Prevenção em Gastrenterologia
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Prevenção em Gastrenterologia
PREVENÇÃO EM GASTRENTEROLOGIA ANA PAULA OLIVEIRA Editora convidada FICHA TÉCNICA Produção Gráfica Rabiscos de Luz Com o patrocínio exclusivo de: AstraZeneca - Produtos Farmacêuticos Lda. Tiragem: 5000 exemplares Depósito Legal: 267150/07 3 PREVENÇÃO EM GASTRENTEROLOGIA EDITORA CONVIDADA Ana Paula Oliveira, Chefe de Serviço de Gastrenterologia Hospital São Bernardo - Setúbal, Serviço de Gastrenterologia COLABORADORES Ana Isabel Vieira, Assistente Hospitalar de Gastrenterologia Hospital Garcia de Orta – Almada, Serviço de Gastrenterologia Ana Luísa Alves, Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital São Bernardo - Setúbal, Serviço de Gastrenterologia Ana Margarida Vieira, Interna do Complementar de Gastrenterologia Hospital São Bernardo - Setúbal, Serviço de Gastrenterologia Armanda Cruz, Interna do Complementar de Gastrenterologia Centro Hospitalar do Alto Ave (Unidade de Guimarães), Serviço de Gastrenterologia Bruno Peixe, Assistente Hospitalar de Gastrenterologia Hospital Distrital de Faro, Serviço de Gastrenterologia Diamantino Sousa, Assistente Graduado de Gastrenterologia Hospital Distrital de Faro, Serviço de Gastrenterologia Élia Gamito, Assistente Hospitalar de Gastrenterologia Hospital São Bernardo - Setúbal, Serviço de Gastrenterologia Fátima Augusto, Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital São Bernardo - Setúbal, Serviço de Gastrenterologia 5 COLABORADORES (Cont.) José Cotter, Chefe de Serviço de Gastrenterologia Centro Hospitalar do Alto Ave (Unidade de Guimarães), Serviço de Gastrenterologia Luísa Glória, Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital Distrital de Santarém, Serviço de Gastrenterologia Lurdes Gonçalves, Assistente Hospitalar de Gastrenterologia Hospital do Espírito Santo – Évora, Serviço de Gastrenterologia Rogério Godinho, Assistente Hospitalar de Gastrenterologia Hospital do Espírito Santo – Évora, Serviço de Gastrenterologia Rui Loureiro, Interno do Complementar de Gastrenterologia Hospital Garcia de Orta – Almada, Serviço de Gastrenterologia Rute Cerqueira, Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital de São Sebastião – Santa Maria da Feira, Serviço de Gastrenterologia Teresa Belo, Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital Distrital de Faro, Serviço de Gastrenterologia 7 ÍNDICE Prevenção do cancro do esófago ........................................................ 17 Lurdes Gonçalves Prevenção do cancro gástrico ............................................................ 35 Armanda Cruz, José Cotter Prevenção dos tumores do intestino delgado ..................................... 55 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito Prevenção do cancro do cólon e recto................................................ 71 Luisa Glória Prevenção do cancro das vias biliares e pâncreas ............................. 105 Bruno Peixe, Diamantino Sousa Quimioprofilaxia das neoplasias gastrointestinais ............................ 121 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro Prevenção das lesões gastroduodenais provocadas por anti-inflamatórios não esteróides ................................................ 149 Rute Cerqueira Prevenção da úlcera de stress ............................................................ 163 Teresa Belo Prevenção das hepatites virais........................................................... 173 Fátima Augusto 9 PREVENÇÃO EM ENDOSCOPIA Prevenção das complicações em endoscopia digestiva ................ 187 Rogério Godinho, Rui Loureiro Protecção do pessoal numa Unidade de Técnicas de Gastrenterologia .................................................. 225 Ana Luísa Alves 11 PREFÁCIO Foi em 2003 que o Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais iniciou a edição de livros destinados a médicos gastrenterologistas e hepatologistas, a médicos de outras especialidades e a estudantes de Medicina. Essas edições, envolvendo um leque elevado de colaboradores empenhados, têm sido muito bem recebidas pelo público-alvo, o que nos tem estimulado a continuar na mesma senda, diversificando as temáticas. Relembremos os títulos anteriores: 1. Hepatites víricas (Ed. José Cotter) – 2003 2. Doença do Refluxo Gastro-esofágico (Ed. M. Isabelle Cremers) – 2004 3. Controvérsias em Gastrenterologia (Ed. António Banhudo, Rui de Sousa) – 2004 4. Patologias gastrenterológicas frequentes na criança, na grávida e no idoso (Ed. António Curado) – 2005 5. Situações urgentes em Gastrenterologia (Ed. José Pedrosa) – 2006 Enquanto actual Presidente do NGHD é com muita satisfação que prefacio, em 2007, a 6ª publicação do Núcleo, cuja edição, subordinada a um aliciante tema – Prevenção em Gastrenterologia, foi entregue a uma prestigiada gastrenterologista (Dra. Ana Paula Oliveira), directora de um Serviço de exemplar qualidade e que se rodeou de excelentes colaboradores. Caldas da Rainha, 03 de Setembro de 07 ANTÓNIO M. GONÇALVES CURADO (Presidente do Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais) 13 INTRODUÇÃO A concepção da medicina como a arte que tem por objectivos a cura das doenças e a manutenção da saúde já estava integrada na mitologia grega, há mais de 2500 anos. Asclépios, deus da medicina, além de sarar os doentes, tinha adquirido o poder de ressuscitar os mortos, contrariando as regras do destino humano. Sentindo o seu espaço ameaçado, Plutão, deus dos infernos, apresentou uma queixa a Júpiter. Asclépios foi castigado, mas deixou duas filhas que continuaram o seu mester: Hygeia, deusa da saúde – cujo nome está na origem da palavra higiene – que evitava as doenças, e Panaceia, que as curava. A medicina preventiva viria a tornar-se uma componente primordial da saúde pública, modificando mesmo a óptica da medicina, pois, em vez de permanecer passiva à espera que a doença se manifeste, passou a adoptar uma postura activa que visa impedir os indivíduos sãos de ficarem doentes. Mais recentemente, graças aos progressos da genética, surgiu a medicina preditiva que tem por fim identificar as doenças que ameaçam o indivíduo em função do seu genoma. O resultado mais inovador do advento desta medicina é a possibilidade de adaptar a vigilância médica ao tipo de patologia a que o indivíduo está predestinado, como acontece no cancro colorrectal hereditário. A quimioprevenção constitui um novo capítulo da farmacoterapia em que os medicamentos já não são utilizados para curar uma doença, mas para evitar o seu aparecimento. Embora com as reservas que a prudência aconselha face à necessidade da sua administração por tempo indeterminado, a quimioprevenção apresenta-se como uma alternativa promissora na luta contra diversas doenças, nomeadamente as neoplásicas. As medicinas preventiva e preditiva e a quimioprevenção em gastrenterologia constituem o tema desta publicação, a sexta de uma série iniciada, com assinalável êxito, pela Direcção do Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais, em 2003. Pela importância de que se reveste, demos particular relevo à prevenção do cancro digestivo, sem descurar outros temas, como a prevenção das lesões gastroduodenais associadas aos AINEs, a prevenção das úlceras de “stress” e a prevenção das hepatites víricas. Representando a endoscopia uma fracção muito significativa da actividade do gastrenterologista, não podíamos deixar de incluir nesta monografia a prevenção em endoscopia digestiva, no que diz respeito à iatrogenia e à protecção do pessoal. Considero uma honra e agradeço o convite que me foi dirigido pela Direcção do NGHD para coordenar esta publicação. A todos os colegas que aceitaram colaborar, agradeço a disponibilidade manifestada, e o empenho e rigor que revelaram na abordagem dos temas propostos, decisivos para o êxito desta iniciativa. Setúbal, Setembro de 2007 ANA PAULA OLIVEIRA (Editora convidada) 15 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO LURDES GONÇALVES lução temporal. A taxa de incidência global de cancro do esófago calculada mais recentemente no nosso país é de 1,3 e 8,5 por 100.000 habitantes, respectivamente no sexo feminino e masculino (período 1996-1998). Em termos de prevalência, o número de casos estimados no ano 2000 foi de 529, correspondendo a 1,44 % de todos os tumores malignos registados (consulta no portal da Direcção Geral de Saúde, Elementos Estatísticos da Saúde, 2004). INTRODUÇÃO O cancro do esófago constitui um importante problema de saúde a nível mundial, pela incidência crescente e elevada mortalidade. É um cancro particularmente agressivo, apresentando-se na maioria dos doentes já na fase de doença localmente avançada – com sintomas iniciados apenas 2 a 4 meses antes– e, por isso, continua a ter um prognóstico reservado, com sobrevida aos 5 anos inferior a 10%. Existem dois tipos histológicos major, o carcinoma pavimentocelular (CPC) e o adenocarcinoma (ADC), ambos de origem epitelial e que correspondem a mais de 95% dos cancros do esófago. A incidência global de cancro esofágico tem vindo a aumentar no mundo ocidental, mas com dois padrões distintos nas últimas 3 décadas: queda de cerca de 30% na incidência do CPC, paralelamente a um aumento de 4x da incidência do ADC (5x nos indivíduos do sexo masculino eurocaucasianos). 1,2 O adenocarcinoma é o tumor cuja incidência mais tem aumentado nos países desenvolvidos; nos Estados Unidos (EUA) já ultrapassou o CPC3, tornando-se o tipo mais comum nos eurocaucasianos, enquanto o CPC ainda predomina na raça negra1. Estudos recentes demonstraram que o fenómeno de inversão de incidências é generalizado à Austrália e aos países industrializados do Norte da Europa. Em Portugal não existem dados sobre a incidência de cada tipo histológico e a sua evo- Os avanços nos meios de diagnóstico e terapêutica pouco impacto tiveram na sobrevida dos doentes com cancro do esófago, independentemente do tipo histológico, pelo que é pertinente apostar na sua prevenção. A prevenção assenta no reconhecimento e evicção dos factores de risco e no rastreio/vigilância endoscópica de indivíduos com situações associadas a um maior risco de neoplasia (condições pré-malignas); o objectivo é a detecção atempada de lesões pré-malignas, alterações morfológicas com maior probabilidade de evoluirem para cancro (invasivo). As lesões displásicas são consideradas verdadeiras neoplasias não invasivas (não invadem a lâmina própria da mucosa) e são classificadas em baixo e alto grau. As lesões de baixo grau podem ser ressecadas ou vigiadas de forma intensiva; a ressecção é o tratamento de eleição para as lesões de alto grau. A prevenção do CPC e do ADC serão abordadas separadamente neste capítulo, dada a sua diferente epidemiologia e etiopatogénese. 17 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO A. CARCINOMA PAVIMENTOCELULAR Álcool e tabaco Na Europa do Norte e EUA cerca de 90% dos casos de CPC são associados ao consumo de tabaco e álcool. O risco relativo associado ao álcool varia entre 2,3 e 11,5, dependendo da dose e duração do consumo ( num estudo efectuado numa região francesa o risco relativo nos homens com consumo superior a 120 g/dia foi de 49!); a influência do tipo de bebida é controversa. Admite-se que o efeito do álcool se deva à acção local de carcinogéneos como nitrosaminas ou hidrocarbonetos policíclicos, a indução de défices nutricionais, a redução da biotransformação/ destoxificação hepática por hepatopatia ou a alterações no sistema imune.6 Os fumadores, expostos a vários carcinogéneos químicos, apresentam um risco relativo que varia entre 2,5 e 5,8, sendo dose-dependente e maior nos fumadores de charuto, cachimbo e cigarros sem filtro ou enrolados à mão.7 O álcool e o tabaco são factores independentes com efeito sinérgico, sendo o risco substancialmente maior quando ambos estão presentes. 6 A interrupção dos consumos parece eficaz na prevenção do CPC: a abstinência alcoólica durante um período superior a 10 anos reduz o risco para o equivalente ao dos não bebedores e a abstinência tabágica conduz, ao fim de 5 anos, a uma redução do risco para metade8,9. Ainda é a neoplasia do esófago mais prevalente a nível mundial, incluindo Portugal, mas a incidência tem-se reduzido nos países ocidentais. A nível mundial, a incidência é de 2,5 a 5 por 100.000 no sexo masculino e 1,5 a 2,5 por 100.000 no sexo feminino4. Nos EUA, o CPC corresponde a 1,5-2% de todos os cancros e a 5-7% dos cancros digestivos, com uma incidência anual global de 3 a 4 por 100.000 habitantes, afectando sobretudo o sexo masculino, entre os 60 e 70 anos, de raça negra (a incidência nos homens de raça negra atinge os 16,8 por 100.000)5. Uma característica epidemiológica particular do CPC é a marcada variação geográfica da incidência, inclusivamente dentro do mesmo país, chegando a haver diferença de 500 vezes entre áreas de alto e baixo risco. Áreas de alta incidência incluem regiões da China e India (Asian oesophageal cancer belt), com incidência média de 32/100.000, mas em algumas áreas acima de 100/100.000! Áreas de baixo risco encontram-se na Europa do Norte e de Leste, com incidência < 4/100.000.6 1. Etiologia e factores de risco É uma doença de causa multifactorial e são vários os factores de risco (quadro 1) QUADRO 1. CARCINOMA PAVIMENTO CELULAR – FACTORES DE RISCO Factores dietéticos e ambientais Factores exógenos O papel dos factores nutricionais na patogénese do CPC tem sido estudado sobretudo em áreas de elevada incidência. O alto teor de nitrosaminas na dieta é um particular factor de risco em regiões de África e Oriente. Em Linxian, na China, com incidência de CPC > 70/100000 habitantes, encontraramse nitrosaminas e precursores na água da rede pública e em vários alimentos.10 O método de conservação (salmoura, fumeiro) e preparação dos alimentos é também importante, Álcool e tabaco Factores da dieta e do ambiente Agentes infecciosos Radioterapia Condições de risco aumentado Estenoses cáusticas Acalásia Tilose História de tumores do tracto aerodigestivo alto Síndrome de Plummer-Vinson Doença celíaca Predisposição genética 18 Lurdes Gonçalves havendo alto teor de nitrosaminas nos vegetais em pickles, carne curada, peixe salgado e fumado. O consumo de alimentos e bebidas muito quentes também é factor de risco. Em Cachemira, com incidência de CPC acima dos 30/ 100000, o principal factor de risco é o hábito de ingerir muito chá quente e salgado juntamente com peixe fumado10. Os défices de vitaminas e minerais, nomeadamente Vitaminas A, B2 ou riboflavina, B12, C e E, PP ou niacina, acido fólico e zinco, podem ser factor de risco6. Dietas ricas em vegetais verdes ou amarelos (com B-carotenos) e citrinos associam-se a baixa incidência de CPC. O factor ambiental, juntamente com o dietético, pode ser responsável pela variação geográfica da incidência do CPC e pela elevada prevalência em áreas endémicas. Vários factores têm sido propostos, como o baixo teor no solo de alguns minerais como o zinco, magnésio, níquel ou fósforo. Em particular, constatou-se um baixo teor em molibdénio dos solos em áreas endémicas; desconhece-se como este facto vai afectar o epitélio esofágico, mas sabe-se que o molibdénio é co-factor da enzima nitrato redutase, que influencia o conteúdo em nitritos e nitratos das plantas.11 tumoral).12 O HPV só por si não parece suficiente para causar CPC, mas pode actuar de forma sinérgica com outros factores. Uma possível vacina contra oncoproteinas do HPV tem sido estudada na China em modelos animais. Várias espécies de fungos foram implicados na etiologia do CPC. O défice de molibdénio nos solos aumenta a susceptibilidade do milho a fungos como o fusarium e o aspergillus, capazes de produzir metabolitos carcinogéneos, como as nitrosaminas.14 Propôs-se a infecção a Helicobacter pylori como factor de risco, pelo ambiente de acloridria secundário à atrofia gástrica, que favoreceria o aumento de nitrosaminas a nivel gástrico.15 No entanto, até ao momento, a associação CPC e Helicobacter pylori ainda não foi estabelecida. A radioterapia do tórax por neoplasia da mama ou linfoma foi associada a aumento do risco de cancro do esófago, possivelmente por efeito mutagénico directo da radiação16. Lesão por cáusticos Existe um risco aumentado de CPC após lesão cáustica grave do esófago, particularmente por lexívia. Uma série na Finlândia determinou um risco de 1000 x em relação à população geral. 17 A incidência de cancro nas estenoses cáusticas estima-se em 2,3 a 6,2%; Cerca de 1 a 4% dos doentes com cancro esofágico têm história de ingestão de cáusticos.17 O intervalo médio entre a ingestão do cáustico e o desenvolvimento de cancro esofágico é de aproximadamente 40 anos. As estenoses surgem sobretudo ao nível da bifurcação traqueal (esófago médio) e os carcinomas desenvolvemse no interior da estenose. O prognóstico, em algumas séries, parece ser melhor que o do cancro esofágico esporádico.17,18 Não existem dados sobre programas de vigilância prospectivos, mas recomenda-se o início da vigilância endoscópica 15 a 20 anos após a ingestão do cáustico e repeti-la em intervalos de 1 a 3 anos.19 Agentes infecciosos O Epstein-Barr Virus e o Papiloma Virus Humano (HPV) são exemplos de virus DNA com tropismo para as células do epitélio pavimentoso . Trabalhos de diversas áreas geográficas indicam uma prevalência global de genoma do HPV em 1/3 dos casos de CPC do esófago, embora com grande variação nos diferentes estudos (um estudo português revelou uma prevalência de 50%)12,13. Os principais genótipos envolvidos são o HPV-16 e, em menor grau, o HPV-18, com propriedades oncogénicas in vitro e in vivo. Admite-se que a proteína E6 do HPV 16 e 18 interage com e promove a degradação da proteína do gene p53 (supressor 19 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO 65 anos. A maioria dos tumores surge no esófago distal.23 O gene responsável foi recentemente identificado – gene TOC (tylosis oesophageal cancer) e localiza-se no braço longo do cromossoma 17.24 É um dos raros grupos em que se justifica vigilância. Num programa de vigilância a uma família constatou-se que 14% dos indivíduos desenvolveram displasia num período de 5 anos e 1 doente desenvolveu cancro. Recomenda-se endoscopia inicial aos 30 anos e, embora o intervalo entre posteriores exames não esteja definido, recomenda-se intervalos de 1 a 3 anos.19 Acalásia O risco dos doentes com acalásia desenvolverem CPC parece maior que o da população em geral, variando em diferentes ensaios clínicos. A maioria encontrou um risco 7 a 33 x superior.20,21 Um trabalho recente de vigilância na Alemanha determinou um risco de 140 x 21. A prevalência de cancro na acalásia varia entre 0,4 e 9,2% nas diferentes séries. 20-22 A duração média de sintomas de acalásia antes do diagnóstico de cancro é de 15 anos. A idade média na altura do diagnóstico situase entre os 48 e 71 anos.O prognóstico do CPC na acalásia é muito reservado. Não se sabe se a miotomia cirúrgica, a dilatação por balão, o tratamento com bloqueadores de canais de cálcio ou a injecção de toxina botulínica afectam o risco de cancro.22 Embora a grande maioria dos tumores sejam CPC, já foram descritos casos de ADC associado a Esófago de Barrett (predominantemente após miotomia).22 O papel da vigilância endoscópica não é consensual, por não estar demonstrada uma relação custo-benefício que o justifique; contudo, alguns autores propõem endoscopia 15 anos após o início dos sintomas, baseados na elevada taxa de irressecabilidade e baixa sobrevida após a ressecção; não está definido o intervalo de vigilância subsequente.19 História de outros carcinomas pavimentocelulares da cabeça e pescoço (tracto aerodigestivo superior) Existe associação entre história passada ou presente de CPC da cabeça ou pescoço (cavidade oral, oro e hipofaringe, laringe), pulmão e CPC síncrono ou metácrono do esófago. A explicação pode estar nos factores de risco comuns (álcool e tabaco) e/ou em algum eventual factor de susceptibilidade individual. A incidência de CPCs múltiplos do tracto aerodigestivo superior é de 3,7 a 30%. Estudos prospectivos de endoscopia em doentes, a maioria homens, com tumores da cabeça e pescoço, encontraram incidências de cancro síncrono e/ou metácrono do esófago de 2,5 % a > 13,9%. No Japão a endoscopia sistemática, com uso de corantes vitais, em doentes com CPC da orofaringe revelou uma prevalência de 20% de CPC síncrono do esófago. O risco de tumor metácrono do esófago não parece diminuir com o tempo e o intervalo de aparecimento é variável. 25-27 A melhor medida preventiva é a eliminação de factores de risco. Um estudo em fumadores com tumor aerodigestivo superior mostrou que 40% dos que mantiveram os hábitos tabágicos desenvolveram outro tumor primário, contra apenas 6% do grupo que deixou de fumar.28 Tilose tipo A A tilose é uma doença autossómica dominante rara, caracterizada por hiperqueratose das regiões palmares e plantares. Foram identificados 2 tipos: A, de aparecimento tardio, entre os 5 e 15 anos, e que se associa a alta incidência de CPC do esófago; e B, que surge por volta de 1 ano de idade, benigna, não associada a neoplasia esofágica. 23 A tilose A foi descrita em 10 genealogias, associada a uma incidência média de 27% de cancro esofágico. A idade média de diagnóstico de cancro é aos 45 anos; nos primeiros relatos a incidência foi estimada em 95% aos 20 Lurdes Gonçalves Também neste grupo o custo-benefício do rastreio/ vigilância não está demonstrado, mas alguns autores recomendam pelo menos uma endoscopia para identificar um tumor síncrono do esófago, de preferência com uso de corantes vitais.19 2. Medidas preventivas Rastreio em áreas de elevada incidência A citologia esfoliativa com balão tem sido feita em regiões de elevada incidência do tumor, como na China, onde a endoscopia a grandes populações teria custos insuportáveis; apesar de menos sensível, esta técnica tem permitindo elevadas taxas de ressecção cirúrgica e sobrevida aos 5 e 10 anos de 86 e 75%, respectivamente.31 Também provou ser benéfico em grupos de risco seleccionados, como doentes com história de tumor do tracto aerodigestivo e portadores do genotipo ALDH 2.32 No Síndrome de Plummer- Vinson, caracterizado por anemia ferropénica, glossite e disfagia, cerca de 10% dos doentes, sobretudo mulheres entre os 15 e 50 anos, desenvolve cancro do esófago ou da faringe4. Os doentes celíacos têm risco aumentado de algumas neoplasias como linfomas e cancro do esófago, admitindo-se a relação com carências nutricionais ou alterações imunológicas; são sobretudo homens, com idade média de 50 anos e os tumores surgem habitualmente no esófago médio.6 Vigilância de indivíduos em risco. A quem e como ? – Quadro2 A Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal(ASGE) ponderou a vigilância endoscópica em 3 condições de alto risco: recomendou-a nos doentes com estenose cáustica e com tilose, mas considerou não existirem dados suficientes para a recomendar na acalásia. Predisposição genética Embora a tilose seja factor de risco individual geneticamente determinado, não se encontrou ainda nenhum factor de risco genético específico de população ou etnia. Estudou-se a relação entre a susceptibilidade ao cancro do esófago e os polimorfismos da S-transferase do glutatião (GST) e do citocromo P450 2EI (CYP2E), envolvidos na biotransformação de carcinogéneos. Os resultados indicam que o polimorfismo CYP2EI, primariamente responsável pela bioactivação de algumas nitrosaminas, pode estar implicado nos eventos iniciais de carcinogénese do CPC.29 Também se tem estudado o alelo mutante 2 da enzima aldeido–desidrogenase-2 (ALDH2), essencial na metabolização do álcool; este alelo, que codifica uma forma inactiva da enzima e condiciona susceptibilidade aumentada à intoxicação hepática, é frequente nas populações asiáticas e parece associar-se a um risco acrescido de CPCs múltiplos do esófago e orofaringe.30 Em doentes com tumores do tracto aerodigestivo superior em estádio inicial (estádio TMN e com hipótese de tratamento curativo) alguns autores sugerem exame pan-endoscópico – faringoesofagoscopia, laringoscopia e broncoscopia – à data do diagnóstico e repetido a cada 6 meses, por um período de 5 anos,33 estratégia que não está incluída nas recomendações recentes da ASGE. O risco de cancro no Síndrome de Plummer-Vinson parece maior do que na acalásia, por isso alguns autores recomendam vigilância,4 embora não existam dados ou propostas quanto ao intervalo entre exames. Na doença celíaca o risco de neoplasias parece diminuir com a aderência à dieta sem glúten pelo que não é clara a necessidade de um programa de vigilância. Não existem dados sobre o papel da vigilância em doentes com factores de risco dietéticos, ambientais ou infecciosos. 21 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO QUADRO 2 – VIGILÂNCIA DO CPC – RECOMENDAÇÕES ASGE 200619 Factor de risco Tilose Estenose cáustica Acalásia Tumor tracto aerodigestivo alto Início Intervalo vigilância aos 30 anos 1-3 anos 15-20 depois 1-3 anos não recomendada* não recomendada** * alguns autores sugerem EDA periódica, início 10-15 anos depois do diagnóstico ** alguns autores sugerem pelo menos EDA única na altura do diagnóstico A sensibilidade e especificidade da vigilância melhoram com o recurso a corantes vitais, como o Lugol, que cora o epitélio normal, orientando a biopsia para áreas descoradas suspeitas; por outro lado, ajuda a delimitar a extensão exacta da lesão quando se planeia mucosectomia. Nos tumores intraepiteliais do esófago, o risco de metastização ganglionar é muito baixo e a ressecção radical tem excelente prognóstico; nos doentes sem condições cirúrgicas, deve ser oferecida terapêutica endoscópica, sendo a mucosectomia a técnica de escolha, se a lesão for bem delimitada. Nos doentes com lesões displásicas não acessíveis à mucosectomia, a terapêutica fotodinâmica é uma alternativa. Até à data, nenhum agente quimiopreventivo pode ser recomendado, dada a inexistência de estudos que demonstrem a sua eficácia e benefício. B. ADENOCARCINOMA O adenocarcinoma do esófago é o cancro cuja incidência mais tem crescido no mundo ocidental, na ordem dos 4-10 % por ano; contudo, o risco absoluto de desenvolver ADC ao longo da vida é inferior a 1%36 e continua a ser um tumor pouco frequente. Uma característica da incidência do ADC em todas as populações estudadas é o forte predomínio do sexo masculino (7:1); a incidência é maior nos eurocaucasianos relativamente à raça negra (5:1), o que pode, em parte, ser explicado por diferenças socioeconómicas.37 Um estudo multicêntrico internacional mostrou que os países com maior incidência de ADC em homens eurocaucasianos incluíam o Reino Unido (8,7/100.000), Austrália (4,8/100000), EUA (3,7/100000). Os países da Europa de Leste e Escandinávia apresentaram baixa incidência; as taxas de crescimento mais elevadas, que atingiram 30% ao ano, foram observados nos países da Europa do Sul ( Portugal não está incluído na análise).38 A sobrevida aos 5 anos continua apenas na ordem dos 10% na maioria dos países ocidentais, pelo que é importante identificar factores de risco que possam ser alvo de prevenção (quadro 3). Quimioprevenção Nas regiões asiáticas de alta incidência tem-se estudado o papel de compostos inibidores do processo carcinogénico (inibidores da acção metabólica das nitrosaminas e hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, como os isotiocianatos e alguns compostos polifenólicos) ou promotores do destoxificação de carcinogéneos, como os agentes estimulantes da glutatião S-tranferase. Alguns destes compostos poderão ser fornecidos como suplemento dietético (vitaminas, oligoelementos ou suplementos complexos de origem vegetal). Tal como em relação a outros tumores do tubo digestivo, a aspirina e outros AINE´s parecem associar-se à redução do risco de CPC do esófago34, mas o mecanismo subjacente não está esclarecido e o seu valor como agente profiláctico ainda está em investigação.35 22 Lurdes Gonçalves 1. Factores de risco (quadro 3) cuja carcinogénese evolui fenotipicamente pela sequência metaplasia, displasia de baixo grau (DBG), displasia de alto grau (DAG), carcinoma intramucoso e carcinoma invasivo. Os indivíduos com EB têm um risco 30-60 x maior que a população geral de desenvolver ADC41, com uma incidência anual que não ultrapassa 0,5%.41,42 A maioria dos ADC surge em mucosa de Barrett e os segmentos longos parecem aumentar moderadamente o risco de displasia.43,44 Alguns autores propõem a extensão do EB e a idade do doente como factores de risco para ADC. Num ensaio prospectivo, a progressão EB - DAG multifocal ADC foi associado a EB > 2 cm, hérnia do hiato > 3 cm e presença de displasia em qualquer altura da vigilância.45 Apesar destes factos, a maioria dos doentes com EB nunca desenvolverá adenocarcinoma ao longo da vida. A prevalência de EB na população geral não é conhecida. A prevalência nos indivíduos com pirose frequente varia entre 3,5 e 12%, nas diferentes séries. Um estudo de base populacional recente, na Suécia, obteve uma prevalência de 1,6% na população geral, sendo de 2,3% e 1,2% nos indivíduos com e sem sintomas de refluxo, respectivamente.46 Um estudo americano registou prevalência de 8,3 e 5,6% nos doentes com e sem pirose.47 O EB encontra-se em 10-15% dos doentes que fazem endoscopia por manifestações de refluxo; a duração dos sintomas, mais do que a gravidade, associa-se à presença de EB.48 É mais prevalente nos doentes do sexo masculino (2:1),com idade acima de 40 anos e de raça eurocaucasiana. QUADRO 3 – ADC DO ESÓFAGO – FACTORES DE RISCO Factor de risco Refluxo Gastro esofagico/EB Obesidade Fármacos que relaxam EEI Colecistectomia Tabaco Papiloma virus Humano Álcool Hereditariedade Helicobacter pylori Frutos/ vegetais/ fibras cereais Adenocarcinoma +++ +++ ++ + + 0 0 0 – – associação positiva forte (+++), positiva moderada(++), positiva fraca (+), sem associação (0), negativa fraca (-); EB: esófago Barrett EEI: esfíncter esofágico inferior adaptada de Langergen J, Gut 2005; 54 (suppl); i11-i15 Refluxo gastro-esofágico/ Esófago de Barrett (EB) Estudos epidemiológicos recentes36,39,40 permitiram estabelecer o refluxo como factor de risco major para ADC. Um dos estudos, realizado a nível nacional na Suécia, determinou um risco 7,7 vezes superior na população com sintomas crónicos de refluxo em relação à população sem sintomas, risco que aumentava com a frequência, duração e gravidade dos mesmos (risco relativo de 43,5 se queixas graves há mais de 20 anos).36 Outro estudo do mesmo país, envolvendo registos hospitalares de 65000 doentes do sexo masculino com diagnósticos de pirose, hérnia do hiato ou esofagite, determinou um risco 9 vezes maior de ADC nos doentes com esofagite na endoscopia.40 O factor de maior risco para ADC é o esófago de Barrett (EB), que se define como a substituição do epitélio pavimentoso do esófago tubular por epitélio cilíndrico com metaplasia intestinal, qualquer que seja a extensão, e que pode ser reconhecido endoscopicamente (a definição implica confirmação histológica de qualquer suspeita endoscópica). O EB é uma condição pré-maligna, adquirida, secundária a doença de refluxo gastroesofágico prolongado; é o único precursor ou lesão pré-maligna reconhecido para ADC, Fármacos Um estudo sueco associa a toma contínua e prolongada (> 5 anos) de determinados fármacos que relaxam o EEI e promovem o refluxo a um risco pelo menos 2x maior de ADC: nitroglicerina, aminofilina, agonistas dos receptores B, anticolinérgicos e benzodiazepinas, que foram introduzidos no mercado 23 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO 2 . Medidas preventivas antes do aumento da incidência do ADC49. Esta associação não foi, contudo, confirmada num estudo americano50, mantendo-se a questão em aberto. A prevenção primária actua a nível dos factores de risco, por exemplo, através da promoção de hábitos de vida saudáveis para evitar a obesidade ou medidas para evitar o refluxo (cuidados com dieta, fármacos…). Obesidade A prevalência da obesidade (Indice Massa Corporal - IMC > 30) tem aumentado na Europa e EUA e vários estudos epidemiológicos controlados associam o IMC elevado ao risco de ADC, independentemente de haver ou não refluxo. Foi determinado um risco 16 vezes superior de ADC se IMC > 30 em comparação com IMC < 22.51,52 Ao contrário do que inicialmente se equacionou, vários estudos mostram que a terapêutica anti-refluxo – médica ou cirúrgica –- não se associa a regressão do EB ou a redução significativa dos segmentos metaplásicos, pelo que não reduz o risco de progressão neoplásica 40,55,56. Um trabalho recente mostrou um efeito protector dos inibidores da bomba de protões (IBP)57. Outros Tem-se vindo a estudar o potencial quimioprotector ou quimiopreventivo da aspirina e dos AINEs, baseados na evidência da sua utilização noutros cancros, em estudos epidemiológicos que os associam a um baixo risco de cancro do esófago e a trabalhos experimentais que mostram a redução do crescimento tumoral em doentes medicados com inibidores da COX 258. O tabaco está associado a um risco moderado de ADC; não foi encontrada associação consistente com o consumo de álcool.52 A colecistectomia também se parece associar a um risco maior de ADC, provavelmente pelo aumento de refluxo duodenal, nocivo para a mucosa esofágica.53 Parece haver uma relação inversa entre infeccção por Helicobacter pylori e risco de ADC15 mas nem todos os estudos são concordantes.54 O mecanismo subjacente ao eventual efeito protector seria a atrofia gástrica e a produção intragástrica de amónia induzidas pela bactéria. Dos factores de risco relacionados com a dieta, o mais bem estabelecido é o baixo consumo de frutos e vegetais, relacionado com o teor de antioxidantes. Sendo o ADC um cancro de incidência crescente e diagnosticado quase sempre em fase sintomática e de mau prognóstico, muitos especialistas e sociedades internacionais recomendam o rastreio e vigilância do EB, único precursor pré-maligno conhecido. Estas medidas não são consensuais, não estão validadas em estudos prospectivos randomizados, desconhecendo-se o seu custo-benefício, mas são intuitivamente razoáveis e universalmente praticadas. Desconhece-se a razão da crescente incidência de ADC nas últimas décadas. Admitese um aumento subjacente da incidência da doença de refluxo (sem dados fiáveis que o confirmem), eventualmente associada ao aumento do consumo de fármacos que relaxam o EEI e da prevalência de obesidade ou ao decréscimo da infecção a Helicobacter pylori. Nenhuma hipótese explica o forte predomínio no sexo masculino e a misteriosa epidemiologia deste tumor continua por decifrar. Rastreio do Esófago de Barrett O rastreio continua controverso: o número de indivíduos com refluxo crónico é grande e o ADC permanece raro, pelo que uma endoscopia em todos os doentes sintomáticos é insuportável pelos serviços de saúde; 40% 24 Lurdes Gonçalves ção de displasia; não se sabe se estes factos realmente acontecem ou se resultam de erros de amostra e interpretação. dos doentes com ADC não referem sintomatologia de refluxo prévia36; a esofagite erosiva pode mascarar EB subjacente e as biópsias em áreas de erosão podem causar falsos positivos para displasia; persistem inconsistências no diagnóstico endoscópico de EB, na colheita de amostras e na interpretação da histologia, com variação intra e inter-observador; não existem estudos randomizados controlados de avaliação do papel e custo-benefício do rastreio do EB na população geral ou mesmo nos doentes com refluxo, nem existe evidência de que reduza a mortalidade por ADC, o objectivo major do rastreio. Todas as evidências de custo-benefício da vigilância endoscópica do EB se basearam em modelos de decisão económica e não em ensaios clínicos. Estudos retrospectivos e de caso-controlo mostram que os tumores detectados durante programas de vigilância estão num estádio mais precoce e têm maiores taxas de ressecabilidade e cura que os tumores detectados em fase sintomática61,62,63 Por outro lado, estudos observacionais mostram que a maioria dos doentes com EB morre de outras causas que não ADC e não encontram benefício em termos de mortalidade/sobrevida nos programas longos de vigilância do EB.42 Por outro lado existem evidências suficientes de potenciais benefícios do rastreio, em doentes seleccionados, com risco acima da população geral. Trata-se de um procedimento único, de baixo risco, e capaz de diagnosticar a quase totalidade de adenocarcinomas prevalentes na população rastreada e potencialmente curáveis. Modelos económicos sugerem que o rastreio em individuos de alto risco – sexo masculino, > 50 anos, eurocaucasianos, com refluxo crónico e frequente, nomeadamente nocturno – é custo-benéfico comparativamente ao não rastreio.59,60 A ASGE recomenda uma endoscopia em doentes seleccionados, ou seja, com sintomatologia de refluxo prolongada (> 5 anos) e frequente (várias vezes na semana), e em particular se for homem, eurocaucasiano e de meia idade. Depois de um rastreio inicial negativo para EB, não está indicada outra endoscopia de rastreio.19 Um painel de experts no workshop sobre EB da AGA 2004 concordou que a vigilância com biopsias padronizadas detecta displasia e neoplasia em fase curável; metade dos experts rejeitou a afirmação de que prolonga a sobrevida; a maioria considerou que a vigilância a todos os doentes com EB não tinha custobenefício.41 O estudo ideal para demonstrar a eficácia da vigilância envolveria 5000 doentes seguidos durante 10 a 15 anos, randomizados em 2 grupos idênticos, com e sem vigilância; a sua concretização é improvável pela dimensão e por questões éticas. O argumento contra a vigilância baseado na inexistência de estudos não é aceitável, porque possivelmente nunca existirão. O benefício e a frequência óptima de vigilância dependem da incidência de ADC. Segundo o modelo de decisão analítica de Provenzale e assumindo uma incidência de cancro de 0,4 a 0,5 % ao ano, a endoscopia a cada 5 anos foi apontada como a única estratégia viável de vigilância64. Vigilância do Esófago de Barrett A história natural do EB e lesões associadas não é bem conhecida e é pouco abordada na literatura. A progressão da displasia não é linear nem inexorável; pode ocorrer progressão de EB para DAG ou cancro, sem prévia detecção de DBG; ou regressão aparente de DAG, passando-se anos sem posterior detec25 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO Se a presença ou grau de displasia for indeterminada e houver evidência de inflamação por refluxo gastroesofágico, devem repetir-se biopsias ao fim de 2 meses de terapêutica de inibição ácida. • Recomendações de vigilância As recomendações aqui apontadas baseiamse nas recomendações mais recentes da American Gastroenterological Association (AGA) de 200265 e da ASGE de 200619 (Quadro 4). Se a endoscopia sugerir EB, devem ser feitas múltiplas biopsias segundo o protocolo de Seattle66 (nos 4 quadrantes da mucosa de Barrett, a cada 2 cm e a começar na junção esofagogástrica, usando pinça standard ou jumbo), além de biopsias em lesões macroscópicas. O material obtido deve ser classificado quanto à presença de displasia (ausência, indefinida, baixo grau, alto grau, carcinoma), o mais importante factor preditivo de potencial maligno. O grau de displasia determina o intervalo de vigilância seguinte. A detecção de displasia de qualquer grau obriga à repetição de endoscopia com numerosas biopsias, para excluir carcinoma coexistente; em particular, a DAG deve ser confirmada por um patologista especialista na área; se existem alterações inflamatórias deve fazerse supressão ácida marcada antes de rebiopsar. Esófago de Barrett sem displasia Estes doentes devem repetir o exame dentro de um ano e, se o resultado for idêntico, são considerados de baixo risco de evolução para cancro, recomendando-se vigilância de 3 em 3 anos. Uma declaração de consenso recente da AGA recomendou um aumento deste intervalo para 5 anos67. Não se recomenda ablacção por métodos endoscópicos do epitélio de Barrett sem displasia, uma vez que não está provado que haja benefício e os riscos não são negligenciáveis.68 Displasia de Alto Grau Sabe-se que tem alto risco de adenocarcinoma actual ou futuro, mas são escassos os dados objectivos na literatura sobre a história QUADRO 4: RECOMENDAÇÕES DE VIGILÂNCIA DO EB E. Barret sem displasia (EBSD) Displasia baixo grau (DBG) Repetir EDA dentro de 1 ano EBSD Repetir EDA dentro de 6 meses EBSD EBSD EDA cada 3-5 anos Displasia alto grau (DAG) EDA 3-5 anos Repetir EDA em 1 mês DBG Repetir EDA em 1 ano DBG DAG EDA anual até EBSD 26 DAG cirurgia resseccção/ ablacção endoscópica vigilância 3/3 M vigiar c/ EDA 3/3 M Lurdes Gonçalves natural. Reid e Schnell verificaram uma incidência de ADC de 24% e 16%, ao fim de 5 e 7 anos de follow up, respectivamente69,70; a presença de nodularidade/ alteração macroscópica da mucosa com DAG aumenta 2,5 x o risco de ADC e a extensão histológica também influencia o risco, que é menor na DAG focal (5 ou menos criptas envolvidas) e maior na multifocal ou difusa,71 embora esta diferença ainda seja debatida.72 As técnicas endoscópicas têm impacto na sobrevida porque oferecem tratamento potencialmente curativo mesmo em indivíduos idosos e com comorbilidade; os doentes com condições cirúrgicas usufruem de um tratamento menos invasivo, ainda mais atractivo porque apenas uma minoria desenvolveria cancro ao fim de 5 anos. A vigilância intensiva é aceitável nos doentes idosos, status funcional baixo e comorbilidade grave, nomeadamente cardiopulmonar, ou que recusam cirurgia / ablacção endoscópica; recomenda-se a cada 3 meses, durante o primeiro ano, com biopsias a cada 1 cm, de preferência com pinça “jumbo”. Ao fim de 1 ano sem detecção de cancro, o intervalo pode ser alargado se 2 exames sucessivos não mostrarem alterações displásicas (por exemplo, exame a cada 6 meses nos 2 anos seguintes e depois anualmente enquanto não se voltar a detectar displasia). Na presença de DAG, deve-se ponderar terapêutica cirúrgica, mas a atitude deve ser individualizada. Existem 3 opções possíveis: esofagectomia (ainda o gold standard), técnicas endoscópicas de ressecção/ ablacção da mucosa ou vigilância intensiva. A ressecção cirúrgica é um tratamento definitivo mas associa-se a considerável mortalidade e morbilidade (precoce de 50% e tardia de 26%),68 e deve ser considerada em indivíduos sem outras doenças graves, com esperança de vida superior a 10 anos e em centros de referência.73 Displasia de Baixo Grau Tem evolução variável e o seu risco de cancro está mal definido. A incidência de cancro foi calculada em 0,6% ao ano, pouco acima da incidência no EB sem displasia. Num follow up longo (média de 5 anos) de uma grande série de doentes com DBG, a maioria regrediu ou estabilizou; apenas 10,3% progrediu para DAG e 3,2% para ADC.75 Em consequência, os intervalos de vigilância não estão bem definidos. Recomenda-se um 2.° exame ao fim de 6 meses, sob tratamento com IBP; se confirmar DBG, deve repetir ao fim de 1 ano e, depois, anualmente, enquanto a mesma persistir. Em alternativa utilizam-se técnicas endoscópicas – como a mucosectomia, a terapêutica fotodinâmica (TFD) e métodos térmicos como o Argon plasma – menos invasivas, com menor morbilidade/ mortalidade e que parecem competir com a cirurgia em termos de eficácia, podendo ser consideradas de 1.ª linha em doentes com risco cirúrgico. A mucosectomia tem a vantagem de poder recuperar o tecido ressecado e reestratificar o doente de acordo com o exame histológico; é particularmente indicada para lesões visíveis ou segmentos curtos de EB.68 A TFD foi recentemente aprovada pela FDA para o EB e DAG com base num grande ensaio multicêntrico randomizado.74 Uma das preocupações a ter com a terapêutica endoscópica é a alta incidência de lesões metácronas, obrigando a vigilância apertada. A ecoendoscopia é útil em doentes seleccionados quando se considera o tratamento endoscópico. A necessidade de tratamento da DBG não é consensual; os métodos endoscópicos são eficazes mas o impacto na evolução para cancro é desconhecido. Num estudo randomizado, a TFD com 5-ALA como fotossensibilizador, associada a omeprazol, erradicou DBG em 100% dos doentes ao fim de 1 ano (versus 33% no grupo de controlo, apenas com ome27 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO usados para identificar doentes em risco de evolução para ADC e estratificar a vigilância. prazol), com baixa taxa de complicações; ao fim de 53 meses todos mantiveram completa regressão da displasia, menos um, que desenvolveu tumor em mucosa de Barrett não tratada.76 Esta técnica poderá ser aplicada nos doentes que mantêm DBG após terapêutica adequada com IBP. A mucosectomia nos segmentos curtos de EB com DBG deve também continuar a ser avaliada.68 Estão em estudo várias alterações fenotípicas, associadas a determinados marcadores: proliferação aumentada (marcador: Ki-67), expressão aumentada de factores de crescimento (EGF, c-erbB2, TGF-alfa) e de factores inflamatórios (COX-2, TNF-alfa), adesão celular deficiente (expressão reduzida de E-caderina); também foram descritas alterações genéticas: anomalias cromossómicas, mutações específicas nos genes de supressão tumoral p53 e p16 e alterações no ciclo celular do epitélio ( aumento do n.° de células em fase S e fase G2). Apenas 2 marcadores foram avaliados prospectivamente no EB: a aneupleudia (alteração do conteúdo de DNA diferente da diploidia normal ou 2N) e o aumento da fracção 4N superior a 6%; ambos indicam instabilidade genómica e maior risco de progressão neoplásica e ambos são detectados por citometria de fluxo. Os doentes com estes marcadores têm incidência cumulativa de ADC de 28% aos 5 anos, versus 0% nos doentes que as não possuem69; a perda de heterozigotia 17p (locus do gene p53) também é um forte predictivo de progressão para ADC.79 Esta estratégia parece prometedora, mas carece ainda de estudos multicêntricos prospectivos que validem o seu papel na vigilância do EB. Nenhum marcador está ainda disponível para intervir na decisão clínica. • Perspectivas futuras Técnicas de diagnóstico menos invasivas, mais toleráveis e de baixo custo A esofagoscopia por cápsula está disponível como alternativa à endoscopia convencional, com menos riscos e desconforto, sem necessidade de sedação e com S=97%, E=99% e VPN=99% para o diagnóstico de EB,77 aguardando-se a determinação do seu custo-benefício. Outra alternativa com custo mais reduzido é a endoscopia com aparelhos ultrafinos e sem sedação. Estão também em desenvolvimento escovas transnasais e transorais que poderão melhorar o custo-eficácia e a tolerabilidade da vigilância do EB. A citologia esfoliativa permite colher amostras de toda a superfície da mucosa de Barrett e detectar alterações relevantes, já que as células displásicas se soltam mais facilmente, reduzindo o erro de amostragem e a morosidade do protocolo de Seattle. Contudo, ainda não foi avaliada a sua utilidade no rastreio e trabalhos de vigilância sugerem que a análise das amostras de citologia é mais difícil e menos fiável.78 Melhoria da detecção endoscópica Novas modalidades de imagem endoscópica têm surgido com a promessa de melhorar a detecção de lesões precursoras e do cancro precoce no EB, permitindo biopsias dirigidas e, eventualmente, vir a substituir a biopsia, com detecção de displasia em tempo real. As mais significativas são a endoscopia de alta resolução e magnificação; a cromoendoscopia; a narrow band Imaging (NBI);a videoautofluorescência, a tomografia de coerência optica e a endomicroscopia confocal. Estratificação do risco - Biomarcadores No processo de degeneração maligna do EB ocorrem alterações moleculares, genotípicas e fenotípicas, que antecedem as mudanças da morfologia arquitectural e celular necessárias para o diagnóstico histológico de displasia. Os marcadores moleculares podem ser 28 Lurdes Gonçalves Os endoscópios de alta resolução têm 600.000 a 1 milhão de pixeis, bem acima dos 100000 a 300000 pixeis dos endoscópios video standard, mas ambos podem estar limitados na observação do detalhe da mucosa por uma distância de focagem fixa; recentemente, alguns endoscópios foram equipados com um sistema mecânico de focagem, manipulado pelo endoscopista, que permite aproveitar todos os pixeis disponíveis sem perder na resolução da imagem. São os chamados endoscópios de magnificação ou de Zoom. 80 O NBI - narrow band imaging permite a observação ainda mais detalhada da mucosa e também da rede vascular superficial; usa filtros ópticos em vez de corantes; é um sistema controlado manualmente pelo endoscopista através de um botão no comando do aparelho; parece obter imagens comparáveis à cromoendoscopia de magnificação mas é mais rápido e fácil de utilizar. Num estudo recente cego e prospectivo do potencial do NBI na vigilância do EB, Sharma graduou as imagens de acordo com os padrões da mucosa e da vascularização (normal/anormal) e correlacionou-as com a histologia. O padrão irregular/ distorcido mostrou S, E e VPP de 100%, 98,7% e 95,3% respectivamente, para o diagnóstico de DAG. O padrão vascular anormal mostrou forte associação a DAG.84 A cromoendoscopia envolve a aplicação tópica de corantes para aumentar a detecção de lesões ou padrões anormais da mucosa. O azul de metileno (corante vital ) e o indigo carmim (corante de contraste) são os mais usados na cromoendoscopia do EB. O azul de metileno tem acuidade de 95% para detectar MI, mas não parece vantajoso na vigilância de displasia. Além disso surgiram suspeitas de indução de lesões genéticas no epitélio.81 O indigo carmim tem sido preferido por ser mais prático (pode ser directamente aplicado e a mucosa pode ser avaliada imediatamente após a aplicação). A endoscopia com autofluorescência permite identificar lesões que ficam ocultas na endoscopia de luz branca. Tem por base a estimulação por luz azul ou ultravioleta de certas moléculas dos tecidos (colagénio, aminoácidos aromáticos…) – os fluoróforos – que depois emitem luz fluorescente em diferentes comprimentos de onda. Devido à diferente composição de fluóforos e morfologia, os tecidos metaplásicos e displásicos têm diferentes espectros de autofluorescência. A sua vantagem é que pode usar-se como técnica “red flag” durante a visão geral da mucosa, chamando a atenção para áreas potencialmente neoplásicas; contudo, tem elevada taxa de falsos positivos.80 Sharma utilizou endoscopia de magnificação (x115) associada a cromoendoscopia com indigo carmin em 80 doentes com mucosa cilíndrica no esófago distal. Identificou 3 padrões de mucosa: circular, sulcado/viloso e irregular/ distorcido. O padrão sulcado/viloso teve uma sensibilidade (S) de 97%, especificidade (E) de 76% e valor preditivo positivo (VPP) de 92% para detecção de metaplasia intestinal, que só existia em 17% dos casos de padrão circular (este pode ser específico para a mucosa cárdica); e dos 6 doentes com padrão irregular/ distorcido, todos tinham DAG na histologia.82 Noutro estudo prospectivo multicêntrico com 56 doentes, o mesmo autor mostrou que o padrão irregular/ distorcido tinha uma S de 83%, E de 88% e VP Negativo de 98% para DAG, concluindo que este padrão é especifico para DAG e que, na sua ausência, as biopsias poderão ser desnecessárias.83 A tomografia de coerência óptica usa raios infravermelhos para excitação; a luz reflectida é analisada quanto ao atraso e intensidade da reflexão, com obtenção de imagens em tempo real por uma miniprobe no canal de trabalho do endoscópio. Outras técnicas espectroscópicas estão a emergir e em fase de investigação.73 Algumas destas novas modalidades são praticadas em centros de referência com 29 PREVENÇÃO DO CANCRO DO ESÓFAGO O futuro das estratégias de prevenção passa pelo melhor conhecimento dos factores envolvidos na oncogénese e na melhor definição dos grupos ou dos indivíduos em risco (por exemplo, com marcadores moleculares) para estratificação do risco e melhor gestão dos recursos; melhor conhecimento da história natural do CPC e do ADC para definir intervalos de vigilância seguros; testes mais económicos, menos invasivos e de eficácia sobreponível; aperfeiçoamento das técnicas de detecção e tratamento de lesões precoces, passando pela validação das técnicas recentemente desenvolvidas. doentes de risco elevado mas a maioria está ainda em investigação (nomeadamente protótipos que combinam endoscopia de alta resolução, NBI e video-autofluorescência). Todas precisam de ser validadas e comparadas com os métodos convencionais em termos de custo-benefício. CONCLUSÃO Actualmente, a prevenção do cancro do esófago – quer do ADC, de incidência crescente, quer do CPC, ainda o mais prevalente – passa fundamentalmente pela vigilância endoscópica de indivíduos com factor de risco elevado ou condições pré-malignas. O objectivo é detectar e tratar lesões em fase precoce e evitar a evolução para um cancro que tem péssimo prognóstico, quando diagnosticado em fase clínica. A quimioprevenção nomeadamente com AINE´s pode ter potencial mas continua em estudo. A prevenção primária, com educação para a saúde e eliminação de factores de risco ( por exemplo a suspensão do consumo de álcool e tabaco em relação ao CPC, a prevenção da obesidade em relação ao ADC ), não deve ser desvalorizada. A endoscopia de rastreio e vigilância é praticada pelos clínicos e sujeita a recomendações por sociedades internacionais, mas não existem provas consistentes nem consensos quanto ao seu custo-benefício e à influência na sobrevida, nem estão bem definidos os grupos alvo ou o timing endoscópico. 