimento de métodos de coleta e análise
de dados, permitindo a qualificação da gestão, a disseminação das
informações e dos conhecimentos;
VII - promover intercâmbio entre o Sistema de Informações do SUS e
outros sistemas de informações setoriais afins, implementando e
aperfeiçoando permanentemente a produção de dados e garantindo a
democratização das informações [...] (BRASIL, 2006a, grifo nosso).
O Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos será um
espaço coletivo para a discussão de problemas locais quanto às necessidades
das crianças e adolescentes residentes no município. A proposta é de que esse
processo se inicie com os dados levantados sobre os casos de tentativa de
suicídio e que seja realizada uma breve capacitação profissional, informando,
caracterizando o fato territorialmente e desmitificando paradigmas que rondam o
imaginário dos trabalhadores dessa rede de apoio à criança e ao adolescente.
Far-se-á do Fórum Municipal “um importante instrumento de gestão” social local!
Mas o que é um Fórum? “O fórum é um espaço de debate coletivo considerandose as diferentes interfaces necessárias para o fortalecimento de uma política [...]”
(BRASIL, 2005, p. 17). É um espaço representativo, de caráter consultivo e/ou
deliberativo, que busca dialogar sobre os problemas encontrados em diversas
áreas e propor mudanças com objetivos preventivos e “curativos”, ou melhor,
resolutivos. No caso específico do Fórum Municipal da Rede de Apoio Infantojuvenil de Matozinhos, pensa-se em um momento de capacitação, reflexão e ação
com função inicial apenas informativa e consultiva.
A ideia é que o espaço seja construído em conjunto com a população civil, os
familiares, os próprios adolescentes e crianças, o poder público e os demais
interessados. São necessárias diversas ações antes de elaborar uma verdadeira
política municipal de saúde mental infanto-juvenil, pois não há, até o momento,
um mapeamento do território e algum estudo que possibilite visualizar a real
situação de vulnerabilidade em que se encontram essas crianças e adolescentes.
A constituição, participações, atribuições e características de seu funcionamento
serão construídas com os interessados, baseando-se sempre nas diretrizes
142
nacionais e respeitando-se as peculiaridades locais. No entanto, têm-se algumas
propostas iniciais norteadoras.
A primeira ação, considerada fundamental, é um breve “mapeamento” dos
sujeitos interessados na discussão da rede de apoio infanto-juvenil do município.
Em seguida, o processo de mobilização social e construção inicial de parcerias.
Serão feitas visitas aos serviços públicos que trabalham com as crianças e
adolescentes; enviados convites para a comunidade, por intermédio de seus
representantes e dos usuários dos serviços e para demais órgãos e outros
possíveis interessados. Uma reunião será agendada e nela apresentada, para os
presentes, a análise dos dados levantados durante a pesquisa como “pontapé
inicial” para conversa sobre os problemas locais. O espaço será para explanação,
discussão, ruptura de paradigmas e convite para um “estudo” sobre essa
necessidade, para posterior levantamento de possibilidades de ações para
mudança da realidade local.
Desse encontro poderão surgir demandas diversas e serem formados grupos de
parceiros para a realização de determinadas tarefas compartilhadas e sugeridas
nessa reunião inicial. Outros encontros serão agendados com os presentes para
retorno das “deliberações” pactuadas.
O intuito é de que esse fórum seja permanente, presencial e que as suas reuniões
sejam temáticas e mensais, de acordo com a sugestão e disponibilidade dos
participantes e com duração aproximada de uma hora para cada encontro.
À medida que houver adesão de participantes interessados na causa, deverá ser
constituído
um
Regimento
Interno
estabelecendo
critérios,
atribuições,
características de funcionamento e funções para melhor organização dessa ação
coletiva. É importante haver uma “mesa diretora” que seja eleita pelos
representantes com direito a voto, pois será um suporte e uma referência nas
discussões e ações das necessidades infanto-juvenis, contribuindo para a gestão
social local.
143
Após sua estruturação, torna-se imprescindível o trabalho contínuo de
mobilização para manutenção do fórum e das discussões, conquistas, ações
efetivas e eficazes, para que futuramente haja a construção de uma política
infanto-juvenil local.
Diante da proposta inicial de discussão e capacitação e para sanar a deficiência
encontrada nos dados quantitativos, a sugestão é que se monte um “minicurso”,
apresentando os dados coletados e o principais conceitos para entender-se a
dinâmica do suicídio infanto-juvenil: prevenção, condução, tratamento e
notificação. Para tanto, pensou-se em uma divisão por pequenos módulos que
serão realizados nos primeiros encontros do fórum, caso todos queiram e
concordem com a ideia.
Como formação de um grupo “ideal”, pensa-se em pelo menos um representante
de cada setor responsável pelo cuidado à criança e ao adolescente (saúde:
atenção básica / PSF, Programa Saúde nas Escolas - PSE, Núcleos de Apoio à
Saúde da Família - NASF; média / saúde mental; alta complexidade / urgência,
assistência social: CRAS e Centro de Referência de Assistência Social – CRAS
– e
Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS;
Conselho Tutelar, educação, Judiciário, Conselho da Criança e Adolescente,
etc.), além dos gestores, adolescentes, crianças, pais e demais membros da
comunidade.
Como temáticas para os seis encontros com esta proposta de informação e
desmitificação, foi elaborado um roteiro que será apresentado e discutido com os
integrantes, caso haja adesão para realização dessa “capacitação”. A ideia é que
esse movimento possibilite reflexões e ações para a construção e organização de
uma rede intersetorial municipal.
Primeiro encontro: O PROBLEMA - acolhimento e apresentação dos resultados
da pesquisa de mestrado (trazendo o assunto como problema do município e
responsabilidade de todos). Propor combinados para a realização do curso: o
número de encontros, duração, formas de funcionamento e produção do final fluxograma da rede.
144
Mito 1: As pessoas que falam sobre o suicídio não farão mal a si
próprias, pois querem apenas chamar a atenção.
Mito 2: O suicídio é sempre impulsivo e acontece sem aviso.
Mito 3: Os indivíduos suicidas querem mesmo morrer ou estão
decididos a matar-se.
Mito 4: Quando um indivíduo mostra sinais de melhoria ou sobrevive a
uma tentativa de suicídio, está fora de perigo.
Mito 5: O suicídio é sempre hereditário.
Mito 6: Os indivíduos que tentam ou cometem suicídio têm sempre
alguma perturbação mental.
Mito 7: Se um conselheiro falar com um cliente sobre suicídio, o
conselheiro está a dar a ideia de suicídio à pessoa.
Mito 8: O suicídio só acontece “àqueles outros tipos de pessoas,” não a
nós.
Mito 9: Após uma pessoa tentar cometer suicídio uma vez, nunca
voltará a tentar novamente.
Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem
que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se
empenhar num ato suicida (OMS, 2006, p. 9 – 11, grifo nosso).
Segundo encontro: O QUE É? - apresentar conceitos e mitos sobre o tema
(perguntar o que sabem sobre o assunto, etc.).
Terceiro encontro: COMO É? - levantar o que eles consideram como fatores e
situações de risco. Fazer, coletivamente, quadro com fatores de risco e condução
de cada profissional e cidadão diante do fato.
Quarto encontro: O QUE FAZER? - acolhimento e condução dos casos de
tentativa de suicídio. Construção de uma ficha básica de anamnese que será
utilizada por todos os serviços e profissionais, com sugestão dos cidadãos
presentes.
Quinto encontro: É POSSIVEL PREVENIR? - possíveis ações de prevenção de
casos de suicídio e tentativa na rede de atenção do município.
Sexto encontro: REDE MUNICIPAL INTERSETORIAL DE APOIO INFANTOJUVENIL - construção de um fluxograma para orientação dos encaminhamentos
necessários e serviços disponíveis para apoio e acolhimento das crianças e
adolescentes do município.
Após esse compartilhamento de informações, experiências e construção de ações
intersetoriais, a ideia é que essa sintonia e objetivo permaneçam para que novas
145
saídas inovadoras sejam concretizadas, beneficiando todos os cidadãos de
Matozinhos.
