PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA
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PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, PESQUISA E EXTENSÃO MESTRADO EM GESTÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS Belo Horizonte 2014 MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS Dissertação apresentada ao Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Inovações Sociais, Educação e Desenvolvimento Local. Linha de pesquisa: Processos políticosociais: articulações interinstitucionais e desenvolvimento local. Orientadora: Drª. Matilde Meire Miranda Cadete. Coorientadora: Drª. Maria Lúcia Miranda Afonso. Belo Horizonte 2014 A474p Alves, Michelle Alexandra Gomes Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos. / Michelle Alexandra Gomes Alves. – 2014. 197f.: il. Orientador: Profa. Dra. Matilde Meire Miranda Cadete. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário UNA, 2014. Curso do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Bibliografia f. 172-178. Ficha catalográfica desenvolvida pela Biblioteca UNA campus Guajajaras 1. Jovens – comportamento suicida. 2. Suicídio – prevenção. 3. Promoção da saúde. 4. Saúde mental. I. Cadete, Matilde Meire Miranda. II. Centro Universitário UNA. III. Título. CDU: 658.114.8 Aos meus pais, que contribuíram imensamente para minha formação humana e profissional e possibilitaram a concretização do meu sonho. E também a minha querida e amada avó, que infelizmente não está mais presente neste mundo. AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida, pela oportunidade de estar neste mundo e tentar fazer da ciência um instrumento democrático e transformador baseado na solidariedade e no amor ao próximo. À minha orientadora, Profa. Matilde Meire Miranda Cadete, e coorientadora, Drª. Maria Lúcia Miranda Afonso, que acompanharam todos os meus passos e colaboraram não só para este trabalho, mas para meu crescimento pessoal e profissional. A minha família, pelo apoio e compreensão nos momentos tensos deste processo de aprendizagem. Aos meus amigos que participaram direta e indiretamente da minha pesquisa. Aos gestores do município de Matozinhos, por possibilitarem a realização deste trabalho. Às crianças e adolescentes que aceitaram participar dos encontros e falar dos seus sofrimentos. Ao padre Carlos pela cessão do espaço paroquial para realização dos encontros com as crianças e os adolescentes. À Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e ao Centro Universitário UNA por oferecerem a bolsa de pós-graduação e possibilitarem a minha formação e qualificação. E, por fim, aos meus colegas de curso, pelos insights coletivos. A todos, muito obrigada! “O corpo fala O resfriado escorre quando o corpo não chora. A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições. O estômago arde quando as raivas não conseguem sair. O diabetes invade quando a solidão dói. O corpo engorda quando a insatisfação aperta. A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam. O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar. A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável. As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas. O peito aperta quando o orgulho escraviza. O coração enfarta quando chega a ingratidão. A pressão sobe quando o medo aprisiona. As neuroses paralisam quando a criança interna tiraniza. A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade”. Autor desconhecido. E quando o sintoma não resolve, Passa-se ao ato! RESUMO O suicídio é uma violência considerada um problema de saúde pública multifatorial que preocupa as esferas nacionais e internacionais devido às suas causas e efeitos. Os dados epidemiológicos, no Brasil, não apresentam números elevados, pois se sabe da dificuldade nos registros de casos. Quando se trata de tentativa de suicídio, a subnotificação torna-se mais evidente, principalmente no público infanto-juvenil. Diante desse contexto, esta pesquisa aborda a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes, de três a 18 anos, residentes no município de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. O objetivo principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. Para tanto, este estudo de abordagem quantiqualitativo dividiu-se em duas etapas distintas, mas complementares: primeira, buscou-se o conhecimento do quantitativo e da forma de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes, com coleta dos dados no setor de epidemiologia do município, e também nos prontuários do ProntoAtendimento (PA) e nas fichas do Ambulatório Infanto-juvenil; estes dados foram analisados no Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0; na segunda etapa, procedeu-se à escuta dos sujeitos para assimilação dos motivos que levam as crianças e adolescentes a tentarem suicídio, usando-se a técnica de grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças. Estes dados foram analisados com base nos referenciais de conteúdo de Bardin e na articulação dos seguintes conceitos: violência, saúde, tentativa de suicídio, qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento local e gestão social. Os principais resultados encontrados foram a confirmação da subnotificação dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a não implicação dos profissionais de saúde diante dos casos recebidos, além da média de dois casos de tentativa de suicídio por mês. Quanto aos dados qualitativos, constatou-se que as relações e os vínculos sociais frágeis estabelecidos pelas crianças e adolescentes são fatores de risco para a tentativa de suicídio. A inovação deste trabalho reside na desmitificação, por dados quantitativos e também qualitativos, de que a criança não tenta suicídio. Diante da escuta desses sujeitos foi possível construir propostas de intervenção visando à qualidade de vida a partir da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e adolescentes do município de Matozinhos. Ou seja, a construção de um projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos e de um espaço de apoio, sugerido pelos próprios adolescentes. Palavras-chave: Tentativa de suicídio. Criança. Adolescente. Prevenção. Desenvolvimento local. Gestão social. ABSTRACT Suicide is a type of violence that is considered a multifactorial public health problem that concerns the national and international spheres due to its causes and effects. Epidemiological data, in Brazil, do not have high levels because of the difficulties to record the cases. When it comes to attempted suicide, underreporting becomes more evident, especially in children and adolescents. Given this context, this research approaches the attempted suicide among children and adolescents, from 3 to 18 years that live in the city of Matozinhos metropolitan area of Belo Horizonte, Minas Gerais. The primary objective was to analyze the attempted suicide among children and adolescents of Matozinhos for the past five years, from the view of these subjects. Therefore, this quantitative approach study was divided into two distinct but complementary stages: First was to research the knowledge of quantitative and way of attempted suicide among children and adolescents, with data collected from the epidemiology section of the city in the records of the Emergency Department (PA) and the records of the Clinic of Children and Adolescents; this data was analyzed in StatisticalPackage for Social Sciences (SPSS) version 19.0; in the second stage, was proceeded the listening of the subjects to assimilate the reasons why children and teenagers to attempt suicide, using the technique of group focus with teens and of the sensitive creative method with children group. These data were analyzed based on the reference content of Bardin and the articulation of the following concepts: violence, health, suicide attempt, quality of life, prevention, health promotion, local development and social management. The main results found were the confirmation of underreporting of cases of attempted suicide and the abstention of health professionals with the cases received and an average of two cases of attempted suicide per month.Regarding the qualitative data, it was found that the relationships and fragile social bonds established by children and adolescents are risk factors to suicide attempts. The innovation of this work lies in demystification, for quantitative and qualitative data, that the child does not attempt suicid. Through the listening of these subjects was possible to construct proposals for intervention, aiming at the quality of life through prevention, protection and promotion of mental health of children and adolescents in Matozinhos through the construction of a project of intersectoral intervention: "Fórum Municipal da Rede de Apoio Infantojuvenil de Matozinhos" and an area of support, suggested by the adolescents themselves. Keywords: Attempted suicide. Child. Adolescent. Prevention. Local development. Social Management LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figuras FIGURA 1 - Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas Gerais, jan/2008-ago/2012..................................................................... 27 FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil de Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012.......................... 29 FIGURA 3 - Tipos e naturezas das principais violências que atingem crianças e adolescentes......................................................................... 36 FIGURA 4 - Contínuo da autodestruição..................................................... 45 FIGURA 5 - Processo de suicídio................................................................ 48 FIGURA 6 - Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do município de Matozinhos – 2008 a 2012............................................... 102 FIGURA 7 - Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013............................................................................. 129 FIGURA 8 - Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013............................................................................. 130 FIGURA 9 - Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013............................................................................. 131 FIGURA 10 - Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013................................................................................... 135 FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013................................................................................... 137 FIGURA 12 - Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013.................................................................................. 138 Gráficos GRÁFICO 1 - Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no município de Matozinhos no período entre 2008-2012.......................... 97 GRÁFICO 2 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2008................................................................... 98 GRÁFICO 3 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2009................................................................... 99 GRÁFICO 4 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2010................................................................... 100 GRÁFICO 5 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2011................................................................... 100 GRÁFICO 6 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2012................................................................... 101 Quadros QUADRO 1 - Fatores de risco para o suicídio............................................ 49 QUADRO 2 - Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012................... 113 QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos baseado no esquema de Boronat (2013)............................................... 121 LISTA DE TABELAS TABELA 1 - Fontes dos dados.................................................................... 80 TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram suicídio entre 2008 e 2012...................................................... 81 TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram suicídio entre 2008 e 2012...................................................... 81 TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 20082012....................................................................................................... 82 TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos, 2008-2012.............................................................................................. 84 TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012.............................................................................................. 85 TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio, Matozinhos, 2008-2012.......................................................................... 86 TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012............................................................... 90 TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos, 2008-2012.............................................................................................. 91 TABELA 10 - Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos, 2008-2012.............................................................................................. 96 TABELA 11 - Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio, Matozinhos, 2008-2012.......................................................................... 96 TABELA 12 - Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 2008-2012.............................................................................................. 104 TABELA 13 - Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 2008-2012......................................................... 105 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAPS Centro de Atenção Psicossocial CEP Comitê de Ética em Pesquisa CID Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CRAS Centro de Referência de Assistência Social CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social DANT Doenças e agravos não transmissíveis ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EUA Estados Unidos da América IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística NASF Núcleos de Apoio à Saúde da Família OMS Organização Mundial da Saúde PA Pronto-atendimento PSE Programa Saúde na Escola PSF Programa Saúde da Família SIH Sistema de Informações Hospitalares SINAN Sistema de Informação de Agravos de Notificação SPSS Statistical Package for Social Sciences SUS Sistema Único de Saúde TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido WHO World Health Organization WHOQOL World Health Organization Quality of Life SUMÁRIO1 1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 16 1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil................................... 17 1.2 Relações de poder na saúde................................................................... 24 1.3 Matozinhos: contextualizando o problema............................................... 25 2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA........................................................................ 32 2.1 Saúde e violência..................................................................................... 33 2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes................................ 39 2.3 Visão sociológica do suicídio................................................................... 41 2.4 Visão psicossocial do suicídio.................................................................. 45 2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio.......................................................... 51 2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde.............................................................................................................. 53 2.7 Gestão social e desenvolvimento local.................................................... 60 2.8 Considerações......................................................................................... 64 3 OBJETIVOS................................................................................................ 66 3.1 Objetivo geral........................................................................................... 66 3.2 Objetivos específicos............................................................................... 66 4 METODOLOGIA.......................................................................................... 67 4.1 Coleta de dados....................................................................................... 69 4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município............................ 69 4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos..................................................... 72 4.2 Aspectos éticos........................................................................................ 77 1 Este trabalho foi revisado de acordo com as novas regras ortográficas aprovadas pelo Acordo Ortográfico assinado entre os países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em vigor no Brasil desde 2009. E foi formatado de acordo com a ABNT NBR 14724 de 17.04.2011. 5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS.................................................. 78 5.1 Pesquisa quantitativa............................................................................... 78 5.2 Pesquisa qualitativa................................................................................. 106 6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS................................................................... 140 6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos.............................................................. 140 6.2 Espaço de apoio..................................................................................... 145 7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO DA PARTE OU DO TODO? - SUICIDE ATTEMPTS IN CHILDREN AND ADOLESCENTS: INJURY OF THE PART OR OF THE ENTIRE?................ 147 8 CONCLUSÃO.............................................................................................. 169 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 172 APÊNDICES E ANEXO.................................................................................. 179 16 1 INTRODUÇÃO Nós devemos às nossas crianças - os cidadãos mais vulneráveis em qualquer sociedade - uma vida livre de violência e medo. A fim de assegurar isto, devemos manter-nos incansáveis em nossos esforços não apenas para alcançar a paz, a justiça e a prosperidade para os países, mas também para as comunidades e membros da mesma família. Devemos dirigir nossa atenção para as raízes da violência. Somente assim transformaremos o legado do século passado de um fardo opressor em um aviso de alerta. Nelson Mandela. A pesquisa realizada para o mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local abordou a questão da tentativa de suicídio infanto-juvenil no município de Matozinhos, baseada nos conceitos de violência, saúde, tentativa de suicídio, qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento local e gestão social. A ideia foi colocar essas concepções para conversarem sobre um problema complexo, multifacetado, intersetorial e multidisciplinar, na expectativa de construção de intervenções locais que prevenissem o fato e reduzissem os danos, possibilitando um atendimento “integral” dos sujeitos acolhidos. Seu objetivo principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. E para alcançar esse propósito a investigação foi construída em três momentos: a) Conhecer o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos. b) Identificar os motivos que levaram as crianças e adolescentes, do município de Matozinhos, a tentar suicídio. c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e adolescentes do município de Matozinhos. 17 Os dois primeiros momentos referem-se à coleta de dados. Com enfoque quantitativo, primeiro foi realizado o levantamento dos casos de crianças e adolescentes, de três a 18 anos, que tentaram suicídio nos últimos cinco anos. Posteriormente, privilegiando a escuta e os métodos qualitativos, a pesquisadora formou grupos com os adolescentes e as crianças, verificadas no momento anterior, para conversarem sobre o ato cometido de violência autoinfligida. Na tentativa de legitimar a abordagem de tal temática e apresentar e justificar a problemática tratada neste trabalho, optou-se por uma subdivisão entre: políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil; relações de poder na saúde; e Matozinhos: contextualizando o problema. 1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil A temática “políticas públicas” abarca vasta gama de definições, é complexa e se insere no campo multidisciplinar. Neste texto, para trabalhar o conceito de política pública, parte-se do seu surgimento nos Estados Unidos da América (EUA), como área do conhecimento no contexto acadêmico, como produto da Guerra Fria e enfoque nos estudos das ações governamentais como ferramenta para as suas decisões (SOUZA, 2006). No geral, essas correntes que conceituam as políticas públicas abrangem aspectos comuns, tais como: visão globalizante em detrimento da soma das partes e que, apesar dos conflitos existentes, é necessária a participação dos envolvidos considerando-se suas inter-relações, interesses e ideologias em proporções variadas (SOUZA, 2006). Quanto aos protagonistas desse processo, Lima (2012) apresenta duas abordagens: estatista e multicêntrica. A primeira deve originar-se do Estado para que seja considerada política “pública”; já a segunda questiona se o infortúnio é de ordem “pública”, portanto, não foca o autor da política. Sendo assim, se o problema for de origem “pública”, então tem-se uma “política pública”. 18 A heterogeneidade desse campo assemelha-se a outra história em construção, que é o rompimento com o paradigma hospitalocêntrico e a concepção da reforma psiquiátrica que, com todo o seu esforço multiprofissional, idealizou uma saúde mental transdisciplinar. Santos e Bastos (2011) enfatizam que para entender o funcionamento desse nosso sistema de saúde atual é necessário resgatar nossa história e as influências do cenário político-social e econômico vivenciadas no Brasil. Vários são os desafios que envolvem a incorporação dessa nova concepção de cuidado nos serviços de saúde mental brasileiros. Bezerra Júnior (2007) menciona alguns e separa-os em planos: assistencial, jurídico, político e sociocultural. No entanto, é imprescindível salientar que eles se intercruzam e não são estanques, estão inter-relacionados e dependem da articulação entre eles para produção de uma verdadeira promoção de saúde. No âmbito assistencial, o desafio reside na construção de modelos de cuidado e intervenção diferenciados que abordem a concepção de clínica ampliada. Ressalta as limitações da clínica tradicional focada no indivíduo como dispositivos que possibilitem a formação de redes. Para tanto, reforça a necessidade de formação de recursos humanos críticos, prudentes e autorreflexivos capazes de reinventar sua prática cotidiana na busca de concretização do ideário reformista. No entanto, estudo recente, realizado no Distrito Federal, ressalta o adoecimento do profissional de saúde mental e as dificuldades enfrentadas quanto às exigências da reforma psiquiátrica no que se refere à inovação, criatividade e atitude do trabalhador frente aos desafios do serviço, gerando sentimento de impotência e frustração (ZGIET, 2013). Além disso, Fiorati e Saeki (2013) denunciam a precarização das relações de trabalho e realização de ações centralizadas, principalmente nas figuras médicas, em detrimento do compartilhamento coletivo e construções intersetoriais. Nos planos jurídico e político, o grande obstáculo a ser ultrapassado reside no fato de garantir e promover a inclusão civil e social, além de ampliar a autonomia dos sujeitos. Ou seja, “[...] o debate ultrapassa os limites da argumentação 19 médica e se insere progressivamente no debate político acerca da inserção no campo da cidadania” (BEZERRA JÚNIOR, 2007, p. 246). Este é um desafio atual e preocupante, pois ao analisar o discurso da Política Nacional de Promoção da Saúde, mais especificamente no item que versa acerca dos agravos e fatores de risco, o suicídio é visto como violência, constatando-se “[...] um predomínio de uma perspectiva da promoção da saúde com ancoragem nas abordagens comportamental e/ou biomética [...]” (RADDATZ et al., 2011, p. 197, grifo nosso). O Ministério da Saúde elaborou os “Manuais de Prevenção do Suicídio” para orientar os profissionais de saúde. Apesar de abordarem os aspectos sociodemográficos como fatores de risco para o suicídio, os documentos ressaltam como principais: a história de tentativa de suicídio e os transtornos mentais (BRASIL, 2006a; 2009). Esse enfoque sugere uma visão biopsíquica, com foco claro nos aspectos psiquiátricos e psicológicos, tratando as questões sociais como causas secundárias ou mesmo insignificantes. Os fatores de risco considerados transtornos mentais ressaltam que estão “[...] em participação decrescente nos casos de suicídio” (BRASIL, 2006a, p. 15). Destarte, registra-se a contradição posta no material produzido para orientação dos profissionais ao se constatar a seguinte afirmação: “[...] estudos em diferentes regiões do mundo têm demonstrado que, na quase totalidade dos suicídios, os indivíduos estavam padecendo de um transtorno mental” (BRASIL, 2006a, p. 19). Já no material produzido para os profissionais da atenção básica também se encontra a seguinte frase: “A compilação de vários estudos, realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mostrou que em mais de 90% dos suicídios pode ser feito um diagnóstico de transtorno mental” (BRASIL, 2009, p. 07). Com esta análise pode-se inferir que a contradição existente no discurso estatal tende a destacar os transtornos mentais e psicológicos como principais fatores de risco para o suicídio. Seria esta uma reprodução do discurso médico e uma forma 20 sutil de mascarar a visão higienista dos serviços de saúde mental atuais? Afinal, o modelo psiquiátrico continua imperando de forma autoritária e perversa com a anuência do Estado que não mais aprisiona “corpos”, mas sim “subjetividades”. Resta questionar qual a compreensão de saúde mental que orienta a construção de políticas públicas, pois além delas possibilitarem mudanças, têm, também, como função a reprodução da ideologia estatal. Obviamente que a iniciativa de construção de um material norteador é louvável e não se questiona a abordagem que trata o suicídio como um problema de saúde pública; a crítica, porém, reside no fato de desconsiderar ou dar secundária importância aos fatores sociais. Silva e Abasse (2010), pesquisadores integrantes do documento Análise da Situação da Saúde em Minas Gerais, que abordou as doenças e agravos não transmissíveis (DANT)2, consideram fundamental análises que reflitam a realidade local com todas as suas peculiaridades, além dos fatores socioculturais, ambientais, tecnológicos e, acrescentando aos dizeres dos autores: aspectos políticos. Afirmam, ainda, que as DANTs encontram-se desprivilegiadas diante das prioridades dos gestores públicos, mesmo apresentando que as “causas externas” são a terceira causa de morte no estado de Minas Gerais... Em Matozinhos, a realidade não destoa das prerrogativas estaduais. Não há uma política pública de saúde mental infanto-juvenil institucionalizada; o que existe é um serviço público de saúde mental infanto-juvenil incipiente e sem estrutura básica suficiente para acolhimento da demanda existente. Por ser a tentativa de suicídio um problema público, a política pública de saúde mental infanto-juvenil é aqui entendida e baseada na perspectiva da abordagem multicêntrica (LIMA, 2012) quando incluída toda a sociedade nesse processo de construção. Ou seja, um instrumento orientador que direciona e unifica conceitos e ações para viabilizar a prática da prevenção e promoção de saúde mental, com 2 O grupo de doenças e agravos não transmissíveis (DANT) pode ser dividido em dois subgrupos: doenças não transmissíveis (DNT) e das causas externas. E, por sua vez, dentro de causa externas, encontramos: acidentes de transporte, suicídio, homicídio, quedas e afogamentos acidentais e eventos cuja intenção é indeterminada. 21 descrição de objetivos e metas claras e diretrizes para nortear as atuações dos profissionais envolvidos com o público em questão e, assim, propor possíveis saídas para resolução deste problema de saúde pública. O fato de não existir uma política pública precisa ser avaliado e contextualizado, pois refere-se a um posicionamento do Estado e da própria sociedade. A invisibilidade dessas crianças e adolescentes é reforçada e mascara algo que deve ser investigado. Apesar de se ter ciência do poder do Estado na transmissão de suas ideologias por meio dos discursos políticos ancorados nos saberes científicos “tradutores da verdade”, convoca-se também a sociedade para o palco, pois não pode ser isenta de sua responsabilidade e coparticipação nesse processo cíclico que se retroalimenta a todo instante. Romper com esse movimento perverso é um desafio! É importante demarcar que há um esforço nesse sentido, visto que o Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental foi implantado em Matozinhos, mas as reivindicações são sempre para suprir e atender a demandas emergenciais e não para construção de ações e práticas de médio e longo prazo com foco na prevenção e promoção de saúde. Visam apenas ao “tratamento” imediato (ALVES; CADETE, 2012). Nardi e Ramminger (2012) defendem uma política pública cidadã e ética que tenha a democracia como base fundante e considere a igualdade de direitos e deveres nas relações cotidianas, assim como a singularidade. Reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos e cidadãos nas suas potencialidades e sofrimentos e trazê-los à cena é imprescindível para a construção de qualquer ação efetiva que envolva esse público. Mas, se eles não existem, não é preciso realizar uma política pública de saúde mental infanto-juvenil. Por fim, o campo sociocultural apresenta como missão a mobilização e a sensibilização dos diversos atores sociais para um debate público, que vislumbre a loucura e o sofrimento psíquico como algo humano. É a tentativa de uma 22 desconstrução social de estigmas substituída pela solidariedade, respeito e compreensão sobre a diversidade, aliada à implicação e responsabilização de todos aqueles pertencentes à sociedade (BEZERRA JÚNIOR, 2007). É importante situar que com a proposta de municipalização da saúde, os municípios passaram a ser foco central, responsáveis pela execução das políticas e serviços de saúde e assistência social e nem todos estavam preparados para tal empreitada. Além de executores, também são gestores! Diante desse novo cenário, não se pode negar que algumas atividades isoladas, incipientes e inovadoras foram realizadas por profissionais de saúde mental, apesar das suas limitações, de acordo com a necessidade, demanda e possibilidades dos municípios. No entanto, Resende (2007) ressalta essa negligência do poder público e discute a inexistência de uma política macro para a saúde mental. Com efeito, a se entender por política, no senso restrito aqui aplicável, uma equação a dois braços, representada de um lado por um conjunto de intencionalidades e de outro por práticas concretas, conjunto este que mostre uma certa continuidade no tempo e significação geográfica que ultrapasse os limites das experiências microrregionais [...] (RESENDE, 2007, p. 16). O objetivo do autor foi justamente chamar a atenção para a necessidade de construção de políticas eficazes e eficientes em âmbito macro ou mesmo nacional. No entanto, ao destacar as atividades locais realizadas pelos serviços de saúde mental, pode-se analisar por outro viés e explorar as construções significativas deste trabalho. Isso não elimina as falhas e precariedades dessas ações, mas possibilita aos sujeitos um novo uso desses espaços, dando-lhes novos sentidos, imprimindo marcas e subjetividades. Desta forma, torna-se interessante associar as “microrregionais” aos “lugares”. Trata-se de lugar de referência para os usuários do serviço, no qual se reconhecem, se identificam, socializam e constroem relações com o mundo, modificando seu modo de ser e estar. Na visão de Carlos (1996), o lugar permite que o sujeito pense e reelabore o seu viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu fazer, produzindo a sua existência social. Sendo as microrregionais “lugares” onde se produz a vida, a subjetividade dos 23 sujeitos, tornam-se relevantes as atividades desempenhadas, pois retratam o verdadeiro objetivo de construção de uma política para o serviço de saúde mental: promoção da saúde e cuidado! São essas inovações locais que transformam os lugares e as pessoas. É nesse panorama ainda nebuloso e cheio de obstáculos que se têm construído as políticas públicas de saúde mental. Quando se pensa na saúde mental infantojuvenil, fica evidente que o caminho será um pouco mais árduo, pois o reconhecimento desses indivíduos, como sujeitos, deu-se recentemente, ou seja, teoricamente pode-se demarcar esse momento após a promulgação da Constituição Federal de 88. O Ministério da Saúde, na tentativa da construção de uma política pública de saúde mental infanto-juvenil, enumerou os seguintes princípios: criança e adolescente vistos como sujeitos; acolhimento universal; encaminhamento implicado; construção permanente de rede; noção de território; intersetorialidade na ação do cuidado. E como diretrizes destacou o reconhecimento do sujeito e seu sofrimento psíquico, a responsabilização pelo agenciamento do cuidado, considerando: a sua dimensão subjetiva e social; a implicação dos responsáveis (familiares e agentes institucionais) no processo de atenção ao sujeito; a ação do cuidado fundamentada nos recursos teórico-técnicos e de saber disponíveis aos profissionais e operar com a lógica de rede ampliada de atenção (BRASIL, 2005). O Ministério da Saúde objetivou normatizar e institucionalizar um saber e prática que visam romper com o paradigma hospitalocêntrico e construir “caminhos” que levem a uma saúde mental humana, ética, solidária e igualitária. No entanto, é possível perceber alguns equívocos e distorções discursivas. Esse é o momento crucial, citado por Bezerra Júnior (2007, p. 250), no qual o paradigma reformista encontra-se: “[...] ou aprofunda seu movimento [...] ou corre o risco de deixar-se atrair pela força quase irresistível da burocracia e da institucionalização conservadora”. A política pública de saúde mental infanto-juvenil é aqui entendida como um dispositivo em construção que auxilia na gestão e resolução de problemas, 24 determina características de acesso aos serviços, qualidade da atenção e processo de trabalho, viabilizando a prática focada na prevenção, promoção e tratamento da saúde mental. Diante dessa visão, é basilar considerar que a prática é anterior à sua construção e legitimar esse saber tácito (o que funciona e o que não funciona) torna-se uma estratégia relevante. Afinal, após a formulação de políticas públicas, o que se espera é sua implementação e que as ações transformem e possibilitem a resolução ou minimização dos impactos dos incômodos vivenciados pela sociedade, fazendo uma gestão social efetiva e consolidando o desenvolvimento local, ou seja, “mudança”, “ruptura”, “construção coletiva”, “participação social”, “cidadania”! 1.2 Relações de poder na saúde É ingênuo negar os conflitos de interesses existentes na construção e execução de uma política pública e sabe-se que para virar “agenda pública” um problema deve ser legitimado por determinados poderes. Neste trabalho o objetivo não é discutir as formas e os tipos de poderes presentes nesse processo, mas alertar para sua existência e influência diante das decisões a serem tomadas. E lembrar que essa dinâmica sempre ocorre nas relações estabelecidas “para” e “com” os sujeitos. Além disso, conforme expressam Jardim et al. (2009), essas tensões e conflitos provocados têm repercussões que se refletem por meio das contradições existentes na própria política de saúde mental e sua execução pelos profissionais que lidam diariamente com esse antagonismo. Não só os princípios e as diretrizes para construção de uma política de saúde mental infanto-juvenil são exemplos dessa reverberação, mas também os manuais escritos para direcionar as ações dos profissionais de saúde diante de possíveis casos de riscos de suicídio. Em pesquisa sobre o modelo brasileiro de assistência a pessoas com transtornos mentais, relacionou-se como categoria central “as relações de poder na forma de tratamento”, visto que, na política de saúde mental, a desinstitucionalização representa a desconstrução de saberes psiquiátricos e mudança de foco da 25 doença para o sofrimento dos sujeitos nas suas relações e essa tentativa de ruptura de paradigma de tratamento para acolhimento pode também ter como objetivo a redução de custos operacionais para o Estado (LIMA; NOGUEIRA, 2013). Diante dessas considerações, a pesquisadora considera os riscos de suicídio como alvo de observações. As provocações aqui abordadas têm como intuito a reflexão e o posicionamento do leitor diante deste problema de “todos”: política pública de saúde mental infanto-juvenil. 1.3 Matozinhos: contextualizando o problema Os elevados índices de tentativas de suicídio e de suicídio caracterizam este tema como um importante problema de saúde pública. O suicídio é um acontecimento complexo, universal, abrange todas as classes sociais e possui etiologia multivariada, abarcando desde elementos biológicos, genéticos, sociais, psicológicos, até culturais e ambientais relacionados à vida pessoal e coletiva (WERLANG; BORGES; FENSTERSEIFER, 2005). A experiência vivida pela pesquisadora no atendimento a crianças e adolescentes que buscaram interromper o próprio processo de viver, na cidade de Matozinhos, resultou nesta pesquisa sobre a tentativa de suicídio, compreendida como o ato humano intencional de autoagressão que não resultou em morte, como foco de estudo e análise. Matozinhos é uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte que se localiza a 47 km da capital mineira e, de acordo com o último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, possui 33.955 residentes e apenas 19.272 são naturais do município. Vivem em área urbana 90,9% da população total e 9,1% na zona rural. Sua população é predominantemente jovem (somando-se 41,5% das pessoas de zero a 24 anos de idade, 48,9% de 25 a 59 anos e 9,7% acima de 60 anos) e a organização familiar é majoritariamente nuclear (total de 9.871 unidades domésticas, 6.843 26 são do tipo nuclear), sendo 65% casal com filho(s), 16,5% casal sem filho, 15,7% mulher com filho(s) e 2,3% homem com filho(s). Quanto ao rendimento mensal domiciliar per capita, o valor médio total é de R$536,00 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE, 2010). Essa população jovem, eminentemente urbana e, na maioria das vezes, integrante de família nuclear, sempre que necessário é atendida no Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental. Este foi implantado em 2009 e, desde então, atende crianças e adolescentes de três a 17 anos, com sofrimento psíquico considerado de “média complexidade”. Isto é, casos em que a pessoa apresenta transtorno mental ou sofrimento psíquico de forma moderada, entre eles “[...] todas as ocorrências de tentativas de autoextermínio apontam para uma condição de gravidade. Devem ser acolhidas e avaliadas pelas equipes de saúde mental em qualquer nível de estruturação [...]” (MINAS GERAIS, 2006, p. 202). As ocorrências de tentativas de suicídio são condições de gravidade e essa situação tem apresentado significativo crescimento entre as crianças e adolescentes de nosso país. Segundo o Ministério da Saúde, o comportamento suicida vem diversificando em relação à faixa etária e, entre os jovens de 15 a 35 anos, destaca-se como a terceira maior causa de morte. No entanto, “os registros de tentativas de suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo menos 10 vezes maior do que o número de suicídios” (BRASIL, 2009, p. 6). No período de jan./2008 a ago./2012 foram registradas 6.883 internações no estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas voluntariamente. Destas, 1.052 foram de crianças e adolescentes menores de um a 19 anos, o que equivale a 15,3% do total de casos (BRASIL, 2012a). À primeira vista, o percentual de casos pode não parecer tão significativo, contudo, é imperativo considerar que os dados sobre as tentativas de suicídio não são comumente declarados. Há subnotificação, o que permite afirmar que esse dado não expressa fielmente a nossa realidade. Como dito anteriormente, estima-se que esse valor seja muito maior do que o declarado, conforme ilustrado na FIG. 1. 