30 Lurdes Gonçalves BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. Blot WJ & McLaughlin JK. The changing epidemiology of esophageal cancer. Seminars in Oncology 1999;26:2-8. Holmes RS, Vaughan TL. Epidemilogy and pathogenesis of esophageal cancer. Semin Radiat Oncol 2007;17:2-9. Devesa SS, Blot WJ, Fraumeni JF Jr. Changing patterns in the incidence of esophageal and gastric carcinoma in the United States. Cancer 1998; 83:2049-53. Messman H. Squamous cell cancer of the oesophagus. Best Practice & Research Clinic Gastroenterology 2001; vol 15:2; 249-265. Wingo PA, Tong T & Bolden S. Cancer statistics 1995. Cancer J Clin 1995. 45:8-30. 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Na sua complexa etiologia incluem-se factores ambientais, factores relacionados com o hospedeiro e factores pré-neoplásicos (Quadro 1). Assim, será imperioso adoptar medidas Cancro gástrico, carcinoma gástrico e adenocarcinoma gástrico, são utilizados na prática como sinónimos, uma vez que a maioria das neoplasias gástricas, mais de 90%, são adenocarcinomas (1). Inclui duas entidades histológicas, os tipos intestinal e difuso, tal como classificado por Lauren, distintos no que diz respeito à epidemiologia, etiologia, patogénese e comportamento (2). O tipo intestinal é mais comum no sexo masculino e na faixa etária mais avançada, sendo mais prevalente em áreas de alto risco e estando mais provavelmente associado a factores ambientais. Pelo contrário, o tipo difuso, apresenta frequência semelhante em ambos os sexos, é mais frequente em idades mais jovens, geralmente abaixo dos 50 anos, e apresenta pior prognóstico (3). O cancro gástrico é um problema de saúde mundial major (4). Não apresenta uniformidade na distribuição, verificando-se marcada variação na sua incidência e mortalidade. As taxas de incidência mais elevadas encontram-se no Japão, China, Europa de Leste e região andina da América do Sul, enquanto taxas mais baixas se verificam na América do Norte, Europa do Norte, África e Austrália (5). No universo da Comunidade Europeia, o cancro gástrico é a 4ª causa de morte por neoplasia, com 870000 novos casos e 650000 mortes por ano (6). Portugal tem descritas elevadas taxas de incidência e mortalidade, respectivamente QUADRO 1 – CANCRO GÁSTRICO 1- Factores Ambientais a) Refrigeração b) Dieta: – compostos nitrosados – sal – frutas, vegetais, antioxidantes c) Tabaco d) Anti-inflamatórios não esteróides e) Vírus Epstein-Barr f) Helicobacter pylori 2- Factores Relacionados com o Hospedeiro a) Predisposição familiar b) Polimorfismos genéticos c) Gastrectomia parcial por doença ulcerosa péptica 3- Lesões Precursoras a) Gastrite atrófica b) Metaplasia Intestinal c) Displasia 35 PREVENÇÃO DO CANCRO GÁSTRICO Dieta preventivas, de forma a objectivamente se reduzir a morbilidade e mortalidade que lhe estão associadas. Essas medidas preventivas deverão incluir intervenções ao nível dos três factores citados (4). Numerosos factores dietéticos têm sido implicados como factores de risco para cancro gástrico. a) Compostos nitrosados FACTORES DE RISCO AMBIENTAIS Uma das associações dietéticas mais consistentes tem sido a exposição a compostos nitrosados (12-14), que são conhecidos mitogénios e carcinogénios (15, 16). Os componentes N-nitrosos, geram-se após consumo de nitratos, os quais são compostos naturais de alimentos como vegetais e batatas e são usados como aditivos em alguns queijos e carnes curadas. São absorvidos no estômago e segregados na saliva numa forma concentrada, sendo reduzidos a nitritos pelas bactérias orais. Os nitritos podem reagir com compostos nitrosáveis como aminas, amidas e aminoácidos para formar os compostos N- nitroso. Alguns estudos demonstraram que existe um aumento do nitrito gástrico em doentes com metaplasia intestinal, displasia e cancro gástrico (17-19). Foi também verificado que os fertilizantes baseados em nitratos (18,20,21) e os alimentos picantes e pickles, que contêm produtos nitrosados, se correlacionam com cancro gástrico (9, 22). Pelo contrário, num estudo cohort prospectivo envolvendo 120852 indivíduos do sexo masculino, que foram seguidos por um período de 6,3 anos, não foi possível demonstrar risco aumentado de cancro gástrico com a ingestão dietética de nitratos (23). Podemos pois concluir que, apesar de teoricamente poderem ser carcinogéneos gástricos, a importância dos nitratos dietéticos na patogénese do cancro gástrico permanece não totalmente clarificada. Os factores de risco ambientais desempenham um papel etiológico importante ou mesmo crucial no desenvolvimento do cancro gástrico. O fenómeno migratório pode conduzir a uma modificação do risco de cancro gástrico devido à adopção pelas populações imigrantes, sobretudo da segunda e terceira gerações, do estilo de vida e, consequentemente, do padrão de doença. Num estudo realizado em Japoneses residentes no Hawai constataram-se taxas de incidência de cancro gástrico de 24,3% no sexo masculino e 11,1% no sexo feminino, correspondendo estas a 1/3 e 3 vezes as verificadas no Japão e nos Estados Unidos respectivamente (8). Em outro estudo realizado em imigrantes Japoneses nos Estados Unidos, as taxas de incidência e mortalidade de cancro gástrico, sobretudo nas gerações subsequentes (2.ª e 3.ª gerações), diminuíram até taxas sobreponíveis às da população branca dos Estados Unidos, o que corrobora que a exposição precoce a factores ambientais, mais do que os factores genéticos, parece influenciar as taxas de incidência e mortalidade (8,9). Refrigeração A utilização da refrigeração tem sido associada à diminuição do risco de cancro gástrico (10, 11) . As baixas temperaturas reduzirão a taxa de contaminação bacteriana e fúngica dos alimentos frescos e a formação bacteriana de nitritos, com consequente redução do potencial oncogénico. b) Sal O sal é outro factor dietético implicado no desenvolvimento de cancro gástrico. 36 Armanda Cruz, José Cotter o β caroteno e o selénio, diminuirá o risco de cancro gástrico apenas cerca de 2 anos após o início da suplementação (38). Pelo contrário, existem estudos em que não se verificou diminuição do risco de cancro gástrico com a ingestão de fruta e vegetais. Recentemente foram publicadas duas metaanálises, envolvendo 521457 doentes pertencentes a 10 países da Europa, seguidos por um período médio de 6 anos e meio, nas quais não foi observada associação entre consumo de vegetais e redução de risco de cancro gástrico, com a possível associação negativa ao tipo intestinal. Igualmente não se observou associação com o consumo de fruta, excepto talvez no caso dos citrinos e o cancro do cárdia (39). Em síntese, pode concluir-se que o efeito do consumo de frutas, vegetais e antioxidantes na incidência do cancro gástrico é inconclusivo, sendo necessários mais estudos para definitivamente demonstrar essa associação. A carne e o peixe curados ou fumados, os pickles e os picantes, são alguns dos alimentos associados a risco aumentado de cancro gástrico em algumas populações. A elevada ingestão salina lesa a mucosa gástrica e aumenta a susceptibilidade à carcinogénese em roedores (24-26). Num estudo envolvendo 24 países, foi demonstrada uma correlação positiva entre a ingestão de nitratos, excreção de sal e cancro gástrico (27). Em outro estudo, o risco da elevada ingestão de sal foi maior em doentes com infecção pelo Helicobacter pylori e gastrite atrófica (28). Populações com elevada ingestão de sal na dieta, apresentam um risco 50 a 80% maior de cancro gástrico (29,30), sendo o risco relativo do seu desenvolvimento cerca de duas vezes superior (31,32). Verifica-se assim, de uma forma amplamente demonstrada, que a dieta com elevado teor em sal parece predispor ao cancro gástrico e às suas lesões precursoras. Tabaco O tabaco parece aumentar o risco de cancro gástrico. Esse risco será entre 1,5 a 2 vezes, tal como o demonstrado em vários estudos sucessivamente publicados (40-44), nomeadamente numa meta-análise que envolveu 40 trabalhos (45) , corroborando a hipótese do tabaco poder aumentar o risco de cancro gástrico. c) Frutas, vegetais e antioxidantes Fruta e vegetais frescos parecem reduzir em 30 a 50% o risco de cancro gástrico (29, 3135) , efeito esse dependente de um consumo aumentado de vitaminas antioxidantes, as quais, ao sequestrarem os radicais livres de oxigénio, diminuem a formação de carcinogéneos e mutagéneos no estômago. São, contudo, vários os estudos publicados com resultados aparentemente contraditórios. Num estudo publicado envolvendo 29133 homens, fumadores, seguidos por um período médio de 12 anos, a ingestão de fruta, vitamina C, vitamina E, α tocoferol e licopeno, foi protectora contra o cancro gástrico (36). Em outro estudo com 103 casos de cancro gástrico e 133 casos controlo, verificou-se que o consumo de vitamina C, vitamina A e gorduras polinsaturadas poderá ter um efeito protector (37). Foi ainda demonstrado que a elevada ingestão de antioxidantes como a vitamina E, Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) Vários estudos epidemiológicos e experimentais demonstraram o efeito benéfico dos anti-inflamatórios não esteróides na diminuição do risco de cancro gástrico (46-52). Esse efeito resulta da inibição da ciclooxigenase, em particular a isoforma cox 2, uma vez que a expressão da cox 2 parece favorecer o crescimento tumoral, estando aumentada em cerca de 70% dos tumores gástricos (1). Os mecanismos de acção responsáveis pelo efeito supressor dos AINEs na carcinogé37 PREVENÇÃO DO CANCRO GÁSTRICO nese são, provavelmente, a indução da apoptose nas células epiteliais e a regulação da angiogénese (46). Permanecem, no entanto, muitas questões por esclarecer tais como a dose óptima e a duração do tratamento. Os anti-inflamatórios não esteróides, incluindo os inibidores selectivos da ciclooxigenase 2 são, pois, potenciais fármacos a utilizar, no futuro, na quimioprevenção do cancro gástrico. Helicobacter Pylori O Helicobacter pylori é uma bactéria gram negativa, espiralada, conhecida desde 1980 (82) . Foi inicialmente designada por Campylobacter pyloridis e, só mais tarde, em 1989, passou a designar-se Helicobacter pylori (75-77). A sua prevalência na população mundial é de aproximadamente 50%, estando identificadas variações geográficas, com prevalências de cerca de 80% em países em desenvolvimento e de 20 a 50% em países desenvolvidos (78). Estima-se que 6 a 20% das infecções pelo Helicobacter pylori resultem em úlcera péptica, mas menos de 1% em cancro gástrico (79). A evidência epidemiológica da associação entre o Helicobacter pylori e cancro gástrico foi inicialmente sustentada por três estudos cohort, prospectivos, que mostraram um aumento significativo do risco em indivíduos que apresentaram durante dez ou mais anos anticorpos anti-Helicobacter pylori (80,81). A estes estudos iniciais, vários outros se seguiram e, desde 1994, o Helicobacter pylori é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (WHO) e pela International Agency on Cancer Research (IARC) como um carcinogéneo tipo I ou definitivo, sugerindo que existe no homem evidência suficiente da carcinogenicidade da infecção pelo Helicobacter pylori (82). O Helicobacter pylori é a principal causa de gastrite e duodenite, favorecendo o aparecimento de úlcera gástrica e duodenal. Está implicado em 53% dos cancros gástricos em países em desenvolvimento e 60% em países desenvolvidos (83). No homem, a infecção é adquirida precocemente na infância, através de transmissão oral fecal, verificando-se aumento da seropositividade com a idade; a infecção persiste na ausência de terapêutica, podendo ocorrer seroconversão após erradicação (78). O Helicobacter pylori produz inflamação gástrica e induz alterações fenotípicas que condicionam o desenvolvimento de cancro gástrico (84-86). Trata-se de um processo neoplásico prolongado, que dura décadas e prece- Vírus Epstein Barr Apesar de ter sido descoberto em 1964 (53), o vírus Epstein Barr só foi pela primeira vez associado ao cancro gástrico em 1990, sendo os relatos desta associação progressivamente mais focados ao longo dos últimos anos. Está classificado pela International Agency for Research on Cancer IARC e pela Organização Mundial de Saúde WHO como um carcinogéneo do grupo 1, indicando a forte evidência da sua carcinogenicidade na etiologia do linfoma de Burkitt, linfoma de células T angiocêntrico sinonasal, na doença de Hodgkin e no carcinoma nasofaríngeo (54). Estima-se que a prevalência do cancro gástrico associado ao vírus de Epstein Barr seja de 5 a 15% (55,56). São várias as localizações geográficas onde esta associação tem sido observada, nomeadamente no Japão (57-59), na China (60,61), em Taiwan (62), na Coreia (63), na Alemanha (64), em França (65), nos Estados Unidos (66) e na Argentina (67), estando descrita uma prevalência no Japão 3 vezes superior à verificada nos Estados Unidos (68). Caracteristicamente é mais prevalente no sexo masculino, com um ratio sexo masculino/ feminino de 3/1, localiza-se preferencialmente na zona do cárdia e associa-se mais frequentemente ao tipo histológico difuso (69-72). O mecanismo da carcinogénese gástrica induzida pelo vírus Epstein Barr não está completamente esclarecido, pensando-se ser diferente dos outros cancros gástricos não associados a esta infecção (73). 38 Armanda Cruz, José Cotter dantes. Todos estes factores em combinação com a deplecção de defesas antioxidantes, podem predispor à carcinogénese ao aumentar a probabilidade de mutações no DNA. A acumulação dessas mutações pode conduzir a metaplasia, displasia e cancro gástrico (97-100). O diagnóstico da infecção pelo Helicobacter pylori e o tratamento apropriado poderão vir a ser componentes fundamentais de um programa de prevenção do cancro gástrico.A erradicação do Helicobacter pylori, podendo ser parte de uma estratégia de prevenção de cancro gástrico poderá incluir medidas como a vacinação ou a utilização de antibióticos (101-103). A vacinação torna-se cada vez mais importante porque, com alguma frequência, os tratamentos adoptados não erradicam o Helicobacter pylori. São já várias as vacinas experimentais testadas, mas ainda não comercialmente disponíveis (104,105). Mesmo assim, o efeito da erradicação do Helicobacter pylori no risco subsequente de cancro gástrico, permanece ainda não totalmente esclarecido. Vários estudos têm demonstrado que a erradicação do Helicobacter pylori diminui o stress oxidativo e a proliferação celular (106) e pode diminuir a progressão da atrofia e, talvez, promover a regressão parcial da metaplasia, inibindo desta forma a progressão para cancro gástrico (107-111). Um estudo de Uemura et al, que incluiu 1562 doentes dispépticos, infectados e não infectados, submetidos a endoscopia alta, após a qual alguns fizeram terapêutica de erradicação, verificou o desenvolvimento de cancro gástrico em 3% dos doentes infectados que não receberam terapêutica de erradicação e em nenhum dos que receberam terapêutica de erradicação adequada (112). Num outro estudo prospectivo, randomizado, de base populacional, publicado em 2003, foi avaliado, numa população de alto risco da China, o efeito da erradicação do Helicobacter pylori, na redução da incidência de cancro gástrico, constatando-se uma diminuição da incidência no subgrupo de doentes sem lesões pré- de a maioria dos cancros gástricos. Inclui as etapas gastrite crónica, atrofia multifocal, metaplasia intestinal e neoplasia intraepitelial (87) . Os potenciais mecanismos da carcinogénese gástrica induzida pelo Helicobacter pylori incluem factores dependentes da bactéria, factores dependentes do hospedeiro e factores dietéticos/ ambientais, parecendo ser necessária a combinação entre estirpes bacterianas virulentas, hospedeiro geneticamente susceptível e ambiente gástrico favorável. O Helicobacter pylori utiliza uma variedade de estratégias para sobreviver no ambiente gástrico ácido. A sua motilidade permite uma aproximação às células epiteliais gástricas (88,89) e, as adesinas, família de proteínas de membrana, promovem essa ligação. Uma das adesinas mais conhecidas é a Bab 2, a qual condiciona uma adesão mais intensa às células epiteliais, conferindo um fenótipo mais agressivo (90). A superóxido dismutase e a catalase tornam o Helicobacter pylori resistente à fagocitose. A citotoxina vacuolizante Vac A e a proteína associada à citotoxina Cag A podem promover a lesão epitelial (91,92). Foi demonstrado, por Blaser et al, que as estirpes Cag A + têm maior patogenicidade e aumentam o risco de cancro gástrico de tipo intestinal (93). Censini et al demonstraram que o gene Cag A está localizado num segmento de DNA que contém cerca de 40 genes e que codifica factores de virulência bacteriana (94). De facto, estirpes virulentas como Cag A +, Vac A e Bab 2 parecem ser indutores mais potentes de mediadores pró-inflamatórios do que estirpes não virulentas, o que poderia explicar a elevada associação entre estirpes Cag A + e cancro gástrico (95). A resposta imune do hospedeiro envolve uma rede complexa de mediadores inflamatórios como a IL1, IL6 e TNFα e de peptídeos imunossupressores (96). A infecção crónica pelo Helicobacter pylori condiciona alterações do ciclo celular tais como aumento da replicação de células epiteliais, aumento da apoptose e produção de oxi39 PREVENÇÃO DO CANCRO GÁSTRICO malignas no início do estudo (111), o que sugere que alguns destes doentes possam ter acumulado alterações celulares suficientes para promover o cancro gástrico, definindo desta forma inequívoca um ponto sem retorno (113). Assim, a evidência actual parece apoiar o pressuposto de que a erradicação precoce do Helicobacter pylori possa prevenir a progressão para o cancro gástrico. Parsonnet et al sugeriram que o rastreio e tratamento do Helicobacter pylori poderia ser benéfico na prevenção do cancro gástrico em termos de custo eficácia, partindo do pressuposto de que a terapêutica de erradicação previne 30% dos cancros do estômago (114). O conceito da erradicação do Helicobacter pylori como forma de prevenção do cancro gástrico é, portanto, atractiva, embora no presente permaneça por esclarecer se a erradicação global fará, no futuro, parte de um programa de prevenção. São argumentos contra a generalização da erradicação, a baixa percentagem de cancro gástrico em indivíduos infectados pelo Helicobacter pylori (< 1%) (115), ao mesmo tempo que permanecem dúvidas sobre o potencial risco de refluxo gastroesofágico, esófago de Barrett e carcinoma do esófago nos indivíduos em que o Helicobacter foi erradicado. Assim, no presente e no contexto do cancro gástrico, será recomendável proceder à erradicação do Helicobacter pylori em doentes com gastrite crónica atrófica documentada, em familiares de 1.° grau de doentes com cancro gástrico e em doentes com gastrectomia por cancro gástrico (116). , embora, em alguns casos, a base genética subjacente à predisposição não seja perfeitamente compreendida. Assim, algum do risco familiar observado pode resultar da agregação familiar da infecção pelo Helicobacter pylori (121), embora esteja descrita história familiar de cancro gástrico independentemente da infecção pelo Helicobacter pylori (122,123). Está também descrita a associação de cancro gástrico com certos síndromes hereditários como o síndrome de Lynch tipo II, a polipose adenomatosa familiar, a polipose juvenil, o síndrome de Li–Fraumani e o síndrome de Peutz – Jeghers. Nos casos de síndrome de Lynch tipo II, o cancro gástrico desenvolve-se como parte do síndrome do cancro do cólon hereditário não polipóide (124,125). O cancro é do tipo intestinal de Lauren, não estando associado à infecção pelo Helicobacter pylori e exibindo, a maioria, instabilidade de microssatélites (126). O cancro gástrico também pode ocorrer no contexto dos síndromes polipóides gastrointestinais como a polipose adenomatosa familiar e o síndrome de Peutz – Jeghers. O cancro gástrico é raro nestes síndromes e permanece por esclarecer o papel das mutações APC e LKB1/ STK11 no desenvolvimento do cancro. Neste contexto, o benefício da instituição de programas de vigilância de cancro gástrico não foi demonstrado, sendo sensata a individualização dos programas de vigilância (127). É também prudente realizar a pesquisa e a erradicação do Helicobacter pylori. Cerca de 1 a 3% dos cancros gástricos resultam de uma predisposição genética hereditária (128). O cancro gástrico hereditário de tipo difuso foi, pela primeira vez, identificado na Nova Zelândia numa família Maori em 1964 (129) e na Europa em 1998 (131). Resulta de uma mutação germinativa no gene da caderina E (CDH1), o qual é um importante gene supressor tumoral envolvido na carcinogénese gástrica. Cerca de 50% dos cancros gástricos (118-120) FACTORES RELACIONADOS COM O HOSPEDEIRO Predisposição familiar A maioria dos cancros gástricos ocorre de forma esporádica. Apenas 8 a 10% têm um componente familiar hereditário (117). São vários os estudos que demonstram predisposição genética para cancro gástrico 40 Armanda Cruz, José Cotter hereditários difusos apresentam mutações truncadas do CDH1 (131). Hoje, estão registadas pelo menos 45 famílias em todo o Mundo com cancro gástrico hereditário difuso devido a mutações do CDH1 da caderina E (132). Este, exibe um padrão de hereditariedade autossómico dominante com penetrância de 70-80% (133). O risco cumulativo estimado de cancro gástrico hereditário avançado é, no homem, de cerca de 67% e na mulher, de 73% (133). O “ International Gastric Cancer Linkage Consortium” (IGC LC) propôs como critérios de consenso para o diagnóstico os seguintes: dois ou mais casos de cancro gástrico de tipo difuso em familiares de 1.° ou 2.° grau com, pelo menos, um diagnosticado em idade inferior a 50 anos ou três ou mais casos de cancro gástrico de tipo difuso em familiares de 1.° ou 2.° grau, independentemente da idade de diagnóstico (128,131). O risco de cancro gástrico, em portadores assintomáticos das mutações truncadas do CDH1 pertencentes a famílias com cancro gástrico hereditário difuso com penetrância elevada, é suficientemente alto para justificar a necessidade de aconselhamento genético, com consideração da gastrectomia profilática (132,134,135) . Está recomendado o rastreio genético aos 16 anos de idade (141), nos doentes que preencham os critérios acima referidos ou naqueles cuja história familiar inclua outras neoplasias potencialmente relacionadas com as mutações CDH1, incluindo o carcinoma lobular da mama ou em anel de sinete do cólon. Dado o risco de cancro gástrico em indivíduos com mutação germinativa do CDH1 com idade inferior a 20 anos ser menor que 1%, está recomendada a vigilância bianual através de EDA com cromoscopia e múltiplas biopsias, realizada por um gastrenterologista experiente, entre os 16 e os 20 anos. Após os 20 anos está recomendada a gastrectomia profilática (128,131,136). Nestes doentes, e porque a infecção pelo Helicobacter pylori pode ser um importante cofactor, com papel activo na carcinogénese gás- trica (128), será prudente a sua pesquisa e erradicação. São critérios de cancro gástrico hereditário de tipo intestinal, em países de elevada prevalência como Portugal, segundo o “International Gastric Cancer Linkage Consortium” (IGC LC) os seguintes: três familiares com cancro gástrico intestinal, sendo um de 1.° grau dos outros dois, envolvendo duas gerações sucessivas e, pelo menos um dos casos diagnosticado numa idade inferior aos 50 anos (131). Está recomendada a realização de EDA para os familiares de 1ºgrau, com periodicidade bianual e, está proposto por alguns, o seu início 5 anos antes do caso mais jovem diagnosticado na família. É também sensata a pesquisa e erradicação do Helicobacter pylori. Polimorfismos genéticos A evidência acumulada até à data sugere que a predisposição genética para o cancro gástrico seja largamente determinada pela resposta das citoquinas à infecção pelo Helicobacter pylori. Assim, embora sejam necessários mais estudos nesta área, os polimorfismos genéticos destas citoquinas podem desempenhar um importante papel na carcinogénese gástrica. A interleucina 1β (IL 1 β) é profundamente pró- inflamatória e é também o mais potente inibidor ácido conhecido. Certos polimorfismos como o IL-1 β-31C, IL-I β-511T e IL1RN 2/2 têm sido associados a risco aumentado de hipocloridria e cancro gástrico dependente do Helicobacter pylori (137). O risco de progressão para neoplasia nestes genótipos foi duas a três vezes maior quando comparado com genótipos não inflamatórios (137-142). Outro estudo confirmou a associação entre o genótipo 511T e a inflamação gástrica severa e atrofia (143). Vários outros polimorfismos genéticos têm sido associados a risco aumentado de cancro gástrico, nomeadamente o TNFα, IFNγ e a IL 10. O gene IFN GR1, que codifica a cadeia 1 do receptor do interferão gama, apresenta 41 PREVENÇÃO DO CANCRO GÁSTRICO resultante do crescimento bacteriano com produção aumentada de nitritos (158), o refluxo crónico de sais biliares e enzimas pancreáticas, os quais representam potentes irritantes da mucosa gástrica (10) e a atrofia da mucosa fúndica restante, secundária a baixos níveis de hormonas do antro, incluindo a gastrina (159). A vigilância dos doentes gastrectomizados por doença ulcerosa péptica não é consensual. Se para alguns autores o rastreio de cancro gástrico nesta população não é favorável em termos de custo eficácia (155,160,161), para outros a realização de EDA deve ser iniciada 15 anos após gastrectomia, com realização de múltiplas biópsias, mesmo em zonas de mucosa macroscopicamente sem lesões (154). A periodicidade com que a vigilância deve ser efectuada permanece controversa. variantes como a 56 C -> T, H 318P e L450P, que estão associadas a concentrações elevadas do Helicobacter pylori no organismo (144). Quando combinados com genótipos próinflamatórios IL 13 ou IL-1RN, os doentes com três ou quatro genótipos de alto risco apresentam um risco 27 vezes maior de cancro gástrico. Gastrectomia parcial por doença ulcerosa péptica A cirurgia gástrica por condições benignas tem sido descrita como podendo predispor a risco aumentado de cancro gástrico. Actualmente os cancros gástricos pós-gastrectomia representam cerca de 5% de todas as neoplasias gástricas (144), postulando-se uma tendência decrescente da sua incidência dada a actual raridade da cirurgia electiva por doença ulcerosa péptica e suas complicações. O risco aumentado de cancro gástrico pós-cirurgia gástrica é maior 15 a 20 anos após cirurgia e aumenta posteriormente com o decorrer do tempo (146-151). Duas meta-análises estimaram o risco relativo 1,5 a 3, dependendo do tipo de cirurgia, da duração do follow-up e da localização geográfica (152,153). O risco é maior nos doentes que foram submetidos a cirurgia antes dos 50 anos, reflectindo o longo intervalo de tempo necessário entre a cirurgia e o desenvolvimento de cancro gástrico (149). A gastrectomia tipo Billroth II (gastrojejunostomia) apresenta um risco quatro vezes maior do que o Billroth I (gastroduodenostomia) (149,154,155). Embora permaneça desconhecida a causa exacta, o aumento do risco parece dever-se ao maior refluxo de bile alcalina e de suco pancreático (149). Estes cancros gástricos tendem a ocorrer perto da anastomose cirúrgica, mais frequentemente na vertente gástrica (156) e são geralmente avançados no momento do diagnóstico, resultando numa sobrevida aos 2 anos de 10% (157). Entre os factores implicados na sua etiopatogénese incluem-se: a hipocloridria LESÕES PRECURSORAS Gastrite atrófica A gastrite crónica atrófica frequentemente precede ou acompanha o adenocarcinoma de tipo intestinal, particularmente em áreas de elevada prevalência, sendo a lesão precursora mais comum a gastrite associada à infecção pelo Helicobacter pylori (162,163). Caracteriza-se por atrofia progressiva do epitélio glandular especializado com perda de células parietais e principais (164), o que condiciona diminuição da produção de ácido (hipocloridria) e elevação do pH gástrico. Esta elevação permite a colonização bacteriana capaz de converter os nitratos da dieta em potentes compostos mutagéneos N- nitrosos, diminui a secreção de ácido ascórbico para o lúmen (165,166) e conduz a um aumento compensatório da produção de gastrina, conhecido factor de crescimento das células epiteliais gástricas que, em caso de elevações sustentadas, pode contribuir para o aumento do risco de cancro gástrico. A gastrite atrófica compreende duas formas: a gastrite atrófica multifocal e a gastrite atrófica autoimune. 42 Armanda Cruz, José Cotter intermediárias da carcinogénese gástrica descrita por Correa (172-176). Subdivide-se, segundo Filipe e Jass (177), em tipo I ou completa e tipos II e III ou incompleta. Apenas os tipos II e III estão associados a risco aumentado de cancro gástrico, risco esse que pode ser tão elevado quanto vinte vezes (178). É mais frequente em países de elevada incidência de cancro gástrico, tendo sido documentada em 33% de uma população com elevada prevalência de cancro gástrico na China (179,180). Num estudo, cerca de 80% dos cancros gástricos de tipo intestinal, revelaram a presença de metaplasia intestinal de tipos II e III (181). Em outro estudo, 42% dos doentes com metaplasia intestinal seguidos por um período de 5 anos, desenvolveram “Early Gastric Cancer” (178). A sua vigilância embora seja defendida por alguns autores (175), não o é por outros. Na prática, a dificuldade da vigilância endoscópica em localizar as áreas de metaplasia intestinal, implicando a realização de múltiplas biópsias, torna a endoscopia digestiva não eficaz em termos de custo-benefício. A gastrite atrófica multifocal, que é a mais comum, está frequentemente associada à infecção pelo Helicobacter pylori e à presença de metaplasia intestinal. A gastrite atrófica do corpo e fundo, também designada por gastrite atrófica autoimune, está associada à presença de anticorpos anti-célula parietal e anti-factor intrínseco, confinando-se topograficamente, tal como a designação o indica, à presença de gastrite atrófica na mucosa do corpo e fundo gástricos. O risco de progressão da gastrite crónica atrófica para cancro gástrico é de aproximadamente seis vezes (167,168), risco esse que é superior no caso da gastrite atrófica multifocal, dado esta apresentar maior grau de inflamação (169,170). A vigilância da gastrite atrófica é problemática. Por um lado, constata-se dificuldade na localização endoscópica das lesões, sendo necessário o recurso a múltiplas biópsias; por outro lado, verifica-se uma elevada prevalência de gastrite atrófica em doentes dispépticos, embora muitos destes doentes nunca desenvolvam neoplasia (171). Assim, apesar da vigilância endoscópica ser sugerida por alguns autores (172), com uma periodicidade anual, a combinação de baixa sensibilidade e de custos elevados torna sustentável a posição de não vigilância defendida por outros autores (173-185). No caso particular da gastrite atrófica autoimune, o benefício do rastreio e vigilância não está estabelecido, sendo mesmo considerado desnecessário por alguns autores (175), embora a Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal recomende a realização de uma endoscopia para identificação de lesões prevalentes (176). Displasia 0 termo displasia designa as alterações morfológicas precursoras do carcinoma, e inclui alterações citológicas e arquitecturais, na ausência de rotura da membrana basal, não atribuíveis a processos inflamatórios ou regenerativos (182). Estudos epidemiológicos realizados na China em áreas de alta e baixa prevalência de cancro gástrico demonstraram que a displasia gástrica apresenta elevado risco de progressão para cancro gástrico (183). Assim, tem sido estimada a progressão de displasia para cancro gástrico em 21, 33 e 57% dos casos, na displasia de baixo grau, moderada e de alto grau, respectivamente (184). Metaplasia intestinal A metaplasia intestinal resulta de um processo adaptativo a vários estímulos ambientais, de entre os quais se salienta, por ser o seu principal agente etiológico, a infecção pelo Helicobacter pylori. Constitui uma das etapas 43 PREVENÇÃO DO CANCRO GÁSTRICO Num estudo, a displasia moderada, aparentemente poderá regredir em cerca de 60% dos casos, enquanto 10 a 20% progredirá para displasia de alto grau (186). Pelo contrário, casos de displasia de alto grau raramente regridem e, num período de follow-up de 2 anos, entre 75 a 100% progredirão para cancro gástrico(186). A displasia, sobretudo a displasia de alto grau, está associada com alguma frequência a carcinomas síncronos, sendo que 20 a 40% das peças de gastrectomia por cancro gástrico apresentam simultaneamente displasia (187). Também, 40 a 100% dos casos de cancro gástrico precoce apresentam áreas adjacentes de displasia de alto grau e 5 a 80% dos casos de cancro gástrico avançado têm áreas adjacentes de displasia de alto grau (188). Está recomendado que os doentes com displasia de baixo grau, categoria III, sejam submetidos a vigilância endoscópica, não estando definido o intervalo de tempo adequado; alguns autores sugerem intervalos de 6 a 12 meses. No caso dos doentes com displasia de alto grau, categoria III e categoria IV, está recomendada a ressecção endoscópica ou cirúrgica (1). tais, genéticos e pré-neoplásicos. Parece, no entanto, existir mais cancros associados a causas ambientais do que genéticas. O objectivo de um programa de prevenção, bem sucedido, é reduzir a morbilidade e mortalidade associadas ao cancro gástrico, aplicando os conhecimentos actuais acerca de cada um destes factores. Baseadas nos conhecimentos acerca do risco e dos factores de protecção, foram apresentadas várias estratégias de prevenção primária e secundária. Salientam-se, dado o cancro gástrico ser considerado, pelo menos em parte, uma consequência do estilo de vida, as alterações dos hábitos dietéticos e comportamentais. Por outro lado, em consequência da preponderante participação de componentes infecciosos na etiologia do cancro gástrico, nomeadamente o Helicobacter pylori, foram também abordadas estratégias de erradicação. No futuro, a avaliação do risco de alterações genéticas e a subsequente terapêutica genética dirigida poderão ser uma realidade. Deve ser contudo considerado que a eliminação de um factor de risco poderá não ser suficiente para a eliminação total do risco da doença, porque o cancro gástrico ocorre através de um processo multifactorial biologica e geneticamente heterogéneo. Um programa de prevenção cuidadosamente planeado, baseado nos conhecimentos disponíveis em cada época, poderá salvar milhares de pessoas por ano. CONCLUSÕES O cancro gástrico é uma doença de etiologia muito complexa. Durante as últimas décadas, numerosos factores de risco têm sido identificados. Estes incluem factores dietéticos, infecciosos, ambien- QUADRO 2 – TAXAS DE INCIDÊNCIA BRUTA E PADRONIZADA POR 100 000 HABITANTES (REF: REGISTO ONCOLÓGICO DO NORTE, CENTRO E SUL, ED. IPO, PORTO 2007, COIMBRA 2006 E LISBOA 2007) Norte (2002) Centro (2000) Sul (2000-2001) Taxa de incidência Taxa padronizada (pop. Europeia) Taxa padronizada (pop. mundial) 21,73 16,5 - 39,2 34,6 24,42 17,98 44 24 12,24 Armanda Cruz, José Cotter BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. Houghton JM, Wamg TC. Tumors of stomach. In: Feldman, Friedman, Brandt eds. Sleisenger and FORTRAN’s Gastrointestinal and Liver Disease. 8th edition. Philadelphia: Saunders; 2006. p. 1139-1170. Lauren P. The two histological main types of gastric carcinoma: difuse ans so-called intestinal type carcinoma. An attempt at a histoclinical classification. Acta Pathol Microbiol Scand 1965; 64: 31-49. Munoz N, Correa P, Cuello C, et al. Histhological main types of gastric carcinoma in high and low areas. Int J Cancer 1968; 3: 809-18. TK – Sttadtlander C , Waterbor JW. Molecular epidemiology, pathogenesis and prevention of gastric cancer. Carcinogenesis 1999; vol 20 nº 12 pp 2195-2207. Parkin DM. Epidemiology of cancer: Global patterns and trends. Toxicol Lett 1998; 102: 227. 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INTRODUÇÃO II. EPIDEMIOLOGIA, FISIOPATOLOGIA E CARCINOGÉNESE Os tumores do intestino delgado são um desafio para os clínicos, pela sua inespecificidade clínica e inacessibilidade à endoscopia convencional comprometendo o diagnóstico precoce1,2 e o prognóstico3-6. Embora o intestino delgado represente aproximadamente 75% de toda a extensão do tubo digestivo, mais de 90% da superfície mucosa, e se situe entre o estômago e o cólon, dois órgãos com alta prevalência de neoplasias7, os tumores do intestino delgado representam menos de 2% das neoplasias do tubo digestivo8. A baixa prevalência destes tumores tem suscitado interesse na investigação dos factores protectores do intestino delgado e da sua falência9. Aproximadamente dois terços dos tumores do intestino delgado são malignos9,10 – 30 a 50% adenocarcinomas, 25 a 30% carcinóides e 15 a 20% linfomas e sarcomas2,7,8,10,11. Os tumores benignos mais frequentes são os adenomas e os leiomiomas7. (Quadro 1) O conhecimento das características epidemiológicas e fisiopatológicas dos tumores do intestino delgado permite uma melhor compreensão dos mecanismos da carcinogénese e a formulação de estratégias preventivas. A incidência dos tumores do intestino delgado varia entre as populações, sendo elevada entre os nativos da Nova Zelândia e os filipinos do Hawai, contrariamente ao que acontece na Índia, Roménia e na Europa de Leste9. O adenocarcinoma do intestino delgado parece ter uma distribuição geográfica semelhante ao carcinoma colorrectal, com predomínio nos países ocidentais10,12. Esta correlação geográfica sugere factores etiológicos comuns12. Estudos populacionais mostram que os tumores do intestino delgado são mais frequentes no sexo masculino8,9,12-17 e aumentam com a idade (idade média do diagnóstico 60 ± 10 anos)9,13,16, da mesma forma que os QUADRO 1. CLASSIFICAÇÃO DOS TUMORES PRIMÁRIOS DO INTESTINO DELGADO Benignos Adenoma Leiomioma Lipoma Linfangioma Fibroma Hemangioma Neurofibroma Neurilemoma Malignos Adenocarcinoma Tumores Neuroendócrinos Carcinóide Outros (ganglioneuroma, gastrinoma, somatostatinoma, vipoma, schwanoma) Linfoma Células B (marginal, difuso, manto, folicular, Burkitt, mediterrânico) Células T (linfoma intestinal tipo enteropatia) Sarcoma Leiomiosarcoma GIST Outros (liposarcoma, fibrosarcoma, neurofibrosarcoma, angiosarcoma) 55 PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO concomitantemente um risco aumentado de neoplasias nestes segmentos do intestino20. Apoiando a hipótese da partilha de factores de risco e de defeitos genéticos carcinogénicos, vários estudos mostraram um aumento da incidência do adenocarcinoma do cólon em doentes com adenocarcinoma do delgado e viceversa, o que sugere uma forte associação entre estas duas neoplasias20,21. O estudo genético do adenocarcinoma esporádico do delgado mostra mutações do K-ras e aumento da expressão do p53, alterações também encontradas no carcinoma do cólon e recto10. No entanto, não se encontraram outras alterações genéticas características desta neoplasia, como seja a mutação do gene APC10. Apesar das semelhanças anteriormente referidas, as incidências destes dois tumores são bastantes distintas. Parece que o intestino delgado dispõe de factores protectores cuja compreensão poderia ser um passo importante para o estabelecimento de estratégias preventivas de outros tumores do tubo digestivo e não só9. Têm sido equacionadas várias teorias que pretendem explicar a baixa prevalência dos tumores do intestino delgado: o tempo rápido do trânsito resultaria numa menor exposição aos potenciais carcinogénios; a diluição dos carcinogénios pelas secreções entéricas; o quimo liquefeito proporcionaria menor efeito traumático e irritabilidade da mucosa; a secreção de Ig A, com efeitos protectores e os níveis elevados de enzimas microssómicas capazes de converterem potenciais carcinogénios em metabolitos menos tóxicos7,9,13. tumores colorrectal e gástrico9. O adenocarcinoma e o carcinóide são mais frequentes nos indivíduos de raça negra9,12-14, enquanto o linfoma predomina entre a raça branca13,14. Apesar dos tumores do intestino delgado serem raros, a incidência do adenocarcinoma, do carcinóide e do linfoma tem vindo a aumentar, principalmente nos indivíduos de raça negra13,18; o motivo é desconhecido mas, presumivelmente, reflecte variações no estilo de vida e nos factores socioculturais como, por exemplo, na dieta13. Por outro lado, o aumento da incidência do linfoma do intestino delgado acompanhou o do linfoma gástrico, o que poderá traduzir uma etiologia comum13. Não se pode contudo excluir a importância da progressão do número de casos de seropositividade para o VIH e de doentes transplantados, a partir dos anos 80 9,13. A localização dos tumores do intestino delgado correlaciona-se com a sua histologia9. O adenocarcinoma localiza-se mais frequentemente no duodeno, o carcinóide e o linfoma predominam no íleo3,9,12,14,15,17-19. Estas diferenças sugerem a existência de factores de risco distintos e de respostas teciduais diferentes entre os vários segmentos do intestino delgado13. A localização preferencial do adenocarcinoma no duodeno periampular poderá justificar-se pela importância da bílis e dos seus metabolitos na etiologia deste tipo de tumor, à semelhança do que acontece com o carcinoma colorrectal9,20. Contudo, entre os doentes com doença de Crohn, situação que afecta predominantemente o íleo, o adenocarcinoma tende a ser distal, sugerindo um factor de risco diferente - a inflamação9,13. Como mencionado anteriormente, apesar de incidências diferentes, o adenocarcinoma do intestino delgado partilha semelhanças geográficas, epidemiológicas e de carcinogénese com o carcinoma do cólon e recto. Para ambas as regiões do tracto gastrointestinal, os pólipos adenomatosos parecem ser lesões precursoras do adenocarcinoma20. Os doentes com polipose adenomatosa familiar (PAF) têm múltiplos pólipos adenomatosos no cólon e no delgado e III. PREVENÇÃO PRIMÁRIA A etiologia dos tumores do intestino delgado é, em grande parte, desconhecida22. Apesar de apenas dispormos de estudos ecológicos e de estudos retrospectivos controlados de pequena amostragem, dada a baixa prevalência destes tumores, parece que a dieta constitui um factor etiológico importante. Chow et al, num estudo caso-controlo com 430 doentes e 921 controlos, mostraram que a ingestão 56 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito semanal de carne vermelha e a ingestão mensal de alimentos fumados ou conservados em sal se associou a um aumento significativo do risco de tumores do intestino delgado23. Wu et al também encontraram associação do adenocarcinoma com a ingestão de alimentos ricos em aminas aromáticas heterocíclicas (bacon e fiambre frito, carne e peixe fumados) embora sem significado estatístico; o risco neoplásico aumentou fortemente com a ingestão de açúcar em bebidas não alcoólicas24. Negri et al verificaram que os factores de risco dietéticos para o adenocarcinoma do delgado são semelhantes aos do cólon (aumento do risco com ingestão de carne vermelha, pão, massa, arroz e açúcar, diminuição do risco com a ingestão de peixe, vegetais, fruta e café)25. Um outro estudo mostrou que os doentes com tumores do intestino delgado apresentavam níveis séricos diminuidos de b-carotenos comparativamente com os seus familiares9. Relativamente ao efeito do álcool e do tabaco os estudos são controversos. Chen et al, num estudo caso-controlo em que a população controlo era hospitalizada, encontraram risco independente do consumo de álcool e tabaco para o desenvolvimento do adenocarcinoma e, nas situações de exposição simultânea, risco para o carcinóide22. Outros estudos não mostraram qualquer relação do adenocarcinoma com o consumo de álcool e tabaco23,25. Kaerlev et al apenas encontraram associação do adenocarcinoma com a ingestão de bebidas espirituosas e cerveja26. O mesmo grupo verificou que o tabagismo foi um factor de risco para o carcinóide27. Wu et al também encontraram aumento significativo do risco do adenocarcinoma nos indivíduos com consumo de álcool superior a 80g/dia24. A importância dos factores ocupacionais não está totalmente esclarecida. Enquanto Chow et al não encontraram qualquer risco ocupacional23, Kaerlev et al identificaram risco de desenvolvimento do carcinóide em mulheres trabalhadoras na indústria alimentar e em homens profissionais na montagem de veículos motores e estruturas metálicas28, e risco de adenocarcinoma em mulheres que trabalham na limpeza a seco e na indústria têxtil, e nos homens soldadores29. O percloroetileno, o fluorcarbono e o benzeno são carcinogénios potenciais implicados na limpeza a seco. Os soldadores e os trabalhadores na montagem de veículos motorizados provavelmente estão expostos a várias substâncias, nomeadamente aos fumos da soldadura, ao asbesto, ao tricloroetileno e a outros solventes orgânicos29. IV. PREVENÇÃO SECUNDÁRIA 1 – Adenocarcinoma Adenoma O factor de risco mais importante para o desenvolvimento do adenocarcinoma é o adenoma, quer seja um único adenoma ou múltiplos adenomas associados aos síndromes polipósicos7. Os adenomas do intestino delgado são semelhantes aos adenomas do cólon. Sempre que possível deve tentar-se a sua remoção endoscópica e manter estes doentes em vigilância7. Polipose Adenomatosa Familiar Mais de 90% dos doentes com polipose adenomatosa familiar (PAF) desenvolverão adenomas no intestino delgado com localização preferencial na região periampular, na segunda e terceira porção do duodeno30,31. Este padrão provavelmente reflecte o efeito da exposição da mucosa duodenal aos ácidos biliares e a importância destes compostos na carcinogénese duodenal31. Spigelman et al mostraram que a bílis duodenal dos doentes com PAF é mais mutagénica do que a dos doentes sem PAF32. O risco dos doentes com PAF desenvolverem adenocarcinoma duodenal é de 4% (100 a 330 vezes mais elevado do que a população em geral)31,33,34. Nas últimas décadas, após a adopção da recomendação da colectomia profilática, 57 PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO tem-se assistido a importantes modificações no padrão das causas de morte dos doentes com PAF35. De facto, o aumento da sobrevida aumenta a probabilidade de crescimento de tumores noutros órgãos35,36, o que explica que os tumores do intestino delgado proximal (22 a 30%) e os tumores desmóides sejam, hoje, as principais causas de morte dos doentes com PAF, previamente colectomizados33,37. A sequência adenoma-carcinoma, bem conhecida no carcinoma colorrectal, é uma via importante da carcinogénese duodenal31. Os adenomas duodenais podem ser classificados em 5 estádios de acordo com critérios histológicos e macroscópicos (Classificação de Spigelman)31,37(Quadro 2). A maioria dos doentes apresentam polipose de baixo grau (55% estádio 0 a II, 45% estádio III e IV)33,37. O risco de malignidade correlaciona-se com o estádio das lesões (estádio II – risco de 2,3 %, estádio III – risco de 2,4%, estádio IV – 36%)31,36, sendo a idade e o tempo de evolução factores importantes para a sua progressão31,35. Kashiwagi verificou um aumento da expressão do p53 em 25% dos adenomas tubulares, em 72% dos adenomas tubulo-vilosos e em 100% dos carcinomas e encontrou mutações do gene K-ras nos adenomas e carcinomas duodenais31. Vários estudos tentaram identificar a relação genótipo-fenótipo entre o local da mutação específica do gene APC e a gravidade da adenomatose duodenal, parecendo existir relação entre as mutações próximas à extre- midade 3’ do gene APC (exão 15) e uma maior severidade da polipose duodenal, mas os resultados não têm sido consistentes31,35. A não identificação de uma mutação específica responsável pelos casos de polipose duodenal com maior potencial maligno torna necessária a vigilância de todos os doentes com PAF33. Embora os pólipos duodenais apresentem menor potencial maligno do que os pólipos do cólon, a elevada prevalência destas lesões31,34, o seu comportamento imprevisível e a ausência de factores preditivos que, de modo seguro, indiquem quais as lesões que irão evoluir para carcinoma, justificam a importância do rastreio precoce e vigilância destes doentes36. Recomenda-se a realização de endoscopia digestiva alta e duodenoscopia com duodenoscópio de visão lateral à data do diagnóstico dos pólipos do cólon e nunca mais tarde do que os 25 anos30,35,36 (Quadro 3). Devem ser efectuadas biopsias mesmo na ausência de lesões visíveis30,35. De facto, Bülow et al encontraram alterações adenomatosas em 12% dos doentes sem lesões endoscopicamente visíveis35 e Saurin e seus colaboradores identificaram vários adenomas com displasia de alto grau em lesões extensas planas, dificilmente visualizadas sem cromoscopia38. A vigilância é definida de acordo com a classificação de Spigelman das lesões encontradas30,31,35 (Quadro 4). A abordagem terapêutica dos adenomas duodenais ainda é controversa. Quando tecnicamente exequível, os adenomas podem ser QUADRO 2. CLASSIFICAÇÃO DE SPIGELMAN MODIFICADA Critério N.