6.3 Espaço de apoio
Esse espaço de apoio foi pensado como um lugar para oferecer a escuta, o
apoio, o auxílio e ajuda para adolescentes e crianças. Pensa-se que com essa
oportunidade, além de terem a “demanda” inicial atendida, eles se tornem
protagonistas da própria existência e também multiplicadores no “combate” às
violências. Afinal:
Não é por acaso que as experiências de prevenção da violência
incluem atividades que, de um modo ou de outro, passam pela
reafirmação do mundo da vida, seja por meio de processos sociais
amplos, como organização de grupos, parcerias, redes e movimentos
sociais, campanhas, debates públicos, movimentos de defesa de direitos
humanos, fortalecimento da democracia e construção de cidadania; ou
outros mais setorizados, como o desenvolvimento e formação de valores
que preconizam a não violência e o respeito pelo outro, em determinados
espaços sociais, por meio de mecanismos gerais, voltados para todos os
atores aí incluídos, por exemplo, todos os alunos de uma escola, todos
os integrantes de uma associação; e/ou mecanismos específicos e
direcionados para certos grupos e indivíduos; construção de vínculos e
referências por meio do desenvolvimento de projetos, programas e
políticas destinados às escolas, famílias, comunidades, organizações
sociais; pela pactuação de normas de convívio e desenvolvimento de
atitudes cooperativas e solidárias nos mais diferentes espaços sociais; e
outros ainda voltados para o indivíduo e para o investimento no seu
crescimento e desenvolvimento, mas sempre referenciados pelas suas
relações e vínculos (MELO, 2010, p. 16-17, grifo nosso).
E nesse momento é imprescindível a parceria efetiva da escola e da saúde. No
espaço escolar em que esse público está inserido e passa parte do seu dia e,
ainda, como já foi discutido anteriormente, é um importante lugar de
“oportunidades”. Não precisa criar novo projeto ou ação para oferecer às crianças
e adolescentes essa possibilidade de serem vistos e escutados; já existe o PSE
no município.
146
De acordo com o Ministério da Saúde (2014)7, como o próprio nome diz, esse
programa tem como objetivo integrar e articular os dois setores fundamentais para
o cuidado infanto-juvenil: saúde e educação, visando à promoção da qualidade de
vida e a luta contra as vulnerabilidades que comprometem o desenvolvimento
desses sujeitos.
O espaço escolar é considerado fundamental para a realização das ações
propostas, pois o programa compartilha do discurso realizado neste trabalho, que
possibilita a convivência social e o estabelecimento de relações saudáveis, desde
que seja assim construído.
O programa tem como um dos seus propósitos a “promoção da saúde e de
atividades de prevenção”, o que justifica a construção desse espaço de apoio
para as crianças e os adolescentes do município de Matozinhos.
Quando se aborda essa “construção desse espaço”, não se está desejando um
local físico específico para esse fim, pelo contrário, é realizar, dentro dos locais já
existentes, um momento de escuta diferenciada desses sujeitos. Um instante
lúdico, alegre, descontraído, que possibilite a ressignificação da existência, que se
apresente como um “porto seguro”, um apoio, uma ajuda para que esses sujeitos
permaneçam vivos!!!
7
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=14578%3Aprogramasaude-nas-escolas&Itemid=817. Acesso em: 17 de janeiro de 2014.
147
7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO
DA PARTE OU DO TODO?
Suicide attempts in children and adolescents: injury of the part or of the
entire?
Este capítulo apresenta o artigo oriundo desta dissertação, que foi submetido à
Revista Ciência e Saúde Coletiva em outubro de 2013 e está em processo de
avaliação.
Michelle Alexandra Gomes Alves
Matilde Meire Miranda Cadete
RESUMO
Neste estudo procurou-se verificar o registro e o número de casos de tentativa de
suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos, Minas Gerais,
Brasil, que foram atendidos pelos profissionais de saúde do Pronto-Atendimento.
Trata-se de uma pesquisa documental e descritiva, cuja coleta dos dados ocorreu
por meio de investigação nas Fichas Ambulatoriais, no período de 2008 a 2010.
Das 73.000 fichas levantadas, selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de
tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município, com idades entre
três e 18 anos. Percebeu-se que os profissionais de saúde, mais especificamente
os médicos e enfermeiros, não registram os casos de forma adequada,
inviabilizando a informação sobre o problema e as medidas de prevenção.
Concluiu-se que a subnotificação e a discrepância dos diagnósticos e o não
encaminhamento aos órgãos competentes exigem repensar e rever a prática
médica e dirigir um olhar sistematizado e cuidadoso para perceber o sujeito como
um todo complexo.
Palavras-chave: Suicídio. Tentativa de suicídio. Criança e adolescente.
Profissionais de saúde.
148
ABSTRACT
This study aimed to verify the registration and the number of cases of suicide
attempts among children and adolescents in the municipality of Matozinhos, Minas
Gerais, Brazil, who were assisted by health professionals from the Emergency
Care. This is a documental investigation, which data were collected through a
survey in Outpatient Sheets from 2008 to 2010. Of the 73,000 sheets evaluated,
those dealing with cases of attempted suicide among children and adolescents
between three and 18 years old were selected. It was realized that the health
professionals, particularly physicians and nurses, do not register the cases
appropriately, invalidating information about the problem and its prevention
measures. It was concluded that the underreporting and the discrepancy of the
diagnostics which were also not referred to the competent agencies require
rethinking and reviewing the medical practice, and drive a systematic and careful
look to realize the subject as a whole complex.
Key words: suicide, attempted suicide, children and adolescents, health
professionals.
INTRODUÇÃO
A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a
humanidade há séculos. Atualmente, as discussões em torno desta temática
evidenciam-na como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais
estabelecidas pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito
nas relações como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar
esse olhar e entendê-lo nas suas peculiaridades.
Conforme Minayo1, a violência aparece para “[...] dramatizar causas, trazê-las à
opinião pública e, incomodamente, propor e exigir mudanças”. É possível
perceber que o campo da saúde é um dos espaços privilegiados, no qual todas
essas demandas aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais
de saúde recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam
uma prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes2
pontua a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser
149
uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por
exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros
setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um
corpo lesionado, mas um sujeito!
São diversos os tipos de violência e também as formas como que ela se
apresenta. Nos serviços de saúde brasileiros, tem-se como referência a
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 3
(CID). A atual classificação não explicita a questão da violência, uma vez não
considerada doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas
externas” (V01-Y98), que por sua vez é dividida em: não intencional, intencional e
evento de intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange
acidente de trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio,
afogamento, contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões,
abelhas, vespas, complicações da assistência médica e outras. Causa externa
intencional abarca suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os
eventos de intenção indeterminada4.
Neste estudo elegeu-se a causa externa intencional, mais precisamente o suicídio
e a tentativa de suicídio como focos investigativos. O suicídio não é,
definitivamente, fato recente em nossa sociedade. Durkheim 5 discorre sobre sua
história desde os povos primitivos com realce para a construção do seu lugar na
sociedade: como ato “heróico”, honroso; depois penoso (sanção desse “direito”); e
hoje poder-se-ia dizer que esse “direito” tornou-se um problema de saúde pública.
[...] o suicídio é um fenômeno universal, registrado desde a alta
Antiguidade, rememorado pelos mitos das sociedades primitivas,
criticado pelas religiões como ato de rebelião contra o criador,
aparecendo ainda, em muitos escritos filosóficos, como ato de suprema
6
liberdade .
Trata-se, então, de um tema atualíssimo e de extrema relevância que mobiliza o
poder público na construção de políticas e destaca a necessidade de um olhar
minucioso para a questão; afinal de contas, foi criado um dia para “alertar” sobre a
gravidade da situação atual: 10 de setembro é o dia mundial de prevenção ao
suicídio.
150
A Organização Mundial da Saúde7 afirma que o suicídio refere-se diretamente à
agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido sobre si mesmo,
com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as 20 maiores
causas de morte mundiais para todas as idades, sendo que a cada 40 segundos
uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador! Principalmente ao
se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou ao nível de, na
atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco.
Cabe ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também
multifatorial, sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não
menos densos. A escolha por esta definição justifica-se pelo fato de ela apreender
os aspectos do objeto deste estudo e do seu cenário: o serviço de prontoatendimento.
O Ministério da Saúde destaca que o “[...] Brasil está entre os 10 países com
maiores números absolutos de suicídio”8. Nessa perspectiva, foram criados
“Manuais de Prevenção do Suicídio” destinados aos profissionais da equipe de
saúde mental e da atenção básica, que listam os aspectos sociodemográficos,
mas consideram como principais fatores de risco para o suicídio a história de
tentativa do ato e os transtornos mentais.
Em âmbito estadual, percebe-se que o suicídio tem atingido igualmente os
menores de 15 anos. Em 2004, a taxa de suicídio em Minas, entre crianças e
adolescentes de 10 a 14 anos, era a mais alta da região Sudeste do Brasil 8.