27 FIGURA 1 – Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas Gerais, jan/2008-ago/2012 Quantidade de internações 700 585 600 500 400 300 208 200 100 146 80 33 0 Menor 1 ano 1 a 4 anos 5 a 9 anos 10 a 14 anos 15 a 19 anos Faixa etária Fonte: Brasil (2012a). A leitura dessa figura remete ao filósofo Heidegger, que em sua obra principal abordou temas sobre existência, cuidado, angústia, finitude existencial, entre outros. Heidegger (1998) especifica que o homem é essencialmente ser-para-amorte, o que o privilegia em relação aos demais entes, especialmente na assimilação mais própria e originária do seu findar. Esse caráter do ser-para-a-morte não quer dizer, em absoluto, que a existência humana deva ser tomada em um aspecto de negatividade. Ao contrário, esse findar conduz o homem para o sentimento da angústia que é desencadeado pela própria compreensão da finitude. A angústia se apresenta de forma totalizadora, monopolizando todo o pensar e agir do homem. Tudo fica carente de sentido e a angústia torna-se o passado e o presente, envolve toda a existência humana. Continuando, Heidegger (1998) explicita que a angústia é um fenômeno que difere do medo no sentido de que este tem sempre algo determinado. A angústia não tem esse “que” determinado, pois o que a ameaça não é identificável. O que acontece é que diante dela a totalidade de remissões, a totalidade de tudo perde a importância, tudo se desmancha. É como se o nó que amarrava os sujeitos na relação uns com os outros se desfizesse e, dessa forma, caíssem no nada. 28 Essas concepções heiddegerianas invocam uma angústia: crianças, em vez de brincarem, terem o lúdico como norte de suas existências, vivenciam já o vazio existencial? E os adolescentes veem a vida se desmanchar diante de seus olhos, sem perspectivas no futuro? Nas relações intersubjetivas, percebem-nas sem agarras e caindo no nada? Ou não as construíram? Questões dolorosas afloradas após conhecimento das causas externas de Minas Gerais e, principalmente, pelas descobertas em Matozinhos. Retornando, portanto, à cidade de Matozinhos, muitas crianças e adolescentes chegavam ao ambulatório com a queixa inicial de tentativa de suicídio. Esse fato era recorrente e aparentemente comum no município, o que gerou grande estranhamento na profissional de saúde que trabalhava no atendimento clínico psicológico desses sujeitos. Atender crianças de cinco ou seis anos que tentaram se enforcar no quintal de casa é assustador! Quanto aos adolescentes, essa prática era ainda mais comum, com atendimento quase mensal e a grande maioria utilizava como instrumento para o autoextermínio medicamentos ou mesmo o “chumbinho”. Assim, foi realizada uma pesquisa exploratória, não publicada, para dimensionar tal fato, durante a atuação desta autora como psicóloga do Ambulatório Infantojuvenil de Saúde Mental, o que gerou este trabalho de mestrado. No período de jun./2009 a abr./2012 foram acolhidas 376 crianças e adolescentes no ambulatório, sendo que cerca de 10% apresentavam queixas de tentativa de suicídio. Destas, grande parte era encaminhada pelos serviços de saúde (50%), seguido pelo Conselho Tutelar (29%), educação (17%), outros (4%) (ALVES, 2012). Para realização de todos os acolhimentos do Ambulatório Infanto-juvenil, um Boletim de Encaminhamento Geral é preenchido, preferencialmente, por um profissional de nível superior. Nesse boletim há um item referente à queixa inicial, que foi aqui categorizada em: escolar, familiar, social/ pessoal, outras. 29 FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil de Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012 40 Quantidade (%) 35 30 sociais / pessoais 25 escolares 20 familiares 15 outras 10 5 0 Queixas iniciais A queixa inicial escolar refere-se ao comportamento da criança ou adolescente na escola e sua aprendizagem, tais como: confunde as letras com números, não se interessa pelas atividades, dislexia, quadro de rebeldia na escola, agressividade e agitação com colegas, baixo desempenho cognitivo, hiperatividade, indisciplina escolar, dificuldade de aprendizagem, entre outros (ALVES, 2012). Quanto à categoria familiar, as queixas iniciais retratam, prioritariamente, as relações familiares conturbadas, elucidados como discussão com padrasto, raiva da mãe, não aceitação do casamento do pai, só fala no pai que morreu, agressividade com familiares, desobediência e outros (ALVES, 2012). Na categoria social/ pessoal incluem-se as queixas referentes às relações sociais que vão além da escola, da família e trazem algo do sujeito de forma um pouco mais explícita. Neste caso, são narrados alguns comportamentos, como: dificuldade de acatar ordens e leis, comportamento antissocial, evitação social, dificuldade de se relacionar, choro descontrolado, agressividade exacerbada, apatia, depressão constante, complexo de inferioridade, tentativa de suicídio, não quer comer, dificuldade com cuidados pessoais, não querer falar, não conseguir dormir, ver sombras, abusos sexuais, outras (ALVES, 2012). 30 Incluem-se na categoria outras as queixas sem especificações, as solicitações feitas via judicial, doenças e cárceres. Cabe, contudo, ressaltar que essa padronização constitui-se como uma forma didática de apresentar os dados, tendo em vista que as queixas categorizadas não são estanques e muitas queixas transitam e se imiscuem em vários grupos. Nestes casos, privilegiou-se apenas uma categoria para sistematizar as informações, elegendo-se aquela mais enfatizada pelo responsável, pela criança ou adolescente. Após a coleta e a sistematização dos dados verificou-se que metade da demanda de atendimento era feita pelo serviço de saúde e que grande parte das queixas sociais/ pessoais referia-se à tentativa de suicídio e ao abuso sexual. Os casos que não apresentavam essa queixa traziam traços considerados como fatores de riscos pelo Manual de Prevenção ao Suicídio dirigido aos profissionais de saúde tanto na atenção básica como na saúde mental propriamente dita. Para o Ministério da Saúde, os fatores de risco para o suicídio são divididos em: transtornos mentais, sociodemográficos, psicológicos e condições clínicas incapacitantes. Em transtornos mentais são descritos diversos distúrbios de humor, ansiedade, personalidade e associação com substâncias psicoativas (BRASIL, 2006a, p. 15). Os aspectos sociodemográficos acenam para a predominância do sexo masculino, faixa etária jovem e idosa, residentes em áreas urbanas, isolamento social, etc. Os fatores psicológicos relacionam-se às perdas, à dinâmica familiar conturbada, às datas importantes e aos traços de personalidade. Como condições clínicas incapacitantes eles descrevem algumas doenças, lesões e traumas (BRASIL, 2006a). Nos casos analisados, as queixas iniciais trazem diversos fatores de risco, tais como: isolamento social, agressividade, depressão, complexo de inferioridade e ver sombras (que é um dos indícios de possível transtorno mental). Desta forma, pode-se inferir que boa parte desses casos apresenta relatos que vão ao encontro das orientações de cuidado e alerta preconizadas pelo Estado para os profissionais de saúde. Ou seja, tem-se considerável número de crianças e 31 adolescentes com “potenciais suicidas”. No entanto, essa constatação não é confirmada pelos dados oriundos da Prefeitura de Matozinhos. Diante do exposto, cabe anunciar que se torna visível, na dimensão do existir humano, que as existências produzem, dialeticamente, o que se traduz como não existência. E que a sociedade de Matozinhos, juntamente com seus gestores e profissionais de saúde, não direciona seu olhar para as crianças e adolescentes que tentaram suicídio. São sujeitos marcados, nesse processo, por silêncio e invisibilidade. O município não possui dados sistematizados do quantitativo de tentativas e de suicídios entre jovens e adultos e o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), entre jan./2008 e ago./2012, não apresentou qualquer registro de casos de internações por causas externas, do grupo X60-X84 (lesões autoprovocadas voluntariamente). Fato incoerente com a observação realizada na prática do Ambulatório Infanto-juvenil no período de jun./2009 a abr./2012, visto que eram atendidas diversas crianças e adolescentes “vítimas” da tentativa de autoextermínio, que após serem internadas e socorridas no prontoatendimento do município eram encaminhadas ao serviço de saúde mental para acompanhamento psicológico. Pode-se inferir que tal subnotificação mascara um problema de saúde pública muito sério e que não se sabe exatamente a dimensão e consequência dessas tentativas de suicídios (BRASIL, 2012a). Diante desse contexto de invisibilidade do fato e dos sujeitos, a angústia gerada na pesquisadora possibilitou a construção de um projeto de pesquisa de mestrado quantiqualitativa que teve como objetivo geral analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. 32 2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA O referencial teórico desta pesquisa é denso, pois aborda conceitos e temáticas diferenciados, mas complementares, exemplificando claramente a proposta interdisciplinar do Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Diante disso, optou-se por dividir o texto em quatro temas que são pilares deste trabalho: saúde e violência; tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes; qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde; e, por último, mas não menos importante: gestão social e desenvolvimento local. No item saúde e violência, foi considerada a relação existente entre esses dois temas e como têm sido tratados nos últimos tempos. O texto alerta para os vários tipos de violência e seus reflexos no contexto da saúde pública, ressaltando a tentativa de suicídio como um tipo de violência. O conceito de tentativa de suicídio apresenta-se de forma complexa e, para trabalhá-lo nesta pesquisa, foram utilizados preceitos e conceitos das visões sociológica, psicossocial e da saúde. Na visão sociológica, mostrou-se a discussão sobre o suicídio e sua tentativa ao longo da história, como fruto do contexto social. Na perspectiva psicossocial, foram abordados os processos que culminam no suicídio e o papel dos vínculos nesse contexto. Na área da saúde, percebe-se o fenômeno como um problema de saúde pública e, para abordá-lo, baseou-se na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) para possibilitar a unificação e categorização dos casos analisados, propondo ações de intervenção para prevenção e promoção. A qualidade de vida é entendida como um processo multidimensional que envolve aspectos objetivos e subjetivos. Aborda-se também a importância da prevenção da tentativa de suicídio como estratégia de promoção de saúde e de possibilidade de qualidade de vida para as crianças e adolescentes residentes no município de Matozinhos. 33 Os conceitos de gestão social e desenvolvimento local são trazidos como peças-chave para se entender o processo de implicação social dos gestores e da sociedade nos atos de tentativa de suicídio e também como concepção basilar para a construção de propostas vislumbradas para sua prevenção e promoção da saúde mental infanto-juvenil. 2.1 Saúde e violência A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a humanidade há séculos. As discussões em torno dessa temática evidenciam esse evento como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais estabelecidas pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito nas relações como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar esse olhar e entendê-lo nas suas peculiaridades. Desta forma, a violência é mais um componente de toda e qualquer sociedade, “[...] é parte intrínseca da vida social e resultante das relações, da comunicação e dos conflitos de poder”, mas deve e pode ser prevenida (MINAYO, 2006, p. 15). Krug et al. (2002, p. 3) também discordam dessa visão fatalista e enfatizam que, “apesar de a violência sempre ter estado presente, o mundo não tem de aceitá-la como parte inevitável da condição humana”, portanto, é responsabilidade de todos construir saídas possíveis para o enfrentamento desse problema mundial. Apesar do imaginário brasileiro de passividade, não é possível negar que a sua constituição, desde o “descobrimento”, foi pautada em violência e esta permanece tornando-nos um povo violento em todas as épocas históricas em que vivemos, modificando apenas a sua forma e tipologia. Nesse aspecto, salienta-se que não há uma violência, mas várias e articuladas que se destacam conforme interesses políticos e sociais de cada momento, pois se apresentam de forma incômoda, exigindo mudanças (MINAYO, 2006). Jacques e Olinda (2012) afirmam que a violência está presente em todos os campos da nossa vida e apresenta-se ora explícita, ora implicitamente nas 34 economias, nas políticas, nas ideologias, nas religiões, nas famílias, nos ensinos, nas culturas, nas forças armadas e em diversos outros setores onde transitamos. Mas como definir a violência? O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (WORLD HEALTH ORGANIZATION, WHO, 2013). Melo (2010, p. 13) esclarece o conceito da Organização Mundial da Saúde (OMS), pontuando que a violência é qualquer situação que use do poder, da força ou da coerção para que o ator social deixe sua condição de sujeito para ser transformado em mero objeto; seria, então, uma “[...] colonização do mundo da vida [...]” que gera e replica a violência na nossa sociedade. É interessante ressaltar que esse conceito amplia o olhar sobre a violência, ou melhor, sobre as “violências” existentes. Destitui o predomínio das marcas objetivas e abre espaço para que a subjetividade lesada seja vista e ouvida, pois a fictícia ideia de “invisibilidade” do dano psíquico pode ser um dificultador nas ações de prevenção e promoção de saúde. Desta forma, não se pode limitar a percepção da violência apenas aos aspectos que ressaltam as lesões e mortes, uma vez que isso inviabiliza que o seu efeito total sobre as pessoas seja percebido, prevenido e tratado. As violências existentes podem ser classificadas conforme sua tipologia. Krug et al. (2002) sugerem três categorias, separadas de acordo com as particularidades dos sujeitos que as cometem: a) violência dirigida a si mesmo (autoinfligida); b) violência interpessoal; c) violência coletiva. Segundo esses autores, a violência autoinfligida divide-se em suicídio (ideações suicidas e tentativas) e autoabuso (automutilação). É sobre o primeiro caso, mais especificamente sobre a tentativa de suicídio, que esta pesquisa discorre. A violência interpessoal também apresenta subcategorias: violência da família e de parceiro(a) íntimo(a), ou seja, “[...] ocorre entre membros da família e parceiros 35 íntimos [...]”. Como exemplos podem-se citar o abuso cometido contra crianças, idosos e mulheres; e a violência comunitária que ocorre entre pessoas “[...] sem laços de parentesco [...]”, como violência juvenil tão preocupante na nossa contemporaneidade (KRUG et al., 2002, p. 6, grifo nosso). As violências coletivas são entendidas como “[...] atos violentos que acontecem nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos e caracterizam a dominação de grupos e do Estado” (MINAYO, 2006, p. 81). Portanto, é dividida em violência social, política e econômica. Minayo (2006, p. 81) acrescenta a essa classificação do relatório mundial sobre violência e saúde de Krug et al. (2002) a violência estrutural. Afirma que os outros tipos de violência têm sua base na estrutural, pois ela é silenciosa e se naturaliza no cotidiano da nossa sociedade, sendo “[...] responsável por privilégios e formas de dominação” que reproduzem as misérias e desigualdades, mantendo, inclusive, “[...] o domínio adultocêntrico sobre crianças e adolescentes”. Para melhor compreensão da violência, Krug et al. (2002) também classificam a natureza dos atos violentos ou abusos em quatro modalidades: física, sexual, psicológica e privação ou negligência. O abuso físico “[...] significa o uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou incapacidade em outrem”. O abuso sexual é o ato ou jogo sexual com intuito de “[...] estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas eróticas, pornográficas e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças”. O psicológico caracteriza-se por “[...] agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou ainda, isolá-la do convívio social”. Por fim, a privação de cuidados, abandono ou negligência refere-se à “[...] ausência, à recusa ou à deserção de cuidados necessários a alguém que deveria receber atenção e cuidados” (MINAYO, 2006, p. 82). Essa tipologia e natureza da violência podem ser visualizadas na estrutura apresentada na FIG. 3. Ressalta-se que esse modelo não é universalmente aceito 36 e existem diversas visões e teorias acerca desta temática complexa e controversa. Esse quadro serve de base para conhecer-se a multiplicidade de fatores, causas e nuanças que cercam o fato e, também, as suas possibilidades de intervenções. FIGURA 3 – Tipos e naturezas das principais violências que atingem crianças e adolescentes Fonte: Krug et al. (2002, p. 07, com modificações). É importante salientar que há vínculos entre os tipos de violência aqui apresentados. Na revisão integrativa de literatura realizada com as produções científicas brasileiras sobre a prevenção da tentativa de suicídio infanto-juvenil nas últimas décadas (1994-2013)3 foi possível perceber que alguns autores (que compõem a revisão da literatura feita para este trabalho) vincularam a violência autoinflingida, no caso a tentativa de suicídio, à violência interpessoal (a partir dos históricos familiares) e a violência coletiva (inclusão de variáveis tais como: raça/cor; escolaridade; ocupação e renda ou classe social) ao caracterizarem o perfil do grupo de risco. 3 Trabalho apresentado no V Congreso Latinoamericano de Estrategias de Prevención del Suicidio, realizado na cidade de Campeche, no México, nos dias 5, 6 e 7 de setembro de 2013. 37 Mas qual a relação existente entre a saúde e seus serviços e a violência existente em nossa sociedade? A violência está inserida no nosso cotidiano, violando direitos dos cidadãos, e é um problema de saúde pública que influencia a qualidade de vida das pessoas e as taxas de morbidade e mortalidade. De acordo com Silva e Maeta (2010, p. 81), isso “[...] repercute na diminuição da expectativa de vida de adolescentes e jovens, além de produzir altos custos sociais, econômicos, familiares e pessoais”, seja de forma direta, a partir das suas consequências objetivas e subjetivas, ou indireta, por exemplo, com base no absenteísmo e produtividade perdida. É fato que a saúde é seriamente comprometida, com altos índices de violência, pois esse campo é um dos espaços privilegiados, no qual todas essas demandas aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais de saúde recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam uma prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes (1999) define a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um corpo lesionado, mas um sujeito! A violência aparece para “dramatizar causas” e, desta forma, torna o incômodo público, o que possibilita o movimento para propor e exigir mudanças, rupturas (MINAYO, 2003). E não há lugar melhor do que a saúde pública para que esse problema seja visto e ouvido. Jacques e Olinda (2012, p. 127) afirmam que “[...] a violência avançou da esfera governamental-social para sua intersecção com a saúde [...]” e isso se deu não apenas pelos índices de mortalidade e morbidade, mas pela sua colaboração na proposição de estratégias preventivas. A saúde pública brasileira está caminhando e apresenta várias falhas, mas não é possível negar que tem avançado a passos largos. A tentativa de humanização 38 dos serviços é um grande testemunho desse novo momento. Além disso, Krug et al. (2002, p. 4) lembram que “[...] a saúde é, acima de tudo, caracterizada por sua ênfase na prevenção”. Enfatiza que esse setor opera com uma outra lógica e que, “[...] em vez de simplesmente aceitar ou reagir à violência, seu ponto de partida é a forte convicção de que tanto o comportamento violento quanto suas consequências podem ser evitados”. Definitivamente, isso não significa que a saúde salvará e livrará a sociedade das violências sofridas e praticadas, pelo contrário, sozinha ela não terá êxito algum. Sua contribuição reside na mudança de foco! A integralidade do cuidado exige a intersetorialidade e sabe-se que para a redução da violência é necessário empenho coletivo voltado para os três níveis de prevenção: primário, secundário e terciário, envolvendo toda a sociedade nos processos de gestão social para a construção de propostas viáveis, eficientes e eficazes. O tema da violência foi incorporado aos poucos na área da saúde pública e ainda, infelizmente, encontra resistências por meio das condutas dos profissionais que não reconhecem suas nuanças, apesar dos órgãos gestores implantarem uma Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Na verdade, a atuação dos profissionais reflete uma violência institucional que tem raízes mais profundas e não cabe, neste trabalho, discuti-las (MINAYO, 2006). O importante é considerar que este assunto é novo para a saúde e apresenta-se como um grande desafio, pois nos serviços de saúde brasileiros tem-se como referência a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008). E a atual classificação não explicita a questão da violência, pois não é considerada doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas externas” (V01Y98), que por sua vez são divididas em: não intencional, intencional e evento de intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange acidente de trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio, afogamento, contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões, abelhas, vespas, complicações da assistência médica e outras. Causa externa intencional abarca 39 suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os eventos de intenção indeterminada (MINAS GERAIS, 2010). Desta forma, torna-se imperativo uma ruptura de paradigmas para a construção de uma “cultura de paz” na nossa sociedade construída: [...] por sujeitos que a partir do seu cotidiano de trabalho e de vida se encontram, produzem conhecimento coletivo e se constroem como sujeitos coletivos, portanto, unificados num projeto maior no qual se reconhecem e, sobretudo, dentro do qual ainda preservam a sua autonomia (MELO, 2010, p.13). Esse é o desafio não só da saúde pública, mas do nosso e de todos os outros países que encontram na violência um problema complexo que interfere no desenvolvimento social, econômico, político e humano das nossas nações. Promover a saúde biopsicossocial e espiritual das pessoas é proporcionar-lhes oportunidades de serem sujeitos e cidadãos do mundo! 2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes El suicidio es una cuestión de algunos, el suicida es una cuestión de todos. Boronat. As crianças e adolescentes representam 31,3% da população brasileira, conforme demonstram os dados colhidos pelo censo demográfico de 2010. Isso equivale a aproximadamente 60 milhões de pessoas (IBGE, 2010). De acordo com Waiselfisz (2012), ao longo dos últimos 10 anos a taxa de suicídio infanto-juvenil aumentou quase 26,2%. Nosso país possui um índice relativamente baixo, se comparado com outras nações, mas há que se considerar alguns agravantes: apesar da existência dos sistemas de notificação de casos de violência, os quantitativos não expressam fielmente nossa realidade, principalmente quando se trata das “tentativas de suicídio”. Outra questão 40 relevante é que o aumento mais expressivo de casos encontra-se na faixa etária dos jovens. Desta forma, são mais de 24 milhões de adolescentes em risco. É também comum as pessoas acreditarem que as crianças não tentam suicídio e esse mito impossibilita o seu registro como violência e são vistos e interpretados como “acidentes”. O que difere o acidente de uma tentativa de suicídio é justamente a sua intencionalidade; e a criança, se escutada, dá conta de dizer do seu sofrimento e da sua intenção. Mas parece ser ameaçador e inconcebível que uma criança deseje a morte e, assim sendo, os pais não relatam e os profissionais de saúde não “escutam” também esse pedido de cuidado. Ressaltase, no entanto, que a crença da inocência infantil e incapacidade de tentar a morte estão aos poucos sendo questionadas (WHO, 2013). Os adolescentes também são negligenciados e as suas tentativas são vistas como ações irresponsáveis “pedidoras” de atenção. A partir do uso do poder nos serviços de atenção e cuidado da criança e do adolescente e também no seio do núcleo familiar e social, são, algumas vezes, ridicularizadas e discriminadas. Eles, assim como as crianças, são mais uma vez “violentados” no seu direito de ser sujeito. Diante dessa reflexão e da complexidade do tema, propõe-se um percurso por três visões do suicídio: sociológica, psicossocial e da saúde. A visão sociológica resgata, brevemente, uma discussão clássica baseada nos estudos de Durkheim e Marx, considerando o aspecto social do suicídio. A psicossocial apresenta alguns autores que concebem o fenômeno como uma junção dos aspectos psíquicos e sociais com foco nos vínculos estabelecidos pelo sujeito e sua importância nesse ato. Já a saúde apresenta diversos documentos que apostam em uma política pública, o suicídio, como forma de violência e propõe ações intersetoriais de prevenção e promoção de saúde. Essas três perspectivas de estudo do suicídio não são as únicas e separadamente não dão conta de explicar a complexidade do problema. Optou-se por utilizar essas referências na expectativa de que abordem o fato, complementarmente, de forma mais sistêmica e corresponsável, pois se acredita 41 na responsabilidade de TODOS diante do fenômeno. No entanto, este trabalho não pretende, de forma alguma, esgotar o tema, pois é sabido das limitações existentes em cada abordagem por tratar-se de fenômeno complexo e multifatorial. A tentativa é trazer algumas concepções que possibilitem ajudar na discussão e compreensão dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil pesquisados no município de Matozinhos, nos últimos cinco anos. 2.3 Visão sociológica do suicídio Inicialmente, faz-se necessário resgatar uma discussão clássica que circunda esta temática tão delicada: o suicídio. De acordo com Durkheim (1897/2000), o suicídio foi muito frequente entre os povos primitivos. No entanto, apresentava características distintas entre si com foco maior nas questões culturais. Ele agrupa os suicídios realizados na época em três categorias: 1º. Suicídios de homens que chegam ao limiar da velhice ou são afetados por doenças. 2º. Suicídios de mulheres por ocasião da morte do marido. 3º. Suicídios de clientes ou servidores por ocasião da morte de seus chefes (DURKHEIM, 2000, p. 272, publicação 1897). Essa categorização e o relato dos fatos ocorridos fazem com que o autor conclua que “a sociedade pesa sobre o indivíduo”, de forma a “levá-lo a se destruir” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 273). Caso o fato não fosse concretizado, o indivíduo era punido com a desonra e castigos religiosos. Quando se refere às cidades greco-latinas, Durkheim (1897/2000) descreve uma “legislação do suicídio”, que passou por duas fases: a primeira, na qual o ato de autoextermínio só era “[...] considerado ilegítimo quando não tinha autorização do Estado” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426). 42 Aquele que não deseja viver por mais tempo deve expor suas razões ao Senado e, depois de ter obtido dispensa, deixar a vida. Se a existência te é tediosa, morre; se estás oprimido pela fortuna, bebe cicuta. Se estás arqueado pela dor, abandona a vida. Que o infeliz conte seu infortúnio, que o magistrado lhe forneça remédio e tua miséria terá fim (DURKHEIM, 2000, p. 427, grifo do autor, publicação 1897). O remédio referido era veneno, substância que ficava em posse de todos os magistrados. Caso a autorização não fosse concedida e o ato cometido, havia penalizações: eram recusadas as honras da sepultura e a “[...] mão do cadáver era cortada e enterrada à parte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426). Na segunda fase, a condenação do suicídio era absoluta e sem qualquer exceção. Desta forma, tanto o indivíduo quanto a sociedade perdem o “direito de escolha pela morte”. E, segundo Durkheim (1897/2000), à medida que o tempo passa, essa proibição torna-se ainda mais radical, mas não evitou que o fato ocorresse. Marx (1846/2006), em seu livro “Sobre o Suicídio”, alerta sobre esse fracasso, quando diz dessa crença em conter o autoextermínio com base em penalidades, sejam elas morais ou jurídicas. Vê-se que o suicídio não é, definitivamente, evento recente em nossa sociedade. Na linha histórica tem-se desde ato “heróico”, honroso, até penalizações e sanção desse “direito” (DURKHEIM, 1897/2000). Mas, realmente, o que vem a ser o suicídio? As abordagens sociais referem-se àquelas que buscam respostas nas ciências sociais. Essa vertente entende o suicídio como fato e sintoma social. Responsabiliza não só o indivíduo, mas toda sociedade sobre cada ato de autoextermínio. O foco é a sociedade e suas mazelas, seus vínculos e forma de funcionamento. Segundo Rodrigues (2009), apesar de Marx e Durkheim partirem de pontos de vistas diferentes, eles chegam à conclusão de que a “causa” desse sintoma é social. Marx faz um estudo de casos analisando a “vida privada” e Durkheim parte de uma análise do “exterior”, da sociedade, do contexto. Rodrigues (2009, p. 706) afirma que, “[...] como Durkheim, Marx também acreditava que os valores sociais 43 são determinados pela natureza particular das sociedades e [...]”. Como somos parte integrante desse sistema, não há como eleger privilegiados para determinados sintomas, pois “[...] uma sociedade de natureza desumana fere todos, das mais diversas origens sociais”. Essa sociedade fere todos, mas apenas alguns cometem suicídio. Com base nessa afirmação, é necessário pensar na necessidade de “[...] lançar mão de múltiplos olhares que focalizem a relação que travamos entre o interior/exterior” (RODRIGUES, 2009, p. 708). Por intermédio das palavras de Enderle (1846, apud MARX, 2006, capa do livro de MARX) percebe-se essa ampliação de perspectiva quando se referir ao suicídio: [...] uma correta compreensão do suicídio não pode limitar-se a causas puramente psicológicas, tampouco reduzir este fenômeno a uma variável condicionada por fatos sociais exteriores ao indivíduo. [...] o suicídio possui, em Marx e Peuchet, o alcance de uma renúncia do indivíduo a uma existência inautêntica, apartada do gênero humano. Suas raízes não se encontram, portanto, em nenhuma individualidade ou sociedade cristalizadas, mas sim no âmago daquele vivo e sempre mutável complexo de categorias que chamamos de ser social. É justamente esse ser social que tenta o autoextermínio que se busca, neste trabalho, pesquisar, compreendendo esse fenômeno como um ato complexo e multidimensional. Assim, aqui suicídio é conceituado como “[...] todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 14). E para esse autor, o suicídio possui três tipos: egoísta, altruísta e anômico. O egoísta resulta de uma falha da integração do indivíduo com o seu meio social, ou seja, há excesso de individualização e o vínculo se perde, fazendo com que a pessoa não tenha mais sentimentos de coletividade e a sua vida seja insignificante para o “todo”. O altruísta é o oposto; o indivíduo está unificado ao social de tal forma que não existe na sua singularidade, não há individualidade; depende e está totalmente integrado ao meio social. O terceiro e último é o anômico, um estado de desregramento, uma fraca regulação social na qual o 44 indivíduo não encontra razão em si nem no meio social, está sem freio para dominar suas paixões. Suicídio é um ato praticado por um indivíduo, porém suas causas não são puramente subjetivas; são sociais, referem-se à sociedade na qual ele pertence. Acredita-se que o suicídio é um “[...] sintoma da organização deficiente de nossa sociedade” (MARX, 1846/2006, p. 23-24). E que “[...] os motivos pessoais que levam os indivíduos a buscarem a morte de maneira deliberada podem funcionar como canais por onde forças coletivas também passam” (RODRIGUES, 2009, p. 700). Nesse contexto, a tentativa de suicídio seria justamente um esforço sem êxito, “[...] interrompido antes que dele resulte a morte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 14). Nessa perspectiva sociológica, o suicídio e a tentativa são produtos das relações que se presentificam nos âmbitos sociais de uma sociedade “adoecida” e “perversa”. Durkheim e Marx consideram o sujeito um integrante de uma cena do contexto social e o foco privilegia esse cenário. Atualmente, uma socióloga de nome Maria Cecília de Souza Minayo, estudiosa sobre o assunto, assim como vários outros autores, faz algumas reflexões mais ampliadas, abordando a temática por meio de uma interseção com a saúde e tratando o fato como violência estrutural e grave problema de saúde pública. Resgata a história brasileira marcada pelas diversas violências e, recentemente, em estudo realizado com outros pesquisadores, apresenta uma metodologia psicossocial para autópsias psicológicas e psicossoais, na qual busca diversificar as interlocuções, apostando que o suicídio é multicausal, multidimensional, social, mas também singular, pois “[...] cada pessoa reage e interpreta o sofrimento que a atinge de um modo particular” (CAVALCANTE et al., 2012, p. 2051). Essa nova visão é um convite à transdisciplinaridade! 45 2.4 Visão psicossocial do suicídio Para apresentar a visão psicossocial, utilizar-se-ão três autores, que são complementares, para expressar a compreensão do suicídio e da tentativa nesta perspectiva. Bastos (2009, p. 72) considera que as tentativas de autoextermínio são diferentes do suicídio fatal, pois há um “desejo ambíguo” entre a vida e a morte e “[...] nem todo paciente que tenta se matar necessariamente tornar-se um suicida de fato”. Baseado em estudos de Stubbe e Bojanovsky, ele apresenta passos gradativos antes de se chegar ao suicídio propriamente dito, conforme FIG. 4: FIGURA 4 – Contínuo da autodestruição 1º Grau de suicídio 2º Grau de suicídio 3º Grau de suicídio VIDA MORTE Fantasias suicidas Tentativas de suicídios Suicídios exitosos Fonte: adaptado de Bastos (2009, p. 71) com adaptações. O autor defende a visão psicanalítica e declara que o primeiro grau de suicídio refere-se ao nosso inconsciente e que todos o apresentam, o que não significa, necessariamente, que venhamos a tentar suicídio ou de fato nos matar. O segundo grau de suicídio é considerado uma fase intermediária na qual “[...] realiza-se alguma atitude que põe em risco a sua própria vida [...]” (BASTOS, 2009, p. 72), o que não significa, objetivamente, que essa pessoa se tornará “um suicida de fato”. Porém, existe o alerta para que não haja negligência do profissional clínico diante do ato. O terceiro grau caracteriza-se pelo “forte e firme desejo” que a pessoa tem de se matar, com grandes possibilidades de concretização do ato de autoextermínio. Assim, o ciclo do suicídio teria essas três fases, que são separadas em graus, trazendo as características peculiares de cada um. Bastos (2009) também 46 recomenda para tratamento dos primeiros graus um trabalho com equipe multiprofissional para reversão dessa “tendência autodestrutiva”. E ressalta a necessidade de verificar o contexto político e social que inclui esse sujeito, pois é em função dele “[...] que poderemos ler qual desses fatores ou patamares poderá estar preponderando na tentativa da morte de si mesmo ou no suicídio fatal” (BASTOS, 2009, p. 68). Boronat (2013)4, baseado em muitos estudos sobre o tema, construiu um esquema que seria uma síntese do processo do suicídio que ultrapassa e completa a ideia de Bastos. Ele parte dos fatos cotidianos vivenciados por todos nós e ressalta que as nossas ações são escolhas e possuem intenções com foco no alcance e na conquista de algo. Quando fazemos escolhas que dificultam ou impossibilitam a conquista daquilo que desejamos, temos um problema: “[…] En la medida que aparecen las dificultades, cualquier situación puede transformarse en un problema cuando no encontramos alguna alternativa posible y sustitutiva” (“[…] Na medida em que aparecem as dificuldades, qualquer situação pode transformar-se em um problema quando não encontramos alguma alternativa possível ou substitutiva” – tradução livre) (BORONAT, 2013, s.p.). Podem-se encontrar soluções para alguns problemas e conviver com outros, no entanto, alguns se agravam nessa ausência de possibilidades na qual as soluções não são aquelas desejadas ou aceitas; e assim tem-se um conflito. Até então, fatos cotidianos, problemas e conflitos são comuns nos sujeitos e fazem parte da nossa existência. O que difere uma pessoa da outra é, entre várias outras peculiaridades, justamente as suas relações consigo, com os outros e com o mundo, que são influenciadas pelo ambiente político, histórico, social e subjetivo (psíquico) (BORONAT, 2013, s.p.). Esse conflito, quando não resolvido, torna-se insuportável para o sujeito e tem-se uma crise. Para Boronat (2013), a crise é totalizadora e a pessoa deseja a todo o instante acabar com a angústia que sente, pois se confunde com a dor que é da ordem do insuportável. Nessa fase tem-se baixo potencial suicida. 4 Boronat enviou a apresentação por e-mail e autorizou o uso do seu esquema, ainda não publicado. 47 Caso a crise não seja vista, escutada e tratada, a pessoa passa a ter pensamentos de fuga, pois não consegue distanciar-se do seu sofrimento. E “sumir, fugir, distanciar” são soluções vistas para encerrar com o insuportável. São fantasias negativas que geralmente a pessoa verbaliza antecipando as suas decisões. Boronat (2013) destaca alguns comportamentos característicos dessa fase: “[...] síndrome pre-suicida (germina la idea); pérdida de intereses, repliegue sobre sí mismo; Suspensión de las vivencias en el tiempo; Inhibición de la agresividad” (“[…] síndrome pré-suicida (nasce a ideia); perda de interesse, volta para si mesmo, suspensão das experiências exteriores, inibição da agressividade” – tradução livre) . Nesta fase, o potencial suicida é mediano e o autor ressalta a possibilidade e necessidade de “prevenção”, de ações interventivas e preventivas. Boronat (2013, s.p.) preleciona: “[…] La fantasía permanente de huída, el sentimiento de soledad y de que no existe solución ni comprensión para su sufrimiento, transforma el deseo de alejamiento en la idea de desaparecer, de matarse” (“[…] A fantasia permanente de ruína, o sentimento de solidão e de que não existe solução nem compreensão para o seu sofrimento, transforma o desejo de afastamento em uma ideia de desaparecer, de matar-se” – tradução livre). Essa é a fantasia de morte, também chamada de ideação suicida. Nesse momento, há um planejamento da ação com detalhes do tipo: onde, quando, como e que, variando, para o autor, segundo a situação e personalidade do sujeito. O potencial suicida é alto e, geralmente, há mensagens das intenções. O desenvolvimento da ideação suicida é detalhado por Boronat (2013, s.p., trasdução livre), sugerindo que os três momentos são preveníveis: Consideración: El suicidio es una vía de escape de los conflictos. Ambivalencia: Lucha interna entre las tendencias destructivas y de conservación. Decisión: Aparece una brusca tranquilidad “siniestra”. Aparecen actos preparatorios, planificación concreta. Consideração: O suicidio é uma via de escape dos conflitos. Ambivalência: Luta interna entre as tendencias destrutivas e de conservação. Decisão: Aparece uma brusca tranquilidade “sinistra” Aparece matos preparatórios, planejamento concreto. 