° de pólipos Dimensão dos pólipos (mm) Histologia Displasia Pontos 1 1-4 1-4 Tubular Baixo grau 0 0 Pontos 2 5-20 5-10 Tubulo-vilosa – I 1-4 58 Estádio II 5-6 3 >20 >10 Vilosa Alto grau III 7-8 IV 9-12 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito QUADRO 3. PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO VIGILÂNCIA DO INTESTINO DELGADO Síndromes polipósicos PAF SPJ PJF PAM EDA e duodenoscopia à data do diagnóstico dos pólipos cólicos e nunca após os 20-25 anos (periodicidade de acordo com a classificação de Spigelman) Vigilância endoscópica anual ou bienal da bolsa ileo-anal Considerar estudo radiológico do delgado / enteroscopia nos doentes com polipose duodenal EDA de 2 em 2 anos a partir dos 10-15 anos Enteroscopia / Estudo radiológico do intestino delgado de 2 em 2 anos a partir dos 10-15 anos EDA e enteroscopia / estudo radiológico do intestino delgado à data do diagnóstico dos pólipos cólicos Repetir de 3 em 3 anos se avaliação anterior normal Considerar EDA e estudo radiológico do delgado / enteroscopia de 2/2 anos, a partir dos 25-30 anos OUTRAS SL ILEOCISTOPLASTIA OU CONDUCTO ILEAL Considerar estudo radiológico do intestino delgado nos doentes com história familiar de tumores do intestino delgado Considerar citologia urinária anual particularmente nos casos de ileocistoplastia QUADRO 4. VIGILÂNCIA DA POLIPOSE DUODENAL EM DOENTES COM PAF DE ACORDO COM O ESTÁDIO DE SPIGELMAN Estádio de Spigelman Estádio 0 Estádio I Estádio II Estádio III Estádio IV Vigilância endoscópica 4-5 anos 2-3 anos 2-3 anos 6-12 meses 6-12 meses removidos endoscopicamente. Os benefícios a longo prazo deste procedimento não estão comprovados e verifica-se uma elevada taxa de recorrência (50 a 100%), o que não permite libertar estes doentes da vigilância30,31,36. Em doentes com polipose de grau IV ou lesões de grau III difíceis de vigiar, a cirurgia (duodenotomia com polipectomia, ampulectomia, duodenectomia, pancreaticoduodenectomia) pode prevenir o desenvolvimento do adenocarcinoma31,39. O benefício da terapêutica farmacoló- gica (anti-inflamatórios não esteróides – AINEs, incluindo os inibidores selectivos da COX2, e antagonistas H2) na prevenção ou regressão dos adenomas duodenais não está comprovado verificando-se, em algumas séries, resultados desapontadores31. Admitese, no entanto, que possa ocorrer regressão dos adenomas de pequenas dimensões com os AINEs31. Alguns autores advogam a realização de enteroscopia e/ou enteroclise para exclusão 59 PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO apresentava concomitantemente polipose duodenal, estádio IV de Spigelman, pelo que os autores especulam quanto à hipótese de esta manifestação poder ser um marcador do envolvimento de outras áreas do intestino45. Estes autores e o grupo holandês consideram importante a vigilância de todo o intestino delgado dos doentes com PAM, principalmente nos doentes com manifestações duodenais42,45. Apesar de não estar estabelecido, Nielsen et al recomendam a vigilância de todo o intestino delgado, com periodicidade bienal, a partir dos 25-30 anos42 (Quadro 3). de adenomas do intestino delgado distal30 (Quadro 3). Schulmann verificou que a prevalência dos adenomas do jejuno e íleo é maior do que anteriormente se pensava, principalmente em doentes com polipose duodenal (76% têm lesões distais)41. Contudo, são raras as lesões do jejuno e íleo com significado clínico30. Embora se desconheça a sua real incidência, sabe-se que os doentes com PAF submetidos a colectomia total com construção de bolsa ileal podem desenvolver pólipos linfóides, adenomatosos, metaplasia cólica e adenocarcinoma no íleo, sendo a bolsa ileal o segmento mais afectado40. Apesar do baixo risco de malignidade dos adenomas da bolsa, recomenda-se avaliação endoscópica cada 1 a 2 anos30 (Quadro 3). Síndrome de Peutz-Jeghers Os pólipos hamartomatosos caracterizam a síndrome de Peutz-Jeghers (SPJ)30,46. O intestino delgado é o mais afectado, mas a doença pode surgir em qualquer segmento do tubo digestivo (78% intestino delgado, 42% cólon, 38% estômago e 28% recto)47. Embora estes pólipos sejam benignos e não apresentem displasia, o SPJ associa-se a um elevado risco de malignidade gastrointestinal30,46. A partir da 4ª década de vida, o cancro é a principal causa de morte dos doentes com SPJ30. O risco cumulativo de neoplasia do intestino delgado é de 13%30,46. A degeneração maligna dos hamartomas com o desenvolvimento de focos displásicos está na origem do cancro intestinal30. Embora o risco neoplásico destes doentes seja extremamente elevado, não está provado que o rastreio e a vigilância apertada possam, efectivamente, reduzir a incidência de cancro e a mortalidade relacionada com malignidade30. As guidelines recomendam a realização de endoscopia alta e de enteroscopia ou radiograma do intestino delgado (radiograma seriado ou enteroclise), de 2 em 2 anos, a partir dos 10-15 anos30,46,48 (Quadro 3). A maioria dos autores defende a polipectomia dos pólipos com mais de 1-1,5cm de diâmetro, por métodos endoscópicos ou laparotomia com endoscopia intraoperatória30,46. Polipose associada ao MYH A polipose associada ao MYH (PAM) pode apresentar manifestações extracólicas, nomeadamente adenomas e adenocarcinomas do intestino delgado. Nielsen e al, analisando uma série de 40 doentes holandeses, colocam a hipótese de que até 25% dos doentes com mutações germinais bialélicas no gene MYH apresentam adenomas duodenais42. Também foi descrito um caso de adenocarcinoma do duodeno, pelo que é de admitir que o risco de progressão da adenomatose duodenal para carcinoma possa ser semelhante ao da PAF42. Parece haver relação directa entre a gravidade do fenótipo cólico e a presença de polipose duodenal, embora o grupo do IPO de Lisboa tenha descrito um caso de adenomatose duodenal grau III de Spigelman numa doente com fenótipo cólico menos grave, sugerindo que a gravidade da doença duodenal possa ser independente da expressão cólica43. Considera-se, por isso, que todos os doentes com PAM têm indicação para a realização de endoscopia alta para detecção e vigilância de adenomatose duodenal42-44. Em Portugal, foi também descrito um caso de adenocarcinoma do jejuno num doente com PAM. Este doente 60 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito Polipose Juvenil uretero50. Estão descritos alguns casos de adenocarcinoma ileal50,51,52. Recomenda-se, por isso, vigilância anual por citologia urinária, particularmente nos casos de enterocistoplastia50 (Quadro 3). A proctocolectomia com construção da bolsa ileoanal tornou-se o tratamento cirúrgico de escolha para a maioria dos doentes com colite ulcerosa não controlada53. Uma das complicações da bolsa ileoanal é a inflamação crónica do neo-recto ou “pouchite”, que se pode acompanhar de atrofia das vilosidades, metaplasia cólica e, em alguns casos, displasia da mucosa ileal54. A via da carcinogénese poderá relacionar-se com o processo de adaptação da mucosa ileal com progressão para “pouchite” crónica, displasia e subsequentemente adenocarcinoma55. As séries descritas mostram que a transformação displásica da mucosa ileal da bolsa é rara, mesmo a longo prazo, não existindo por isso evidência do benefício da vigilância por rotina destes doentes54-56. No entanto, alguns autores consideram que os doentes com bolsa ileoanal têm um risco acrescido de malignidade, ainda que baixo e, como tal, este tipo de construção cirúrgica deve ser entendido como uma condição pré-neoplásica, merecedora de vigilância endoscópica53. Isto será ainda mais verdade para os doentes com factores de risco, nomeadamente, colite ulcerosa de longa duração, ileíte terminal, “pouchite” crónica atrófica de longa evolução, PAF, displasia prévia e colangite esclerosante primária53,57. A polipose juvenil (PJ) é hereditária em 1/3 dos casos e esporádica nos restantes casos30. Os pólipos juvenis são mais frequentemente encontrados no cólon e no recto mas, na forma hereditária, todo o tubo digestivo pode estar afectado30,49. A polipose juvenil familiar (PJF) atinge o intestino delgado em 6% dos casos49. À semelhança do que acontece na SPJ, os pólipos juvenis podem sofrer transformação adenomatosa e evolução para neoplasia30. Devido à baixa incidência da PJF não existem recomendações formais, mas preconiza-se que à data do diagnóstico dos pólipos cólicos se realize endoscopia alta e estudo contrastado do intestino delgado para detecção de pólipos extracólicos30,49. Na ausência de pólipos no intestino delgado, esta vigilância deve ser repetida de 3 em 3 anos30 (Quadro 3). Síndrome de Lynch Os indivíduos com síndrome de Lynch (SL) apresentam um risco acrescido de desenvolverem neoplasias extracólicas30,49. O risco cumulativo de desenvolvimento de cancro do intestino delgado é de 1 a 4 %, o que significa um risco relativo 100 vezes superior ao da população em geral30,49. À excepção dos tumores ginecológicos, não está recomendada vigilância dos tumores extracólicos30. Contudo, os indivíduos pertencentes a famílias com história de neoplasias do intestino delgado poderão beneficiar de vigilância periódica do intestino delgado30 (Quadro 3). Doença de Crohn Existe uma forte associação entre a doença de Crohn (DC) e o adenocarcinoma do intestino delgado estimando-se um risco relativo até 60 vezes superior ao da população em geral58,59. Foram conduzidos vários estudos para quantificação deste risco58-63. Apesar do baixo risco absoluto, em virtude da baixa incidência deste tipo de tumor, o aumento da incidência da DC, a dificuldade do diagnóstico pré-operatório do adenocarcinoma do Incorporação ileal no tracto urinário e bolsa ileoanal O risco de malignidade urointestinal em doentes submetidos a cistectomia radical com incorporação ileal no tracto urinário, apesar de baixo, existe50. O risco é maior nos doentes com ileocistoplastia do que nos doentes com conduto ileal ou substituição ileal do 61 PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO meabilidade intestinal, a inflamação crónica, a estimulação antigénica persistente, a libertação de citoquinas pró-inflamatórias, a deficiente imunovigilância e as deficiências nutricionais secundárias à doença e à restrição de glúten possam ser determinantes neste processo de evolução para a malignidade72. O diagnóstico tardio de doença celíaca parece ser um factor de risco para os tumores gastrointestinais, provavelmente pela exposição prolongada ao glúten73,74. Apesar de não estar demonstrada a eficácia da dieta sem glúten na prevenção do adenocarcinoma do delgado69,75, alguns autores apoiam a importância do cumprimento da dieta72,74,76. intestino delgado e a sua significativa morbilidade e mortalidade são factores que redimensionam este problema58,59,64-66. Estudos recentes têm demonstrado que a inflamação crónica assume um papel preponderante na carcinogénese porque aumenta os níveis do factor de necrose tumoral (TNF), com efeito pró-oncogénico, da interleucina (IL) 6, antagonista da apoptose, e da COX-2, estimuladora do crescimento tumoral58. De facto, os adenocarcinomas surgem nas áreas envolvidas pela DC, sendo o íleo a localização mais frequente66,67. Ribeiro et al verificaram que, na sua série, os adenocarcinomas do intestino delgado ocorreram em associação com fístulas, ansas excluídas, estenoses múltiplas e predominaram no sexo masculino com doença há mais de 20 anos68. Um estudo controlado da Universidade de Chicago mostrou que a doença do intestino delgado proximal, a terapêutica com 6-mercaptopurina e a exposição profissional a compostos aromáticos ou a outros potenciais carcinogénios (asbesto, solventes, óleos, substâncias abrasivas) foram os factores predisponentes para o desenvolvimento de carcinoma64. A baixa incidência do adenocarcinoma do intestino delgado, mesmo nos doentes com DC, e a ausência de métodos seguros e eficazes para a vigilância destes doentes, impõem a necessidade de que todos os esforços sejam direccionados para a prevenção primária dos factores de risco mencionados58,64. 2 – Linfomas do intestino delgado Cerca de 25% dos linfomas não Hodgkin são primários do tubo digestivo7. A ausência de linfadenopatias palpáveis e mediastínicas e de envolvimento hepático e esplénico (excepto se por extensão directa da doença primária), o esfregaço de sangue periférico e a biopsia da medula óssea normais são os critérios que estabelecem o diagnóstico de linfoma primário do tubo digestivo7. Com excepção do linfoma T associado à doença celíaca, praticamente todos os linfomas do intestino delgado são de células B7. Doença Celíaca Os doentes com doença celíaca têm risco aumentado de desenvolverem linfoma intestinal, embora estudos recentes mostrem que o risco é menor do que anteriormente se supunha70,77. O diagnóstico é por vezes difícil e a sobrevida é geralmente curta. O diagnóstico precoce é fundamental para a melhoria do prognóstico77. A maioria dos linfomas são proximais e o tipo histológico mais frequente é o linfoma de células T associado a enteropatia69,72. Os doentes que não aderem à dieta são mais susceptíveis de desenvolverem linfoma intestinal69,75. De facto, nos doentes com lin- Doença Celíaca O adenocarcinoma é uma complicação conhecida da doença celíaca69. Estudos recentes demontraram que o risco de adenocarcinoma é menor do que inicialmente se pensava70,71 (RR 10)70, sendo o risco absoluto inferior a 1%69. Em regra, o adenocarcinoma tem uma localização proximal (duodeno ou jejuno)72. Desconhecem-se os mecanismos carcinogénicos, mas pensa-se que o aumento da per62 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito foma a mucosa intestinal apresenta sinais de ausência de resposta à restrição de glúten. Este aspecto poderá prender-se com a má aderência à dieta, embora na maioria das vezes não haja história de incumprimento mas sim uma doença refractária69. Estudos genéticos demonstraram que, por vezes, a doença refractária corresponde a linfoma T de baixo grau77. Actualmente verifica-se que a doença refractária, o linfoma associado a enteropatia, a jejunoileíte ulcerosa e a doença celíaca colagenosa representam condições clínicas heterogéneas situadas no extremo do espectro da doença celíaca77,78. Não existem recomendações para vigilância destes doentes mas provavelmente justificase a realização de endoscopia alta e estudo do delgado nos doentes com doença refractária69. ou oculta82,83. No entanto, nos últimos anos, as indicações potenciais da cápsula têm-se expandido82. Apesar das limitações desta técnica, como sejam a imprecisão na determinação do local e dimensão das lesões, o custo, a duração do exame (8 horas), a impossibilidade de visualização de todo o intestino delgado em alguns doentes, e o pequeno (<1%) mas existente risco de retenção (embora, na maioria das vezes, se documente, no local da retenção, patologia com necessidade de intervenção cirúrgica), vários estudos demonstraram a sua superioridade relativamente ao estudo radiológico contrastado48,84,85. Relativamente à utilidade da cápsula para vigilância do intestino delgado, vários estudos apoiam a utilização deste método na SPJ, evitando as doses elevadas de radiação que estes doentes acumulam ao longo da vida, na PJF e nos doentes com PAF com poliposes duodenais41,48,49,86,87. Contudo, as dimensões das lesões devem ser confirmadas por outros métodos antes de decisões relevantes na abordagem destes doentes, particularmente nos casos considerados com indicação cirúrgica48. A introdução da cápsula poderá também melhorar a vigilância e o controlo da inflamação do intestino delgado nos doentes com DC, prevenindo as suas complicações neoplásicas59. Nas situações de DC estenosante, a grande preocupação é o risco de retenção, embora se reconheça que são necessários mais estudos para se definir a importância deste problema88. O uso da cápsula para avaliação da patência foi um passo importante nos casos de suspeita de obstrução parcial88. Da mesma forma, na SL e na doença celíaca este método poderá desempenhar um papel importante, mas nestes casos não estão estabelecidos os benefícios da vigilância49,69. Para além das limitações apontadas, a videocápsula também não permite o diagnóstico histológico ou a abordagem terapêutica das lesões encontradas89. Estão descritos alguns casos de doentes com SPJ em que a endoscopia de duplo balão Doença de Crohn Na literatura estão descritos vários casos que sugerem que o linfoma pode ser uma complicação da DC, em virtude da sua localização coincidir com os segmentos de maior actividade da doença79. No entanto, estudos populacionais não demonstraram aumento do risco nos doentes com DC79,80,81. O aumento do risco associado à terapêutica imunossupressora (azatioprina / 6-mercaptopurina) poderá resultar do efeito directo da terapêutica, mas não é possível eliminar o impacto da maior agressividade da doença79. Os benefícios desta terapêutica devem ser equacionados com o eventual risco de linfoma. Relativamente às terapêuticas biológicas são necessários mais estudos79. A IMPORTÂNCIA DA ENDOSCOPIA POR VIDEOCÁPSULA, DA ENTEROGRAFIA POR TOMOGRAFIA COMPUTORIZADA E DA ENDOSCOPIA POR DUPLO BALÃO NA PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO A vídeocápsula endoscópica era predominantemente utilizada para esclarecimento dos casos de hemorragia gastrointestinal obscura 63 PREVENÇÃO DOS TUMORES DO INTESTINO DELGADO possibilitou uma terapêutica alternativa à cirurgia90,91. A enterografia por tomografia computorizada (TC) permite o estudo não invasivo do lúmen e da parede do intestino delgado92 (Figura 1). Alguns estudos mostram superioridade e melhor tolerabilidade desta técnica comparativamente ao radiograma contrastado no estudo da DC93,94. Os estudos comparativos com a cápsula demonstram acuidade semelhante entre os dois métodos ou superior para a cápsula, na avaliação da DC não estenosante93,95. Esta técnica tem adquirido progressiva importância também no estudo dos tumores do intestino delgado e da doença celíaca92. A melhor abordagem destes doentes passará por uma maior complementaridade das várias técnicas de modo a optimizar a prevenção secundária destes tumores, reduzir o número de intervenções cirúrgicas e proporcionar a estes doentes melhor qualidade de vida. FIGURA 1. ENTEROGRAFIA POR TC (DC – ESPESSAMENTO DA PAREDE IDEAL) 64 Ana Margarida Vieira, Élia Gamito BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. Yang YS, Huang QY, Wang WF, Sun G, Peng LH. Primary jejunoileal neoplasmas: a review of 60 cases. World J Gastroenterol. 2003; 9(4): 862-4 Minardi AJ Jr, Zibari GB, Aultman DF, McMillian RW, McDonald JC. Small-bowel tumors. J Am Coll Surg. 1998; 186(6): 664-8 Cunningham JD, Aleali R, Aleali M, Brower SJ, Aufses AH. Malignant small bowel neoplasms: histopathologic determinants of recurrence and survival. Ann Surg. 1997; 225(3): 300-6 Wu TJ, Yeh CN, Chao TC, Jan YY, Chen MF. 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Os dados de incidência, obtidos a partir dos vários registos de cancro, têm demonstrado que este tumor é dos mais comuns nos países desenvolvidos, representando cerca de 10% de todas as neoplasias malignas (1, 2). Apesar dos avanços conseguidos nos últimos anos, ao nível do diagnóstico e do tratamento, não se tem verificado uma melhoria significativa da sobrevivência, que se mantém em cerca de 50% aos 5 anos (3). Uma vez que se trata de um tumor que pode ser prevenido e curado, se detectado em estádios precoces, impõe-se a divulgação e implementação de estratégias de prevenção, de forma a diminuir a sua incidência e mortalidade. Sabe-se que a etiologia do CCR, à semelhança de muitas outras neoplasias, é multifactorial, estando envolvidos factores ambientais e genéticos. Desta forma, existem estratégias de prevenção primária e secundária. A prevenção primária situa-se ao nível da alteração de factores ambientais implicados na etiologia da doença, como a dieta e o estilo de vida, ou através do uso de agentes quimioprofilácticos. A prevenção secundária implica a implementação de programas de rastreio com o objecti- EPIDEMIOLOGIA A incidência do CCR varia largamente entre países e regiões, verificando-se que existem países de alta e baixa incidência para este tipo de neoplasia (1). De acordo com os dados mais recentes, fornecidos pelos registos de cancro, as taxas de incidência são muito elevadas na América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, ligeiramente inferiores na Europa e Japão, verificando-se as taxas mais baixas na América do Sul e nos países asiáticos e africanos (1). Estas taxas de incidência variam entre 40,0/100.000 habitantes no sexo masculino e 26,6/100.000 habitantes no sexo feminino, nas regiões do mundo mais desenvolvidas e 10,2/100.000 habitantes no sexo masculino e 7,7/100.000 habitantes no sexo feminino, nas regiões menos desenvolvidas (1). Na Europa verificam-se também diferenças consideráveis entre países, com taxas mais elevadas na Europa Ocidental e do Norte e mais baixas no Sul, na Europa Central e de Leste (1). 71 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO A incidência estimada de CCR em Portugal (taxa padronizada mundial) foi de 36,0/100.000 habitantes no sexo masculino e de 21,1/ /100.000 habitantes no sexo feminino, o que representa o 18.° lugar entre os 38 países europeus para os quais esta incidência foi estimada (1) . Os dados do Registo Oncológico Regional do Sul (ROR-Sul) (4) mostram que, nos anos de 2000 e 2001, o CCR foi o 2º tumor mais frequente em ambos os sexos (taxa padronizada mundial: 37,8 e 21,9/100.000 habitantes, no sexo masculino e feminino, respectivamente). O número total de casos registados de CCR no ROR-Sul, que compreende a Região de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo, Algarve e Região Autónoma da Madeira, em 2000 e 2001, foi de 5086. O CCR foi responsável por 14,6% de todos os tumores malignos registados nesta base populacional, cuja população residente é de aproximadamente 4,5 milhões de habitantes. A taxa de sobrevivência relativa aos 5 anos para os tumores do cólon e recto foi, para ambos os sexos, de 55% (4). O CCR representa a 2ª causa de mortalidade por cancro nos EUA, o que corresponde a cerca de 10% da mortalidade por cancro (5). Estima-se, que neste país, tenham sido diagnosticados 148 610 novos casos em 2006, com 55 170 mortes por CCR no mesmo ano (2) . O número preciso de novos casos diagnosticados em cada ano, mesmo em países como os EUA, é desconhecido porque não tem sido possível obter-se um registo completo de cancro em muitos dos Estados (2). No ano de 2005 registaram-se em Portugal 3319 óbitos por CCR, o que representou a 2ª causa de mortalidade por cancro, imediatamente a seguir ao cancro do pulmão (6). A incidência e mortalidade por CCR aumentam com a idade, sabendo-se que cerca de 90% dos casos são diagnosticados após os 50 anos de idade. Nos países de elevada incidência o risco individual de desenvolver CCR ao longo da vida é de 6% (7). Como a incidência aumenta com a idade é expectável que a incidência de CCR aumente com o aumento da esperança média de vida. De acordo com os dados apresentados verificamos que Portugal apresenta taxas elevadas de incidência e mortalidade por CCR. Desta forma, e à semelhança de outros países de elevada incidência de CCR, impõe-se no nosso país a implementação de programas de intervenção comunitária, de modo a que seja possível reduzir a incidência e mortalidade por esta neoplasia. ETIOPATOGENIA Admite-se que o desenvolvimento do carcinoma do cólon e recto resulta de uma complexa interacção entre factores do ambiente e factores genéticos. Sabemos que a grande maioria dos CCR, tanto esporádicos como hereditários, se desenvolvem a partir de lesões precursoras, os adenomas, seguindo a via de carcinogénese adenoma-carcinoma (8). Esta evolução decorre de forma lenta ao longo de cerca de 10 anos, excepto nos indivíduos com carcinoma do cólon e recto hereditário não associado a polipose (síndroma de Lynch) nos quais esta progressão pode ser muito mais rápida (9). Os adenomas devem ser distinguidos dos pólipos juvenis, hamartomas e pólipos inflamatórios que não representam lesões pré-malignas. Por outro lado, nos últimos anos, tem sido reconhecido que determinados tipos de pólipos hiperplásicos, os mistos e os adenomas serreados podem estar relacionados com uma via de carcinogénese diferente da dos adenomas convencionais – a denominada via serreada – e muita atenção tem sido dada a estas lesões, que representam cerca de 2% de todos os pólipos (10-12). Temos evidência, a diferentes níveis, de que o CCR se desenvolve a partir de pólipos adenomatosos. Nos países de elevada incidência de CCR a prevalência de adenomas é elevada e a baixa prevalência de CCR noutros países, correlaciona-se também com a baixa prevalência de adenomas. Os indivíduos com história pessoal de pólipos adenomatosos apresentam um risco mais elevado de vir a 72 Luísa Glória microssatélites de alto grau, de localização preferencial no cólon direito, seja o pólipo hiperplásico, com determinadas características morfológicas descritas como adenoma serreado séssil ou pólipo serreado séssil (12,23). As características morfológicas destes pólipos tornam muitas vezes difícil a sua distinção dos pólipos hiperplásicos vulgares. desenvolver CCR (13) e os pólipos adenomatosos ocorrem em indivíduos mais jovens que os carcinomas (14), sugerindo que os adenomas sejam lesões precursoras. Por outro lado, sabemos também que a susceptibilidade para desenvolver adenomas e CCR é frequentemente herdada (15) e que a polipectomia reduz a incidência de CCR (16,17). O risco de desenvolvimento de novos adenomas e CCR depende do tipo histológico, tamanho e número de adenomas encontrados inicialmente (18-20), admitindo-se que os pólipos adenomatosos requerem mais do que 5 anos para serem clinicamente significativos. O CCR é uma doença heterogénea que evolui através de complexas sequências de alterações moleculares e genéticas, que ocorrem ao longo do tempo e que levam à evolução da mucosa normal, à formação de adenomas e ao desenvolvimento de carcinomas invasivos. A nível molecular têm sido definidos duas grandes vias de carcinógenese, a via supressora e a via mutadora. A via supressora ocorre através da inactivação de genes supressores tumorais e admite-se ser responsável pela maioria dos tumores esporádicos e da polipose adenomatosa familiar do cólon. A via mutadora ocorre através de mutações em sequências repetitivas de ADN, denominadas microssatélites, e é a via responsável pela síndroma de Lynch e por cerca de 15% dos tumores esporádicos, especialmente se localizados no cólon direito (21,22). O papel do adenoma está bem estabelecido na via supressora, mas foi também assumido como a lesão precursora do CCR, com instabilidade de microssatélites de alto grau, mais frequente no cólon direito (21,22). Na maioria dos casos, acumulam-se erros em microssatélites por inactivação somática e adquirida do gene hMLH1, através de hipermetilação da região promotora. Tem sido sugerido que os pólipos serreados podem estar na origem deste tipo de CCR que segue uma outra via de carcinógenese, a via metiladora ou serreada (11). Admite-se que a lesão precursora do CCR esporádico com instabilidade de SÍNDROMAS HEREDITÁRIOS E CONDIÇÕES PREDISPONENTES Cerca de 25% dos indivíduos com CCR apresentam história familiar desta neoplasia o que sugere fortemente o envolvimento de um factor genético, sabendo-se que o risco de desenvolver CCR se correlaciona com o número de parentes afectados, com o grau de parentesco e com a idade do diagnóstico do CCR (24-26). Cerca de 3 a 5% dos CCR ocorrem em famílias com um padrão de hereditariedade autossómica dominante bem definida, sendo os mais comuns os carcinomas do cólon e recto hereditários não associados a polipose (CCHNP) e a polipose adenomatosa familiar do cólon (PAF-C). No entanto, sabemos que indivíduos que apresentam história familiar de CCR, e que não pertencem a estas duas entidades, têm um risco acrescido de vir a desenvolver CCR (24-26) . Uma meta-análise mostrou que os indivíduos com, pelo menos, 1 parente de 1.° grau com CCR apresentam o dobro do risco em comparação com a população geral (RR–2,25) (27). Num estudo prospectivo Fuchs e cols. verificaram que o risco de CCR em indivíduos de 40 anos de idade com um parente de 1.° grau afectado (pais, irmãos, filhos) era semelhante aos indivíduos de 50 anos sem história familiar (24). Os indivíduos com parentes de 1º grau com adenomas do cólon apresentam também risco aumentado de CCR (24,28,29) especialmente se o adenoma no parente afectado foi diagnosticado antes dos 60 anos de idade (risco relativo: 2,59) (29). Os CCR hereditários podem, em termos latos, ser subdivididos em 2 grandes grupos 73 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO principais: a polipose adenomatosa familiar do cólon (PAF-C), responsável por cerca de 1% de todos os CCR e o CCHNP (síndroma de Lynch), entidade responsável por cerca de 35% de todos os CCR (30,31). Para estas 2 entidades autossómicas dominantes, estão bem definidas as mutações germinais que levam ao seu desenvolvimento. Recentemente foi descrita uma nova síndrome adenomatosa, autossómica recessiva, causada por mutações no gene MYH - a denominada polipose associada a mutação no gene MYH (PAM) – caracterizada pela existência de múltiplos adenomas mas sem mutações no gene APC (32-34). A PAM tem sido responsável pela caracterização de 5 a 20% dos doentes anteriormente diagnosticados como tendo PAF-C mas sem diagnóstico molecular e por cerca de 13 a 30% de portadores de excesso de adenomas. Embora clinicamente seja difícil distinguir a PAM da PAF-C (ou da variante atenuada), o diagnóstico de PAM é feito geralmente em idade mais tardia que a PAF-C, sendo o número de adenomas variável (de 7 a mais de 700). Embora raramente, têm sido descritas neoplasias extracólicas na PAM (osteomas, cancro gástrico e duodenal) (35,36). O risco de CCR é elevado mas o desenvolvimento da neoplasia verifica-se cerca de 10 anos mais tarde que o observado na PAF-C com mutação do gene APC. Admite-se que a PAM esteja na origem de 0,4 a 3% de todos os CCR (35,37). O sindroma da polipose hiperplásica (SPH), descrito em 1980 (38), constitui uma entidade muito rara caracterizada por pólipos hiperplásicos grandes (>1 cm), múltiplos, de predomínio no cólon proximal e, por vezes, associados a adenomas serreados, adenomas clássicos e pólipos mistos (22,39,40). Estudos recentes sugerem uma associação entre a síndroma da polipose hiperplásica e o CCR com instabilidade de microssatélites, possivelmente a partir da via serreada (41-43). Os critérios de diagnóstico da SPH são os seguintes (44): a existência de pelo menos 5 pólipos hiperplásicos proximais à sigmoideia, 2 dos quais com diâmetro >10 mm; qualquer número de póli- pos hiperplásicos proximais à sigmoideia num individuo com um parente de 1.° grau com SPH; mais do que 30 pólipos hiperplásicos de quaisquer dimensões distribuídos pelo cólon e recto (alguns autores consideram 20 pólipos) (39) . Apesar de pouco frequente, é importante o diagnóstico da SPH, uma vez que se admite que se trata de uma doença hereditária, cujo defeito genético é ainda desconhecido. É também conhecido que os indivíduos com doença inflamatória do intestino, apresentam um risco acrescido de desenvolvimento de CCR, especialmente nas doenças extensas e de longa evolução e, particularmente, se coexiste colangite esclerosante. Existem outras condições muito menos frequentes que cursam com um risco acrescido de CCR. Os doentes submetidos a ureterossigmoidostomia apresentam um risco superior de desenvolveram neoplasia na mucosa do cólon distal à implantação dos catéteres (4547) . Os doentes com acromegália apresentam também um risco mais elevado de CCR. Tem sido sugerido que os doentes com schistosomíase, submetidos a radiação pélvica ou a colecistectomia, apresentem um risco superior ao da população em geral, mas a magnitude deste risco não está bem definida. PREVENÇÃO PRIMÁRIA DO CCR Estão identificados factores que se associam a um risco aumentado ou diminuído de desenvolvimento de CCR e que se encontram resumidos no quadro 1 (48). Aceita-se que na etiopatogenia do CCR estão implicados factores ambientais, nomeadamente nutricionais e de estilo de vida, que ao serem modificados poderiam levar à diminuição do risco de desenvolvimento de CCR, ou seja, actuariam ao nível da prevenção primária. Estudos epidemiológicos e experimentais têm levantado muitas hipóteses em relação à possibilidade de prevenção primária através da investigação de factores nutricionais e de agentes quimioprofilácticos que pudessem reduzir o risco de adenomas e de CCR, mas os resultados dos estu74 Luísa Glória QUADRO 1 - FACTORES DE RISCO PARA CARCINOMA DO CÓLON E RECTO Risco médio ou padrão Idade > 50 anos Risco diminuído • Elevado consumo de vegetais Risco aumentado • Uso de contraceptivos orais • Terapêutica hormonal substituição • Multivitaminas / ácido fólico • Uso continuado de aspirina e anti-inflamatórios não esteroides • História familiar de CCR • História familiar de adenomas do cólon e recto • História pessoal de adenomas do cólon e recto • História pessoal de neoplasia do ovário e endométrio • Polipose adenomatosa familiar • Polipose associada a mutação no gene MYH • Carcinoma do cólon e recto hereditário não associado a polipose • Síndroma da polipose hiperplásica • Sindroma de Peutz-Jeghers • Polipose juvenil • Doença inflamatória do intestino • Inactividade física (< 3 horas exercício físico / semana) • Obesidade • Tabagismo • Álcool Adaptado de Levin B. Colorectal cancer. ACP Medicine 2005 mulheres que emigraram de países com baixo consumo para países com elevado consumo de gordura apresentaram maior incidência de CCR (50, 51). Estudos caso-controlo têm demonstrado uma associação positiva entre a ingestão calórica, o consumo de gordura e o risco de CCR (52-55) . No entanto, estudos de cohorte e uma meta-análise que incluiu 13 estudos casocontrolo não encontraram uma evidência clara para a associação entre o consumo de gordura e o CCR (56). Num estudo de intervenção publicado recentemente, verificou-se que uma dieta pobre em gordura não reduziu o risco de CCR em mulheres pós-menopáusicas durante um período de 8,1 anos (57). Relativamente ao consumo de carne, tem sido sugerido que a carne vermelha se associa a risco mais elevado de CCR (55,58) embora nem todos os estudos sejam consistentes nesta afirmação (59,60), sendo difícil a separação entre o consumo de carne vermelha e o seu teor em gordura. Por outro lado, numerosos estudos têm demonstrado uma associação inversa entre o consumo de legumes e o risco de CCR, sendo a associação com o consumo de frutos menos dos de intervenção têm sido pouco esclarecedores. Não abordaremos o tema da quimioprevenção uma vez que este é objecto de análise noutro capítulo. Possivelmente, o consumo elevado de gordura, de carne, de álcool e uma dieta deficiente em fibra, vitaminas e oligoelementos constituem factores de risco para o CCR. A ingestão calórica elevada e o sedentarismo, observados em países economicamente mais desenvolvidos, têm sido apontados também como factores de risco. A evidência de uma eventual relação entre hábitos alimentares e incidência de CCR é fornecida por diferentes tipos de estudos. Os estudos ecológicos sugerem que a variação de incidência de CCR se correlaciona com os hábitos alimentares, com zonas de elevada incidência a terem, regra geral, um consumo elevado de lípidos e deficiente em fibra. Variações na incidência foram também observadas em populações que migraram de áreas de baixa para áreas de alta incidência, em paralelo com a aquisição de novos hábitos alimentares (49-51). Num grupo de chineses que emigraram para os Estados Unidos, a incidência de CCR duplicou ao fim de 5 anos (49) e 75 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO risco de desenvolver CCR, a sua interpretação é difícil e controversa, sendo uma parte considerável dos estudos prospectivos ou de intervenção pouco conclusivos. Provavelmente será um padrão de vida característico dos países mais desenvolvidos, e que inclui a obesidade, o sedentarismo, o tabagismo, o elevado consumo energético e de proteína animal associado ao baixo consumo de frutos e vegetais, que ao ocorrer em indivíduos com maior susceptibilidade genética levará ao desenvolvimento de adenomas e CCR. Assim, embora não haja suficiente evidência para suplementar a alimentação humana com determinados nutrientes ou oligoelementos, parece consensual que a modificação de alguns factores dietéticos e do estilo de vida poderá, a médio ou longo prazo, prevenir algumas neoplasias malignas, em geral, e o CCR, em particular. Em termos de prevenção primária, as recomendações gerais são as seguintes: – diminuição da ingestão calórica global, evitando o excesso de peso; – a percentagem de calorias diárias obtidas dos lípidos deve ser inferior a 25%, equitativamente distribuídas em lípidos saturados, monoinsaturados e polinsaturados, usando frequentemente na alimentação azeite e peixe; – preferir o consumo de carne branca em detrimento da carne vermelha e consumir produtos lácteos; – aumento da ingestão diária de cereais (particularmente sob a forma não refinada), vegetais e frutos, o que aumenta a ingestão diária de fibra, vitaminas A, E, C e ácido fólico; recomenda-se a ingestão de, pelo menos, 5 porções de legumes e fruta diariamente; – praticar exercício físico regularmente e não fumar; – restringir o consumo de álcool a uma bebida por dia no sexo feminino e duas no sexo masculino; – considerar suplementos vitamínicos, contendo ácido fólico, sobretudo nos indivíduos com hábitos alcoólicos. evidente (61-64). Uma meta-análise de 13 estudos caso-controlo encontrou uma correlação inversa entre a dieta rica em fibra e o CCR (65). Contudo, outros estudos não têm demonstrado o eventual efeito protector da fibra no risco de CCR, nem qualquer influência na recorrência de adenomas do cólon e recto (66-68). Relativamente aos micronutrientes tem sido sugerido um efeito protector do cálcio, do ácido fólico, da metionina, dos retinoides, carotenoides, ácido ascórbico, α-tocoferol e selénio. Estudos experimentais e epidemiológicos mostraram uma relação inversa entre a ingestão de cálcio e o risco de cancro (69). Estudos controlados e randomizados mostraram que a suplementação com cálcio diminuía a recorrência de adenomas do cólon, embora o benefício fosse modesto (70,71) e, nalguns estudos, pouco evidente (72,73). A análise de 10 estudos prospectivos sugere que uma ingestão elevada de leite e cálcio se relaciona com um menor risco de CCR (74) . Estudos retrospectivos e prospectivos suportam uma associação inversa entre a ingestão de ácido fólico (existente nos frutos secos e legumes) e metionina (existente no peixe e carne de aves) e o risco de adenomas e carcinomas (7577) . Num estudo caso-controlo verificou-se que o ácido fólico se associava a diminuição do risco de CCR, se o consumo se prolongasse por longos períodos (15 anos) (76). Alguns estudos têm demonstrado uma correlação inversa entre actividade física e incidência de CCR (78,79), embora o mecanismo seja desconhecido. Estudos caso-controlo têm encontrado um maior risco de adenomas do cólon em fumadores bem como um aumento da recorrência de adenomas após polipectomia, em fumadores de ambos os sexos (80-82). Verificou-se que a mortalidade por CCR é mais elevada nos fumadores em comparação com os não fumadores e que o risco aumenta de acordo com a duração do consumo de tabaco (81). Da análise sumária destes dados verificamos que, embora haja factores ambientais relacionados com a dieta e o estilo de vida que se associam a diminuição ou aumento do 76 Luísa Glória PREVENÇÃO SECUNDÁRIA DO CCR adenomatosos. A polipectomia endoscópica e a subsequente vigilância endoscópica constituem a base da prevenção do CCR. Os benefícios do rastreio são claramente superiores aos potenciais inconvenientes e o prognóstico do CCR é melhor nas situações identificadas pelo rastreio, por definição realizado em indivíduos assintomáticos, comparativamente com a sua detecção em indivíduos sintomáticos (90,91). É importante definir dois conceitos fundamentais, o de rastreio e o de vigilância (92). Um teste de rastreio, aplicado por definição a indivíduos assintomáticos, tem como objectivo distinguir aqueles que apresentam maior probabilidade de ter uma lesão neoplásica daqueles que têm uma probabilidade reduzida. Os que apresentarem resultados anormais num teste de rastreio deverão ser encaminhados para a realização de testes mais específicos que confirmem ou não a presença de adenomas ou CCR. A vigilância é a estratégia a adoptar nos indivíduos a quem se diagnosticou adenomas do cólon ou CCR, já que têm um risco acrescido de lesões metacrónicas. O processo de rastreio do CCR inicia-se pela identificação de indivíduos em risco e da estratificação do mesmo. Para além da idade, a presença de história familiar de CCR é o factor de risco mais importante e melhor conhecido (85) . Os adultos de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 50 anos e assintomáticos são considerados como apresentando risco padrão. A estratificação do risco de CCR é realizada através da história pessoal e familiar de adenomas e carcinomas do cólon ou recto, bem como da existência de condições predisponentes. A identificação de síndromas hereditários e condições predisponentes, que conferem um risco muito elevado de CCR, implicam a aplicação de programas de rastreio e vigilância particulares, que desenvolveremos adiante. A prevenção secundária do CCR, através da implementação de programas de rastreio, permite identificar e tratar as lesões precursoras benignas (adenomas) e as neoplasias malignas em estádio precoce, conduzindo à diminuição da incidência e mortalidade, respectivamente (83) . Uma vez que a grande maioria dos CCR se desenvolve a partir de pólipos adenomatosos, durante um período mais ou menos longo, ao identificarmos e ressecarmos um adenoma estaremos a diminuir a incidência de CCR. Por outro lado, sabemos que a sobrevivência está claramente dependente do estádio da neoplasia maligna, pelo que, quando a identificarmos em estádio precoce, estamos seguramente a diminuir a mortalidade por CCR. Em vários estudos foi demonstrada uma redução significativa da mortalidade por CCR nas populações submetidas a programas de rastreio (84, 85) o que levou à divulgação, publicação e implementação de recomendações para rastreio de CCR pelas principais Sociedades Científicas internacionais e também pela Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (86-88). Em 1969, Cochrane definiu os pressupostos da validação de programas de rastreio (89) que teriam> aplicabilidade em qualquer entidade nosológica que apresentasse mortalidade elevada, história natural longa e bem conhecida e para a qual existisse terapêutica eficaz e curativa. Ora, o CCR preenche praticamente todos estes critérios. Por outro lado, ainda de acordo com os mesmos pressupostos, os testes a empregar no rastreio deveriam ser simples, eficazes, pouco dispendiosos e de fácil acessibilidade, e é nesta premissa que há ainda algumas dificuldades. O CCR é considerado um dos poucos tumores para o qual existem dados claros que suportem o benefício de programas de rastreio. A eficácia das estratégias de rastreio disponíveis, baseia-se na identificação de neoplasias malignas em estádio precoce ou, idealmente, na identificação de lesões precursoras, os pólipos RISCO DE CCR O risco individual de desenvolver CCR é um determinante importante quando se equaciona quem, como e quando rastrear. A quan77 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO outras populações com taxas de incidência de CCR similares. A estratificação do risco de CCR e as recomendações adiante propostas (figura 1) estão de acordo com as recomendações norte-americanas (86) e com as recomendações publicadas pela Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (S.P.E.D.) (88). tificação, o mais precisa possível, do risco de CCR permite aos clínicos, aos decisores políticos e aos próprios indivíduos avaliar os potenciais benefícios e riscos das estratégias de prevenção. Assim, podemos identificar diferentes níveis de risco de CCR que condicionam diferentes abordagens de rastreio e vigilância. Em 1997 foram publicadas as recomendações para o rastreio do CCR nos EUA, representando a posição das várias Sociedades Científicas Norte-Americanas (93). Estas recomendações foram actualizadas em 2003 de acordo com os avanços científicos mais recentes (86). Embora sejam recomendações adoptadas para a população norte-americana, elas poderão ser apropriadas, segundo os próprios autores, para População de risco padrão Corresponde aos indivíduos de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 50 anos, assintomáticos e sem outro factor de risco para CCR (história pessoal ou familiar de CCR ou adenomas ou história pessoal de doença inflamatória do intestino). FIGURA 1 – RASTREIO DO CARCINOMA DO CÓLON E RECTO, ESTRATIFICADO PELO RISCO DE CCR EM FUNÇÃO DA HISTÓRIA FAMILIAR Idade < 50 anos História familiar negativa Rastreio não recomendado Indivíduos assintomáticos História familiar positiva 1 parente 1.° grau com CCR ou adenoma e idade < 60 anos Idade ≥ 50 anos História familiar negativa Rastreio da população de risco padrão 1 parente 1.° grau com CCR ou adenoma e idade ≥ 60 anos 2 parentes de 1.° grau CCR, independentemente da idade 2 parentes de 2.° grau CCR, independentemente da idade • Colonoscopia com inicio aos 40 anos (ou 10 anos antes do parente mais jovem) Rastreio da população de risco padrão mas inicio aos 40 anos • Periodicidade – de 5 / 5 anos CCHNP ou PAF-C ou PAM Aconselhamento genético Rastreio específico CCR – Carcinoma do cólon e recto CCHNP – Carcinoma do cólon e recto hereditário não associado a polipose PAF-C – Polipose adenomatosa familiar do cólon PAM – Polipose associada ao gene MYH 78 Luísa Glória Sabemos que a incidência de CCR é relativamente baixa antes dos 50 anos de idade e que aumenta rapidamente a partir deste grupo etário (84), daí que o rastreio de CCR se deva iniciar nesta idade, quando não há outros factores de risco conhecidos. Os dados nacionais mostram-nos também o crescente aumento da taxa de incidência padronizada para a idade a partir dos 50 anos (4). sentarem dimensões inferiores (97). À semelhança do que se verifica para o CCR, o risco parece ser mais marcado se o caso índex for mais jovem (antes dos 60 anos) (29). Embora sejam necessários mais dados para sugerir recomendações precisas, aceita-se que os familiares de 1.° grau de indivíduos com CCR ou adenomas (> 1 cm) devem ser considerados da mesma forma, em termos de risco. Assim, têm sido propostos 2 sub-grupos de risco aumentado de CCR em função da história familiar de CCR ou adenomas (quadro 2) (86,88) , de forma a definir a estratégia preventiva mais adequada: Grupo I – indivíduos com 1 parente de 1.° grau com CCR ou adenoma antes dos 60 anos de idade ou 2 parentes de 1.° grau com CCR, independente da idade – risco 3 a 4 vezes superior em relação à população de risco padrão; Grupo II – indivíduos com 1 parente de 1º grau com CCR ou adenoma e idade igual ou superior a 60 anos ou 2 parentes de 2.° grau com CCR independente da idade – risco 2 a 3 vezes superior em relação à população de risco padrão. Aceita-se que a presença de 1 parente de 2.° grau ou de 1 ou mais parentes de 3.° grau com CCR não confere um risco significativamente superior em relação à população de risco padrão. Temos, por outro lado, os indivíduos pertencentes a famílias com formas hereditárias de cancro, em que os factores genéticos são População de risco aumentado Vários estudos têm demonstrado que o risco de CCR nos familiares de 1.° grau de indivíduos com CCR considerado esporádico é, em média, o dobro do risco que apresenta a população geral (24-27,94-96), embora a magnitude do risco varie de acordo com a idade de diagnóstico do caso índex e com o número de parentes afectados. Nos indivíduos com mais de um parente de 1.° grau afectado, especialmente se a localização é no cólon e se a idade for inferior a 60 anos, o risco é mais elevado. O risco é menos elevado naqueles que têm 1 parente de 1.° grau com CCR diagnosticado após os 60 anos (24,25,95,96). Os indivíduos com história familiar de adenomas apresentam também um risco mais elevado de CCR (24,28,29). Tem sido sugerido que o risco seja semelhante ao daqueles que têm um parente de 1º grau com CCR se o adenoma for superior a 1 cm, mas não se verificou aumento do risco se os adenomas apre- QUADRO 2 – ESTRATIFICAÇÃO DO RISCO DE CCR EM FUNÇÃO DA HISTÓRIA FAMILIAR DE CCR OU ADENOMAS Grupo I – Risco 3-4 vezes superior ao da população de risco padrão – 1 parente de 1.° grau* com CCR ou adenoma e idade < 60 anos – 2 parentes de 1.° grau* com CCR, independente da idade Grupo II – Risco 2-3 vezes superior ao da população de risco padrão – 1 parente de 1.° grau* com CCR ou adenoma e idade > 60 anos – 2 parentes de 2.° grau** com CCR, independente da idade Adaptado das recomendações da Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (88) e da Sociedade Americana de Gastrenterologia (86) * Parentes de 1º grau - pais, irmãos ou filhos ** Parentes de 2º grau – avós, tios maternos e paternos 79 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO preponderantes e em que o risco de desenvolver CCR é muito mais elevado. É fundamental a existência de uma história familiar detalhada bem como a identificação dos defeitos genéticos associados. Nas formas hereditárias de cancro do cólon e recto incluem-se várias entidades distintas, mas são duas as entidades mais frequentes e com maior relevância: o cancro do cólon e recto não associado a polipose (CCHNP ou síndroma de Lynch) e a polipose adenomatosa familiar do cólon (PAF-C). Como já foi mencionado, a polipose associada a mutação no gene MYH (PAM) é uma entidade autossómica recessiva que se caracteriza por múltiplos adenomas e elevado risco de CCR, cujo defeito genético foi recentemente identificado. O CCHNP é responsável por 3 a 5% de todos os CCR e a PAF-C por cerca de 1%, admitindo-se que a PAM possa estar implicada em 0,4 a 3% de todos os CCR (35,37). O CCHNP está associado a um risco também muito elevado de carcinomas do endométrio, ovário, intestino delgado, vias biliares, pâncreas, uretero e pélvis renal, estômago, tumores do cérebro (glioblastomas) e cutâneos (adenomas ou carcinomas de glândulas sebáceas e queratoacantomas). Os indivíduos pertencentes a famílias com formas hereditárias de cancro deverão ser referenciados a centros especializados na abordagem destas entidades e carecem de programas de vigilância individualizados e específicos, que se têm revelado muito eficazes na prevenção do CCR (30,98). de adenomas ou carcinomas do cólon ou recto e sem história pessoal de doença inflamatória do intestino). Dos testes de rastreio actualmente disponíveis – pesquisa de sangue oculto nas fezes, sigmoidoscopia flexível, colonoscopia e clister opaco com duplo contraste – a pesquisa de sangue oculto nas fezes é suportada por uma mais forte evidência. Um nível intermédio de evidência é suportado pela sigmoidoscopia flexível. Apenas evidência indirecta apoiam o uso da colonoscopia e do clister opaco com duplo contraste. No entanto, nos últimos anos tem havido um aumento significativo do recurso à colonoscopia total como método de rastreio, uma vez que a colonoscopia é o método final de referência de todos os outros e permite, numa só abordagem, explorar a totalidade do cólon, proceder a polipectomia e biopsar lesões. Actualmente outros métodos de rastreio estão em estudo como a colonoscopia virtual e a análise do ADN fecal, aguardando-se os seus resultados (99). À população de risco padrão deverá ser proposta uma das estratégias de rastreio de CCR actualmente recomendadas (quadro 3) e que passaremos a analisar em seguida. Pesquisa de sangue oculto nas fezes A pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) baseia-se no pressuposto de que a maioria dos CCR e dos adenomas de maiores dimensões se associam a perdas hemáticas intermitentes, o que raramente acontece nos adenomas de pequenas dimensões. É esta evidência que tem levado à utilização da PSOF como método de rastreio, seguida de colonoscopia, no caso de o resultado ser positivo. Vários estudos randomizados, realizados com o Hemoccult anual ou de dois em dois anos mostraram uma redução significativa, entre 15 e 33%, da mortalidade por CCR na população rastreada (100-104). Uma meta-análise recente, que incluiu 4 dos estudos randomizados e controlados e 2 ensaios controlados, envolvendo cerca de 320.000 RASTREIO DE CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO PADRÃO Em Portugal e, à semelhança do que acontece noutros países de elevada incidência de CCR, é fortemente recomendado o rastreio de base populacional (88). Como foi referido, entende-se como população de risco padrão, aquela que compreende os indivíduos com idade igual ou superior a 50 anos, assintomáticos e sem outros factores de risco conhecidos (história pessoal ou familiar 80 Luísa Glória QUADRO 3 – ESTRATÉGIAS DE RASTREIO DO CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO PADRÃO Pesquisa de sangue oculto nas fezes anual, início aos 50 anos ou Sigmoidoscopia flexível de 5/5 anos, início aos 50 anos ou Pesquisa de sangue oculto nas fezes anual e rectosigmoidoscopia flexível de 5/5 anos, início aos 50 anos ou Clister opaco com duplo contraste de 5/5 anos, início aos 50 anos ou Colonoscopia de 10/10 anos, início aos 50 anos participantes, mostrou que o rastreio através da PSOF reduziu a mortalidade por CCR em 16% (risco relativo: 0,84) e em 25%, se ajustada para todos os indivíduos que completaram os exames de rastreio (105). Dos estudos referidos concluiu-se que a maior redução da mortalidade se verificava quando a PSOF era efectuada anualmente e quando uma pesquisa positiva implicava a realização de colonoscopia. Apesar da redução na mortalidade verificada nos vários estudos, a PSOF apresenta baixa sensibilidade para detecção de neoplasias malignas (30 a 50%) e ainda mais baixa para a detecção de adenomas (100,106). A PSOF apresenta também falsos positivos, especialmente se efectuada com rehidratação (107). A reanálise recente dos estudos publicados com PSOF levanta algumas dúvidas em relação à magnitude da redução da mortalidade por este método de rastreio (108, 109). A baixa sensibilidade da PSOF foi também confirmada num estudo nacional, realizado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, onde a PSOF foi associada à sigmoidoscopia flexível (110). Neste estudo, realizado com Hemoccult (sem rehidratação), a sensibilidade foi de 17,6% e a especificidade de 92,6%, com um valor predictivo positivo de 20,5% e um valor predictivo negativo de 91,2%. Ahlquist e cols. (106), num programa de rastreio onde a PSOF foi associada à sigmoidoscopia flexível, verificaram que a PSOF foi positiva em apenas 23,9% dos casos que apresentavam adenomas de risco ou CCR e houve 6,2% de falsos positivos, com um valor predictivo positivo de 39,7% e um valor predictivo negativo de 87,8%. Nos programas de rastreio que utilizem a PSOF esta deverá ser efectuada com periodicidade anual, sem rehidratação e, se a PSOF for positiva, a colonoscopia total é o procedimento de diagnóstico recomendado. Se a colonoscopia total não mostrar lesões não há necessidade de novos exames de rastreio num período de 10 anos (86). Sigmoidoscopia flexível Embora não haja estudos que inequivocamente suportem a sigmoidoscopia flexível como método de rastreio, vários estudos casocontrolo têm mostrado o seu benefício na redução da mortalidade por CCR, entre 50 a 70%, nas lesões localizadas no recto e sigmoideia (111-114) e também redução de 50% na incidência (113). O rastreio de CCR através da sigmoidoscopia flexível baseia-se no facto de que a probabilidade de identificar lesões avançadas na colonoscopia se correlaciona com a existência de adenomas de risco na sigmoideia. Entende-se como adenoma de risco, aquele que seja superior a 1 cm, apresente um componente viloso ou displasia de alto grau (115). A probabilidade de identificar lesões avançadas na colonoscopia diminui de 12% para 1%, em função da presença ou ausência de adenomas de risco na sigmoideia (115). Atkin e cols (116) não encontraram incidência mais elevada de CCR em indi81 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO víduos com adenomas tubulares do recto e sigmoideia, de dimensões inferiores a 1 cm, durante um período de vigilância de 14 anos. Por outro lado, aceita-se que o risco de lesões avançadas do cólon proximal nos indivíduos com pequenos pólipos hiperplásicos do recto ou sigmoideia é sobreponível ao dos indivíduos que não apresentem estes pólipos (86, 117,118). Os resultados de um estudo randomizado e controlado, realizado no Reino Unido e publicado em 2002, usando a sigmoidoscopia flexível em indivíduos assintomáticos com idades compreendidas entre 55-64 anos, sugeriu que este método de rastreio era aceitável, exequível e seguro. Foram diagnosticados tumores em 0,3% dos indivíduos rastreados, 74% dos quais em estádios A ou B e foram detectados adenomas em 12% dos indivíduos. Os indivíduos com adenomas avançados (> 3 adenomas, dimensão > 1 cm, arquitectura vilosa ou displasia de alto grau) foram submetidos a colonoscopia total. Neste grupo foram detectados adenomas proximais em 19% e carcinomas em 0,4% dos indivíduos (119). No estudo nacional já referido (110), que associou a PSOF à sigmoidoscopia flexível, a sigmoidoscopia detectou todos os adenocarcinomas e adenomas avançados identificados através deste programa de rastreio. No entanto, um estudo publicado por Lieberman e Weiss (120) mostrou que a sigmoidoscopia flexível apenas conseguiu identificar 70,3% das lesões avançadas em comparação com a colonoscopia. Neste mesmo estudo a sigmoidoscopia flexível associada à PSOF identificou 75,8% das lesões avançadas, o que significa que cerca de 24% das lesões não foram identificadas por estes métodos de rastreio. Nos programas de rastreio que optem pela sigmoidoscopia esta deve ser repetida com intervalos de 5 anos. A sigmoidoscopia flexível permite a realização de biópsias e a ressecção de pólipos de dimensões inferiores a 5 mm. Se na sigmoidoscopia de rastreio forem identificados adenomas de risco a colonoscopia total é o exame recomendado (86,88). O diagnóstico de pólipos hiperplásicos no recto ou sigmoideia não se associa a risco aumentado de lesões avançadas no cólon proximal e não constitui, de momento, indicação para colonoscopia (86,117,118) . A Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva propõe como estratégia de rastreio de CCR a realização de sigmoidoscopia flexível/colonoscopia esquerda de 5 em 5 anos, para todos os indivíduos assintomáticos com idade igual ou superior a 50 anos e sem outros factores de risco conhecidos para CCR (88). Pesquisa de sangue oculto nas fezes e sigmoidoscopia flexível A PSOF anual associada à sigmoidoscopia de 5 em 5 anos é uma das estratégias de rastreio também aceites embora a sua eficácia na redução da mortalidade nunca tenha sido demonstrada em estudos randomizados. Tem sido sugerido que a combinação destes dois testes seja mais eficaz na detecção de adenomas e de CCR do que cada um isoladamente. Lieberman e Weiss mostraram que a sigmoidoscopia identificou 70,3% de lesões avançadas e que a associação com a PSOF permitiu identificar 75,8% das lesões avançadas em 2885 indivíduos assintomáticos, com idade compreendida entre os 50 e os 74 anos (120). Dois estudos randomizados e controlados mostraram que esta estratégia era superior à PSOF na identificação de adenomas e CCR (121,122). No entanto, a realização de dois testes, com os respectivos custos e inconvenientes, constitui uma desvantagem provavelmente não compensada por um ganho na eficácia muito discutível. Ao optar-se por esta estratégia de rastreio, a PSOF deverá ser o teste inicial porque, se for positivo, implica a realização de colonoscopia, evitando deste modo a realização de dois exames endoscópicos (88). Clister opaco com duplo contraste Não existem estudos que demonstrem inequivocamente que o clister opaco com duplo contraste reduza a incidência ou mortalidade por CCR na população de risco padrão. 