Contudo, as mortes registradas a partir das taxas de suicídio são apenas uma
porção desse grave problema, tendo em vista que se têm também aquelas
pessoas que tentaram suicídio.
No período de janeiro/2008 a agosto/2012, foram registradas 6.883 internações
no estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas intencionalmente (tentativa
de suicídio). Destas, 1.052 foram de crianças e adolescentes de zero a 19 anos, o
que equivale a 15,3% do total de casos9. À primeira vista, esse número pode não
parecer tão significativo, mas deve-se levar em conta que os dados sobre as
tentativas de suicídio não são comumente declarados, podendo-se inferir que este
151
valor não expressa fielmente a nossa realidade. Essa assertiva encontra eco nos
dizeres do Ministério da Saúde: “[...] os registros de tentativas de suicídio são
mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo menos 10 vezes
maior que o número de suicídios”10.
[...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as
informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum
nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade,
método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços
de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de
7
suicídio não são claramente conhecidos .
Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo
profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa
que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte todo o
momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados
sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e
processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e
opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” faz essa escolha.
Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida
diariamente com pessoas em tenra idade e, ao que tudo indica, não veem pela
frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a morte
não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime
significado aos objetos e atos que executa. Nesse contexto, não se pensa na
violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado
por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas
representações e significações referentes à vida e à morte.
Com a intencionalidade de “não dissipar mais vidas”, realizou-se esta pesquisa
com busca de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes, de
três a 18 anos, do município de Matozinhos, em Minas Gerais, recebidos no
serviço de pronto-atendimento (PA) nos anos de 2008 a 2010.
Matozinhos é uma cidade localizada a 47 km da capital mineira e possui 33.955
habitantes. Sua população é predominantemente jovem e os casos de tentativas
de suicídio são crescentes e alarmantes. Na sua estrutura de serviços de saúde
152
incluem: um hospital, que a partir de meados de 2013 passou a dividir o espaço
com o pronto-atendimento, 10 postos de saúde, um CAPS I, um ambulatório
adulto e um ambulatório infanto-juvenil de saúde mental, além de clínicas e
consultórios médicos particulares.
Os dados apresentados fazem parte da primeira fase da pesquisa de mestrado
intitulada: “Prevenção do suicídio e promoção da saúde mental entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos”. Esta primeira etapa diz respeito ao
levantamento do número de tentativas de suicídio ocorrido nos últimos cinco
anos. As informações foram extraídas de alguns serviços de saúde, mas neste
trabalho apresentaram-se apenas aqueles colhidos nos prontuários do prontoatendimento (PA).
Ao levantarem-se o registro e o número de casos de tentativa de suicídio
cometidos por crianças e adolescentes, a leitura atentiva dos prontuários
desvelou uma questão instigante e merecedora de análise, ou seja, demandas
similares eram registradas diferentemente pelos profissionais de saúde (médicos
e enfermeiros) do PA. Essa constatação convocou para um olhar mais diretivo
sobre os registros dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a visão e o
papel dos profissionais de saúde diante desses casos, pontuando os
desdobramentos dos atendimentos de urgência (encaminhamentos feitos) e a
interlocução entre os serviços de saúde. Desta forma, voltamos nosso olhar para
os prontuários do PA e suas dissonâncias.
METODOLOGIA
Trata-se de pesquisa documental com o objetivo de verificar o registro e o número
de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de
Matozinhos que foram atendidos pelos profissionais de saúde do prontoatendimento. A coleta dos dados se deu por meio das fichas ambulatoriais do
pronto-atendimento. Foram lidas aproximadamente 73.000 fichas. Destas,
selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de tentativa de suicídio entre
crianças e adolescentes do município, com idades entre três e 18 anos.
153
As pessoas que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para
posterior triagem (pré-consulta) com os profissionais de enfermagem que
avaliarão cada caso de acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são
repassadas para o médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com
risco de morte, são primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências
burocráticas.
Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do
atendimento. Por este motivo têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o
cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas
não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as
duas situações, mas em menos número.
Salientam-se as limitações desta pesquisa em referência aos incipientes registros
contidos nas fichas ambulatoriais: poucas informações; quando presentes, não
detalhadas; e ausência de dados importantes. Trata-se de um problema recidivo e
generalizado, também reafirmado por Minayo et al.11: “[...] as informações
oriundas das estatísticas hospitalares geralmente são alvo de críticas, por causa
das limitações relacionadas à qualidade dos dados que apresentam”. Contudo,
apesar de se saber da precariedade dos dados, é o melhor lugar para realização
de pesquisas sobre esta temática, pois concentra as informações necessárias.
Afinal de contas, o hospital ou pronto-atendimento é a porta de entrada para
casos de urgência.
Com os dados em mão, foram quantificados os casos de tentativa de suicídio e
analisados a partir de categorias criadas para as diversas situações encontradas:
a) casos com CID de tentativa de suicídio (X60-X84); b) casos sem CID, mas
escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou
tentativa de morte); c) casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de
suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte); d) casos suspeitos
com outro CID; e) casos suspeitos sem CID.
O CID de tentativa de suicídio está entre X60 e X84 (lesões autoprovocadas
intencionalmente). Consideram-se casos suspeitos aqueles em que não há dados
154
suficientes para verificar a intencionalidade e também outros nos quais foram
registradas apenas as consequências de determinado ato. Entre eles, pode-se
destacar o caso de um adolescente em que há descrição de corte dos pulsos D e
E, sem hipótese diagnóstica e com conduta de sutura. Foi acidental ou este
adolescente escolheu cortar os dois pulsos?
À vista disso tudo, definiu-se quantificar quantos desses casos eram referentes às
crianças e quantos aos adolescentes, bem como quantos foram encaminhados
para algum serviço de “saúde mental” (Psicologia, Psiquiatria, CAPS, ambulatório)
e se os profissionais de saúde se articularam com outros serviços. Para fins deste
estudo, foram consideradas crianças aquelas com idades de três a 12 anos
incompletos e como adolescentes os de 12 a 18 anos completos12.
As informações foram incluídas no software SPSS para posterior análise
estatística, de forma descritiva, ressaltando-se as dimensões mais relevantes.
Optou-se, como forma de exemplificação, apresentar alguns casos e discutir o
papel do profissional de saúde no serviço de urgência no atendimento dos casos
de tentativa de suicídio.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário
UNA sob a CAAE 11451412.2.0000.5098.
RESULTADOS
De todos os 136 casos com suspeita de tentativa de suicídio, 13 foram, de fato,
escritos como tentativa de suicídio, porém 11 registrados sem CID e dois com
outro CID não correspondente à hipótese diagnóstica declarada. As demais
situações figuravam-se como tentativa de suicídio, todavia, sem informações
claras e suficientes para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato.
155
Gráfico 1 – Registro dos casos de tentativa de suicídio entre crianças e
adolescentes de Matozinhos no período de 2008 a 2010
Quantidade de casos
35
Casos com CID (X60X84)
30
25
Casos sem CID, mas
escrito por extenso
20
15
Casos com outro CID,
mas escrito por extenso
10
Casos suspeitos com
outro CID
Casos suspeitos sem
CID
5
0
2008
2009
2010
Período
Ao se analisarem os dados do Gráfico 1, percebe-se que não há um registro
sequer com o CID X60-X84 correspondente à tentativa de suicídio. Considerandose os dados por ano, encontram-se 42 casos em 2008 (sendo 15 crianças e 27
adolescentes); em 2009, 54 casos (destes, 19 eram crianças e 35 adolescentes);
e em 2010, os registros mostraram 40 casos (nove crianças e 31 adolescentes).
Detecta-se, por conseguinte, que apenas 9,6% do universo de 136 casos
receberam o diagnóstico de tentativa de suicídio.
Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito
do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde
de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua
função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o
acolhimento universal, equânime e integral.13
A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que
é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a
inexistência do problema e, logo, pouco investimento financeiro, político e social
na construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência
que se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação, e se
156
embravece com algumas características do que está posto e ambiciona
transcendê-las.
Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa
valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e
sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar a inseparabilidade do
sujeito e dos serviços de saúde.
Casos com CID de tentativa de suicídio
Consideraram-se casos de tentativa de suicídio aqueles com CID X60-X84
(lesões autoprovocadas intencionalmente). Não foi encontrado algum registro
com o diagnóstico explicitado por esta classificação.
Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de
saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil
produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se
implicarem? Ou, na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo
impessoal, pela tradição e pela inautenticidade ?
Casos sem CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa
de autoextermínio ou tentativa de morte)
Nesta categoria registra-se o maior número de casos declarados como tentativa
de suicídio. Averiguou-se que dos 11 casos encontrados, quatro eram do ano de
2008, seis referentes a 2009 e apenas um a 2010. Os profissionais de saúde
registram por extenso o fato ocorrido, mas não o classificam como lesão
autoprovocada intencionalmente. São indícios de uma atitude profissional
irresponsável e indigna para com o sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que
impossibilita ações e procedimentos que garantam a integralidade do cuidado.
Sabe-se que as necessidades de ações de saúde, como as relacionadas ao
diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, delineiam um sentido da
integralidade.
157
Casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou
tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)
Nos dois casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram
encontradas as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não
especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
álcool - síndrome de dependência).
É importante ressaltar que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas
de morte e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os
códigos dos capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras
consequências de causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa
de morbidade e de mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível,
deve-se eleger como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX)3.
Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para
hipótese diagnóstica e estão “presos, limitados” às consequências dos atos
praticados, ou seja, vê apenas a lesão, fratura, intoxicação... Assim sendo, não
chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu
sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o
procedimento se limitará à “sutura”; e a hipótese diagnóstica será “ferimento de
região não especificada do corpo” (grifo nosso).
Casos suspeitos com outro CID
Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo
narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com
outro CID.
Caso 1 – adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa:
“intoxicação exógena por „chumbinho‟ há três horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de
substância não especificada).
158
A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a
intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não
especificada”?
Esse caso não é exceção, pois vários outros com essa
incoerência foram encontrados nas fichas.
Caso 2 – criança de quatro anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa:
“começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona
há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas
das vias aéreas inferiores).
Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o
dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua
demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é
preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário
expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo,
equânime e igualitário?
Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é,
há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas
práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é
corporificado.14
Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes
classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de
álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não
especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não
especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos
mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta),
T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte
do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não
especificada), J.22 (infecções agudas não especificada das vias aéreas
inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de
estomatite).
159
Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos
com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação
implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de
suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de pronto-atendimento do
município. Afinal, o que é tentativa de suicídio para os profissionais de saúde do
PA de Matozinhos?
Casos suspeitos sem CID
No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem
informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se
mais dois casos:
Caso 1 – Criança de cinco anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa:
“corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado.
Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o
fato pode ter sido apenas acidental. No entanto, diante da omissão expressa nos
outros relatos, este discurso não deve ser aceito como verdade imediatamente; é
preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios sujeitos sua versão
sobre os atos praticados.
Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da
queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão
artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado.
Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi
inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais
abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social, tornase impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão
de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao
não descreverem a classificação de tal problema. Ressalta-se, também, que não
há registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como
esse adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo
corte no pulso é absolutamente inaceitável.
160
A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID” e sim
em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde
do PA de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de um consolo para
lidar com o horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa
acepção, Combinato e Queiroz15 expõem que, apesar de ser um fato natural, “[...]
para o homem ocidental moderno, a morte passou a ser sinônimo de fracasso,
impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito
não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm
consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou
prevenir torna-se “desnecessário”.
Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes
e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e
visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde,
quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade
interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em
metrópoles.
No Gráfico 2, encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e
interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando essa
“não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito.
161
Gráfico 2 – Encaminhamentos e outros procedimentos realizados nos casos
acolhidos no pronto-atendimento de Matozinhos no período de 2008 a 2010
10
8
6
Quantidade
4
2
0
2008
2009
2010
Encaminhamento para
Psiquiatria, CAPS,
Ambulatório ou
Psicologia
3
1
1
Outra conduta: Contato
com Hospital João
XXIII
9
1
3
De 136 casos, apenas cinco foram encaminhados para o ambulatório infantojuvenil de saúde mental ou outro serviço de saúde psicológico ou psiquiátrico.
Fato curioso é que, após a implantação do ambulatório infanto-juvenil, os
encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete
a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao
encaminhamento
implicado:
como
esses
serviços
se
articulam?
São
intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho
desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do
município? Percebem o sistema de forma integrada?
Em Matozinhos não há uma política municipal de saúde mental infanto-juvenil e a
rede de apoio às crianças e adolescentes é desarticulada. Desta forma, os
serviços de saúde, assistência, esporte, segurança, educação e conselhos não
desenvolvem ações com foco no cidadão, mas ficam centrados nas suas metas e
produtividades, inviabilizando um trabalho em rede que supõe a prevenção de
casos de violência e a promoção da saúde e da qualidade de vida. Os
profissionais do PA apenas mascaram um problema que é de gestão social. Não
é apenas para os serviços de saúde que esses sujeitos estão invisíveis, mas para
162
todo o município. Como que uma rede de serviços de apoio à criança e ao
adolescente não vê e escuta seu público-alvo? Resgata-se que visto que o ponto
comum entre todos os serviços e políticas é justamente o sujeito, a interlocução
existente entre os setores deve, necessariamente, considerar sua existência e,
para isso, torna-se fundamental percebê-los como cidadãos, corresponsáveis pela
sua vida e morte.
Esses questionamentos indicam uma visão de fragmentação do sujeito como ser
existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em
partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à
queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização
pela vida.
DISCUSSÃO
Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e
pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como
um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as
crianças suicidam.
Mito 10: as crianças não cometem suicídio dado que não entendem que
a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato
suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em
16
qualquer idade deve ser levado muito seriamente .
Apesar de a morte ser um ato natural, ela impacta os homens ocidentais pela sua
conotação negativa. Combinato e Queiroz15 reforçam a dimensão simbólica
existente nesse ato, lembrando que o morrer é “[...] um fenômeno impregnado de
valores e significados dependentes do contexto sociocultural e histórico em que
se manifesta”. Desta forma, não se pode esquecer de que os profissionais de
saúde são, antes de tudo: sujeitos biopsicossociais. A profissão carrega consigo o
peso de “salvar vidas”, mas daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça
de morte. No entanto, a dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que
esses sujeitos e também profissionais de saúde percebam uma urgência na
pessoa sadia que escolheu morrer17.
163
Pesquisa em um hospital público de São Paulo com profissionais de saúde que
lidam com situações de lesões autoprovocadas salientou, além da subnotificação,
a estigmatização desse público por causa da sua escolha, afetando (fragilizando)
a dimensão do cuidado18. O autor ressalta a necessidade do resgate da
verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao trabalho da autora outras
questões: ruptura de paradigma (visão global desse sujeito que sofre),
humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e escuta do sujeito que
sofre.
Conte et al.19 relatam uma experiência de um programa de prevenção ao suicídio
no Sul do Brasil (Candelária-RS). Apuraram uma realidade de não escuta do
sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi desmitificar o tema da
morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar sobre o assunto e
capacitar profissionais da saúde para que ficarem atentos à identificação de risco
e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à ideação, ao plano ou à
tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que tiveram perdas fatais antes
da implantação do programa. A partir dessas ações iniciais foi possível construir o
Plano Terapêutico Individual, focando a singularidade de cada caso, trabalho com
a família, acesso do paciente aos serviços e medicamentos, possibilidade de
inserção nas unidades de atenção básica, escuta da rede social, trabalho em
equipe com corresponsabilidade, acompanhamento sistemático intensivo de
situações de risco e a importância do sigilo e da ética.
O sofrimento social, na contemporaneidade, é resultado de uma violência
cometida pela própria estrutura social e pelos efeitos lesivos das relações de
poder que caracterizam a organização social20. Ele limita a condição humana e se
insere em diversas dimensões, convocando a vencer o desafio de conectá-las.
Assim, o suicídio ou tentativa de suicídio é maior do que o grupo ou o indivíduo,
uma vez ser fruto da experiência social. Esta, às vezes, é banalizada e
distanciada, principalmente pelos profissionais que lidam com a vida e a morte
dos sujeitos.
A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das
pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no
164
paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão
é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o
braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o
braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty21: “ eu não tenho corpo,
eu sou o corpo”.
Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é
justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte no
pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que
a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua
lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma
hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e, mais que isso: escutá-lo! Claro que
merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional.
A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito
para além de sua lesão. Tentar compreender o todo!
Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde
para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam.