48 Essa ideia, quando concretizada e não ocasiona imediatamente a morte, recebe o nome de tentativa de suicídio. Podem ocorrer várias tentativas e quando não são escutadas e assistidas em tempo possivelmente serão repetidas no prazo de três a seis meses. Para Boronat (2013), os “intentos” são ensaios ou buscas de mudanças no seu entorno para término do sofrimento sentido. E ressalta que são imprescindíveis a assistência e o cuidado da pessoa nesse momento. Caso a tentativa seja “exitosa” tem-se o suicídio em si e o que resta a fazer, de acordo com o autor, é decodificar as mensagens deixadas pela pessoa para interpretar os motivos e causas, a partir das autópsias psicológicas. Pontua, também, que a família deve reordenar-se diante desse contexto e acrescenta que ações pontuais e até preventivas no núcleo familiar deverão ocorrer, pois é sabido na literatura que a existência de casos de suicídio na família pode ser dispositivo para que outros consanguíneos repitam a ação (BORONAT, 2013). Conforme explanação anterior e FIG. 5, percebe-se que esse é um processo contínuo e crescente que se inicia com um fato corriqueiro e no meio do caminho são transmitidos vários sinais de que devem ser escutados para que esse “ciclo” não se conclua e não seja preciso perder mais vidas. Assim, a proposta de prevenção para interrupção do agravamento dessas fases torna-se prioridade. FIGURA 5 - Processo de suicídio Fonte: adaptado de Boronat (2013). O contínuo de autodestruição apresentado por Bastos (2009) e o processo do suicídio construído por Boronat (2013) explicam o fato de forma psíquica, 49 subjetiva e contribuem de forma efetiva para a construção de intervenções preventivas clínicas e sociais, baseadas no funcionamento e procedimentos característicos do suicídio e dos sujeitos que cometem ou são “acometidos” por ele. Bentancurt (2011) acredita que existem características de personalidade que propiciam o suicídio, mas aposta em uma visão mais sistêmica e inclui a família e o contexto social, pois acredita que o conflito não é individual. Assim sendo, a autora apresenta, no QUADRO 1, algumas características que estão na base, são causas primárias de um suicídio ou da tentativa. QUADRO 1 – Fatores de risco para o suicídio Familiares Sociais Antecedentes familiares de conduta Exposição a outro suicídio, de um suicida companheiro, amigo ou conhecido Disponibilidade de meios em casa Acesso a meios letais e meios de comunicação irresponsáveis Antecedentes de depressão ou Estigma negativo associado à procura enfermidade mental na família por ajuda e falta de acesso aos serviços de ajuda Mudanças na estrutura familiar e Morte inesperada e outros eventos de também mudanças constantes de perda residência Família disfuncional: violência; Violência estrutural e problemas com dificuldades de comunicação; abuso a lei de álcool ou drogas; pais incoerentes, imprevisíveis ou muito rígidos Isolamento Isolamento ou discriminação social Expectativas paternas afastadas da Altos níveis de pressão, inclusive para realidade (sobre-exigência) ter êxito Bullying, cyberbullying ou eventos Família pouco afetiva ou excludente humilhantes Fonte: adaptado de Bentancurt (2013), que autorizou por e-mail o uso da sua apresentação, com a devida referência para citação que foi fornecida por ela. Nesse quadro didático e aparentemente simples é possível visualizar que o suicídio é um fenômeno multifatorial, complexo, social e histórico, que extrapola as características de personalidades. A questão familiar explora desde o ambiente físico e concreto até as relações e vínculos estabelecidos, passando, inclusive, 50 pelo imaginário quanto ao desempenho dos papéis dos seus membros. No social, percebe-se a ampliação do círculo desse sujeito, com fatos que extrapolam a sua “autonomia”, pois estão presentes para todos e o diferencial será justamente a forma como lidar com eles. A ideia apresentada complementa os autores anteriores, ressaltando a contribuição desses fatores “externos” ao sujeito para que decida por ações que visam à morte ou ao alívio de um sofrimento (BENTANCURT, 2011). O mais interessante é que Bentancurt (2011) apresenta possibilidades de prevenção e tratamento e denomina DE “recursos” capazes de ajudar o sujeito. São baseados no QUADRO 1, no qual se incluem as características e ações pessoais, familiares e sociais necessárias para a promoção de saúde da pessoa. Como traços pessoais ou de personalidade, cita a criatividade, adequada autoestima, capacidade prospectiva, autoexigência proporcional às suas capacidades, etc. Na parte das relações familiares, afirma serem necessários: relações afetivas, tolerância com erros, apoio incondicional, reconhecimento, comunicação favorável, etc. Em relação às características sociais, menciona as amizades e relações emocionalmente significativas; acesso a oportunidades de desenvolvimento pessoal integral, e adequada resolução de conflitos. O sujeito transita, então, pela sua psique, sua família e pelo item social. E a partir das relações que constrói e que são estabelecidas consigo, com outro e com o mundo encontra fatores que favorecem ou não o risco do suicídio (BENTANCURT, 2011). Neste texto, foi possível verificar que, por ser extremamente complexo, o suicídio deve ser percebido, estudado e tratado por diversas fontes, que ao conversarem entre si identificam as peculiaridades e diferentes ressalvas sobre o mesmo fato. 51 2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) afirma que o suicídio refere-se diretamente à agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido sobre si mesmo, com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as 20 maiores causas de morte mundiais para todas as idades e que a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador! Principalmente ao se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou ao nível de, na atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco. Cabe ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também multifatorial, sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não menos densos. O suicídio é um fato antigo, mas que se apresenta na atualidade como problema de saúde pública. Tardiamente incluído na agenda pública, mobilizou parte da sociedade e do poder público para construção de políticas e ações de prevenção. A tentativa de suicídio, ainda mais complexa, por sua dificuldade de registro, destaca o imperativo de intervenções urgentes. Essa assertiva encontra eco nas dizeres do Ministério da Saúde, quando afirma que os registros de tentativas de suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo menos 10 vezes maior do que o número de suicídios (BRASIL, 2009). [...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade, método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de suicídio não são claramente conhecidos (OMS, 2002, p.187). Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte a todo o momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” escolhe por ela. Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida 52 diariamente com pessoas, em tenra idade e, ao que tudo indica, que não veem pela frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a morte não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime significado aos objetos e atos que executa. Dessa maneira, não se pensa na violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas representações e significações referentes à vida e à morte. Os profissionais da saúde lidam com suas questões subjetivas e também as objetivas que otimizam e viabilizam o trabalho. Como exemplo, pode-se citar a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), que enquadra e caracteriza o suicídio como lesão autoprovocada intencionalmente (X60 a X84). É esse código que aparece, ou deveria aparecer, nos prontuários para determinar e orientar a atuação diante desse tipo de violência, pois o profissional é obrigado a notificar em formulário específico tal fato (CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008). Com base nesses dados e em estudos, percebeu-se a necessidade de construir políticas públicas de prevenção do suicídio e promoção da saúde. O suicídio é visto como um grave problema de saúde pública que afeta todos e pode ser prevenido e, para tanto, várias portarias foram criadas. Entre elas, destacam-se: a) Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001, que dispõe sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, cujo objetivo é estabelecer diretrizes e responsabilidades institucionais em que se contemplem e valorizem medidas inerentes à promoção da saúde e à prevenção de agravos externos (BRASIL, 2001); b) Portaria nº 936, de 19 de maio de 2004, que dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a implantação e implementação de núcleos de prevenção à violência em estados e municípios (BRASIL, 2004a); c) Portaria nº 1876, de 14 de agosto de 2006, que institui Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio, a serem implantadas em todas 53 as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão (BRASIL, 2006b). As proposições dessas portarias possibilitaram a construção de ações de prevenção da violência e promoção da saúde. Alguns manuais foram criados para orientar os profissionais de saúde, dos diferentes níveis de complexidade, nas ações de prevenção do suicídio. Apesar de algumas iniciativas reforçarem a visão biomédica do fenômeno, não se pode negar que o tema entrou para pauta da saúde e isso trouxe benefícios. Também é importante destacar que essa inclusão deu-se por fatores econômicos, inclusive, pois o custo de vitimados pela violência nos serviços de urgência é altíssimo. De acordo com informações do site do Ministério da Saúde (SIH–SUS), em 2003 aproximadamente, 724 mil pessoas foram internadas por causas externas e o custo disso aos cofres públicos foi de R$ 466.412.502,80 (BRASIL, 2012a). Portanto, não sejamos ingênuos de acreditar que a “cultura pela paz” se dá meramente pela filosofia “cristã” e solidária de um governo; o suicídio é um problema histórico, social, político, econômico e psíquico. 2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde A discussão sobre o conceito de qualidade de vida aborda diferentes olhares sobre a temática, destacando aspectos objetivos, subjetivos, econômicos e sociais, dependendo da perspectiva e do campo semântico que será analisado. Na verdade, o ponto comum é seu aspecto multidimensional, sua multiplicidade e variedade de fatores que influenciam sua composição. Minayo (2000) afirma que a relação estabelecida entre saúde e qualidade de vida é antiga e existe desde o século XVIII, quando surgiu a Medicina social. Naquele tempo, o termo utilizado era: condições de vida. Outro ponto importante para ressaltar é que as pesquisas realizadas com esse viés subsidiaram algumas políticas públicas e movimentos sociais. 54 Atualmente, existem indicadores e diversos instrumentos utilizados para medir a qualidade de vida de determinados grupos e sociedades, inclusive brasileiros (final dos anos 80), que se basearam na compreensão da nossa realidade social, considerando as desigualdades existentes na perspectiva microrregional, com foco local (MINAYO et al., 2000). De acordo com Silveira et al. (2013, p. 2008), “[...] há uma escassez de estudos sobre a qualidade de vida entre adolescentes brasileiros” e urge a necessidade de mais estudos para esta população, visando à elaboração de políticas públicas de prevenção e promoção de saúde. E quando se pensa na violência juvenil existente em nosso país, esta temática torna-se relevante e preocupante, pois os dados vistos vão de encontro ao que se considera qualidade de vida para as crianças e adolescentes. Minayo (2000, p. 10) destaca essa preocupação, afirmando que “[...] no mundo ocidental atual, por exemplo, é possível dizer também que desemprego, exclusão social e violência são, de forma objetiva, reconhecidos como a negação da qualidade de vida”. Mas o que consideramos como qualidade de vida? Antes de apresentar o conceito, cabe refletir acerca das palavras de Herculano (2000), que salienta a necessidade de abordar a qualidade de vida como base para a construção de uma sociedade ética, humanizada e que respeite a vida e as potencialidades humanas sem destruir a natureza. Nessa consideração, pode-se verificar que a qualidade de vida é mais que um simples conceito, é uma visão de mundo que orienta ações e constrói sujeitos. A esse respeito, Rufino Netto (1994, apud MINAYO, 2000, p. 8), no II Congresso de Epidemiologia, considera: [...] como qualidade de vida boa ou excelente aquela que ofereça um mínimo de condições para que os indivíduos nela inseridos possam desenvolver o máximo de suas potencialidades, sejam estas: viver, sentir ou amar, trabalhar, produzindo bens e serviços, fazendo ciência ou artes. Qualidade de vida, então, é um misto de objetividades e subjetividades que vão possibilitar a saúde e existência diferenciada dos sujeitos no mundo. Erik Allardt 55 (1993, apud VITTE, 2009), enfatiza que as necessidades individuais podem ser resumidas em três verbos: ter, amar e ser. O verbo ter estaria ligado às condições materiais, “necessidades básicas, de sobrevivência”. O amar seria aquela necessidade de relacionar-se com outras pessoas, formando identidades sociais; são os aspectos afetivos e de “solidariedade intragrupos”. O ser ultrapassa e engloba a integração com a sociedade pelo viés da participação: em que medida uma pessoa participa nas decisões e atividades coletivas que influenciam sua vida, atividades políticas, oportunidades de tempo de lazer, etc. Essa proposta aparentemente simples abrange diversas dimensões humanas que propiciam, ou não, a qualidade de vida. O ter está relacionado às condições de vida das pessoas e é preponderante que essa pessoa tenha moradia, alimentação, saneamento e acesso aos setores e serviços básicos para que se relacione com o mundo de forma diferenciada e positiva (ALLARDT, 1993 apud VITTE, 2009). Na dimensão do verbo amar é interessante resgatar “[...] as ideias de desenvolvimento sustentável e ecologia humana”, destacados pela autora Minayo (2000, p. 10). É essa solidariedade e consciência coletiva que torna o ser humano capaz de construir uma forma diferenciada de ser e estar no mundo, garantindo o seu bem-estar e a qualidade de vida de todos. O verbo ser remete à dimensão de sujeito, cidadão e “[...] relaciona-se ao campo da democracia, do desenvolvimento e dos direitos humanos e sociais” (MINAYO, 2000, p. 10). E sabe-se que a relação estabelecida entre a democracia e a qualidade de vida é íntima, pois “[...] quanto mais aprimorada a democracia, mais ampla é a noção de qualidade de vida, do grau de bem-estar da sociedade e da equidade ao acesso aos bens materiais e culturais” (MINAYO, 2000, p. 11). Assim sendo, ter, amar e ser são fundamentais para a construção da qualidade de vida. Qualidade de vida, então, é um processo multidimensional de construção do seu lugar no mundo, considerando os aspectos biológicos (necessidades básicas), psicológicos, políticos, sociais e ambientais. 56 Alguns pesquisadores discutem a temática e preocupam-se com os instrumentos utilizados para a sua medição, sua avaliação. Segundo Fleck (2000), a OMS desenvolveu um instrumento para avaliação da qualidade de vida chamado World Health Organization Quality of Life (WHOQOL-100) e, posteriormente, criou sua versão resumida com apenas 26 questões (WHOQOL-Bref). Seidl e Zannon (2004) abordaram a construção desse instrumento como um projeto multicêntrico baseado em quatro grandes dimensões: física, psicológica, relacionamento social e ambiente. Essas dimensões são também contempladas nos verbos, ter, amar e ser, destacados por Erik Allardt (apud VITTE, 2009). Desta forma, percebe-se que, no seu aspecto prático e objetivo, é possível mensurar esses pressupostos, principalmente porque a avaliação do grau de qualidade de vida em que a pessoa se encontra é explicitado de forma subjetiva. É subjetivo porque “a qualidade de vida só pode ser avaliada pela própria pessoa” (SEIDL; ZANNON, 2004, p. 582). E assim tem-se a definição de qualidade de vida pelo grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde como “a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no panorama da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (SILVEIRA et al., 2013, p. 2008). Isso não descaracteriza sua multidimensionalidade, visto que é composta de: “[...] um híbrido biológico-social, mediado por condições mentais, ambientais e culturais” (MINAYO, 2000, p. 12). Sendo a qualidade de vida um conceito tão complexo e inesgotável, salienta-se um aspecto de grande importância e que necessita de todas as dimensões: ter, amar e ser para se efetivar. Fala-se, neste momento, da prevenção da violência autoinfligida e da promoção da saúde como uma das formas de construção e efetivação da qualidade de vida. Por fim, esta pontuação convoca à reflexão de Rodrigues (2009, p. 711), que suplica a formulação de políticas públicas que, “[...] levando em consideração quem somos, ajudem-nos a não desperdiçar mais vidas” e a pensar em intervenções locais que considerem a prevenção e a promoção da saúde com enfoque na qualidade de vida como estratégias para ter, amar e ser. 57 A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências foi promulgada em 2001, por intermédio da Portaria GM/MS nº 737/2001, e tem como objetivo central o estabelecimento de diretrizes e responsabilidades institucionais visando ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos externos (BRASIL, 2001). Para sua implementação, em 2004 foi estruturada a Rede Nacional de Prevenção de Acidentes e Violências com base em três estratégias centrais: informação e gestão em rede; criação de núcleos estaduais, municipais e acadêmicos; indicadores de gestão. As diretrizes dessa política preveem ações de prevenção nos três níveis, a partir de investimentos na promoção da saúde, assistência multidisciplinar e intersetorial, sistematização dos dados, qualificação dos recursos humanos e estudos e pesquisas na área. É interessante registrar que, como há dificuldade em inserir no cotidiano dos profissionais essas diretrizes e práxis e a assistência aos “vitimados” pela violência, principalmente aqueles que tentaram suicídio são vistos como “não sujeitos” que escolheram a morte e, portanto, salvar sua vida não é prioridade nos atendimentos, seja na atenção primária, ambulatórios ou urgências (MELO, 2010). Melo (2010, p. 15) explicita a “não existência” desses sujeitos, que são reduzidos, quando muito, a apenas um corpo doente, reproduzindo a ideologia e o poder biomédico no setor público de saúde. Propõe que o combate à violência recupere “[...] em cada espaço, no cotidiano, essa competência que nos dá, a todos, a condição de sujeitos, a fala; e explorar, ao máximo, em todos os espaços, as suas potencialidades interativas” (grifo nosso). Para isso, é preciso ouvir e mapear o problema para, assim, construir estratégias de prevenção e promoção da saúde. Elaborar propostas de prevenção e promoção são ações difíceis e devem ser pensadas e construídas em conjunto com todos os envolvidos. Considerar os três tipos de prevenção também é interessante para delimitar em qual nível ou quais níveis as intervenções ocorrerão. Tem-se, assim, de acordo com Krug et al. (2002, p. 15), a seguinte classificação: 58 · Prevenção primária - abordagens que visam a evitar a violência antes que ela ocorra. · Prevenção secundária - abordagens que têm como foco as respostas mais imediatas à violência, tais como assistência pré-hospitalar, serviços de emergência ou tratamento de doenças sexualmente transmitidas após um estupro. · Prevenção terciária - abordagens que visam à assistência em longo prazo no caso de violência, tais como reabilitação e reintegração, e tentam diminuir o trauma ou reduzir a invalidez de longo prazo associada à violência (grifo nosso). Mesmo na prevenção secundária, em que há “mais” urgência na atuação dos profissionais, é possível e preciso escutar esse sujeito para além das suas lesões. É necessário perceber as crianças e os adolescentes que tentaram suicídio e chegam aos serviços de urgência e emergência como sujeitos e não apenas pequenos corpos lesionados que precisam de sutura, lavagem gástrica ou demais procedimentos. É pela saúde que eles pedem socorro e esse grito deve ser também “tratado”. Não há como acolher, atender e tratar os sujeitos sem escutálos, muito menos criar projetos de intervenções sem incluí-los no processo. Sejam políticas locais ou globais, a presença e participação dos cidadãos torna-se fator indispensável para sua realização. A construção de redes e parcerias entre os setores e as pessoas possibilita uma ação eficiente e eficaz no combate à violência e na mobilização para uma cultura da paz. Sem ingenuidades, aqui não se desconsideram os poderes e interesses existentes na perpetuação e manutenção na violência, nem mesmo o recurso financeiro para sua manutenção. A crença é de que esse fenômeno pode ser prevenido e reduzido, de forma que se preservem as vidas, principalmente das nossas crianças e adolescentes, pois a vida vale muito, literalmente! (SILVA; MAETA, 2010). Silva e Maeta (2010) compartilham dessa visão e afirmam que a saúde deve atuar intersetorialmente e intervir nos fatores determinantes e condicionantes da violência, desenvolvendo ações de vigilância, promoção e prevenção. Através de articulações intra e intersetoriais, deve-se buscar a construção de redes de solidariedade, a garantia de direitos, a promoção de uma cultura de paz e uma atenção integral e humanizada as pessoas que sofreram violência ou estão em vulnerabilidade às violências. Dentre as ações desenvolvidas pelo setor saúde, destacam-se também as articulações feitas no sentido de implementar medidas promotoras da qualidade de vida e de leis que sejam protetoras e que garantam direitos 59 humanos. Outra grande ação é a avaliação de políticas e programas e a formação de recursos humanos, dentro de uma perspectiva de educação permanente (SILVA; MAETA, 2010, p. 85). Ressalta-se, no entanto, que a “atenção integral” é uma utopia a ser alcançada e que a saúde não é a salvadora do mundo nem a aniquiladora da violência, pois esta é um fato complexo e multicausal. No entanto, cobrar sua implicação nesse problema de saúde pública fortalece a rede e instrumentaliza as ações e as intervenções intersetoriais. A inclusão na agenda escancara o problema como sendo de TODOS os setores, serviços, profissionais e cidadãos. Assim sendo, é necessário criar ações estratégicas transversais que perpassam por várias políticas públicas para alcançar resultados positivos a partir da prevenção e da promoção. A Política de Promoção da Saúde foi aprovada em 2006, por meio da Portaria MS/GM nº 687, e ultrapassa o discurso de cura e reabilitação, focando a prevenção. Para tanto, aposta em intervenções intersetoriais que consideram também os aspectos políticos, sociais e ambientais da saúde e as ações são voltadas para os seus determinantes e condicionantes, ou seja, “[...] fatores da vida que colocam as coletividades em situação de iniquidade e vulnerabilidade“ (BRASIL, 2012b, p. 11). Promover a saúde é buscar qualidade de vida da sociedade e, para tanto, faz-se necessária a sua participação ativa, a partir de gestão compartilhada entre todos os usuários, os movimentos sociais, os trabalhadores e os gestores públicos e também privados construindo uma rede baseada na corresponsabilização dos atores, preservando a autonomia e as peculiaridades (BRASIL, 2010). Entende-se, portanto, que a promoção da saúde é uma estratégia de articulação transversal na qual se confere visibilidade aos fatores que colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre necessidades, territórios e culturas presentes no nosso país, visando à criação de mecanismos que reduzam as situações de vulnerabilidade, defendam radicalmente a equidade e incorporem a participação e o controle sociais na gestão das políticas públicas (BRASIL, 2010, p. 12). 60 Desta forma, promover a saúde ultrapassa o pensamento biomédico e insere-se como direito e dever de todo cidadão e esse processo possibilita a ampliação das perspectivas sobre os problemas existentes, tratando as questões por meio de uma vertente intersetorial, pois o sujeito é único e suas necessidades diversas. Não se trata, porém, de atender às demandas existentes, mas de escutá-las e corresponsabilizar os cidadãos para que também saiam do lugar da simples “queixa”. A palavra de ordem será: “participação ativa” de todos os envolvidos para que ações eficientes e eficazes possibilitem saídas para os problemas multifatoriais e multicausais. Para resumir o posicionamento adotado neste texto, exibe-se a citação trazida na Política Nacional de Promoção da Saúde: Entende-se que a promoção da saúde apresenta-se como um mecanismo de fortalecimento e implantação de uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do governo, o setor privado e não governamental e a sociedade, compondo redes de compromisso e corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes na proteção e no cuidado com a vida (BRASIL, 2010, p. 15, grifo nosso). É justamente essa proteção e cuidado com a vida que devem ser pensados quando se trata de uma temática tão complexa como a violência, em especial a tentativa de suicídio. Como propor ações efetivas, eficientes e eficazes com responsabilidades múltiplas, mobilizando recursos humanos e financeiros de diversos setores e representações, para promover a saúde infanto-juvenil e reduzir os índices de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos? Eis a questão! 2.7 Gestão social e desenvolvimento local Na tentativa de articulação dos conceitos e ideias trazidos anteriormente, elegeram-se a gestão social e o desenvolvimento local como referenciais transversais para possibilitar reflexões e ações de prevenção à violência e promoção da saúde no município de Matozinhos. 61 Gestão social e desenvolvimento local são conceitos analisados amplamente na nossa sociedade. Na verdade, estão intrinsecamente ligados e torna-se tarefa difícil desmembrá-los, mesmo que para efeitos conceituais e didáticos. O município é carente de infraestrutura e de espaços que possibilitem o lazer aos seus moradores. Registra-se que a maioria da população é formada por jovens e que alguns destes queixavam-se no Ambulatório Infanto-juvenil sobre ausência de atividades no tempo livre e à falta de opção oferecida pela cidade. Duas questões precisam ser discutidas nesse aspecto: a real falta de opção de lazer nos tempos livres e a apropriação dos espaços públicos. Em Matozinhos, há falta de instrumentos e de ações que estimulem o lazer como qualidade de vida e o tempo livre passa a ser utilizado de formas diferenciadas (uso e abuso de drogas, adoecimentos, homicídios, suicídios, etc.) aumentando o número de pessoas atendidas pelos serviços de saúde mental do município. O Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental é um lugar onde isso aparece mais evidente e talvez seja justamente por isso que a escuta do sofrimento desses sujeitos seja tão importante. Mas ressalta-se que esse não é, ou não deveria ser, o único espaço. É fundamental ouvir o que eles têm a dizer sobre a morte, a vida, os sentidos do viver e a qualidade de vida. Soares et al. (2011, p. 3197) destacam no seu estudo esse movimento de “[...] valorização da perspectiva da criança e do adolescente como relator de sua experiência de vida [...]” e que além de oferecer um espaço de escuta é preciso transformar. Transformar esse lugar! Esse lugar é aqui entendido como referência para as pessoas, no qual se reconhecem, se identificam, socializam e constroem relações com o mundo, modificando seu modo de ser e estar. Na visão de Carlos (1996), o lugar permite que o sujeito pense e reelabore o seu viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu fazer, produzindo a sua existência social. O Ambulatório Infanto-juvenil pode ser reconhecido como “lugar” onde se discutem a morte, a vida e a subjetividade dos sujeitos, pois retrata o objetivo de construção de uma política para o serviço de saúde mental: proteção e cuidado! 62 É certo que se deseja um desenvolvimento local que ultrapasse as paredes de um serviço de saúde mental institucionalizado, no entanto, perceber a ressignificação da subjetividade e relação desses sujeitos é muito gratificante e torna a ação mais que válida, inovadora! Principalmente quando esse serviço pode contar com os demais atores da rede de acolhimento, atenção e promoção de saúde. Essa transformação local, pessoal e social visa ao desenvolvimento. Mas o que seria, então, um “desenvolvimento local”? Tem-se estudado e abordado tal tema sob diferentes olhares. Uns enfatizam o caráter econômico, outros o social, o humano, o ambiental, a junção deles, e assim por diante. Na verdade, o que se percebe é que não há consenso conceitual sobre o tema. O conceito e as ações estão em processo de construção. Nessa perspectiva, aborda-se, neste trabalho, uma visão mais humanista e para sustentar essa crença serão utilizados alguns autores que compartilham dessa idéia. O desenvolvimento local valoriza as ações “microrregionais” e intersetoriais. Proporciona aos atores o verdadeiro protagonismo, estabelecendo redes, parcerias e encontrando formas “micro” de resolver problemas e dificuldades “regionais”. Oferece aos cidadãos a autonomia, a liberdade e a oportunidade de construção de uma vida melhor: “qualidade de vida”. Enfatizar o local como âmbito de história, vida, sentido e transformação. Sen (1999) concebe o desenvolvimento local como “um processo de expansão das liberdades” e ressalta que o papel dos sujeitos, como instrumentos de transformação, deve ultrapassar a visão econômica e incluir a perspectiva social e humana. Não nega o econômico, mas transcende-o, tornando-o social, cultural e humano, para a promoção do bem-estar e, por que não, da “qualidade de vida”. Para que essa transformação econômica, política, cultural e social ocorra é necessário que as pessoas se tornem sujeitos, cidadãos ativos de seu processo de crescimento e desenvolvimento. Na construção desse processo a informação, ou melhor, a educação faz-se primordial para sermos atores principais nas nossas 63 mudanças. De acordo com Dowbor (2007), a ação do cidadão depende da informação contextualizada que acontece desde a infância. A ideia da educação para o desenvolvimento local está diretamente vinculada a essa compreensão e à necessidade de se formarem pessoas que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas (DOWBOR, 2007, p. 76). Diante desta discussão, percebe-se a necessidade de intervenções pontuais e transversais que colaborem para o desenvolvimento social, econômico e humano. O município de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, compartilha das limitações nacionais no que se refere à saúde, principalmente saúde mental de sua população. Crianças, adolescentes e adultos jovens tentam suicídio frequentemente e não há trabalhos preventivos implantados, apenas tratamento paliativo e para poucos, pois a estrutura física e profissional não suporta toda a demanda. Urge a construção e implantação de uma proposta de intervenção com foco na promoção da saúde que seja construída em conjunto com a população, baseada nos princípios de democracia, cidadania, educação e desenvolvimento. Essa escolha vai ao encontro de uma visão que favorece a gestão social, aqui pensada como sinônimo de participação, justiça, igualdade e liberdade que visa à transformação da sociedade. [...] gestão social como um conjunto de processos sociais com potencial viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório e transformador. É fundada nos valores, práticas e formação da democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da afirmação dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova civilidade. Construção realizada em pactuação democrática, nos âmbitos local, nacional e mundial; entre os agentes das esferas da sociedade civil, sociedade política e da economia, com efetiva participação dos cidadãos historicamente excluídos dos processos de distribuição das riquezas e do poder (MAIA, 2005, p. 15-16, grifo nosso). Segundo Maia (2005), apesar de diferentes enfoques dados pelos estudiosos de gestão social, todos possuem como valores fundantes a democracia e a cidadania e será nessa perspectiva que a intervenção em saúde mental será construída, 64 pois pressupõe a corresponsabilidade. Nessa construção, serão pensadas estratégias locais possíveis envolvendo a comunidade, as famílias e o poder público, visando a prevenção, a proteção, a promoção e o melhor acolhimento e atendimento das crianças e adolescentes em tratamento. É escutando os sujeitos e convidando para a construção das ações intersetoriais, em parceria com os demais integrantes da rede, que será possível implantar propostas de prevenção da tentativa de suicídio e de promoção da saúde infantojuvenil. 2.8 Considerações Os temas foram separados de forma didática para que esclarecessem seus pontos de origem e discussões, mas na verdade o intuito desta explanação foi traçar um diálogo entre essas visões que tivessem como fio condutor a tentativa de suicídio infanto-juvenil. A inclusão da violência como temática referente à saúde é um processo lento e árduo, porém fundamental para a quebra do paradigma biomédico e ampliação da visão humana de forma mais holística, proporcionando a construção de políticas públicas transversais e intersetoriais com foco na prevenção e na promoção da saúde. Conceituar a tentativa de suicídio como uma forma de violência e escancarar a sua urgência como um problema de saúde pública possibilita a desmistificação de alguns mitos e torna a ação um fato concreto, principalmente quando se depara com uma política pública que busca estruturar uma Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde. É unânime considerar que algo deve ser feito quanto à tentativa de suicídio, independentemente da abordagem que seja privilegiada para sua discussão, para que mais vidas não sejam desperdiçadas. E promover a saúde é ofertar uma das condições para que os sujeitos tenham qualidade de vida. Ao ampliar o conceito de saúde e considerar os seus fatores 65 determinantes e condicionantes, tem-se como meta proporcionar aos cidadãos melhores condições de existência nos seus aspectos físicos, psíquicos, sociais, políticos e espirituais. A gestão social democrática, cidadã e compartilhada coloca os “usuários” na cena e cobra-lhes participação ativa para transformação e desenvolvimento social e humano. Na atualidade tem-se uma gestão “do” social ou “para” o social e a proposta e convite feitos, neste trabalho, é que as pessoas reflitam e se empoderem do seu discurso e poder para saírem do lugar da simples queixa e promoverem ações efetivas de prevenção e promoção visando melhor qualidade de vida. Desta forma, não há como pesquisar a tentativa de suicídio infanto-juvenil sem passar pela saúde, violência, democracia, cidadania e qualidade de vida. Dar voz para esses sujeitos e corresponsabilizá-los é primordial para efetivar qualquer ação. 66 3 OBJETIVOS Os objetivos desta pesquisa foram divididos em geral e específicos, sendo que todas as ações desempenhadas foram construídas com este foco. 3.1 Objetivo geral Analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. 3.2 Objetivos específicos a) Descrever o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos. b) Identificar os motivos que levam as crianças e adolescentes do município de Matozinhos a tentarem suicídio. c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e adolescentes do município de Matozinhos. 67 4 METODOLOGIA A metodologia é uma das partes mais importantes de toda a pesquisa e sua escolha está intrinsecamente ligada ao seu problema e objetivo. Geralmente, é conceituada como um conjunto de normas, técnicas e métodos científicos sistematizados utilizados para a resolução de problemas e aquisição de conhecimento. Minayo (2008, p. 14) extrapola esse conceito e ressalta que a metodologia é a articulação da teoria e dos pensamentos sobre a realidade. Afirma que “a metodologia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade)”. Considerar a criatividade e até mesmo a subjetividade do pesquisador como parte integrante da metodologia é um diferencial essencial para as pesquisas realizadas nas “ciências humanas e sociais”, principalmente quando abordam temáticas delicadas, tal como, tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes. Nessa acepção, a forma de apreensão e aquisição do conhecimento escolhida, para a pesquisa, foi a dialética. Esta considera que o sentido das coisas é historicamente construído, que o sujeito não está deslocado do objeto e visa a compreender a conexão existente entre a superfície e a essência do fato 5. Konder (2004) reforça essa ideia ao dizer que a dialética é o modo de se pensarem as contradições da nossa realidade que permanece em constante transformação. Para investigar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, tornou-se primordial adotar uma concepção que valoriza a dimensão subjetiva e que se preocupa com o fenômeno no seu contexto psicossocial, histórico e político. 5 Informações retiradas de anotações feitas em sala, no dia 23/03/2012, na disciplina de Metodologia da Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela professora Dra. Maria Lúcia Miranda Afonso. 68 Na dialética, “não existe dado sem a relação do pesquisador! Sujeito e objeto estão relacionados intersubjetivamente e objetivamente no contexto social e histórico”6. Sousa Santos (1988, p. 16, grifo do autor) esclarece tal afirmativa ao descrever que: A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda natureza é humana. O pesquisador, sendo também autor e sujeito no e do mundo em busca de significados e conhecimentos acerca de uma realidade deve, no encontro com seus “pesquisados”, ouvi-los crítica e empaticamente. Desta forma, a melhor linguagem para a descrição da realidade retratada na pesquisa foi a quantiqualitativa. Apesar da discussão feita em torno da utilização de métodos quantitativos e/ou qualitativos e de afirmarem a existência de antagonismo entre eles, compartilhase da visão de Minayo e Sanches (1993, p. 247) quando realçam que “[...] são de natureza diferenciada, mas se complementam na compreensão da realidade social”. Pesquisa qualitativa é aquela que se preocupa com a apreensão do conhecimento de questões sociais e culturais ao longo do vivido, do sentido, do valor, do contexto, da subjetividade. De acordo com Serapioni (2000, p. 190), ela tem a “[...] capacidade de fazer emergir aspectos novos, de ir ao fundo do significado e de estar na perspectiva do sujeito [...]”, pensando a formação e relação com o social para construção do saber. A pesquisa quantitativa preocupa-se mais com os aspectos objetivos e, segundo Serapioni (2000), seu enfoque é na realidade, mas com o objetivo de produção de dados numéricos, indicadores e tendências observáveis. 