82 Luísa Glória A baixa sensibilidade do clister opaco tem sido demonstrada em muitos estudos através da não identificação de 26-67% de adenomas maiores que 1 cm e de cerca de 90% de adenomas inferiores a 1 cm (123-126). Para além da baixa sensibilidade na detecção de adenomas e de tumores (127), o clister opaco não permite a remoção de pólipos ou a realização de biópsias e apresenta também falsos positivos, muitas vezes devido a artefactos causados pela presença de fezes. Por outro lado, sempre que há uma alteração no clister opaco tem que se proceder à realização de colonoscopia. Devido às limitações atrás enunciadas e ao facto de os novos radiologistas apresentarem menos treino nesta técnica, esta não deverá, em termos gerais, ser considerada como exame de rastreio de CCR (86, 88). No entanto, este método é ainda considerado como estratégia de rastreio devido à possibilidade de examinar todo o cólon, estar mais facilmente disponível que a endoscopia e permitir a identificação de cerca de metade dos pólipos de maiores dimensões, que serão os que apresentam maior probabilidade de ser clinicamente importantes (86). Ao optar-se por esta estratégia de rastreio o intervalo entre os exames deverá ser de 5 anos, pela sua baixa sensibilidade em relação à colonoscopia (86). polipectomia endoscópica, permite reduzir a incidência de CCR (16,17); a colonoscopia permite identificar lesões do cólon direito que não são identificadas pela combinação da PSOF com a sigmoidoscopia (120,128). Para além de todas estas evidências, a colonoscopia permite simultaneamente a visualização completa do cólon, a polipectomia endoscópica e o exame histológico das neoplasias, não sendo necessário recorrer a qualquer outro exame adicional. O crescente reconhecimento dos adenomas planos e da importância da sua identificação através de corantes vitais é outro dos argumentos a favor da colonoscopia (129,130). As principais desvantagens da colonoscopia em relação aos outros métodos de rastreio são o custo mais elevado e a maior morbilidade e desconforto para os indivíduos a rastrear. Embora seja o exame de referência na exploração do cólon e recto existem lesões que não são identificadas, estimando-se que a taxa de falsos negativos possa chegar aos 4%, especialmente se as lesões se localizam no cólon direito, o endoscopista é pouco experiente ou a preparação intestinal inadequada (131,132). Ao optar-se pela colonoscopia como método de rastreio na população de risco padrão a periodicidade recomendada é de 10 anos (86). O intervalo de 10 anos baseia-se na elevada sensibilidade da colonoscopia e no tempo estimado entre o aparecimento de um adenoma e a sua transformação maligna (16,133) . Um estudo caso-controlo mostrou que a sigmoidoscopia, como exame de rastreio, estava associada a um efeito protector de morte por cancro do cólon distal durante pelo menos 10 anos (111). Um estudo de cohorte (134) mostrou que indivíduos assintomáticos com uma colonoscopia de rastreio negativa apresentaram uma incidência de adenomas avançados inferior a 1% numa segunda colonoscopia, realizada 5 anos depois, o que leva a considerar que o intervalo de 10 anos será adequado (86). A colonoscopia será seguramente o método mais eficaz nos programas de rastreio de CCR, sendo aliás o exame de rastreio já pre- Colonoscopia A colonoscopia total deverá ser o método mais eficaz na prevenção do CCR apesar de não haver evidência directa e inequívoca do seu benefício na redução da incidência ou mortalidade. No entanto, várias linhas de evidência suportam fortemente a eficácia da colonoscopia no rastreio do CCR tais como: a colonoscopia faz parte dos programas de rastreio que utilizam a PSOF e através dos quais foi demonstrada a redução na incidência e mortalidade por CCR (100-105) ; a colonoscopia é mais sensível que a sigmoidoscopia na detecção de adenomas e neoplasias malignas e temos evidência de que a sigmoidoscopia reduz a incidência e mortalidade por CCR (111-114); a colonoscopia, através da 83 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO • Grupo I – 1 parente de 1.° grau com CCR ou adenoma e idade < 60 anos – 2 parentes de 1.° grau com CCR, independente da idade Neste grupo o rastreio deverá ser iniciado aos 40 anos de idade ou 10 anos antes do parente mais jovem com CCR (aplica-se o critério que implicar menor idade). O método de rastreio recomendado é a colonoscopia que deverá ser repetida com periodicidade de 5 anos. conizado e implantado em alguns países da Europa e nos Estados Unidos (87). Para além de identificar um maior número de lesões e permitir a polipectomia, durante o mesmo exame, o facto de ser realizada menos frequentemente em relação aos outros métodos – com periodicidade de 10 anos, se não se encontrarem lesões – levará seguramente a maior economia de recursos. RASTREIO DE CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO AUMENTADO • Grupo II – 1 parente de 1.° grau com CCR ou adenoma e idade > 60 anos – 2 parentes de 2.° grau, independente da idade Neste grupo o rastreio deverá ser semelhante ao da população de risco padrão, mas com início aos 40 anos. Indivíduos com 1 parente de 2.° grau ou 1 ou mais parentes de 3.° grau com CCR devem ser submetidos aos programas de rastreio aplicados à população de risco padrão, uma vez que apresentam um risco apenas marginalmente superior. – História familiar de carcinoma do cólon e recto ou adenomas Como foi referido, é importante implementar o rastreio de CCR de acordo com o risco individual de desenvolver CCR. Ao contrário das recomendações de rastreio para a população de risco padrão, que se baseiam em estudos clínicos bem fundamentados, nos indivíduos que apresentam risco mais elevado, em função da história familiar de CCR ou adenomas, estas recomendações são mais empíricas. De acordo com o risco de CCR (quadro 4) propõe-se um início mais precoce do rastreio e um intervalo menor entre os exames, como a seguir se discrimina (86,88): QUADRO 4 – RASTREIO DO CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO AUMENTADO Grupo I Grupo II 1 parente de 1.° grau com CCR ou adenoma, idade < 60 anos 2 parentes de 1.° grau com CCR, independente da idade 1 parente de 1.° grau com CCR ou adenoma e idade > 60 anos 2 parentes de 2.° grau com CCR, independente da idade • Colonoscopia com início aos 40 anos (ou 10 anos antes parente mais jovem) • Rastreio = População de risco padrão • Periodicidade – de 5/5 anos • Início aos 40 anos Adaptado das recomendações da Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (88) e da Sociedade Americana de Gastrenterologia (86) * Parentes de 1.° grau – pais, irmãos ou filhos ** Parentes de 2.° grau – avós, tios maternos e paternos 84 Luísa Glória RASTREIO DE CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO AUMENTADO rico, não deverá ser feito antes dos 10 anos de idade, uma vez que a colectomia profiláctica não deverá ser proposta antes dos 18 a 20 anos. Quando se identifica a mutação num membro da família, o que acontece em cerca de 80% dos casos, os familiares em risco devem ser submetidos a diagnóstico genético para essa mutação (137). Se uma mutação for identificada numa determinada família e os parentes em risco não apresentarem essa mutação significa que estes não serão portadores da doença e passam a fazer o rastreio de CCR de acordo com a população de risco padrão. Por outro lado, nos familiares em que se identifica a mutação, estes deverão fazer sigmoidoscopia anual, a partir dos 10-12 anos de idade. Se numa família com PAF-C não se consegue identificar nenhuma mutação ou se não houver acesso ao diagnóstico genético, o rastreio nos familiares em risco faz-se com sigmoidoscopia anual a partir dos 10-12 anos de idade (138). Ao ser confirmada a presença de adenomas, a vigilância passa a fazer-se com colonoscopia anual. A colectomia profiláctica deverá se proposta aos 18-20 anos de idade. Nos doentes submetidos a colectomia total com anastomose ileorrectal é aconselhado fazer vigilância do recto com intervalos de 6 a 12 meses. Nos doentes submetidos a proctocolectomia total com bolsa ileoanal é recomendado vigiar endoscopicamente a bolsa com intervalos de 1 a 2 anos (30,86,98). Na variante atenuada da doença o rastreio dos familiares deve ser efectuado com colonoscopia anual a partir dos 20 anos de idade, devido ao predomínio proximal dos adenomas e à idade mais tardia do seu aparecimento (98). Na PAF-C existe um risco aumentado de adenomas do intestino delgado, mais frequentes na zona da ampola de Vater e também adenomas e pólipos de glândulas fúndicas do estômago (139,140). Por este motivo, o rastreio destas lesões deve iniciar-se com endoscopia digestiva alta e duodenoscopia a partir dos 25 anos de idade, com periodicidade de 6 meses a 3 anos, de acordo com as características das – Polipose adenomatosa familiar do cólon (PAF-C) – Polipose associada a mutação no gene MYH (PAM) A PAF-C é uma doença autossómica dominante causada por uma mutação germinal do gene APC (delecção no cromossoma 5q21). Esta doença caracteriza-se pelo aparecimento de centenas de pólipos adenomatosos ao longo de todo o cólon. A idade de aparecimento dos adenomas é habitualmente na 2.ª década de vida (idade média: 16 anos) e o risco de carcinoma é de praticamente 100% (idade média do CCR: 39 anos). A maioria dos doentes afectados desenvolvem mais de 100 adenomas e apresentam, por definição, PAF-C (135). Existe uma variante atenuada da PAF-C em que os adenomas são em menor número (habitualmente 20-100), com um predomínio pelo cólon direito e a idade de aparecimento de CCR é, em média, 10 anos mais tarde. A sigmoidoscopia é o exame de rastreio adequado para as formas clássicas de PAF-C; a colonoscopia é o exame mais adequado para o rastreio da variante atenuada, uma vez que há um predomínio de adenomas no cólon direito (136). O diagnóstico clínico da PAF-C é feito através da identificação de 100 ou mais adenomas do cólon. O diagnóstico genético é feito através da identificação de uma mutação patogénica no gene APC. O diagnóstico genético deve ser efectuado em doentes com a expressão fenotípica de PAF-C (> 100 adenomas do cólon) se há parentes de 1º grau com idade inferior a 40 anos. Indivíduos com idade superior a 40 anos e que não apresentem expressão fenotípica deverão ser considerados como não portadores da mutação, excepto nas famílias com a variante atenuada. O diagnóstico genético, feito no ADN dos linfócitos do sangue perifé85 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO lesões diagnosticadas, embora a eficácia destes programas de rastreio não esteja completamente demonstrada (30,98). A mortalidade por CCR é inferior nos doentes com PAF submetidos a rastreio relativamente àqueles em que o diagnóstico é feito pela presença de sintomas (141). A polipose associada a mutação no gene MYH (PAM) é uma entidade autossómica recessiva descrita recentemente e caracterizada pelo aparecimento de múltiplos adenomas do cólon, na ausência de mutações germinais do gene APC (32,33,34). Admite-se que a identificação desta mutação tenha contribuído para identificar cerca de 5 a 20% dos doentes anteriormente diagnosticados como tendo PAF-C (ou a variante atenuada) mas sem diagnóstico molecular e ainda cerca de 13 a 30% dos indivíduos portadores de excesso de adenomas. Tem sido sugerido que esta forma de polipose esteja na origem de 0,4 a 3% de todos os casos de CCR (35,37). O risco de CCR nos indivíduos portadores de mutação bialélica é elevado, mas habitualmente o seu aparecimento verifica-se cerca de uma década mais tarde do que na PAF-C. Embora esta entidade tenha sido reconhecida recentemente, existem algumas recomendações em termos de rastreio e vigilância de CCR. Como o desenvolvimento de adenomas e CCR é mais tardio que na PAF-C recomenda-se que todos os portadores da mutação bialélica do gene MYH sejam submetidos a colonoscopia anual com início aos 25 anos ou 5 anos antes do caso mais jovem de CCR (aplica-se o critério que implicar menor idade) e repetidas a intervalos de 3 a 5 anos. É recomendado que os parentes de 1.° grau de indivíduos portadores de mutação bialélica devam fazer diagnóstico genético. O risco de adenomas e CCR nos indivíduos heterozigóticos é ainda desconhecido mas recomenda-se a realização de colonoscopia aos 40 anos de idade (34,35,142,143). Tem sido reconhecido que, apesar de o conhecimento destas doenças hereditárias se ter desenvolvido bastante nos últimos anos, o diagnóstico genético não é aplicado nem interpretado da forma mais adequada e que todo o processo de aconselhamento genético é frequentemente subestimado (137,138). Desta forma, é recomendado que os doentes com formas hereditárias de polipose e familiares em risco sejam referenciados a centros especializados com experiência no rastreio, vigilância e aconselhamento destas formas hereditárias de CCR. RASTREIO DE CCR NA POPULAÇÃO DE RISCO AUMENTADO – Carcinoma do cólon e recto hereditário não associado a polipose (CCHNP) O CCHNP ou síndroma de Lynch é responsável por cerca de 3-5% de todos os casos de CCR (30,31). Trata-se de uma doença de transmissão autossómica dominante causada por mutações germinais num de 4 genes de reparação de erros do ADN por sistema de mismatch, particularmente o MLH1, o MSH2 e o MSH6. Caracteriza-se pela existência de tumores síncronos ou metacrónicos do cólon e extra-cólicos, em vários elementos da mesma família, habitualmente em idade jovem, e instabilidade de microssatélites nos CCR (144-146). Foram definidos inicialmente os critérios clínicos do CCHNP, denominados de critérios de Amesterdão (147) e, posteriormente modificados para contemplarem tumores extra-cólicos associados e definidos como critérios de Amesterdão II (148) (Quadro 5). Após se terem identificado as mutações responsáveis pelo CCHNP percebeu-se que os critérios de Amesterdão eram demasiado restritivos para a identificação deste síndroma, uma vez que se encontravam famílias portadoras do defeito genético que não preenchiam esses critérios clínicos. Consequentemente foram definidos outros critérios de forma a seleccionar indivíduos com elevada probabilidade de serem portadores de uma das mutações. Os critérios de Bethesda (quadro 6) foram publicados em 1997 (149) e revistos em 2004 (150). Os 86 Luísa Glória QUADRO 5 - CRITÉRIOS CLÍNICOS DO CCHNP OU SINDROMA DE LYNCH Critérios de Amesterdão (147) Pelo menos 3 familiares com CCR e todos os critérios seguintes: – um doente afectado é parente de 1º grau dos outros dois – estão afectadas 2 ou mais gerações sucessivas – pelo menos um doente com CCR, diagnosticado antes dos 50 anos – exclusão de PAF-C – confirmação histológica dos tumores Critérios de Amesterdão modificados (148) – inclui tumores extra-cólicos associados Pelo menos 3 familiares com tumores do espectro do CCHNP* e todos os critérios seguintes: – um doente afectado é parente de 1º grau dos outros dois – estão afectadas 2 ou mais gerações sucessivas – pelo menos um doente com cancro diagnosticado antes dos 50 anos – excluída PAF-C em qualquer dos doentes com CCR – confirmação histológica dos tumores * Tumores associados ao espectro do CCHNP e contemplados nestes critérios: CCR, carcinomas do endométrio, intestino delgado, uretero e pélvis renal. QUADRO 6 – CRITÉRIOS DE BETHESDA REVISTOS (150) 1. 2. 3. 4. 5. Indivíduos com CCR diagnosticado em idade inferior a 50 anos Indivíduos com CCR síncronos ou metacrónicos, ou associação com outros tumores do espectro do CCHNP*, independentemente da idade Indivíduos com CCR com características histológicas de instabilidade de alto grau**, diagnosticado em idade inferior a 60 anos Indivíduos com CCR e um ou mais familiares de 1º grau com um tumor do espectro do CCHNP*, um dos quais diagnosticado em idade inferior a 50 anos Indivíduos com CCR e dois ou mais familiares de 1º ou 2º grau com tumor do espectro do CCHNP*, independente da idade * Tumores associados ao espectro do CCHNP incluem: CCR, carcinomas do endométrio, ovário, intestino delgado, vias biliares, pâncreas, uretero e pélvis renal, estômago, tumores do cérebro (glioblastomas) e cutâneos (adenomas ou carcinomas de glândulas sebáceas e queratoacantomas). ** infiltrado linfocitário, reacção Crohn- like, tumores mucinosos ou com diferenciação em “anel de sinete” ou padrão de crescimento medular indivíduos que preencham um dos critérios de Bethesda deverão ser seleccionados para pesquisa de instabilidade de microssatélites no CCR. Se os tumores apresentarem instabilidade de microssatélites de alto grau, estes indivíduos deverão ser encaminhados para diagnóstico genético. À semelhança do modelo esporádico, a lesão precursora de CCR no CCHNP é o adenoma, que apresenta mais frequentemente um componente viloso e com displasia de alto grau, admitindo-se que o processo de carcinogénese seja mais acelerado (9,151,152). Os indivíduos com diagnóstico clínico ou genético de CCHNP e os familiares em risco devem realizar colonoscopia com intervalo de 1 ou 2 anos, com início aos 20-25 anos de idade ou 10 anos antes do parente afectado mais jovem (aplica-se o critério que implicar menor idade). A partir dos 40 anos a colonoscopia deverá ser repetida anualmente e sempre que se detecte pelo menos um adenoma, independentemente da idade (86,98). O diagnóstico genético deve ser disponibilizado aos familiares de 1.° grau de indivíduos que apresentem a mutação identificada num dos genes de reparação do ADN. Se numa família de CCHNP há uma mutação patogénica claramente identificada e os familiares em risco não apresentam essa mutação deverão ser considerados como não portadores do defeito genético e o rastreio a propor é igual ao da população de risco padrão. Por outro lado, os indivíduos onde se identifica a muta87 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO ção devem ser submetidos a colonoscopia com periodicidade anual. À semelhança do rastreio do CCR esporádico, também neste grupo de risco muito elevado, o objectivo do rastreio ou vigilância consiste na detecção e remoção de adenomas e neoplasias malignas em estádio precoce. Estas recomendações são baseadas nas características clínicas da doença e também num estudo que demonstrou uma diminuição na incidência e mortalidade por CCR, com recurso à colonoscopia em intervalos de 3 anos (153). No entanto, recomenda-se um intervalo mais curto, porque se diagnosticaram, nesse mesmo estudo, neoplasias avançadas nos intervalos das colonoscopias. Jarvinen e cols. (154) verificaram uma diminuição do risco (em 62%) e ausência de mortalidade por CCR em filhos de doentes com CCHNP, através da realização de colonoscopia de 3 em 3 anos. A idade para início de rastreio (aos 2025 anos) baseia-se no facto de o cancro ser muito raro antes desta idade (9). Os indivíduos com diagnóstico clínico ou genético de CCHNP e que apresentem CCR ou adenomas avançados, principalmente se não forem susceptíveis de remoção total por via endoscópica, devem ser propostos para colectomia total com anastomose íleorrectal, seguida de vigilância do coto rectal com proctoscopia anual e polipectomia, se for o caso (155). Relativamente ao rastreio dos tumores extra-cólicos propõe-se o rastreio do cancro do endométrio e do ovário, com exame ginecológico, ecografia com sonda endovaginal e determinação do CA-125, com intervalos de 1 a 2 anos e com início aos 30-35 anos de idade (86) . Embora não seja consensual, tem sido sugerido o rastreio do carcinoma gástrico e do urotélio em famílias que apresentam estes tumores (30,98). Para rastreio dos tumores gástricos propõe-se a endoscopia digestiva alta e para os tumores do urotélio propõe-se a ecografia do aparelho urinário e pesquisa de células neoplásicas na urina. O intervalo recomendado destes exames será entre 1 a 2 anos, com início aos 30-35 anos de idade. Salienta-se que apesar de se proporem as recomendações atrás referidas, a sua eficácia para além da do rastreio do CCR, está por demonstrar (98). Á semelhança da PAF-C e da PAM, é recomendado que os indivíduos com CCHNP e seus familiares em risco sejam encaminhados para centros de referência com experiência no diagnóstico, tratamento e aconselhamento destas entidades (48). VIGILÂNCIA DE INDIVIDUOS COM RISCO AUMENTADO DE CCR Como já referimos o rastreio, por definição, consiste na avaliação de indivíduos assintomáticos, com o objectivo de identificar adenomas ou carcinoma do cólon e recto. Por outro lado, a vigilância é a estratégia a adoptar nos indivíduos a quem se detectou adenomas ou carcinomas do cólon e recto ou nos doentes com doença inflamatória do intestino com o objectivo de identificar lesões metacrónicas, no caso dos adenomas e carcinoma, ou lesões precursoras de CCR, no caso da doença inflamatória do intestino. Abordaremos de seguida as recomendações mais consensuais na vigilância destas situações. História pessoal de pólipos do cólon e recto Os adenomas do cólon e recto são as lesões mais frequentemente detectadas em indivíduos submetidos ao rastreio do CCR, sendo encontrados em 30 a 40% dos indivíduos com mais de 60 anos de idade (156). Foi amplamente demonstrado que a polipectomia endoscópica e a subsequente vigilância reduzem a incidência de CCR (16,17,19,111,112,157,158), o que constitui a base dos programas de rastreio e vigilância. A vigilância endoscópica dos indivíduos a quem foram identificados e removidos adenomas do cólon baseia-se no facto de serem identificados adenomas em exames subsequentes, em 20 a 60% dos casos. Admite-se que um número significativo destes adenomas corres88 Luísa Glória pondam a adenomas síncronos que não foram identificados em exames anteriores (86,93,159). Estes adenomas são habitualmente pequenos e apresentam displasia de baixo grau. De acordo com o “National Polyp Study” a redução da incidência de CCR, verificada nos programas de rastreio, parece estar relacionada com a primeira colonoscopia efectuada (16). O risco de desenvolver adenomas metacrónicos depende fundamentalmente do número e características histológicas das lesões encontradas e ressecadas na colonoscopia inicial (160-162). O desenvolvimento de adenomas avançados é lento, tendo-se verificado não existirem diferenças na detecção destas lesões nos exames efectuados ao fim de 1 e 3 anos após a colonoscopia inicial (153). Na década de 70 era prática habitual realizar colonoscopia de vigilância com periodicidade anual nos indivíduos com adenomas, mas os estudos entretanto publicados mostraram que a primeira colonoscopia de vigilância poderia ser efectuada 3 anos depois e, em 2003, foi recomendado que a vigilância após polipectomia seja baseada na estratificação do risco de desenvolver novas lesões (86). Os indivíduos com baixo risco de desenvolver adenomas avançados são os que apresentam apenas 1 ou 2 pequenos (< 1cm) adenomas no exame inicial (162) e recomenda-se que a primeira colonoscopia de vigilância se faça 5 a 10 anos após a polipectomia inicial (86,155). Indivíduos com maior risco de desenvolver adenomas avançados são os que apresentam adenomas grandes (> 1 cm), múltiplos (> 3), com componente viloso ou com displasia de alto grau, que deverão fazer a primeira colonoscopia 3 anos após a polipectomia inicial (86,155). As recomendações para vigilância de adenomas após a polipectomia foram revistas e publicadas por Winawer e cols. em 2006 (155) e são as propostas pelas principais Sociedades Científicas Americanas (American Cancer Society, American College of Gastroenterology, American Gatroenterological Association e American Society for Gastrointestinal Endoscopy) e são as seguintes: 1. Considera-se que indivíduos com pequenos pólipos hiperplásicos do recto não apresentam risco aumentado de adenomas e devem ser considerados como pertencentes à população de risco padrão. Excluem-se desta categoria os indivíduos com síndroma da polipose hiperplásica que apresentam maior risco de adenomas e CCR e que devem fazer vigilância mais regular; 2. Indivíduos com 1 ou 2 pequenos (<1 cm) adenomas tubulares, com displasia de baixo grau devem repetir a colonoscopia em 5-10 anos; 3. Indivíduos com 3-10 adenomas ou com adenomas >1cm ou histologia vilosa ou displasia de alto grau devem fazer a primeira colonoscopia de vigilância aos 3 anos, desde que os adenomas tenham sido completamente removidos. Se esta colonoscopia mostrar apenas 1 ou 2 pequenos adenomas tubulares e com displasia de baixo grau o intervalo das colonoscopias subsequentes deverá ser de 5 anos; 4. Indivíduos com >10 adenomas devem repetir a colonoscopia num intervalo mais curto (inferior a 3 anos), de acordo com o critério clínico e deve ser ponderada a hipótese de uma síndrome familiar subjacente; 5. Indivíduos com adenomas sésseis removidos em piecemeal devem fazer vigilância endoscópica em 2 a 6 meses para verificar se a excisão foi completa. O critério para definir se a excisão foi completa deve basear-se em critérios endoscópicos e histológicos; 6. Deverá ser proposta vigilância mais intensiva quando a história familiar for sugestiva de CCHNP. Estas recomendações gerais de vigilância baseiam-se em vários pressupostos que deverão ser alvo de atenção: 1 – assume-se que a colonoscopia inicial (bem como as subsequentes) é total e que a preparação intestinal é adequa89 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO da; se tal não acontecer a colonoscopia deverá ser repetida antes de planear o programa de vigilância; 2 – a qualidade da colonoscopia é altamente variável, pelo que se tem insistido na qualidade da preparação intestinal, na experiência do gastrenterologista e no tempo adequado de retirada do colonoscópio, de forma a minimizar o risco de não detecção de lesões; 3 – a colonoscopia deverá ser repetida mais precocemente se há um número excessivo de adenomas e o gastrenterologista ficou com dúvidas acerca da remoção de todos os pólipos; 4 – é fundamental que se verifique se o adenoma foi completamente removido, especialmente nos adenomas sésseis, naqueles que apresentam displasia de alto grau ou nos ressecados em piecemeal; 5 – a vigilância deve ser individualizada de acordo com a idade e co-morbilidade de cada individuo e deve ser suspensa de acordo com o critério clínico, especialmente em doentes com outras comorbilidades cuja esperança média de vida seja inferior a 10 anos. Sabemos que os indivíduos com pólipos pequenos e hiperplásicos do recto e sigmoideia não apresentam risco acrescido de CCR e devem ser considerados como pertencentes à população de risco padrão (155). No entanto, como já foi referido anteriormente, os pólipos hiperplásicos não se enquadram numa categoria histológica homogénea; recentemente foram descritos os pólipos serreados, que se associam a maior risco de CCR, provavelmente a partir de uma via de carcinogénese diferente (41-43). Tem sido sugerido que a remoção completa e a respectiva vigilância endoscópica, à semelhança do que se recomenda para os adenomas clássicos, pode ser útil (163,164). Por outro lado, todos os gastrenterologistas devem estar atentos à síndrome da polipose hiperplásica, entidade pouco frequente, cujos critérios de diagnóstico já foram anteriormente referidos (44). Apesar de se reconhecer a sua associação com risco acrescido de CCR, provavelmente através da via serreada, a estratégia de manejo destes indivíduos não está ainda bem definida (155). Admite-se que através do seguimento destas recomendações globais, relativamente à vigilância de adenomas, se faça um uso mais racional da colonoscopia, evitando exames desnecessários na vigilância destes indivíduos. A colonoscopia é um exame invasivo, desconfortável, não isento de riscos, dispendioso e efectuado por pessoal médico altamente diferenciado. A sua utilização deve ser orientada para os indivíduos que realmente dela beneficiam, quer ao nível do diagnóstico quer ao nível do rastreio. História pessoal de carcinoma do cólon e recto A incidência de CCR está aumentada nos doentes com história prévia de neoplasia do cólon ou recto, independentemente da recorrência local (165,166). Os tumores metacrónicos são, à semelhança dos tumores iniciais, precedidos por adenomas. Um estudo controlado e randomizado realizado em 325 doentes com CCR submetidos a cirurgia de intenção curativa mostrou que a colonoscopia anual não era superior à história clínica, exame objectivo e determinação do antigénio carcinoembrionário (CEA) na detecção das recorrências tratáveis por cirurgia (167). De acordo com os pressupostos anteriores e com as recomendações da “American Cancer Society” e da “US Multi-Society Task Force on Colorectal Cancer” (168) a estratégia de vigilância a propor aos indivíduos com CCR submetidos a terapêutica de intenção curativa - ressecção endoscópica de CCR em estádio I, ressecção cirúrgica de CCR em estádios II e III e CCR em estádio IV, com metástases hepáticas ou pulmonares ressecadas será a seguinte: 1 – é fundamental em todos os doentes com CCR excluir a presença de lesões síncronas. No caso de tumores não 90 Luísa Glória obstrutivos deverá realizar-se a colonoscopia total pré-operatóriamente. Se tal não for exequível, é recomendado explorar o cólon proximal através de clister opaco com duplo contraste ou colonoscopia virtual. Nestes casos e, se não houver metástases à distância não ressecadas, deve considerar-se a realização de colonoscopia 3 a 6 meses depois da cirurgia para confirmar a ausência de lesões síncronas. Como alternativa poder-se-á considerar a colonoscopia total intra-operatória; 2 – deve repetir-se a colonoscopia 1 ano após a terapêutica de intenção curativa ou após se ter confirmado que não há lesões síncronas; 3 – se a colonoscopia realizada 1 ano após terapêutica for normal, o intervalo entre o exame subsequente deverá ser de 3 anos e se este exame continuar a não mostrar lesões os intervalos subsequentes serão de 5 anos; 4 – após a colonoscopia efectuada 1 ano após terapêutica, os intervalos deverão ser encurtados se houver evidência de CCHNP ou se as características de um adenoma identificado e ressecado condicionarem uma vigilância mais precoce (155); 5 – nos doentes com carcinoma do recto, submetidos a ressecção anterior, é de considerar uma vigilância com intervalos de 3 a 6 meses nos primeiros 2 a 3 anos após a cirurgia, com o objectivo de detectar uma recorrência local. Nestes exames de vigilância podem utilizar-se a proctoscopia rígida, flexível ou a ecoendoscopia. Estas recomendações são as propostas para os doentes com CCR submetidos a terapêutica de intenção curativa. Aceita-se que os doentes com tumores em estádio IV, ou seja, com metástases a distância não ressecáveis, não são candidatos a programas de vigilância uma vez que a sobrevivência esperada é baixa e o risco da vigilância é superior ao benefício (168). História pessoal de doença inflamatória do intestino Os doentes com doença inflamatória do intestino (DII), colite ulcerosa ou doença de Crohn, apresentam um risco mais elevado de desenvolver CCR, sabendo-se que cerca de 1% dos casos de CCR surgem no contexto de DII (169,170). Devido à prevalência relativamente baixa de DII na população tem sido difícil quantificar este risco, embora se admita que os doentes com colite ulcerosa extensa e de longa evolução apresentem um risco mais elevado. O risco é relativamente baixo na doença com menos de 8 a 10 anos de evolução, mas aumenta posteriormente. Num estudo recente, Rutter e cols. (171) publicaram os resultados de um estudo prospectivo, ao longo de 30 anos, em 600 doentes com colite ulcerosa e verificaram que a incidência de displasia e CCR foi de 1,5% aos 10 anos de doença, 7,7% aos 20 anos e de 27,5% aos 45 anos de doença. Um risco similar tem sido descrito para a doença de Crohn (172). Comparativamente com o CCR esporádico, as neoplasias associadas à DII ocorrem em idade mais jovem, são frequentemente multicêntricas, tendem a ser menos diferenciadas, mas o prognóstico é semelhante. Alguns estudos têm sugerido que a colangite esclerosante constitui um factor independente de risco de desenvolvimento de displasia e cancro, admitindo-se que a alteração da composição da bílis possa promover a carcinogénese. Outros factores de risco têm sido apontados como a gravidade da doença, a idade mais precoce do seu início, a deficiência em ácido fólico e também a história familiar de CCR esporádico (169-170,172-177). Embora a proctocolectomia profiláctica elimine virtualmente o risco de desenvolver CCR na doença extensa e de longa evolução, a maioria dos autores recomenda programas de vigilância, baseados na realização de colonoscopia com múltiplas biópsias com o objectivo de detectar displasia, tendo as recomendações de uma conferência de consenso sido publicadas recentemente (178). 91 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO Admite-se que o processo de carcinogénese na DII se processe a partir de alterações da mucosa normal evoluindo para displasia de baixo grau, displasia de alto grau e carcinoma. Mais recentemente tem havido interesse ao nível da proliferação de células estaminais aberrantes como uma possível explicação para a instabilidade genética e o desenvolvimento de neoplasia multifocal da mucosa cólica (179). A displasia é um marcador inequívoco de transformação maligna e constitui, na generalidade, indicação para proctocolectomia. A displasia ocorre frequentemente em mucosa plana e é por isso de difícil diagnóstico, de tal forma que se recomenda a obtenção de biópsias seriadas ao longo do cólon. Por outro lado, o diagnóstico de displasia tem muitas limitações e não há estudos controlados e randomizados que, inequivocamente, mostrem uma redução na incidência ou mortalidade por CCR nos doentes com DII submetidos a programas de vigilância. Um estudo caso-controlo mostrou que os doentes com colite ulcerosa submetidos a vigilância apresentavam melhor sobrevivência (180). Uma revisão recente que reuniu vários estudos publicados, conclui que não há uma evidência inequívoca de que a vigilância endoscópica prolongue a sobrevivência nos doentes com colite extensa (181). No entanto, sabemos que o grau de displasia se correlaciona com o risco de CCR. No caso de haver displasia (de baixo ou alto grau) numa lesão elevada (o denominado DALM) a probabilidade de CCR síncrono na mucosa cólica é de 43%. Se a displasia é diagnosticada em mucosa plana, a probabilidade de CCR síncrono é de 43%, se a displasia é de alto grau e de 19%, se a displasia é de baixo grau (182) . A displasia constitui a base dos programas de rastreio e vigilância de CCR na colite ulcerosa e na doença de Crohn. É expectável que a cromoendoscopia venha a mostrar benefício na melhor identificação de lesões e seja utilizada de forma mais corrente na vigilância destes doentes (99). O rastreio e vigilância de displasia e CCR nos doentes com colite ulcerosa ou doença de Crohn, devem ser efectuados com colonoscopia em intervalos regulares, com biópsias seriadas ao longo de toda a mucosa do cólon e recto. Têm sido propostas as seguintes recomendações (86,178,183): Colite ulcerosa • Todos os doentes deverão fazer uma colonoscopia de rastreio aos 8-10 anos após o início dos sintomas atribuíveis à doença, para avaliar a sua extensão e despiste de displasia; • A vigilância endoscópica deve ser iniciada regularmente a partir dos 8 a 10 anos de doença, na colite extensa e esquerda. O intervalo entre as colonoscopias deverá ser de 1 a 2 anos. Se há 2 exames negativos para displasia o intervalo poderá ser de 1 a 3 anos até aos 20 anos de doença. A partir dos 20 anos de doença, o intervalo entre as colonoscopias deverá ser de 1 a 2 anos; • Nos doentes com colangite esclerosante primária a vigilância deve ser feita com periodicidade anual e a partir do início da doença; • Os doentes com proctossigmoidite apresentam um risco de CCR semelhante à população de risco padrão (169) e develhes ser oferecida a estratégia desta população. No entanto, se as biópsias mostrarem colite proximal, mesmo que endoscopicamente apenas haja envolvimento do recto e sigmoideia, tem sido sugerido que estes doentes entrem em programa de vigilância; • Durante as colonoscopias devem ser colhidas 4 biópsias nos 4 quadrantes e a cada 10 cm da mucosa, de forma a que pelos menos 33 biópsias sejam efectuadas no contexto de doença extensa. Tem sido recomendado que as biópsias do recto e sigmoideia distal se realizem a cada 5 cm, devido à incidência mais elevada de CCR nesta área (184). Todas as irregularidades, elevações, úlceras sus92 Luísa Glória peitas ou estenoses devem ser biopsadas separadamente; • A presença de displasia deve ser sempre confirmada por um segundo patologista experiente e a displasia deve ser graduada de acordo com os critérios de Riddell (185). tomia endoscópica (188-190). Na área adjacente a estas lesões deverão realizar-se 4 biópsias. Se estas biópsias forem negativas para displasia e se não há displasia no restante cólon, deve fazer-se nova colonoscopia dentro de 6 meses e, se não se encontrar displasia, o doente deverá continuar o programa de vigilância pré-estabelecido. No entanto, se há displasia (de alto ou baixo grau) na mucosa adjacente à lesão elevada, se esta não for ressecável ou se não for endoscopicamente semelhante a um adenoma esporádico (referido na literatura como lesão elevada ou massa – DALM) o risco de haver CCR síncrono é elevado, pelo que o procedimento recomendado é a proctocolectomia. Se houver pólipos adenomatosos em áreas do cólon que não apresentem colite (confirmado histologicamente) o manejo é semelhante ao dos adenomas esporádicos. Displasia em mucosa plana • Se uma ou mais biópsias são indefinidas para displasia em mucosa plana, o exame de vigilância deverá ser repetido em 3 a 6 meses; • Se se verifica displasia de baixo grau em mucosa plana é controversa a decisão de propor a proctocolectomia profiláctica porque não se conhece, com exactidão, a história natural da sua evolução. Sabemos que a probabilidade de haver um CCR síncrono é menor quando se detecta displasia de baixo grau do que de alto grau, mas de facto o CCR síncrono está presente em cerca de 20% daqueles doentes (182,186). Desta forma, recomenda-se que as estratégias disponíveis sejam discutidas com os doentes. Se se decidir manter a vigilância na presença de displasia de baixo grau, os intervalos entre os exames deverão ser inferiores a 6 meses. Se a displasia de baixo grau em mucosa plana é multifocal ou se se confirma em 2 ou mais exames de vigilância é fortemente recomendado proceder a proctocolectomia profiláctica; • Na presença de displasia de alto grau em mucosa plana deve proceder-se a proctocolectomia, devido à grande probabilidade de adenocarcinoma síncrono e metacrónico (182,187). Doença de Crohn As recomendações para rastreio e vigilância de CCR na doença de Crohn são muito semelhantes às anteriormente referidas para a colite ulcerosa, salientando-se, contudo, alguns pontos: • Os doentes com doença de Crohn apenas do intestino delgado não apresentam risco aumentado de CCR e deverão ser submetidos aos programas de rastreio da população de risco padrão; • Em relação à doença de Crohn do cólon aceita-se que o risco de CCR seja semelhante ao da colite ulcerosa, se a extensão e a duração da colite forem sobreponíveis. Salienta-se que o conhecimento que se adquiriu ao nível do risco de CCR na doença de Crohn é muito inferior quando comparado com o da colite ulcerosa; • À semelhança da colite ulcerosa, aceitase que o risco de CCR aumente a partir Displasia em lesões elevadas • Se houver lesões elevadas, 1 ou 2 pólipos em áreas de colite, que sejam endoscopicamente semelhantes aos adenomas esporádicos pode proceder-se a polipec93 PREVENÇÃO DO CANCRO DO CÓLON E RECTO mentação é fortemente recomendada pelas principais Sociedades Científicas Internacionais e também pela Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva. Existem várias estratégias de rastreio consideradas eficazes mas que diferem entre si pela sensibilidade, especificidade, custo, morbilidade e acessibilidade. Está amplamente documentado que, para além da idade, a hereditariedade é o factor de risco melhor conhecido do CCR. Desta forma, qualquer programa de rastreio deve ter em conta a estratificação do risco, baseado na história familiar de CCR ou adenomas. Apesar de estar bem demonstrado que o rastreio do CCR é altamente eficaz e que apresenta uma relação custo-benefício favorável verificamos que a sua implementação, quer em termos internacionais quer nacionais, tem sido muito reduzida. É, desta forma, prioritário que se reúnam as condições para que o rastreio de base populacional se possa implementar e desenvolver. dos 8-10 anos do início dos sintomas e aceita-se que há envolvimento extenso do cólon se mais do que um terço do cólon apresentar lesões endoscópicas (191) . O rastreio deve ser feito na doença extensa, aos 8-10 anos do início dos sintomas. O intervalo entre as colonoscopias deverá ser de 1 a 2 anos. Se há 2 exames negativos para displasia o intervalo poderá ser de 1 a 3 anos até aos 20 anos de doença. A partir dos 20 anos de doença, o intervalo entre as colonoscopias deverá ser de 1 a 2 anos; • A estratégia de manejo na presença de displasia em mucosa plana ou em lesões elevadas é semelhante ao descrito para a colite ulcerosa. No entanto, nos doentes com doença segmentar e com um carcinoma ou uma lesão displásica, desconhece-se se a ressecção segmentar do cólon é suficiente ou se se deve considerar a proctocolectomia total. CONCLUSÃO O CCR é uma das neoplasias malignas mais frequentes nos países desenvolvidos. Em Portugal, o CCR é a 2ª neoplasia maligna mais comum e representa a 2ª causa de mortalidade por cancro em ambos os sexos. A incidência do CCR aumenta com a idade sendo expectável que se torne uma neoplasia cada vez mais frequente à medida que a esperança média de vida aumenta, se não se desenvolverem e implementarem estratégias de prevenção. Enquanto que a prevenção primária, conseguida através da modificação da dieta e estilo de vida, poderá a longo prazo traduzir-se na diminuição da incidência e mortalidade por CCR, ganhos mais precoces podem ser conseguidos através da identificação e tratamento de lesões precursoras, os adenomas, e de neoplasias malignas em estádios precoces, ou seja através da prevenção secundária. Está bem documentado que o rastreio do CCR diminui a incidência e mortalidade por esta neoplasia, pelo que a sua imple94 Luísa Glória BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. Parkin DM, Whelan SL, Ferlay J, Teppo L, Thomas DB. Cancer incidence in five continents 2003; Vol. VIII. IARC Scientific Publication No 155 Jemal A, Siegel R, Ward E, Murray T, Xu J, Smigal C, et al. Cancer Statistics 2006. Ca Cancer J Clin 2006; 56: 106-30 Coleman MP, Gatta G, Verdecchia A, Estève J, Sant M, Storm H, et al. 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PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS Sendo a segunda causa de morte em Portugal, o cancro é uma doença com forte impacto social, não só pela sua elevada incidência e mortalidade mas também pelos enormes recursos envolvidos na sua prevenção, tratamento e reabilitação. Em Portugal, a importância do cancro como causa de morbilidade e mortalidade não tem cessado de aumentar. Em 1960 a mortalidade proporcional por cancro era de 9% e em 1998 era de 20%, um quinto de todas as mortes. O carcinoma da vesícula biliar representa 2,6% de todas as neoplasias malignas do organismo. É a neoplasia biliar mais frequente, estando presente em 1 a 3% das colecistectomias e em 0,3% a 1% das autópsias. Representa o quinto tumor gastrointestinal mais frequente e surge, predominantemente, em mulheres de idade superior a 60 anos, com uma relação homem/mulher de 1:1,2 a 1:1,5. Esta relação deve-se, provavelmente, à maior incidência de litíase biliar no sexo feminino. Dois factores de risco estão implicados na maioria das neoplasias vesiculares: a litíase vesicular e as anomalias da junção biliopancreática (1). I. PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES 1. Introdução Os tumores das vias biliares caracterizamse pela sua baixa frequência, em particular os de natureza benigna, e mau prognóstico dos tumores malignos. A sua localização topográfica condiciona o seu comportamento clínico e prognóstico e, portanto, determina decisões diagnósticas e terapêuticas muito diferentes. Assim, definem-se tumores da vesícula biliar, da via biliar principal e da ampola de Vater. Ainda, em função da sua localização, vários factores de risco foram identificados. 2.1 Litíase vesicular Cerca de 98% das neoplasias vesiculares surgem em vesículas litiásicas. No entanto, este tumor ocorre somente em 1% dos doentes portadores de litíase vesicular. O risco anual de surgir uma neoplasia vesicular nos doentes com litíase é de 0,01%. Esse risco é muito baixo e não justifica a colecistectomia preventiva na litíase assintomática (2). O risco aumenta com a duração da litíase, a existência de sintomas e a presença de uma vesícula escleroatrófica ou calcificada. Na vesícula de porcelana, o risco de neoplasia situa-se nos 25%, podendo ultrapas- 2. Tumores da vesícula biliar As séries publicadas sobre tumores benignos fazem referência a lesões polipóides, em 105 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS estar na origem do refluxo pancreaticobiliar e da estase biliar. O aumento da actividade epitelial proliferativa vesicular resultante da inflamação provocada pelo suco pancreático é observado desde a infância, no caso de anomalia da junção (3,8,9,10). sar os 40% nos casos de calcificação incompleta da parede vesicular (3,4). O papel dos constituintes do cálculo na carcinogénese não está claramente definido. Vários trabalhos têm apontado o ácido litocólico como factor importante no desenvolvimento da neoplasia vesicular. Por outro lado, parece haver um risco maior com os cálculos de maiores dimensões. Os resultados publicados são, no entanto, discordantes e não permitem propor colecistectomia sistemática nos doentes com cálculos de grandes dimensões (5,6,7). O sexo feminino, a obesidade e as dietas ricas em gordura ou hidratos de carbono, que favorecem a litíase biliar, estão indirectamente ligados a um aumento do risco de neoplasia da vesícula. 2.3 Outros factores de risco O risco de neoplasia vesicular nos portadores crónicos de Salmonella typhii é 6 a 8 vezes superior ao do resto da população (11). A adenomiomatose da vesícula biliar, frequentemente associada a anomalias da junção biliopancreática, é caracterizada pela hiperplasia da mucosa e hipertrofia da camada muscular, resultando numa obstrução funcional à saída da bílis. A adenomiomatose é classificada em localizada, generalizada e segmentar. O carácter pré-canceroso das formas localizada e generalizada não está definitivamente estabelecido. Devido ao potencial maligno da forma segmentar, os doentes com esta característica devem ser submetidos a colecistectomia, bem como os doentes com adenomiomatose localizada e generalizada que apresentem sintomas (12,13). 2.2 Anomalias da junção biliopancreática Uma relação entre anomalias da junção biliopancreática e neoplasia biliar foi sugerida no final dos anos 70. Estas anomalias definemse por uma junção entre o colédoco e o canal de Wirsung situado a montante da parede duodenal. O comprimento desse segmento é patológico se for superior a 10 mm. A dilatação quística do colédoco pode estar também presente. Vinte a 30% das anomalias da junção estão associadas a neoplasia biliar, vesicular em 70% dos casos e da via biliar principal em 30% dos casos (4). A neoplasia vesicular surge em idades mais precoces na presença de anomalias biliopancreáticas. A dilatação quística congénita do colédoco e as anomalias da junção biliopancreática estão geralmente associadas a concentrações elevadas de amilase nos quistos. Isto sugere que uma inflamação persistente e prolongada da via biliar, promovida pelo refluxo de suco pancreático e formação de sais biliares secundários (ácido litocólico), poderá ser um dos factores de carcinogénese biliar, especialmente na vesícula biliar e nos quistos mal drenados do colédoco. O funcionamento defeituoso do aparelho esfincteriano pode Alguns trabalhos apontam a exposição profissional a carcinogéneos químicos ou a exposição ambiental a metais pesados como factores que actuam na carcinogénese vesicular. A neoplasia vesicular foi descrita em doentes com colangite esclerosante primária, sendo que a sua maioria estava associada a litíase da vesícula. Neste caso, apesar do risco não ser elevado, a colecistectomia sistemática deve ser discutida nos doentes submetidos a colectomia. O papel do tabaco, do álcool ou dos antecedentes familiares na neoplasia vesicular é discutível. Os pólipos vesiculares não são, propriamente, factores de risco mas colocam problemas de diagnóstico diferencial. Estas lesões 106 Bruno Peixe, Diamantino Sousa pos de risco, como na doença inflamatória do intestino, com ou sem colangite esclerosante primária associada, anomalias congénitas hepatobiliares e doentes com infestações parasitárias por tremátodos do tipo Clonorchis sinensis e Opistorchis viverrini. correspondem geralmente a pólipos de colesterol, sem potencial neoplásico, mas podem ser adenomas ou, até mesmo, carcinomas. Os pólipos com diâmetro superior a 10 mm que mostrem crescimento rápido, associados a litíase ou suspeita de anomalias da junção biliopancreática devem ser submetidos a cirurgia. Nos doentes assintomáticos, com pólipo vesicular de diâmetro inferior a 10 mm, a probabilidade de transformação maligna é baixa. Está recomendada a vigilância ecográfica semestral, nos primeiros anos após o diagnóstico de lesões vesiculares polipóides (4,12). Segundo a sua localização, dividem-se em colangiocarcinomas intra-hepáticos e extrahepáticos, cuja clínica, prognóstico e tratamento são diferentes. O colangiocarcinoma intra-hepático é o menos frequente (6-18%), tendo a sua incidência aumentado nos países ocidentais. A idade de aparecimento é mais tardia do que no resto dos colangiocarcinomas. Para além dos factores de risco já citados, o colangiocarcinoma intra-hepático relaciona-se com a exposição ao torotraste e, nos países asiáticos, com a hepatolitíase. Em mais de 17% das litíases intra-hepáticas, um colangiocarcinoma foi diagnosticado na proximidade dos canais intra-hepáticos. (14). 