Recente estudo22, apesar do foco de investigação ser outro, concluiu que há
sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que este é suprimido,
de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. Afonso 23 vai um pouco
mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o Morrer”, dizendo que
o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a morte e que tanto os
médicos como os demais profissionais de saúde que estão inseridos nesse
contexto não sabem lidar com essa situação na relação com o sujeito que precisa
e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam sobre a própria morte
e, mais que isso, que usem do processo empático e se coloquem no lugar
daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu
suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o
trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato
praticado ou sofrido por determinada pessoa.
Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima
ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no
165
todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de
“[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de
trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os
profissionais de saúde devem respeitar as diferenças e as necessidades do
sujeito13.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar
em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo
acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas
o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que
recebe e atende no serviço de saúde, mas entendendo-se integralidade como
noção amálgama carregada de sentido. Impõe, portanto, indignar-se diante de
atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os
profissionais da área da saúde e de toda a rede de apoio a esse público vejam
além das demandas explícitas e se sintam responsáveis não apenas pelo
diagnóstico correto da tentativa de suicídio, mas tomem as iniciativas que esse
procedimento requer.
Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente)
atende a casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados
que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade, uma escolha
de viver é imprescindível: é humano! Mas, o que faz com que os profissionais de
saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como “bancar” uma hipótese
diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e adolescentes de uma
cidade relativamente pequena? É melhor desresponsabilizar-se por tal situação?
Interessante pontuar que quando existe uma rede de serviços que acolhe o
público infanto-juvenil nas suas diversas necessidades e que conversa e
desenvolve ações intersetoriais, o “problema” torna-se de todos e, logo, a
responsabilidade por aquele caso, aquela vida, aquele sujeito, também. Dividir e
compartilhar as responsabilidades e as próprias dificuldades diante de situações
complexas fortalece os setores e os seus profissionais. A ausência de uma gestão
social, pensada como sinônimo de democracia e cidadania, também inclui outros
166
atores além dos profissionais dessa rede, pois o sistema é muito mais amplo. A
participação dos gestores e da comunidade também deve ser questionada e
sugestionada, pois é um direito e um dever contribuir para o bem-estar e para a
qualidade de vida de toda a comunidade.
Os dados levantados neste estudo exibiram falhas grosseiras no diagnóstico e,
principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos
familiares que buscaram socorro. Diante disso, não se pensa exclusivamente em
mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação flexneriana.
Preconizam-se mudanças de atitude!
Essas reflexões incomodam e reivindicam mais investigações, pois se acredita
que apenas ouvindo os sujeitos é possível construir saídas inovadoras, rompendo
com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva.
COLABORADORES
Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete participaram
igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo.
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8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Organização PanAmericana de Saúde. UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção
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9. Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS – Departamento de Informática do SUS.
Disponível
em:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/fimg.def
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10. Brasil. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde.
UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção do suicídio para
profissionais da atenção básica. Brasília, setembro de 2009.
11. Minayo MCS, Souza ER, Malaquias JV, Reis AC, Santos NC, Veiga JPC,
Silva CFR, Fonseca IG. Análise da morbidade hospitalar por lesões e
envenenamentos no Brasil em 2000. In: Minayo MCS, Souza ER. (orgs).
Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira.
Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003, p. 109-129.
12. Brasil. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal
nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1990; 13 jul.
13. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico de Política
Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização - a
humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as
instâncias do SUS. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Ministério da
Saúde, 2004.
14. Andreazza R, Carapinheiro G, Teixeira L, Cecilio LCO. Do Centro de saúde à
unidade de saúde familiar: narrativas de ausência e intermitências. In: Anais do
12º Congresso Paulista de Saúde Pública. Rev Saude Soc. 2011; 20(Supl.
1):200-201.
15. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estudos de
Psicologia. 2006; 11:209-216.
16. Organização Mundial de Saúde (OMS). Departamento de Saúde Mental e de
Abuso de Substâncias. Gestão de Perturbações Mentais e de Doenças do
Sistema Nervoso. Genebra: OMS; 2006.
168
17. Santos AAG, Silva RM, Machado MFAS, Vieira LJES, Catrib AMF, Jorge
HMF. Sentidos atribuídos por profissionais à promoção da saúde do adolescente.
Cien Saude Colet. 2012; 17: 1275-1284.
18. Machin R. Nem doente, nem vítima: o atendimento às “lesões
autoprovocadas” nas emergências. Cien Saude Colet. 2009; 14:1741-1750.
19. Conte M, Meneghel SN, Trindade AG, Ceccon RF, Hesler LZ, Cruz CW,
Soares RPS, Jesus I. Programa de Prevenção ao Suicídio: estudo de caso em um
município do sul do Brasil. Cien Saude Colet. 2012; 17:2017-2026.
20. Kleimann A, Kleimann J. The appeal of experience; the dismay of images:
cultural appropriations of suffering in our time. Daedalus. 1996; 125: 1-25.
21. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. São Paulo: Marins Fontes; 1999.
22. Santos MA, Aoki FCO, Oliveira-Cardoso ÉA. Significado da morte para
médicos frente à situação de terminalidade de pacientes submetidos ao
Transplante de medula Óssea. Cienc Saude Colet. 2013; 18 (9): 2625-2634.
23. Afonso SBC. Sobre a morte e o morrer [Resenha]. Cienc Saude Colet. 2013;
18 (9): 2781-2782.
169
8 CONCLUSÃO
Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e
pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como
um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as
crianças suicidam.
Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem que
a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato
suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em
qualquer idade, deve ser levado muito seriamente (OMS, 2006, p. 11).
Esta pesquisa evidencia a falta de notificação dos casos, principalmente das
crianças. Os resultados encontrados reafirmam a literatura, que descreve o perfil
dos sujeitos que tentam suicídio e as formas utilizadas. No entanto, ressalta outra
violência cometida contra as crianças e os adolescentes, que é a negligência dos
profissionais de saúde.
Ampliando o olhar, pode-se estender esse problema para os demais serviços de
cuidado da rede infanto-juvenil de Matozinhos. E qualquer intervenção pensada
nesse sentido deve ser intersetorial e abranger os diversos serviços que acolhem
esse público.
Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar
em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo
acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas
o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que
recebe e atende no serviço de cuidado, mas entendendo-se integralidade como
noção amálgama carregada de sentido. Impõe-se, portanto, indignar-se diante de
atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os
profissionais das diversas áreas vejam para além das demandas explícitas e se
sintam responsáveis não apenas pelo diagnóstico correto da tentativa de suicídio,
mas tomem as iniciativas que esse procedimento acarreta.
170
Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente)
atende casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados
que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade. Uma
escolha de viver é imprescindível: é humano! Mas o que faz com que os
profissionais de saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como
“bancar” uma hipótese diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e
adolescentes de uma cidade relativamente pequena?
Conte et al. (2012) relatam uma experiência de um programa de prevenção ao
suicídio no Sul do Brasil (Candelária – RS). Constataram uma realidade de não
escuta do sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi
desmistificar o tema da morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar
sobre o assunto e capacitar os profissionais da saúde para que fiquem atentos à
identificação de risco e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à
ideação, ao plano ou à tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que
tiveram perdas fatais antes da implantação do programa. A partir dessas ações
iniciais foi possível construir o Plano Terapêutico Individual, focando a
singularidade de cada caso, trabalho com a família, acesso do paciente aos
serviços e medicamentos, possibilidade de inserção nas Unidades de Atenção
Básica, escuta da rede social, trabalho em equipe com corresponsabilidade,
acompanhamento constante de situações de risco e a importância do sigilo e da
ética.
Os dados levantados neste estudo revelaram falhas grosseiras no diagnóstico e,
principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos
familiares
que
buscaram
socorro.
Não
se
percebeu
referência
nem
contrarreferência de um caso sequer. Diante disso, não se pensa exclusivamente
em mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação
flexneriana. Preconizam-se mudanças de atitude!
Essas reflexões incomodam e reivindicam a construção de saídas inovadoras,
rompendo com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva. Neste
sentido, este trabalho propõe uma formação participativa dos profissionais não só
da saúde, mas da rede de atenção e cuidado à criança e ao adolescente quanto à
171
prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde. Melo (2010, p. 16)
também acredita que a “[...] criação de espaços que propiciem o diálogo como
forma essencial de formação da opinião e da vontade coletiva [...]” favorece a
construção de redes de trabalho pautadas no desenvolvimento social, político,
econômico e humano e na gestão compartilhada. É necessário partir do
pressuposto de que “[...] soluções para a violência envolvem a responsabilidade
de todos os cidadãos” (MELO, 2010, p. 16).