6 Frase retirada de anotações feitas em sala, no dia 30/03/2012, na disciplina de Metodologia da a Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela Professora Dr . Maria Lúcia Miranda Afonso. 69 Acreditando que há uma complementaridade entre as duas abordagens e que essa junção foi necessária e benéfica na aquisição dos dados para responder à questão da pesquisa, a escolha pela pesquisa quantiqualitativa foi fundamental. Nesta dissertação caracteriza-se como pesquisa quantiqualitativa mais que uma simples união de dois métodos. É uma construção de um método científico único que utiliza técnicas rigorosas e diferenciadas para obtenção de dados, com o objetivo de responder ao problema inicial e possibilitar uma intervenção social. 4.1 Coleta de dados Para melhor sistematização da pesquisa, a coleta dos dados foi feita em etapas, visando à concretização dos objetivos propostos e é minuciosamente descrita a seguir. 4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município A busca de dados quantitativos justificou-se pelo fato de o município não ter registros dos casos de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes e porque se considerou imprescindível conhecer a magnitude do fenômeno, suas dimensões e especificações locais. Inicialmente, foram realizados levantamentos, nos últimos cinco anos, dos casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes (de três a 17 anos), na Prefeitura de Matozinhos. A separação da faixa etária fundamentou-se no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (MINAS GERAIS, 2012), que considera crianças aquelas de até 12 anos incompletos e como adolescentes aqueles entre 12 e 18 anos. No entanto, para este trabalho consideraram-se crianças a partir de três anos, visto que esta é a idade mínima estabelecida pelo Ambulatório de Saúde Mental Infanto-juvenil para atendimento psicológico. 70 A busca pelos casos de tentativas de suicídio foi realizada no setor de epidemiologia do município, nos prontuários do pronto-atendimento (PA) do município (serviço de urgência onde eles eram atendidos e internados) e também do Ambulatório Infanto-juvenil (local onde faziam acompanhamento psicológico após alta da internação). É importante ressalvar que o Ambulatório Infanto-juvenil foi criado em 2009, o que, por si só, define os três últimos anos como o período de coleta dos dados, nesse cenário. Essa coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou no final de maio. O primeiro local pesquisado foi o Ambulatório Infanto-juvenil. Foram verificadas aproximadamente 400 fichas, o que corresponde a todos os casos existentes no serviço, desde sua implantação. As fichas tinham os dados pessoais das crianças e adolescentes, local de encaminhamento e queixa inicial. O critério de seleção para a pesquisa foram os casos que tinham como queixa inicial a tentativa de suicídio, assim como casos que estavam em atendimento cujos sujeitos cometeram o ato durante o tempo de atendimento, mesmo que a demanda primária tenha sido outra. Após a leitura exaustiva dos prontuários e a coleta dos dados das crianças e adolescentes e das características e demais informações sobre a tentativa de suicídio, partiu-se para a busca no PA: porta de entrada das urgências e emergências. Nesse intervalo, foram solicitados aos profissionais do setor de epidemiologia dados sobre os casos de tentativa de suicídio registrados no município nas Fichas do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Foram entregues registros apenas de 2011 e 2012, pois relataram que eram os únicos existentes. No PA, as fichas estavam em um arquivo e foi permitido total acesso. As pessoas que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para posterior triagem (pré-consulta) com os profissionais de enfermagem, que avaliarão cada caso de acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são repassadas para o médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com risco de morte, são primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências burocráticas. 71 Algumas intercorrências fizeram-se presentes e percebeu-se a necessidade de registro das atividades de coleta de dados em um diário de campo. Os prontuários estavam em caixas-box que continham, cada uma, cerca de 1.100 fichas: em 2008 verificaram-se 25 caixas; em 2009 foram 28; em 2010 foram 21; em 2011 foram 27; por fim, em 2012 foram 24 caixas. Totalizando, a leitura foi de aproximadamente 137.500 prontuários (DIÁRIO DE CAMPO, fev. 2013). Ressalta-se que uma caixa estava vazia (2009) e que algumas fichas estavam com dados incompletos, letra ilegível e informando que o paciente foi embora antes de ser atendido pela triagem. O critério de inclusão foram todas as fichas apresentaram hipótese diagnóstica de tentativa de suicídio ou outras descrições que sugeriam tal fato, baseado nas orientações do CID (X60-X84 – lesões autoprovocadas intencionalmente). Todos esses dados foram organizados em planilha do Excel para posterior análise pelo Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0. Todas as informações recolhidas nas diversas fontes de dados foram categorizadas da seguinte forma: 1. Fonte dos dados: PA, Ambulatório, SINAN 2. Local de nascimento 3. Data de nascimento 4. Idade: 3 a 18 anos 5. Bairros 6. Data da tentativa de suicídio: 2008 a 2012 7. Tipo de tentativa de suicídio: corte, intoxicação, queimadura, eletrocussão, enforcamento, queda / precipitação 8. Local de origem 9. Classificação dos casos: casos com CID; casos sem CID, mas escritos por extenso; casos com outro CID, mas escritos por extenso; casos suspeitos sem CID; casos suspeitos com outro CID. 10. Procedimentos adotados 11. Encaminhamentos feitos 12. Reincidências 13. Gravidez 72 Foram investigadas as frequências simples e realizados alguns cruzamentos de dados para melhor análise e visualização do problema. 4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos Esse momento foi importante e necessário para estabelecer uma “[...] articulação das informações compreensivas com dados quantitativos sobre os fenômenos, buscando responder a questões da prática [...]” (MINAYO, 2006, p. 113). Ouvir os sujeitos que tentaram suicídio é trazê-los para a cena e retirá-los da invisibilidade em que se encontram. Assim, foram coletados os dados qualitativos por meio de grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças: A) Grupo focal com adolescentes Houve certa dificuldade para contatar os sujeitos. No primeiro momento foram enviadas cartas-convites para as casas das crianças e adolescentes aos cuidados destes e seus responsáveis para se encontrarem com a pesquisadora em dia e local agendado. As cartas foram entregues pelos agentes de saúde do município, que informaram a mudança de endereço de três famílias. A escolha desses sujeitos considerou a data de nascimento, pelo menos dois de cada idade, e pelo menos um representante de cada tipo de tentativa de suicídio, incluindo os casos suspeitos cuja intencionalidade apresentava-se mais explícita. Dos 40 sujeitos convidados por meio de cartas, apenas uma criança e um adolescente compareceram com os responsáveis, deixando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado. Outra estratégia então foi pensada: consideraram-se todas as crianças e adolescentes que tinham número de contato. A pesquisadora ligou para 30 adolescentes, explicou sobre a pesquisa e agendou encontros individuais para a assinatura no TCLE: três não aceitaram o convite, uma mudou de município (para Ribeirão das Neves), em 13 o telefone não existia ou estava fora de área e os demais aceitaram e se comprometeram com o 73 encontro, mas apenas quatro apareceram para a assinatura no TCLE. Foram feitos novos contatos, sem sucesso. Totalizaram-se cinco adolescentes. Desta forma, foi alcançado o número mínimo para a realização do nosso grupo focal. Os GFs são grupos de discussão que dialogam sobre um tema em particular, ao receberem estímulos apropriados para o debate. Essa técnica distingue-se por suas características próprias, principalmente pelo processo de interação grupal, que é uma resultante da procura de dados (RESSEL et al., 2008, p. 780, grifo do autor). A escolha por essa técnica de coleta de dados justifica-se pela necessidade de se ouvirem as concepções, pensamentos e sentimentos desse público e dialogar sobre a tentativa de suicídio no município. Afinal, de acordo com Lervolino e Pelicioni (2001, p. 116), o “[...] grupo focal tem como uma de suas maiores riquezas basear-se na tendência humana de formar opiniões e atitudes na interação com outros indivíduos”. Complementando esses dizeres, Lervolino e Pelicioni (2001, p. 116, grifo do autor) explicitam que: Os procedimentos qualitativos têm sido utilizados quando o objetivo do investigador é verificar como as pessoas avaliam uma experiência, ideia ou evento; como definem um problema e quais opiniões, sentimentos e significados encontram-se associados a determinados fenômenos. O diálogo, os estímulos e o processo de interação nos grupos focais respeitaram seus sujeitos e buscaram preservar a integridade física, psíquica e moral de cada um. O grupo encontrou-se em um sábado pela manhã (23/11/2013), no salão paroquial do município (espaço cedido pelo padre), conforme disponibilidade de todos. Apresentaram-se quatro adolescentes, sendo que um chegou um pouco atrasado e o pai de um outro foi para explicar a ausência do jovem, que resolveu não comparecer ao encontro agendado. Após a acolhida do grupo, cada um fez uma apresentação rápida, dizendo nome, idade e bairro em que mora. Em seguida, a pesquisadora apresentou uma figura 74 e pediu que olhassem com calma e pensassem o que significava: era o mapa da cidade. A partir desse momento o grupo seguiu, quase espontaneamente, o roteiro de questões que abordavam temas sobre a visão e relação com município, com amigos, familiares e com a VIDA (APÊNDICE A – Roteiro de Grupo Focal com Adolescentes). As conversas foram gravadas e também se contou com a presença de um observador externo que relatou as impressões verbais e não verbais do grupo. Ao final, houve o agradecimento da pesquisadora, o convite para um lanche e o ressarcimento dos gastos com deslocamento. Concernente ao papel do pesquisador no grupo, tem-se como premissa que: A pesquisa é vista como prática social que apreende as determinações econômicas, sociais e políticas, sendo a possibilidade de desvelar as contradições a causa responsável pelas mudanças sociais. Sendo assim, a atitude do pesquisador dialético não é a de um sujeito cognoscente que simplesmente examina objetos, mas de um sujeito que age objetiva e praticamente a partir das condições que o rodeiam (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153, grifo do autor). Nessa relação intersubjetiva com os integrantes do grupo focal foram colhidos dados necessários para a apreensão dos motivos/problema da tentativa de suicídio. A discussão em grupo teve, em segundo plano, caráter mobilizador para proporcionar reflexão e uma ação acerca desse problema de saúde pública. B) Método criativo sensível com crianças No caso das crianças, como apenas uma compareceu ao encontro agendado por meio das cartas-convites, a pesquisadora buscou 23 crianças cujo contato estava nas fichas pesquisadas. Ligou para os responsáveis e não foi possível falar com 10 famílias porque o telefone não existia ou estava fora de área. Uma criança mudou-se para Vespasiano para morar com a mãe e as demais foram convidadas por intermédio de seus responsáveis, que se comprometeram a encontrarem-se com a pesquisadora dias antes da realização do encontro para assinarem o 75 TCLE, mas apenas quatro cumpriram o combinado. Totalizaram-se cinco crianças para participação da pesquisa pelo método criativo sensível. O método criativo sensível (APÊNDICE B) foi criado pela pesquisadora Cabral, no século XX, em sua tese de doutorado em Enfermagem, no estado do Rio de Janeiro. Essa inovação foi baseada nas teorias de Paulo Freire (método críticoreflexivo) e René Barbier (criatividade e sensibilidade) e caracteriza-se pela confluência das singularidades dos sujeitos em uma experiência coletiva (GAUTHIER et al., 1998). Segundo Gauthier et al. (1998, p. 177,187), o método criativo sensível é a “[...] junção de estratégias e métodos de interação grupal [...] com métodos já consolidados de pesquisa e de educação [...]”. É uma tríade entre a “[...] discussão de grupo, observação participante e dinâmicas de criatividade e sensibilidade/produção artística [...]”. A riqueza dos encontros grupais não é novidade, mas a inclusão da criatividade e da produção artística na coleta de dados e o compartilhamento e construção de conhecimentos com crianças torna esse método propício à realização e validação de trabalhos qualitativos com temas tão complexos: tentativa de suicídio infantojuvenil. A reunião da ciência e da arte torna o método peculiar, pois proporciona ao sujeito participante da pesquisa a expressão da sua criatividade e sensibilidade de maneira espontânea. Desta forma, “[...] as produções artísticas deixam transparecer o imaginário, [...] apontando as contradições [...]” (GAUTHIER et al., 1998, p. 179). Gauthier et al. (1998, p. 191) propõem que o método criativo sensível seja concretizado em cinco momentos: a) Organização b) Apresentação c) Explicação da dinâmica d) Trabalho individual e enunciação da experiência individual no plano coletivo e) Coletivização e análise dos dados 76 O encontro com as crianças aconteceu em um sábado (23/11/2013), no salão paroquial do município, durante a tarde. Apenas três crianças compareceram. O pai de uma ligou e justificou a ausência devido à falta do transporte coletivo. Apesar de a autora propor cinco momentos para aplicação do método e incluir a análise dos dados nessa estrutura, decidiu-se inovar. O encontro foi realizado em seis momentos e a análise dos dados não foi incluída nesta fase. Primeiramente, elas foram acolhidas e fez-se a apresentação; no segundo momento, foi explicado às crianças o funcionamento da dinâmica proposta e as suas duas fases distintas e complementares, apresentando as questões norteadoras: Primeira fase: entregou-se uma folha A4 com o limite territorial do município de Matozinhos e foi perguntado se eles conheciam a figura. Depois foi solicitado que respondessem, de forma criativa, as questões a seguir: 1 - Como é morar aqui em Matozinhos? 2 - O que você gosta de fazer e com quem? Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram. Segunda fase: entregou-se uma folha A3 e pediu-se que expressassem seus sentimentos de forma livre e criativa, baseados nas questões a seguir: 3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste? 4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer? 5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer? Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram. Após o esclarecimento da dinâmica, partiu-se para a composição das produções e foram disponibilizados os seguintes materiais: lápis de cor e de escrever, borracha, giz de cera, canetinha, o mapa do município na primeira fase e folha A3 na segunda fase. Encerradas as produções, partiu-se para o momento de compartilhar, ocasião em que as crianças apresentaram e discutiram sobre suas criações temáticas. 77 Esse momento foi feito nas duas fases do encontro e após a segunda foi pedido às crianças que fizessem uma avaliação do encontro como forma de conclusão daquele trabalho, fechamento daquele grupo. Em seguida, procedeu-se ao momento de descontração, no qual foi oferecido um lanche e as crianças ficaram à vontade. Todo o encontro foi gravado com prévia autorização dos responsáveis no TCLE e também se contou com a colaboração de um observador para registro das linguagens não verbais e de expressões significativas das atividades práticas. Os responsáveis também foram ressarcidos dos gastos com transporte. 4.2 Aspectos éticos Esta pesquisa foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário UNA (CEP/UNA) para análise e deliberação. Sua aprovação aconteceu em dezembro/2012 e a coleta de dados só foi iniciada após geração CAAE 11451412.2.0000.5098 (ANEXO A). Conforme as deliberações da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, esta pesquisa seguiu todos os aspectos éticos envolvendo seres humanos e resguardou os sujeitos, garantindo o anonimato e a confidencialidade dos dados no TCLE. Os TCLEs, em número de três, um para cada segmento de sujeitos, foram assinados antes de dar-se início à coleta dos dados (APÊNDICES C, D, E). 78 5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS Por tratar-se de uma pesquisa quantiqualitativa desmembrada em dois momentos distintos, mas complementares, optou-se por descrever e analisar os resultados obtidos de forma separada e ao concluir fazer a junção e relação entre o que foi observado nas etapas. 5.1 Pesquisa quantitativa Os dados objetivos coletados foram submetidos à tabulação manual e analisados por meio do programa SPSS versão 19.0, privilegiando as frequências simples dos indicadores: fonte dos dados, faixa etária, bairro, tipo de tentativa de suicídio (agregado e desagredado), classificação dos casos, data da tentativa de suicídio, procedimentos, encaminhamentos, reincidência e gravidez. Também foi realizado o cruzamento desses indicadores para verificar relação possível entre os dados coletados. Ressalta-se que o local e a data de nascimento, assim como o local de origem, foram encontrados apenas nos prontuários do Ambulatório Infanto-juvenil. Desta forma, optou-se por excluí-los da análise de dados. As fontes municipais de dados foram: Ambulatório Infanto-juvenil, PA e SINAN, ressaltando-se que alguns casos foram encontrados em mais de um local. A faixa etária variou de três a 18 anos e foram abordados apenas os bairros que apareceram nos prontuários analisados. O Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009. As crianças e adolescentes são encaminhadas formalmente para o serviço de saúde mental, para serem acolhidas e, posteriormente, se for o caso, atendidas pela psicóloga. Só são atendidas aquelas pessoas que apresentem quadro de sofrimento psíquico intenso, casos considerados de média complexidade. Quando acolhidas, o profissional preenche uma ficha com os dados pessoais, queixa inicial descrita no encaminhamento, local de origem, impressões e conduta adotada. 79 Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do atendimento. Por esse motivo, têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as duas situações, mas em menor número. Quanto ao tipo de tentativa de suicídio, separou-se de forma agregada, ou seja, grupos descritos conforme CID (X60-X84 – lesões autoprovocadas intencionalmente) que estavam presentes nos casos verificados e que englobavam todas as ocorrências: corte, corte e intoxicação, intoxicação, eletrocussão, enforcamento, queda/precipitação, queimadura, outros e não especificado. Ao desagregar citaram-se, detalhadamente, todas as tentativas de suicídio encontradas. Como havia grande diversidade de apresentação dos fatos nos prontuários pesquisados, optou-se por classificar os casos encontrados da seguinte forma: casos com CID, casos com outro CID, mas escritos por extenso, casos sem CID, mas escritos por extenso, casos suspeitos com outro CID e, por fim, casos suspeitos sem CID. Os casos suspeitos são aqueles em que não há dados suficientes para verificar a intencionalidade e também situações nas quais foram registradas apenas as consequências de determinado ato. Os procedimentos adotados nem sempre estavam descritos nas fichas, mas foi possível inferir as seguintes categorias: alta, contato com Hospital João XXIII, outro, sem informação. Os encaminhamentos realizados também não foram expressos em todos os prontuários, mas citaram-se: Ambulatório, Centro de Atenção Psicossocial CAPS, Psiquiatra, Psicologia, outro, sem informação. A reincidência e a gravidez também foram registradas em poucos casos. A coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou em maio do mesmo ano. Foram analisados aproximadamente 137 mil prontuários ao total e, destes, 80 apenas 185 casos encontrados de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes, conforme a TAB. 1. TABELA 1 - Fontes dos dados % N % Ambulatório Infanto-juvenil 13 7,0 7,0 PA 160 86,5 93,5 SINAN 2 1,1 94,6 PA e Ambulatório Infanto-juvenil 8 4,3 98,9 PA, Ambulatório Infanto-juvenil e SINAN 2 1,1 100,0 185 100,0 Total acumulado SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; PA: Pronto-atendimento. É importante ressaltar que os dados coletados incluíram os últimos cinco anos. No entanto, o Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009 e no setor de Epidemiologia só havia fichas SINAN de 2011 e 2012. Outra questão importante a ser salientada é que há precariedade de informações nos prontuários analisados e também houve subnotificação. De acordo com Silva e Maeta (2010), a notificação é um instrumento complexo e poderoso que possibilita a ação da vigilância epidemiológica, a intersetorialidade, a organização da rede dos serviços de saúde, além de ser uma ferramenta que garante os direitos básicos constitucionais. Quanto à intersetorialidade entre os serviços de saúde do município, percebe-se que apenas 10 casos foram acolhidos ou registrados em mais de um serviço. Ao analisar o perfil das pessoas que tentaram suicídio em Matozinhos, tabulou-se por idade, sexo e tipo de tentativa. Outros dados, tal como a associação com a gravidez, foi irrisória, apresentando o registro de dois casos; e a taxa de reincidência das tentativas foi de aproximadamente 5%, ou seja, foi obtida em 10 casos (ALVES; CADETE, 2013). Geralmente, a taxa de reincidência é baixa e apenas em estudos de Santos et al. (2009) e Feijó et al. (1996) foram encontrados percentuais elevados: 51 e 53,8%, respectivamente. 81 Quanto às faixas etárias, foi encontrado elevado número de casos entre adolescentes, mas a expressiva quantidade de tentativas entre pessoas até cinco anos de idade desconstrói o mito de que criança não tenta suicídio. No entanto, destaca-se que em nenhum dos prontuários infantis (três a 11 anos) havia registro explícito de tentativa de suicídio, eram todos casos suspeitos. Nenhum artigo brasileiro foi encontrado disponível nas bases de dados brasileiras, que versasse especificamente sobre o público infantil. Alguns trabalhos classificaram adolescentes em diferentes faixas etárias, que variaram de 10 a 29 anos, conforme revisão integrativa realizada (ALVES; CADETE, 2013). TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram suicídio entre 2008 e 2012 N % Até 5 anos De 6 a 9 anos De 10 a 14 anos De 15 a 18 anos 33 13 49 88 17,8 7,0 26,5 47,6 % acumulado 17,8 24,9 51,4 98,9 Sem informação 2 1,1 100,0 185 100,0 Total Foram 107 casos com pessoas do sexo feminino - sendo que de duas não havia informação sobre idade - e 78 do sexo masculino. TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram suicídio entre 2008 e 2012 Idade Sexo Feminino Masculino % 3 a 11 21 38 32% 12 a 18 84 40 67% Sem informação 2 Total 107 1% 78 100% Nas crianças, o sexo que prevalece é o masculino, mas na adolescência há uma inversão e as meninas superam. Interessante observar que na adolescência o 82 número de meninas que tentaram suicídio é mais que o dobro dos meninos e os casos totais que ocorreram entre 12 e 18 anos são 35% a mais que os infantis. Esse predomínio feminino nas tentativas de suicídio na adolescência coincide com pesquisas já realizadas por diversos autores, conforme revisão integrativa de literatura brasileira das últimas décadas! (ALVES; CADETE, 2013). A contribuição desta pesquisa está justamente nos dados infantis, que são pouco encontrados nos estudos realizados, e descobriu-se que não seguem a tendência “feminina” da adolescência, representando 32% dos casos registrados. Baseado na classificação das lesões autoprovocadas intencionalmente descritas na CID, foi possível listar os tipos de tentativa de suicídio que apareceram no município de Matozinhos. TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 2008-2012 % N % Corte 21 11,4 11,4 Corte e intoxicação 2 1,1 12,4 127 68,6 81,1 Eletrocussão 1 ,5 81,6 Enforcamento 1 ,5 82,2 Queda / Precipitação 8 4,3 86,5 Queimadura 18 9,7 96,2 Outros e não especificado 7 3,8 100,0 185 100,0 Intoxicação Total acumulado Constatou-se que o maior número de registros indicou a intoxicação, seguida de corte e queimadura. Este dado confirmou observação feita pela psicóloga do serviço, que destacou o uso de chumbinho e medicação, principalmente, pelos adolescentes, para tentativa de morte. E também vai ao encontro dos resultados registrados na literatura brasileira sobre o assunto, que afirma que o envenenamento é, geralmente, a forma eleita e o que varia é a escolha entre 83 medicamentos e pesticidas (ALVES; CADETE, 2013). Na categoria outros encontraram-se: ingestão de objetos, descrições ilegíveis e casos não especificados. Ao detalhar melhor essas categorias, percebe-se que intoxicação por medicamento, álcool/droga, agentes tóxicos e chumbinho são os métodos mais utilizados. Nas queimaduras destacam-se as categorias outras, que não apresentam a substância que ocasionou a lesão, sendo a água e o álcool também utilizados. Estudo brasileiro realizado por Leão et al. (2011) especificamente com tentativas de suicídio por queimaduras revelou que a forma mais utilizada é pelo álcool. Nos cortes, a não especificação do objeto utilizado também lidera, juntamente com a faca e o vidro. As quedas apresentam oito casos e, entre eles, é imprescindível citar a precipitação de um adolescente de um carro em movimento para exemplificar a categoria. Detectou-se a escolha por mais de um meio para tentar suicídio, mas de forma não muito expressiva, apenas sete casos. 84 TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos, 2008-2012 % Corte e intoxicação % acumulado N 1,1 Eletrocussão 1 ,5 1,6 Enforcamento 1 ,5 2,2 Queda / precipitação 8 4,3 6,5 Outros e não especificado 7 3,8 10,3 Corte - vidro 3 1,6 11,9 Corte - faca 4 2,2 14,1 Corte - gilete 1 ,5 14,6 Corte - não especificado 13 7,0 21,6 Intoxicação - medicamento 49 26,5 48,1 Intoxicação - medicação + álcool 1 ,5 48,6 Intoxicação - álcool / droga 32 17,3 65,9 Intoxicação - planta 5 2,7 68,6 Intoxicação - chumbinho 7 3,8 72,4 Intoxicação - chumbinho + medicação 3 1,6 74,1 Intoxicação - outro 4 2,2 76,2 Intoxicação - agente tóxico 25 13,5 89,7 Intoxicação e lesão por arma de fogo 1 ,5 90,3 Queimadura álcool 3 1,6 91,9 Queimadura água 4 2,2 94,1 Queimadura óleo 1 ,5 94,6 Queimadura gordura 1 ,5 95,1 Queimadura outros 9 4,9 100,0 185 100,0 Total Quando se cruzam os dados dos tipos de tentativa de suicídio e a faixa etária, constata-se que as crianças até cinco anos optam pela autointoxicação, seguida do corte. Aquelas que possuem seis a nove anos ficam divididas entre a intoxicação, a queda/precipitação e a queimadura de forma bastante equilibrada. Na faixa etária de 10 a 14 anos é expressiva a escolha pela autointoxicação e em 85 menor número a queimadura e o corte. Já os adolescentes de 15 a 18 anos optam pela autointoxicação, de forma quase unânime. TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012 Faixa etária Corte Até 5 De 6 a anos 9 anos 15,2% 15,4% Corte/ intoxicação Intoxicação Tipo de tentativa agregada 72,7% 23,1% Eletrocussão De 10 De 15 a 14 a 18 anos anos 10,2% 10,2% 11,4% 2,0% 1,1% 1,1% 61,2% 77,3% Sem informação 100,0% 2,0% Enforcamento Total 68,6% ,5% 7,7% ,5% Queda/ precipitação 3,0% 23,1% 6,1% 1,1% 4,3% Queimadura 9,1% 23,1% 12,2% 6,8% 9,7% 7,7% 6,1% 3,4% 3,8% Outros e não especificado Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Devido aos incipientes registros contidos nas Fichas Ambulatoriais - com poucas informações e, quando presentes, não são detalhadas - e a ausência de dados importantes, optou-se por classificar os dados encontrados da seguinte forma, conforme explicitado anteriormente: casos com CID; casos com outro CID, mas escritos por extenso; casos sem CID, mas escritos por extenso; casos suspeitos com outro CID, casos suspeitos sem CID. Trata-se de um problema recidivo e generalizado, também reafirmado por Minayo et al. (2003) ao tecerem críticas às estatísticas hospitalares, devido à falta de qualidade de suas informações. Contudo, apesar de se saber da precariedade dos dados, é o melhor lugar para realização de pesquisas sobre essa temática, pois concentra as informações necessárias. Afinal de contas, o hospital ou PA são a porta de entrada para casos de urgência. E a forma encontrada para 86 sistematizar as precárias e controversas informações recolhidas foi agrupando todos os casos encontrados (TAB. 7). TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio, Matozinhos, 20082012 % N % Caso com CID 1 ,5 ,5 Caso com outro CID, mas escrito por extenso 6 3,2 3,8 Caso sem CID, mas escrito por extenso 34 18,4 22,2 Caso suspeito com outro CID 62 33,5 55,7 Caso suspeito sem CID 82 44,3 100,0 Total 185 100,0 acumulado Apreende-se que apenas um caso apresentou CID correspondente aos descritos como lesões autoprovocadas intencionalmente (X60-X84) e foi uma ficha recolhida no setor de epidemiologia registrado no SINAN. Os outros três casos, também registrados no sistema, ou não apresentavam CID ou continham outro que não era condizente com o evento; descreviam apenas a lesão. Esses dados evidenciam subnotificação dos casos pelos profissionais de saúde. Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se implicarem? Ou na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo impessoal, pela tradição e pela inautenticidade? Não se pode esquecer que os profissionais de saúde são, antes de tudo: sujeitos biopsicossociais. A profissão carrega consigo o peso de “salvar vidas”, mas daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça de morte. No entanto, a dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que esses sujeitos e também profissionais de saúde percebam uma urgência na pessoa sadia que escolheu morrer. 87 A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty (1999): “eu não tenho corpo, eu sou o corpo”. Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte nos pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e mais que isso: escutá-lo! Claro que merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional. A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito para além de sua lesão. Tentar compreender o todo! Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam. Em recente estudo de Santos et al. (2012), apesar do foco de investigação ser outro, conclui-se que há sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que este é suprimido, de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. E Afonso (2013) vai um pouco mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o Morrer”, acentuando que o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a morte e que tanto os médicos como os demais profissionais de saúde que estão inseridos nesse quadro não sabem lidar com essa situação na relação com o sujeito que precisa e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam sobre a própria morte e que usem do processo empático e se coloquem no lugar daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato praticado ou sofrido por determinada pessoa. 88 Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de “[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os profissionais de saúde respeitem as diferenças e as necessidades do sujeito (BRASIL, 2004b, p. 02). Machin (2009) realizou pesquisa em um hospital público de São Paulo com profissionais de saúde que lidam com situações de lesões autoprovocadas e apurou também, além da subnotificação, a estigmatização desse público por causa da sua escolha afetando (fragilizando) a dimensão do cuidado. E identificou a necessidade do resgate da verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao trabalho da autora outras duas questões: ruptura de paradigma (visão global desse sujeito que sofre), humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e escuta do sujeito que sofre. Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o acolhimento universal, equânime e integral (COMBINATO; QUEIROZ, 2006). A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a inexistência do problema. Logo, pouco investimento financeiro, político e social na construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência que se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação e se embravece com algumas características do que está posto e ambiciona transcendê-las. Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar pela inseparabilidade do sujeito e dos serviços de saúde. 89 Conforme a TAB. 7, em Matozinhos houve 41 casos declarados de tentativa de suicídio e 144 suspeitos. Elegeram-se como casos suspeitos aqueles em que há uma lesão característica da tentativa de suicídio, porém não há explicitação da intencionalidade da criança ou adolescente e esse fato impossibilita a afirmação sem a escuta prévia dos sujeitos. Um dos aspectos mais complexos da definição é a questão da intencionalidade. Dois pontos importantes devem ser observados aqui. Em primeiro lugar, mesmo a violência sendo distinta de eventos não intencionais que resultam em lesões, a presença de uma intenção de usar a força não necessariamente significa que houve uma intenção de causar dano. Na verdade, pode haver uma grande disparidade entre o comportamento pretendido e a consequência pretendida. Um perpetrador pode cometer intencionalmente um ato que, por padrões objetivos, é considerado perigoso e com alta possibilidade de resultar em efeitos adversos à saúde, mas o perpetrador pode não perceber seu ato dessa forma (KRUG et al., 2002, p. 5). Já na TAB. 8 os casos de crianças até cinco anos são, em sua totalidade, suspeitos com ou sem CID. Na faixa etária de seis a nove anos, admite-se uma pequena porcentagem de tentativas de suicídio, mas é inferior a 10%. Na faixa etária de 10 a 14 anos, têm-se 32,6% de casos declarados e o fato curioso é que nos adolescentes de 15 a 18 anos esse número reduz-se para 27,2%. Seria razoável que esse número aumentasse visto que há uma mitificação de que criança não tenta suicídio. No entanto, quando se considera a faixa etária 10 a 14 anos, incluem-se crianças de 10 e 11 anos e adolescentes de 12, 13 e 14. Desta forma, pode-se inferir que à medida que a idade aumenta torna-se mais explícito o fenômeno. 90 TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012 Faixa etária Classificação dos casos categorizada Até De 6 a De 10 a 5 anos 9 anos 14 anos Caso com CID De Sem Total 15 a 18 informaanos ção 1,1% ,5% 6,1% 3,4% 3,2% 7,7% 26,5% 22,7% 18,4% 33,5% Caso com outro CID, mas escrito por extenso Caso sem CID, mas escrito por extenso Caso suspeito c/outro CID 42,4% 23,1% 24,5% 37,5% Caso suspeito sem CID 57,6% 69,2% 42,9% 35,2% Total 100,0% 100,0% 100,0% 44,3% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Quando se associam as porcentagens dos tipos de tentativa com a classificação dos casos, detecta-se que 77,8% são suspeitos. E com exceção do enforcamento, que foi apenas um episódio, e do corte e intoxicação, todos os outros tipos apresentam seu maior quantitativo nos casos suspeitos. 91 TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos, 2008-2012 Tipo de tentativa – agregada Classificação dos Corte e casos categorizada Corte intoxica- Intoxica- Eletrocus- Enforcação ção Casos com CID são mento Queda / Outros e precipita- Queimação dura Total não especificado ,8% ,5% 4,7% 3,2% Caso com outro CID, mas escrito por extenso Caso sem CID, mas escrito por extenso Caso suspeito com outro CID Caso suspeito sem CID Total 9,5% 50,0% 19,7% 23,8% 50,0% 30,7% 66,7% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 44,1% 100,0% 100,0% 100,0% 71,4% 37,5% 72,2% 33,5% 62,5% 27,8% 28,6% 44,3% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Para melhor esclarecer o que foi citado em cada categoria de classificação dos casos, será descrita e exemplificada cada uma delas, logo a seguir. A) Caso com CID (X60-X84) Foi encontrado apenas um caso registrado em novembro de 2012 no SINAN, de uma adolescente de 17 anos que tomou medicamentos e o diagnóstico foi X64 – autointoxicação por exposição, intencional, a outras drogas, medicamentos e substâncias biológicas e às não especificadas. B) Casos com outro CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte) Nos casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram encontradas, entre outras, as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool - síndrome de dependência). 18,4% 92 Destaca-se que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas de morte e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os códigos dos capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa de morbidade e de mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível, deve-se eleger como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX) (CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008). Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para hipótese diagnóstica e eles estão “presos, limitados” nas consequências dos atos praticados, ou seja, veem apenas a lesão, fratura, intoxicação. Assim sendo, não chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o procedimento se limitará à “sutura” e a hipótese diagnóstica será “ferimento de região não especificada do corpo” (grifo nosso). C) Casos sem CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte) Nesta categoria está contido o maior número de casos declarados como tentativa de suicídio. Os profissionais de saúde registram por extenso o fato ocorrido, mas não o classificam como lesão autoprovocada intencionalmente. São indícios de uma atitude profissional aética, irresponsável, imprópria e indigna para com o sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que impossibilita ações e procedimentos que garantam a integralidade do cuidado. Sabe-se que as necessidades de ações de saúde, como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, delineiam um sentido da integralidade. Outra hipótese aventada é o fato de o profissional não querer se implicar, tomar decisões que convocam outras ações que demandam assumir o sujeito em seu sofrimento com implicações outras como referências, discussão de caso clínico em rede, compartilhamento de informações e outras ações e cuidados que vão além da simples “sutura” corriqueira. 93 D) Casos suspeitos com outro CID Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com outro CID. Caso 1 – Adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa: “Intoxicação exógena por “chumbinho” há 3 horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada). A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não especificada”? Este caso não é exceção, pois vários outros com essa incoerência foram encontrados nas fichas. Caso 2 – Criança de 04 anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa: “Começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas das vias aéreas inferiores). Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo, equânime e igualitário? Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é, há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é corporificada (OMS, 2006). Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de 94 álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta), T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não especificada), J.22 (infecções agudas não especificadas das vias aéreas inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de estomatite). Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de PA do município. Afinal, o que é tentativa de suicídio para os profissionais de saúde de Matozinhos? E) Casos suspeitos sem CID No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se mais dois casos: Caso 1 – Criança de 05 anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa: “Corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado. Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o fato pode ter sido apenas “acidental”. Ressalta-se, porém, uma possível negligência que deve ser também escutada. No entanto, diante da omissão expressa nos outros relatos esse discurso não deve ser aceito como verdade imediatamente; é preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios sujeitos sua versão sobre os atos praticados. 95 Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado. Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social tornase impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao não descreverem a classificação de tal problema. Sobressai, também, que não há registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como este adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo corte no pulso é absolutamente inaceitável. A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID”, e sim em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de consolo para lidar com o horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa acepção, Combinato e Queiroz (2006, p. 210) expõem que, apesar de ser um fato natural, “para o homem ocidental moderno a morte passou a ser sinônimo de fracasso, impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou prevenir torna-se “desnecessário”. Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde, quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em metrópoles. 96 Nas TAB. 10 e 11 encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando a “não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito. TABELA 10 – Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos, 20082012 % N % 164 88,6 88,6 Ambulatório 2 1,1 89,7 CAPS 5 2,7 92,4 Outro 9 4,9 97,3 Psiquiatria 3 1,6 98,9 Psicologia 2 1,1 100,0 185 100,0 Não se aplica/sem informação Total acumulado Pensando em trabalho em rede e intersetorialidade dos serviços, apenas 21 foram encaminhados para outros serviços de saúde e em 15 casos foi feito contato com a rede extensa para obter informações de como proceder no caso recebido, o que sugere duas coisas: não sabem como proceder diante de um caso de tentativa de suicídio e/ou estão interessados na discussão de caso clínico para melhor resolução do caso. TABELA 11 – Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio, Matozinhos, 2008-2012 % N % Alta 4 2,2 2,2 Contato com Hospital João XXIII 15 8,1 10,3 Outro 6 3,2 13,5 Não se aplica/sem informação 160 86,5 100,0 Total 185 100,0 acumulado 97 Curioso é que após a implantação do Ambulatório Infanto-juvenil os encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao encaminhamento implicado: como esses serviços se articulam? São intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do município? Percebem o sistema de forma integrada? Esses questionamentos indicam uma visão da fragmentação do sujeito como ser existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização pela vida. Ao analisar os dados ao longo do tempo, foi possível notar, conforme o GRÁF. 1, que no decorrer dos meses os casos de tentativa de suicídio e os casos suspeitos mantiveram certa regularidade nesse período de cinco anos. GRÁFICO 1 – Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no município de Matozinhos no período entre 2008-2012 98 Destacam-se os meses de julho, com o menor número de casos (sete), e de novembro, com a maior quantidade registrada (24 casos). É importante pontuar que, mesmo mantendo certo padrão, os resultados encontrados revelam maior concentração no segundo semestre (98 casos), conclusão também encontrada em um estudo realizado no Ceará em 2005, por Pordeus et al. (2009). Houve constância também no número de casos, perpassando média de 37 casos por ano, ou seja, três casos mensais, sendo que em 2009 foram registrados 33 casos e em 2012 o maior índice, com 44 casos. Em 2008 foram registrados 34 casos de tentativas, incluindo aqueles considerados suspeitos, sendo que 12 eram crianças de três a 11 anos e 22 adolescentes de 12 a 18 anos. Conforme o GRÁF. 2, só foram registrados casos de intoxicação e corte, sendo o último pouco expressivo. Junho e outubro não apresentaram registro algum. GRÁFICO 2 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2008 Foi quantificado, em 2009, o menor valor de casos, no entanto, a categoria de queimadura apareceu de forma pouco expressiva, mas superou o número de cortes. Nesse ano também prevaleceu a faixa etária dos adolescentes de 12 a 18 99 anos, com 21 casos, sendo quase o dobro das crianças (12 casos). Não houve registro no mês de março. GRÁFICO 3 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2009 No ano de 2010, a maioria dos casos também foi com adolescentes e repetiu a tendência dos anos anteriores. Houve mais destaque para as queimaduras no mês de novembro e as quedas/precipitações no primeiro semestre do ano. Houve pelo menos um caso em todos os meses do ano. 100 GRÁFICO 4 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2010 Fato curioso ocorreu em 2011, quando apenas seis crianças de três a 11 anos tentaram suicídio, em contraponto aos 32 casos de adolescentes. Outra observação importante é o aparecimento de novas modalidades de tentativas e também a junção de mais de um método. GRÁFICO 5 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2011 101 No último ano, não foi verificado algum caso no mês de fevereiro e a eletrocussão e o enforcamento não foram mais utilizados como forma de tentativa, mas houve a inclusão de instrumento mais letal: arma de fogo, que até o momento não havia aparecido. Apesar de ser inexpressivo numericamente, apresenta intensificação da letalidade dos instrumentos e formas utilizadas ao longo desse período. Foram 44 casos, sendo que 15 eram crianças e 29 adolescentes. GRÁFICO 6 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos registrados no ano de 2012 Em todos os gráficos apresentados anteriormente é possível perceber a prevalência de casos de intoxicação e que ao longo do tempo foram aumentando as categorias das formas como as crianças e os adolescentes tentaram suicídio, juntamente com seu poder de letalidade. Pode-se inferir que a procura por instrumentos e métodos “mais perigosos” ao longo desse período retrata uma busca incessante para serem vistos, escutados como sujeitos. Na busca pela compreensão do fenômeno de tentativa de suicídio infanto-juvenil nos últimos cinco anos, no município de Matozinhos, também foi possível situar espacialmente a ocorrência dos casos, localizando no território e fazendo o cruzamento com os tipos de tentativas cometidas e as idades. 102 FIGURA 6 – Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do município de Matozinhos – 2008 a 2012 Nesse mapa estão os casos com endereço completo e que foram localizados por meio do google maps. Nota-se que os casos de tentativa de suicídio infantojuvenil de Matozinhos ocorreram em diversos bairros do município, distribuídos quase que simetricamente dentro do território. No entanto, em alguns bairros houve mais frequência de casos: Bom Jesus, Cruzeiro, Florestal, São Miguel, Vista Alegre, Centro e Mocambeiro. Outra questão a ser considerada é que alguns poucos endereços registrados nas fichas dos serviços de saúde foram discordantes do programa de busca, mas isso não inviabiliza sua utilização, pois os casos foram encontrados em quase todo o território. Ao visualizar as ocorrências, conclui-se que a tentativa de suicídio infanto-juvenil é um fenômeno municipal e não se concentra em apenas um local específico. Os bairros que se destacaram têm características distintas e podem ser tomados como territórios para propostas de projetos pilotos, mas jamais se deve suprimir a dimensão global e esquecer que o fato está presente em todo o município. As tentativas de suicídio estão nas periferias e, também, no centro de Matozinhos. 103 Pires et al. (2012), Veras e Katz (2011), Souza et al. (2010), Botega et al. (2009) e Marcondes Filho et al. (2002) são alguns dos autores que incluíram a categoria renda ou classe social na construção do perfil dos sujeitos que tentaram suicídio e constataram que a maioria era de classe baixa ou média. Neste estudo não se avaliaram a renda ou classe social, mas se se considerar a infraestrutura e a localização dos bairros, pode-se abstrair que os casos abrangem todas as classes, visto que, com exceção das “Quintas das Fazendinhas” (área com grande concentração de sítios e fazendas), o Centro é uma área de expressivo valor imobiliário da região, pois possui todo o suporte disponível para o município. Optou-se por englobar os bairros Bom Jesus e Vista Alegre e suas respectivas subdivisões, visto que eles encontram-se muito próximos e a sua delimitação espacial é confusa. É como se fosse um bairro dividido em três partes. Conforme informações da TAB. 12, o bairro Bom Jesus, juntamente com suas divisões, representa 18,1% dos casos de intoxicação, seguido do Cruzeiro (15%), Florestal (13,4%) e Vista Alegre com “agregados” (9,4%). No Bom Jesus também ocorreu o maior número de casos de queda/precipitação. No Centro é alto o número de casos de queimadura, queda/precipitação e corte, este último expressivo também em Mocambeiro. No bairro São Miguel encontrou-se o único caso de eletrocussão e a quantidade de queimaduras é expressiva. É interessante observar em Bom Jesus II e em São Miguel o quantitativo de 28,6% de casos categorizados como outros ou não especificado. No Cruzeiro viu-se o único caso de enforcamento, que foi ouvido na pesquisa qualitativa. 104 TABELA 12 – Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 20082012 Bairro por tipo de tentativa Tipo de tentativa - agregada Corte e Bairros Corte Bom Jesus 4,8% Bom Jesus I 4,8% Bom Jesus II 9,5% Cruzeiro Florestal ção ção cussão mento 13,4% 50,0% 4,8% Precipitação Total Queimadura Outros 5,6% 14,3% 12,4% 1,6% 2,2% 3,1% 5,6% 100,0% 12,5% 28,6% 11,1% 4,9% 12,4% 13,4% 7,9% 4,8% Queda / 37,5% 15,0% São Miguel Vista Alegre intoxica- Intoxica- Eletro- Enforca- 9,7% 100,0% 5,5% 16,7% 12,5% 28,6% 8,6% 4,9% Vista Alegre I ,8% ,5% Vista Alegre II 3,1% 2,2% Centro Mocambeiro 19,0% 14,3% 3,9% 5,5% 12,5% 16,7% 7,0% 5,4% Quando se organizam as tentativas de suicídio por faixa etária distribuídas nos bairros com maior incidência, obtém-se que nos bairros Cruzeiro, Bom Jesus, Florestal e São Miguel concentram-se os casos daqueles com idades entre 10 e 18 anos (TAB. 13). No Centro, São Miguel, Bom Jesus, Cruzeiro e Florestal estão as ocorrências infantis de três a nove anos. 105 TABELA 13 – Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 2008-2012 Bairro por faixa etária Faixa etária Bairro Até 5 De 6 a 9 De 10 a De 15 a anos anos Bom Jesus 3,0% 15,4% Bom Jesus I 3,0% Bom Jesus II 3,0% Cruzeiro 9,1% Florestal 12,1% São Miguel 6,1% Vista Alegre 9,1% Sem Total 14 anos 18 anos informação 16,3% 13,6% 12,4% 2,0% 2,3% 2,2% 7,7% 6,1% 4,5% 4,9% 7,7% 8,2% 15,9% 4,1% 13,6% 9,7% 16,3% 4,5% 8,6% 6,1% 3,4% 4,9% Vista Alegre I 1,1% ,5% Vista Alegre II 4,5% 2,2% 2,0% 3,4% 7,0% 8,2% 5,7% 5,4% Centro 18,2% Mocambeiro 3,0% 15,4% 23,1% 50,0% 12,4% Em suma, esta primeira etapa da pesquisa abordou o perfil dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil de Matozinhos nos últimos cinco anos. Descobriu-se que 86,5% são acolhidos no PA e que esse serviço apresenta subnotificações e condutas profissionais insuficientes para atendimento ético e humano da demanda recebida. Foram realizados 21 encaminhamentos para a rede de saúde municipal e apenas um prontuário continha CID; a maioria dos casos foi considerada “suspeita” (77,8%). Seguindo os resultados encontrados nos diversos estudos brasileiros realizados, concluiu-se que a maioria daqueles que tentaram suicídio eram adolescentes, do sexo feminino e utilizaram a intoxicação como método (68,6%), com prevalência do uso da medicação. A média de casos por ano foi de 37, mantendo certa regularidade ao longo desses cinco últimos anos. Houve maior concentração no segundo semestre, mas não muito expressiva (53%), e também progressivo aumento da letalidade dos métodos escolhidos e utilizados para tentativa de 106 suicídio. E os casos foram bem distribuídos, territorialmente, mas nos bairros Cruzeiro, Bom Jesus, Florestal e São Miguel concentraram-se os adolescentes. A inovação deste trabalho reside na construção do perfil infantil de sujeitos que tentaram suicídio no município de Matozinhos. A maioria das crianças tem até cinco anos, é do sexo masculino e também escolhe a autointoxicação como método, concentrando-se no bairro Centro. Diante destas conclusões, justifica-se um encontro com os profissionais da rede de atenção e cuidado à criança e ao adolescente do município para discussão dos perfis encontrados e construção de fluxos de acolhimento e direcionamento dos casos de tentativa de suicídio, pensando em ações de prevenção e promoção de saúde. Neste sentido, a proposta de intervenção intersetorial prevê um curso de capacitação profissional participativo com os trabalhadores da rede de atenção e cuidado à criança e ao adolescente do município de Matozinhos, dividido em módulos e que ao final, prevê a construção de uma rede de apoio e fluxo de funcionamento de atendimento da demanda, das necessidades apresentadas pelos usuários. 5.2 Pesquisa qualitativa Os dados coletados por meio dos grupos focais e método sensível criativo foram transcritos, uma vez que se pediu autorização para gravar os depoimentos e discussões em grupos, com vistas à manutenção da fidedignidade das falas. Foram analisadas juntamente com o texto do relator. As produções criativas e sensíveis feitas pelas crianças foram recolhidas e digitalizadas para posterior avaliação, juntamente com o discurso do sujeito e o relatório do observador. Assim, de posse dos discursos, eles passaram pela análise de conteúdo baseada nos referenciais de Bardin (2010). Foram seguidas as três fases cronológicas sugeridas pela autora: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Deste modo, em um primeiro momento, foi feita a leitura flutuante de cada discurso oriundo dos grupos, com vistas à familiarização com o seu 107 conteúdo. Posteriormente, foram realizadas novas leituras para pinçamento das unidades de registro, ou seja, das frases ou parágrafos que respondem às questões estimuladoras da obtenção dos depoimentos. A partir da codificação de todo o material por meio dos recortes em unidades de registro, elas foram unidas por convergência e passou-se para a fase de interpretação ou análises reflexivas. A interpretação do conteúdo foi baseada em uma análise qualitativa que considera a presença ou ausência de características peculiares nos depoimentos dos sujeitos escutados. Os grupos foram analisados separadamente, demarcando as respectivas unidades de registro e categorias, resguardando-se a singularidade de cada discurso. Afinal, Bardin (2010) ressalta que não existe uma análise de conteúdo padronizada a priori. O que há é um conjunto de técnicas, de regras que servem apenas de base para realizar a investigação, mas que deve ser adaptável, deve ser reinventada a todo o momento para se adequar ao objeto estudado, pois a interpretação vai além da obviedade do que é dito pelo sujeito. A) Grupo focal com adolescentes O grupo focal foi realizado com quatro adolescentes na faixa etária de 14 a 19 anos, sendo duas meninas e dois meninos. Apenas uma menina não reside nos bairros que apresentaram maior número de casos. O jovem de 19 anos foi incluído no estudo porque no seu prontuário só havia registro da sua idade e não da data de nascimento, por isso, quando aceitou o convite revelou que tinha 19 anos, mas gostaria de participar. Dois tiveram a tentativa de suicídio registrada em 2010 e os outros em 2011 e todos por autointoxicação. Para preservar a identidade dos sujeitos, serão representados pela letra A, seguida de um número em ordem decrescente de acordo com a idade atual. A1 é um jovem de 19 anos. No seu prontuário constava que ele tentou suicídio tomando um vidro de medicação desconhecida, a mando das vozes. Foi acolhido pelo Ambulatório Infanto-juvenil em junho de 2011, quando tinha 16 anos. Foi encaminhado pelo Programa Saúde da Família (PSF) da sua área, que declarou a 108 tentativa de suicídio. No seu relato ele apresenta diversas tentativas de suicídio, desde corte até enforcamento. O caso foi classificado como sem CID, mas escrito por extenso (tentou suicídio tomando vidro de medicação desconhecida). Conforme informação da sua ficha, o adolescente não retornou para acompanhamento psicológico. A2 é uma adolescente de 18 anos que tentou suicídio por autointoxicação (medicação) em janeiro de 2010 aos 14 anos e foi atendida no PA. Apesar de declarar no grupo que tentou se matar, no prontuário estava escrito que foi uma “intoxicação exógena: tomou vários comprimidos” e classificou-se como caso suspeito sem CID. A3 é uma adolescente de 17 anos que foi atendida no PA e depois acolhida pelo ambulatório, com encaminhamento do PSF, em maio de 2011, aos 14 anos. No PA o caso foi classificado como suspeito com outro CID - intoxicação exógena (1 cartela fluoxetina + 1 cartela paroxetna) – CID: T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada). No ambulatório, caso sem CID, mas escrito por extenso tentativa de suicídio, pois veio com essa queixa declarada pelo PSF. Para tabulação, permaneceu a classificação do primeiro local em que ela passou, ou seja, PA. Adolescente fez acompanhamento psicológico. A4 é um adolescente de 14 anos que foi encaminhado pelo PSF e acolhido pelo Ambulatório Infanto-juvenil em maio de 2010, aos 10 anos. A queixa inicial era de que estava em sofrimento com perda de ente querido. “Fala que quer morrer e ir pra perto de Deus!” Na anamnese foi relatada história de autoextermínio, com a ingestão de uma planta “venenosa” (comigo-ninguém-pode). Classificado como caso sem CID, mas escrito por extenso (história e relato de autoextermínio). Criança fez acompanhamento psicológico. Estes são os sujeitos da pesquisa descritos pelo prontuário, mas a partir da análise do discurso possibilitado por meio do grupo focal foi possível perceber e escutar que esses jovens são muito mais complexos que seus sintomas. 109 Baseado no roteiro seguido para a coleta de dados com os adolescentes, estabeleceram-se três categorias: a) Relações sociais b) Tentativa de suicídio c) Proposta de intervenção Em cada categoria foram listadas as unidades de registro respectivas, considerando a presença/ausência de algumas características, sua frequência, intensidade, ordem de aparição e repetição de ocorrências. Para a análise das relações sociais, a pesquisadora baseou-se nas respostas das seguintes questões: 1. O que é pra vocês morar aqui em Matozinhos? 2. Como é o dia-a-dia de vocês? O que fazem nos finais de semana? 3. O que vocês gostam de fazer para se divertirem aqui em Matozinhos (momento de lazer)? 4. Vocês acham que a cidade oferece lugares para lazer / diversão? 5. Vocês têm amigos? Como é a relação com eles? O que fazem juntos? 6. Como é a relação com seus familiares? O que fazem juntos? Nesta categoria, os adolescentes trouxeram o município a partir das suas relações com os espaços, as pessoas e os problemas que eles percebem que envolvem os jovens residentes. Diante destas subcategorias, foram retiradas como unidades de registros: diversão / lazer; amigos; família; drogas. Os discursos resgatam as discussões sobre qualidade de vida, enfocando o aspecto local e as relações que eles estabelecem com os espaços que o município possui. De acordo com Bacheladenski e Matiello Júnior (2010), foi no início do século XX que o Brasil passou a preocupar-se com o lazer como forma de saúde dos trabalhadores e recuperação da mão-de-obra explorada e deteriorada. Para os 110 adolescentes, lazer e diversão estão associados e reclamam da falta de espaços e atividades, conforme depoimentos a seguir: A1: É só na quadra do Caíque de vez em quanto o povo abre lá pra gente jogá bola. E tem esse campo, esse campo que nós távamos conversano, então só os dois, a quadra e o campo de bola, porque aqui na praça mesmo, no centro aqui, não tem nada. Não tem nada. Igual nós lá távamos falano de ter uma pracinha pra gente sentá, conversá, lá também não tem. Então a única coisa que tem lá pra nós é só o campo, que tá avacalhado, mas tem o campo e a quadra de bola. Pra nós é só. [...] Não tem um lugar, por exemplo, igual a gente mora lá no bairro, num tem lugar pra a gente ir. Então não tem um lugar pra ocê saí, então a gente fica brincano na rua, porque não tem. Igual os amigos falam: vamo ali tomá um açaí? O que acontece? A gente tem que vim aqui pra praça. Aí fica muito ruim. Num tem praticamente nada lá no bairro [...]”. A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, não tenho. Eu acho que lazer aqui eu não tenho. [...] Eu não acho que aqui tem espaço, porque cultura… aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas para interagi com gente jovem não tem. É muito difícil. Se tem é porque cada um caça seu rumo e num expõe o que tá ruim. Diante da exposição de falta de espaços de lazer, questiona-se a real falta de opção de lazer nos tempos livres e a apropriação, pelos adolescentes, desses espaços públicos. Ao mesmo tempo em que eles relatam não haver investimento estatal para construção ou recuperação de locais para atividades prazerosas, divertidas, de lazer, eles apresentam outras opções: música, relações sociais, brincar na rua, jogar bola, pegar “traseirão”. A1: Olha, a minha diversão é cantá, porque, igual eu falei, sou evangélico, vou na igreja evangélica, e eu canto, onde me convidam para está cantano eu canto. A3: Com relação a lazer… o que eu não consigo falá com os meus pais eu falo com amigo ou outro parente. Na diversão eu procuro… eu sempre falo com a minha mãe, o que me distrai, deixa mais feliz assim quando eu tou com raiva e tudo, é escutano música. É uma coisa que eu gosto muito, escutá música. Em termos de saí, eu não saio muito, não gosto de saí pra festa, essas coisas, até porque hoje em dia tá muita bagunça, certas festas nem compensa você ir. E como eu namoro também, então assim, a minha diversão é saí com meu namorado, às vezes tem uma festa em casa de família ou aniversário, essa que é a minha diversão. A4: A mesma coisa. A gente mora perto. A única coisa que tem é isso. A quadra e o campo, porque o resto… A4: Tem vez que os meninos vão diverti na BR, pega traseirão. 111 A1: Fala assim: eu vô pegá o traseirão ali, vô segurá no caminhão e vô brincá de anda. Ou então… deixa eu vê que mais… brincá também na rua. A gente também, de vez enquanto, brinca na rua também, com os amigos. Porque quando tá de noite num tem lugá procê ir, num tem. Entre essas opções apresentadas, é interessante perceber que esse “lugar” do lazer, da diversão está intrinsecamente ligado às relações sociais estabelecidas e à oportunidade de expressão de sentimentos e pensamentos. Assim como para os trabalhadores do início do século XX, o lazer é uma válvula de escape para as pressões externas e internas sofridas por esses adolescentes; é uma possibilidade de SER. Entende-se “lugar” conforme conceituação de Carlos (1996), que entende como uma maneira de viabilizar a ressignificação do viver do sujeito, a partir das suas relações com o mundo e produzindo a sua existência social. Nas falas a seguir, percebe-se claramente que a função desse “lugar” de diversão na vida desses adolescentes ultrapassa a ruptura com o tédio da vida diária, para transformar-se em suporte existencial para lidar com as adversidades vivenciadas. A1: Então o que acontece? A minha diversão é essa, é cantá, porque quando eu tô triste eu canto, quando eu tô alegre eu canto. Então tipo assim, a maneira deu me expressá quando eu tô com raiva, que eu tô nervoso, que eu não quero vê ninguém é eu cantá. Isso me desabafa. Então eu fico muito feliz, porque onde eu tenho passado pra cantá é muito gratificante as pessoas me receberem de braços abertos e graças a Deus é menos de um ano e já tô com mais de duzentas cópias vendidas. Então é muito gratificante da minha família ter visto isso aí e ter investido em mim. A4: A minha diversão é jogá bola, gosto muito de jogá bola, porque quando eu tô jogano bola eu num lembro de nada de mau, num lembro de nada, só fico na minha, feliz, jogano bola. Tem vez que tentam me derrubá, mas tá bom, gosto demais de jogá bola. A3: Bom, lazer é meio difícil aqui, esse espaço, porque num tem. A única coisa que lá no bairro que eu moro, que… é assim, é um encontro, que lá tinha o encontro dos jovens, que era no salão paroquial, no dia de domingo tinha esse encontro aí a gente fazia dinâmicas, essas coisas, era muito bom. Só que agora os meninos brigaram e tudo, aí parou de ter. Mas era um encontro muito bom. E era um meio de lazer porque a gente tinha que fazê dinâmica, conversava, interagia, então era muito bom. Outra questão é tratar o lazer de forma mercadológica. Conforme Bacheladenski e Matiello Júnior (2010), o lazer tornou-se um produto, uma mercadoria, um objeto, uma diversão de e para o consumo. Vê-se este discurso também 112 impregnado nos adolescentes, apesar de indicarem formas alternativas e “não pagas” de lazer. A1: Igual se a gente quiser, igual tomá um sorvete, comê uma pizza, tem que vim aqui no centro. Lá tem é um negócio lá (palavra incompreensível). Então só tem hamburgue e o pessoal tá cansado de comê hamburgue. Então num tem um lugar pra você saí, então a gente fica brincano na rua, porque não tem. Igual os amigos falam: vamos ali tomá um açaí? O que acontece? A gente tem que vim aqui pra praça. Aí fica muito ruim. Não tem praticamente nada lá no bairro. A2: Se eu quero passeá, assisti um filme, ir no cinema, se quero ir no shopping, fazê alguma coisa diferente eu vou no shopping de Pedro Leopoldo, ou então vou em Sete Lagoas. E, afinal, que “lugar” é esse que eles dizem não ter? Será que a reclamação é um reflexo da invisibilidade, da “não existência” neste território, nesta sociedade? A1: E eu acho que muitas das vezes os jovens ficam revoltados, por conta disso, porque os jovens vê que tem gente que tem capacidade de ajudá e num ajuda. Eu acho que é isso. No meu entender. [...] Porque as pessoas acham que é só colocá o médico aqui, eles acham que é só falá eu vô te dá uma cesta básica e tá tudo bem. E eu acho que com o jovem num dá certo, porque no meu caso se o jovem não trabalha, ele dá trabalho. Porque o jovem tá precisano envolvê com mais jovens, precisano conversá mais e o que tá aconteceno é que o jovem tá ficano muito de lado, muito de canto, tipo assim, é só os mais velhos agora, é só os que tão trabalhano na obra. Igual esses jovens que tão nesse mundo aí, tem muitas pessoas que… eu não tenho nada contra, mas tem muitas pessoas que dizem assim: vai sê um marginal, vai sê um assassino, então tipo assim, a sociedade mesmo tá julgano muitos os jovens e é isso que eu acho que é por isso que os jovens tão muito revoltados assim, porque se eu acho que se as pessoas estendessem a mão pra esses jovens e num jogasse pedra neles, no modo de dizê, e sim estendesse a mão pra ele e falasse com ele: você vai saí dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vô te mostrá o lugá que cê pode tá conversano, pode tá expressano tudo aquilo que ocê tá sentino. Então, o que acontece? No meu entendimento não tá aconteceno isso, eles só tão quereno criticá aqueles que tão nesse mundo e num é assim. Eles são feito de carne e osso como a gente mesmo. A1: Porque, tipo assim, já que num querem fazer nada por nós mesmo, então já tá tudo perdido. Assim, no pensamento dos jovens que eu converso com eles, eles falam comigo: “A1, já que tá desse jeito aqui, vamo acabá de coisa já”. Esse espaço para conversar, ser acolhido, visto e escutado, sem críticas é a grande reivindicação. É a solicitação por um papel social que não seja aquele de “bode expiatório”. Serem cidadãos, saírem também da passividade que sempre aguardam alguém fazer algo por eles! Diante desta reflexão, Bacheladenski e 113 Matiello Júnior (2010, p. 2576) tratam o lazer como forma de promoção da saúde (lazerania) e também de cidadania: “[...] eles podem e devem reivindicar o seu direito a um espaço público e de qualidade para vivenciar [...] o seu lazer”. Acrescenta-se a requisição pelo reconhecimento dessas crianças e adolescentes como sujeitos, seja para usufruir do lazer, da saúde, do cuidado, da vida. Que essa luta pela diversão represente também uma luta por um “lugar” na sociedade, afinal, “[...] o lazer que se propõe é em favor da emancipação humana e em resposta a todas as formas de exploração [...]” (BACHELADENSKI; MATIELLO JÚNIOR, 2010, p. 2577). Outra questão que esse grupo possibilitou resgatar foi a percepção das relações e dos vínculos sociais frágeis como fatores de risco para tentativa de suicídio, de acordo com o QUADRO 2 de Bentancurt (2011). Nos seus relatos, os adolescentes contaram suas histórias e trouxeram fatos e situações que desvelaram a presença de elementos propulsores para o suicídio. Com base nas assertivas de Bentancurt (2011), elaborou-se um quadro com trechos que exemplificam o que a autora considera como “fatores de risco”. Aproveitou-se para incluir as falas das crianças que também foram escutadas pelo método sensível criativo, tornando-se um quadro infanto-juvenil único. QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua Familiares Antecedentes familiares conduta suicida de Apesar da adolescente (A3) não relatar, foi verificado na sua ficha que a mãe também tentou suicídio. Sociais Exposição a outro suicídio, de um companheiro, amigo ou conhecido Falam da “influência” que um jovem ou familiar tem sobre o outro: A1: Porque influencia, sem querer influencia... A4: Influencia. Às vezes vai pensar que é bom, porque ele tá fumano, tá bebeno, deve se bom... A1: Foi criança igual ele foi criança, e simplesmente foi por um caminho errado, por influência de alguém. Então na influência ali daquela pessoa, daquele baque, ela falô assim: o que eu tenho para fazê? A3: [...] porque um incentiva o outro, um que leva o outro. E quem é cabeça mais fraca cai, quem num tem personalidade forte, que tudo que fala… “Vou fazer porque fulano faz.” Então acho que tem muito jovem assim, que tá precisano de tê personalidade mais forte, mais firme e sabe fala um não... 114 QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua Disponibilidade de meios em casa Intoxicação A2: ... eu tomei… meus avós tinha problema de coração, pressão alta, eles tinham acabado de comprá os remédio, eu tinha pegado todos os remédios deles e tinha tomado café com eles... A3: Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios... A4: ... aí tinha uma planta lá que um dia a minha tia e meu tio falô que a planta era venenosa, aí eu peguei um pedaço da planta... Antecedentes de depressão ou enfermidade mental na família Antecedentes familiares Apesar da criança (B2) não relatar, foi verificado na sua ficha que a mãe fazia acompanhamento psiquiátrico no CAPS do município. Acesso a meios letais e meios de comunicação irresponsáveis Criança (B1) enforcou-se no quintal de casa com um varal: ... quando eu tava na casa do meu avô, lá tinha uma corda, eu enrolei ela no meu pescoço... cortou aqui... Estigma negativo associado à procura por ajuda e falta de acesso aos serviços de ajuda Estigma negativo A1: Para quem disse que eu ia ficá internado, que ia sê doido, e hoje eu encontro apoio em você, Michelle, que conversa muito com a gente, na minha família, encontrei apoio, esse abraço seguro. E aí é isso que eu sempre quero frisá, é isso que a gente tá precisano, de apoio, de dar a mão. Acesso aos serviços A1: Eu mesmo não queria o tratamento mais, porque eu falava que era muito longe. Aí mesmo que a gente vê, nessa área aí, tá muito prejudicada, porque se um jovem tá precisano de um acompanhamento ele não vai ter, ele vai ter que sai daqui pra ir pra Belo Horizonte. E aí o que acontece? Ele vai fala: “não, é muito cansativo.” Igual a gente pega o carro da assistência aqui pra gente ir pra lá, quando a gente chega lá eles largam a gente lá. A gente pega o carro aqui quatro horas da manhã, a gente chega lá umas cinco e meia da manhã e a gente fica de cinco e meia até três horas, quatro horas da tarde. O que acontece? Se a pessoa num tive um dinheiro pra comprar uma coisa pra comer, a pessoa vai ficar ali com fome. Porque num tem o apoio ali. Então como aqui num tinha psiquiatra, num tinha psicólogo e eu tive que ir pra Belo Horizonte, eu achava ruim, mas na mesma hora que eu achava ruim eu achava bom, porque ali eu tava recebeno apoio que eu estava necessitano... 115 QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua Mudanças na estrutura familiar e também mudanças constantes de residência Mudança A2: [...] não sei se era porque eu não morava com meus pais, então quando ocê tá morano numa casa, mesmo que seja dos seus avós, viveno de favô, tinha aquela obrigação, aquele trem, era muito difícil... Separação dos pais A4: [...] meu pai saiu de casa, agora tem a minha mãe, tá tudo bem agora... Até que a minha mãe e o meu pai se separaram, aí eu fiquei mal porque o meu pai saiu de casa, eu gostava muito dele e da minha mãe. Eu fiquei muito mal. Fiquei mal. Fiquei sozinho, sem meu pai, eu via as criança com o pai deles, eu chorava, fiquei muito mal por causa disso... Família disfuncional: violência; dificuldades de comunicação; abuso de álcool ou drogas; pais incoerentes, imprevisíveis ou muito rígidos Comunicação A3: [...] num tinha aquela comunicação com meus pais, porque eles num davam liberdade pra mim falá, pra eu me expressá o que eu tava sentino... Bom, eu assim, o meu pai era… ele é muito fechado, até hoje, ele comunica bem pouco dentro de casa. A minha mãe é tipo explosiva, nervosa demais, então assim, a gente não… às vezes o assunto que eu queria falá com ela eu num conseguia, por ela ser muito nervosa ela não dava liberdade de eu comunicá... A2: [...] para tê um diálogo mesmo com seus pais é muito difícil, adolescência também num tive... A4: Antes também a minha mãe e o meu pai só vivia brigano, ia lá, eles brigava, quando eles brigava eu sentia mal, eu sentia que era eu que tava fazeno eles brigarem... B2: [...] eu fiquei com medo da minha mãe sabe... Porque se ela soube ela vai me xingá. P: - Então o que você contou aqui pra gente a sua mãe não sabe e você tem medo dela sabe. B2: - Tenho. Morte inesperada e outros eventos de perda Morte Apesar do adolescente (A4) não relatar, no seu encaminhamento a queixa inicial era de que estava em sofrimento com perda de ente querido. “Fala que quer morrer e ir pra perto de Deus!” Violência estrutural e problemas com a lei Sociedade A1: Não é só julgá e falá: cê vai morrê, cê vai sê ladrão. A sociedade julga, ladrão, ladrão. Não... Ausência de espaços de lazer A3: Bom, lazê é meio difícil aqui, esse espaço, porque num tem... A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, num tenho. Eu acho que laze aqui eu não tenho... Eu não acho que aqui tem espaço, porque cultura… aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas para interagi com gente jovem num tem. É muito difícil. Se tem é porque cada um caça seu rumo e num expõe o que tá ruim... Escola A4: Eu vejo isso. Tanto é que na escola tem menino (palavra incompreensível) que pensa em matá. Tipo assim, a menina tá ali, eu vou mexê com ela, ela vai lá e chama alguém para defendê, aí vai lá, o menino num vai deixá, num vai fica só ali... Num vai ficá sozinho. Vai buscá alguma coisa aí acaba nisso, acaba em morte. Morte na escola, tem mais isso aqui, morte na escola... A1: E sempre influência da escola, porque na escola eles lá que resolve, as professoras, diretora, aí na rua é a polícia. Aí sai com aquela mágoa de dentro da escola e vai resolve na rua... Lei 116 QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua Abuso de álcool ou drogas A1: Tem altos e baixos… igual, o meu pai bebe muito, então ele briga, xinga, fala, então quando ele se acalma, a gente se abraça e a gente fala eu te amo. Então o que acontece? A gente vê que quando ele tá sem beber, sem nada, ele é um amor de pessoa... A2: Sabe quando você tem… a minha mãe foi viciada em drogas... A4: Igual tem vez que eu vejo o meu tio fumano, alguém vê o tio dele fumano, aí eles vão querê fazê a mesma coisa... Violência psicológica A1: ... porque o meu pai me xingava bastante, ele me xingava bastante. Igual ele bebia, como eu falei, ele bebia e vinha descontá tudo em mim. Então era só eu que era o errado, era só eu que era culpado de tudo. Então ele fala essas coisas eu mesmo me sentia culpado de tudo, aí pegava e me sentia culpado e ele me xingava bastante. Aí eu peguei e falei, vou te matá também. Ocê tá me matano, eu vô te matá... B2: [...] achei que o meu pai ia entendê, aí só falou assim: “Cê por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também num sô anão não. Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com muita raiva... Isolamento A2: ... mas só que antes eu num tinha liberdade pra saí, eu num pude aproveita a minha adolescência... Podê saí, podê conversá mais com os amigos. Num tinha lazê, eles não levava a gente pra passear. Quando era criança num podia aproveita porque era criança, pra saí, pra tê um diálogo mesmo com seus pais é muito difícil, adolescência também num tive... A3: [...] mas aquela angústia que eu sentia era tão grande que eu chorava, ficava mais dentro do quarto, num comunicava com a minha família... B2: [...] Num tem a sorveteria? Então, aí cê desce até a rua da igreja. Então, sabe aquelas árvore altona? Então, quando eu tô triste eu subo lá, fico lá em cima... A4: Desobedece pai, desobedece mãe... A3: E acaba descontando nas pessoas inocentes, porque a gente hoje em dia, pra você saí de casa ocê fica com medo, fica constrangida, cê sai de casa e num sabe se vai voltá. Porque às vezes acontece… tá aconteceno na rua briga, igual aconteceu aquela briga para mata... A3: Então, principalmente em trânsito que sai esses menino todo novinho dirigino carro, num tem carteira, sai alcoolizado, mata pessoa, idoso atravessano… eles num tão nem aí... Drogas A4: Os meus amigo mexe com isso. Tenho amigo que mexe com isso. Então, eles faz isso achano que melhora, tipo melhora, mas isso num melhora, é uma coisa ruim, porque eles quer é diversão mesmo, mas isso num traz diversão, traz morte... A3: Então eu acho assim, que os jovens hoje em dia, a droga pra eles, viraram uma diversão pra eles. Isso pra eles agora… ou não… eu vou usá pra mim esquecê os problemas... A1: Porque ele fala que quando eles fuma lá, cheira, sei lá, eles fala que eles esquece dos pobrema, eles ficam doidão. Só que nesse meio tempo de ficá doidão é que prejudica aqueles que num tem nada a vê com os pobrema e com as dificuldade que eles têm passado... A3: Então eles tão tipo, revidano, desfocano o que eles sente por dentro, porque quando eles tão lá eles ficam doido, eles esquecem mesmo. Então eu acho que isso virou um meio deles, tipo colocarem pra fora o que tá sentino. Eu acho que principalmente dentro de casa, porque tem uns jovens, tipo assim, eles busca esse meio pra pode descarregar aquela… tudo que vem guardano... Isolamento ou discriminação social Discriminação A1: [...] mas tem muitas pessoas que dizem assim: “vai sê um marginal, vai sê um assassino”, então tipo assim, a sociedade mesmo tá julgano muito os jovem e é isso que eu acho que é por isso que os jovens tão muito revoltado assim, porque se eu acho que se as pessoas estendesse as mãos pra esses jovens e num jogasse pedra neles, no modo de dizer, e sim estendesse a mão pra ele e falasse com ele: você vai saí dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vou te mostrar o lugá que cê pode tá conversano, pode ta expressano tudo aquilo que cê tá sentino. Então o que acontece? No meu entendimento num tá aconteceno isso, eles só tão quereno criticá aqueles que tão nesse mundo e num é assim... 