3. Tumores da papila de Vater e das vias biliares 3.1 Tumores da papila de Vater Os tumores benignos mais frequentes são os adenomas tubulares, sendo as formas vilosas, com significativo risco de malignização, mais raras. Os tumores malignos são mais frequentes, geralmente adenocarcinomas, e representam 2 a 3% dos tumores digestivos operados. Predominam no sexo masculino e a idade média de apresentação é na 6.ª década de vida. Em regra são diagnosticados precocemente e têm um bom prognóstico, ao contrário da neoplasia vesicular e do colangiocarcinoma, tumores de diagnóstico tardio. 3.3. Factores de risco 3.3.1 Doença inflamatória do intestino A prevalência do carcinoma da via biliar é mais elevada na colite ulcerosa. Um colangiocarcinoma surge em 1,4% dos doentes portadores de doença inflamatória do intestino. A proctocolectomia total não previne o desenvolvimento do colangiocarcinoma que surge, em média, 15 a 20 anos após o diagnóstico da colite ulcerosa (3,4,12,15). 3.2 Tumores das vias biliares Os tumores benignos são extremamente raros, com predomínio de adenomas e papilomas. Os malignos são igualmente infrequentes, sendo adenocarcinomas em mais de 95% dos casos. 3.3.2 Colangite esclerosante primária O colangiocarcinoma complica 10 a 15 % das colangites esclerosantes. Em 30 a 40 % dos casos, o tumor das vias biliares é diagnosticado no ano seguinte ao diagnóstico da colangite. Após esse período o risco estabiliza, sendo de 1,5 %/ano. Nenhum factor de risco foi formalmente identificado nos doentes com colangite esclerosante primária, mesmo que o O colangiocarcinoma representa 0,5 a 2% de todos os tumores, com uma incidência anual de 1 caso/100 000 habitantes. Surge geralmente nas 6.ª e 7.ª décadas de vida, com moderado predomínio no sexo masculino. A sua incidência está aumentada em alguns gru107 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS consumo de bebidas alcoólicas tenha já sido apontado como tal. A idade, o sexo, a duração ou a gravidade da doença ou a topografia das lesões de colangite não parecem constituir factores de risco para o desenvolvimento de colangiocarcinoma (12,15). papilar, em particular do tipo viloso. No síndrome de Gardner, a frequência de adenomas multiplica por 100 o risco de neoplasia da papila de Vater, justificando a vigilância endoscópica (16). A papilomatose biliar é uma doença rara, associando-se, por vezes, à doença de Caroli ou a quistos do colédoco. Nesta entidade os adenomas atingem, de forma difusa ou segmentar, as vias biliares. O risco de neoplasia é muito elevado. 3.3.3 Malformações congénitas das vias biliares O síndrome de Caroli, associado em 20% dos casos a um quisto do colédoco, complica-se de colangiocarcinoma intra ou extra-hepático em 7 a 15 % dos casos. Nas formas unilobulares complicadas com episódios infecciosos, o risco justifica a hepatectomia parcial. O colangiocarcinoma surge em 10 a 30 % dos doentes com quistos do colédoco. O risco, baixo na infância (0,7%), aumenta com a idade (14% após os 20 anos), justificando a ressecção cirúrgica sistemática dos quistos do colédoco no adulto jovem (4,12). 3.3.6 Outros factores de risco Nos doentes com anastomose biliodigestiva complicada por colangites de repetição, o risco de colangiocarcinoma é de cerca de 5%, 20 anos após a intervenção cirúrgica (17). O tabaco e carcinogéneos ambientais ou endógenos têm sido apontados, em vários trabalhos, como factores de risco. Os colangiocarcinomas surgidos 10 a 12 anos após explorações biliares com o torotraste (usado entre 1930 e 1955) não são actualmente observados. 3.3.4 Infestação parasitária crónica das vias biliares As parasitoses, frequentes na Ásia, associadas a Opisthorchis viverrini (Tailândia, Laos e Malásia) e a Clonorchis sinensis (Japão, Coreia, Vietname) multiplicam o risco de colangiocarcinoma de 25 a 50 vezes. A infestação é adquirida aquando do consumo de peixe cru portador da larva infestante. Os parasitas infestam de forma crónica os canais biliares intra-hepáticos Os fenómenos inflamatórios crónicos ligados à presença do parasita, associados à acção de carcinogéneos ambientais ou endógenos produzidos pela infestação, respondem pelo aumento do risco. Ao contrário, a infecção pela Fascíola hepática ou Schistosoma não parece ter efeitos carcinogéneos similares sobre a via biliar (12,15). Nos doentes com polipose adenomatosa familiar o risco de neoplasia periampular é 200 vezes mais frequente. Observaram-se concentrações elevadas de ácidos biliares na bílis destes doentes. Pensa-se que estas alterações tenham um papel importante na carcinogénese biliar e colorrectal. 4. Prevenção e estratégia terapêutica Em virtude da ausência de manifestações clínicas características, os tumores biliares benignos e as lesões pré-cancerosas são ainda raramente diagnosticados. Os tumores adenomatosos benignos da porção proximal ou média da via biliar extra-hepática são geralmente difíceis de detectar. Talvez por isso, comparativamente com a vesícula biliar e a papila de Vater, é difícil provar uma associação entre a presença de adenomas ou de papi- 3.3.5 Adenomas biliares A maioria dos tumores malignos da papila de Vater surge sobre um adenoma da região 108 Bruno Peixe, Diamantino Sousa lomas e o aparecimento do carcinoma da via biliar extra-hepática. As estratégias de prevenção para o cancro biliar dependem da localização topográfica e da detecção de lesões pré-cancerosas e de factores de risco. A presença de lesões pré-cancerosas na vesícula biliar obriga a colecistectomia. A vesícula biliar litiásica assintomática não é considerada uma lesão pré-cancerosa, dado que o risco de se associar neoplasia vesicular é de apenas 1%. A colecistectomia está indicada nos adenomas da vesícula biliar superiores a 10 mm de dimensão, dado o risco de degenerescência maligna (19). O risco de neoplasia numa vesícula de porcelana é elevado, obrigando a colecistectomia profiláctica. A prevenção primária dos colangiocarcinomas nas regiões de alto risco, onde os tumores estão associados a infestações parasitárias hepáticas, baseia-se no uso do Praziquantel que, administrado em dose única, pode eliminar de forma definitiva os parasitas das pessoas infestadas. Considerando que o óxido nítrico (NO) endógeno é um factor importante na carcinogénese biliar, é possível que a administração de vitamina C, que interfere na síntese de NO, possa ser eficaz nos doentes de alto risco. Estudos clínicos são necessários para confirmar esta hipótese. O tratamento da neoplasia das vias biliares deve compreender a ressecção completa da lesão. Nas dilatações quísticas congénitas do colédoco deve ser proposta a ressecção precoce da parede dos quistos com reconstrução da árvore biliar, evitando assim o refluxo e a estase do suco pancreático. Nas anomalias congénitas dos canais biliopancreáticos, o tratamento cirúrgico, baseado na excisão completa dos canais biliares extra-hepáticos seguido de reconstrução, diminui a probabilidade de desenvolvimento de um carcinoma (3,19,20,21). Nos tumores do hilo a ressecção é apenas conseguida em 20% dos casos. No entanto, os resultados obtidos são melhores nos doentes submetidos a ressecção, em detrimento daqueles tratados por outras técnicas. Em relação à papila de Vater, a presença de displasia severa é indicação para excisão cirúrgica. A presença de displasia ligeira ou moderada obriga a vigilância endoscópica regular (de 6 em 6 meses), com execução de biopsias. 5. Conclusão A abordagem da prevenção do cancro biliar consiste no conhecimento da localização topográfica e na detecção de lesões précancerosas e de factores de risco. As lesões pré-cancerosas da via biliar são raras, sendo o seu potencial maligno, muitas vezes, pouco claro. A frequência e a duração requerida para a transformação maligna ainda não podem ser definidas. Os doentes com adenomiomatose ou pólipos vesiculares com diâmetro superior a 1 cm devem ser submetidos, precocemente, a colecistectomia. As lesões da via biliar resultantes de colangite infecciosa, de colangite esclerosante primária ou de quistos do colédoco devem ser atentamente monitorizadas e a cirurgia deve ser programada caso a caso. Qualquer suspeita de malignidade requer intervenção cirúrgica imediata. A prevenção primária da carcinogénese biliar associada a parasitas deve ser efectuada com Praziquantel, em populações de alto risco. II. PREVENÇÃO DO CANCRO DO PÂNCREAS 1. Introdução O cancro do pâncreas (CP) apresenta uma incidência relativamente baixa. Infelizmente, apesar do diagnóstico estabelecido precocemente, a sua taxa de mortalidade é muito elevada. As neoplasias malignas do pâncreas são dos poucos cancros cuja mortalidade se aproxima dos 100%. A sua incidência varia de país para país o que sugere que factores ambientais 109 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS estejam implicados na sua etiopatogenia. Destes factores, o tabaco é o agente etiológico mais bem documentado, respondendo por cerca de 25% de todos os casos. Os factores dietéticos revelam-se importantes, mas tem sido difícil definir quais os elementos que influenciam o risco de CP. Existem ainda subgrupos onde os factores genéticos são determinantes. da incidência do CP na segunda metade do século XX deve-se provavelmente ao aumento da exposição tabágica. Nos últimos anos existe alguma evidência que o CP relacionado com o tabaco está a diminuir nos Estados Unidos da América e na Europa, mercê das campanhas anti-tabágicas (24). Os fumadores têm um risco para CP duas vezes superior em relação aos não-fumadores. À semelhança do cancro do pulmão esse risco é proporcional à quantidade de cigarros e à duração dos hábitos tabágicos. (25-27). A exposição passiva ao tabaco provoca um aumento não significativo do risco para CP (28). Os carcinogéneos derivados do tabaco provavelmente atingem o pâncreas através da corrente sanguínea após serem absorvidos pelos pulmões ou no tracto aerodigestivo superior. Há quem considere que a ingestão dos produtos do tabaco condiciona um maior número de cancro da porção cefálica do pâncreas, devido ao refluxo do conteúdo duodenal para o ducto pancreático. O organismo tem vários sistemas de defesa para a detoxificação de carcinogéneos ambientais, nomeadamente as enzimas pertencentes ao sistema do citocromo (CYPIA2) e as enzimas n-acetil transferases. Vários investigadores se têm debruçado no estudo de mutações nesses sistemas, mas os resultados não são conclusivos (29-32). Como apenas uma pequena proporção dos fumadores desenvolvem CP podemos assumir que a esses indivíduos faltam mecanismos essenciais de protecção, necessários à detoxificação dos produtos do tabaco. Como medida de saúde pública a evicção tabágica conduzirá a uma redução substancial do risco para desenvolver CP (25). 2. Epidemiologia De uma perspectiva global, o CP é menos frequente do que os cancros do pulmão, mama, estômago, cólon ou próstata. Em Portugal, o cancro do pâncreas é responsável por 4% das mortes por doença oncológica em homens e 5% em mulheres. É a sexta causa de morte por cancro em homens e a sétima em mulheres (22). As taxas de mortalidade por CP em Portugal são baixas quando comparadas com as dos restantes países da União Europeia, à excepção da Espanha. As taxas de mortalidade aumentaram significativamente na última década, com um acréscimo de 0,9% por ano, para os homens e de 1,1%, para as mulheres. O CP é tipicamente uma patologia de indivíduos de escalões etários mais avançados, com apenas 10% dos casos diagnosticados antes dos 50 anos de idade. Em todos os registos oncológicos o CP é mais frequente em homens do que em mulheres, com um risco cumulativo para CP dos 0 aos 64 anos de idade de 0,2% para homens e 0,1% para mulheres (23). Uma história familiar de CP está geralmente presente em doentes que desenvolvem CP em idades mais precoces. 3. Factores de risco 3.2 Dieta 3.1 Tabaco Há muito que os epidemiologistas suspeitam que as diferentes incidências de tumores do aparelho digestivo, nos vários países do mundo, são condicionadas por diferenças dietéticas. As tentativas para implicar um ali- A relação entre a exposição ao tabaco e o CP foi estabelecida há vários anos. As taxas de prevalência indicam que o tabaco é o causador de cerca de 25% dos CP (23). O aumento 110 Bruno Peixe, Diamantino Sousa mento no aumento ou diminuição do CP têm sido infrutíferas, com cerca de 500 artigos publicados tentando relacionar algum factor dietético com o CP. Dos vários componentes da dieta estudados, a gordura tem sido aquele mais consistentemente associado ao CP. De facto, vários estudos demonstraram que o elevado consumo calórico e a obesidade podem ser factores de risco para CP (33,34). Por oposição, um consumo elevado de fruta e legumes parece reduzir esse risco (35-39), assim como o gasto calórico, razão pela qual o exercício físico deve ser promovido e incentivado (40). A dieta média portuguesa em 1992 continha 35% de calorias derivadas de gorduras, quando as recomendações dietéticas são de que o consumo de gorduras não deve exceder 30% das calorias totais. Além disso, nos últimos 20 anos tem-se registado um aumento dramático no consumo de lípidos e proteínas animais e um consumo diminuído de frutas, azeite e hidratos de carbono (41). No que diz respeito à componente líquida da dieta, a maioria dos estudos não conseguiu demonstrar a associação entre o álcool e o café com o CP, quando consumidos em quantidades moderadas. O conteúdo em nitratos da água, com uma concentração inferior a 10 mg/L, também não foi associado com CP (42). tra os danos no DNA provocados pelos radicais livres, a indução da apoptose, a melhoria da função imunitária e a inibição da proliferação celular. Um estudo recente, com 147 doentes, avaliou o efeito da metionina no risco para CP (45). Estes autores observaram uma relação inversa, dose-dependente, entre o consumo de metionina e CP, nomeadamente em indivíduos que nunca fumaram. A metionina é o precursor da S-adenosilmetionina, que é o dador de grupos metil nas reacções biológicas de metilação. A plausibilidade para a relação entre uma dieta pobre em grupos metil e o risco de CP decorre de uma necessidade elevada e específica de grupos metil: o pâncreas contém níveis elevados de derivados de folatos, incluindo a 5metiltetrahidrofolato, que é um produto da reacção catalizada pela 5,10-metilenotetrahidrofolato reductase. A 5-metiltetrahidrofolato serve de dador de grupos metil para a remetilação da homocisteína a metionina, assegurando, deste modo, o fornecimento da S-adenosilmetionina necessária para as reacções biológicas de metilação, incluindo a metilação do DNA. Padrões aberrantes de metilação de DNA podem contribuir para a carcinogénese, influenciando a estabilidade do genoma, a expressão dos genes e a susceptibilidade dos genes a mutações. Alimentos ricos em metionina incluem o peixe, as aves, a carne, os legumes e os lacticínios. Num estudo caso-controlo de origem canadiana, os autores concluem que o consumo de licopene, um carotenóide contido nos tomates, reduziu em 31% o CP em homens, o que apoia que uma dieta rica em vegetais estará associada à diminuição do CP (43). No entanto, este efeito não se reproduziu em mulheres. Também Chan e colaboradores (44) sugerem que uma dieta rica em vegetais reduz o risco de CP, nomeadamente vegetais amarelos, alhos, feijão e cenouras. Os nutrientes que constam nestes alimentos e que podem estar associados a uma diminuição do risco para CP são as fibras, os folatos e os antioxidantes (carotenos, vitamina E e C). Alguns potenciais mecanismos de acção destes nutrientes são a protecção antioxidante con- Os estudos publicados, que têm consistentemente documentado a diminuição de CP associada ao consumo de fruta e vegetais, são do tipo caso-controlo. Em contrapartida, variados estudos prospectivos não observaram essa associação, sugerindo que os dados daqueles estudos possam estar condicionados por lacunas na colheita dos hábitos alimentares dos doentes. A apoiar esta consideração está um estudo recente baseado em dois grandes estudos de coorte, compreendendo quase 125000 pessoas, que mostrou que o consumo de uma dieta “prudente” (frutas e vegetais) em 111 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS relação a uma dieta “ocidental” (alto teor em gordura) não revelou uma diminuição no risco para CP. Os autores também concluem que a obesidade e o exercício fisico não têm influência na etiologia do CP. Apesar de a hiperinsulinémia e a intolerância à glucose poderem desempenhar um papel na carcinogénese do CP, o padrão de dieta associada a hiperglicémia não se revelou preditiva de CP (46). 3.4 Diabetes Mellitus A eventual existência duma relação causal entre diabetes e CP é um tema controverso, na medida em que o aparecimento de uma diabetes pode ser a manifestação precoce dum carcinoma do pâncreas. Por outro lado, existe um racional biológico para esta relação, uma vez que a insulina é um factor estimulador da proliferação celular. Alguns estudos longitudinais de coortes populacionais demonstraram um aumento progressivo do risco de CP entre pessoas com redução da tolerância à glicose e com diabetes (53,54). Uma meta-análise publicada em 1995 descreveu a associação entre indivíduos com antecedentes de diabetes e o desenvolvimento subsequente de CP (55). Uma revisão mais recente, baseada em 9200 casos de CP, encontrou uma associação modesta entre diabetes de evolução superior a 5 anos e CP (56). Cerca de 1% das diabetes inaugurais em doentes com idade igual ou superior a 50 anos está relacionada com CP. Até ao presente momento não há evidência de que o rastreio precoce da diabetes venha a diminuir a mortalidade por CP (57). Assim, verifica-se que os dados disponíveis actualmente não resultam em recomendações no sentido de se adoptar dietas ricas em determinados nutrientes, como forma de prevenir o CP. 3.3 Pancreatite Crónica (Não Hereditária) A pancreatite crónica (PC) é uma patologia benigna que se caracteriza pelo desenvolvimento de fibrose e atrofia do pâncreas, geralmente associada a calcificações e estenose nos ductos pancreáticos. A etiologia mais frequente, no mundo ocidental, é o consumo abundante de álcool. Vários autores descrevem o aumento do risco para CP em doentes com PC (47) , sendo essa evidência proveniente de vários tipos de estudos, nomeadamente estudos casocontrolo. Doentes com PC esporádica têm um risco aumentado de cerca de 6 vezes de desenvolver CP, em relação a indivíduos sem esta patologia (48,49). Um estudo de coorte efectuado em centros provenientes de 6 países, verificou que o risco de desenvolver CP é substancialmente maior em doentes com PC, independentemente da etiologia da PC (50). Apesar da associação entre PC e CP ser clara, os mecanismos moleculares que lhe estão subjacentes não estão completamente esclarecidos. Na PC, o aumento do turn-over celular e os mecanismos defeituosos de reparação do DNA podem levar a CP. A perda da expressão do p16, um precursor comum de cancro, está descrita em alguns doentes com PC (51). Mutações do K-ras, encontradas em quase todos os doentes com CP, também foram detectadas em doentes com PC (52). 3.5 Doenças Infecciosas As infecções são dos factores etiológicos mais relacionados com cancro, como por exemplo o cancro do fígado, do colo do útero e do estômago. Assim, poderemos equacionar se existirão agentes infecciosos que estejam implicados na etiopatogenia do CP. Sabendo que os factores de risco conhecidos são responsáveis por menos de metade dos CP, outras causas devem ser investigadas. O Helicobacter pylori é considerado como um carcinogéneo porque pode causar cancro do estômago. Há estudos que se debruçaram sobre a associação entre Helicobacter pylori e CP mas esta ainda não está provada, permanecendo uma área interessante de investigação (57). Outros agentes infecciosos são conhecidos como causadores de pancreatite aguda. Estes incluem: vírus, como os da parotidite, SIDA, 112 Bruno Peixe, Diamantino Sousa hepatite C, varicella, sarampo e o coxsackie, bactérias, como a salmonella e o campylobacter e parasitas, como o áscaris. Até ao momento nenhum destes agentes foi associado ao CP, apesar de o vírus da parotidite poder causar pancreatite crónica calcificante, que é factor de risco para CP (58). Síndromes de tumores hereditários associados com CP Síndrome de Peutz-Jeghers Este síndrome é autossómico dominante com uma incidência de 1 para 25000. O fenótipo clínico está associado a pólipos hamartomatosos do intestino e pigmentação cutâneomucosa. Estes doentes têm um risco aumentado de CP de 132 vezes e o risco cumulativo durante a vida é de 36% (59-61). 3.6 Doenças Hereditárias Várias mutações genéticas estão associadas com o CP mas, destas, apenas 10% são causadas por um distúrbio hereditário (57). A predisposição hereditária para CP ocorre em três situações clínicas (quadro 1): síndromes hereditários com predisposição para tumores cujo fenótipo primário não é CP, mas apresentam susceptibilidade para este cancro; pancreatite hereditária e fibrose quística, cujas alterações predispõem para CP; CP familiar, termo aplicado por vários autores a famílias com dois ou mais familiares em 1.° grau com CP. Alguma da agregação familiar pode resultar, não de alterações genéticas, mas da exposição a carcinogéneos comuns, como o tabaco ou factores dietéticos. Actualmente o rastreio sistemático destas mutações, como forma de prevenção, não está implementado. Os indivíduos que provavelmente poderão beneficiar desta atitude são aqueles com uma forte história familiar de CP e aqueles com pancreatite hereditária. Síndrome melanoma carcinoma pancreático É caracterizado pela agregação familiar de melanoma maligno cutâneo e CP. Em metade das famílias com este síndrome foram encontradas mutações no gene da cinase 2A dependente de ciclina (CDKN2a), responsável pela produção das proteínas p16 e p14 (62). Cancro hereditário da mama e ovário O cancro hereditário da mama e ovário é causado, na maioria das vezes, por mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 (63). Os dados actuais, extraídos de estudos retrospectivos, sugerem um aumento do risco relativo para desenvolver CP entre 2 a 5, para indivíduos portadores de mutações nos genes BRCA1 e 2 (64,65). HNPCC e PAF O HNPCC é provocado por mutações nos genes que asseguram a correcção dos erros QUADRO 1 – CANCRO PANCREÁTICO HEREDITÁRIO Doença Síndrome oncológico Peutz-jeghers SMCP CHMO HNPCC PAF Ataxia telangiectasia Pancreatite hereditária Fibrose quística Cancro pâncreas familiar Cromossoma afectado Risco de CP até aos 70 anos de idade LKB1 CDKN2a BRCA1/2 MLH1, MSH2 APC ATM PRSS1, SPINK1 CFTR BRCA2, ? 36% 17% 3.9-8 <5% <5% <5% 40% <5% >50%? Abreviaturas: SMCP, síndrome melanoma carcinoma pancreático; CHMO, cancro hereditário da mama e ovário; HNPCC, cancro colorectal hereditário não polipóide, PAF, polipose adenomatosa familiar. 113 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS ocorridos durante a replicação do DNA, e incluem o hMSH2 e o hMLH1. Esta patologia predispõe à ocorrência de CP estimando-se que o risco cumulativo seja inferior a 5% (63). A PAF é uma doença hereditária, autossómica dominante, relacionada com uma mutação no gene APC, havendo descrições esporádicas da associação com CP mas esta não está completamente estabelecida (66). mado e que não cumprem os critérios de outros síndromes oncológicos. O padrão de transmissão vertical observado na maioria das famílias com CPF é consistente com um traço autossómico dominante. Até ao momento presente, não foi identificado o principal gene implicado neste síndrome. A única excepção são estudos que documentam mutações no gene BRCA2, o que faz destas a alteração mais frequentemente identificada no CPF (63). Ataxia-Telangiectasia Esta é uma doença autossómica recessiva que consiste em ataxia cerebelar em conjugação com telangiectasia oculocutânea. Um risco aumentado de CP, apesar de pequeno, parece estar associado a esta patologia (67). 4. Prevenção do cancro do pâncreas hereditário Para se planear formas de prevenção no contexto de CP hereditário é fundamental a classificação correcta do síndrome, de forma a determinar qual o risco de desenvolver CP. Dada a heterogeneidade dos síndromes com predisposição para o CP é necessária uma análise cuidada da história familiar até pelo menos 3 gerações, incluindo a confirmação histológica dos casos de CP. De acordo com uma conferência de consenso de peritos (75), os indivíduos considerados de alto risco devem ser convidados a participar em programas de rastreio controlados, de preferência em centros especializados. O rastreio de CP deve ser iniciado 10 anos antes da idade do familiar mais novo com CP, ou aos 40 anos. No entanto, existem limitações em relação ao rastreio do CP, porque os marcadores diagnósticos e os métodos de imagem para a detecção de CP de pequenas dimensões têm pouca acuidade. Indivíduos de alto risco (risco > 10 vezes) para o desenvolvimento de CP incluem: – Indivíduos com pelo menos 2 parentes de 1.° grau com CP – Indivíduos com pelo menos 3 parentes com CP, independentemente do grau – Portadores de mutações no BRCA2 com um parente de 1.° ou 2.° grau com CP – Portadores da mutação CDKN2a_famílias com melanoma e CP – Indivíduos com Peutz-Jeghers – Indivíduos com pancreatite hereditária. Pancreatite hereditária e fibrose quística A pancreatite hereditária é caracterizada por dor abdominal recorrente atribuída a surtos de pancreatite aguda e progressão para pancreatite crónica com início geralmente na infância. A doença é autossómica dominante, identificando-se em 70% dos casos mutações no gene do tripsinogénio catiónico (PRSS1)(68). Estas mutações impedem a inactivação autolítica da tripsina resultando na autodigestão do pâncreas, o que conduz a pancreatite crónica e, a longo prazo, a CP. Estes doentes têm um risco relativo de desenvolver CP de 100 e um risco cumulativo de 40% até aos 70 anos de idade (63). A fibrose quística resulta de mutações no gene regulador transmembranar (CFTR) alterando a função do canal de cloro. A alteração principal resulta na obstrução de ductos em vários orgãos, incluindo o pâncreas. Dado o pequeno número de CP descritos em indivíduos com fibrose quística é difícil estimar a contribuição das mutações do gene CTFR para o risco de CP (69). Síndrome familiar do cancro do pâncreas O síndrome familiar do CP (CPF) compreende grupos de famílias que têm pelo menos dois familiares de primeiro grau com CP confir114 Bruno Peixe, Diamantino Sousa publicação de um estudo caso- controlo que sugere que o uso de AINEs pode resultar no aumento do CP. Neste estudo foi analisado o uso de AINEs nos 13 a 36 meses antes de ser efectuado o diagnóstico de CP, mas os autores justificam aquela conclusão equacionando que os AINEs poderiam ter sido prescritos para a dor, considerando-a como uma manifestação inicial de CP (70). Na sequência da confirmação dos efeitos da quimioprevenção no CP nos modelos animais, foi efectuado um ensaio clínico em que se usou o celecoxib como adjuvante no tratamento do CP: num grupo de doentes com adenocarcinoma avançado foi usado celecoxib em combinação com 5-fluoruracilo verificando-se uma resposta clínica favorável (71). No entanto, são necessários mais estudos nesta área para definir a eficácia destes agentes. Uma das estratégias recomendada (63) para o rastreio de indivíduos com CPF é a que se descreve na figura seguinte (figura 1): Exame físico e análises com CEA, CA 19.9, bilirrubina, fosfatase alcalina, amilase, lipase RMN do pâncreas com CPRM, Ecoendoscopia (anual) (–) (+) Controlo por ecoendoscopia após 6 meses Se necessário, punção guiada por ecoendoscopia e CPRE com citologia (–) (+) Exploração cirúrgica com ecografia intraoperatória, Ressecção pancreática limitada e exame extemporâneo Se CP ou displasia de alto grau – pancreatectomia total 5. Quimioprevenção 5.2 Inibidores da Lipoxigenase A quimioprevenção compreende o uso de agentes naturais ou sintéticos que diminuem o risco de desenvolver ou impedem a progressão do cancro. O agente ideal seria aquele que não fosse tóxico para as células normais, fosse barato e bem tolerado pelos doentes, tivesse um mecanismo de acção conhecido e pudesse ser administrado por via oral. Agentes quimiopreventivos como os antiinflamatórios não esteróides (AINEs), constituintes do chá verde e antioxidantes podem intervir no processo da carcinogénese, nomeadamente no controlo da proliferação celular. Alguns agentes mostraram resultados promissores na inibição da carcinogénese pancreática, em estudos laboratoriais. No entanto, a sua eficácia em humanos terá de ser avaliada no futuro. Existem níveis aumentados de Lipoxigenase (LOX) no CP comparados com tecido pancreático normal e verificou-se que a inibição da LOX resulta na diminuição da proliferação celular e em apoptose (72). Nesse sentido, conduziu-se um estudo clínico em doentes com CP avançado, utilizando um inibidor da LOX, no qual se mostrou que em 32% dos casos não houve progressão da doença, isto apesar do número reduzido de doentes envolvidos (73). 5.3 Chás Extractos de chá verde e preto têm um efeito inibidor no crescimento de alguns tumores. Os polifenóis do chá têm propriedades antioxidantes que contribuem para a sua acção anticancerígena. Esses componentes podem inibir a transformação maligna de linhas celulares e o seu crescimento e induzir a apoptose. Os dados clínicos acerca do potencial do chá na carcinogénese do CP são escassos, sendo necessários mais estudos para confirmar a sua utilidade (72). 5.1 Inibidores da Cicloxigenase 2 e AINEs Existem estudos em modelos animais que documentam a redução da incidência de CP com o uso de inibidores da Cicloxigenase 2 (COX2) e AINEs; no entanto os resultados não são consensuais. Mais preocupante é a 115 PREVENÇÃO DO CANCRO DAS VIAS BILIARES E PÂNCREAS hipercalcémia e excluir litíase biliar, de forma a prevenir episódios de pancreatite aguda. Em relação à quimioprevenção, devem ser efectuados mais estudos clínicos que comprovem o benefício destes agentes na prevenção do CP. Um problema que persiste quanto ao uso de agentes quimiopreventivos é o de estabelecer a dose ideal para que possam ser efectivos, sem provocar efeitos secundários. Uma solução poderá passar pela associação de agentes, de forma a aumentar a sua eficácia e reduzir a sua toxicidade. Estas questões podem não se colocar relativamente ao consumo de substâncias que naturalmente se encontram na nossa dieta, mas os inibidores da COX2, apesar de serem bem tolerados, estão associados a efeitos cardiovasculares deletérios. No futuro, a investigação científica deverse-á debruçar sobre os factores ambientais que conduzam a CP e que ainda não foram reconhecidos, bem como sobre o estudo da interacção entre genes e ambiente. 5.4 Vitaminas e Selénio Os antioxidantes têm capacidade “contra” os radicais livres prevenindo os danos do DNA; as vitaminas C, E, beta-caroteno e o selénio são antioxidantes. Um estudo sueco demonstrou que uma dieta rica em frutas e vegetais, particularmente cenouras e citrinos, está associada a uma redução do CP (74). 6. Conclusão O CP permanece uma das neoplasias com maior mortalidade e com sobrevida a longo prazo que se aproxima de zero. A sua etiologia continua por esclarecer, sendo o tabaco o factor de risco mais bem documentado. Duas patologias benignas, a pancreatite crónica e a diabetes tipo 2 de longa evolução, estão associadas a um aumento do risco de CP. Sendo o tabaco responsável por cerca de 25% dos CP, os esforços dispendidos na cessação desse hábito devem ser reforçados. O consumo de tabaco deve ser controlado e devem ser implementados programas de educação, de âmbito nacional, elegendo como principal alvo as crianças e adultos jovens. Assim, os programas de intuito preventivo devem passar por uma vigilância contínua dos factores de risco mais importantes, nomeadamente o tabaco, o álcool e os hábitos alimentares. A prevenção primária deve incidir na promoção de estilos de vida saudáveis como meio de evitar o CP; a prevenção secundária deve compreender a identificação de indivíduos com risco aumentado para CP e estabelecer programas de rastreio eficazes, em ligação com centros de referência que possam assegurar o tratamento adequado. No entanto, de momento, não há evidência que recomende o rastreio de indivíduos pertencentes a grupos de risco elevado , excepto em centros onde esta medida possa ser avaliada quanto à sua eficácia. Recomenda-se sim, neste grupo de doentes, não fumar, abstinência alcoólica, evitar medicações que possam causar pancreatite, controlo da hipertrigliceridémia e 116 Bruno Peixe, Diamantino Sousa BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. Sheth S, Bedford A, Chopra S. Primary gallbladder cancer: recognition of risk factors and the role of prophylactic cholecystectomy. Am J Gastroenterol 2000; 95: 1402-10. Tewari M. 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INTRODUÇÃO As neoplasias gastrointestinais têm uma incidência elevada, são frequentemente diagnosticadas num estádio avançado de doença e apresentam uma mortalidade significativa. Por isso, é fundamental o desenvolvimento de estratégias eficazes de prevenção destes cancros. A profilaxia pode reduzir a mortalidade por cancro, estimando-se que 50% destes são evitáveis (1). Múltiplos factores de risco, potencialmente modificáveis, foram identificados e são responsáveis por 2/3 das neoplasias malignas nos Estados Unidos da América (2) e 35% das mortes por cancro em todo o mundo (3). Alguns destes factores estão associados às neoplasias gastrointestinais e podem ter impacto na sua incidência. Assim, uma das formas de prevenção é a alteração dos comportamentos que levam ao desenvolvimento destas neoplasias. Contudo, esta opção exige enormes esforços educacionais e tem habitualmente pouco impacto, por ser muito difícil mudar o estilo de vida das populações. A quimioprofilaxia é uma intervenção farmacológica de prevenção que tem como objectivo reverter, suprimir ou evitar o processo carcinogénico (4). Pode actuar nas vias associadas à etiologia da doença – profilaxia primária – ou na progressão das suas lesões precursoras – profilaxia secundária. A escolha de um agente de quimioprofilaxia depende do balanço entre a evidência do seu benefício em estudos epidemiológicos, laboratoriais ou clínicos e o risco 1 – QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS – AGENTES COMUNS Alguns dos agentes de quimioprofilaxia estudados são comuns às neoplasias dos diferentes órgãos do tubo digestivo. • Antioxidantes O stress oxidativo pode causar cancro por afectar a apoptose e a proliferação celular, e lesar o ADN, as proteínas e as membranas celulares. Os antioxidantes protegem contra o stress oxidativo, sendo potenciais inibidores da carcinogénese (5,6). Os principais agentes antioxidantes são as vitaminas A, E e C e o selénio. A vitamina A total, que consiste na vitamina A preformada (retinol) e nos carotenóides (como o β-caroteno), é essencial para o crescimento celular. A vitamina C e a vitamina E reagem com os radicais livres e removem-nos, para além de prevenirem a formação de nitrosamina. O selénio é considerado no grupo dos antioxidantes por ser um componente integral das enzimas metaloproteicas (6) e, além do efeito antioxidante, inibe a angiogénese e estimula a função imune (7). 121 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS Uma meta-análise de estudos aleatorizados, que avaliaram o papel dos suplementos antioxidantes na prevenção de cancros gastrointestinais, não mostrou uma diminuição do risco. Os suplementos antioxidantes, quer isolados quer em diferentes combinações, não influenciaram a incidência de cancros gastrointestinais, à excepção do selénio que diminuiu significativamente esta incidência (risco relativo (RR) 0,49, CI 95% 0,40-0,77). Contudo, no que respeita ao selénio, estes resultados têm de ser interpretados cautelosamente, pois 3 dos 4 estudos analisados eram de baixa qualidade (6). Por outro lado, a maioria dos estudos observacionais demonstraram que uma dieta rica em vegetais e fruta está associada a um risco reduzido de cancro, nomeadamente do tubo digestivo (6,8). Os constituintes destes alimentos a que se pode atribuir este eventual efeito protector são a vitamina C, a vitamina E, os carotenóides, a fibra e os flavonóides (6). Esta discrepância observada entre o benefício duma alimentação rica em vegetais e fruta e a ineficácia dos suplementos sintéticos de antioxidantes pode explicar-se por ser difícil controlar completamente, nos estudos observacionais, o efeito de todas as variáveis e a sua interacção com outros factores. Por conseguinte, pode haver diferenças na dose e na forma dos suplementos administrados, sinergismos entre os diferentes antioxidantes da dieta, efeitos benéficos de outros compostos dos vegetais e das frutas, diminuição de consumo de carne e gorduras ou adopção de um estilo de vida mais saudável eventualmente associados. Os suplementos vitamínicos também têm efeitos adversos, principalmente os que contêm vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K). A vitamina A é teratogénica na gravidez, mesmo em doses baixas (10000 IU/dia) (9). O retinol é um factor de risco para a osteopénia e as fracturas ósseas (10,11). O β-caroteno parece aumentar o risco de cancro do pulmão em doentes com hábitos tabágicos e/ou exposição a amianto (12,13) e também pode causar uma coloração amarela transitória ou permanente da pele (8). Os doentes sob terapêutica anticoagulante têm um risco hemorrágico acrescido, se medicados com vitamina E em alta dose (≥ 400 UI/dia), devido à sua acção sinérgica com estas drogas. A vitamina C, apesar de hidrossolúvel, se administrada em alta dose, pode aumentar o risco de cálculos renais por alterar a excreção de oxalato. Uma meta-análise de estudos aleatorizados que avaliou a mortalidade por todas as causas do uso de suplementos de antioxidantes, em doentes sem deficiência conhecida destas substâncias, para profilaxia primária e secundária, verificou que a vitamina A (RR 1,16; 95% CI 1,10-1,24), o β-caroteno (RR 1,07; 95% CI 1,02-1,11) e a vitamina E (RR 1,04; 95% CI 1,01-1,07), administrados isoladamente ou em combinação com outros antioxidantes, aumentavam significativamente a mortalidade, com um aumento estimado de cerca de 5%. A vitamina C não evidenciou um efeito significativo. O selénio, numa avaliação global, diminuiu significativamente a mortalidade mas, após exclusão dos estudos com risco de viés elevado, este efeito não foi observado (14). De referir que alguns trabalhos observaram uma relação inversa entre o consumo de selénio na população geral e a mortalidade por cancro (6,7). Actualmente, perante vários estudos que não demonstram benefício ou que encontram um efeito prejudicial, com aumento da mortalidade, os suplementos de antioxidantes não podem ser recomendados para a prevenção das neoplasias gastrointestinais. O selénio pode ser protector, mas são necessários mais estudos para avaliar o seu potencial anticarcinogénico. • Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e ácido acetilsalicílico (AAS) Os AINEs e o AAS têm como principal mecanismo de acção a inibição da enzima ciclooxiogenase (COX), que é responsável pela produção de prostaglandinas (PG), trom122 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro boxanos e prostaciclinas, a partir do ácido araquidónico. Existem pelo menos duas formas de COX, a ciclooxigenase 1 (COX-1) e a ciclooxigenase 2 (COX-2). A COX-1 é uma isoforma constitutiva, que é importante na produção de PG e tromboxano A2 em condições basais. A sua inibição está associada a efeitos adversos como lesões epiteliais gastrointestinais, antiagregação plaquetária, alterações hemodinâmicas renais e retenção de água e sódio. A COX-2 é induzida por condições patológicas e a sua actividade contribui para a produção de citoquinas, mitogénios e factores de crescimento e para a diminuição da apoptose e a estimulação da angiogénese, sendo responsável por reacções inflamatórias e crescimento tumoral. A sua inibição tem um efeito anti-inflamatório e protrombótico (15) . De referir que a COX-1 é expressa no estômago, mas não a COX-2, o que explica a menor ocorrência de complicações gástricas com o uso de AINEs inibidores selectivos da COX-2. O AAS tem características únicas por inibir irreversivelmente a COX-1 e a COX-2 e por levar à formação de ácido 15R-hidroxieicosatetranoico (HETE), que tem efeito anti-inflamatório potente e suprime o crescimento tumoral (15,16). Uma área em que os AINEs se têm revelado importantes é na carcinogénese do tubo digestivo. Os adenomas e cancros do cólon têm níveis elevados de PG E2 (17), que promove o desenvolvimento tumoral por modular a resposta imune, inibir a actividade supressora neoplásica, induzir a angiogénese, reduzir a apoptose e estimular a proliferação celular (1820) . Os níveis de COX-2, que é a mediadora da produção de PG E2, estão elevados nos cancros colorrectal, gástrico e esofágico, e também nas suas lesões precursoras como os adenomas do cólon e o esófago de Barrett (18,19,20). Assim, pensa-se que um dos efeitos supressores dos AINEs na carcinogénese é mediado pela inibição da COX-2 (22). Outros mecanismos antineoplásicos destes fármacos podem dever-se à inibição de proto-oncogenes e de factores de transcrição como o “nuclear fac- tor-kB” (NF-kB), “protease activated receptor4” (PAR-4), “peroxisome proliferator-activated receptor d gene” (PPARd) e Bcl-2 (23). A toma regular de AINEs e AAS parece estar associada a uma diminuição da incidência dos cancros esofágico, gástrico e colorrectal (21). No entanto, um estudo que avaliou o efeito do AAS em todos os tipos de cancro mostrou que, apesar da protecção contra os cancros gastrointestinais e o do pulmão, havia um aumento do risco de cancro do pâncreas, da bexiga, da mama e da próstata, sem efeito na taxa global de neoplasias (16). A utilização do AAS para a quimioprofilaxia das neoplasias gastrointestinais está associada a efeitos adversos gastrointestinais e cerebrovasculares de forma dose-dependente (24) . Observa-se um aumento da incidência de complicações da doença ulcerosa péptica com um RR de 1.5 a 3 e risco absoluto de hemorragia de 0.97% ao ano e 2.69% ao ano, para doses de AAS inferiores a 100 mg qd e superiores a 200 mg qd, respectivamente (25). Uma meta-análise concluiu que o tratamento com AAS apresentava um aumento do risco absoluto de acidente vascular hemorrágico de 12 casos/ 10000 pessoas (26). A toma regular de AAS por 800 pessoas durante 4 a 6 anos seria responsável por, pelo menos, uma hemorragia gastrointestinal major e um acidente vascular cerebral hemorrágico (27). De forma semelhante, os AINEs estão associadas a um aumento dos efeitos adversos gastrointestinais, com um ods-ratio (OR) de 5.36 para o desenvolvimento de doença ulcerosa e suas complicações (28). Os coxibes têm menos efeitos adversos gastrointestinais que os AINEs, reduzindo a incidência destas complicações para cerca de metade, mas significativamente mais quando comparados com o placebo (29). Apesar de controverso, há dados que apontam para um risco aumentado de efeitos adversos cardiovasculares relacionados com estes fármacos, nomeadamente de cardiopatia isquémica e de acidente vascular cerebral isquémico, com um RR de 2,5 em indivíduos com idade inferior a 65 anos, e um RR de 2,8 a 4,6 (para doses de 123 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS 200 mg e 400 mg de celecoxib, respectivamente), em indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos, com um incremento do risco anual de enfarte do miocárdio de 0.3% para 0.6% (30). A toxicidade dos AINEs e do AAS tem que ser bem ponderada em relação à sua eficácia na prevenção de cancros gastrointestinais. Apesar do benefício observado, os dados actuais não permitem recomendar, na população geral, o uso de AINEs e AAS neste contexto. 2.1 – Quimioprofilaxia do Carcinoma Pavimentocelular do Esófago O carcinoma pavimentocelular do esófago (CPC) é o cancro esofágico mais frequente em todo o mundo (37). A sua incidência global apresenta variações geográficas significativas, sendo de 2,5 a 5 homens e de 1,5 a 2,5 mulheres por cada 100000 habitantes. É mais elevada em algumas regiões da China, Irão, África do Sul, Uruguai, França e Itália. Nos países ocidentais tem-se verificado uma redução progressiva da incidência desta neoplasia (35,36,38-40) . O desenvolvimento de CPC inicia-se na lesão precursora de displasia do epitélio pavimentocelular, através duma sequência progressiva de displasia de baixo grau, displasia de alto grau e carcinoma (41,42). A displasia pode ser detectada endoscopicamente, recorrendo à cromoendoscopia com soluto de lugol (43). A identificação destas lesões pré-malignas permitiu criar programas de rastreio com citologia por balão e endoscopia digestiva alta nas populações de risco, com melhoria significativa do prognóstico do CPC em regiões da China com elevada prevalência deste tumor (sobrevida aos 5 anos de 86% e aos 10 anos de 75%) (44). Têm sido estudados múltiplos agentes quimiopreventivos para o CPC, dos quais se destacam: • Ácido fólico O ácido fólico é fundamental na regeneração da metionina e, por isso, importante na síntese, metilação e reparação de ADN, protegendo-o de lesões durante a divisão celular (31) . Estudos em animais e humanos demonstraram que o ácido fólico inibe a carcinogénese em diversos tecidos, nomeadamente no tracto gastrointestinal (32). Os mecanismos propostos através dos quais a deficiência de ácido fólico influencia a carcinogénese, são: a indução de hipometilação do ADN e consequente activação desregrada de proto-oncogenes envolvidos na carcinogénese e/ou alteração do pool de nucleótidos percursores com indução da incorporação de uracil em vez de timina, com síntese de ADN aberrante e lesão cromossómica (33). • Antioxidantes 2 – QUIMIOPROFILAXIA DO CANCRO ESOFÁGICO O papel do stress oxidativo na etiopatogenia do CPC não está comprovado. Existem estudos que demonstram que a ingestão de fruta e vegetais diminui o risco desta neoplasia, surgindo os antioxidantes como factores protectores (6,23). Num estudo realizado em Linxian, na China, em que a população geral tem deficiência de selénio, verificou-se que os níveis séricos baixos de selénio estavam associados ao desenvolvimento de CPC e cancro gástrico do cárdia, estimando-se que a suplementação de selénio poderia conduzir a uma diminuição O cancro do esófago é a sexta causa de morte por cancro no mundo. Os sintomas desta neoplasia surgem tardiamente no curso da doença, tendo a maioria dos doentes um estádio avançado aquando do diagnóstico. Consequentemente, a sua sobrevida é baixa, com apenas 1 em cada 5 doentes a sobreviver mais de 3 anos desde a altura do diagnóstico (35,36) . Os dois principais tipos de cancro do esófago são o carcinoma pavimentocelular e o adenocarcinoma, que têm características fisiopatológicas e clínicas distintas. 124 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro lio pavimentocelular do esófago, não se verificou eficácia na inibição da carcinogénese (49). Assim, os dados actuais não permitem recomendar o uso de AINEs e/ou AAS para prevenção do CPC, sendo necessário mais estudos. do risco destes cancros (45-48). Em doentes com displasia do epitélio pavimentocelular do esófago foi avaliado, num estudo aleatorizado, o papel da suplementação com selenometionina (selénio orgânico, que é mais bem absorvido) na evolução da displasia. Apesar de não ter havido inibição da carcinogénese para todos os doentes de risco, observou-se uma diminuição da progressão e uma tendência para um aumento da regressão, no subgrupo de doentes com displasia de baixo grau. Os autores relacionam este possível efeito protector, comparativamente a outros estudos que não demonstraram benefício, com a utilização de uma forma de selénio mais biodisponível e em dose mais elevada e com uma maior eficácia deste suplemento, se usado numa fase precoce da carcinogénese do CPC (49). Estudos de intervenção nutricional, que incluíram diferentes misturas de vitaminas e minerais, incluindo α-tocoferol (vitamina E), β-caroteno, ácido ascórbico (vitamina C) e selénio na população geral e em doentes com displasia esofágica, mostraram não haver uma redução significativa da incidência nem da mortalidade do CPC (50). Uma meta-análise de estudos com antioxidantes isolados, e em combinação, não mostrou influência significativa destes suplementos na incidência de cancro esofágico (6). Perante os riscos acima mencionados e sem demonstração inequívoca do seu benefício, os suplementos de antioxidantes não podem ser recomendados para a prevenção de CPC. • Zinco A deficiência de zinco potencia os efeitos carcinogéneos das nitrosaminas nos modelos de carcinogénese esofágica em ratos (53,54). Além disso, nos tumores esofágicos induzidos experimentalmente, o zinco parece reduzir a expressão de COX-2 (55). Num estudo de caso-controlo que avaliou os níveis de zinco em biópsias esofágicas, observou-se que o risco de CPC era significativamente mais baixo nos indivíduos com níveis de zinco elevados nas biópsias, estando assim o déficit de zinco relacionado com o desenvolvimento de CPC (56). O zinco parece ter potencial como agente quimioprofilático do CPC, mas mais estudos são necessários para avaliar o seu papel neste contexto. • Ácido fólico Uma meta-análise de estudos epidemiológicos sugere uma associação entre o elevado aporte alimentar de folato e um risco reduzido de CPC (RR 0,66; 95% CI 0,53-0,83) e adenocarcinoma esofágico (57). A evidência é ainda limitada, não estando para já aconselhada a administração de suplementos de ácido fólico para a prevenção deste cancro. • Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e ácido acetilsalicílico (AAS) • Cálcio O CPC expressa níveis elevados de COX2, sendo a sua inibição um dos mecanismos potenciais de diminuição do risco deste cancro (51) . Uma meta-análise de estudos observacionais mostrou uma relação inversa significativa e dose-dependente entre o uso de AINEs, principalmente da aspirina, e o risco de CPC (52) . No entanto, num estudo aleatorizado com celecoxib, em doentes com displasia do epité- O cálcio inibe a proliferação celular e estimula a diferenciação das células epiteliais esofágicas in vitro (39). O suplemento de cálcio (1200 g/dia) não reduziu as taxas de proliferação celular nas lesões epiteliais esofágicas hiperplásicas e displásicas (58), não parecendo ter benefício na prevenção do CPC. 125 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS 2000, nos homens caucasianos na Europa, Estados Unidos da América e Austrália foi de 0,89 a 8,74 / 100000 habitantes (60). A maioria dos adenocarcinomas do esófago surgem no contexto de esófago de Barrett (EB) com metaplasia do tipo intestinal, que é a lesão precursora conhecida desta neoplasia (61) . Existe uma forte associação entre a presença e a gravidade da doença de refluxo gastroesofágico (DRGE) e o desenvolvimento de EB. Como aproximadamente 20 % da população tem sintomas de DRGE e 10-15% dos doentes com DRGE apresentam EB, pode-se extrapolar que 1-2% da população ocidental tem EB, não estando a maioria dos casos diagnosticada (62). O risco de ADC esofágico no EB é de aproximadamente 0,5 % ao ano (61, 63). A sequência de eventos da carcinogénese passa pela DRGE, com refluxo de ácido gástrico, ácidos biliares e enzimas digestivas, que causam inflamação com produção de mediadores inflamatórios, nomeadamente os metabolitos do ácido araquidónico, e stress oxidativo. Há, consequentemente, a indução de alterações celulares genéticas e epigenéticas, que originam metaplasia colunar epitelial, displasia epitelial e finalmente ADC esofágico (60,64) . Actualmente, o marcador de potencial maligno mais importante é a displasia de alto grau que confere um risco de desenvolvimento de ADC esofágico de 40-50% (65). Contudo, menos de 5% dos doentes com EB progridem para ADC esofágico (59), não sendo ainda possível estratificar correctamente este risco de modo a adoptar estratégias de vigilância e prevenção mais adequadas. Dos agentes de quimioprofilaxia avaliados nos doentes de risco, ou seja, os que apresentam EB, há a referir: • Antitumor-B O antitumor-B consiste numa mistura de ervas chinesas, cuja composição exacta e mecanismo de acção se desconhecem. Um estudo realizado em doentes de alto risco com displasia esofágica refere, após tratamento durante 3-5 anos, uma redução da incidência de CPC de 52 para 47% quando tratados com antitumor-B (39). Estes resultados requerem mais investigação para serem confirmados. • Agentes em investigação Estudos em animais têm revelado múltiplas substâncias promissoras, entre as quais se destacam: 1) os isotiocianatos (fenetil isotiocianato e o fenilpropil isotiocianato), presentes em certos vegetais (couves de Bruxelas, couveflor); o ácido elágico, que é um polifenol; as teoflavinas do chá preto e do chá verde, que são agentes que inibem a carcinogénese induzida pelas nitrosaminas e pelos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos; 2) o dialil sulfido (componente do alho), o sulforofano e o oltipraz que podem ser protectores por estimularem a enzima glutationa S-transferase; 3) alimentos completos como os morangos e as amoras pretas (Rubus occidentalis) têm demonstrado efeitos protectores quer na iniciação quer na progressão da carcinogénese (39). No CPC, a quimioprofilaxia em áreas de elevada incidência assume um papel essencial. Dos vários agentes avaliados nenhum pode ainda ser recomendado, sendo necessários mais estudos para desenvolver uma estratégia de quimioprofilaxia eficaz, aplicável à prática clínica. 