E nesse mesmo pensamento de corresponsabilização é possível pensar um
espaço de diálogo para os próprios adolescentes, que clamam por isso ao serem
escutados no grupo focal desta pesquisa. Eles afirmam que não precisam de
muito, apenas querem ser escutados, vistos e percebidos pela sociedade, querem
um lugar, querem existir, viver, enfim, SEREM SUJEITOS, assim como as
crianças! E sujeitos de direitos e deveres, que poderão ser multiplicadores nesse
processo de construção da cidadania e da saúde infanto-juvenil.
A proposta é um convite aos adolescentes para a construção de um espaço no
qual serão escutados e poderão exercer o seu poder cidadão a partir de
mudanças da realidade local das crianças e adolescentes de Matozinhos
172
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179
APÊNDICES E ANEXO
APÊNDICE A – Roteiro do Grupo Focal dos Adolescentes
Primeiro
momento:
acolhimento
e
apresentação
da
pesquisadora,
da
observadora e dos adolescentes, colocação do crachá com os nomes. Mostrar
mapa do município, passar para os adolescentes e questionar se conhecem o
lugar.
Segundo momento: em seguida, iniciar a “conversa” com as seguintes questões:
1. O que é pra vocês morar aqui em Matozinhos?
2. Como é o dia-a-dia de vocês? O que fazem nos finais de semana?
3. O que vocês gostam de fazer para se divertirem aqui em Matozinhos
(momento de lazer)?
4. Vocês acham que a cidade oferece lugares para lazer / diversão?
5. Vocês têm amigos? Como é a relação com eles? O que fazem juntos?
6. Como é a relação com seus familiares? O que fazem juntos?
7. Como vocês percebem as suas vidas hoje? O que consideram como
positivo e negativo na vida de vocês?
8. Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer?
O que fizeram? (Explorar mais...)
9. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida?
10. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o
assunto e não foi perguntado?
Terceiro momento: Agradecer, encerrar e convidar para o lanche. Ressarcir os
adolescentes quanto aos gastos para participarem do encontro.
180
APÊNDICE B – Roteiro do Método Sensível Criativo com Crianças
Primeiro momento: acolhida – entrega de crachá e apresentação lúdica.
Segundo momento: explicar as duas fases com as questões norteadoras.
Terceiro momento: composição das produções.
1ª fase: entregar uma folha A4 com o limite territorial do município de Matozinhos,
perguntar se reconhecem e depois dizer que é o mapa da cidade e pedir que
respondam as seguintes questões com desenhos ou palavras:
1 - Como é morar aqui em Matozinhos?
2 - O que você gosta de fazer e com quem?
Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu.
2ª fase: entregar uma folha em branco A3 e pedir que desenhem como eles estão
se sentindo e depois respondam, com desenhos ou palavras:
3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste?
4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer?
5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer?
Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu.
Quarto momento: compartilhar
Obs: este momento foi dividido durante a execução das duas fases.
Quinto momento: avaliação do encontro – as crianças falarão sobre o que
acharam e como se sentiram nesse encontro. Agradecer, encerrar e convidar
para o lanche.
Sexto momento: confraternização – as crianças irão lanchar e ficar à vontade.
Obs: ressarcir os pais dos gastos para levar os filhos ao encontro.
181
APÊNDICE C - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (para os
adolescentes)
Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos”
Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e
professora do Centro Universitário UNA, convidamos você para participar de um
trabalho que estamos realizando e que tem como objetivo analisar a saúde mental
entre as crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco
anos. Ao participar deste estudo você nos ajudará a encontrar os motivos que
levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento
psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.
Você tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de continuar
participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo. Sempre
que quiser, você poderá pedir mais informações sobre este trabalho pelo telefone
da aluna e da professora e, se necessário por meio do e-mail do Comitê de Ética
em Pesquisa da UNA.
Pedimos permissão a você para participar de um encontro no salão paroquial em
dia
combinado
anteriormente
para
que
você,
juntamente
com
outros
adolescentes, converse conosco sobre a saúde mental. Seu nome não vai
aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não traz problemas
legais para você e se sentir qualquer desconforto ou não quiser continuar
conversando, poderá parar um pouco ou cancelar a participação neste trabalho.
Os passos adotados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em
Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua
dignidade.
182
Toda a conversa do encontro será gravada, mas o seu nome não aparecerá e
somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.
Você não terá qualquer tipo de despesa ao participar deste trabalho, bem como
nada será pago por sua participação.
Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para
participar deste estudo. Portanto, complete, por favor, os itens que se seguem.
Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.
Consentimento Livre e Esclarecido
Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo
claro que aceito participar deste trabalho. Declaro que recebi cópia deste termo
de consentimento e autorizo a minha participação no encontro e a divulgação dos
dados obtidos neste estudo.
Nome do (a) adolescente ___________________________________________
Assinatura do (a) adolescente
Assinatura da aluna:
Assinatura da professora:
Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558
Professora: Drª. Matilde (31) 99728033
Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4 o andar – Belo
Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br
183
APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais
autorizando os filhos adolescentes)
Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos”
Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e
professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que
seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que
tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e adolescentes do
município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a)
participar deste estudo o(a) sr.(a) possibilitará que nós encontremos os motivos
que levam as crianças e os adolescentes do município a apresentarem algum
sofrimento psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.
Seu(sua) filho(a) tem liberdade para desistir de participar e ainda deixar de
continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo
para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre
este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do
e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA.
Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro
no salão paroquial em dia combinado anteriormente para que ele(ela), juntamente
com outros adolescentes, converse sobre a saúde mental. O nome de seu(sua)
filho(a) não vai aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não
traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se ele(ela) sentir desconforto ou
não quiser continuar respondendo às perguntas, poderá parar um pouco ou
cancelar a participação neste trabalho.
Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa
com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade do(a)
seu(sua) filho(a).
184
Toda a conversa do encontro será gravada, mas os nomes dos adolescentes não
aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.
O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar
deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação.
Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para
seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens
que se seguem.
Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.
Consentimento Livre e Esclarecido
Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo
claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que
recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a)
meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo.
Nome do pai ou responsável________________________________________
Assinatura do pai ou responsável
Assinatura da aluna:
Assinatura da professora:
Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558
Professora: Drª. Matilde (31) 99728033
Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo
Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br
185
APÊNDICE E - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais
autorizando as crianças)
Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e
adolescentes do município de Matozinhos”
Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e
professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que
seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que
tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e os adolescentes
do município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a)
participar deste estudo, o(a) sr.(a) possibilitará que eu encontre os motivos que
levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento
psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.
Seu(sua) filho(a) tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de
continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo
para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre
este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do
e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA.
Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro
no salão paroquial em dia que vamos combinar antes para que ele(ela),
juntamente com outras crianças, desenhe, brinque e converse sobre saúde
mental. O nome de seu(sua) filho(a) não vai aparecer em momento algum. A
participação neste trabalho não traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se
ele(ela) não quiser participar ou não quiser continuar nos encontros poderá
cancelar a participação neste estudo.
Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa
com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade de
seu(sua) filho(a).
186
Todas as atividades do encontro serão gravadas, mas os nomes das crianças não
aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.
O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar
deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação.
Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para
seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens
que se seguem.
Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.
Consentimento Livre e Esclarecido
Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo
claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que
recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a)
meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo.
Nome da criança: _________________________________________________
Assinatura do pai ou responsável
Assinatura da aluna:
Assinatura da professora:
Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558
Professora: Drª. Matilde (31) 99728033
Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo
Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br
187
APÊNDICE F – Relatos de tentativa de suicídio dos adolescentes de
Matozinhos
P: - Bom, vocês a questão do choro, angústia, uma coisa assim por dentro, uma
tristeza, uma vontade de não existir mais, uma vontade de não viver mais,
uma vontade de sair dali, daquilo acabar rápido, enfim. Eu queria que vocês
falassem o que vocês fizeram com isso. Vocês estavam ali sofrendo, uma
tristeza muito grande, uma dor no peito, o que vocês fizeram com isso?
A2: - Cê fala com a angústia?
P: - Sim, para amenizar ou melhorar. Ou que saída que vocês encontraram. Acho
que seria essa melhor pergunta. Que saída vocês encontraram para isso que
vocês estavam sentindo naquele momento?