117 QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - conclui Expectativas paternas afastadas realidade (sobre-exigência) da Não houve ocorrência nos relatos pesquisa. Família pouco afetiva ou excludente da Altos níveis de pressão, inclusive para ter êxito Não houve ocorrência nos relatos da pesquisa. Afetividade A2: [...] eu achava que a minha família era muito desligada... o meu pai, ele começô a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro, era 24 por 24. Então eu num tenho… até hoje eu num tenho um abraço de pai, não tenho. Sabe quando ocê sente falta de carinho? A1: Porque se a família assim… o tratamento da família for aquele lá de desprezá, aí a pessoa vai crescê com aquela revolta, assim, num tê aquele amor, aquele aconchego da família... Bullying, cyberbullying ou eventos humilhantes Bullying B2: Foi na escola que a professora foi lá, me chamou de anão eu fui e saí da sala, fiquei escondido lá no lugar que fica as cadeira lá, matei a aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a minha mãe foi lá na escola e me buscô, achei que o meu pai ia entendê, aí só falô assim: “Cê por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também num sô anão não. Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com muita raiva... Percebe-se que a maioria dos fatores familiares foi claramente descrita pelos adolescentes e os sociais expressos de forma mais camuflada, mas ambos presentes. É importante salientar que este é um compilado de elementos e que a intenção não era encontrar correspondente para todos, mas é assustador constatar tantas verbalizações sobre os fatores de risco nas relações familiares e sociais e alguns apresentarem-se como “motivos” para tentativa de suicídio. Registra-se que essa categorização é didática e que diversas falas podem ser incluídas em mais de um fator. Pode-se também dizer das outras violências sofridas por esses adolescentes, que estendem o âmbito privado e são percebidas e colocadas como problemas sociais que afetam a vida desses sujeitos, seja direta ou indiretamente. Eles apresentam, então, as drogas e a tentativa de suicídio como resposta violenta às agressões sofridas pela sociedade. Seguindo a tipologia das violências, pode-se verificar que nos relatos dos adolescentes há a presença de todas. Sem dúvida, a violência interpessoal, mais especificamente a intrafamiliar, esteve presente em todo o discurso apresentado pelos adolescentes. A queixa apresenta-se por meio da natureza psíquica e 118 também da privação de cuidados sofridas por eles. As falas sobre a falta de afetividade familiar são muito claras ao relatarem esaa indiferença, esse abandono. A violência coletiva e estrutural também se presentificaram de forma naturalizada, pelos relatos da visão que a sociedade tem dos jovens e de como julgam suas ações; da falta de acesso aos serviços públicos em detrimento das políticas e ações governamentais existentes; da ausência de políticas e espaços para lazer e diversão; da escola como um espaço de reprodução da violência sofrida, vivenciada, realizada e silenciada; da droga como um mecanismo de “diversão”, de saída, de pedido de socorro e inserção social e também de auto e heteroagressão; da discriminação social que mascara as desigualdades de raça/cor, de renda ou classe social por meio de outros subterfúgios; do fracasso da internalização da lei e, por fim, do abuso de poder em relação desigual e manutenção da visão adultocêntrica. Na violência autoprovocada, foco deste trabalho, a natureza mais explícita foi a violência psicológica e a privação de cuidados ou negligência/abandono. Diante dessa ausência, os sujeitos tentam produzir sentido para sua existência e Melo (2010, p. 14-15) afirma de forma simples e resumida tudo o que esses adolescentes e também crianças expuseram como angústia e sofrimento: Se falta sentido, vínculo, sentimento de identidade e de pertença, falta o próprio sujeito - não há reprodução simbólica da sociedade. O vazio resultante, sem dúvida, demandará ser preenchido: é necessário “empanturrar” de coisas e, uma vez que o outro não conta, entra-se no jogo do vale tudo – comida, mercadorias, emoções fortes, “adrenalina”, prazeres perversos, agressões, vandalismo, destruição, etc. –, numa tentativa vã de recuperar o sentido da própria existência. Nessa situação, a violência passa a ser o único e mais eficiente mediador das relações humanas e seus conflitos, impregnando-as e aos sujeitos e suas concepções (grifo nosso). Como dados para a escuta da tentativa de suicídio, os sujeitos deste estudo expressaram-se extrapolando as questões pensadas para abordar o tema: 1. Como vocês percebem as suas vidas hoje? O que consideram como positivo e negativo na vida de vocês? 119 2. Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer? O que fizeram? (Explorar mais). 3. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida? As unidades de registro citadas foram: invisibilidade, vínculo, escola/estudo, depressão, rede de apoio. Os relatos sugerem uma invisibilidade sentida e vivida pelos adolescentes e remetem à visão sociológica do suicídio, quando se pensa no lugar desse jovem na nossa sociedade, e também à visão psicossocial, quando se aborda a subjetividade desse sujeito e as suas relações estabelecidas. Ressalta-se que eles expuseram sua subjetividade, mas não estavam sós, era na relação com o outro. A1: [...] o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que ninguém num tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo, pronto e acabô. Então a primeira coisa que eu fiz foi tentá cortá os meus pulsos, num consegui, porque… graças a Deus, porque a minha mãe pegô e viu, a minha mãe escondeu todas as facas. A2: E nisso, o meu pai… um dos pontos de eu tê feito isso, eu falei com meu pai que eu queria vê minha irmã, então ele deixô eu viajá, foi aí que eu vi, nossa, agora eu tô livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que eu vou sê amada, que eu vou tê alguém pra conversá comigo, então eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei mais ou menos um mês. Sabe quando ocê vê outras pessoas, cê respira outros ares, ocê vê que cê é importante, foi assim que eu me senti a primeira vez que eu viajei. A3: Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que, tipo, me deram as costas, num viam que… parecia que eu tava pedino aquele socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu isso, muitas pessoa olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei a fazê o tratamento [... ] Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios. Só que aí a minha mãe viu, me levô pro médico. A4: Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai num queria mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava pensano nisso. Era o único jeito. Os atos eram endereçados e a vinculação com a família e o social foram determinantes para precipitar o fato e também para o “resgate”. São os sujeitos sociais que “socorrem”. 120 A1: ... a minha mãe escondeu todas as facas. Aí depois eu peguei o garfo, quis enfiá o garfo assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o cabo da colhé assim, tentano me furá com o cabo da colhé, também nada. Peguei o caco de vidro, quebrei a garrafa assim e queria me cortá. Ela também, graças a Deus tava lá também e num deixou eu me cortá... Aí a minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os garfo, todas as colher, todas as garrafa, até garrafa de água, de geladeira que tava lá. Loça, prato, tudo. Ela tirou tudo. Deixô a casa limpinha. Porque eu já tinha quebrado um bocado de coisa, então ela tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava reformano tudo aquilo que eu quebrei, todos os prato, todas os jogos de talher, tudo. Aí ela falou assim: “Meu Deus eu num posso deixá o meu filho fazê isso. O que eu vou fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino [...] Aí, tipo assim, eu peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha cabeça, porque eu falei: eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha mãe. Então, tipo assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali naquela hora [...] Aí a minha mãe ligô pro hospital pra eles virem me buscá, porque eu ia arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo todo [...] Eu tava ficano tão ruim, mas tão ruim que eles falaram com a minha mãe que parecia que não tinha jeito mais. Então a minha mãe cuidô de mim juntamente com a equipe médica. Eu gostei muito, porque quando eu chegava no hospital, os médico tudo parava tudo que tavam fazeno e vinha conversa comigo. Poderia tá atendeno um paciente chegô o A1, eu vou lá conversá com ele, então todos da equipe médica, que era do PA, do PA e até as faxineira iam lá pra conversa comigo, então isso aí foi muito bom [...] A minha mãe também, sou muito grato por tudo que ela fez por mim, porque num é qualquer uma que larga a vida dela pra cuidá do filho, não é qualquer mãe que deixa de vivê a vida dela para ajudá o filho a vivê a vida dele. Num é qualqué mãe. E a minha mãe saiu do serviço e falô assim… olha pra você vê, a minha mãe falou assim: eu enfrento tudo, enfrento todos pelo meu filho. Então eu achei assim, muito gratificante da minha mãe falá isso. Porque se as pessoas tão me julgano, que ele ia atrás deles. Tanto que a minha mãe falava assim: eu vou contra eles na fúria da leoa, quando a leoa tem o filhotinho, eu vou na fúria da leoa, porque o meu filho, se ele tá passano por isso, ele num qué isso, ele num qué isso, ele tá passano por isso, ele num tem culpa dele tá passano por isso. Então o que acontece? A minha mãe me ajudô bastante. A minha mãe, ocês, me ajudaram bastante. E graças a Deus eu tô aí. A2: O meu pai me levou pro PA, no PA eu senti vontade de sê social [palavra incompreensível]. Então lá tinha esses dois policial comigo, aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial, então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a sonda que ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim. A3: [...] a minha mãe me levou pra fazê o tratamento, então depois disso, que aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajudá, foi quando me levou pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorô, foi por causa disso. A4: [...] aí foi lá e a minha mente ficou muito melhó, fiquei conversano muito com a minha família, relacionei muito melhor com a minha família, falava os segredo tudo com a minha família [...] Aí eu escondi no banheiro, fiquei batendo na porta do banheiro, fiquei fazeno um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversô comigo, aí foi lá, eu parei. 121 Foi possível verificar que o relato dos adolescentes sobre o ocorrido trouxe de forma muito clara os motivos objetivos da tentativa, a forma, seus pensamentos e sentimentos naquele momento, que exemplificam o esquema sobre o processo do suicídio apresentado por Boronat (2013). QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos baseado no esquema de Boronat (2013) Processo do suicídio Fato cotidiano Problema Conflito Crise Fantasias negativas Fantasias de morte Tentativa de suicídio Suicídio A1 Adolescentes (relatos na íntegra no APÊNDICE F) A2 A3 Relação com o pai Sentir que todo mundo está com raiva e falando mal de você. Sentir-se culpado pelos problemas familiares e externos Nada estava bom, tudo estava ruim, era muito triste, chorava bastante, não queria ver ninguém Crise nervosa, depressão profunda (ouvir vozes de comando) Família “desligada” Limitação da liberdade, morando de “favor” com avós, falta de carinho dos pais Falta de diálogo familiar Decepção com amigos Triste, angustiada, Angústia sem amigos, sem ninguém Pai não autoriza viagem para ver a irmã, sente-se sufocada Isolamento, só chorava, tudo estava ruim: depressão Queria fugir, ir Sem solução para Não querer mais embora, esconder mais nada existir, cansada para resolver o de viver “problema” [...] queria me [...] tinha nada na Melhor acabar suicidá, queria minha frente que com tudo de vez: amarrá uma corda e pudesse falá fica, [...] única saída me enforcá [...] você é importante pra deprimido é Acabá com a vida pra mim, num droga ou suicídio porque num tinha tinha ninguém [...] [...] mais solução. [...] pegava uma faca Tomou todos os Tomou pra cortá o meu remédios dos medicação em pulso [...] tentei fugi avós casa pra me afogá na lagoa [...] Eu pulei lá de cima da varanda lá em baixo [...] Nenhum dos adolescentes chegou nesta fase, pois receberam e o apoio que tanto demandaram. A4 Briga dos pais Separação pais dos Morar com a mãe e ficar longe do pai. Ficou mal, sozinho, triste, chorava Retorno do pai para buscá-lo, desespero, choro, fuga para casa da tia Pensava que os pais não queriam mais que ele existisse Morrê é a única forma de num dá mais trabalho pra minha mãe, pra ninguém Comer a planta venenosa da casa da tia acompanhamento 122 Esse painel reforça o QUADRO 2, resgatando os vínculos familiares e sociais como estratégias para intervenções em casos de tentativa de suicídio. Viu-se que as ações são endereçadas e que a angústia é da ordem do insuportável, mas é imprescindível destacar que a invisibilidade dos sujeitos e a fragilidade das relações estabelecidas são peças fundamentais nesse quebra-cabeça. É preciso resgatar e reconstruir as relações familiares e sociais para que o sentido do “ser nada” se recomponha no “ser existente” e, conforme atesta Heidegger (1998), a totalidade de tudo ganha sentido e significado. Após exposição da tentativa de suicídio é importante verificar a existência de plano futuro. Os adolescentes apresentam a escola como espaço de vida, de continuidade, de futuro, de projeto de vida. A2: [...] fazer curso de Marketing, de Administração, mas tô achano as coisas tão difíceis. Tem que estudá bastante. Pra ser sincera eu num sô muito inteligente, então eu acho as coisas tão difíceis, é tão complicado. É muito difícil [...] É estuda, entrá pra uma faculdade, mas o que, em mente eu num sei, é no futuro. A3: O meu projeto de vida, eu quero estudá. Esse ano eu vou formá, então eu quero saí da escola, começá uma faculdade, agora e… porque eu tenho muita vontade de começá a estudá, tê uma profissão boa pra eu podê morá sozinha. Essa é a minha vontade daqui pra frente. A4: Minha vontade é ser jogadô de futebol profissional. E estudá muito. Estudá inglês, espanhol, pra eu dá um futuro pra minha família. Essas falas expressam que o espaço escolar é fundamental na construção de qualquer ação intersetorial, pois é nesse espaço que eles estão (ou deveriam estar) e criam vínculos, seja para um passado, presente ou futuro. Resgatando Dowbor (2007), é justamente na escola que se formam multiplicadores, seja para o exercício pleno da cidadania, da cultura da paz, da promoção e prevenção da vida ou para a replicação da violência existente. E para que haja desenvolvimento local, o investimento nesse setor torna-se indispensável. Ao longo dos discursos, os adolescentes trazem a escola como espaço de vida e morte, local que será utilizado conforme as relações que foram e são estabelecidas, ou seja, querem existir nesse lugar também e serem escutados. Diante disso, qualquer proposta de prevenção deve ser intersetorial e 123 considerar esse espaço de oportunidades como ponto-chave para intervenções infanto-juvenis. Os adolescentes também denunciam a ineficiência e ineficácia dos serviços de saúde municipais e da rede de apoio à criança e adolescente, o que impulsiona uma reflexão acerca das políticas públicas propostas e implementadas sobre a prevenção do suicídio e a promoção da saúde. Matozinhos não possui um projeto claro ou política de prevenção que contemple as crianças e adolescentes com ideações suicidas. Na saúde, há um Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental, composto por uma psicóloga e uma psiquiatra, que atendem casos em que existe sofrimento intenso, considerados de média complexidade. E um PA que também recebe esse público após consumação do ato. Esses serviços estão situados no que se chama de de prevenção terciária (assistência para reduzir trauma) e prevenção secundária (resposta imediata à violência), respectivamente. Na atenção básica não são realizados grupos com crianças ou adolescentes com essa demanda. Conclui-se, então, pela necessidade de melhor organização da rede setorial de saúde para que se desenvolvam ações de prevenção primária, para que efetivamente as crianças e os adolescentes que ainda não tentaram suicídio sejam acolhidos e escutados para que não precisem usar da violência para serem vistos. A Assistência Social também não desenvolve ação específica para esse público, assim como a Educação, o Esporte, o Conselho Tutelar, o Conselho da Criança e Adolescente ou o Judiciário. Eles encaminham para o ambulatório ou para o PA. E como é sabido que um único setor não suporta a resposta interina de um problema tão complexo, é necessário que esses outros setores conversem, cada um com sua política e ação específica, para que as intervenções tenham foco no cidadão matozinhense, nas crianças e adolescentes aí residentes. Ações transversais e intersetoriais possibilitarão a construção de estratégias inovadoras para minimização do impacto dessa violência e prevenção de novos casos. E Silva e Maeta (2010) expressam a importância de vencer esse desafio. 124 Outro desafio é sensibilizar os gestores e profissionais da saúde para a importância da notificação e do processo de formação permanente, capacitando-os para atuar nas áreas de vigilância, prevenção, atenção e promoção da saúde e cultura de paz. Articular, apoiar e fomentar as redes de atenção e de proteção, através de articulações com outros setores, como educação, assistência social, órgãos de proteção e garantia de direitos – conselhos tutelares, Ministério Público, defensorias, varas e delegacias – é um dos grandes desafios para os gestores do SUS. Portanto, o desafio é fazer com que as informações de fato gerem ações de intervenção, garantindo direitos, prevenindo violências, promovendo qualidade de vida e cidadania (SILVA; MAETA, 2010, p. 88-89, grifo nosso). Questiona-se essa invisibilidade do “fato” e negligência da rede de apoio ao atendimento de uma demanda urgente. A subnotificação presente no setor da saúde inviabiliza qualquer proposta, pois se o fato não existe, para que mobilizar e executar ações direcionadas? Mas o questionamento é mais profundo, pois, segundo as queixas dos adolescentes do grupo focal, são eles que não existem para esse município. A subnotificação mascara a tentativa de suicídio e revela que esses sujeitos não possuem um “lugar” nessa sociedade. A rede de apoio infanto-juvenil perpetua o discurso adultocêntrico e não permite que esses adolescentes sejam vistos e escutados. Esta visão está impregnada e até os adolescentes se valem do discurso biomédico para justificarem suas angústias, diagnosticando-se como “depressivos”. Será essa uma forma de serem inseridos nessa rede, por meio da “doença”? Por que a “violência” choca e paralisa os profissionais que deveriam acolher, escutar, direcionar e apoiar? A denúncia da falência da rede de apoio é um alerta para a construção de ações preventivas e de promoção que considerem essas crianças e adolescentes sujeitos de direitos, deveres e desejos e que possibilitem uma qualidade de vida que considere as necessidades individuais desse público como o ter, o amar e o ser, para sejam mais que um simples corpo lesionado (ERICK, 1993, apud VITTE, 2009). A proposta de intervenção foi uma inovação dos adolescentes que sugeriram formas de resolver ou amenizar os danos da problemática, quando foi aberto o espaço para exporem outras questões: 125 1. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o assunto e não foi perguntado? Nesse momento, pode-se entender como unidade de registro as seguintes palavras: espaço de escuta, apoio, ajuda. A3: Eu acho que falta um pouco disso. Eu acho que seria bom se tivesse um local assim, direto, pra jovens tarem se encontrano pra podê conversa, pra falá o que aconteceu, porque é tão bom cê passa pra pessoa e a pessoa também lembrá que não foi só ocê que passou por aquilo, que muitas pessoas passaram e que ainda pode vim a passar e, às vezes, se tivesse um local de encontro, as pessoas que tivessem angustiadas, tivessem pensando em fazer isso, escutá a experiência que nós que já passamos por isso, pra não fazê. Eu acho que seria muito bom se tivesse um lugar assim pra interagi uns com os outros [...] Eu acho que seria muito bacana também com os pais também, porque… contá uns aos outros como tá, o que aconteceu com os filhos para servi de experiência pro próximo. Eu acho que seria bom. A2: Porque cê fica guardano procê. Você poderia expressar o que ocê tá sentino. A1: Uma ONG de apoio pros jovens. A1: Eu acho que se tivesse, igual a gente passou por esse problema, eu acho que se tivesse assim esse momento, igual nós tamos tendo hoje aqui de conversá, eu acho que… a gente num voltaria, porque a gente é feito de carne e osso, porque hoje a gente tá em pé aqui hoje, amanhã a gente pode tropeçá e caí, então eu acho que se tivesse aqui, igual a gente tá aqui hoje, eu acho que nesse momento de fraqueza, aquilo que ela me falou ia me fortalecê, aquilo que ela falou ia me ajudá a vencê aquilo que eu tava passando. Então eu ia falá assim: olha, ela passou por aquilo e olha o tanto que ela sofreu, eu num vou passá por isso não, eu vou erguê a minha cabeça, num é? Então eu acho assim, se tivesse seria muito bom. Aí evita acontecê o que já havia acontecido na nossa vida pra trás. Evita acontecê no futuro, pra frente. Eu acho assim. Os adolescentes apresentaram como proposta para amenizar os problemas vivenciados por eles e por outros jovens do município a construção de um espaço para escuta. No entanto, demarcam essa solicitação como um pedido de ajuda e inserem os pais também como atores necessitados de auxílio. Essa proposta, aparentemente simples, denuncia uma desfuncionalidade dos serviços públicos municipais oferecidos, seja pelo desconhecimento dos adolescentes, dos atendimentos oferecidos ou mesmo dos profissionais que compõem a rede de apoio a eles e pela burocratização existente. 126 Dizer que não há um espaço no qual possam ser vistos, ouvidos, ajudados e cuidados significa dizer que nesse município não há desenvolvimento local nem gestão social. Eles não existem e, logo, não participam do processo democrático, cidadão, emancipatório e transformador. Mas será que há desenvolvimento local e gestão social em Matozinhos, conforme descrevem Sen (1999) e Maia (2005)? Os relatos são enfáticos e acusam a inexistência desses conceitos: não há expansão de liberdades nem participação democrática. A postura dos adolescentes também denuncia uma ação destrutiva para conquista de um espaço e de um direito: é preciso morrer para viver, para existir? B) Método sensível criativo com crianças O método sensível criativo foi realizado com três crianças, na faixa etária de oito a 12 anos, sendo todos meninos e apenas um não morava em um dos sete bairros que apresentaram alta incidência de ocorrências de tentativa de suicídio. Ressalta-se que, apesar de considerar os 12 anos como adolescente, esse sujeito foi incluído neste grupo porque, quando foi convidado a participar da pesquisa, ainda não havia completado essa idade. Os casos de tentativa de suicídio foram registrados em 2010, 2011 e 2012 e foram, respectivamente, corte, enforcamento e queda/precipitação. Para preservar a identidade dos sujeitos, serão representados pela letra B, seguida de um número em ordem decrescente de acordo com a idade atual. B1 foi acolhido pelo ambulatório em fevereiro de 2011, aos nove anos, com queixa de tentativa de suicídio por enforcamento: “enforcou-se com uma corda (varal) no quintal de casa”. No grupo, verbalmente, ele afirmou e também negou a sua intenção de morrer, mas sua expressão corporal, facial e seu desenho confirmaram a sua intenção. Classificado como caso sem CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio). B2 foi acolhido em março de 2010 no ambulatório, aos oito anos, após ser encaminhado pelo PSF com queixa de automutilação (cortou o braço: sempre pega a faca e fala que quer morrer). No encontro falou explicitamente da sua 127 vontade de morrer e citou algumas ações que sugerem outras “tentativas” (precipitações). Classificado como caso suspeito sem CID. B3 foi atendido no PA em setembro de 2012, aos sete anos, com queixa de queda de altura (queda da laje + de 2 metros – escoriações face). Falou pouco no encontro e negou intenção de morte. Foi classificado como caso suspeito sem CID. A análise dos dados será realizada de forma qualitativa, articulando os dados do relatório do encontro com as crianças, as suas produções sensíveis e criativas e a transcrição dos seus relatos. É importante destacar que, dos três garotos escutados, dois moravam nos bairros Centro e Florestal, que apresentaram maior número de casos de tentativa de suicídio infantis. O outro residia em um bairro novo, no município chamado Presidente. A pesquisadora acolheu as crianças e pediu que escrevessem os nomes nos crachás, para posterior apresentação dizendo nome, idade e bairro. Ficaram todos em silêncio e a investigadora decidiu começar para quebrar o gelo e estimular o grupo. B3, muito tímido, não quis se apresentar, mas respondeu quando foi questionado o seu bairro (Florestal) e idade (oito), sempre de cabeça baixa. Aparentava dúvida quanto às informações que prestava. B2 se apresentou incluindo a família e falando muito baixinho e com vergonha ([...] moro no Centro, moro com a minha mãe e duas irmãs [...]). B1 também se apresentou sem problemas ( [...] eu moro no Presidente… no bairro Presidente Costa e Silva e tenho 12 anos [...]). Estavam todos sentados em volta de uma mesa, de forma que B2 ficou ao lado de B3 e B1 de frente para a pesquisadora. Os lugares foram escolhidos por eles. Ao explicar o procedimento, todos ficaram muito atentos às falas da pesquisadora e disseram não terem dúvidas, apesar da expressão facial e corporal de B3 dizer o contrário (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013). Foi entregue uma folha com o contorno do mapa de Matozinhos para cada um deles e questionado se sabiam o que era. B2 respondeu primeiro que era um 128 mapa e os outros concordaram. Geralmente, ele quem iniciava as falas e ações, para só depois as outras duas crianças tomarem a iniciativa. Foi solicitado que eles colocassem no mapa como é morar aqui em Matozinhos, o que eles fazem e com quem. B3 teve um pouco de dificuldade, olhou o que os outros meninos estavam fazendo, bastante inquieto, e depois questionou se era só para colorir. Após a intervenção da pesquisadora ele pegou o lápis de cor e coloriu o contorno do seu mapa. Pareceu que não entendeu o que foi solicitado. B1 estava pensativo e também olhou para a folha dos colegas. B2 ficou concentrado e foi o primeiro a terminar todas as atividades. B3 pareceu incomodado porque os colegas estavam escrevendo, ficou muito inquieto, respirando fundo e, a todo o momento, olhando para as pessoas do entorno. Perguntou se poderia escrever o seu nome e escolheu o interior do mapa, novamente respirando fundo. B1 terminou após B2 e também aguardou B3. Ambos ficaram em silêncio (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013). Os desenhos foram digitalizados, com o cuidado de preservar a identidade dos sujeitos, e podem-se inferir algumas questões da relação que estabelecem com o território, a partir do lazer e com o social e a família. Ao falarem sobre o que fizeram na folha, B2 foi o primeiro, sempre falando muito baixo. B1 balançava o corpo enquanto explicava e sempre muito sucinto. B3 falou rapidamente e logo baixou a cabeça, tampando o rosto. Só respondia às questões da pesquisadora “balançando a cabeça”. As outras crianças riram de B3, mas não aparentava um tom de zombaria. B2 apresentou a sua produção, frisando que só desenhou o que gosta de fazer: [...] Soltá pipa, todo dia vô pro campo, solto pipa, depois vô… Quando tá no tempo de soltá pipa, eu vô todo dia pro campo e solto pipa, fico lá soltano pipa, depois eu vô pro jogo. De noite eu vô pra praça e fico lá tomano vitamina de açaí. Só isso... Após esta fala, a criança é questionada sobre o que acha de morar em Matozinhos e com quem executá estas atividades e responde que acha muito legal e que [...] de vez enquanto quando eu acho os meus colegas, eu vô com eles, quando eu num acho, eu vô sozinho. 129 FIGURA 7 – Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013 B2 fez todos os seus desenhos sem cor, fora do mapa de Matozinhos, e fez essa pergunta antes, além de exclamar que estava muito difícil pensar em tudo o que ele fazia. Primeiro ele relata que solta pipa e está sozinho, depois gosta de jogar bola no campo e inclui alguns amigos e, por último, vai sozinho para a praça tomar vitamina de açaí. Interessante perceber que, apesar de a criança se apresentar incluindo a família (mãe e irmãs), esta não está presente em qualquer atividade que ele desenvolve no município. Essa criança “solitária” deve ser observada e escutada, principalmente porque durante o encontro esta questão aparece em diversos momentos: que “solidão” é essa sentida? A criança B1 escreveu um texto, respondendo à questão: [...] porque gosto de Matozinhos. Eu gosto de Matozinhos porque é uma cidade grande e dá para eu fazer o que eu mais gosto, que é jogar bola e brincar com os meus colegas de soltar papagaio, jogar bola, jogar videogame e muito mais coisas que dá para fazer; e também eu gosto de ver jogo do Cruzeiro com os meus colegas... 130 Ele foi o único que virou a folha e escreveu com o mapa “de cabeça para baixo”. Também possui um colorido discreto, que foi realizado após olhar os mapas dos colegas, demonstrando certa ansiedade. No seu parágrafo, não há pontuação na resposta, são muitas coisas e os amigos estão incluídos nas atividades. Já na sua fala apareceram outras ações de lazer que não estavam no papel: “[...] Eu vou na aula, eu vejo muito jogo de futebol, videogame, assisto televisão, saio com meus pais, no shopping, gosto de soltá papagaio na rua, gosto de brincá muito com meus colega”. FIGURA 8 – Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013 A escola e os pais foram incluídos, ressaltando-se as suas relações familiares e sociais estabelecidas cotidianamente no município em que reside. Resgata-se, nesse momento, o importante papel da escola e da família, relações sociais e 131 familiares, já discutidas na análise dos resultados do grupo com os adolescentes e também no QUADRO 3, onde os dados encontrados das crianças também foram inseridos. FIGURA 9 – Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar em Matozinhos, 2013 Este é o desenho de B3 e na sua apresentação ele foi quase monossilábico, dizendo que gosta de morar em Matozinhos e de jogar bola, que é isso que o deixa feliz. Seu desenho é colorido e extremamente congruente ao revelar um menino com uma bola, no entanto, ele não tem boca. Sem boca, realmente é impossível ser mais que monossilábico! Essa criança posicionou-se dessa forma durante todo o encontro, falando pontualmente, de forma muito breve e com pouquíssimas palavras. O objetivo não era investigar tal fato, mas pode-se constatar que existe algo com essa criança que deve ser escutado. O que ou por que ela não pode ou não quer falar? Interessante também verificar que insere seu nome dentro do mapa de Matozinhos (o nome foi coberto para preservar a sua 132 identidade), dizendo que está inserido nesse contexto, que gosta deste território, apesar de se desenhar do lado de fora. Diferentemente dos adolescentes, as crianças não se queixam da ausência de espaços de lazer e descrevem muitas atividades que executam sozinhos ou acompanhados. É imperativo frisar que os tipos de lazer variam conforme a faixa etária, mas eles encontram formas de brincar e se divertir que extrapolam a ausência estatal, apesar de todos citarem o “campo de futebol” (tanto as crianças como os adolescentes). Também se ressalta que os adolescentes têm uma análise crítica diferenciada da situação. Fato é que a questão do lazer não se apresenta como problema para as crianças, pelo menos nesse momento. A pesquisadora propôs uma conversa sobre sentimentos, tristezas e alegrias, vontade de morrer. Nesse momento, B1 foi o primeiro a falar, acomodando-se à cadeira e apoiando a cabeça no braço. Ficou extremamente incomodado com a sua intervenção. B2 falou em seguida, de forma bem vergonhosa, com um sorriso tímido e meio nervoso, com olhar para baixo, desviando a atenção. B3 disse o que o deixa feliz e não rendeu muito. B3 e B1 disseram que não tiveram vontade de morrer e B2, com expressão triste, contou quando sentiu essa vontade. Os outros ouviram em silêncio, no entanto, B3 estava atento e B1 desviou o olhar e mostrou-se incomodado com a fala do colega. Apesar de toda a sua inquietação, B1 conversou: B1: Eu já senti tristeza, alegria, tudo. P: E o que deixou você feliz? Teve alguma coisa assim que marcou que deixou você feliz? B1: São poucas coisa... [brinca]. P: E quando você está triste assim, como que é, B1, quando acontece alguma coisa assim ou quando você está se sentindo triste, como que você fica? B1: Eu fico quieto, vô pro meu quarto e fico lá. P: - E você chora? B1: Não. 133 Em seguida, B2 afirmou: B2: Quando eu fico triste eu vô pro meu quarto, fico quieto lá, no meu canto lá. Se eu fico mais nervoso eu começo a quebrá tudo, guarda roupa, esses negócios assim. P: - Entendi. E quando você está alegre, quando você está bem assim, como que é? B2: - Eu fico brincano, assisto televisão, eu fico feliz. Como sempre, B3 foi bastante sucinto e negou sentir tristeza: P: Entendi. B3, e você? (pausa) O que te deixa triste, B3? Ou o que te deixa feliz? B3: Jogá bola. Só um está bom. P: Jogar bola te deixa feliz. Que bacana! E o que te deixa triste? R3: Nada. Ausência de tristeza ou ela não pode ser revelada? Eis a questão... Ao modificar a pergunta e questionar se alguém já viveu uma situação em que quase morreu, B1 falou o que sente quando fica com raiva e também contou sobre sua “brincadeira” no quintal de casa, mas negou a intenção e vontade de morrer, no entanto, sua expressão era de tristeza. B1: Eu fico bravo com a minha mãe, com o meu pai, com todo mundo. P: Fica bravo como B1? B1: Não converso com eles, deixo ficá… fico no quarto, depois vô lá e peço desculpa, quando eu acalmo. P: E você tentou alguma vez assim, morrer, para acabar com o problema, para ficar livre, para não ficar mais sofrendo, mais triste? Você já quis morrer? B1: Já. Quando eu tava na casa do meu vô, lá tinha uma corda, eu enrolei ela no meu pescoço, eu tava brincano, eu escorreguei, caí aí quase (palavra incompreensível), cortou aqui. P: Cortou o seu pescoço. E o que você sentiu nessa hora, B1? B1: Eu pensei que ia morrê. P: E você queria morrer? 134 B1: Não. P: O que você queria naquele momento? B1: Ah! Quase todo dia eu ficava fazendo isso; foi lá, naquele dia eu escorreguei e caí. O discurso da criança é incoerente, pois inicialmente afirma o seu desejo de morrer e quando é inquirido mais diretamente ele nega e apresenta uma resposta “politicamente correta” para justificar a ação. Brincar todos os dias de tentar se enforcar? Brincadeira ou pedido de socorro? Uma criança que realiza esse tipo de ação e trata dessa forma, no mínimo, pode-se inferir que não havia ninguém por perto “vendo” essa “diversão”. Negligência? Invisibilidade? Tratar a tentativa de suicídio como uma “brincadeira malsucedida” retira do fato a intencionalidade da criança e justifica-o de forma amena, ou seja, mascara também a ausência dos responsáveis. A criança B2 também expôs seus sentimentos e, em seguida, relatou um caso: B2: Quando fiquei assim numa solidão terrível eu ficava dando mortal nas arvores. B2: Foi na escola que a professora foi lá, me chamou de anão eu fui e saí da sala, fiquei escondido lá no lugar que fica as cadeiras lá, matei a aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a minha mãe foi lá na escola e me buscou, achei que o meu pai ia entender, aí só falou assim: “Você por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também não sou anão não. Aí ele começou a me xingar e eu fiquei com muita raiva. P: E aí me conta como que você se sentiu, B2? B2: Querendo morrer. Eu fiquei com muita raiva. B3 não respondeu essa questão verbalmente, apenas balançou a cabeça negativamente quando perguntado se já teve vontade de morrer. Solicitou-se que eles colocassem isso no papel de forma livre e criativa. Os três ficaram em silêncio, concentrados nas suas folhas. A observadora espirrou e B3 e B1 olharam, mas B2 não; continuou produzindo, concentrado. B2, novamente, terminou primeiro e com expressão preocupada questionou se a folha seria mostrada para a mãe. Em seguida baixou a cabeça e ficou pensativo, aparentemente preocupado. B3 ficou concentrado no seu desenho e terminou em 135 seguida, expressando verbalmente, seguido de um suspiro e cruzando os braços. No entanto, continuou desenhando e colorindo. B1 terminou e foi o primeiro a falar, parecia ansioso, pois piscava os olhos com mais intensidade e frequência. B3 disse que “nada” fez e ficou incomodado quando olhou para a observadora, cobrindo o rosto com o desenho. B2 explicou seu desenho, baixinho. O desenho do menino B1 expressa a contradição do seu discurso (FIG. 10). FIGURA 10 – Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013 Ele escreve que quase morreu enforcado enquanto brincava com a corda no pescoço. Na sua produção, ele expressa o seu sofrimento e desespero diante da morte e as lágrimas são visíveis e abundantes. Ele mostra um antes e um depois e também não há mais alguém na cena, o que sugere o que se inferiu anteriormente sobre a ausência e negligência dos responsáveis e a invisibilidade 136 dessa criança diante da sua família. Seu sofrimento também pode ser visto na primeira figura que faz de si, pois não está sorrindo, sua expressão facial é de “indiferença”, sua boca está “reta”... Ao ser solicitado que a criança B3 apresentasse a sua produção, ele disse que “não fez nada”! Foi pontuado, mas ele insistiu na resposta e seu silêncio foi escutado e respeitado. Seu desenho é muito colorido, traz casas, flores, borboletas e camas, mas como a criança não comentou, é difícil fazer qualquer inferência. É possível verificar que existem pessoas de tamanhos diferentes, deitadas em camas dentro de algumas casas. Estão dormindo? Mortas? E outra que parece estar em uma gangorra brincando. Pelas cores, parece pouco provável que seja algo de natureza tão mórbida, a questão que fica é: será que não ter boca e não poder falar diz de algo que deve permanecer em segredo e ser camuflado através da felicidade, da alegria? Neste caso, seriam interessantes novos encontros, talvez individuais, para que essa criança pudesse expressar o que estes desenhos não deram conta de dizer ou não que a pesquisadora não deu conta de entender. 