2.2 – Quimioprofilaxia do Adenocarcinoma Esofágico • Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e ácido acetilsalicílico (AAS) A incidência do adenocarcinoma (ADC) do esófago tem aumentado muito nos países ocidentais nos últimos 20 anos, com um crescimento anual maior que qualquer outro cancro (59). A sua incidência, estimada no ano A expressão do gene COX-2 está aumentada no epitélio pavimentoso do esófago distal nos doentes com DRGE (66) e no EB (67), estando associada ao desenvolvimento do EB 126 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro e à sua progressão para ADC (68). A inibição da COX-2 tem efeitos antiproliferativos e próapoptóticos nas células de ADC esofágico associado a EB e nas células epitelias displásicas e não displásicas do EB (69). Uma meta-análise de estudos epidemiológicos evidenciou que a medicação com AINEs e particularmente com AAS – que demonstrou aproximadamente o dobro da eficácia – reduz a incidência de ADC esofágico em 43%, com um efeito dose-dependente em que administrações mais frequentes conferiram uma maior protecção em relação à sua toma intermitente (redução de 45% e de 25%, respectivamente) (68). No entanto, estes resultados têm que ser cuidadosamente interpretados, pois há variáveis que podem alterar o seu significado. Por exemplo, o uso de AINEs pode estar associado a outros comportamentos protectores como hábitos alimentares e de vida saudáveis que alterem, por si, o risco. Além disso, os doentes com sintomas digestivos altos, nomeadamente de DRGE, que em princípio têm maior risco de ADC esofágico, não são habitualmente medicados com AINEs (59). São necessários estudos clínicos prospectivos antes de se recomendar o uso de AINEs na quimioprofilaxia do ADC esofágico nos doentes com EB. O AAS é barato, apresenta uma boa relação custo/benefício (65) e também tem efeitos protectores na doença cardiovascular, podendo vir a ser usado se mostrar que os seus efeitos benéficos compensam o risco de complicações. tose (64,70). Além disso, o contacto do ácido com a mucosa esofágica, principalmente se associado a ácidos biliares e enzimas digestivas, pode provocar lesões da mucosa e aumento da sua permeabilidade com penetração de carcinogéneos na barreira mucosa (64). Todavia, o papel da inibição do ácido gástrico é controverso. Embora alguns estudos mostrem que a inibição ácida controla os sintomas, melhora as lesões de esofagite e previne as complicações da DRGE, induz o encurtamento do EB e a regeneração de ilhéus de epitélio pavimentoso esofágico no EB (71,72), não há evidência que a terapêutica isolada com IBPs ou com cirurgia anti-refluxo leve à regressão completa e consistente do EB e à eliminação do risco de ADC esofágico (59,73). Pode contribuir para esta discrepância o facto de a mucosa do EB ser relativamente insensível ao ácido e as doses standard dos IBPs, habitualmente suficientes para tratar os sintomas de DRGE, não o serem para suprimir completamente o refluxo ácido. Demonstrou-se em estudos com pHmetria esofágica que, mesmo nos doentes com melhoria clínica, menos de 50% atingiam normalização do pH esofágico, sendo necessária, para tal, uma dose mais alta, geralmente dupla, de IBPs (59,65). Nos doentes com normalização da exposição ácida intraesofágica verifica-se um aumento da diferenciação celular, uma diminuição da proliferação celular e uma diminuição da expressão de COX-2 no EB, o que não acontece nos doentes que, embora assintomáticos sob terapêutica com IBPs, mantêm refluxo ácido patológico (62,65). Apesar de existirem vários estudos e uma metaanálise recente que demonstram que a cirurgia anti-refluxo não modifica o risco de ADC esofágico (74,75), verificou-se uma normalização da expressão do gene COX-2 na mucosa pavimentosa dos doentes com DRGE submetidos a cirurgia anti-refluxo, o que pode traduzir um impacto desta terapêutica nos factores de carcinogénese (66). Observa-se também que nos doentes submetidos a terapêuticas ablativas do EB, a associação de terapêutica com IBPs • Inibidores da bomba de protões A exposição ao ácido gástrico pode ter uma função importante na carcinogénese. Verificou-se, em estudos in vitro, com biopsias esofágicas de doentes com EB, que a exposição a pulsos intermitentes de ácido, como é típico na DRGE, aumenta a expressão de COX-2 e activa as vias da proteína quinase activada por mitogénio (MAPK), estimulando a proliferação celular e diminuindo a apop127 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS em alta dose parece promover a reepitelização pavimentosa e a regressão parcial do EB. Outro aspecto a ter em conta é que a regressão do EB pode não ser fundamental na prevenção do cancro, mas talvez o seja para evitar a sua transformação displásica. Ainda não há evidência conclusiva de que a normalização do pH esofágico previna a displasia, mas um estudo observacional demonstrou que os IBPs reduzem significativamente o risco de displasia no EB (76). Por outro lado, epidemiologicamente, é coincidente a introdução do uso generalizado de IBPs e dos antagonistas dos receptores da histamina-2 para supressão ácida, com um aumento franco da incidência de ADC esofágico (65). Num estudo em animais com refluxo gastroduodenal, verificou-se que o risco de cancro aumentava com a medicação com IBPs. Uma hipótese explicativa para estes achados é que o epitélio do EB é sensível ao estímulo proliferativo da gastrina, o que poderia promover a carcinogénese. Porém, os IBPs aumentam apenas ligeiramente os níveis de gastrina (65). Além disso, esta eventual resposta proliferativa, não corresponde obrigatoriamente a um aumento do risco neoplásico. Estudos epidemiológicos, em doentes tratados com inibição ácida, não encontraram qualquer aumento na incidência de doenças graves nos doentes tratados com IBPs, e um maior risco de ADC esofágico apenas se observou nos doentes com patologia esofágica de base e não nos doentes tratados por outras causas, o que leva a admitir que o eventual risco acrescido esteja relacionado com a doença esofágica em si e não com a terapêutica (77,78). Assim, não existem dados que comprovem que a inibição ácida com IBPs aumente o risco de ADC esofágico, sendo necessários estudos clínicos prospectivos para avaliarem o seu valor profilático. Como são fármacos relativamente seguros, normalmente utilizados para o controlo sintomático destes doentes, o seu uso é advogado por alguns autores. Contudo, a maioria defende a administração de doses que eliminem os sintomas e os sinais endoscópicos de DRGE, não tendo por enquanto como objectivo a normalização do pH esofágico. • Antioxidantes A lesão oxidativa é um mecanismo patogénico na DRGE e no EB (64). Alguns estudos observaram uma relação inversa entre a toma de antioxidantes e o risco de ADC esofágico: a vitamina E inibia a adenocarcinogénese esofágica e o β-caroteno prevenia a progressão do EB (64). Todavia, uma meta-análise recente não mostrou influência significativa dos antioxidantes na incidência do cancro esofágico (6). Perante os riscos previamente referidos e sem evidência de benefício, os suplementos de antioxidantes não estão recomendados na prevenção do ADC esofágico. • Ferro Estudos em modelos animais mostraram que os suplementos de ferro promoviam o desenvolvimento de ADC esofágico, por potenciarem as lesões do stress oxidativo induzidas pela DRGE. Assim, estes autores consideram que uma das recomendações de prevenção do ADC esofágico é uma dieta com baixo teor de ferro, ou seja, pobre em carnes vermelhas e em alimentos enriquecidos com ferro (64). No entanto, são indispensáveis estudos para confirmar estes resultados no homem. • Inibição da Ornitina descarboxilase (ODC) A ornitina descarboxilase (ODC) é uma enzima essencial para a síntese de poliaminas e, consequentemente, para a progressão das células no ciclo celular. A sua expressão está aumentada no EB com metaplasia intestinal e é maior conforme as alterações displásicas se desenvolvem no epitélio metaplásico (79). Estudos in vitro com inibidores da ODC, nomeadamente a α-difluorometilornitina e a 128 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro troglitazona, mostraram uma inibição do crescimento celular no EB e no ADC esofágico, respectivamente. Não está ainda demonstrado que a inibição da ODC diminua o risco de ADC esofágico no EB, mas os resultados obtidos são promissores (79), sendo necessários mais estudos nesta área. da Europa com maior taxa de incidência (81,82). Em todo o mundo, é a 2.ª causa mais comum de mortes relacionadas com cancro (83). A maioria dos doentes têm estádios avançados de doença à data do diagnóstico, com sobrevida aos 5 anos de 20% (84). De acordo com a sua localização, os ADCs gástricos classificam-se em: proximais (cárdicos) e distais (não cárdicos). Estes dois subtipos têm características epidemiológicas distintas. No que respeita à incidência, apesar de uma diminuição global desta neoplasia, os carcinomas proximais têm aumentado nos últimos anos, enquanto os distais têm diminuído (85,86). Os seus factores de risco para carcinogénese também não são os mesmos, o que implica o uso de agentes quimioprofiláticos distintos. Histologicamente, o ADC gástrico dividese em tipo intestinal e difuso, que apresentam mecanismos fisiopatológicos e comportamentos diferentes. O de tipo intestinal é frequentemente precedido de lesões pré-neoplásicas, como a metaplasia intestinal, é mais comum no estômago distal e mais prevalente em áreas de grande incidência. O de tipo difuso não está associado a lesões pré-neoplásicas definidas, tem a mesma frequência em todo o mundo e tem pior prognóstico do que o de tipo intestinal (87). Presentemente, as estratégias para reduzir a transformação neoplásica no EB são a vigilância endoscópica, as técnicas ablativas e a ressecção cirúrgica, que são invasivas e têm risco de complicações importantes. Comparativamente a estas, a quimioprofilaxia do ADC do esófago, nomeadamente com AINEs e/ou IBPs, é uma abordagem potencialmente eficaz, que pode ser aplicada na comunidade sem necessidade de referência a centros endoscópicos diferenciados, com poucos efeitos secundários e com melhor relação custo/benefício. O papel do AAS associado a um IBP – que além do eventual efeito protector reduz também os efeitos adversos gastrointestinais do AAS – na prevenção do ADC esofágico nos doentes com EB, está actualmente a ser avaliado num estudo aleatorizado prospectivo (“AspECT trial”), cujos resultados se aguardam. A quimioprofilaxia é, portanto, uma opção plausível no ADC esofágico, principalmente nos doentes de risco com EB, que requer comprovação do seu benefício. 3.1.1 – Quimioprofilaxia dos Adenocarcinomas gástricos proximais 3 – QUIMIOPROFILAXIA DO CANCRO GÁSTRICO Os ADCs gástricos cárdicos têm factores de risco semelhantes aos ADCs esofágicos, apresentando também como elemento importante na carcinogénese a DRGE (88). Assim, a quimioprofilaxia nestes cancros é idêntica à já discutida para o ADC esofágico. A neoplasia maligna mais frequente do estômago é o adenocarcinoma gástrico (ADC gástrico). Este é responsável por 90% destes cancros (80) , sendo o linfoma, os tumores do estroma e as neoplasias neuroendócrinas mais raras. Existem dados referentes a potencial quimioprofilaxia nos ADC gástricos e nos linfomas. 3.1.2 – Quimioprofilaxia dos Adenocarcinomas gástricos distais 3.1 – Adenocarcinoma gástrico Os ADC gástricos distais apresentam, como sequência de carcinogénese, a progressão entre gastrite crónica atrófica, metaplasia O ADC gástrico é o 4º cancro mais frequente a nível mundial, sendo Portugal o país 129 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS intestinal, displasia e, finalmente, adenocarcinoma (89). A gastrite atrófica resulta na atrofia progressiva do epitélio glandular com perda de células parietais, o que provoca hipocloridria e hipergastrinémia secundária. A consequente diminuição do pH gástrico permite a colonização do estômago por bactérias com capacidade para converter os nitritos da dieta em compostos nitrosos, com potencial mutagénico. A hipergastrinémia induz proliferação celular. Além disso, a inflamação crónica provoca lesão das células epiteliais e geração de radicais livres. De referir ainda que a secreção de ácido ascórbico, que pode funcionar como um factor protector em relação aos nitratos e aos radicais livres, está diminuída na gastrite atrófica (90). Todos estes mecanismos podem promover a carcinogénese epitelial. Os indivíduos que têm gastrite crónica atrófica apresentam um risco 5,7 vezes maior de desenvolver ADC gástrico (91), observando-se que populações com alta prevalência de gastrite crónica atrófica têm também alta prevalência de ADC gástrico (92). Os doentes com atrofia grave e metaplasia intestinal têm um risco relativo de desenvolver ADC gástrico de 4,9 e 6,4, respectivamente (93). A gastrite atrófica pode por isso ser considerada uma condição pré-neoplásica. A sua causa mais comum é a infecção pelo Helicobacter pylori (Hp), que foi classificado pela Organização Mundial de Saúde como um carcinogénio definitivo ou do grupo 1 (94). Um estudo prospectivo japonês que avaliou a relação entre a infecção por Hp e o risco de cancro gástrico, com seguimento médio de 7,8 anos, observou que 2,9 % dos doentes com infecção a Hp desenvolveram ADC gástrico, enquanto que nenhum dos doentes sem infecção por Hp desenvolveu cancro (93). Duas meta-análises, de estudos de coorte e de casocontrolo, encontraram um risco 2 vezes maior de desenvolvimento de adenocarcinomas não cárdicos, quer do tipo difuso quer intestinal, nos doentes infectados com Hp (94,95). A infecção por Hp foi encontrada em 70% dos doen- tes com ADC gástrico distal, não parecendo ter um papel relevante no ADC gástrico proximal (96). A maior duração da infecção por Hp, especialmente quando adquirida na infância e prolongada para toda a vida, se não tratada, tem um risco acrescido (97). No entanto, a infecção a Hp isoladamente não explica a carcinogénese gástrica. Apesar da prevalência da infecção a Hp em todo o mundo ser semelhante e rondar os 50%, a incidência de cancro gástrico tem variações regionais significativas. Além disso, a infecção a Hp tem consequências clínicas diferentes, observando-se que menos de 1% dos doentes infectados desenvolve cancro (98). Assim, outros factores estão provavelmente envolvidos, sendo o potencial carcinogénico do Hp determinado pelo seu genótipo, pelos polimorfismos genéticos do hospedeiro e pelos factores ambientais associados. Um estudo que estimou o risco de ADC gástrico em doentes previamente hospitalizados por úlcera péptica, mostrou que a incidência de ADC gástrico estava aumentada nos doentes com úlcera gástrica (ratio de incidência estandardizado de 1,8), mas era inferior à esperada no grupo de doentes com úlcera duodenal (ratio de incidência estandardizado de 0,6), não havendo explicação para este efeito protector (99). No que respeita às várias estirpes de Hp, uma meta-análise de estudos controlo concluiu que, na infecção a Hp, a presença da citotoxina associada ao gene A (CagA) era um factor de risco independente para ADC gástrico não cárdico (OR 1,64; 95% CI 1,21-2,24) (100). Um melhor entendimento da etiopatogenia do ADC gástrico, pode vir a contribuir para uma prevenção mais eficaz. Da quimioprofilaxia avaliada, há a salientar: • Erradicação do Helicobacter pylori O papel da erradicação do Hp na prevenção do ADC gástrico é controverso. O efeito benéfico da erradicação do Hp nas lesões pré-neoplásicas é reduzido e não se sabe ainda se a reversão destas lesões corres130 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro ponde obrigatoriamente a uma diminuição do risco de ADC gástrico. Numa revisão de estudos sobre a relação da erradicação do Hp com a gastrite atrófica e a metaplasia intestinal, concluiu-se que a maioria dos estudos indicavam um resultado favorável da erradicação do Hp na evolução destas alterações, com menor progressão da atrofia e da metaplasia intestinal. Porém, a regressão da atrofia observou-se apenas em 11 dos 25 estudos analisados e, relativamente à metaplasia intestinal, apenas 5 mostraram melhoria significativa (101). Um estudo prospectivo com um seguimento de 12 anos, mostrou que os doentes tratados com erradicação do Hp apresentavam 14,8% de mais regressão e 13,7% de menos progressão de lesões pré-neoplásicas comparativamente aos indivíduos não tratados (102). Estes achados devem-se, provavelmente, ao facto de as consequências da erradicação do Hp na evolução destas lesões dependerem da alteração molecular subjacente. Caso existam alterações epigenéticas sem alteração da sequência de ADN, há potencial para reversão, se o Hp, que é o agente indutor, for tratado. Contudo, se houver uma alteração genética com alteração da sequência de ADN, esta lesão não é provavelmente reversível (103), parecendo atingir-se um ponto de não retorno. Embora haja autores que defendem que a diminuição de incidência de ADC gástrico distal, verificada nos últimos anos está provavelmente relacionada com o tratamento da infecção por Hp, o efeito desta terapêutica no desenvolvimento de ADC gástrico não está ainda determinado, havendo poucos estudos e com resultados controversos. Estudos em curso no Japão têm observado que, nos doentes com ADC gástricos precoces excisados endoscopicamente, a erradicação do Hp diminui a recorrência de lesões. Por outro lado, um estudo prospectivo aleatorizado mostrou que a incidência de ADC gástrico era igual nos doentes tratados e nos que receberam placebo. No entanto, na análise do subgrupo de doentes que não tinha lesões pré-malignas verificou-se que nenhum doente desenvolveu ADC gástrico após erradicação do Hp (0/483 doentes vs. 6/503 nos doentes não tratados) (104) . Estes resultados sugerem que a erradicação precoce do Hp pode ter eficácia na prevenção de ADC gástrico, quando efectuada nos doentes sem gastrite atrófica ou metaplasia intestinal, sugerindo que, após o aparecimento destas alterações, já não é possível influenciar o risco de ADC gástrico. Em termos práticos, isto implicaria o rastreio e terapêutica da população geral, o que levanta problemas de custo, aparecimento de resistência antibiótica e de efeitos adversos dada a elevada prevalência desta infecção. Foram já efectuadas análises de custo/benefício que demonstraram que a estratégia de pesquisar e tratar todos os indivíduos apenas era eficaz se a terapêutica diminuísse o grau de risco para um valor idêntico ao da população geral, não infectada (105). Mais estudos são requeridos para clarificar o papel da erradicação do Hp na prevenção do ADC gástrico. Neste contexto, actualmente, a evidência sugere reservar a pesquisa e tratamento da infecção a Hp nos familiares de 1º grau de doentes com cancro gástrico e nos doentes submetidos a gastrectomia parcial ou mucosectomia por cancro gástrico (106,107). Uma abordagem mais alargada deve ser reservada para as populações de alto risco (106). No futuro, uma genotipagem combinada da bactéria e do hospedeiro pode vir a ter um papel importante na identificação dos indivíduos que têm maior risco e que, portanto, devem ser submetidos a terapêutica de erradicação do Hp. • Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e ácido acetilsalicílico (AAS) A expressão de COX-2 no epitélio gástrico está aumentada na infecção por Hp, na metaplasia, na displasia e no cancro gástrico (90,108). Por isso, a carcinogénese gástrica induzida pelo Hp pode estar associada a esta expressão elevada de COX-2, sendo possível que os AINEs inibam a proliferação do Hp e rever131 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS ADC gástrico. No entanto, um estudo em humanos não confirmou esta associação, pelo que este agente não pode ser recomendado na profilaxia do ADC gástrico (111). tam os seus efeitos carcinogéneos, reduzindo o risco de ADC gástrico. Uma meta-análise de estudos epidemiológicos demonstrou uma correlação entre a toma de AINEs e a redução do risco de ADC gástrico não cárdico (OR = 0,72; 95% CI 0,58 to 0,89) igual para os AINEs e o AAS, mas mais significativa se a toma de AINEs fosse regular (OR = 0,57; 95% CI 0,44 to 0,74) (109). Embora estes resultados sejam prometedores, mais estudos clínicos são necessários antes de se poder recomendar o uso de AINEs/AAS na profilaxia do ADC gástrico. • Agentes em investigação Alguns alvos moleculares envolvidos na carcinogénese gástrica estão a ser investigados, nomeadamente o factor de crescimento endotelial vascular (VEGF) que está aumentado nas células gástricas nos indivíduos infectados por Hp e nos ADC gástricos, promovendo a angiogénese (112). A planta Hibiscus sabdariffa linne (Malvaceae) parece ter um efeito quimioprofilático devido à sua capacidade de induzir a apoptose das células do carcinoma gástrico humano (112). • Antioxidantes Os estudos que avaliam o papel dos antioxidantes na prevenção do ADC gástrico têm sido inconsistentes. Numa população rural da China com deficiências de micronutrientes antioxidantes, a suplementação com uma combinação de β-caroteno, selénio e zinco diminuiu a incidência de cancro gástrico não cárdico (46). Um estudo prospectivo denotou um aumento significativo da regressão de lesões pré-malignas gástricas nos doentes que efectuaram suplementos diários de antioxidantes (ácido ascórbico e β-caroteno) semelhante ao observado com a terapêutica de erradicação de Hp, não havendo todavia um efeito aditivo das duas intervenções, quando conjugadas (110). Uma meta-análise recente não mostrou influência significativa dos antioxidantes na incidência de cancro gástrico (6). De acordo com os dados disponíveis e perante os riscos já apontados, não está recomendada a quimioprofilaxia com antioxidantes no ADC gástrico. 3.2 – Quimioprofilaxia do Linfoma Gástrico O linfoma gástrico representa 3% das neoplasias gástricas e 10 % de todos os linfomas, sendo o estômago a localização extranodal mais frequente desta neoplasia (113). O estômago normal não contém tecido linfóide significativo. Porém, a gastrite induzida pela infecção a Hp leva à agregação de linfócitos CD4+ e de células B na lâmina própria gástrica, com activação das células T, proliferação de células B e formação de folículos linfóides. Numa pequena percentagem de doentes ocorre malignização deste tecido linfóide associado à mucosa gástrica (MALT), resultando num linfoma que habitualmente tem um comportamento indolente e que se classifica como linfoma de células B, extranodal, da zona marginal de tipo MALT, frequentemente denominado como Linfoma MALT. Múltiplos estudos já demonstraram a associação entre a infecção a Hp e o desenvolvimento de linfoma MALT gástrico. A evidência mais dramática, que apoia o papel patogénico do Hp, é a taxa de remissão destes linfomas, quando em fase precoce, após terapêutica de erradicação do Hp (114). • Chá verde O chá verde apresenta polifenois que têm propriedades antioxidantes, induzem a apoptose e inibem a proliferação celular. Em estudos animais parecia haver uma relação inversa entre o consumo de chá verde e o risco de 132 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro Os doentes submetidos a transplante de orgãos, pela imunossupressão associada, têm um risco acrescido de desenvolvimento de várias neoplasias, nomeadamente de linfomas. Foram reportados quatro casos clínicos de Linfoma MALT em doentes com transplante hepático, o que poderá corresponder a uma incidência aumentada de Linfoma MALT nestes doentes (115). Os autores deste trabalho defendem que a confirmar-se este risco, o rastreio e a terapêutica da infecção por Hp podem estar indicados nos doentes transplantados. mente implementado pelo que métodos alternativos de prevenção têm sido alvo de crescente investigação. O cólon representa o órgão alvo ideal para o estudo e aplicação deste tipo de medidas preventivas: a sequência de alterações genéticas necessária à carcinogénese está estabelecida e continua a ser elucidada, a janela de intervenção é prolongada, a avaliação directa e a amostragem da mucosa colorrectal é facilmente acessível e, por último, os grupos de risco sobre os quais intervir estão identificados (22). Estudos de intervenção primária sobre a quimioprevenção tendo a incidência ou a mortalidade por cancro como objectivos, são pouco exequíveis, devido ao longo tempo de seguimento, aos custos associados à sua realização, e à grande dimensão da amostra necessária para avaliar indivíduos de risco intermédio. Assim, a maioria dos estudos sobre a quimioprevenção de CCR utilizaram os adenomas como marcador de risco para CCR (33). Abordaremos de seguida os agentes avaliados na quimioprofilaxia do CCR. 4 – QUIMIOPROFILAXIA DO CANCRO DO INTESTINO DELGADO Os cancros do intestino delgado são muito raros, não havendo estudos conclusivos nesta área, de acordo com a bibliografia consultada. De referir que na polipose adenomatosa familiar (PAF), os AINEs foram avaliados, mas não mostraram eficácia na regressão dos pólipos adenomatosos do intestino delgado. Apesar de, em modelos murinos de PAF, o sulindac diminuir o número e o tamanho dos adenomas do intestino delgado (116), nos estudos com humanos apenas se observou uma diminuição da proliferação da mucosa duodenal, com uma tendência não significativa para a regressão dos adenomas duodenais (117). • Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) e Ácido acetilsalicílico (AAS) Existe um número apreciável de estudos experimentais e observacionais que sugerem que os AINEs e o AAS possuem propriedades quimiopreventivas no desenvolvimento de adenomas e carcinomas colorrectais. (33). Três meta-análises recentes avaliaram a utilização dos AINEs, inibidores da COX2 (coxibes) e AAS na prevenção do CCR (24, 122, 123). No que respeita ao AAS, os resultados dos diferentes estudos quanto à incidência e mortalidade de CCR apresentam alguma falta de consistência. Estudos observacionais (124) apoiam um efeito positivo, enquanto estudos aleatorizados, controlados, não mostram benefício na utilização de baixas doses de AAS (100 e 350 mg de AAS, em dias alternados, durante 10 e 14 anos) (24,123,125,126). A utilização regular do AAS parece diminuir a incidência de adenomas colorrectais, com redução do 5 – QUIMIOPROFILAXIA DO CANCRO COLORRECTAL O carcinoma do cólon e recto (CCR) é a principal causa de mortalidade por cancro em Portugal (118). Estima-se que seja responsável por cerca de 1 milhão de novos casos por ano a nível mundial (119), assumindo-se como a neoplasia maligna com maior incidência na Europa (120,121). Na maioria dos casos, o CCR desenvolvese a partir de uma lesão precursora que maligniza através da sequência adenoma-carcinoma. Apesar dos seus reconhecidos benefícios, o rastreio do CCR não se encontra adequada133 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS risco relativo (RR) na ordem dos 13 a 28% em indivíduos de risco mediano (mais elevada em indivíduos com história de adenoma), e a incidência de CCR com uma redução do RR de 22% (nos estudos de coorte, não observada nos RCT referidos) (24). Um estudo de coorte sugeriu que, para a quimioprofilaxia do CCR, parece ser necessária a utilização prolongada (> 10 anos) de doses de AAS superiores às utilizadas na prevenção cardiovascular (> 14 comprimidos de 325mg AAS/semana) (124). Não existe qualquer RCT que tenha estudado a influência dos AINEs na mortalidade e incidência de CCR. Um estudo de coorte avaliou a incidência de CCR em indivíduos sob terapêutica com AINEs (em doses terapêuticas) há mais de 12 meses, tendo mostrado uma redução da incidência de CCR, com RR de 0.59 (127). Com base em estudos observacionais, os AINEs são responsáveis por uma redução do RR de 30 a 40% na incidência de CCR (122,124). Uma análise de 3 RCT sobre coxibes (celecoxibe e rofecoxibe), onde foram incluídos indivíduos com antecedentes de adenomas, mostrou uma redução estatisticamente significativa da incidência de adenomas colorrectais e de adenomas avançados (RR de 0.72 e 0.56, respectivamente) durante um seguimento de 3 anos. Na sequência de dois estudos, um em que o celecoxibe se associou a uma redução de 28% dos pólipos rectais (128), e outro em que o rofecoxibe levou a uma diminuição de 10% (129) , em doentes com PAF, a “Federal Drug Administration – FDA” aprovou o celecoxibe para a quimioprevenção em doentes com fenótipo PAF. Também o sulindac mostrou efeitos nesta população, sendo responsável por uma regressão incompleta dos pólipos (redução de 44% e 35 % no seu número e diâmetro, respectivamente) (130). Perante o exposto, a quimioprevenção com AAS e AINEs reduz o risco de adenomas recorrentes em doentes com história de adenomas ou CCR, sendo necessário tratar 10 doentes para evitar uma polipectomia (33). Contudo, como estes doentes são incluídos em programas de vigilância endoscópica, é discutível se a quimioprevenção primária deve ser utilizada. Essa opção iria acarretar um custo e um risco acrescidos, não eliminando a necessidade de vigilância endoscópica. Foi estimado que seria necessário tratar com AAS 1250 indivíduos sem história de neoplasia colorrectal, durante mais de 10 a 20 anos, de modo a evitar 1 morte por CCR (27). Assim, os riscos significativos da utilização prolongada de AINEs e AAS e os custos e benefícios inerentes, devem ser considerados e avaliados numa relação de risco benefício que poderá não ser positiva. Com base nos dados referidos anteriormente (24,122), a “United States Preventive Services Task Force” não recomenda a utilização por rotina de AAS e AINEs para a prevenção primária de CCR (26). • Ácido fólico Estudos em animais e humanos demonstraram que o ácido fólico inibe a carcinogénese em diversos tecidos, incluindo o cólon (32). Polimorfismos dos genes envolvidos no metabolismo do ácido fólico influenciam o risco de CCR. A mutação C677T no gene da metiltetrahidrofolatoredutase determina uma redução da sua actividade. Indivíduos do sexo masculino, homozigóticos para este alelo, apresentam metade do risco de cancro colorrectal, quando comparados com heterozigóticos ou homozigóticos sem a mutação (131). Diversos estudos mostraram uma redução do risco de CCR e adenomas através da suplementação dietética de ácido fólico. A toma regular de suplementos multivitamínicos, contendo ácido fólico, durante pelo menos 15 anos, provocou uma redução no desenvolvimento de cancro do cólon, com RR de 0.25 (132). Um estudo prospectivo, em que mais de 14000 indivíduos foram observados durante 20 anos, verificou uma redução do risco de CCR de 60% naqueles com aporte elevado de ácido fólico versus um baixo aporte, com um incremento significativo dose 134 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro tor do desenvolvimento de CCR, é a sua ligação aos ácidos gordos e sais biliares com consequente precipitação e inibição da citotoxicidade luminal (33,131). Por outro lado, o cálcio extracelular pode também ter efeitos preventivos através do aumento da concentração intracelular de cálcio (devido à activação de receptores específicos), que pode determinar um efeito antiproliferativo e promotor da diferenciação celular (135). Dois estudos prospectivos de coorte (“Nurses Health Study”, n= 87998 mulheres; “Health Professionals Follow-up Study”, n= 47334 homens) avaliaram a relação entre o risco de CCR e o aporte de cálcio. Quando se compararam os indivíduos com aporte diário de cálcio superior a 1250 mg com aqueles com aporte diário inferior a 500 mg constatou-se que um aporte mais elevado de cálcio estava associado a uma redução significativa no risco de CCR distais (RR 0.65) (136). Uma meta-análise recente, de 2 RCT (n= 1346), nos quais uma dose diária de 1200 mg ou 2000 mg foi comparada com placebo para a prevenção secundária de adenomas colorrectais, revelou uma redução no desenvolvimento de adenomas recorrentes (OR de 0.74) (137) . Uma outra meta-análise que incluiu mais outro RCT mostrou um RR de 0,8 para o desenvolvimento de adenomas recorrentes com um número necessário para tratar (NNT) de 14 (138). Apesar de todos estes dados, o real benefício da suplementação de cálcio na redução de CCR não é claro. Um RCT, em dupla ocultação, publicado recentemente, comparou a suplementação diária de 1000 mg de cálcio e 400 UI de vitamina D3 com placebo durante 7 anos, não se tendo observado diferenças significativas na incidência de CCR entre os dois grupos(139). Apesar dos dados expostos sugerirem que a suplementação de cálcio poderá contribuir para a quimioprevenção de pólipos adenomatosos, não existem evidências suficientes para apoiar a recomendação para a sua utilização generalizada na quimioprevenção primária ou secundária do CCR. No entanto, o “American dependente (133). No “Nurses Health Study” as mulheres, com consumo diário de ácido fólico superior a 400 mg, apresentaram um risco relativo, ajustado para a idade, de cancro do cólon de 0,48 e 0.81 conforme tivessem ou não história familiar de cancro do cólon, quando comparadas com mulheres com aporte diário de ácido fólico menor que 200 mg (134). Assim, em indivíduos com antecedentes de cancro do cólon em familiares de primeiro grau, a toma regular de suplementos vitamínicos durante mais de 5 anos, pode reduzir o risco de cancro do cólon em quase 50% (134). Os doentes com doença inflamatória do intestino (DII) podem apresentar níveis baixos de folato quer devido à absorção intestinal reduzida por inibição competitiva pela sulfasalazina, quer pela perda de folato durante a doença activa. Diversos estudos mostram que indivíduos com colite ulcerosa (CU), que consomem ácido fólico, têm um menor risco de CCR (135). Apesar da ausência de evidência clínica comprovada, com base na sua plausibilidade biológica e segurança, muitos peritos recomendam a suplementação com ácido fólico em doentes com CU de longa duração. Aguarda-se a publicação do “Folate Polyp Prevention Trial”, um estudo prospectivo que comparou a suplementação de 1 mg diário de ácido fólico com placebo na prevenção secundária de adenomas colorrectais, cujos resultados podem ajudar a clarificar o papel do folato na quimioprevenção do CCR. • Cálcio Dietas ricas em gordura animal e em carnes vermelhas estão associadas a um risco aumentado de desenvolvimento de adenomas e CCR, possivelmente relacionado com o aumento das concentrações cólicas de ácidos biliares secundários. Este incremento pode estimular a proliferação celular da mucosa cólica e induzir a carcinogénese (33). O mecanismo proposto, através do qual o cálcio alimentar se assume como agente quimioprotec135 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS College of Gastroenterology”, nas recomendações de abordagem dos pólipos colorrectais, sugere que a suplementação diária com 3 g de carbonato de cálcio pode ser eficaz para a prevenção de adenomas colorrectais (140). cáridos, pectinas, gomas, ceras) e a lenhina (144) . As fibras alimentares podem ser solúveis (pectina, agar) ou insolúveis (celulose, hemicelulose). Estas últimas estão mais associadas a efeito protectores. Os mecanismos propostos para o papel das fibras na quimioprevenção do CCR podem ser directos e indirectos. As fibras podem reduzir directamente a exposição da mucosa cólica aos carcinogéneos ou promotores tumorais, diluir o conteúdo cólico ou encurtar o tempo de trânsito. Os mecanismos indirectos incluem a influência dos produtos da sua degradação pelas bactérias (como o butirato), que podem reduzir a actividade dos promotores tumorais (144). A magnitude do papel das fibras na quimioprevenção do CCR é incerta, com resultados discordantes. No “Nurses Health Study” não foi encontrada qualquer relação entre o aporte de fibra e o risco de adenomas ou CCR (145). Uma revisão sistemática de 5 RCTs (n=4349) também não encontrou evidência de que a suplementação dietética de fibras reduza a incidência/recorrência de adenomas durante um período de 2 a 4 anos. Uma avaliação de 10 estudos prospectivos de coorte (n= 725628, seguimento de 6 a 20 anos) concluiu que o aporte alimentar de fibras se encontrava inversamente relacionado com o risco de CCR, mas que esta associação deixava de ser aparente em análise multivariada (146). Em contraste, vários estudos epidemiológicos encontraram uma redução do risco de adenomas e CCR. Num desses estudos, o EPIC (n=519978), foi estimado que, em populações com baixo consumo de fibras, a duplicação do aporte de fibras poderia reduzir em 40% o risco de CCR (147). Assim, são necessários estudos prospectivos, de intervenção, de modo a esclarecer o papel da fibra na quimioprevenção do CCR. • Ácido Ursodesoxicólico O ácido ursodesoxicólico (AUDC) é um ácido biliar sintético cuja acção na quimioprevenção do CCR pode ter vários mecanismos. Uma hipótese é que o AUDC leva a uma redução da concentração luminal cólica do ácido desoxicólico e, consequentemente, a uma diminuição da estimulação proliferativa da mucosa colorrectal (33). Um RCT que avaliou a utilização de AUDC em doentes com colite ulcerosa e colangite esclerosante primária mostrou um RR de 0.26 para o desenvolvimento de displasia ou CCR nos doentes tratados (141). Um outro estudo observacional realizado em doentes com cirrose biliar primária sob terapêutica com AUDC, integrados num programa de vigilância colonoscópica, demonstrou uma redução estatisticamente significativa no risco de recorrência de adenomas (142). Um RCT prospectivo, em dupla ocultação, de fase 3, comparou a utilização de 8-10 mg/kg/dia de AUDC com placebo durante 3 anos, tendo-se constatado uma redução, não significativa (12%), do aparecimento de novos adenomas e uma diminuição, estatisticamente significativa de 39%, na recorrência de adenomas com displasia de alto grau (143). Estes dados sugerem que o AUDC pode actuar num estádio mais avançado da carcinogénese do CCR (no desenvolvimento de displasia de alto grau) do que o cálcio ou os AINEs (143). São, no entanto, necessários mais estudos para clarificar o papel do AUDC na quimioprevenção do CCR. • Fibras • Antioxidantes As fibras alimentares são constituídas pelos componentes das plantas resistentes à digestão e incluem todos os polissacáridos não digeríveis (celuloses, hemiceluloses, oligossa- A maioria dos CCR tem origem em adenomas como resultado de um processo multietapa que transforma células normais em car136 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro outros factores de risco/protecção, com uma redução de 47% do risco de CCR (152). Um estudo observacional recente avaliou a relação entre a utilização de estatinas e o risco de 10 tipos de cancro, incluindo o CCR, tendo concluído que não havia qualquer evidência de que este fármaco estivesse associado a uma redução do risco (153). No mesmo sentido foram os resultados de uma meta-análise de 27 RCT (n=86936), que não demonstrou diminuição do risco de neoplasias pela utilização de estatinas (154). No entanto, há que ter em atenção que, dos muitos RCTs que avaliaram a terapêutica com estatinas, nenhum tinha a incidência/mortalidade de CCR como objectivo primário, estando desenhados para apreciar eventos cardiovasculares (muito mais frequentes que o CCR). Assim, os trabalhos disponíveis não permitem tirar conclusões definitivas quanto aos efeitos das estatinas sobre o risco de cancro, nomeadamente do CCR, sendo necessária a realização de estudos com as características adequadas à avaliação da relação entre as estatinas e o CCR. cinoma. Os antioxidantes podem interferir neste processo, assumindo-se como substâncias quimiopreventivas do CCR. No entanto, uma meta-análise recente, não mostrou evidência segura de que a toma de antioxidantes fosse eficaz na quimioprevenção primária ou secundária de adenomas ou CCR (6). Além disso, a suplementação com as vitaminas A, E e o beta-caroteno está associada a um aumento da mortalidade em estudos de prevenção primária e secundária (14). Um RCT de quimioprevenção secundária de neoplasias cutâneas com suplementação diária de 200 mg de selénio, mostrou uma redução do risco de CCR (RR 0.42) e de adenomas colorrectais. Uma análise que incluiu 3 estudos sobre a prevenção secundária de adenomas colorrectais mostrou que, indivíduos com níveis séricos de selénio no quartil superior (150 nm/mL), apresentavam uma probabilidade significativamente menor para o desenvolvimento de um novo adenoma em comparação com o quartil inferior (OR-0.66), concluindo que níveis séricos de selénio mais elevados podem estar relacionados com uma diminuição do risco de CCR (148). Em suma, a utilização de vitaminas antioxidantes não está indicada na quimioprofilaxia do CCR. O papel protector do selénio necessita de ser confirmado por estudos mais robustos. • 5-Aminossalicilatos A inflamação é um factor de risco estabelecido para o desenvolvimento de CCR. Os aminossalicilatos (5-ASA), assim como os AINEs e o AAS, possuem várias propriedades anti-inflamatórias e antineoplásicas, pois diminuem o stress oxidativo, inibem a proliferação celular e promovem a apoptose (155). Um estudo epidemiológico, que incluiu 18969 doentes com DII, mostrou que, indivíduos que utilizavam 5-ASA regularmente, apresentavam um menor risco para o desenvolvimento de CCR (156). Muitos estudos observacionais apontaram para que a utilização de 5-ASA reduzia o risco de CCR em doentes com CU. Uma meta-análise de 9 estudos observacionais (n= 1932) concluiu que os indivíduos sob terapêutica regular com 5-ASA, numa dose superior a 1,2g, apresentavam menor risco para CCR/displasia (OR: • Estatinas As estatinas (inibidores da 3-hidroxi-3metil glutaril coenzima A redutase) têm efeitos antiproliferativos, indutores da apoptose, supressores da angiogénese e alteram a adesão e a migração de células neoplásicas (149). Dois ensaios clínicos que avaliaram o benefício da pravastatina e sinvastatina na doença coronária mostraram uma modesta redução da incidência de CCR (150,151). O “Molecular Epidemiology of Colorrectal Cancer”, um estudo populacional de caso-controlo, verificou que a utilização de estatinas durante cinco ou mais anos estava relacionada, após ajuste para 137 QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS 0.51), com efeito dose dependente e que aumentou com a duração do tratamento (157). Um estudo recente sugeriu que os 5-ASA também podem ser eficazes para a quimioprofilaxia do CCR na doença de Crohn. (158). Assim, no consenso sobre o tratamento da colite ulcerosa da Organização Europeia de Crohn e Colite (ECCO) apresentado na 16ª “United European Gastroenterology WeekUEGW”, está recomendado que a utilização de 5-ASA para a quimioprevenção do CCR deve ser considerada em todos os doentes com CU. sos mediadores que se ligam ao EGF são expressos de forma marcada em linhagens celulares de CCR, havendo aumento da expressão do EGFR em 65-70% dos CCR (33). Assim, este receptor assume-se como um alvo promissor para a quimioprevenção. Diversos estudos, um com EKB-569 e outro com ZD1839, mostraram resultados animadores na redução do número de pólipos num modelo murino de PAF e redução da proliferação de linhagens celulares de CCR, respectivamente, o que os torna agentes auspiciosos para a quimioprevenção do CCR (33). As poliaminas naturais (putrescina, espermidina e espermina) são compostos policatiónicos necessários para uma proliferação celular normal. O passo limitante na sua biossíntese é mediado pela enzima ornitina descarboxilase (ODC) cuja actividade se encontra elevada na mucosa de CCR esporádicos e adenomas, em comparação com a mucosa circundante. A αdifluorometilornitina é um inibidor irreversível da ODC e a sua administração concomitante com AINEs diminui o desenvolvimento de adenomas e CCR em estudos animais (33). Aguardam-se estudos de fase 2 de α-difluorometilornitina em associação com o sulindac em indivíduos com antecedentes de adenomas colorrectais, e celecoxib em associação com αdifluorometilornitina ou placebo em doentes com PAF (33). • Outros Agentes Várias substâncias naturais possuem propriedades inibidoras da COX2. A curcumina (159) (corante responsável pelo amarelo do caril), o resveratrol (160) (um fitoquímico encontrado na casca da uva) e os ácidos gordos ómega-3 (161) (encontrado em óleos de peixe) são alguns destes compostos. A curcumina inibe o crescimento das células do CCR in vitro (159). O ácido eicosapentaenoico (um ácido gordo ómega-3) inibe também a proliferação de células de CCR in vitro (161) e a sua suplementação em baixa dose, parece melhorar a proliferação anormal de células epiteliais rectais de indivíduos com adenomas colorrectais (162). Os estudos existentes sobre estes compostos são díspares, apresentando resultados conflituosos. Uma meta-análise recente sobre a relação entre os ácidos gordos ómega-3 e o risco de cancro não mostrou evidências de redução do risco de cancro ou CCR (um estudo mostrou diminuição do risco de CCR enquanto outros 17 não mostraram qualquer associação) (163). São necessários mais estudos para clarificar este assunto. Os inibidores do receptor do factor de crescimento epidérmico (EGFRI) inibem a transdução de sinal após a estimulação do receptor do factor de crescimento epidérmico, inibindo potencialmente a proliferação celular, a migração, aumentando a apoptose e diminuindo a transcrição do ADN (33). Diver- 6 – QUIMIOPROFILAXIA DO CANCRO ANAL O cancro anal é uma neoplasia rara, responsável por 1,6% dos cancros do aparelho digestivo nos Estados Unidos, tendo sido estimado o aparecimento de 4660 novos casos em 2006 (164). Existem diversos factores de risco estabelecidos nomeadamente, o sexo feminino, a infecção pelo vírus do papiloma humano (HPV), o número de parceiros sexuais, as verrugas genitais, o tabagismo, o sexo anal e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana adquirida (VIH). Maioritariamente, 138 Ana Isabel Vieira, Rui Loureiro a terapêutica antiretroviral altamente activa (“highly active antiretroviral therapy”) (HAART) parece ter uma influência, quanto muito, modesta na prevalência de lesões intraepiteliais pavimentosas anais (167), tendo a incidência do CA continuado a subir apesar da utilização generalizada de HAART. o cancro anal é do tipo pavimentocelular (CA), sendo o adenocarcinoma considerado como de origem rectal (165). O ADN do HPV é isolado em 46 a 100% dos CA invasivos, mais frequentemente o HPV 16. À semelhança do que sucede com o cancro do colo do útero, o CA tem origem em lesões precursoras, a displasia intraepitelial anal, que evolui do baixo para o alto grau e, finalmente, CA. Recentemente foi aprovada uma vacina tetravalente contra o HPV (tipos 6.11.16.18) que é eficaz para a prevenção do cancro do colo do útero e lesões precursoras (166). Nos estudos realizados, a sua eficácia em homens não foi convenientemente avaliada, tendo sido apenas estudada a sua segurança e imunogenicidade em indivíduos dos 9-15 anos (166) . Esperam-se resultados quanto à sua eficácia no sexo masculino para o ano de 2007 que, caso se confirme, podem levar à aprovação da vacina para a prevenção de CA. O papel da infecção por VIH no desenvolvimento do CA não está claro. Os valores de linfócitos CD4+ estão inversamente relacionados com a detecção do HPV no ânus dos doentes infectados com VIH (167). No entanto, CONCLUSÃO Actualmente, no que respeita à quimioprofilaxia das neoplasias gastrointestinais, existe uma variedade de agentes potencialmente eficazes (quadro 1), que nos permitem encarar com optimismo a possibilidade de , no futuro, prevenir estas neoplasias. Apesar da quimioprofilaxia poder ser importante, principalmente nos indivíduos com risco elevado para o desenvolvimento de neoplasias, o balanço do risco/benefício destes agentes tem de ser cuidadosamente analisado. Nesta área em grande desenvolvimento, são necessários mais estudos para definir estratégias e emitir recomendações para a prática clínica. QUADRO 1 – EFICÁCIA DOS PRINCIPAIS AGENTES ESTUDADOS PARA A QUIMIOPREVENÇÃO DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS CPC esófago AINE/AAS Antioxidantes Ácido fólico IBP Erradicação Hp Cálcio AUDC Fibras Estatinas 5-ASA Zinco Vacina HPV +/ ? – +/? ADC esofágico e gástrico proximal ADC gástrico distal – – + ? + Linfoma gástrico Tipo MALT ADC delgado CCR – + CA – +/? +/? + + + +/? +/? + ? Legenda: + eficaz; +/? estudos com eficácia, mas ainda não comprovada; ? eficácia não esclarecida; - não eficaz 139 ? QUIMIOPROFILAXIA DAS NEOPLASIAS GASTROINTESTINAIS BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. Harvard report on Cancer Prevention, Volume 1: Causes of Human cancer. Cancer causes and control 1996; 7:1. Harvard report on Cancer Prevention, Volume 2: Causes of Human cancer. Cancer causes and control 1997; 8:S1. Danaei G, Vander Hoorn S, Lopez AD et al. Causes of cancer in the world: comparative risk assesment of nine behavioural and environmental risk factors. Lancet 2005; 336:1784. Hakama M. Chemoprevention of cancer. Acta Oncol. 1998;37(3):227-30. PaganelliG, Biasco G, Brandi G et al. 