A3: - Como naquele instante eu num tive apoio pra um tratamento, eu tentei
suicídio. Eu achava assim, num tem outra saída. Ocê se sente tão… parece
que cê sofre tanto sozinha, cê num tem aquela pessoa, num tem aquele…
num tem um tratamento pra ocê faze na hora. Num tem ninguém pra te
ajudá, o que eu tô fazeno aqui? O que eu vô fazer da minha vida? Vô fica
sofreno, sofreno? Melhor acabá com tudo de uma vez. Então a única saída…
acho que todo mundo que é deprimido e num tem ninguém pra ajudá,
quando num cai no mundo das drogas tenta o suicídio.
P: - Você quer contar um pouquinho mais da sua experiência pra gente, A3?
A3: - Bom, é muito angustiante. Hoje eu falo, num tenho vergonha, num tenho
ressentimento de falá o que eu sentia. Hoje eu falo, converso. Quando me
perguntam eu falo sem me senti mal. É uma experiência muito ruim. Por isso
que eu falo que hoje em dia o que falta, a falta que faz é um grupo
relacionado aos jovens ou um grupo com os próprios pais pra interagi mais
com os filhos. Acho que falta isso. Porque aquele sofrimento é muito grande,
ocê num vê saída, ocê tenta de um jeito, tenta de outro, ocê acha que todo
mundo… ninguém tá ali pra te ajudá, ninguém tá ali pra te escutá, ninguém
tá ali pra te dá um abraço, “conta comigo pro que ocê precisá.” Então acho
que a única saída que ocê vê é essa. No momento que eu tava angustiada e
num tinha ninguém pra me ajudá, que era a depressão. Muita gente fala,
nossa, mas porque ocê fez isso? Todo mundo sempre fala isso, mas na hora
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que ocê tá ali naquela depressão, ocê num vê outra saída, por isso que eu
tentei o suicídio.
P: - Tentou como A3?
A3: - Eu? Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios. Só que aí a minha mãe
viu, me levô pro médico. Foi uma experiência muito ruim da minha vida, que
eles tiveram que tirá com a sonda e tudo, depois eu fiquei… com isso eu
fiquei muito fraca, depois que aconteceu isso, eu num tava me alimentano,
eu só tava dentro do quarto, só deitada, num queria ir pra escola, num queria
sair de casa. Então ocê num sente vontade de… tudo procê tá ruim, tudo é
triste, num tem nada procê… é como se num tivesse nada procê fazê. Então
eu fiquei muito fraca. Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que,
tipo, me deram as costas num viam que… parecia que eu tava pedino aquele
socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu isso, muitas
pessoas olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei a fazê o tratamento,
a minha mãe me levô pra fazê o tratamento, então depois disso, que
aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajuda, foi quando me levô
pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorou, foi por causa disso.
A2: - Eu acho que a minha vida pra eu podê sê feliz teria que sê assim... primeiro,
eu tive uma vida muito difícil, tinha solução pra mais nada, tinha nada na
minha frente que pudesse falá fica, ocê é importante pra mim, num tinha
ninguém... eu também tentei suicídio, eu tomei… meus avós tinha problema
de coração, pressão alta, eles tinham acabado de comprá os remédios, eu
tinha pegado todos os remédios deles e tinha tomado café com eles. Eu
fiquei superdopada, eu num tava vendo mais nada na minha frente, só
andava, caía e tombava. O meu pai me levô pro PA, no PA eu senti vontade
de ser social [palavra incompreensível]. Então lá tinha estes dois policial
comigo, aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial,
então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a sonda que
ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim. E nisso, o meu
pai… um dos pontos deu tê feito isso, eu falei com meu pai que eu queria vê
minha irmã, então ele deixou eu viajá, foi aí que eu vi, nossa, agora eu tô
livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que eu vô sê amada, que eu vô tê
alguém pra conversá comigo, então eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei
mais ou menos um mês. Sabe quando ocê vê outras pessoas, cê respira
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outros ares, cê vê que ocê é importante, foi assim que eu me senti a primeira
vez que eu viajei. Foi nisso que eu voltei “regenalizada”, parece que eu tinha
um demônio no meu corpo de tanta coisa ruim na minha vida. Eu voltei muito
melhor.
P: - Como você estava se sentindo?
A2: - Como eu tava sem ter ninguém, entre aspas, eu me sentia muito triste,
angustiada, nada tava bom pra mim, os amigos… eu nem posso dizê que
tinha amigos porque na hora que a gente mais precisa eles some. Então é
muito ruim. Num tinha liberdade pra nada, eu achava que a minha família era
muito desligada, num sei se era porque eu num morava com os meus pais,
então quando ocê tá morano numa casa, mesmo que seja dos seus avós,
viveno de favô, tinha aquela obrigação, aquele trem, aí era muito difícil.
P: - Você falou assim, sua família era muito desligada, desligada como assim?
A2: - Sabe quando ocê tem… a minha mãe foi viciada em drogas, o meu pai, ele
começou a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro, era 24 por 24. Então eu
num tenho… até hoje eu num tenho um abraço de pai, num tenho. Sabe
quando ocê sente falta de carinho?
P: - Meninos.
A1: Como é que é a pergunta mesmo?
P: Aquilo que você sentia foram essas experiências do passado, que vocês
disseram que sentiam angustiados, se sentiram tristes, estavam em
depressão, em crise, o que vocês fizeram?
A1: - O que eu fiz? A primeira coisa que eu fiz quando tava assim, fui lá na gaveta
pegar a faca, porque eu falei que eu queria coráa os meus pulsos. Porque eu
falei… igual à menina falou, a A3, que num tinha mais jeito, que acabou, num
tem… o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que ninguém num
tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo, pronto e acabô. Então a
primeira coisa que eu fiz foi tentá cortar os meus pulsos, num consegui,
porque… graças a Deus, porque a minha mãe pegô e viu, a minha mãe
escondeu todas as faca. Aí depois eu peguei o garfo, quis enfiar o garfo
assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o cabo da colhé assim, tentando
me furá com o cabo da colhé, também nada. Peguei o caco de vidro, quebrei
a garrafa assim e queria me cortá. Ela também, graças a Deus, tava lá
também e num deixou eu me cortá. Eu corri, tentei fugi pra me afogar na
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lagoa. Porque eu num sei nada direito. Então aí como eu tava doente, aí
deixa eu morrê direito também. Aí era pra me afogá. Fugi de tudo, porque eu
tava achano que se eu fugisse ia resolvê o meu pobrema. Então num podia
deixá uma porta aberta que eu tava correno, e fugia correno mesmo. A
varanda lá de casa é da altura daquela janela lá, tem um coisa, o alpendre
da varanda é alto. Eu pulei lá de cima da varanda lá em baixo assim, só que
eu num sei, foi Deus mesmo que num deixou eu me machucá, aí eu caí em
cima da perna, machuquei a perna, mas num cheguei machucá outra coisa
não. Tava tentano acabá com a minha vida mesmo, porque parecia que num
tinha mais saída, solução. Então é isso que a gente faz, igual à gente tava, a
gente acha que essas coisas vai resolvê os nossos pobremas. Quebrar tudo,
dá um fim na vida da gente. Então eu tava achano que dá o fim na minha
vida ia acabá os meus pobremas. Aí eu pegava e falava eu vô acabá com os
meus pobremas e vô acabá com os pobremas da minha mãe, porque a
minha mãe tá passano por esses pobremas por minha causa. Igual o A4 tá
falano, a gente pega… por exemplo, se os pais brigam, a gente acha que
eles tão brigano pela gente, que é culpa da gente. Então, o que acontece?
Tanto que a Doutora me deu um remédio tão forte, mas tão forte, que eu
tava dormindo de manhã, de tarde e de noite. Então a única coisa que a
minha mãe me acordava era pra mim ir ao banheiro, bebê água e comê.
Nem comê eu tava comeno. Então era muito pouco mesmo, então eu só
dormia, porque eu tava achano que tudo que tava aconteceno era por minha
culpa. Até se quebrasse um copo na minha casa era por minha culpa,
porque fui eu que fiz isso, foi eu que… num sei como, mas eu que fiz, foi
culpa minha. Igual quando a minha mãe discutia, isso é culpa minha. Por
exemplo, a minha vó gritava com os menino, eu achava que era culpa minha.