137 FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013 B2, antes de iniciar o seu desenho, fez uma confissão de outro episódio no qual “achou” que iria morrer: B2: Só teve uma vez que eu quase morri. P: Como que foi? B2: Sabe esse prédio novo que tá construino? P: Onde? B2: Aqui na praça. P: Sim. B2: Eu fiquei andano e fui até lá na ponta, fora do prédio, teve uma hora que eu escorreguei, quase caí, fiquei pendurado pelas mão. P: E aí, como que foi isso, B2? B2: Coração começou a batê, batê, aí eu fui lá e consegui subi, fui lá pra baixo e num morri não. E num subi lá mais. P: E o que você pensou, B2, quando você estava lá em cima? 138 B2: Eu pensei que eu ia morrê. Eu estava lá na ponta e lá era alto. P: E quando você estava lá na ponta, você pensou em pular? (Silêncio) Pensou? (Silêncio) E o que você sentiu quando você estava lá pendurado? B2: Achei que ia morrê. Fiquei com medo. P: Medo! Você sentiu medo! Pode-se inferir que esta seja uma tentativa de precipitação? Ou mais uma brincadeira malsucedida? Quando questionada sobre sua intencionalidade, a criança cala-se! Esse silêncio deve ser escutado, pois diz, sim, do seu desejo! FIGURA 12 – Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos, 2013 Seu desenho retrata, curiosamente, o momento presente, isto é, todos que estavam na sala, exceto a observadora. A sua cadeira e a do colega ao lado (B3), pintadas de vermelho. Sangue? Morte simbólica? E a escolha pelo colega ao lado, representa algo? Qual o significado desse espaço de escuta para essa criança? Esta produção faz uma referência à fala dos adolescentes quanto à importância de serem vistos e escutados por alguém, de existirem para alguém, 139 de receberem apoio e serem acolhidos. Terem um espaço só para eles, para que possam dizer das suas angústias que não são escutadas pelos familiares e, de acordo, com B2, também não “podem ser contadas”... Ao escrever, ele conta o fato da possível “precipitação” e do seu medo da mãe saber. Que relação é essa que esse menino estabelece com a sua mãe? Que “medo” é esse? Essa preocupação também remete ao QUADRO 2, quando se verifica a fragilidade dos vínculos sociais e, principalmente, familiares. A comunicação e a afetividade não encontram espaço diante de tanto “medo”. A pesquisadora foi surpreendida quando perguntou se gostaram do encontro, pois B3 falou bem alto e com sorriso no rosto, que ele achou “legal”. Interessante, pois em nenhum momento do encontro ele se posicionou de forma tão segura, precisa e com satisfação. Percebe-se que mesmo que a criança não diga o que aflige ou sente, o fato de ter atenção e poder ser escutada e vista é uma possibilidade de transformação da existência, da postura e escolha que se faz diante das circunstâncias vivenciadas cotidianamente. B1, com expressão desanimada, falou que achou “chique”; e B2, com aparência envergonhada, disse que também achou “legal”. Mas todos disseram que voltariam caso fosse necessário. Ao finalizar, a pesquisadora pediu “segredo” das informações compartilhadas e todos concordaram, baixando o olhar. Encerrou-se e convidou para o lanche. 140 6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS 6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos Este projeto de intervenção psicossocial terá foco na comunidade, família, usuários e poder público local, visando a prevenção, proteção e tratamento das crianças e adolescentes. O objetivo é construir, junto com a população e o poder público local, um Fórum Presencial de Discussão sobre a Rede de Apoio Infanto-juvenil do município para a prevenção e tratamento das necessidades urgentes desse público em Matozinhos. É importante salientar que a tentativa de suicídio apresenta-se como uma dessas prioridades, conforme pesquisa quantiqualitativa realizada. Como essa demanda está subnotificada e “invisível”, a proposta é que as discussões comecem baseadas nos dados encontrados nos últimos cinco anos. Esta proposta está de acordo com as Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio (BRASIL, 2006a), principalmente quando a Portaria nº 1.876/2006 destaca no seu art. 2º a construção de uma rede para: I - desenvolver estratégias de promoção de qualidade de vida, de educação, de proteção e de recuperação da saúde e de prevenção de danos; II - desenvolver estratégias de informação, de comunicação e de sensibilização da sociedade de que o suicídio é um problema de saúde pública que pode ser prevenido; IV - identificar a prevalência dos determinantes e condicionantes do suicídio e tentativas, assim como os fatores protetores e o desenvolvimento de ações intersetoriais de responsabilidade pública, sem excluir a responsabilidade de toda a sociedade; (BRASIL, 2006a, grifo nosso). Essa rede é mais complexa e prevê, também segundo a Portaria citada anteriormente, que ela seja organizada e que implante projetos estratégicos de intervenções nos casos de tentativa autoextermínio. Ressalta-se que deve: 141 VI - contribuir para o desenvolvimento de métodos de coleta e análise de dados, permitindo a qualificação da gestão, a disseminação das informações e dos conhecimentos; VII - promover intercâmbio entre o Sistema de Informações do SUS e outros sistemas de informações setoriais afins, implementando e aperfeiçoando permanentemente a produção de dados e garantindo a democratização das informações [...] (BRASIL, 2006a, grifo nosso). O Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos será um espaço coletivo para a discussão de problemas locais quanto às necessidades das crianças e adolescentes residentes no município. A proposta é de que esse processo se inicie com os dados levantados sobre os casos de tentativa de suicídio e que seja realizada uma breve capacitação profissional, informando, caracterizando o fato territorialmente e desmitificando paradigmas que rondam o imaginário dos trabalhadores dessa rede de apoio à criança e ao adolescente. Far-se-á do Fórum Municipal “um importante instrumento de gestão” social local! Mas o que é um Fórum? “O fórum é um espaço de debate coletivo considerandose as diferentes interfaces necessárias para o fortalecimento de uma política [...]” (BRASIL, 2005, p. 17). É um espaço representativo, de caráter consultivo e/ou deliberativo, que busca dialogar sobre os problemas encontrados em diversas áreas e propor mudanças com objetivos preventivos e “curativos”, ou melhor, resolutivos. No caso específico do Fórum Municipal da Rede de Apoio Infantojuvenil de Matozinhos, pensa-se em um momento de capacitação, reflexão e ação com função inicial apenas informativa e consultiva. A ideia é que o espaço seja construído em conjunto com a população civil, os familiares, os próprios adolescentes e crianças, o poder público e os demais interessados. São necessárias diversas ações antes de elaborar uma verdadeira política municipal de saúde mental infanto-juvenil, pois não há, até o momento, um mapeamento do território e algum estudo que possibilite visualizar a real situação de vulnerabilidade em que se encontram essas crianças e adolescentes. A constituição, participações, atribuições e características de seu funcionamento serão construídas com os interessados, baseando-se sempre nas diretrizes 142 nacionais e respeitando-se as peculiaridades locais. No entanto, têm-se algumas propostas iniciais norteadoras. A primeira ação, considerada fundamental, é um breve “mapeamento” dos sujeitos interessados na discussão da rede de apoio infanto-juvenil do município. Em seguida, o processo de mobilização social e construção inicial de parcerias. Serão feitas visitas aos serviços públicos que trabalham com as crianças e adolescentes; enviados convites para a comunidade, por intermédio de seus representantes e dos usuários dos serviços e para demais órgãos e outros possíveis interessados. Uma reunião será agendada e nela apresentada, para os presentes, a análise dos dados levantados durante a pesquisa como “pontapé inicial” para conversa sobre os problemas locais. O espaço será para explanação, discussão, ruptura de paradigmas e convite para um “estudo” sobre essa necessidade, para posterior levantamento de possibilidades de ações para mudança da realidade local. Desse encontro poderão surgir demandas diversas e serem formados grupos de parceiros para a realização de determinadas tarefas compartilhadas e sugeridas nessa reunião inicial. Outros encontros serão agendados com os presentes para retorno das “deliberações” pactuadas. O intuito é de que esse fórum seja permanente, presencial e que as suas reuniões sejam temáticas e mensais, de acordo com a sugestão e disponibilidade dos participantes e com duração aproximada de uma hora para cada encontro. À medida que houver adesão de participantes interessados na causa, deverá ser constituído um Regimento Interno estabelecendo critérios, atribuições, características de funcionamento e funções para melhor organização dessa ação coletiva. É importante haver uma “mesa diretora” que seja eleita pelos representantes com direito a voto, pois será um suporte e uma referência nas discussões e ações das necessidades infanto-juvenis, contribuindo para a gestão social local. 143 Após sua estruturação, torna-se imprescindível o trabalho contínuo de mobilização para manutenção do fórum e das discussões, conquistas, ações efetivas e eficazes, para que futuramente haja a construção de uma política infanto-juvenil local. Diante da proposta inicial de discussão e capacitação e para sanar a deficiência encontrada nos dados quantitativos, a sugestão é que se monte um “minicurso”, apresentando os dados coletados e o principais conceitos para entender-se a dinâmica do suicídio infanto-juvenil: prevenção, condução, tratamento e notificação. Para tanto, pensou-se em uma divisão por pequenos módulos que serão realizados nos primeiros encontros do fórum, caso todos queiram e concordem com a ideia. Como formação de um grupo “ideal”, pensa-se em pelo menos um representante de cada setor responsável pelo cuidado à criança e ao adolescente (saúde: atenção básica / PSF, Programa Saúde nas Escolas - PSE, Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF; média / saúde mental; alta complexidade / urgência, assistência social: CRAS e Centro de Referência de Assistência Social – CRAS – e Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS; Conselho Tutelar, educação, Judiciário, Conselho da Criança e Adolescente, etc.), além dos gestores, adolescentes, crianças, pais e demais membros da comunidade. Como temáticas para os seis encontros com esta proposta de informação e desmitificação, foi elaborado um roteiro que será apresentado e discutido com os integrantes, caso haja adesão para realização dessa “capacitação”. A ideia é que esse movimento possibilite reflexões e ações para a construção e organização de uma rede intersetorial municipal. Primeiro encontro: O PROBLEMA - acolhimento e apresentação dos resultados da pesquisa de mestrado (trazendo o assunto como problema do município e responsabilidade de todos). Propor combinados para a realização do curso: o número de encontros, duração, formas de funcionamento e produção do final fluxograma da rede. 144 Mito 1: As pessoas que falam sobre o suicídio não farão mal a si próprias, pois querem apenas chamar a atenção. Mito 2: O suicídio é sempre impulsivo e acontece sem aviso. Mito 3: Os indivíduos suicidas querem mesmo morrer ou estão decididos a matar-se. Mito 4: Quando um indivíduo mostra sinais de melhoria ou sobrevive a uma tentativa de suicídio, está fora de perigo. Mito 5: O suicídio é sempre hereditário. Mito 6: Os indivíduos que tentam ou cometem suicídio têm sempre alguma perturbação mental. Mito 7: Se um conselheiro falar com um cliente sobre suicídio, o conselheiro está a dar a ideia de suicídio à pessoa. Mito 8: O suicídio só acontece “àqueles outros tipos de pessoas,” não a nós. Mito 9: Após uma pessoa tentar cometer suicídio uma vez, nunca voltará a tentar novamente. Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida (OMS, 2006, p. 9 – 11, grifo nosso). Segundo encontro: O QUE É? - apresentar conceitos e mitos sobre o tema (perguntar o que sabem sobre o assunto, etc.). Terceiro encontro: COMO É? - levantar o que eles consideram como fatores e situações de risco. Fazer, coletivamente, quadro com fatores de risco e condução de cada profissional e cidadão diante do fato. Quarto encontro: O QUE FAZER? - acolhimento e condução dos casos de tentativa de suicídio. Construção de uma ficha básica de anamnese que será utilizada por todos os serviços e profissionais, com sugestão dos cidadãos presentes. Quinto encontro: É POSSIVEL PREVENIR? - possíveis ações de prevenção de casos de suicídio e tentativa na rede de atenção do município. Sexto encontro: REDE MUNICIPAL INTERSETORIAL DE APOIO INFANTOJUVENIL - construção de um fluxograma para orientação dos encaminhamentos necessários e serviços disponíveis para apoio e acolhimento das crianças e adolescentes do município. Após esse compartilhamento de informações, experiências e construção de ações intersetoriais, a ideia é que essa sintonia e objetivo permaneçam para que novas 145 saídas inovadoras sejam concretizadas, beneficiando todos os cidadãos de Matozinhos. 6.3 Espaço de apoio Esse espaço de apoio foi pensado como um lugar para oferecer a escuta, o apoio, o auxílio e ajuda para adolescentes e crianças. Pensa-se que com essa oportunidade, além de terem a “demanda” inicial atendida, eles se tornem protagonistas da própria existência e também multiplicadores no “combate” às violências. Afinal: Não é por acaso que as experiências de prevenção da violência incluem atividades que, de um modo ou de outro, passam pela reafirmação do mundo da vida, seja por meio de processos sociais amplos, como organização de grupos, parcerias, redes e movimentos sociais, campanhas, debates públicos, movimentos de defesa de direitos humanos, fortalecimento da democracia e construção de cidadania; ou outros mais setorizados, como o desenvolvimento e formação de valores que preconizam a não violência e o respeito pelo outro, em determinados espaços sociais, por meio de mecanismos gerais, voltados para todos os atores aí incluídos, por exemplo, todos os alunos de uma escola, todos os integrantes de uma associação; e/ou mecanismos específicos e direcionados para certos grupos e indivíduos; construção de vínculos e referências por meio do desenvolvimento de projetos, programas e políticas destinados às escolas, famílias, comunidades, organizações sociais; pela pactuação de normas de convívio e desenvolvimento de atitudes cooperativas e solidárias nos mais diferentes espaços sociais; e outros ainda voltados para o indivíduo e para o investimento no seu crescimento e desenvolvimento, mas sempre referenciados pelas suas relações e vínculos (MELO, 2010, p. 16-17, grifo nosso). E nesse momento é imprescindível a parceria efetiva da escola e da saúde. No espaço escolar em que esse público está inserido e passa parte do seu dia e, ainda, como já foi discutido anteriormente, é um importante lugar de “oportunidades”. Não precisa criar novo projeto ou ação para oferecer às crianças e adolescentes essa possibilidade de serem vistos e escutados; já existe o PSE no município. 146 De acordo com o Ministério da Saúde (2014)7, como o próprio nome diz, esse programa tem como objetivo integrar e articular os dois setores fundamentais para o cuidado infanto-juvenil: saúde e educação, visando à promoção da qualidade de vida e a luta contra as vulnerabilidades que comprometem o desenvolvimento desses sujeitos. O espaço escolar é considerado fundamental para a realização das ações propostas, pois o programa compartilha do discurso realizado neste trabalho, que possibilita a convivência social e o estabelecimento de relações saudáveis, desde que seja assim construído. O programa tem como um dos seus propósitos a “promoção da saúde e de atividades de prevenção”, o que justifica a construção desse espaço de apoio para as crianças e os adolescentes do município de Matozinhos. Quando se aborda essa “construção desse espaço”, não se está desejando um local físico específico para esse fim, pelo contrário, é realizar, dentro dos locais já existentes, um momento de escuta diferenciada desses sujeitos. Um instante lúdico, alegre, descontraído, que possibilite a ressignificação da existência, que se apresente como um “porto seguro”, um apoio, uma ajuda para que esses sujeitos permaneçam vivos!!! 7 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=14578%3Aprogramasaude-nas-escolas&Itemid=817. Acesso em: 17 de janeiro de 2014. 147 7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO DA PARTE OU DO TODO? Suicide attempts in children and adolescents: injury of the part or of the entire? Este capítulo apresenta o artigo oriundo desta dissertação, que foi submetido à Revista Ciência e Saúde Coletiva em outubro de 2013 e está em processo de avaliação. Michelle Alexandra Gomes Alves Matilde Meire Miranda Cadete RESUMO Neste estudo procurou-se verificar o registro e o número de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos, Minas Gerais, Brasil, que foram atendidos pelos profissionais de saúde do Pronto-Atendimento. Trata-se de uma pesquisa documental e descritiva, cuja coleta dos dados ocorreu por meio de investigação nas Fichas Ambulatoriais, no período de 2008 a 2010. Das 73.000 fichas levantadas, selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município, com idades entre três e 18 anos. Percebeu-se que os profissionais de saúde, mais especificamente os médicos e enfermeiros, não registram os casos de forma adequada, inviabilizando a informação sobre o problema e as medidas de prevenção. Concluiu-se que a subnotificação e a discrepância dos diagnósticos e o não encaminhamento aos órgãos competentes exigem repensar e rever a prática médica e dirigir um olhar sistematizado e cuidadoso para perceber o sujeito como um todo complexo. Palavras-chave: Suicídio. Tentativa de suicídio. Criança e adolescente. Profissionais de saúde. 148 ABSTRACT This study aimed to verify the registration and the number of cases of suicide attempts among children and adolescents in the municipality of Matozinhos, Minas Gerais, Brazil, who were assisted by health professionals from the Emergency Care. This is a documental investigation, which data were collected through a survey in Outpatient Sheets from 2008 to 2010. Of the 73,000 sheets evaluated, those dealing with cases of attempted suicide among children and adolescents between three and 18 years old were selected. It was realized that the health professionals, particularly physicians and nurses, do not register the cases appropriately, invalidating information about the problem and its prevention measures. It was concluded that the underreporting and the discrepancy of the diagnostics which were also not referred to the competent agencies require rethinking and reviewing the medical practice, and drive a systematic and careful look to realize the subject as a whole complex. Key words: suicide, attempted suicide, children and adolescents, health professionals. INTRODUÇÃO A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a humanidade há séculos. Atualmente, as discussões em torno desta temática evidenciam-na como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais estabelecidas pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito nas relações como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar esse olhar e entendê-lo nas suas peculiaridades. Conforme Minayo1, a violência aparece para “[...] dramatizar causas, trazê-las à opinião pública e, incomodamente, propor e exigir mudanças”. É possível perceber que o campo da saúde é um dos espaços privilegiados, no qual todas essas demandas aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais de saúde recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam uma prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes2 pontua a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser 149 uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um corpo lesionado, mas um sujeito! São diversos os tipos de violência e também as formas como que ela se apresenta. Nos serviços de saúde brasileiros, tem-se como referência a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 3 (CID). A atual classificação não explicita a questão da violência, uma vez não considerada doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas externas” (V01-Y98), que por sua vez é dividida em: não intencional, intencional e evento de intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange acidente de trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio, afogamento, contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões, abelhas, vespas, complicações da assistência médica e outras. Causa externa intencional abarca suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os eventos de intenção indeterminada4. Neste estudo elegeu-se a causa externa intencional, mais precisamente o suicídio e a tentativa de suicídio como focos investigativos. O suicídio não é, definitivamente, fato recente em nossa sociedade. Durkheim 5 discorre sobre sua história desde os povos primitivos com realce para a construção do seu lugar na sociedade: como ato “heróico”, honroso; depois penoso (sanção desse “direito”); e hoje poder-se-ia dizer que esse “direito” tornou-se um problema de saúde pública. [...] o suicídio é um fenômeno universal, registrado desde a alta Antiguidade, rememorado pelos mitos das sociedades primitivas, criticado pelas religiões como ato de rebelião contra o criador, aparecendo ainda, em muitos escritos filosóficos, como ato de suprema 6 liberdade . Trata-se, então, de um tema atualíssimo e de extrema relevância que mobiliza o poder público na construção de políticas e destaca a necessidade de um olhar minucioso para a questão; afinal de contas, foi criado um dia para “alertar” sobre a gravidade da situação atual: 10 de setembro é o dia mundial de prevenção ao suicídio. 150 A Organização Mundial da Saúde7 afirma que o suicídio refere-se diretamente à agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido sobre si mesmo, com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as 20 maiores causas de morte mundiais para todas as idades, sendo que a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador! Principalmente ao se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou ao nível de, na atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco. Cabe ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também multifatorial, sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não menos densos. A escolha por esta definição justifica-se pelo fato de ela apreender os aspectos do objeto deste estudo e do seu cenário: o serviço de prontoatendimento. O Ministério da Saúde destaca que o “[...] Brasil está entre os 10 países com maiores números absolutos de suicídio”8. Nessa perspectiva, foram criados “Manuais de Prevenção do Suicídio” destinados aos profissionais da equipe de saúde mental e da atenção básica, que listam os aspectos sociodemográficos, mas consideram como principais fatores de risco para o suicídio a história de tentativa do ato e os transtornos mentais. Em âmbito estadual, percebe-se que o suicídio tem atingido igualmente os menores de 15 anos. Em 2004, a taxa de suicídio em Minas, entre crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, era a mais alta da região Sudeste do Brasil 8. Contudo, as mortes registradas a partir das taxas de suicídio são apenas uma porção desse grave problema, tendo em vista que se têm também aquelas pessoas que tentaram suicídio. No período de janeiro/2008 a agosto/2012, foram registradas 6.883 internações no estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas intencionalmente (tentativa de suicídio). Destas, 1.052 foram de crianças e adolescentes de zero a 19 anos, o que equivale a 15,3% do total de casos9. À primeira vista, esse número pode não parecer tão significativo, mas deve-se levar em conta que os dados sobre as tentativas de suicídio não são comumente declarados, podendo-se inferir que este 151 valor não expressa fielmente a nossa realidade. Essa assertiva encontra eco nos dizeres do Ministério da Saúde: “[...] os registros de tentativas de suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo menos 10 vezes maior que o número de suicídios”10. [...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade, método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de 7 suicídio não são claramente conhecidos . Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte todo o momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” faz essa escolha. Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida diariamente com pessoas em tenra idade e, ao que tudo indica, não veem pela frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a morte não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime significado aos objetos e atos que executa. Nesse contexto, não se pensa na violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas representações e significações referentes à vida e à morte. Com a intencionalidade de “não dissipar mais vidas”, realizou-se esta pesquisa com busca de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes, de três a 18 anos, do município de Matozinhos, em Minas Gerais, recebidos no serviço de pronto-atendimento (PA) nos anos de 2008 a 2010. Matozinhos é uma cidade localizada a 47 km da capital mineira e possui 33.955 habitantes. Sua população é predominantemente jovem e os casos de tentativas de suicídio são crescentes e alarmantes. Na sua estrutura de serviços de saúde 152 incluem: um hospital, que a partir de meados de 2013 passou a dividir o espaço com o pronto-atendimento, 10 postos de saúde, um CAPS I, um ambulatório adulto e um ambulatório infanto-juvenil de saúde mental, além de clínicas e consultórios médicos particulares. Os dados apresentados fazem parte da primeira fase da pesquisa de mestrado intitulada: “Prevenção do suicídio e promoção da saúde mental entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos”. Esta primeira etapa diz respeito ao levantamento do número de tentativas de suicídio ocorrido nos últimos cinco anos. As informações foram extraídas de alguns serviços de saúde, mas neste trabalho apresentaram-se apenas aqueles colhidos nos prontuários do prontoatendimento (PA). Ao levantarem-se o registro e o número de casos de tentativa de suicídio cometidos por crianças e adolescentes, a leitura atentiva dos prontuários desvelou uma questão instigante e merecedora de análise, ou seja, demandas similares eram registradas diferentemente pelos profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) do PA. Essa constatação convocou para um olhar mais diretivo sobre os registros dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a visão e o papel dos profissionais de saúde diante desses casos, pontuando os desdobramentos dos atendimentos de urgência (encaminhamentos feitos) e a interlocução entre os serviços de saúde. Desta forma, voltamos nosso olhar para os prontuários do PA e suas dissonâncias. METODOLOGIA Trata-se de pesquisa documental com o objetivo de verificar o registro e o número de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos que foram atendidos pelos profissionais de saúde do prontoatendimento. A coleta dos dados se deu por meio das fichas ambulatoriais do pronto-atendimento. Foram lidas aproximadamente 73.000 fichas. Destas, selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município, com idades entre três e 18 anos. 153 As pessoas que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para posterior triagem (pré-consulta) com os profissionais de enfermagem que avaliarão cada caso de acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são repassadas para o médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com risco de morte, são primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências burocráticas. Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do atendimento. Por este motivo têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as duas situações, mas em menos número. Salientam-se as limitações desta pesquisa em referência aos incipientes registros contidos nas fichas ambulatoriais: poucas informações; quando presentes, não detalhadas; e ausência de dados importantes. Trata-se de um problema recidivo e generalizado, também reafirmado por Minayo et al.11: “[...] as informações oriundas das estatísticas hospitalares geralmente são alvo de críticas, por causa das limitações relacionadas à qualidade dos dados que apresentam”. Contudo, apesar de se saber da precariedade dos dados, é o melhor lugar para realização de pesquisas sobre esta temática, pois concentra as informações necessárias. Afinal de contas, o hospital ou pronto-atendimento é a porta de entrada para casos de urgência. Com os dados em mão, foram quantificados os casos de tentativa de suicídio e analisados a partir de categorias criadas para as diversas situações encontradas: a) casos com CID de tentativa de suicídio (X60-X84); b) casos sem CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte); c) casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte); d) casos suspeitos com outro CID; e) casos suspeitos sem CID. O CID de tentativa de suicídio está entre X60 e X84 (lesões autoprovocadas intencionalmente). Consideram-se casos suspeitos aqueles em que não há dados 154 suficientes para verificar a intencionalidade e também outros nos quais foram registradas apenas as consequências de determinado ato. Entre eles, pode-se destacar o caso de um adolescente em que há descrição de corte dos pulsos D e E, sem hipótese diagnóstica e com conduta de sutura. Foi acidental ou este adolescente escolheu cortar os dois pulsos? À vista disso tudo, definiu-se quantificar quantos desses casos eram referentes às crianças e quantos aos adolescentes, bem como quantos foram encaminhados para algum serviço de “saúde mental” (Psicologia, Psiquiatria, CAPS, ambulatório) e se os profissionais de saúde se articularam com outros serviços. Para fins deste estudo, foram consideradas crianças aquelas com idades de três a 12 anos incompletos e como adolescentes os de 12 a 18 anos completos12. As informações foram incluídas no software SPSS para posterior análise estatística, de forma descritiva, ressaltando-se as dimensões mais relevantes. Optou-se, como forma de exemplificação, apresentar alguns casos e discutir o papel do profissional de saúde no serviço de urgência no atendimento dos casos de tentativa de suicídio. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário UNA sob a CAAE 11451412.2.0000.5098. RESULTADOS De todos os 136 casos com suspeita de tentativa de suicídio, 13 foram, de fato, escritos como tentativa de suicídio, porém 11 registrados sem CID e dois com outro CID não correspondente à hipótese diagnóstica declarada. As demais situações figuravam-se como tentativa de suicídio, todavia, sem informações claras e suficientes para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato. 155 Gráfico 1 – Registro dos casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes de Matozinhos no período de 2008 a 2010 Quantidade de casos 35 Casos com CID (X60X84) 30 25 Casos sem CID, mas escrito por extenso 20 15 Casos com outro CID, mas escrito por extenso 10 Casos suspeitos com outro CID Casos suspeitos sem CID 5 0 2008 2009 2010 Período Ao se analisarem os dados do Gráfico 1, percebe-se que não há um registro sequer com o CID X60-X84 correspondente à tentativa de suicídio. Considerandose os dados por ano, encontram-se 42 casos em 2008 (sendo 15 crianças e 27 adolescentes); em 2009, 54 casos (destes, 19 eram crianças e 35 adolescentes); e em 2010, os registros mostraram 40 casos (nove crianças e 31 adolescentes). Detecta-se, por conseguinte, que apenas 9,6% do universo de 136 casos receberam o diagnóstico de tentativa de suicídio. Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o acolhimento universal, equânime e integral.13 A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a inexistência do problema e, logo, pouco investimento financeiro, político e social na construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência que se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação, e se 156 embravece com algumas características do que está posto e ambiciona transcendê-las. Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar a inseparabilidade do sujeito e dos serviços de saúde. Casos com CID de tentativa de suicídio Consideraram-se casos de tentativa de suicídio aqueles com CID X60-X84 (lesões autoprovocadas intencionalmente). Não foi encontrado algum registro com o diagnóstico explicitado por esta classificação. Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se implicarem? Ou, na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo impessoal, pela tradição e pela inautenticidade ? Casos sem CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte) Nesta categoria registra-se o maior número de casos declarados como tentativa de suicídio. Averiguou-se que dos 11 casos encontrados, quatro eram do ano de 2008, seis referentes a 2009 e apenas um a 2010. Os profissionais de saúde registram por extenso o fato ocorrido, mas não o classificam como lesão autoprovocada intencionalmente. São indícios de uma atitude profissional irresponsável e indigna para com o sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que impossibilita ações e procedimentos que garantam a integralidade do cuidado. Sabe-se que as necessidades de ações de saúde, como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, delineiam um sentido da integralidade. 157 Casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte) Nos dois casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram encontradas as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool - síndrome de dependência). É importante ressaltar que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas de morte e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os códigos dos capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa de morbidade e de mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível, deve-se eleger como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX)3. Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para hipótese diagnóstica e estão “presos, limitados” às consequências dos atos praticados, ou seja, vê apenas a lesão, fratura, intoxicação... Assim sendo, não chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o procedimento se limitará à “sutura”; e a hipótese diagnóstica será “ferimento de região não especificada do corpo” (grifo nosso). Casos suspeitos com outro CID Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com outro CID. Caso 1 – adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa: “intoxicação exógena por „chumbinho‟ há três horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada). 158 A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não especificada”? Esse caso não é exceção, pois vários outros com essa incoerência foram encontrados nas fichas. Caso 2 – criança de quatro anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa: “começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas das vias aéreas inferiores). Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo, equânime e igualitário? Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é, há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é corporificado.14 Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta), T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não especificada), J.22 (infecções agudas não especificada das vias aéreas inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de estomatite). 159 Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de pronto-atendimento do município. Afinal, o que é tentativa de suicídio para os profissionais de saúde do PA de Matozinhos? Casos suspeitos sem CID No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se mais dois casos: Caso 1 – Criança de cinco anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa: “corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado. Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o fato pode ter sido apenas acidental. No entanto, diante da omissão expressa nos outros relatos, este discurso não deve ser aceito como verdade imediatamente; é preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios sujeitos sua versão sobre os atos praticados. Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado. Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social, tornase impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao não descreverem a classificação de tal problema. Ressalta-se, também, que não há registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como esse adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo corte no pulso é absolutamente inaceitável. 160 A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID” e sim em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde do PA de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de um consolo para lidar com o horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa acepção, Combinato e Queiroz15 expõem que, apesar de ser um fato natural, “[...] para o homem ocidental moderno, a morte passou a ser sinônimo de fracasso, impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou prevenir torna-se “desnecessário”. Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde, quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em metrópoles. No Gráfico 2, encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando essa “não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito. 161 Gráfico 2 – Encaminhamentos e outros procedimentos realizados nos casos acolhidos no pronto-atendimento de Matozinhos no período de 2008 a 2010 10 8 6 Quantidade 4 2 0 2008 2009 2010 Encaminhamento para Psiquiatria, CAPS, Ambulatório ou Psicologia 3 1 1 Outra conduta: Contato com Hospital João XXIII 9 1 3 De 136 casos, apenas cinco foram encaminhados para o ambulatório infantojuvenil de saúde mental ou outro serviço de saúde psicológico ou psiquiátrico. Fato curioso é que, após a implantação do ambulatório infanto-juvenil, os encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao encaminhamento implicado: como esses serviços se articulam? São intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do município? Percebem o sistema de forma integrada? Em Matozinhos não há uma política municipal de saúde mental infanto-juvenil e a rede de apoio às crianças e adolescentes é desarticulada. Desta forma, os serviços de saúde, assistência, esporte, segurança, educação e conselhos não desenvolvem ações com foco no cidadão, mas ficam centrados nas suas metas e produtividades, inviabilizando um trabalho em rede que supõe a prevenção de casos de violência e a promoção da saúde e da qualidade de vida. Os profissionais do PA apenas mascaram um problema que é de gestão social. Não é apenas para os serviços de saúde que esses sujeitos estão invisíveis, mas para 162 todo o município. Como que uma rede de serviços de apoio à criança e ao adolescente não vê e escuta seu público-alvo? Resgata-se que visto que o ponto comum entre todos os serviços e políticas é justamente o sujeito, a interlocução existente entre os setores deve, necessariamente, considerar sua existência e, para isso, torna-se fundamental percebê-los como cidadãos, corresponsáveis pela sua vida e morte. Esses questionamentos indicam uma visão de fragmentação do sujeito como ser existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização pela vida. DISCUSSÃO Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as crianças suicidam. Mito 10: as crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em 16 qualquer idade deve ser levado muito seriamente . Apesar de a morte ser um ato natural, ela impacta os homens ocidentais pela sua conotação negativa. Combinato e Queiroz15 reforçam a dimensão simbólica existente nesse ato, lembrando que o morrer é “[...] um fenômeno impregnado de valores e significados dependentes do contexto sociocultural e histórico em que se manifesta”. Desta forma, não se pode esquecer de que os profissionais de saúde são, antes de tudo: sujeitos biopsicossociais. A profissão carrega consigo o peso de “salvar vidas”, mas daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça de morte. No entanto, a dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que esses sujeitos e também profissionais de saúde percebam uma urgência na pessoa sadia que escolheu morrer17. 