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Os AINEs clássicos inibem reversivelmente a ciclooxigenase 1 (COX-1) e a ciclooxigenase 2 (COX-2) e a aspirina bloqueia irreversivelmente ambas as COX. A sua prescrição alargada, sobretudo na população idosa, o grupo etário com maior risco de complicações da UP (hemorragia e perfuração), criou a necessidade de implementar estratégias para lidar com os riscos associados que culminaram em recomendações divulgadas em «guidelines». A introdução recente no mercado dos inibidores da COX-2 (COXIBs), que inibem selectivamente a produção de prostaglandinas nos locais de inflamação, parecia ser a alternativa segura aos AINEs clássicos nos grupos de risco de complicações gastrointestinais (GI) e efectivamente verificou-se diminuição da toxicidade GI. No entanto, a observação do aumento de incidência de acidentes cardiovasculares, particularmente com o rofecoxib, fez cair abruptamente a prescrição dos COXIBs e aumentar paralelamente o uso dos AINEs clássicos. Publicações recentes mostraram que esta inversão na prescrição dos AINEs não foi PATOGÉNESE Os AINEs alteram a síntese de prostanóides, através da inibição da COX, a enzima responsável pela conversão do ácido araquidónico em prostanglandinas. A fosfolipase A, em resposta a estímulos de natureza diversa (físicos, químicos, inflamatórios e mitogénicos) dá origem ao ácido araquidónico que é convertido em múltiplos prostanóides pela acção da COX-1 e COX-2, que têm expressão em diferentes tecidos alvo (quadro 1). A COX-1 é responsável pela produção de prostaglandinas protectoras da mucosa gástrica cuja acção se traduz na produção do muco gástrico, diminuição da secreção ácida, aumento da glutationa e optimização do fluxo sanguíneo (quadro 2). Nas plaquetas, a activação da COX-1 despoleta a síntese de tromboxano de que resulta agregação plaquetária, vasoconstrição e proliferação do músculo liso. 149 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS brio entre o tromboxano e a prostaciclina, um anulando o efeito do outro, enquanto os COXIBs, inibindo selectivamente a prostaciclina, aumentam o risco de hipertensão arterial, de formação de placa aterogénica e resposta trombótica aumentada, cujo somatório se traduz em maior prevalência de acidentes cardiovasculares. Igualmente importante é a descoberta recente de que o ibuprofeno compete com a aspirina na ligação à ciclooxigenase plaquetária impedindo o acesso da aspirina ao local de acetilação, passo necessário para a inibição da agregação plaquetária. Portanto, a associação aspirina – ibuprofeno pode limitar o efeito cardiovascular protector da aspirina. É possível que este efeito do ibuprofeno exista noutros AINEs, nomeadamente a indometacina. QUADRO 1 – PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR AINES – PATOGÉNESE Fosfolipase A Ácido araquidónico COX-1 Estomago Intestino Rim Plaquetas (–) AINES COX-2 Locais de inflamação – macrófagos – sinoviócitos QUADRO 2 – LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR AINES D i s f u n ç ã o P L T COX -1 (–) PGE1 PGE2 PGI2 < muco < HCO3 < fluxo sanguíneo + NÃO ESTERÓIDES RISCO GI DOS AINES AINEs clássicos Sendo os AINEs fármacos eficazes e universalmente prescritos nas doenças reumatológicas o seu calcanhar de Aquiles é a toxicidade GI. Nos consumidores de AINEs, o risco de dispepsia é 1,5 – 2 vezes superior e 15 a 30% dos doentes submetidos a endoscopia têm úlcera péptica (UP). A taxa anualizada de incidência de UP sintomática e UP complicada é de 1-4%, um risco estimado 3 a 5 vezes superior ao dos não consumidores. Um estudo populacional que incluiu 2061 doentes hospitalizados por perfuração de UP concluiu que a taxa de mortalidade a 30 dias, após ajustamento para o sexo, idade, co-morbilidades, existência prévia de UP não complicada e uso de fármacos anti-ulcerosos, era superior nos consumidores de AINEs comparativamente aos não consumidores, com risco relativo (RR) de 1,8. A probabilidade de aparecimento de UP sintomática ou complicada é maior em determinados grupos de risco: doentes com idade superior a 60 anos, queixas dispépticas, ante- UG/UD RR = 4/RR = 2–3 Hemorragia digestiva (RR = 2,6 – 4) A COX-2, além de ser um elemento chave no processo inflamatório, originando prostaglandinas mediadoras da dor e inflamação, é responsável pela produção de prostaciclina que ocorre nas síndromes clínicas de activação plaquetária e tem acção contrária ao tromboxano: inibe a agregação plaquetária e a proliferação do músculo liso, e é vasodilatadora. O efeito terapêutico dos AINEs deriva da inibição da COX-2, enquanto os efeitos adversos, particularmente no tracto GI, resultam da inibição da COX-1. São conhecidas importantes interacções farmacocinéticas entre os AINEs e a aspirina. A aspirina e os AINEs clássicos (inibidores da COX-1 e da COX-2) mantêm o equilí150 Rute Cerqueira cedentes de UP, co-terapia com anti-agregantes plaquetários, corticóides ou hipocoagulantes. É de realçar que além dos AINEs serem factor etiológico de UP, as suas propriedades analgésicas e anti-inflamatórias mascaram os sinais clínicos, atrasando o diagnóstico no caso da perfuração, o que agrava a disfunção multiorgânica e aumenta o risco de sépsis. A infecção por Helicobacter Pylori (H Pylori), presente em 50% da população mundial, com taxas de infecção mais elevadas em indivíduos com mais de 50 anos, actua de forma sinergística com os AINEs no risco de complicações de UP. Actualmente, com a diminuição da prevalência da infecção, em paralelo com a melhoria de condições de vida, com políticas generalizadas de erradicação da bactéria e com o aumento da população geriátrica no mundo ocidental, principal grupo afectado pelas doenças reumatológicas, os AINEs são o factor de risco n° 1 da UP. Na família dos AINEs, a toxicidade GI varia com o fármaco usado (quadro 3). Os fármacos mais seguros são o ibuprofeno, o celecoxibe e o diclofenac, enquanto o naproxeno, a indometacina e o piroxicam, fármacos com longa semivida e consequente aumento do tempo de exposição da mucosa gástrica aos efeitos laterais, têm um risco acrescido. Independentemente do risco específico do fármaco, o risco de complicações GI: – aumenta com a dose: nos consumidores de baixa-média dose o RR é de 2,5, enquanto nos consumidores de dose alta o RR é de 4, 9, aproximadamente 2 vezes superior; – varia com o tipo de preparação usada: as preparações de libertação prolongada têm um RR de 6,5 – 1,4 a 2,7 superior ao das formulações standard. O aumento da exposição ao fármaco que ocorre com a diminuição da velocidade de eliminação, no caso de fármacos com longa semivida, e com absorção mais lenta, gradativa, no caso das preparações de libertação prolongada, resultam em inibição mais prolongada das COX 1 e 2 nos tecidos alvo. Todas as classes de anti-inflamatórios – AINEs, COXIBs e aspirina – têm toxicidade GI associada à dose e esta relação é linear. COXIBs Num estudo recente fármaco-placebo, efectuado em doentes com factores de risco de UP (idade superior a 60 anos e/ou antecedentes de UP) que usavam AINEs ou COXIBs, cujo objectivo foi determinar a eficácia do esomeprazol na prevenção da UP, as taxas de incidência de UP foram semelhantes no grupo de doentes AINEs-placebo (17,1%) e no grupo de doentes COXIBs – placebo (16,5%). No estudo Approve (Adenomatous Polyp Prevention Trial), a incidência de UP complicada no grupo de doentes a tomar rofecoxibe 25mg/dia foi 3,8 vezes superior à do grupo placebo. No entanto, o risco absoluto de UP complicada era baixo (0,23 eventos por 100 doentes/ano). Um estudo populacional que incluiu 1561 casos de complicações GI e 10000 controlos avaliou o RR das complicações GI em doentes expostos a AINEs tradicionais e COXIBs. Comparando com o grupo controlo, os AINEs e os COXIBs estavam associados a hemorragia digestiva, com RR, respectivamente, de 3,4 e de 2,6. O RR geral dos COXIBs comparativamente aos dos AINEs clássicos foi 0,8 (intervalo de confiança (IC) 95%:0,6-1,1), diferença não estatisticamente significativa, QUADRO 3 – TIPO DE AINES E RISCO DE ÚLCERA Grupo de risco Fármaco Baixo ibuprofeno celecoxibe diclofenac RR Médio indometacina naproxeno piroxicam 7,2 8,1 13,7 Alto quetoprofeno azapropazona 23,7 31,5 2 2,7 3,7 151 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS mas 0,6 (IC 95%:0,4-0,9), diferença estatisticamente significativa, no subgrupo de doentes que não tomava aspirina. No entanto, a diferença de risco entre AINEs clássicos e COXIBs não era linear quando se comparava individualmente os fármacos. Após ajustamento para idade, sexo, história de UP e uso concomitante de aspirina, esteróides e hipocoagulantes, o ibuprofeno tinha um perfil de segurança superior ao dos COXIBs: RR de 2 versus 2,3 para o rofecoxibe e 2.7 para o celecoxibe. A dose diária de COXIBs tinha também impacto no risco: RR de 3,1 e 2,3 para consumidores, respectivamente, de alta e baixa-média dose. Outro estudo populacional que avaliou a mortalidade a 30 dias por perfuração de UP mostrou que o aumento da taxa de mortalidade era semelhante no grupo de doentes que usavam AINEs clássicos e COXIBs, ambas superiores à taxa de mortalidade do grupo de doentes isentos de ambas medicações, concluindo que o uso destas 2 classes de fármacos estava associado a pior prognóstico. Vários estudos endoscópicos mostraram que o uso de inibidores da COX-2 está associado a menores taxas de prevalência de UP do que o consumo de AINEs clássicos. Três estudos de grande escala, com longos «followup» e doses supra-terapêuticas caracterizaram melhor as implicações GI dos COXIBs relativamente aos AINEs clássicos. O VIGOR (VIOXX Gastrointestinal Outcome Research) avaliou prospectivamente a segurança e eficácia do rofecoxibe em 8076 doentes com artrite reumatóide que foram randomizados em 2 grupos: toma bi-diária de rofecoxibe 50 mg ou naproxeno 500 mg. Os consumidores de rofecoxibe tiveram metade dos eventos GI (UP sintomática e complicações de UP), RR=0,5; IC 95% (0,3-0,6), e menos 60% de UP complicada, RR = 0,4;IC 95% (0,2-0,8) por comparação com o uso de naproxeno. O Celecoxib Long Arthritis Safety Study (CLASS), cujo objectivo principal era a comparação das complicações GI em 3 grupos de doentes tratados com altas doses de celecoxi- NÃO ESTERÓIDES be, diclofenac e ibuprofeno concluiu que a taxa de incidência dos eventos GI era significativamente menor no grupo tratado com celecoxibe (RR= 0,59; IC 95%, 0,38-0,94), mas a taxa de incidência de complicações de UP era semelhante nos 3 grupos. No entanto, no sub-grupo de doentes que não tomava aspirina (cerca de 80% do total de doentes) as complicações GI eram significativamente menores no grupo do celecoxibe (RR= 0,35; IC 95% = 0,14-0,98). No Therapeutic Arthritis Research and Gastrointestinal Event Trial (TARGET), que randomizou 18325 doentes com osteoartrite que podiam fazer co-terapia com aspirina em baixa dose, a comparação do lumirocoxibe com o ibuprofeno e o naproxeno mostrou diminuição de 66% da incidência de complicações da UP, diminuição ainda mais acentuada na população não consumidora de aspirina (menos 79%). Na população que tomava aspirina, foram observados menos casos de UP sintomática e UP complicada no grupo do lumirocoxibe, mas a diferença de incidência destes eventos não foi significativa comparativamente aos 2 AINEs clássicos, estando de acordo com os resultados do estudo CLASS. Em conclusão, os COXIBs são fármacos com risco GI, mas o risco absoluto é baixo e significativamente inferior ao dos AINEs clássicos. O seu perfil de segurança GI, amplamente demonstrado na população não consumidora de aspirina, é anulado pela co-terapia com aspirina e é provavelmente diminuído pela presença de factores de risco «major» (antecedentes de UP). O aumento do risco cardiovascular do rofecoxibe em doses terapêuticas, via inibição da prostaciclina, foi demonstrado em 2 grandes estudos, no Vioxx GI Safety Of Rofecoxib Trial e no Adenomatous Polyp Prevention on Vioxx Trial, o que motivou a sua retirada do mercado. Nos estudos CLASS e TARGET o perfil de segurança cardiovascular foi semelhante, respectivamente, entre o celecoxibe, ibuprofeno e diclofenac e entre o lumiracoxibe e o ibu152 Rute Cerqueira tar em sensibilidade aumentada à aspirina, por oposição à observação de existência de resistência à aspirina em doentes obesos. Um estudo fármaco-placebo com 3 grupos de doentes (aspirina-placebo, aspirina- naproxeno e aspirina-celecoxibe) mostrou que a incidência de UP estava significativamente aumentada nos grupos aspirina- celecoxibe (2,6 superior) e aspirina –naproxeno (3,7 superior) por comparação com o grupo aspirina-placebo. No tracto digestivo, a associação de AINEs clássicos ou COXIBs com aspirina potencia o aparecimento de UP e aumenta o risco de hemorragia digestiva mediado por disfunção plaquetária. Clopidrogel, um novo anti-agregante plaquetário com mecanismo de acção independente da aspirina (não interfere com a síntese de prostaglandinas) e praticamente sem capacidade de indução de UP, mostrou ser mais seguro que a aspirina em relação às complicações GI nos doentes sem factores de risco GI. Baseado nestes resultados, o clopidrogel é actualmente recomendado pelo Colégio Americano de Cardiologia nos doentes com intolerância à aspirina (hipersensibilidade ou contra-indicações GI). No entanto, os resultados de estudos recentes vieram questionar esta recomendação. Numa análise de 70 doentes com followup de 1 ano, a taxa de incidência de hemorragia digestiva associada ao clopidrogel foi de 12%, ocorrendo apenas em doentes com antecedentes de hemorragia digestiva. Em 2 estudos prospectivos, que incluíram doentes com hemorragia digestiva prévia, após erradicação do H Pylori, procedeu-se à randomização em 2 grupos, clopidrogel (grupo 1) ou aspirina e esomeprazol (grupo 2). As taxas de recidiva de hemorragia digestiva foram significativamente mais altas no grupo do clopidrogel por comparação com o grupo do esomeprazol e aspirina – 8,6% versus 0,7% e 13,6% versus 0%. Os resultados destes estudos sugerem que, nos doentes com hemorragia digestiva asso- profeno. No entanto, um estudo randomizado em que o controlo da tensão arterial foi efectuado com monitorização ambulatória contínua mostrou que o celecoxibe estava associado a aumento da tensão arterial. Face a estes achados discordantes, permanece por esclarecer a segurança cardiovascular do celecoxibe. Aspirina A aspirina em baixa dose (75-300mg/dia), administrada para prevenção cardiovascular aumenta 2 a 4 vezes o risco GI. Doses tão baixas como 10 mg podem diminuir a síntese de prostaglandinas gástricas e causar erosões gástricas. Uma meta-análise recente mostrou um risco 2,5 vezes aumentado de hemorragia digestiva em consumidores de aspirina. No intervalo de 4 anos, no «United Kingdom Ischemic Attack Study» as complicações GI em doentes que tomavam aspirina variaram entre dispepsia leve (31%) e episódios graves de hemorragia digestiva e perfuração (3%). Weil et. al mostraram que o risco de hemorragia GI aumenta de forma crescente com a dose: odds ratio de 2,3 para 75 mg, 3,2 para 150 mg e 3,9 para 300 mg. Dado que, mesmo baixas doses de aspirina, estão associadas a toxicidade GI, não existe dose isenta de risco e as tentativas de o minimizar com formulações «enteric-coated e buffered» não foram bem sucedidas. Um estudo prospectivo em 991 doentes que tomavam aspirina em baixa dose (75325mg/dia) para prevenção secundária cardiovascular, revelou uma taxa de incidência de HDA por UP de 1,5%/ano e que a hipertensão arterial, antecedentes de UP, educação superior e baixo índice de massa corporal eram factores de risco. Os autores formularam a hipótese de que a educação terciária estava associada a stress/ maior pressão laboral, co-factor etiopatogénico da UP, e a maior adesão terapêutica de que resultava risco acrescido de toxicidade GI. O baixo índice de massa corporal poderia resul153 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTERÓIDES drogel e aspirina e 5,3 para aspirina e antagonistas da vitamina K versus 1,8 para aspirina, 1,1 para clopidrogel e 1,8 para os antagonistas da vitamina K. Estes dados sublinham a importância da avaliação do risco GI em doentes a iniciar terapêutica antitrombótica. ciada à aspirina, a melhor estratégia é a associação dum inibidor da bomba de protões (IBP) à aspirina. A observação de que todas as úlceras excepto uma reapareceram no mesmo local da UP prévia sugerem que o clopidrogel, de forma análoga à aspirina, aumenta a tendência hemorrágica em úlceras subjacentes que ocorrem em áreas de cicatrização da mucosa. AINEs e H Pylori A idade avançada é, por si só, um factor de risco devido a alterações fisiológicas (diminuição da produção das prostaglandinas) que alteram o equilíbrio dos mecanismos de agressão/ protecção da mucosa gástrica em favor do primeiro e à maior prevalência da associação de vários factores de risco, nomeadamente a associação dos AINEs com terapêutica anti-agregante plaquetária, hipocoagulantes e corticóides. Embora não tenha sido possível definir um limiar de idade para o aumento de risco, o risco aumenta linearmente a uma taxa de aproximadamente 4% por ano de idade avançada. Dos factores de risco mencionados de toxicidade GI, apenas um, a infecção por H Pylori pode ser removido, e uma revisão sistemática que analisou a relação entre infecção por H Pylori e consumo de AINEs no risco de UP enfatizou a importância desta medida ao mostrar: – efeito aditivo dos 2 factores no risco de UP: 6 vezes maior nos doentes com infecção por H Pylori não consumidores de AINEs, 5 vezes maior nos doentes consumidores de AINEs sem infecção por H Pylori e 10 vezes aumentado nos doentes H Pylori positivo consumidores de AINEs, comparativamente aos doentes H Pylori negativo não consumidores de AINEs. – efeito sinergístico dos 2 factores no risco de hemorragia digestiva: a prevalência de infecção por H Pylori era 4 vezes superior nos doentes com hemorragia digestiva não consumidores de AINEs, o consumo de AINEs era 11,5 vezes mais frequente nos doentes com hemorragia digestiva sem infecção por H Pylori, mas o risco de hemorragia digestiva aumentava para 20,8 nos doentes consumidores de AINEs com infecção por H Pylori comparativamente aos doentes não consumidores de AINEs e H Pylori negativo. No estudo VIGOR, o risco residual de UP no grupo do rofecoxibe era duas vezes superior nos doentes com infecção por H Pylori por comparação com os doentes H Pylori negativo. Actualmente, é recomendado erradicar o H Pylori em todos os doentes com factores de AINEs e outros fármacos O RR de hemorragia GI aumenta mais de 10 vezes na co-terapia AINEs – aspirina por comparação ao uso isolado de um dos fármacos. A associação AINEs – corticoterapia aumenta também o risco GI mas, contrariamente à aspirina, o uso isolado de esteróides não aumenta o risco. Está demonstrado um aumento da eficácia terapêutica na combinação aspirina-clopidrogel versus uso isolado de aspirina na prevenção de trombos vasculares, e associações de antiagregantes plaquetários com hipocoagulantes são prescritas em doentes com fibrilhação auricular e cardiopatia isquémica. Um estudo de base populacional mostrou que as combinações de terapêutica anti-trombótica aumentavam sinergisticamente o risco de hemorragia digestiva, sendo o efeito da combinação superior à soma dos efeitos das fármacos em monoterapia: 7,4 para o clopi154 Rute Cerqueira Verificou-se também sinergia na combinação ISRS-aspirina, por comparação entre o risco de hemorragia digestiva desta associação, 5,2 e 7,2, e o risco de hemorragia digestiva inerente ao consumo de aspirina, que varia entre 2,3 e 3,9. Actualmente não é recomendada a prevenção das lesões GI nos doentes com esta associação mas estes estudos sugerem que existe toxicidade GI da co-terapia ISRSAINEs. A confirmarem-se estes dados, o seu impacto na saúde pública não é desprezível, face à frequência da sua prescrição para doenças comuns, o que torna provável a associação no doente individual. risco GI. Não está provado o custo-benefício da erradicação do H Pylori em todos os doentes que iniciam AINEs. AINEs e inibidores selectivos da recaptação da serotonina Os inibidores selectivos da recaptação da serotonina (ISRS) são fármacos frequentemente utilizados na terapêutica da depressão, ansiedade e alterações obsessivo-compulsivas. Não há muitos dados acerca do efeito desta classe de fármacos no tracto GI. O mecanismo envolvido na hemorragia digestiva resulta da inibição da recaptação da serotonina pelas plaquetas. O processo de agregação plaquetária é facilitado pela libertação plaquetária da serotonina. Dado que as plaquetas não produzem serotonina, obtendo-a a partir do processo de recaptação, os ISRS induzem deficiência intracelular do mediador. Por sua vez, a menor libertação de serotonina causa diminuição da agregação plaquetária e consequente aumento do tempo de hemorragia. Apesar dum estudo preliminar mostrar uma associação entre ISRS e hemorragia digestiva por erosões GI, não foi demonstrado o aumento de risco de outros tipos de hemorragia onde não existe trauma tecidular, como é o caso da hemorragia cerebral. A necessidade de lesões pré-existentes pode explicar a associação entre os ISRS e os AINEs no que respeita a toxicidade GI. Dois estudos cujo objectivo foi a avaliação da ocorrência de hemorragia digestiva em doentes que consumiam ISRS e/ou AINEs comparativamente a indivíduos isentos de ambas as terapêuticas mostraram efeito sinergístico desta associação: – RR de 2,6 e 3,6 para o consumo isolado de ISRS – RR de 3,7 e 4,5 para o consumo isolado de AINEs – RR de 15,6 e 12,2 para a associação dos 2 fármacos, superior à soma dos efeitos isolados (15,6 versus 2,6+3,7 e 12,2 versus 3,6+4,5). PREVENÇÃO DO RISCO GI O primeiro passo para reduzir a toxicidade GI passa pela avaliação dos riscos e benefícios da terapêutica com AINEs, que dependem do doente em particular (pertence a um grupo de risco?) do tipo, dose e duração do tratamento com o AINE específico e da co-terapia com anti-agregantes plaquetários, hipocoagulantes, corticosteróides e, provavelmente, ISRS. Se não é possível a terapêutica com analgésicos não AINEs, deve ser prescrito o AINE de menor risco na dose mínima eficaz e evitar as associações com fármacos que aumentam o risco GI; nos doentes com risco GI, devem ser administrados agentes anti-ulcerosos e erradicar o H Pylori. Estudos epidemiológicos sugerem que a redução da dose de AINEs diminui o risco GI e que o ibuprofeno é um AINEs muito seguro em doses inferiores a 1200 g/dia. Os estudos VIGOR, CLASS e TARGET mostraram vantagem dos COXIBs comparativamente aos AINEs clássicos na avaliação do perfil de segurança GI. A única excepção foi o ibuprofeno cujo risco foi ligeiramente inferior ao dos COXIBs no estudo VIGOR. Os estudos efectuados em voluntários e doentes reumatológicos demonstraram a eficácia relativa de numerosos agentes na prevenção da UP associada aos AINEs: 155 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS – misoprostol, o análogo da prostaglandina E1, na prevenção da UG e UD; – os antagonistas dos receptores da histamina 2 (anti-H2) na prevenção da UD; – os IBPs na prevenção da UG e UD (quadro 4). semelhante na prevenção da UD, mas menor eficácia da ranitidina na prevenção da UG. Dois grandes estudos randomizados com desenho similar que incluíram doentes com erosões gastroduodenais ou UP compararam o omeprazol com a ranitidina (ASTRONAUT) e o omeprazol com o misoprostol (OMNIUM). O estudo ASTRONAUT comparou ranitidina 150 mg bi-diária com omeprazol 20mg e omeprazol 40 mg na terapêutica das lesões (4 a 8 semanas) e na prevenção secundária da recidiva de UP (6 meses posteriores à cicatrização das lesões). O omeprazol foi significativamente superior à ranitidina: – na terapêutica, observando-se cicatrização das lesões em 80% dos doentes na dose de 20 mg e 79% na dose de 40mg versus 63% de sucesso terapêutico com a ranitidina – na prevenção secundária da UP, com ausência de lesões aos 6 meses em 72% dos doentes a tomar omeprazol por comparação com 59% dos doentes a tomar ranitidina A frequência de efeitos laterais foi similar em ambos os grupos. O estudo OMNIUM comparou misoprostol 200 g bi-diário com omeprazol 20mg e omeprazol 40 mg na terapêutica das lesões (4 a 8 semanas) e na prevenção secundária da recidiva de UP (6 meses posteriores à cicatrização das lesões). O omeprazol foi significativamente superior ao misoprostol: – na terapêutica, com a dose de 20mg, observando-se cicatrização das lesões em 76% dos doentes versus 71% de sucesso terapêutico com o misoprostol – na prevenção secundária da UP, com ausência de lesões aos 6 meses em 61% dos doentes a tomar omeprazol por comparação com 48% dos doentes a tomar misoprostol A frequência de efeitos laterais foi superior no grupo do misoprostol. Dado que não se verificaram diferenças na eficácia entre as 2 doses de omeprazol, conclui-se que o omeprazol 20mg era superior à raniti- QUADRO 4 – PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR AINES Tipo de fármaco UG UD misoprostol + + anti-H2 – + IBP ++ ++ NÃO ESTERÓIDES Uma meta-análise mostrou que o misoprostol,o único agente gastro-protector estudado em grande escala, usado em associação com os AINEs diminuía 74% a ocorrência de UG e 53% a de UD. No estudo MUCOSA, misoprostol versus placebo, verificou-se uma diminuição significativa da hemorragia digestiva (de cerca de 40%) e da perfuração (menos 90%) no grupo do misoprostol. O uso do misoprostol é limitado pelos efeitos colaterais frequentes, dor abdominal e diarreia, que levam ao abandono da terapêutica. Em estudos prévios, o uso dos anti-H2 foi desapontador na prevenção de UP. Dois grandes estudos fármaco-placebo mostraram diminuição significativa da incidência de UD, mas ausência de eficácia na prevenção de UG. Este «handicap» é uma limitação séria dado que a maioria das UP associadas a AINEs são gástricas. Uma análise prospectiva também não mostrou diminuição das complicações da UP com os anti-H2. A comparação do misoprostol, 800 g repartidos por 4 tomas diárias, com ranitidina, 150 mg duas vezes/dia, em estudo randomizado com a duração de 8 semanas, em doentes com consumo contínuo de AINEs, mostrou eficácia 156 Rute Cerqueira dina e ao misoprostol na terapêutica e prevenção secundária das UP associadas aos AINEs. Uma crítica deste estudo foi a utilização de dose sub-terapêutica do misoprostol (200 g bi-diária). Para ultrapassar este factor de insucesso relativo do misoprostol, foi efectuado um estudo fármaco-placebo em doentes com antecedentes de UG e sem infecção por H Pylori que comparou lansoprazol na dose de 15 e 30 mg com misoprostol 200 g 4 vezes/dia. O misoprostol e o lansoprazol foram significativamente mais eficazes na prevenção da recidiva de UP comparando com o placebo e não se observaram diferenças entre o misoprostol e o lansoprazol. No entanto, os autores concluíram que o misoprostol tinha desvantagens práticas sobre o misoprostol que condicionavam a adesão à terapêutica: 4 tomas diárias versus 1 toma diária. Um estudo randomizado em doentes reumatológicos com factores de risco, sem UP na endoscopia basal, comparou omeprazol 20 mg com pantoprazol 20mg e pantoprazol 40 mg diários na prevenção de UP. Aos 6 meses, a maioria dos doentes (mais de 90%) estava livre de lesões gastroduodenais (90% e 93%, respectivamente nos grupos do pantoprazole 20 mg e 40 mg e 89% no grupo do omeprazol 20 mg) tendo os 3 tipos de fármacos similar eficácia e perfil de segurança. A comparação do esomeprazol com placebo na prevenção primária, UP «de novo», associada ao uso de AINEs clássicos e COXIBs em doentes de risco, mostrou eficácia significativamente superior para o esomeprazol: – no sub-grupo de doentes a usar AINEs clássicos, a incidência de UP foi 17% na associação AINEs-placebo versus 6,8% na associação AINEs-esomeprazol 20mg e 4,8% na associação AINEs-esomeprazol 40 mg – no sub-grupo de doentes a usar COXIBs, 16,5% dos doentes a tomar COXIBs-placebo desenvolveram UP versus 0,9% dos doentes a tomar COXIBs-esomeprazol 20mg e 4,1% dos doentes a tomar COXIBs-esomeprazol 40 mg. De forma análoga aos estudos com omeprazol e pantoprazol com 2 doses diferentes, a dose superior de esomeprazol não conferiu vantagem na prevenção da UP. Este estudo tem a particularidade de ser o único que avalia um IBP na prevenção primária, uma vez que os restantes estudos que avaliaram a eficácia dos IBPs na profilaxia da UP associada a AINEs foram efectuados em doentes randomizados após cicatrização de UP (prevenção secundária). A incidência de UP foi menor no grupo COXIB-IBPs (3%) do que no grupo AINEs-IBP (6%), diferença não estatisticamente significativa. Esta tendência para um ganho de segurança GI, ainda que modesto, com a associação COXIB-IBPs apoia a recomendação defendida por alguns peritos da prescrição da co-terapia COXIB-IBPs em doentes com alto risco de toxicidade GI ou com necessidade de doses supra-terapêuticas de AINEs clássicos. A reforçar a defesa da associação COXIBs-IBPs em alternativa à substituição dos AINEs clássicos por COXIB isolado, um estudo randomizado recente mostrou que a recidiva de hemorragia digestiva por UP aos 13 meses era significativamente mais elevada no grupo que usava celecoxibe 200 mg, duas tomas diárias, que no grupo que usava celecoxibe, em dose similar, associado a esomeprazol 20 mg 2 vezes/dia (8,9% versus 0%, p=0,0004). Os autores sugeriram que as actuais recomendações, estrictas, (associação AINEs clássicosIBPs) deviam ser substituídas pela recomendação lata da profilaxia com IBPs em doentes de alto risco GI, em terapêutica prolongada com AINEs clássicos ou COXIBs. Em estudo multicêntrico, caso-controlo, que englobou mais de 2000 doentes com hemorragia digestiva associada a AINEs, antiagregantes plaquetários e hipocoagulantes, a co-terapia com IBPs diminuiu o risco de hemorragia digestiva em 77% e a co-terapia com anti-H2 diminuiu o risco de hemorragia digestiva em 35%. Analisando por sub-grupos: – o risco de hemorragia digestiva foi diminuído 82% pelo IBP e 61% pelos anti157 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS H2 nos doentes que usavam AINEs ou aspirina, independentemente da dose da aspirina; – no grupo sob terapêutica isolada com aspirina observaram-se reduções significativas do risco com IBPs (menos 70%) e com os anti-H2 (menos 60%) mas, nos consumidores de doses superiores a 50 mg, o efeito preventivo de hemorragia digestiva manteve-se apenas para os IBPs (menos 81%); – de forma similar, apenas os IBPs foram eficazes na prevenção de hemorragia digestiva associada ao uso de clopidogrel e ticlopidina – diminuição aproximada de 80%; – não se verificou efeito gastroprotector dos IBPs nem dos antagonistas H2 nos doentes que tomavam isoladamente hipocoagulantes. O facto da hemorragia digestiva associada ao uso de hipocoagulantes não depender da existência de lesões prévias do tracto GI pode explicar a ausência de eficácia dos anti-ulcerosos neste grupo de doentes. Em doentes com complicação de UP associada a aspirina em baixas doses e com infecção por H Pylori, após erradicação da bactéria, randomizaram-se 2 grupos para avaliar a recorrência de complicações de UP aos 12 meses: placebo versus lansoprazol 30mg. A recidiva de complicações GI foi significativamente inferior no grupo do lansoprazol por comparação com o placebo (1,6% versus 14,8%) sugerindo que o efeito ulcerogénico da aspirina não é totalmente abolido pela erradicação do H Pylori, sendo necessária a protecção com IBP. Em doentes com hemorragia digestiva associada a AINEs, um estudo randomizado (omeprazol EV em alta dose versus omeprazol EV em alta dose associado a misoprostol) (durante 6 semanas) que avaliou a recidiva e mortalidade da hemorragia digestiva, concluiu que a associação do misoprostol ao IBP não melhorava o prognóstico. Um estudo recente mostrou uma propriedade farmacológica única do rabeprazol: o NÃO ESTERÓIDES aumento da produção do muco gástrico e da mucina. A antagonização de factores de agressão GI dos AINEs (quadro 2) – aumento da barreira mucosa e melhor mecanismo de tamponamento gástrico – além do aumento do pH gástrico, denominador comum a todos os IBPs, pode conferir alguma vantagem a este IBP. Em conclusão: – os IBPs conferem protecção GI aos doentes que usam AINEs e/ou anti-agregantes plaquetários de forma mais eficaz que o misoprostol e a ranitidina, com perfil de segurança semelhante ao da ranitidina e superior ao do misoprostol (quadro 4). – a co-terapia AINEs-IBPs é superior à erradicação do H Pylori na diminuição do risco GI em doentes que usam AINESs – não há evidência de vantagem da associação IBP-misoprostol na prevenção da recidiva precoce de hemorragia digestiva por UP – nos doentes que desenvolvem complicações GI com aspirina em baixa dose a co-terapia aspirina – esomeprazol é mais eficaz na prevenção secundária do que a substituição da aspirina pelo clopidogrel. – a aspirina anula o efeito gastroprotector dos COXIBs por comparação aos AINEs clássicos e o ibuprofeno limita o efeito cardioprotector da aspirina. As recomendações actuais são: – rever as indicações da terapêutica com AINEs e os factores de risco GI e cardiovasculares do doente individual – prescrever os AINEs de menor risco para o doente (quadro 3) – ter atenção às combinações de fármacos – nos doentes de alto risco, erradicar o H Pylori e associar IBPs aos AINEs, na prevenção primária e secundária de UP (quadro 5) 158 Rute Cerqueira Devem ser tomadas iniciativas para sensibilizar os clínicos do risco GI dos AINEs e consequente necessidade da sua prevenção, e os doentes da necessidade de adesão à terapêutica gastroprotectora para optimizar a redução das complicações GI. QUADRO 5 – PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR AINES (CONT.) Rastreio inf H Pylori > 60 anos história prévia UP/HDA Altas doses de AINE co-terapia com anti-agregantes plaquetários co-terapia com corticóides co-terapia com anti-coagulantes co-terapia com ISRC? CONSIDERAÇÕES FINAIS As complicações GI dos AINEs continuam a ser responsáveis por uma fracção importante da morbilidade e mortalidade associada ao uso de AINEs, apesar das iniciativas para delinear e implementar estratégias para a sua redução. Certos grupos de doentes têm risco acrescido de toxicidade GI, nomeadamente os indivíduos com mais de 65 anos, antecedentes de UP, altas doses de AINEs e co-terapia com antiagregantes plaquetários, hipocoagulantes e corticóides. O aumento da população geriártrica, o maior grupo consumidor de AINEs e concomitantemente o maior grupo de risco, devido não só à idade mas também à maior prevalência de associações de AINEs com fármacos que potenciam o risco GI, impõem aos médicos uma avaliação cuidadosa dos benefícios e riscos dos AINEs. Particular atenção deve ser dada à evidência recente da associação AINEs – ISRS. O segundo desafio dos clínicos é a sensibilização do doente individual para a adesão à terapêutica de prevenção GI. Erradicar H Pylori IBP Apesar das recomendações da prevenção do risco GI nos doentes que consomem AINEs estarem divulgadas em «guidelines» e publicadas em revistas de grande impacto, existe evidência de que uma fracção considerável destes doentes com factores de risco não fazem co-terapia com fármacos gastroprotectores ou são sujeitos a terapêuticas preventivas de menor eficácia, tal como os anti-H2. Num grupo de risco (mais de 65 anos, antecedentes de UP, altas doses de AINEs e co-terapia com corticóides ou hipocoagulantes) apenas 27,2% dos doentes tomavam um fármaco gastroprotector. Os doentes com antecedentes de UP eram o sub-grupo com maior taxa de prevenção GI: 58%. Num estudo populacional que avaliou o impacto da terapêutica gastroprotectora nas complicações de UP, verificou-se que a falta de adesão à terapêutica (menos de 80% das tomas previstas do fármaco) aumentava 2,5 vezes o risco de UP sintomática ou complicações de UP. Estes dados sugerem que os doentes estão expostos a um risco GI desnecessário que provavelmente foi ampliado devido à diminuição da prescrição dos COXIBs (resultante da retirada do mercado do rofecoxibe por risco cardiovascular) e ao aumento compensatório da prescrição dos AINEs clássicos. As estratégias validadas para profilaxia GI são, em todos os doentes, a prescrição de AINEs de baixo risco GI e, nos doentes de risco, a erradicação do H Pylori e a associação AINEs-IBPs. 159 PREVENÇÃO DAS LESÕES GASTRODUODENAIS PROVOCADAS POR ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTERÓIDES REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. Fitzgerald GA, Patrono C. The COXIBS, selective inhibitors of ciclooxigenase-2. N Engl J Med 2001; 345 (6): 433-442. Catella – Lawson F, Reilly MP, Kapoor SC, et al. Ciclooxygenase inhibitors and the antiplatelets effects of aspirin. N Engl J Med 2001; 345:1809-1817. Ofman JJ, MacLean CH, Straus WL, et al. 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Cerca de 2-6% dos doentes internados em UCIs apresentam hemorragia digestiva clínicamente significativa – com repercurssão hemodinâmica e necessidade transfusional – o que tem repercurssões na taxa de mortalidade (9,10,13) . Num estudo, os doentes com evidência endoscópica de úlcera, hemorragia ou ambas, nas primeiras 18 horas após a admissão numa UCI médica, apresentaram uma mortalidade de 57% enquanto nos doentes com mucosa gástrica normal, erosões sem hemorragia ou petéquias, a mortalidade foi de 24% (4). Segundo vários autores, a mortalidade dos doentes críticos com hemorragia digestiva alta varia de 50 a 77%, sendo a causa de morte a doença de base ou falência multiorgânica (4,11,12) . A elevada mortalidade reforça a importância da terapêutica de prevenção. Nos últimos vinte anos, a adopção generalizada de medidas preventivas levou a uma diminuição significativa da incidência da hemorragia por úlcera de stress que, no entanto, continua a ser um problema potencial dos doentes em estado crítico. Os doentes críticos admitidos em UCIs são susceptíveis a várias complicações, umas relacionadas com a doença de base, outras com a medicação ou com a instabilidade hemodinâmica e consequente hipóxia tecidual. Desde as descrições iniciais nos anos 30, do século passado, por Curling e Cushing, de ulcerações gástricas no contexto de queimaduras graves e de traumatismo do SNC, tem sido reconhecido que o stress fisiológico da doença grave se pode associar a lesões da mucosa gástrica (1). De facto, estas lesões são frequentes nos doentes em estado grave e múltiplos estudos mostram que nas primeiras 24 horas após a admissão em UCIs, 75-100% dos doentes críticos têm evidência endoscópica de lesões do tracto gastrointestinal superior(2-6). Numerosos termos têm sido utilizados para descrever estas lesões : gastrite hemorrágica, ulcerações de stress , erosões de stress , doença da mucosa relacionada com o stress , para citar alguns – todos implicam um stress fisiológico que causa uma anomalia morfológica da mucosa gástrica (1). Morfológicamente as lesões podem ser de dois tipos: difusas e superficiais (erosões) e focais e mais profundas, que penetram a submucosa (úlceras) e atingem com maior frequência o fundo e corpo gástricos (7). Habitualmente são precedidas por congestão da mucosa, o que pode levar a hemorragia II – ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA Tanto a etiologia como a fisiopatologia das lesões da mucosa gástrica relacionadas com o stress parecem ser multifactoriais e não estão completamente esclarecidas (1). A mucosa gástrica saudável é um sistema dinâmico que pressupõe, a cada momento, 163 PREVENÇÃO DA ÚLCERA DE STRESS um equilíbrio entre factores agressivos e mecanismos de protecção, surgindo lesão quando este equilíbrio é perturbado. São factores de defesa da mucosa: – As prostaglandinas, que a protegem estimulando o fluxo sanguíneo, a produção de muco e bicarbonato bem como o crescimento celular e a reparação do epitélio (14). – A barreira de muco que não só constitui um obstáculo físico à passagem de ácido e pepsina, como também, por reter bicarbonato, contribui para o equilíbrio ácido-base intramucoso, importante na preservação da integridade celular (15). Normalmente esta barreira consegue manter um pH neutro na mucosa, apesar do pH no lume gástrico ser com frequência 1,5-2 (15). – Os processos de regeneração e restituição do epitélio, que determinam a migração celular para áreas de ruptura, promovendo a rápida restauração da integridade epitelial (15). – O fluxo sanguíneo da mucosa que promove a sua defesa, não só pelo fornecimento de oxigénio e nutrientes às células epiteliais mas também pelo aporte de bicarbonato e remoção de H+, radicais de oxigénio e outros tóxicos (2). – As membranas celulares e tight junctions que funcionam como barreira física contra a retrodifusão de iões H+(1). Nos doentes críticos, a estabilidade hemodinâmica e a perfusão satisfatória das áreas nobres é muitas vezes mantida à custa de vasoconstrição mesentérica, o que pode levar a hipoperfusão local. De notar que os níveis de saturação periférica de oxigénio não são um indicador da perfusão da mucosa gástrica; num estudo efectuado com doentes em estado crítico, com sépsis e necessidade de ventilação mecânica, o fluxo sanguíneo gastrointestinal superior era cerca de 50% menor do que no grupo controlo, constituído por doentes referenciados para endoscopia alta electiva; no entanto, tanto os doentes críticos como os controlos tinham níveis normais de saturação periférica de oxigénio (16). De facto, a perfusão da mucosa gástrica diminui precocemente nos doentes em situação crítica e é um dos factores mais importantes na patogenia da úlcera de stress , já que causa lesão da mucosa por vários mecanismos (1,17). A hipoperfusão e isquémia gástricas causam: – Um defícit energético, por diminuição do fornecimento de oxigénio e nutrientes às células da mucosa, tornando-as mais susceptíveis à lesão (1,2); – Uma perturbação do equilíbrio ácidobase intramucoso, por diminuição da capacidade de remover os H+ e de fornecer o bicarbonato necessário à sua neutralização (1), surgindo acidose local que aumenta a agressão celular e que pode ainda ser potenciada pela acidose sistémica, comum nos doentes em situação crítica (1,18). – Maior formação de radicais livres de oxigénio e diminuição da capacidade de os eliminar, o que causa inflamação, morte celular e libertação de citoquinas lesivas(2). – Lesão por reperfusão pelo aumento da libertação de óxido nítrico, que leva a vasodilatação e congestão da microcirculação, morte celular, aumento da resposta inflamatória e também diminuição da motilidade gastrointestinal; o consequente atraso do esvaziamento gástrico, prolonga a exposição da mucosa já fragilizada aos factores agressivos, aumentando o risco de ulceração (1,2,19). – Dimuição da síntese de prostaglandinas e consequentemente menor secreção de muco e bicarbonato, o que torna a barreira mucosa menos eficaz (20). – Diminuição dos mecanismos de reparação do epitélio (21). Assim, a hipoperfusão gástrica e a lesão por reperfusão têm um papel central na patogenia da úlcera de stress , já que causando lesão celular por diversos mecanismos, vão diminuir as defesas da mucosa e permitir a 164 Teresa Belo curaram determinar quais os factores de risco para o desenvolvimento de úlcera de stress e hemorragia digestiva alta, que justifiquem o uso de terapêutica profiláctica nestes doentes. Num estudo prospectivo e multicêntrico (9) , Cook et al avaliaram os potenciais factores de risco para úlcera de stress e a incidência de hemorragia clinicamente significativa em doentes internados em UCIs e identificaram a insuficiência respiratória, com necessidade de ventilação mecânica por mais de 48h e a coagulopatia (plaquetas < 50 000/mm3, INR>1,5 ou PTT>2 vezes o valor de controlo) como sendo os principais. Nos doentes que não apresentavam nem insuficiência respiratória nem coagulopatia, a incidência de hemorragia clínicamente importante foi de 0,1%, enquanto que nos doentes com um ou os dois factores referidos foi de 3,7%. Assim, doentes críticos admitidos em UCIs que necessitem de ventilação mecânica por mais de 48h ou que apresentem coagulopatia, beneficiarão da administração de terapêutica profiláctica da úlcera de stress (9). Outros autores (25-27) sugerem que a idade avançada, queimaduras graves (30% da superfície corporal), reparação de aneurisma da aorta abdominal, falência multiorgânica, traumatismos do SNC, sépsis ou necessidade de terapêutica com corticosteróides em doses elevadas (>40mg/d, oral ou endovenosa) também poderão ser factores de risco para hemorragia por úlcera de stress e justificar terapêutica preventiva. A acumulação de vários destes factores aumenta o risco de hemorragia (1). acção dos factores agressivos: ácido, pepsina, sais biliares e algumas drogas. Embora a maioria dos doentes não tenha hipersecreção ácida e possa mesmo ter hipossecreção, basta uma pequena quantidade de ácido para lesar a mucosa em indivíduos susceptíveis, como são os doentes críticos; adicionalmente, o ácido pode impedir a formação de coágulos superficiais e diminuir a agregação plaquetária, promovendo a hemorragia a partir das lesões estabelecidas (22). Numerosos estudos mostram que manter o pH gástrico acima de 4 é um método eficaz de prevenção da úlcera de stress (22). Outro dos factores agressivos é a pepsina, capaz de produzir directamente lesão da mucosa, agravar uma lesão já existente e promover a hemorragia a partir das lesões, pois facilita a lise dos coágulos. A activação da pepsina depende do pH e diminui quando o pH é >4,5 (20). A presença de sais biliares no estômago, dado o aumento do refluxo biliar por atraso do esvaziamento gástrico, contribui para a diminuição do fluxo sanguíneo da mucosa, diminuição da secreção de bicarbonato e aumento da permeabilidade da barreira gástrica (2, 19). Algumas drogas como os AINEs e o AAS, por interferência com a síntese de prostaglandinas, diminuem as defesas da mucosa tornando-a mais susceptível à lesão (23). Os corticosteróides, por si só, não parecem associados a maior risco de lesões gástricas, mas associados aos AINEs, aumentam o risco de modo sinérgico (24). Estabelecida a lesão, o ácido e a pepsina, por interferirem ao nível dos mecanismos da coagulação, promovem também a hemorragia por úlcera de stress (20,22). IV – CLÍNICA Apesar dos avanços no tratamento dos doentes críticos, da maior atenção ao equilíbrio hemodinâmico e do uso de terapêutica profiláctica da úlcera de stress , ainda ocorrem hemorragias clínicamente significativas em cerca de 1 a 4% dos doentes (9,10,20). As manifestações clínicas são variáveis, desde hemorragias ocultas – sangue oculto III – FACTORES DE RISCO Os doentes admitidos nas UCIs são um grupo heterogéneo no que respeita à doença de base e à morbilidade e a profilaxia da úlcera de stress implica custos e potenciais efeitos colaterais, pelo que muitos investigadores pro165 PREVENÇÃO DA ÚLCERA DE STRESS positivo nas fezes ou no aspirado gástrico – a hemorragias manifestas mas sem repercurssão hemodinâmica significativa, até hemorragias clínicamente importantes - com compromisso hemodinâmico, necessidade transfusional ou de terapêutica endoscópica ou cirúrgica. É também necessário estar atento a manifestações indirectas como hipotensão ou descida >2g/dl dos valores de hemoglobina, que deverão conduzir a avaliação endoscópica do tracto gastrointestinal superior, para um diagnóstico preciso. Uma vez que a gravidade da hemorragia é muito variável, é também diferente o agravamento do prognóstico que acarreta. Como já foi referido anteriormente, a hemorragia clinicamente importante por úlcera de stress está associada a um aumento dos dias de internamento em UCI (de 4 a 8 dias) e da mortalidade pelo que, apesar da prevalência relativamente baixa, é importante optimizar a terapêutica profiláctica (1, 28,29). O objectivo das terapêuticas neutralizadoras do ácido é manter o pH>4, já que se sabe que há uma relação inversa entre o pH gástrico e a probabilidade de hemorragia maciça por úlcera de stress (31). Para este efeito, têm sido usados os antiácidos, os antagonistas H2 e os inibidores da bomba de protões. Antiácidos Muitos estudos randomizados e controlados demonstram a eficácia dos antiácidos na prevenção da hemorragia clínicamente significativa por lesões relacionadas com o stress (15). Além da neutralização directa do ácido no lume gástrico, também fixam a pepsina e os sais biliares diminuindo a sua capacidade agressiva e podem melhorar as defesas da mucosa ao estimular a produção local de prostaglandinas (3, 32). Contudo, os antiácidos não são desprovidos de efeitos secundários, sobretudo quando usados em doses elevadas: podem interferir com a absorção de medicamentos administrados por via oral; os que contêm alumínio podem causar hipofosfatémia e níveis séricos tóxicos de alumínio em doentes com insuficiência renal e os que contêm magnésio podem provocar diarreia e hipermagnesiémia . Para serem eficazes devem ser administrados de hora a hora ou de 2/2 horas e, em rigor, deveriam ser feitas titulações seriadas, o que constitui a sua principal desvantagem e levou ao seu abandono por medicamentos mais potentes e de administração mais simples. V– PREVENÇÃO A terapêutica preventiva tem-se baseado em três tipos de intervenções: combater a hipoperfusão e a isquémia gástrica, que têm um papel central na patogenia das lesões induzidas pelo stress , neutralizar o ácido, importante na indução e perpetuação das lesões, e aumentar a capacidade defensiva da mucosa reforçando os seus mecanismos de protecção. Para evitar a hipoperfusão e a isquémia gástrica é fundamental assegurar a estabilidade hemodinâmica do doente, que deve ser monitorizado com avaliação frequente dos parâmetros clínicos, fisiológicos e laboratoriais, para que possam ser feitas eficazmente as correcções necessárias. Na optimização dos parâmetros hemodinâmicos, deve restringir-se tanto quanto possível o uso de vasopressores, já que aumentam a tensão arterial à custa da perfusão mesentérica e, assim, podem agravar a isquémia gastrointestinal (30). Antagonistas H2 Ao ligarem-se ao receptor H2 da membrana basal da célula parietal, os antagonistas H2 (ant.H2) diminuem a secreção ácida gástrica, por inibição competitiva reversível da secreção estimulada pela histamina; contudo, como a gastrina e a acetilcolina são vias alternativas para a estimulação da secreção, a supressão do ácido é incompleta. 