Então eu pegava a dor de todo mundo pra mim. Então eu me sentia
sufocado. Então, tipo assim, eu falei assim, já que eu tô com a dor de todo
mundo eu vô dá um fim na minha vida e acabá com o pobrema de todo
mundo. Pronto, ninguém mais vai senti pobrema. Então no nosso entendê é
que a gente era um fardo pesado pras pessoas carregarem, que tudo que
tava passano na vida delas era minha culpa. Era eu que era culpado de tá
aconteceno o que tava aconteceno. Tanto que a doutora me impediu até deu
assisti televisão, porque quando passava assim: matô fulano de tal, passou
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isso, passou aquilo, “Meu Deus, fui eu.” Então, tipo assim, num era eu, o
cara que matô e eu que tomava aquela… “fui eu que matei, fui eu que matei.
Agora, quem é que eu vô mata?” Então, o que acontece? Chegou eu falá
que eu ia matá meu pai. Eu falava que eu ia esperá ele dormi, com a minha
mãe mesmo, porque o meu pai me xingava bastante, ele me xingava
bastante. Igual ele bebia, como eu falei, ele bebia e vinha descontá tudo em
mim. Então, era só eu que era o errado, era só eu que era culpado de tudo.
Então, nele falá essas coisas eu mesmo me sentia culpado de tudo, aí
pegava e me sentia culpado e ele me xingava bastante. Aí eu peguei e falei,
vô te matá também. Ocê tá me matano, eu vô te matá. Então, aí o que
acontece? Aí eu peguei e falei com a minha mãe assim: eu vô espera ele
dormi, eu vô matá ele. Num vô matá ocê não, mas eu vô matá ele. Aí a
minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os garfo, todas as colher,
todas as garrafa, até garrafa de água, de geladeira que tava lá. Louça, prato,
tudo. Ela tirou tudo. Deixou a casa limpinha. Porque eu já tinha quebrado um
bocado de coisa, então ela tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava
reformano tudo aquilo que eu quebrei, todos os pratos, todas os jogos de
talher, tudo. Aí ela falou assim: “Meu Deus, eu num posso deixá o meu filho
fazê isso. O que eu vô fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte
demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino. Então, assim, a saída que
eu tava encontrano era dormi, porque aí a minha saída era antes tentá
morre, aí a minha outra saída foi dormi, porque eu dormino eu num ia vê que
eu num tava fazeno nada com ninguém. Então eu dormia dia e noite, dia e
noite. Ficava direto dormino, dormino. A minha saída, que eu tava
encontrano neste momento, era o suicídio e dormi. Como o suicídio eu num
tava conseguino, eu falei: vô dormi. Então eu dormi. A minha saída foi assim,
neste momento. Até que, graças a Deus, deu tudo bem.
P: - A1, você falou que tentou e num conseguiu. Você chegou a ir pra algum lugar
quando você tava acordado?
A1: - Já.
P: - Como que foi isso? Você chegou a conseguir cortar?
A1: - Já. O que eu fiz? Eu arranquei o meu cabelo da cabeça. Eu dava tanta crise
que eu puxava o meu cabelo assim, arrancava o meu cabelo, puxava
mesmo, num tinha dó de mim. Eu puxava. Aí teve uma vez, num foi assim…
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eu me cortei e na crise lá de puxando o meu cabelo, tava sangrano a minha
cabeça. Tava sangrando. Aí a minha mãe ligou pro hospital pra eles virem
me buscá, porque eu ia arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo
todo. Porque é uma coisa que só Deus mesmo pra tê misericórdia. A gente
num sabe nem mesmo o que a gente tá fazeno. Depois que passa é que a
gente vai vê. A gente fez isso mesmo?
A3: Eu arrependo.
A1: E eu me arrependo, porque uma vez eu peguei e dei um tapa na minha mãe,
assim no braço dela, ficou roxo. Aí eu falei: mãe, a senhora machucou? Ela
pegou e falou assim: “Machuquei, meu filho.” Depois as minhas irmã falaram
assim, foi ocê que machucou a minha mãe. Foi ocê que machucou a minha
mãe. Aí, tipo assim, eu peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha
cabeça, porque eu falei: eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha
mãe. Então, tipo assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali
naquela hora.
A2: Parece que num é a gente.
A1: Depois que passa a gente arrepende e parece que é pior, porque a gente fica
mais oprimido. A gente fica assim: meu Deus, aí agora o que é que eu vô
fazê outra vez, quando eu tive outra crise, será que eu vô matá alguém, será
que eu vô machucá alguém? Então fica muito difícil assim. Muito difícil
mesmo. Aí a minha cabeça tava sangrano bastante, porque eu tinha
arrancado esse pedaço do meu cabelo, um bocado, aí pegou eles me
levaram pro hospital. Isso foi muito ruim, porque na hora que eu ia pentear o
meu cabelo, num tinha o cabelo. Era muito ruim, tava doendo a minha
cabeça demais, demais, demais mesmo. Aí eu tava dano ataque de
epilepsia. O ataque era tão forte que quando eu dava o ataque tinha que
corrê comigo pro hospital. Eu acordava e desmaiava, acordava e desmaiava
e ficava assim. Aí até que um dia eu comecei a dar um negócio lá que
parecia que eu tava morreno, que eu perdi a respiração e comecei a fazê
aquela coisa assim, pareceno que era o último fôlego de vida. Aí correram
comigo pro hospital e os médicos lá conseguiram me voltá lá e graças a
Deus eu tô aqui.
P: - A4.
A4: É... O que que é pra falar mesmo?
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P: Quando você estava muito triste, angustiado, aqueles fatos do passado que
vocês contaram, o que você fez?
A4: - A minha mãe tinha separado do meu pai, aí foi lá… eu tava dano muito
trabalho pra minha mãe, ela falei assim: tô dano muito trabalho pra minha
mãe, então eu vô morar com o meu pai. Aí eu fui lá pra morá com o meu pai,
a minha mãe deixô, aí foi lá o meu pai num tinha dinheiro pra pagá a
passagem, porque era muito longe, ele mora em outra cidade e a passagem
é cara. Aí fui lá… falei assim, mas o que eu vô fazê, eu dô muito trabalho pra
minha mãe. Aí eu comecei a fica sozinho, comecei a andá, depois aí eu tava
andano com uns meninos lá... Tava brigano na escola, bateno nos meninos
tudo. Aí fui lá e falei assim, ah, num vô pará de anda com esses menino, aí
comecei a andá com meus amigo do bem, comecei a ficá na minha. Aí falei
assim: o bom é isso. Aí fui lá e pedi à minha mãe de novo pra morá com o
meu pai. A minha mãe deixô, o meu pai num tinha dinheiro pra pagá
passagem. Aí eu fiquei muito mal por causa disso, aí foi lá, a minha mãe falô
assim: ocê num vai morá mais com o seu pai não, ocê vai ficá aqui. Então foi
assim… a senhora é o meu pai e a minha mãe, aí eu fiquei muito triste
porque a minha mãe num deixou mais eu morá com o meu pai, fiquei lá perto
dela, falei com ela que eu amo ela muito, aí foi lá e a minha mente ficou
muito melhor, fiquei conversano muito com a minha família, relacionei muito
melhor com a minha família, falava os segredos tudo com a minha família, aí
foi lá… teve um dia que o meu pai foi lá em casa, falô que ia me buscá, aí eu
comecei a chorá e falei que num queria mais morá com ele não. Eu fui lá pra
casa da minha tia, corri pra lá, aí tinha uma planta lá que um dia a minha tia
e meu tio falô que a planta era venenosa, aí eu peguei um pedaço da planta,
na hora que eu ia colocá na boca assim, a minha tia viu e tomô da minha
mão. Aí eu escondi no banheiro, fiquei bateno na porta do banheiro, fiquei
fazeno um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversou comigo, aí
foi lá, eu parei.
P: - Quando você pegou essa planta, A4, o que você estava sentindo, o que você
tava pensando, como que foi?
A4: - Num sei. Tava sentino um negócio ruim. Parece que era minha vez de morrê
mesmo, tava dano muito trabalho pra minha mãe, vô morrê, vô ficá muito
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[palavra incompreensível]. Aí foi a hora que eu peguei a planta pra comê e aí
a minha tia foi lá e pegô da minha mão. Aí fui pro banheiro e fiquei lá.
P: - Então você queria morrer naquele dia.
A4: - Queria. Porque era a única forma de… eu num ia dá trabalho pra ninguém.
P: - E o que você estava sentindo? Assim, lá no seu coração, como o seu coração
estava?
A4: - Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai num queria
mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava pensano nisso. Era o
único jeito.
P: - Você ficava pensando que a sua mãe e o seu pai num queriam mais que ocê
existisse.
A4: - É. Eu ficava pensano que dava muito trabalho pra minha mãe.
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ANEXO A – Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa
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