163 Pesquisa em um hospital público de São Paulo com profissionais de saúde que lidam com situações de lesões autoprovocadas salientou, além da subnotificação, a estigmatização desse público por causa da sua escolha, afetando (fragilizando) a dimensão do cuidado18. O autor ressalta a necessidade do resgate da verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao trabalho da autora outras questões: ruptura de paradigma (visão global desse sujeito que sofre), humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e escuta do sujeito que sofre. Conte et al.19 relatam uma experiência de um programa de prevenção ao suicídio no Sul do Brasil (Candelária-RS). Apuraram uma realidade de não escuta do sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi desmitificar o tema da morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar sobre o assunto e capacitar profissionais da saúde para que ficarem atentos à identificação de risco e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à ideação, ao plano ou à tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que tiveram perdas fatais antes da implantação do programa. A partir dessas ações iniciais foi possível construir o Plano Terapêutico Individual, focando a singularidade de cada caso, trabalho com a família, acesso do paciente aos serviços e medicamentos, possibilidade de inserção nas unidades de atenção básica, escuta da rede social, trabalho em equipe com corresponsabilidade, acompanhamento sistemático intensivo de situações de risco e a importância do sigilo e da ética. O sofrimento social, na contemporaneidade, é resultado de uma violência cometida pela própria estrutura social e pelos efeitos lesivos das relações de poder que caracterizam a organização social20. Ele limita a condição humana e se insere em diversas dimensões, convocando a vencer o desafio de conectá-las. Assim, o suicídio ou tentativa de suicídio é maior do que o grupo ou o indivíduo, uma vez ser fruto da experiência social. Esta, às vezes, é banalizada e distanciada, principalmente pelos profissionais que lidam com a vida e a morte dos sujeitos. A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no 164 paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty21: “ eu não tenho corpo, eu sou o corpo”. Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte no pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e, mais que isso: escutá-lo! Claro que merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional. A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito para além de sua lesão. Tentar compreender o todo! Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam. Recente estudo22, apesar do foco de investigação ser outro, concluiu que há sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que este é suprimido, de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. Afonso 23 vai um pouco mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o Morrer”, dizendo que o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a morte e que tanto os médicos como os demais profissionais de saúde que estão inseridos nesse contexto não sabem lidar com essa situação na relação com o sujeito que precisa e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam sobre a própria morte e, mais que isso, que usem do processo empático e se coloquem no lugar daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato praticado ou sofrido por determinada pessoa. Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no 165 todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de “[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os profissionais de saúde devem respeitar as diferenças e as necessidades do sujeito13. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que recebe e atende no serviço de saúde, mas entendendo-se integralidade como noção amálgama carregada de sentido. Impõe, portanto, indignar-se diante de atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os profissionais da área da saúde e de toda a rede de apoio a esse público vejam além das demandas explícitas e se sintam responsáveis não apenas pelo diagnóstico correto da tentativa de suicídio, mas tomem as iniciativas que esse procedimento requer. Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente) atende a casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade, uma escolha de viver é imprescindível: é humano! Mas, o que faz com que os profissionais de saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como “bancar” uma hipótese diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e adolescentes de uma cidade relativamente pequena? É melhor desresponsabilizar-se por tal situação? Interessante pontuar que quando existe uma rede de serviços que acolhe o público infanto-juvenil nas suas diversas necessidades e que conversa e desenvolve ações intersetoriais, o “problema” torna-se de todos e, logo, a responsabilidade por aquele caso, aquela vida, aquele sujeito, também. Dividir e compartilhar as responsabilidades e as próprias dificuldades diante de situações complexas fortalece os setores e os seus profissionais. A ausência de uma gestão social, pensada como sinônimo de democracia e cidadania, também inclui outros 166 atores além dos profissionais dessa rede, pois o sistema é muito mais amplo. A participação dos gestores e da comunidade também deve ser questionada e sugestionada, pois é um direito e um dever contribuir para o bem-estar e para a qualidade de vida de toda a comunidade. Os dados levantados neste estudo exibiram falhas grosseiras no diagnóstico e, principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos familiares que buscaram socorro. Diante disso, não se pensa exclusivamente em mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação flexneriana. Preconizam-se mudanças de atitude! Essas reflexões incomodam e reivindicam mais investigações, pois se acredita que apenas ouvindo os sujeitos é possível construir saídas inovadoras, rompendo com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva. COLABORADORES Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo. REFERÊNCIAS 1. Minayo MCS. A violência dramatiza causas. In: Minayo MCS, Souza ER. (orgs). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003; p. 23-47. 2. Deslandes SF. O atendimento às vítimas de violência na emergência: “prevenção numa hora dessas?”. Cien Saude Colet. 1999; 4:81-94. 3. Centro Brasileiro de Classificação de Doenças – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/Organização Mundial de Saúde/Organização PanAmericana de Saúde. CID-10 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª Revisão. Versão 2008. Volume I. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm Acesso em: 19 abr. 2013. 4. Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Superintendência de Epidemiologia da Subsecretaria de Vigilância em Saúde. Análise de Situação de Saúde. Belo Horizonte, 2010. 167 5. Durkheim É. O suicídio: estudo de sociologia. Tradução: Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes; 2000. Coleção tópicos. Primeira publicação em 1987. 6. Minayo MCS. A autoviolência, objeto da sociologia e problema de saúde pública. Cad Saúde Pública. 1998; 14:421-428. 7. Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Genebra: OMS; 2002. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Organização PanAmericana de Saúde. UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção do suicídio para equipes de saúde mental. Brasília, outubro de 2006. 9. Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS – Departamento de Informática do SUS. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/fimg.def Acesso em: 05 out. 2012. 10. Brasil. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde. UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção do suicídio para profissionais da atenção básica. Brasília, setembro de 2009. 11. Minayo MCS, Souza ER, Malaquias JV, Reis AC, Santos NC, Veiga JPC, Silva CFR, Fonseca IG. Análise da morbidade hospitalar por lesões e envenenamentos no Brasil em 2000. In: Minayo MCS, Souza ER. (orgs). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003, p. 109-129. 12. Brasil. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1990; 13 jul. 13. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico de Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização - a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 14. Andreazza R, Carapinheiro G, Teixeira L, Cecilio LCO. Do Centro de saúde à unidade de saúde familiar: narrativas de ausência e intermitências. In: Anais do 12º Congresso Paulista de Saúde Pública. Rev Saude Soc. 2011; 20(Supl. 1):200-201. 15. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estudos de Psicologia. 2006; 11:209-216. 16. Organização Mundial de Saúde (OMS). Departamento de Saúde Mental e de Abuso de Substâncias. Gestão de Perturbações Mentais e de Doenças do Sistema Nervoso. Genebra: OMS; 2006. 168 17. Santos AAG, Silva RM, Machado MFAS, Vieira LJES, Catrib AMF, Jorge HMF. Sentidos atribuídos por profissionais à promoção da saúde do adolescente. Cien Saude Colet. 2012; 17: 1275-1284. 18. Machin R. Nem doente, nem vítima: o atendimento às “lesões autoprovocadas” nas emergências. Cien Saude Colet. 2009; 14:1741-1750. 19. Conte M, Meneghel SN, Trindade AG, Ceccon RF, Hesler LZ, Cruz CW, Soares RPS, Jesus I. Programa de Prevenção ao Suicídio: estudo de caso em um município do sul do Brasil. Cien Saude Colet. 2012; 17:2017-2026. 20. Kleimann A, Kleimann J. The appeal of experience; the dismay of images: cultural appropriations of suffering in our time. Daedalus. 1996; 125: 1-25. 21. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Marins Fontes; 1999. 22. Santos MA, Aoki FCO, Oliveira-Cardoso ÉA. Significado da morte para médicos frente à situação de terminalidade de pacientes submetidos ao Transplante de medula Óssea. Cienc Saude Colet. 2013; 18 (9): 2625-2634. 23. Afonso SBC. Sobre a morte e o morrer [Resenha]. Cienc Saude Colet. 2013; 18 (9): 2781-2782. 169 8 CONCLUSÃO Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as crianças suicidam. Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em qualquer idade, deve ser levado muito seriamente (OMS, 2006, p. 11). Esta pesquisa evidencia a falta de notificação dos casos, principalmente das crianças. Os resultados encontrados reafirmam a literatura, que descreve o perfil dos sujeitos que tentam suicídio e as formas utilizadas. No entanto, ressalta outra violência cometida contra as crianças e os adolescentes, que é a negligência dos profissionais de saúde. Ampliando o olhar, pode-se estender esse problema para os demais serviços de cuidado da rede infanto-juvenil de Matozinhos. E qualquer intervenção pensada nesse sentido deve ser intersetorial e abranger os diversos serviços que acolhem esse público. Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que recebe e atende no serviço de cuidado, mas entendendo-se integralidade como noção amálgama carregada de sentido. Impõe-se, portanto, indignar-se diante de atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os profissionais das diversas áreas vejam para além das demandas explícitas e se sintam responsáveis não apenas pelo diagnóstico correto da tentativa de suicídio, mas tomem as iniciativas que esse procedimento acarreta. 170 Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente) atende casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade. Uma escolha de viver é imprescindível: é humano! Mas o que faz com que os profissionais de saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como “bancar” uma hipótese diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e adolescentes de uma cidade relativamente pequena? Conte et al. (2012) relatam uma experiência de um programa de prevenção ao suicídio no Sul do Brasil (Candelária – RS). Constataram uma realidade de não escuta do sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi desmistificar o tema da morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar sobre o assunto e capacitar os profissionais da saúde para que fiquem atentos à identificação de risco e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à ideação, ao plano ou à tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que tiveram perdas fatais antes da implantação do programa. A partir dessas ações iniciais foi possível construir o Plano Terapêutico Individual, focando a singularidade de cada caso, trabalho com a família, acesso do paciente aos serviços e medicamentos, possibilidade de inserção nas Unidades de Atenção Básica, escuta da rede social, trabalho em equipe com corresponsabilidade, acompanhamento constante de situações de risco e a importância do sigilo e da ética. Os dados levantados neste estudo revelaram falhas grosseiras no diagnóstico e, principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos familiares que buscaram socorro. Não se percebeu referência nem contrarreferência de um caso sequer. Diante disso, não se pensa exclusivamente em mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação flexneriana. Preconizam-se mudanças de atitude! Essas reflexões incomodam e reivindicam a construção de saídas inovadoras, rompendo com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva. Neste sentido, este trabalho propõe uma formação participativa dos profissionais não só da saúde, mas da rede de atenção e cuidado à criança e ao adolescente quanto à 171 prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde. Melo (2010, p. 16) também acredita que a “[...] criação de espaços que propiciem o diálogo como forma essencial de formação da opinião e da vontade coletiva [...]” favorece a construção de redes de trabalho pautadas no desenvolvimento social, político, econômico e humano e na gestão compartilhada. É necessário partir do pressuposto de que “[...] soluções para a violência envolvem a responsabilidade de todos os cidadãos” (MELO, 2010, p. 16). E nesse mesmo pensamento de corresponsabilização é possível pensar um espaço de diálogo para os próprios adolescentes, que clamam por isso ao serem escutados no grupo focal desta pesquisa. Eles afirmam que não precisam de muito, apenas querem ser escutados, vistos e percebidos pela sociedade, querem um lugar, querem existir, viver, enfim, SEREM SUJEITOS, assim como as crianças! E sujeitos de direitos e deveres, que poderão ser multiplicadores nesse processo de construção da cidadania e da saúde infanto-juvenil. A proposta é um convite aos adolescentes para a construção de um espaço no qual serão escutados e poderão exercer o seu poder cidadão a partir de mudanças da realidade local das crianças e adolescentes de Matozinhos 172 REFERÊNCIAS AFONSO, S.B.C. Sobre a morte e o morrer [Resenha]. Cienc Saúde Colet, v. 18, n. 9, p. 2781-2782, 2013. ALVES, M.A.G.; CADETE, M.M.M.; BORONAT, C.B. Produções científicas brasileiras sobre a prevenção da tentativa de suicidio infanto-juvenil nas últimas décadas. In: V CONGRESO LATINO AMERICANO DE PREVENCIÓN DEL SUICIDIO, setembro de 2013, Campeche, no México. Anais..., 2013. ALVES, M.A.G.; CADETE, M.M.M. Política de saúde mental infanto-juvenil do município de Matozinhos. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM GESTÃO SOCIAL (ENAPEGS), Belém, Pará, 2012. Anais..., 2012. ALVES, M.A.G. Relatório de Avaliação do Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental. Matozinhos, 2012. 10 p. Não publicado. BACHELADENSKI, M.S.; MATIELLO JÚNIOR, E. 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Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer? O que fizeram? (Explorar mais...) 9. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida? 10. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o assunto e não foi perguntado? Terceiro momento: Agradecer, encerrar e convidar para o lanche. Ressarcir os adolescentes quanto aos gastos para participarem do encontro. 180 APÊNDICE B – Roteiro do Método Sensível Criativo com Crianças Primeiro momento: acolhida – entrega de crachá e apresentação lúdica. Segundo momento: explicar as duas fases com as questões norteadoras. Terceiro momento: composição das produções. 1ª fase: entregar uma folha A4 com o limite territorial do município de Matozinhos, perguntar se reconhecem e depois dizer que é o mapa da cidade e pedir que respondam as seguintes questões com desenhos ou palavras: 1 - Como é morar aqui em Matozinhos? 2 - O que você gosta de fazer e com quem? Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu. 2ª fase: entregar uma folha em branco A3 e pedir que desenhem como eles estão se sentindo e depois respondam, com desenhos ou palavras: 3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste? 4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer? 5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer? Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu. Quarto momento: compartilhar Obs: este momento foi dividido durante a execução das duas fases. Quinto momento: avaliação do encontro – as crianças falarão sobre o que acharam e como se sentiram nesse encontro. Agradecer, encerrar e convidar para o lanche. Sexto momento: confraternização – as crianças irão lanchar e ficar à vontade. Obs: ressarcir os pais dos gastos para levar os filhos ao encontro. 181 APÊNDICE C - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (para os adolescentes) Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos” Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e professora do Centro Universitário UNA, convidamos você para participar de um trabalho que estamos realizando e que tem como objetivo analisar a saúde mental entre as crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao participar deste estudo você nos ajudará a encontrar os motivos que levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento. Você tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo. Sempre que quiser, você poderá pedir mais informações sobre este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário por meio do e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA. Pedimos permissão a você para participar de um encontro no salão paroquial em dia combinado anteriormente para que você, juntamente com outros adolescentes, converse conosco sobre a saúde mental. Seu nome não vai aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não traz problemas legais para você e se sentir qualquer desconforto ou não quiser continuar conversando, poderá parar um pouco ou cancelar a participação neste trabalho. Os passos adotados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua dignidade. 182 Toda a conversa do encontro será gravada, mas o seu nome não aparecerá e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados. Você não terá qualquer tipo de despesa ao participar deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação. Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para participar deste estudo. Portanto, complete, por favor, os itens que se seguem. Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito. Consentimento Livre e Esclarecido Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo claro que aceito participar deste trabalho. Declaro que recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a minha participação no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo. Nome do (a) adolescente ___________________________________________ Assinatura do (a) adolescente Assinatura da aluna: Assinatura da professora: Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558 Professora: Drª. Matilde (31) 99728033 Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4 o andar – Belo Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br 183 APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais autorizando os filhos adolescentes) Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos” Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a) participar deste estudo o(a) sr.(a) possibilitará que nós encontremos os motivos que levam as crianças e os adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento. Seu(sua) filho(a) tem liberdade para desistir de participar e ainda deixar de continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA. Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro no salão paroquial em dia combinado anteriormente para que ele(ela), juntamente com outros adolescentes, converse sobre a saúde mental. O nome de seu(sua) filho(a) não vai aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se ele(ela) sentir desconforto ou não quiser continuar respondendo às perguntas, poderá parar um pouco ou cancelar a participação neste trabalho. Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade do(a) seu(sua) filho(a). 184 Toda a conversa do encontro será gravada, mas os nomes dos adolescentes não aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados. O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação. Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens que se seguem. Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito. Consentimento Livre e Esclarecido Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a) meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo. Nome do pai ou responsável________________________________________ Assinatura do pai ou responsável Assinatura da aluna: Assinatura da professora: Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558 Professora: Drª. Matilde (31) 99728033 Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br 185 APÊNDICE E - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais autorizando as crianças) Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos” Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e os adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a) participar deste estudo, o(a) sr.(a) possibilitará que eu encontre os motivos que levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento. Seu(sua) filho(a) tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA. Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro no salão paroquial em dia que vamos combinar antes para que ele(ela), juntamente com outras crianças, desenhe, brinque e converse sobre saúde mental. O nome de seu(sua) filho(a) não vai aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se ele(ela) não quiser participar ou não quiser continuar nos encontros poderá cancelar a participação neste estudo. Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade de seu(sua) filho(a). 186 Todas as atividades do encontro serão gravadas, mas os nomes das crianças não aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados. O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação. Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens que se seguem. Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito. Consentimento Livre e Esclarecido Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a) meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo. Nome da criança: _________________________________________________ Assinatura do pai ou responsável Assinatura da aluna: Assinatura da professora: Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558 Professora: Drª. Matilde (31) 99728033 Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo Horizonte/MG Contato: e-mail: cephumanos@una.br 187 APÊNDICE F – Relatos de tentativa de suicídio dos adolescentes de Matozinhos P: - Bom, vocês a questão do choro, angústia, uma coisa assim por dentro, uma tristeza, uma vontade de não existir mais, uma vontade de não viver mais, uma vontade de sair dali, daquilo acabar rápido, enfim. Eu queria que vocês falassem o que vocês fizeram com isso. Vocês estavam ali sofrendo, uma tristeza muito grande, uma dor no peito, o que vocês fizeram com isso? A2: - Cê fala com a angústia? P: - Sim, para amenizar ou melhorar. Ou que saída que vocês encontraram. Acho que seria essa melhor pergunta. Que saída vocês encontraram para isso que vocês estavam sentindo naquele momento? A3: - Como naquele instante eu num tive apoio pra um tratamento, eu tentei suicídio. Eu achava assim, num tem outra saída. Ocê se sente tão… parece que cê sofre tanto sozinha, cê num tem aquela pessoa, num tem aquele… num tem um tratamento pra ocê faze na hora. Num tem ninguém pra te ajudá, o que eu tô fazeno aqui? O que eu vô fazer da minha vida? Vô fica sofreno, sofreno? Melhor acabá com tudo de uma vez. Então a única saída… acho que todo mundo que é deprimido e num tem ninguém pra ajudá, quando num cai no mundo das drogas tenta o suicídio. P: - Você quer contar um pouquinho mais da sua experiência pra gente, A3? A3: - Bom, é muito angustiante. Hoje eu falo, num tenho vergonha, num tenho ressentimento de falá o que eu sentia. Hoje eu falo, converso. Quando me perguntam eu falo sem me senti mal. É uma experiência muito ruim. Por isso que eu falo que hoje em dia o que falta, a falta que faz é um grupo relacionado aos jovens ou um grupo com os próprios pais pra interagi mais com os filhos. Acho que falta isso. Porque aquele sofrimento é muito grande, ocê num vê saída, ocê tenta de um jeito, tenta de outro, ocê acha que todo mundo… ninguém tá ali pra te ajudá, ninguém tá ali pra te escutá, ninguém tá ali pra te dá um abraço, “conta comigo pro que ocê precisá.” Então acho que a única saída que ocê vê é essa. No momento que eu tava angustiada e num tinha ninguém pra me ajudá, que era a depressão. Muita gente fala, nossa, mas porque ocê fez isso? Todo mundo sempre fala isso, mas na hora 188 que ocê tá ali naquela depressão, ocê num vê outra saída, por isso que eu tentei o suicídio. P: - Tentou como A3? A3: - Eu? Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios. Só que aí a minha mãe viu, me levô pro médico. Foi uma experiência muito ruim da minha vida, que eles tiveram que tirá com a sonda e tudo, depois eu fiquei… com isso eu fiquei muito fraca, depois que aconteceu isso, eu num tava me alimentano, eu só tava dentro do quarto, só deitada, num queria ir pra escola, num queria sair de casa. Então ocê num sente vontade de… tudo procê tá ruim, tudo é triste, num tem nada procê… é como se num tivesse nada procê fazê. Então eu fiquei muito fraca. Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que, tipo, me deram as costas num viam que… parecia que eu tava pedino aquele socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu isso, muitas pessoas olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei a fazê o tratamento, a minha mãe me levô pra fazê o tratamento, então depois disso, que aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajuda, foi quando me levô pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorou, foi por causa disso. A2: - Eu acho que a minha vida pra eu podê sê feliz teria que sê assim... primeiro, eu tive uma vida muito difícil, tinha solução pra mais nada, tinha nada na minha frente que pudesse falá fica, ocê é importante pra mim, num tinha ninguém... eu também tentei suicídio, eu tomei… meus avós tinha problema de coração, pressão alta, eles tinham acabado de comprá os remédios, eu tinha pegado todos os remédios deles e tinha tomado café com eles. Eu fiquei superdopada, eu num tava vendo mais nada na minha frente, só andava, caía e tombava. O meu pai me levô pro PA, no PA eu senti vontade de ser social [palavra incompreensível]. Então lá tinha estes dois policial comigo, aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial, então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a sonda que ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim. E nisso, o meu pai… um dos pontos deu tê feito isso, eu falei com meu pai que eu queria vê minha irmã, então ele deixou eu viajá, foi aí que eu vi, nossa, agora eu tô livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que eu vô sê amada, que eu vô tê alguém pra conversá comigo, então eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei mais ou menos um mês. Sabe quando ocê vê outras pessoas, cê respira 189 outros ares, cê vê que ocê é importante, foi assim que eu me senti a primeira vez que eu viajei. Foi nisso que eu voltei “regenalizada”, parece que eu tinha um demônio no meu corpo de tanta coisa ruim na minha vida. Eu voltei muito melhor. P: - Como você estava se sentindo? A2: - Como eu tava sem ter ninguém, entre aspas, eu me sentia muito triste, angustiada, nada tava bom pra mim, os amigos… eu nem posso dizê que tinha amigos porque na hora que a gente mais precisa eles some. Então é muito ruim. Num tinha liberdade pra nada, eu achava que a minha família era muito desligada, num sei se era porque eu num morava com os meus pais, então quando ocê tá morano numa casa, mesmo que seja dos seus avós, viveno de favô, tinha aquela obrigação, aquele trem, aí era muito difícil. P: - Você falou assim, sua família era muito desligada, desligada como assim? A2: - Sabe quando ocê tem… a minha mãe foi viciada em drogas, o meu pai, ele começou a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro, era 24 por 24. Então eu num tenho… até hoje eu num tenho um abraço de pai, num tenho. Sabe quando ocê sente falta de carinho? P: - Meninos. A1: Como é que é a pergunta mesmo? P: Aquilo que você sentia foram essas experiências do passado, que vocês disseram que sentiam angustiados, se sentiram tristes, estavam em depressão, em crise, o que vocês fizeram? A1: - O que eu fiz? A primeira coisa que eu fiz quando tava assim, fui lá na gaveta pegar a faca, porque eu falei que eu queria coráa os meus pulsos. Porque eu falei… igual à menina falou, a A3, que num tinha mais jeito, que acabou, num tem… o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que ninguém num tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo, pronto e acabô. Então a primeira coisa que eu fiz foi tentá cortar os meus pulsos, num consegui, porque… graças a Deus, porque a minha mãe pegô e viu, a minha mãe escondeu todas as faca. Aí depois eu peguei o garfo, quis enfiar o garfo assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o cabo da colhé assim, tentando me furá com o cabo da colhé, também nada. Peguei o caco de vidro, quebrei a garrafa assim e queria me cortá. Ela também, graças a Deus, tava lá também e num deixou eu me cortá. Eu corri, tentei fugi pra me afogar na 190 lagoa. Porque eu num sei nada direito. Então aí como eu tava doente, aí deixa eu morrê direito também. Aí era pra me afogá. Fugi de tudo, porque eu tava achano que se eu fugisse ia resolvê o meu pobrema. Então num podia deixá uma porta aberta que eu tava correno, e fugia correno mesmo. A varanda lá de casa é da altura daquela janela lá, tem um coisa, o alpendre da varanda é alto. Eu pulei lá de cima da varanda lá em baixo assim, só que eu num sei, foi Deus mesmo que num deixou eu me machucá, aí eu caí em cima da perna, machuquei a perna, mas num cheguei machucá outra coisa não. Tava tentano acabá com a minha vida mesmo, porque parecia que num tinha mais saída, solução. Então é isso que a gente faz, igual à gente tava, a gente acha que essas coisas vai resolvê os nossos pobremas. Quebrar tudo, dá um fim na vida da gente. Então eu tava achano que dá o fim na minha vida ia acabá os meus pobremas. Aí eu pegava e falava eu vô acabá com os meus pobremas e vô acabá com os pobremas da minha mãe, porque a minha mãe tá passano por esses pobremas por minha causa. Igual o A4 tá falano, a gente pega… por exemplo, se os pais brigam, a gente acha que eles tão brigano pela gente, que é culpa da gente. Então, o que acontece? Tanto que a Doutora me deu um remédio tão forte, mas tão forte, que eu tava dormindo de manhã, de tarde e de noite. Então a única coisa que a minha mãe me acordava era pra mim ir ao banheiro, bebê água e comê. Nem comê eu tava comeno. Então era muito pouco mesmo, então eu só dormia, porque eu tava achano que tudo que tava aconteceno era por minha culpa. Até se quebrasse um copo na minha casa era por minha culpa, porque fui eu que fiz isso, foi eu que… num sei como, mas eu que fiz, foi culpa minha. Igual quando a minha mãe discutia, isso é culpa minha. Por exemplo, a minha vó gritava com os menino, eu achava que era culpa minha. Então eu pegava a dor de todo mundo pra mim. Então eu me sentia sufocado. Então, tipo assim, eu falei assim, já que eu tô com a dor de todo mundo eu vô dá um fim na minha vida e acabá com o pobrema de todo mundo. Pronto, ninguém mais vai senti pobrema. Então no nosso entendê é que a gente era um fardo pesado pras pessoas carregarem, que tudo que tava passano na vida delas era minha culpa. Era eu que era culpado de tá aconteceno o que tava aconteceno. Tanto que a doutora me impediu até deu assisti televisão, porque quando passava assim: matô fulano de tal, passou 191 isso, passou aquilo, “Meu Deus, fui eu.” Então, tipo assim, num era eu, o cara que matô e eu que tomava aquela… “fui eu que matei, fui eu que matei. Agora, quem é que eu vô mata?” Então, o que acontece? Chegou eu falá que eu ia matá meu pai. Eu falava que eu ia esperá ele dormi, com a minha mãe mesmo, porque o meu pai me xingava bastante, ele me xingava bastante. Igual ele bebia, como eu falei, ele bebia e vinha descontá tudo em mim. Então, era só eu que era o errado, era só eu que era culpado de tudo. Então, nele falá essas coisas eu mesmo me sentia culpado de tudo, aí pegava e me sentia culpado e ele me xingava bastante. Aí eu peguei e falei, vô te matá também. Ocê tá me matano, eu vô te matá. Então, aí o que acontece? Aí eu peguei e falei com a minha mãe assim: eu vô espera ele dormi, eu vô matá ele. Num vô matá ocê não, mas eu vô matá ele. Aí a minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os garfo, todas as colher, todas as garrafa, até garrafa de água, de geladeira que tava lá. Louça, prato, tudo. Ela tirou tudo. Deixou a casa limpinha. Porque eu já tinha quebrado um bocado de coisa, então ela tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava reformano tudo aquilo que eu quebrei, todos os pratos, todas os jogos de talher, tudo. Aí ela falou assim: “Meu Deus, eu num posso deixá o meu filho fazê isso. O que eu vô fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino. Então, assim, a saída que eu tava encontrano era dormi, porque aí a minha saída era antes tentá morre, aí a minha outra saída foi dormi, porque eu dormino eu num ia vê que eu num tava fazeno nada com ninguém. Então eu dormia dia e noite, dia e noite. Ficava direto dormino, dormino. A minha saída, que eu tava encontrano neste momento, era o suicídio e dormi. Como o suicídio eu num tava conseguino, eu falei: vô dormi. Então eu dormi. A minha saída foi assim, neste momento. Até que, graças a Deus, deu tudo bem. P: - A1, você falou que tentou e num conseguiu. Você chegou a ir pra algum lugar quando você tava acordado? A1: - Já. P: - Como que foi isso? Você chegou a conseguir cortar? A1: - Já. O que eu fiz? Eu arranquei o meu cabelo da cabeça. Eu dava tanta crise que eu puxava o meu cabelo assim, arrancava o meu cabelo, puxava mesmo, num tinha dó de mim. Eu puxava. Aí teve uma vez, num foi assim… 192 eu me cortei e na crise lá de puxando o meu cabelo, tava sangrano a minha cabeça. Tava sangrando. Aí a minha mãe ligou pro hospital pra eles virem me buscá, porque eu ia arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo todo. Porque é uma coisa que só Deus mesmo pra tê misericórdia. A gente num sabe nem mesmo o que a gente tá fazeno. Depois que passa é que a gente vai vê. A gente fez isso mesmo? A3: Eu arrependo. A1: E eu me arrependo, porque uma vez eu peguei e dei um tapa na minha mãe, assim no braço dela, ficou roxo. Aí eu falei: mãe, a senhora machucou? Ela pegou e falou assim: “Machuquei, meu filho.” Depois as minhas irmã falaram assim, foi ocê que machucou a minha mãe. Foi ocê que machucou a minha mãe. Aí, tipo assim, eu peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha cabeça, porque eu falei: eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha mãe. Então, tipo assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali naquela hora. A2: Parece que num é a gente. A1: Depois que passa a gente arrepende e parece que é pior, porque a gente fica mais oprimido. A gente fica assim: meu Deus, aí agora o que é que eu vô fazê outra vez, quando eu tive outra crise, será que eu vô matá alguém, será que eu vô machucá alguém? Então fica muito difícil assim. Muito difícil mesmo. Aí a minha cabeça tava sangrano bastante, porque eu tinha arrancado esse pedaço do meu cabelo, um bocado, aí pegou eles me levaram pro hospital. Isso foi muito ruim, porque na hora que eu ia pentear o meu cabelo, num tinha o cabelo. Era muito ruim, tava doendo a minha cabeça demais, demais, demais mesmo. Aí eu tava dano ataque de epilepsia. O ataque era tão forte que quando eu dava o ataque tinha que corrê comigo pro hospital. Eu acordava e desmaiava, acordava e desmaiava e ficava assim. Aí até que um dia eu comecei a dar um negócio lá que parecia que eu tava morreno, que eu perdi a respiração e comecei a fazê aquela coisa assim, pareceno que era o último fôlego de vida. Aí correram comigo pro hospital e os médicos lá conseguiram me voltá lá e graças a Deus eu tô aqui. P: - A4. A4: É... O que que é pra falar mesmo? 193 P: Quando você estava muito triste, angustiado, aqueles fatos do passado que vocês contaram, o que você fez? A4: - A minha mãe tinha separado do meu pai, aí foi lá… eu tava dano muito trabalho pra minha mãe, ela falei assim: tô dano muito trabalho pra minha mãe, então eu vô morar com o meu pai. Aí eu fui lá pra morá com o meu pai, a minha mãe deixô, aí foi lá o meu pai num tinha dinheiro pra pagá a passagem, porque era muito longe, ele mora em outra cidade e a passagem é cara. Aí fui lá… falei assim, mas o que eu vô fazê, eu dô muito trabalho pra minha mãe. Aí eu comecei a fica sozinho, comecei a andá, depois aí eu tava andano com uns meninos lá... Tava brigano na escola, bateno nos meninos tudo. Aí fui lá e falei assim, ah, num vô pará de anda com esses menino, aí comecei a andá com meus amigo do bem, comecei a ficá na minha. Aí falei assim: o bom é isso. Aí fui lá e pedi à minha mãe de novo pra morá com o meu pai. A minha mãe deixô, o meu pai num tinha dinheiro pra pagá passagem. Aí eu fiquei muito mal por causa disso, aí foi lá, a minha mãe falô assim: ocê num vai morá mais com o seu pai não, ocê vai ficá aqui. Então foi assim… a senhora é o meu pai e a minha mãe, aí eu fiquei muito triste porque a minha mãe num deixou mais eu morá com o meu pai, fiquei lá perto dela, falei com ela que eu amo ela muito, aí foi lá e a minha mente ficou muito melhor, fiquei conversano muito com a minha família, relacionei muito melhor com a minha família, falava os segredos tudo com a minha família, aí foi lá… teve um dia que o meu pai foi lá em casa, falô que ia me buscá, aí eu comecei a chorá e falei que num queria mais morá com ele não. Eu fui lá pra casa da minha tia, corri pra lá, aí tinha uma planta lá que um dia a minha tia e meu tio falô que a planta era venenosa, aí eu peguei um pedaço da planta, na hora que eu ia colocá na boca assim, a minha tia viu e tomô da minha mão. Aí eu escondi no banheiro, fiquei bateno na porta do banheiro, fiquei fazeno um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversou comigo, aí foi lá, eu parei. P: - Quando você pegou essa planta, A4, o que você estava sentindo, o que você tava pensando, como que foi? A4: - Num sei. Tava sentino um negócio ruim. Parece que era minha vez de morrê mesmo, tava dano muito trabalho pra minha mãe, vô morrê, vô ficá muito 194 [palavra incompreensível]. Aí foi a hora que eu peguei a planta pra comê e aí a minha tia foi lá e pegô da minha mão. Aí fui pro banheiro e fiquei lá. P: - Então você queria morrer naquele dia. A4: - Queria. Porque era a única forma de… eu num ia dá trabalho pra ninguém. P: - E o que você estava sentindo? Assim, lá no seu coração, como o seu coração estava? A4: - Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai num queria mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava pensano nisso. Era o único jeito. P: - Você ficava pensando que a sua mãe e o seu pai num queriam mais que ocê existisse. A4: - É. Eu ficava pensano que dava muito trabalho pra minha mãe. 195 ANEXO A – Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa 196 197