166 Teresa Belo Podem usar-se por via oral, mas uma vez que o atraso do esvaziamento gástrico é frequente nos doentes críticos e pode diminuir a biodisponibilidade do fármaco, é mais adequada a via parentérica; podem administrar-se em bólus, sendo necessárias 3-4 doses /dia pois têm curta duração de acção, mas são mais eficazes quando administrados em infusão contínua (33). Os ant.H2 levam ao desenvolvimento de tolerância em 72h, o que os torna menos adequados em situações em que os níveis de pH gástrico devem ser mantidos elevados por longos períodos, como acontece quando o objectivo é a profilaxia da úlcera de stress (34). Podem ocorrer interacções com outras drogas, o que acontece sobretudo com a cimetidina e a ranitidina; a famotidina e a nizatidina não têm estes efeitos. Podem ainda surgir quadros de confusão e alucinações, particularmente em idosos e em doentes com insuficiência hepática ou renal (35). O receio de que, pela inibição do ácido, os ant. H2 permitam o crescimento de bactérias gram negativas no estômago, levando a microaspiração e aumentando a incidência de pneumonia nosocomial, tem sido motivo de controvérsia (36,37). Há numerosos estudos neste sentido, com resultados díspares, e numa tentativa de responder definitivamente à questão, foi realizado um estudo multicêntrico e randomizado que envolveu 1200 doentes, comparando o sucralfato e a ranitidina em doentes sob ventilação mecânica (38); neste estudo, houve menor incidência de hemorragia digestiva no grupo da ranitidina do que no grupo do sucralfato e não houve diferença na incidência de pneumonia nosocomial. Várias meta-análises mostraram que os ant.H2 são eficazes na prevenção da úlcera de stress e da hemorragia digestiva clínicamente significativa (22,32,39); são mais eficazes que o sucralfato (38) e, durante muito tempo, foram as drogas de escolha neste contexto. Não há no entanto evidência de que o uso profiláctico de ant.H2 se associe a diminuição da mortalidade nos doentes críticos (22). Inibidores da bomba de protões Os inibidores da bomba de protões (IBP), actuam ligando-se irreversívelmente à ATPase H+/K+, enzima responsável pela secreção de ácido para o lume gástrico. Ao actuarem na etapa final comum da secreção, são supressores de ácido mais potentes que os ant.H2. Muitos dos estudos com IBPs foram feitos com formulações orais, mas uma vez que a biodisponibilidade das drogas pode ser limitada pelo atraso do esvaziamento gástrico, comum nos doentes críticos, será mais vantajosa a sua administração por via endovenosa. Posteriormente, quando o doente já tolera a via oral, os IBPs podem passar a ser administrados por esta via, já que as formulações para administração endovenosa de pantoprazol e lansoprazol são equipotentes às formulações orais. A sua maior duração de acção permite que sejam administrados apenas uma vez por dia, o que constitui uma vantagem em relação aos outros fármacos utilizados na prevenção da úlcera de stress ; qualquer um dos IBPs disponíveis aumenta substancialmente o pH gástrico durante pelo menos 24h após uma única dose (40). Múltiplos trabalhos apontam também como vantagens relativamente aos ant.H2, o mais rápido início de acção e o facto de não induzirem tolerância, (34,41,42); têm ainda, a seu favor, apresentarem poucas interacções com outras drogas e não terem eliminação renal, pelo que as complicações associadas ao seu uso em doentes com disfunção renal são mínimas (43,44). Quanto à incidência de pneumonia nosocomial, ela não parece diferir significativamente entre os doentes que fazem IBPs , ant.H2 ou sucralfato, embora a taxa de colonização gástrica tenha sido maior nos doentes com aumento do pH gástrico(37). Na prevenção da úlcera de stress parece ser suficiente um pH intragástrico >4, mas para manter os mecanismos de coagulação em doentes em risco de recidiva hemorrágica por úlcera péptica é necessário um pH >6. Traba167 PREVENÇÃO DA ÚLCERA DE STRESS contra as lesões gástricas relacionadas com o stress é multifactorial: forma uma barreira física protectora na superfície epitelial, aumenta a secreção e a qualidade do muco, estimula a secreção de bicarbonato e a renovação do epitélio e melhora o fluxo sanguíneo da mucosa aumentando a libertação de prostaglandinas (15). É administrado por sonda nasogástrica em doses de 1g de 4/4 ou 6/6h e é geralmente bem tolerado, podendo no entanto causar obstipação e toxicidade pelo alumínio em doentes com insuficiência renal. Diminui também a absorção de vários medicamentos administrados concomitantemente por via oral (6,40). É eficaz na profilaxia da hemorragia por úlcera de stress quando comparado com o placebo; contudo, parece sê-lo menos que os ant.H2 (6). Quando alguns investigadores (36,37) encontraram uma associação entre o aumento do pH intra-gástrico e o risco de pneumonia nosocomial, o sucralfato, que não inibe a secreção nem neutraliza o ácido gástrico, foi considerado uma opção atraente na profilaxia da úlcera de stress . No entanto, num estudo de referência, (38) não foi encontrada diferença significativa nas taxas de pneumonia associada ao ventilador, na duração da estada na UCI nem nas taxas de mortalidade, entre doentes críticos a fazer ranitidina ou sucralfato, pelo que é preferível administrar um ant.H2 ou um IBP que são mais eficazes na prevenção da úlcera de stress (53). lhos que comparam a capacidade dos ant.H2 e dos IBPs por via endovenosa, para elevar e manter o pH intragástrico, sugerem que, embora ambos os fármacos possam aumentar o pH acima de 4, os IBPs têm maior capacidade para o manter e que, ao contrário dos ant.H2, os IBPs podem elevar e manter o pH intragástrico acima de 6, o que é relevante para os doentes nas UCIs em risco de recidiva hemorrágica por úlcera de stress (20). Estudos recentes com doentes de alto risco – coagulopatia ou insuficiência respiratória – mostram que os IBPs são eficazes na prevenção tanto da úlcera de stress (10,38,41,45) como da hemorragia (46,47,48) e alguns sugerem que são superiores aos ant.H2 (49,50). Num ensaio comparativo entre o omeprazol e a ranitidina em doentes internados numa UCI, 6% dos doentes que fizeram omeprazol apresentaram hemorragia, enquanto que a taxa de hemorragia no grupo que fez ranitidina foi de 31% (41). Portanto, os dados disponíveis actualmente sugerem a superioridade dos IBPs sobre os ant.H2 na prevenção da úlcera de stress e da hemorragia, mas há ainda poucos dados comparativos com as formulações para administração endovenosa. Pelos resultados dos estudos efectuados no tratamento de úlceras gástrica e duodenal de alto risco, em que os IBPs foram eficazes em diminuir as taxas de hemorragia (51) – o que nunca foi demonstrado com os ant.H2 – é de esperar que o mesmo se venha a comprovar para as formulações endovenosas de IBPs, na prevenção da hemorragia por lesões de stress . Actualmente, nas UCIs de vários países europeus os IBPs ev são já usados, por regra, na prevenção da úlcera de stress e suas complicações (52). Análogos das prostaglandinas Os análogos das prostaglandinas como são importantes agentes citoprotectores, poderiam ter um papel na prevenção da úlcera de stress . O análogo sintético da Pg E1, misoprostol, existe como droga de administração oral e demonstrou eficácia na prevenção de lesões gástricas e suas complicações induzidas por AINEs; doses elevadas de misoprostol podem ainda fazer supressão do ácido. Para reforçar os mecanismos de protecção da mucosa pode recorrer-se ao sucralfato ou aos análogos das prostanglandinas. Sucralfato O sucralfato é um sal de alumínio não absorvível e o seu mecanismo de protecção 168 Teresa Belo sobreutilizada e que, com frequência, os doentes mantêm medicação desnecessária após a alta, com custos elevados; propõem medidas de sensibilização que assegurem o uso adequado da terapêutica profiláctica da úlcera de stress como um meio de diminuir custos, sem impacto negativo na qualidade dos cuidados prestados ao doente. Num estudo prospectivo comparando antiácidos e misoprostol, a eficácia dos dois foi sobreponível, mas no grupo de doentes que fizeram misoprostol houve 25% de incidência de diarreia (54). Há poucos estudos sobre misoprostol no contexto da prevenção de lesões gástricas relacionadas com o stress, provavelmente pelo seu custo e efeitos secundários. Actualmente não há lugar para o uso profiláctico de análogos da prostaglandinas na prevenção da úlcera de stress (35). CONCLUSÃO A úlcera de stress é uma complicação comum nos doentes em estado crítico, com fisiopatologia multifactorial, em que a isquémia e o ácido gástricos têm um papel central. A hemorragia digestiva clínicamente significativa por úlcera de stress é uma complicação grave, associada a aumento da morbilidade e da mortalidade mas é um acontecimento raro, pelo que a terapêutica profiláctica só se justifica em doentes seleccionados. A base da terapêutica é a prevenção com drogas que diminuem a acidez gástrica ou com agentes citoprotectores. Vários medicamentos são eficazes, mas durante muito tempo os antagonistas H2 por via endovenosa, foram os escolhidos. São drogas com eficácia comprovada em múltiplos estudos e de administração cómoda; no entanto estão associados ao desenvolvimento de tolerância, possíveis interacções com outras drogas e manifestações neurológicas. Actualmente, e apesar de não haver ainda muitos dados concretos que comprovem a sua superioridade em relação aos antagonistas H2, os IBPs, pela mais completa supressão do ácido, maior duração de acção, por não levarem ao desenvolvimento de tolerância e terem menos efeitos colaterais, são as drogas escolhidas em muitas UCIs para a prevenção da úlcera de stress. Profilaxia da úlcera de stress fora das UCIs De modo geral a terapêutica profiláctica da úlcera de stress é mantida até os doentes iniciarem alimentação oral ou serem transferidos da UCI (35, 55,56). Contudo, numa revisão, 39% das instituições relata que cerca de metade dos doentes que recebiam terapêutica profiláctica da úlcera de stress , enquanto internados em UCIs, a mantinham após serem transferidos para unidades menos diferenciadas (55). A maioria dos autores considera que o risco de hemorragia significativa fora da UCI é demasiado baixo para justificar a manutenção desta terapêutica e que deverá ser uma rotina suspendê-la quando o doente é transferido (55); neste aspecto, cada doente deve ser avaliado individualmente sobre os factores de risco que possam justificar a manutenção da terapêutica preventiva (2). Por outro lado, também muitos doentes hospitalizados mas que não apresentam factores de risco para úlcera de stress , recebem terapêutica profiláctica, sem evidência que suporte nem a sua necessidade nem a sua eficácia e com consideráveis custos (57,58). Num estudo recente (59), que incluiu 1769 doentes, 22% receberam terapêutica profiláctica da úlcera de stress e 54% mantiveram-na após a alta hospitalar; nenhum deles apresentava critérios que o justificassem. Os autores concluem que a profilaxia da úlcera de stress é 169 PREVENÇÃO DA ÚLCERA DE STRESS REFERÊNCIAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 Duerksen DR. Stress related mucosal disease in critically ill patients. Best Pract Res Clin Gastroenterol.2003 Jun;17(3):327-44. Spirt MJ, Stanley S. Update on stress ulcer prophylaxis in critically ill patients. Crit Care Nurse. 2006 Feb;26(1):18-28. Czaja AS, McAlhamy JC, Pruitt BA Jr. Acute gastroduodenal disease after thermal injury: an endoscopic evaluation of incidence and natural history. N Engl J Med 1974; 291:925-29. Peura DA, Johnson LF. Cimetidine for prevention and treatment of gastroduodenal mucosal lesions in patients in an Intensive Care Unit. Ann Intern Med.1985;103:173-7. Munakata A, Aisawa T, Yoshida Y, Tanaka S. Prospective study of acute gastric mucosal lesion in patients receiving open heart surgery under extra-corporeal circulation (abstract).Gastrointest Endosc. 1987;33:151. Abstract 35. 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A maioria das transmissões ocorre em moradores na mesma casa, turistas ou trabalhadores em áreas endémicas, crianças em creches e funcionários e residentes de instituições para deficientes mentais. Outros grupos de risco para a infecção pelo VHA são os homossexuais masculinos e os consumidores de drogas endovenosas (apesar do curto período de virémia). A forma mais eficaz de reduzir o número de mortes por hepatite viral é a prevenção. A prevenção é importante não só para a redução do número de casos de hepatite aguda, mas também para diminuir os casos de doença hepática crónica e carcinoma hepatocelular (CHC). Nas últimas décadas têm sido grandes os avanços nesta área. A identificação e caracterização dos vírus das hepatites, o conhecimento das suas formas de transmissão e, mais recentemente, a criação das vacinas das hepatites B e A, traduziram-se em benefícios efectivos para a sociedade dos quais a redução da incidência da hepatite B, em todo o mundo, é um dos exemplos mais significativos. Nas últimas décadas, a melhoria das condições higieno-sanitárias das populações de vários países, incluindo Portugal, conduziu a uma alteração do padrão epidemiológico da hepatite A: redução da sua incidência e prevalência e aumento da idade média de infecção 2-5. O facto de a infecção ter deixado de ocorrer nos primeiros anos de vida4,5 leva a que um número significativo de jovens esteja em risco de adquirir esta hepatite, com aumento do número de casos clínicos graves, maior número de complicações e mortes e, ainda, possibilidade de ocorrência por surtos epidémicos 6. A prevenção das hepatites virais inclui um conjunto de medidas sanitárias que permitam evitar a transmissão dos vírus das hepatites e a administração de anticorpos neutralizantes contra estes vírus, como sejam a administração de gamaglobulinas e vacinas. 173 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS de 0,02 ml/kg, confere protecção por três meses, enquanto que na dose de 0,06 ml/kg confere protecção por quatro a seis meses8. Após a sua administração, por via intramuscular, assiste-se ao rápido aparecimento de anticorpos protectores (pouco mais de 24 horas), com uma eficácia superior a 85% quando administrada nas duas primeiras semanas após exposição ao vírus e com um excelente perfil de segurança. As principais indicações para a administração de gamaglobulina, na actualidade, incluem as seguintes situações de profilaxia pós-exposição: membros do agregado familiar ou contacto sexual de um caso índex, crianças, trabalhadores de uma creche ou instituição para crianças em contacto com um doente com hepatite A e indivíduos internados em instituições onde tenham surgido casos de hepatite A. A prevenção da transmissão da hepatite A passa pela melhoria das condições higienosanitárias gerais e individuais, administração da gamaglobulina e da vacina. Como doença de transmissão fecal-oral, as medidas mais importantes são a garantia da potabilidade da água de consumo e a existência de uma boa rede de esgotos. São também indispensáveis uma adequada lavagem e desinfecção das mãos (particularmente, após manuseio de fraldas e de outro material com fezes e após ida à casa de banho), lavagem e manuseio dos alimentos (frutos, vegetais, bivalves), desinfecção da água das piscinas e superfícies potencialmente infectadas. Os viajantes para áreas endémicas devem ser aconselhados a não beber água ou bebidas com gelo de origem desconhecida, ingerir alimentos crus ou fruta não descascada. Como estes cuidados podem não ser suficientes para garantir a prevenção da hepatite A em viajantes, a imunização deve ser recomendada a todas as pessoas que viajam de regiões de baixa endemicidade para regiões de alta endemicidade. Vacina da hepatite A A única vacina contra a hepatite A que se encontra comercializada em Portugal (HAVRIX®, SmithKline & Beecham) contem vírus inactivados em formol, desenvolvidos em culturas celulares in vitro e absorvidos em hidróxido de alumínio para aumentar a imunogenicidade. Gamaglobulina A administração de gamaglobulina foi durante muitos anos a medida mais frequente de prevenção da hepatite A, tanto em situações de pré-exposição (antes de uma viagem de risco) como em situações de pós-exposição (contactos domésticos, trabalhadores na mesma instituição) ou para conter um surto epidémico. Na actualidade, a sua utilização é cada vez menor. A vacina substituiu claramente a gamaglobulina, sobretudo na profilaxia pré-exposição, por ser mais eficaz e conferir uma protecção mais duradoira 7. Outra das razões para a sua menor utilização é a diminuição da taxa da anticorpos neutralizantes (antiVHA) que contém, já que a prevalência destes anticorpos na população de dadores de plasma tem vindo a diminuir em todos os países ocidentais, em paralelo com a redução da incidência da hepatite A. A gamaglobulina, administrada por via intramuscular numa dose A vacina tem elevada imunogenicidade, desenvolvendo-se anticorpos em mais de 95% dos adultos, no primeiro mês após a sua administração e em cerca de 80%, nos primeiros 15 dias. Os títulos de anticorpos anti-VHA são mais baixos nos idosos, nos homens com mais de 86 Kg, nos imunodeprimidos (doentes infectados com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) ou doentes com doença hepática crónica) e naqueles que já têm anticorpos anti-VHA (pessoas em que se administra simultaneamente a gamaglobulina anti-VHA ou recém-nascidos de mães imunizadas para o VHA) 9. A protecção induzida pela vacina é muito prolongada, provavelmente de carácter permanente, considerando-se, por isso, não serem necessárias doses de reforço. O esque- 174 Fátima Augusto ma de vacinação recomendado consiste na administração de duas doses, por via intramuscular, na região deltoideia, a segunda administrada 6 a 12 meses após a dose inicial. A vacina está contra-indicada em crianças com menos de dois anos de idade e em grávidas no primeiro trimestre; a dose de adulto deve ser administrada em indivíduos a partir dos 18 anos. A vacina é bem tolerada, sendo raras as reacções adversas. Dada a sua elevada eficácia, com uma taxa de seroconversão superior a 98% um mês após a segunda dose, não está indicada a determinação do antiVHA após a vacinação. hepatite crónica C têm indicação para serem vacinados para a hepatite A pelo maior risco de apresentarem um curso fulminante, quando infectados com este vírus12,13. Nos indivíduos que tiveram contactos estreitos com um doente com hepatite aguda A, a vacina, embora particularmente indicada em situações de préexposição, tem eficácia na prevenção de casos secundários, além de induzir protecção duradoura contra posteriores contactos com o vírus14. HEPATITE B Medidas gerais A vacinação está indicada em crianças e adultos com risco aumentado de adquirir a infecção pelo VHA (os designados grupos de risco), nos surtos epidémicos e naqueles que desejem adquirir protecção contra este vírus. A vacinação universal não está indicada. Os grupos de risco incluem indivíduos com risco ocupacional, viajantes ou trabalhadores que se deslocam para regiões de endemicidade elevada ou intermédia, homossexuais masculinos, consumidores de drogas endovenosas, doentes politransfundidos e doentes com cirrose hepática (nestes casos a hepatite A tem um curso clínico mais grave). Constituem risco ocupacional as actividades desenvolvidas pelos trabalhadores de redes de recolha e processamento do lixo, esgotos, manipulação de alimentos, pelo pessoal que trabalha em creches, unidades de gastrenterologia, doenças infecciosas e pediatria e instituições para doentes mentais e, ainda, pelos que trabalham com primatas, animais que podem ter infecção A. Incluem-se nos viajantes, os elementos do corpo diplomático, as tropas expedicionárias e os indivíduos que viajam para países de elevada endemicidade com o objectivo de adoptarem uma criança10. Os viajantes devem vacinar-se pelo menos um mês antes da partida. Se o intervalo for mais curto, pode usar-se um esquema de vacinação mais acelerado, com 2 semanas de intervalo entre duas doses de vacina e uma dose de reforço aos 6 meses11. Os doentes com A hepatite B transmite-se através do sangue e de outros fluidos corporais infectados, como o sémen e secreções vaginais. A via de contaminação pode ser parentérica, sexual, vertical e horizontal. No mundo ocidental, a toxicodependência endovenosa e o contacto sexual desprotegido na adolescência são as principais vias de contágio, enquanto que em regiões de elevada endemicidade, como o Sudoeste asiático, bacia do Amazonas e África sub-sariana, a transmissão faz-se na altura do nascimento, de mãe para filho, ou nos primeiros anos de vida, de criança para criança. A minimização dos riscos de transmissão deste vírus passa pela adopção de medidas de prevenção universal: evitar a utilização de materiais cortantes ou perfurantes potencialmente contaminados, tais como, material médico não esterilizado, seringas, agulhas e outro material usado na preparação e administração de drogas endovenosas e, ainda, material usado em tatuagens, acupunctura, podologia, manicura, barbearia e colocação de piercings, e evitar relações sexuais de risco, promovendo a utilização do preservativo, nestas circunstâncias ou em caso de múltiplos parceiros sexuais. É importante, também, promover a utilização individual ou não reutilizável (disposable) de material cortante ou perfurante. A pesquisa sistemática do AgHbs e 175 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS do anti-HBc em todas as dádivas de sangue reduziu drasticamente o risco de hepatite B pós-transfusional. Nos doentes que vão iniciar hemodiálise deve fazer-se a pesquisa sistemática do AgHbs antes de entrarem no programa de diálise para que os portadores do VHB sejam dializados em unidades separadas, exclusiva para doentes com infecção B, e atendidos por pessoal imune ao vírus. Os não infectados e que são anti-HBs negativos devem ser vacinados. Os cirurgiões infectados com o VHB em replicação activa não devem ser autorizados a realizar procedimentos cirúrgicos com risco de transmissão do vírus aos doentes, como nas cirurgias cardiotoráxica, abdominal, ginecológica ou ortopédica, até que deixem de estar em fase replicativa7. De modo a impedir a transmissão do VHB entre pacientes e profissionais de saúde devem ser incentivadas medidas de segurança, que incluem o uso de luvas, máscaras e protectores oculares, contentores de agulhas, práticas de desinfecção e esterilização adequadas e vacinação de todos os profissionais de saúde que lidem com o sangue e outros fluidos corporais. A generalização da vacinação contra a hepatite B dos profissionais de saúde permitiu reduzir drasticamente o número de casos de hepatite B entre os médicos e enfermeiros. A prevenção da transmissão da infecção B entre doentes passa pela detecção de todos os indivíduos potencialmente AgHbs positivos e pela adopção de medidas de prevenção universal (sempre que possível usar material disposable). Imunoglobulina hiperimune É um preparado de imunoglobulina rica em anti-Hbs (HBIG – Hepatitis B Immune Globulin), obtida a partir do plasma de dadores com taxas elevadas de anticorpos anti-Hbs após exclusão de AgHbs, anticorpos antiVHC e anti-VIH. Usa-se quase exclusivamente na prevenção da hepatite B neonatal, em crianças nascidas de mães infectadas com o VHB, após contacto sexual com portador do VHB ou por picada acidental com material contaminado com este vírus. A sua administração deve ser feita o mais precocemente possível (de preferência nas primeiras 24 horas após a exposição acidental e até duas semanas após a última exposição sexual de risco). Na prevenção da hepatite B pós-exposição, associa-se a vacinação à imunização passiva. A imunização activa-passiva, para além de não interferir na eficácia de cada uma das imunizações, confere maior grau de protecção do que a vacinação isolada (95% na associação versus 70 a 75% na vacinação isolada) 15,16. Os recém-nascidos de mulheres infectadas com o VHB correm o risco de se infectarem no momento do parto, sendo o risco superior a 90% quando a mãe está em replicação activa. Os recém-nascidos têm um elevado risco de se converterem em portadores crónicos do vírus ou, mesmo, nos infectados com o mutante do pré-core do VHB (casos antiHBe positivos), de desenvolverem uma hepatite fulminante. A prevenção da transmissão perinatal passa pela pesquisa sistemática do AgHBs em todas as grávidas, no terceiro trimestre da gravidez e pela aplicação de medidas de imunização passiva-activa (imunoglobulina hiperimune e vacina) em todos os recém-nascidos de mulheres infectadas nas primeiras 12 horas após o parto, de preferência na primeira hora. A administração da imunoglobulina deve ser feita por via intramuscular, na região deltoideia; é bem tolerada, sendo raras as reacções adversas e tem uma eficácia protectora de 75 a 80% pós – exposição, que se mantém por 5 a 6 meses. Vacina da hepatite B As primeiras vacinas contra o VHB foram comercializadas em 1982 e eram obtidas a partir do plasma de portadores do AgHBs (vacina 176 Fátima Augusto plasmática). Estas vacinas foram substituídas, nos países ocidentais, por vacinas recombinantes obtidas por recombinação genética a partir de uma levedura, a Sacchoromyces cerevisiae, na qual é introduzido um plasmídeo, o gene S do VHB, levando a que estas células expressem o AgHBs. A única vacina contra a hepatite B que se encontra comercializada em Portugal (ENGERIX B®, SmithKline & Beecham) contém 20µg/ml de AgHbs, para além de proteínas derivadas da levedura, hidróxido de alumínio como adjuvante e tiomerosal, como conservante. A dose pediátrica contém metade do AgHBs. A vacina deve ser administrada na região deltoideia, por via intramuscular profunda, nos adultos, e na face anterolateral da coxa, nos recém-nascidos. Pode ser administrada durante a gravidez. 15 anos a dose a administrar é metade da dos adultos (10µg), enquanto que nos indivíduos imunodeficientes, como os doentes hemodializados, recomenda-se, nos adultos, uma dose dupla (40µg). Nestes, apesar das doses mais elevadas, a taxa de resposta à vacina não ultrapassa os 60%19. Nos recém-nascidos recomenda-se a primeira administração ainda na maternidade, a segunda aos dois meses e a terceira aos seis meses. Em situações em que se pretende uma protecção rápida, por exemplo, nos viajantes sem tempo suficiente para fazerem o esquema convencional, pode-se recorrer ao esquema quádruplo com administrações aos zero, um, dois e doze meses, podendo-se, se necessário, encurtar o intervalo entre as duas primeiras doses para 15 dias. Um outro esquema rápido consiste na administração de 3 doses iniciais (aos 0,7, 21 dias), seguida de uma quarta dose aos 6 a 12 meses, após a primeira. Também na vacinação de adolescentes, poder-se-á administrar apenas duas doses de adulto separadas por 4 a 6 meses, com uma taxa de eficácia semelhante ao esquema convencional. O aumento moderado do intervalo entre as doses pouco influencia o resultado final. De uma forma geral, recomenda-se a administração das doses em falta antes de iniciar novo esquema de vacinação7. Existe uma apresentação da vacina para a hepatite B que contém, também, o antigénio da hepatite A (Twinrix® SmithKline & Beecham) e que se administra em situações em que se pretende conferir protecção contra os dois vírus17. Foi desenvolvida recentemente uma vacina pentavalente, ainda não comercializada em Portugal, que engloba 5 antigénios (difteria, tétano, haemophilus, hepatite B e poliomielite), designada Pediarix®, a ser administrada em 3 doses (aos dois, quatro e 6 meses de idade) com o objectivo de reduzir o número de injecções e de idas aos postos de vacinação18. O efeito protector da vacina relaciona-se com a formação de anticorpos anti-Hbs. O valor mínimo de anti-HBs que confere protecção é superior a 10 UI/ml. Se os títulos se situarem entre as 10 UI/ml e inferiores a 100 UI/ml, a resposta é considerada fraca e deve repetir-se uma dose de reforço. Após a terceira dose, 90 a 95% dos adultos vacinados e 98 a 100% das crianças têm títulos de anti-HBs protectores. As pessoas com mais de 40 anos, obesas, do sexo masculino, fumadoras, com algum tipo de imunodeficiência, com HLA B8, B44, DR3, DQ2 ou aquelas em que se administrou a vacina por via subcutânea apresentam taxas de protecção mais baixas20. Os indivíduos que após 3 doses de vacina não Antes da vacinação não é necessário fazer o rastreio prévio da população em geral relativamente à sua situação serológica relativamente ao VHB. Apenas nos grupos de risco, como por exemplo, profissionais de saúde, toxicodependentes, indivíduos com comportamentos sexuais de risco, é feito o estudo serológico com a determinação do AgHBs, anti-Hbc e anti-HBs18. O esquema de vacinação convencional inclui 2 doses separadas por um mês de intervalo e uma dose de reforço 6 a 12 meses após a primeira. Em crianças e adolescentes até aos 177 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS desenvolvem títulos de anticorpos protectores, fazem-no, em 30 a 50% dos casos, após um segundo esquema de vacinação21. Existem, ainda, outros esquemas de vacinação alternativos para não respondedores, tais como, o esquema quádruplo, a utilização de doses duplas, bem como o recurso a vacinas que contêm os segmentos pré-S1 e pré-S22. Uma certa percentagem de indivíduos não respondedores à vacinação são anti-Hbc positivos (possuem anticorpos para o antigénio do core do VHB), considerando-se que têm uma infecção B oculta, razão pela qual não desenvolvem anticorpos quando vacinados. indivíduos desenvolveram uma infecção B assintomática, apesar de estarem vacinadas. Não obstante, nestes casos, não se registou nenhum episódio de hepatite clínica, nem evolução para hepatite crónica. As vacinas contra a hepatite B são seguras, com raras reacções adversas. O temor de que poderiam induzir doenças desmielinizantes26-28, como a esclerose múltipla ou a síndrome de Guillan-Barré ou outras doenças autoimunes, como a diabetes, a síndrome de fadiga crónica e a neurite óptica7, não foi confirmada em estudos realizados com o maior rigor29,30, continuando a ser considerada pela OMS uma vacina segura e de aplicação universal. A avaliação da eficácia da vacina pela determinação do anti-HBs, ao 7.° mês após a primeira dose de vacina, só está indicada em situações bem determinadas, como sejam o parceiro sexual de um portador crónico ou profissionais de saúde. A grande maioria dos respondedores à vacinação manter-se-ão protegidos ao longo dos anos23, mesmo que os títulos de anti-Hbs se tornem indetectáveis. Isto explica-se pela existência de uma memória imunológica, que lhes permite uma resposta anamnéstica de anti-HBs após uma eventual exposição ao VHB, que actuaria como um booster7. O mesmo se verifica em não respondedores24. Por esta razão não se recomendam, actualmente, doses de reforço anos após a vacinação inicial, excepto nas pessoas que pela sua imunodeficiência necessitem desta memória imunológica e que corram o risco de se infectarem, como acontece com os hemodializados. Nestes casos, convém efectuar anualmente uma determinação do anti-Hbs e administrar uma dose de reforço de vacina, se o título de anti-Hbs for inferior a 10UI/ml25. A estratégia de vacinação contra a hepatite B tem sofrido alterações porque a vacinação dos grupos de risco teve um êxito muito limitado, nalguns grupos pela dificuldade em aceder aos mesmos, noutros, como os profissionais de saúde, que deveriam aceitar melhor a vacinação, por a adesão ter sido insuficiente. Os grupos de risco para a infecção para o VHB são: indivíduos com comportamento sexual de risco, toxicodependentes por via endovenosa, profissionais de saúde, hemodializados, politransfundidos, hemofílicos, profissionais de segurança que possam ter contacto com o sangue (polícias, bombeiros), pessoal e residentes em instituições prisionais, doentes com SIDA, Hepatite C, candidatos a transplante hepático, agregado familiar e parceiros sexuais de portador crónico, autóctones de países asiáticos e africanos, crianças com deficiência mental internadas em instituições e profissionais que aí trabalham e filhos de mães AgHBe positivo31,32. A vacinação universal contra a hepatite B é a forma mais eficaz de prevenir a doença e as suas complicações. Dez anos depois de se iniciar a vacinação universal na Malásia, China, Singapura e Taiwan conseguiu-se reduzir drasticamente o número de portadores crónicos do VHB (de 10 para 1,2%), a taxa Até hoje, nenhum estudo documentou que algum respondedor à vacinação tenha desenvolvido uma hepatite aguda ictérica, mas em 1 a 9% dos vacinados pertencentes aos grupos de risco para a hepatite B detectase positividade para o anti-HBc, que é um marcador de infecção. Isto sugere que estes 178 Fátima Augusto de hepatite fulminante nas crianças com mais de um ano de idade e a taxa de carcinoma hepatocelular infantil33-35. vacinação associado à administração de HBIG (0,06ml/Kg); se o contaminado for vacinado e não respondedor, deve proceder-se como se não estivesse vacinado (HBIG e vacinação); se o contaminado tiver respondido à vacinação, mas com uma resposta fraca (entre 10 e100 UI/ml), deve efectuar-se uma dose de reforço; se o contaminado estiver vacinado e com uma boa resposta, não é necessário fazer nada. Caso a fonte seja AgHBs negativa e o contaminado não seja vacinado, deve iniciar-se o esquema de vacinação. Se for desconhecido o estado serológico da fonte, se o contaminado for um não vacinado, deve iniciar a vacinação; se for um não respondedor, deve fazer uma dose de reforço. Numa situação de contaminação sexual de um não vacinado com um parceiro com hepatite aguda B, deve administrar-se a HBIG, no período de 14 dias após a exposição, e iniciar a vacinação. No caso do parceiro sexual ser portador crónico do AgHBs, deve iniciar-se a vacinação e recomendar o uso do preservativo até ser comprovada a eficácia da vacina. A estratégia dirigida à vacinação exclusiva dos recém-nascidos também não surtiu efeito. Nas regiões onde a maioria de novas infecções ocorrem em adolescentes e adultos jovens recomenda-se a vacinação universal dos préadolescentes, com o objectivo de encurtar o tempo de impacto da vacinação sobre a incidência da doença36. Assim, a estratégia com melhores resultados a curto, médio e longo prazo é aquela que inclui a vacinação dos recém-nascidos, adolescentes e grupos de risco37. Em Portugal, país de endemicidade intermédia, a vacina está incluída no Programa Nacional de Vacinação desde 1993, para adolescentes dos 10 aos 13 anos e, desde 2000, para todos os recém-nascidos, para além da recomendação de vacinar os grupos de risco. Em situações em que existe contaminação acidental com sangue infectado com o VHB, quer por picada, quer por exposição ocular ou das mucosas, a profilaxia pós-exposição a adoptar depende do AgHBs da fonte de contaminação e do estado de imunização do contaminado (vacinado ou não). De entre as 3 infecções implicadas (hepatites B e C e VIH), o risco mais elevado de contaminação é o da hepatite B que, dependendo do estado replicativo do doente, é de 15 a 60% (quando o contaminado não está imune) e de 0% (quando o contaminado tem títulos de anti-HBs superiores a 100UI/ml. HEPATITE DELTA O vírus da hepatite delta (VHD) é um vírus incompleto necessitando do antigénio de superfície do VHB para replicar e sobreviver. É altamente patogénico e causa uma forma de doença hepática grave e rapidamente progressiva. Esta infecção é endémica em áreas do globo como a Amazónia, Japão, China, Índia e Albânia. Na Europa e Estados Unidos tem-se assistido a uma redução progressiva da sua prevalência, atribuída ao declínio da prevalência de portadores do AgHBs como resultado das campanhas de vacinação contra o VHB. O seu modo de transmissão é similar ao do VHB. Nos países de baixa prevalência, como Portugal, a infecção está sobretudo confinada aos toxicodependentes de drogas endovenosas. Pelo facto de ser um vírus defectivo, necessitando do vírus do VHB para transmitir o seu genoma de célula a célula, a prevenção O acidentado, para além de reportar por escrito o acidente à entidade patronal, deve guardar sangue/soro para eventuais determinações e avaliar, nessa data, o seu estado serológico relativamente aos VHB, VHC e VIH e transaminases. No caso de contaminação percutânea, as recomendações são as seguintes: se a fonte for AgHbs positivo e o acidentado não vacinado, deve iniciar-se o esquema de 179 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS tante inferior ao da hepatite B, aumentando com a virémia da mãe e com a presença de coinfecção pelo VIH18,40. da coinfecção delta é conseguida pela vacinação para o VHB. Como até ao momento não existe uma vacina específica para o VHD, a única capaz de evitar o risco de superinfecção delta nos portadores crónicos do AgHBs, a prevenção passa pela educação, de forma a reduzir comportamentos de risco em portadores crónicos do VHB38. O facto de não existir uma vacina contra o VHC, de não dispormos de uma imunoglobulina com anticorpos neutralizantes que confiram protecção em caso de exposição acidental, e dos tratamentos existentes serem apenas eficazes em 50 a 70% dos casos realça o importante papel da profilaxia. A prevenção da hepatite C assenta em medidas que reduzam o risco de contrair a infecção (prevenção primária), e medidas que visem reduzir o risco de doença crónica associada à infecção C (prevenção secundária) 18,40-42. HEPATITE C A hepatite C é uma doença que se transmite principalmente através do contacto com sangue e derivados, conquanto a transmissão sexual e vertical possa desempenhar algum papel na disseminação da infecção. A introdução, na década de 90, da pesquisa sistemática do anticorpo anti-VHC em todas as dádivas de sangue reduziu drasticamente o risco de hepatite C pós-transfusional. Nos Estados Unidos o risco é de 1 em cada 103.000 unidades transfundidas, podendo ocorrer se a dádiva acontecer entre a aquisição da infecção e o aparecimento de anticorpos detectáveis39,40. Prevenção primária Com o objectivo de reduzir o risco de transmissão de infecção recomenda-se: – A recusa de sangue e derivados, sémen ou órgãos de indivíduos com elevado risco de infecção pelo VHC ou que apresentem serologias positivas. A administração de concentrados de factores sanguíneos constitui outro importante factor de risco para aquisição da infecção, mas a sua inactivação pelo calor e solventes, bem como o uso de produtos obtidos por recombinação genética e a pesquisa sistemática do anti-VHC veio reduzir significativamente o risco. As elevadas prevalências observadas em hemofílicos e hemodializados reportam-se a infecções contraídas antes da adopção destas medidas preventivas. Com o quase desaparecimento da transmissão da infecção C pela administração de sangue e derivados, o principal factor de risco de transmissão desta infecção é a toxicodependência de drogas endovenosas, com uma prevalência do VHC de 70 a 85%18,40. A actividade sexual promíscua é responsável por 15 a 18% dos casos de infecção a VHC, sendo a probabilidade de transmissão por esta via bastante inferior à da hepatite B e à do VIH. Do mesmo modo, o risco de transmissão vertical, de 2 a 5%, é bas- – A inactivação do vírus no plasma e derivados, e a pesquisa do ARN-VHC em todos os produtos em que não seja possível inactivar o vírus. – O aconselhamento dos grupos de alto risco, como os consumidores de drogas endovenosas, consumidores de cocaína inalada e os indivíduos com comportamentos sexuais de risco (múltiplos parceiros, homossexuais masculinos e portadores de outras doenças sexualmente transmissíveis). Os toxicodependentes endovenosos não devem partilhar agulhas, seringas e todo o restante material usado na preparação da droga. Deve-se promover, neste grupo e na sociedade em geral, o programa de troca de seringas que se tem revelado ser uma das medidas mais eficazes de redução de riscos para consumidores 180 Fátima Augusto – Nos doentes em hemodiálise é importante reforçar as medidas de controlo de infecção. Preconiza-se o uso de luvas sempre que se toque no equipamento de hemodiálise, a desinfecção de todo o material após cada utilização, não partilhar nenhum material ou medicação e separar as áreas limpas das de material contaminado. e para a própria sociedade. Em Portugal este programa foi lançado em 1993. Usar sempre o preservativo quando se tem múltiplos parceiros sexuais ou relações sexuais de risco. Promover, nestes grupos, a vacinação contra o VHA, pelo risco de hepatite fulminante e contra o VHB pelo risco de acelerar a doença hepática crónica preexistente. – Promover a desinfecção e esterilização adequadas de todo o material usado na realização de tatuagens e colocação de piercings, sempre que não se possa utilizar material “disposable”. Os profissionais que exercem estas actividades devem lavar cuidadosamente as mãos e utilizar luvas de látex para a sua realização. – Promover a educação dos profissionais de saúde e recomendar o cumprimento rigoroso das regras de segurança universalmente estabelecidas, de modo a evitar a contaminação dos doentes e dos profissionais de saúde. Os doentes podem infectar-se nos hospitais por contaminação cruzada com outros doentes. Têm sido responsabilizadas as endoscopias digestivas com biopsia, por insuficiente desinfecção do canal de biopsia, mas é possível a transmissão do VHC através da utilização de qualquer instrumento inadequadamente esterilizado ou por violação das regras de precaução universal, como seja não mudar de luvas após o atendimento de um doente e passar a atender outro. Os cirurgiões infectados com o VHC devem abandonar as práticas cirúrgicas que aumentam o risco de transmissão da infecção, como a cirurgia abdominal, ginecológica, ortopédica e traumatológica e cardiotoráxica. Esta restrição à prática cirúrgica deve manter-se enquanto se mantiver a positividade para o ARN-VHC. A seroprevalência do anti-VHC em profissionais de saúde oscila entre 0,3 a 4,8%, quase sempre superior à dos dadores de sangue. Apesar deste risco ser baixo, poder-se-ia reduzir ainda mais se houvesse o cumprimento escrupuloso das medidas de precaução universais e, destas, sobretudo, evitar o encapsulamento das agulhas depois de usadas, a principal causa de inoculações acidentais nos profissionais de saúde. – Não se recomenda a cesariana em detrimento do parto por via vaginal. A amamentação não está contra-indicada. Não existe indicação para administração de imunoglobulina após o parto. No entanto, é de evitar a rotura precoce da bolsa, o traumatismo do escalpe para monitorização fetal e a execução de amniocentese. – Os familiares de doentes infectados devem cumprir as regras de segurança recomendadas para a população em geral, tendo particular atenção em não partilhar objectos potencialmente contaminados, como escovas de dentes, lâminas de barbear, corta-unhas. Numa relação monogâmica, o uso de preservativo está indicado se o casal tem relações sexuais durante o período menstrual (no caso de ser a mulher a infectada), se existem lacerações genitais com eventual contágio sanguíneo, se da actividade sexual resultar trauma, ou se existe serologia positiva para a sífilis ou toxicofilia. Por outro lado, não existe evidência que contactos físicos como beijos e carícias, o espirro ou a partilha de talheres ou de outros utensílios de cozinha possam ser veículo de transmissão da doença. 181 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS – Efectuar uma educação continuada da população em geral, doentes, familiares, pessoal de saúde e grupos de risco, clarificando os modos de transmissão e as formas de transmissão da doença. – Indivíduos com história de tatuagens, piercings, acupunctura, manicura, podologista, mesoterapia, tratamentos de estética e tratamentos dentários em países de risco ou locais de higiene duvidosa. – Parceiro sexual de doente infectado. Prevenção secundária – Imigrantes de países de elevada prevalência da infecção C. A prevenção secundária passa pela identificação dos indivíduos em risco e pela pesquisa da infecção pelo VHC. Devem ser rastreados para o VHC40-42: Não é necessário o rastreio nos profissionais de saúde, nos familiares de pessoas infectadas (exceptuando o parceiro sexual) e a população em geral. – Todas as pessoas que tenham algumas vez injectado drogas ilícitas, mesmo que apenas uma vez ou há vários anos. No caso de picada acidental (risco de contaminação de 2%) ou outro tipo de exposição percutânea a sangue anti-VHC não dispomos de nenhuma medida específica. Não se demonstrou que a gamaglobulina fosse eficaz. Deve fazer-se a declaração do acidente. Recomenda-se o despiste da infecção na fonte, juntamente com a pesquisa do VHB e VIH e a pesquisa serológica do acidentado. Se a fonte for anti-VHC positiva deve determinarse o ARN-VHC para assegurar da sua infecciosidade no caso de ser positivo ou excluí-la no caso de ser negativa. Se a fonte não aceitar fazer o exame serológico, considera-se como positivo. – Todas as pessoas que efectuaram transfusão de sangue ou derivados, ou transplante de órgãos antes de 1992. – Todas as pessoas que tenham utilizado seringas de vidro reutilizáveis. – Hemodializados crónicos, transplantados renais e hemofílicos. – Todos os indivíduos que apresentem alterações persistente das transaminases. – Doentes VIH positivos. – Indivíduos com actividade sexual promíscua, que não utilizem protecção ou com doenças sexualmente transmissíveis. Se a pesquisa for positiva, o indivíduo exposto deve efectuar um doseamento basal da ALT e a pesquisa do anti-VHC. O seguimento pode ser efectuado pela reavaliação do antiVHC e da ALT aos 4 a 6 meses. Se os resultados continuarem negativos pode considerar-se que não houve transmissão. Se no seguimento o anti-VHC for positivo, deve determinar-se o ARN-VHC. Se este for negativo, deve interpretar-se como uma infecção C autolimitada, já resolvida no momento do exame. Se for positivo, considera-se que existe uma infecção C. O seguimento serológico deve prolongar-se até aos 12 meses, no caso da fonte estar infectada com o VHC e o VIH, já que a coinfecção dos dois vírus atrasa a aparecimento da serolo- – Filhos de mães anti-VHC positivas – o rastreio pode ser efectuado pela pesquisa do ARN-VHC aos 1-2 meses ou do antiVHC aos 12 meses. – Profissionais de saúde após exposição acidental a produtos potencialmente contaminados com sangue anti-VHC positivo. – Todas as pessoas que queiram efectuar o rastreio. O rastreio deve ainda realizar-se em: – Utilizadores de drogas ilícitas, como a cocaína inalada. 182 Fátima Augusto mentos específicos que consistem na administração de anticorpos neutralizantes contra estes vírus, como sejam a administração de imunoglobulinas específicas e vacinas. gia C. O seguimento mediante a determinação do ARN-VHC, proposto com o objectivo de determinar mais precocemente a infecção pelo VHC, antes do desenvolvimento de anticorpos não tem vantagens, já que pode detectar infecções leves e transitórias, sem nenhuma repercussão clínica7,43. Se durante o seguimento houver manifestação de uma hepatite aguda com expressão clínica, confirmada pela positividade do ARN-VHC, deve tomar-se a decisão de iniciar ou não terapêutica7,43. As medidas com maior impacto na prevenção da hepatite A são a garantia da potabilidade da água de consumo e a existência de uma boa rede de esgotos. A gamaglobulina sérica apesar de eficaz e segura, tem sido substituída pela vacina, não só porque se reduziram as suas indicações, sobretudo na profilaxia pré-exposição em que foi substituída pela vacina, mais eficaz, como também pela diminuição da taxa de anticorpos neutralizantes (anti-VHA) que contém e pela escassa duração do seu efeito protector. A gamaglobulina continua a ter indicação na profilaxia pósexposição. A vacinação não tem indicação para aplicação universal, estando indicada a sua administração nos grupos de risco. HEPATITE E A hepatite E é transmitida principalmente por via fecal-oral. É endémica em muitos países em vias de desenvolvimento da Ásia, África, Médio Oriente e América Central, ocorrendo, por vezes, em surtos epidémicos. Caracteriza-se, à semelhança da hepatite A, por ser geralmente uma infecção autolimitada, com uma taxa de mortalidade na população em geral de 1 a 3%, atingindo os 15 a 25% nas gestantes no terceiro trimestre. A incidência da hepatite B diminuiu em todo o mundo à custa da implementação de programas de vacinação universal que incluem os recém-nascidos e os pré-adolescentes, mantendo-se a indicação para vacinar os grupos de risco. A prevenção passa pela melhoria das condições higieno-sanitárias: água potável e boas condições de saneamento básico são factores chave para a diminuição e erradicação desta infecção. Em zonas endémicas deve-se fomentar o uso de água fervida para beber, cozinhar e tomar banho44. Não se justifica o isolamento das pessoas infectadas, visto que a transmissão interpessoal é rara. A prevenção da coinfecção delta é assegurada pela vacinação contra a hepatite B e a prevenção da superinfecção pela adopção de medidas educacionais, esperando-se que no futuro se consiga um controlo quase completo desta infecção à custa da vacinação em massa contra a hepatite B. Os viajantes para zonas endémicas não devem consumir água ou gelo de origem duvidosa, moluscos bivalves, vegetais e frutos crus. Não existe imunoglobulina específica na prevenção da hepatite E e a vacina que existe ainda se encontra em fase experimental45. A prevenção da transmissão da hepatite C passa pela implementação de medidas de prevenção da toxicodependência, generalização das normas de precaução universal e das medidas de controlo da infecção e promoção das práticas de “sexo seguro”. CONCLUSÕES A prevenção da hepatite E consegue-se através da melhoria das condições higienosanitárias nas zonas endémicas. A prevenção das hepatites virais inclui um conjunto de medidas gerais que evitam a transmissão dos vírus das hepatites e procedi183 PREVENÇÃO DAS HEPATITES VIRAIS BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. World Health Organization Weekly Epidemiological Record 1997;72:341-48. Shapiro C, Margolis H. 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Barcelona: Publicaciones Permanyer; 2004 185 PREVENÇÃO EM ENDOSCOPIA PREVENÇÃO DAS COMPLICAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA ROGÉRIO GODINHO, RUI LOUREIRO INTRODUÇÃO copia, diagnóstica ou terapêutica, só se justifica se da sua execução resultar um benefício previsível para o doente e não apenas um diagnóstico ou um gesto técnico realizado somente porque é possível. Essa responsabilidade estende-se à necessidade de informação dos riscos e discussão de alternativas com quem é o principal interessado na questão – o indivíduo submetido à endoscopia [2]. A melhor abordagem das complicações é a sua prevenção. A fim de minimizar os efeitos nefastos para os doentes, é importante que os endoscopistas conheçam as complicações possíveis, as reconheçam e estejam preparados para o seu tratamento precoce, respeitem princípios gerais de segurança comuns e adoptem actuações específicas para cada técnica, associadas a bom senso – Quadro I [3]. Neste trabalho, privilegiou-se a informação disponível em guidelines internacionais. As guidelines são desenvolvidas a pensar na ajuda à prática clínica, com as respostas mais adequadas a circunstâncias específicas, com base em informação relevante de acordo com a prática médica comum e na medicina baseada na evidência, revista e discutida por profissionais experientes e assumidas e adoptadas por entidades científicas de crédito. Por outro lado, se bem que não constituam força de lei directa, têm uma significância indirecta crescente em litígios por negligência médica, uma vez que são consideradas em tribunal como representativas do estado-da-arte [4]. A endoscopia gastrointestinal tem vindo a crescer de importância, na prática médica de rotina, desde o desenvolvimento da endoscopia flexível no início da década de 70, não apenas como método de diagnóstico mas também com uma progressiva expansão a áreas terapêuticas. Apesar de utilizar portas de entrada naturais, não deixa de ser um método invasivo com inevitáveis riscos e complicações, não necessariamente resultantes de erros, negligência ou incompetência técnica. A maior parte dos riscos são inerentes aos procedimentos endoscópicos e à população instável em que muitas vezes são efectuados, sendo, frequentemente, a única ou a mais segura capacidade de intervenção terapêutica invasiva. Por outro lado, as verdadeiras complicações endoscópicas são apenas um subgrupo dos resultados negativos possíveis. O insucesso, como no caso de uma papila não canulada num doente em colangite, pode ser mais deletério para o doente que uma hemorragia pós-esfincterotomia e o refluxo, que aparece na sequência de uma acalásia eficazmente dilatada, não é uma complicação mas antes um efeito secundário previsível [1]. A responsabilidade moral e profissional dos endoscopistas prende-se com a prevenção dos riscos preveníveis e a redução ao mínimo das consequências das complicações não preveníveis, não esquecendo nunca que a endos- 187 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA QUADRO 1 – PRINCÍPIOS GERAIS PARA A PREVENÇÃO DE COMPLICAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA (adaptado de [3]) Selecção cuidadosa dos doentes • Eliminação de indicações dúbias para a realização da técnica • Ter em atenção as contra-indicações das técnicas • Considerar abordagens alternativas Adequada estratificação do risco do procedimento Assegurar a existência de um consentimento efectivamente informado Seguimento das recomendações estabelecidas quanto a: • Abordagem de doentes anticoagulados/antiagregados • Antibioterapia profilática • Limpeza e desinfecção dos aparelhos • Sedação e monitorização durante o exame Os procedimentos devem ser realizados por endoscopistas experientes* Realização do procedimento em contexto apropriado • Assistentes experientes e em número adequado • Utilização de equipamento adequado e em boas condições • Com fácil acesso a outro tipo de cuidados (ressuscitação, cirurgia, cuidados intensivos) Trabalho em equipa com adopção de uma cultura de segurança Avaliação das complicações verificadas com intuito de identificar eventuais erros e sua prevenção Realização de controlo de qualidade em endoscopia *Ou por endoscopistas em formação sob supervisão adequada vez mais numerosas. As complicações não devem ser escamoteadas, pelo contrário, é de toda a importância que floresça uma filosofia de levantamento, registo e auditoria científica das ocorrências, não com intuitos persecutórios mas de análise e de partilha de conhecimentos. Para isso, é indispensável a informatização clínica dos blocos de endoscopia. A preocupação inicial do endoscopista na prevenção de complicações relacionadas com um procedimento endoscópico é assegurar-se do benefício clínico da sua realização. Um estudo americano considerou como duvidosa a indicação para o exame em cerca de 10% das endoscopias [5]. Parece-nos que, em Portugal, o cenário será certamente ainda mais expressivo. A preparação do doente para a endoscopia inclui uma adequada informação dos riscos, benefícios e alternativas. A obtenção de Consentimento Informado é um requerimento legal. Como preparação para a endoscopia digestiva alta (EDA) recomenda-se, em geral, um jejum de 6-8 horas, permitindo-se pequenos golos de água, nomeadamente para a toma de terapêutica. Em doentes com problemas conhecidos de esvaziamento gástrico pode ser necessário um período maior. CONDIÇÕES FÍSICAS, INDICAÇÕES E PREPARAÇÃO DO DOENTE Como princípios gerais na prevenção de complicações ligadas à endoscopia digestiva é importante que esta seja praticada num espaço físico adequado, utilizando equipamento de alta qualidade e com fácil acesso a recursos de emergência, como a reanimação, cirurgia e cuidados intensivos. A funcionalidade de uma unidade de endoscopia assemelha-se, cada vez mais, à exigida a um bloco operatório. É indispensável uma cultura de trabalho de equipa, com endoscopistas e assistentes correctamente formados e competentes e uma adequada supervisão dos elementos em formação. Não é exagerado insistir na exigência de blocos de endoscopia com áreas de trabalho generosas, funcional e ergonomicamente ajustadas a uma actividade que é progressivamente mais delicada e arriscada, mais demorada e com necessidade de sedação mais frequente, prolongada e profunda, praticada em doentes mais instáveis e vulneráveis, com maior necessidade de recobro, vigilância e capacidade de reanimação, dependente de uma eficiente colaboração de equipas cada 188 R. Godinho, R. Loureiro Na preparação para EDA, o jejum mínimo para líquidos é de 2 horas. Para leite e sólidos, deverá ser de 4 horas para crianças com menos de 5 meses, 6 horas até aos 3 anos e 8 horas depois dos 3 anos. Pelo risco de hipoglicémia, justifica-se a manutenção de um soro dextrosado. A extracção prévia de dentes de leite instáveis pode justificar-se pelo risco de inalação. Na preparação para colonoscopia em crianças pequenas com dejecções frequentes ou normais, dieta líquida durante 24 horas e um enema salino (5cc/kg) é habitualmente suficiente; em crianças maiores, a preparação com soluções de polietinelo-glycol (40cc/kg/hora) é adequada, por vezes com necessidade de administração nasogástrica, em meio hospitalar. O desconforto da preparação cólica pode comprometer a aceitação de uma nova endoscopia digestiva baixa (EDB). Em crianças com> 25Kg é, em geral, segura a utilização de gastroscópios de adultos com calibre <= 9,7mm de diâmetro. Em crianças menores, deverão ser utilizados gastroscópios de 5-8mm. Colonoscópios de adulto são aceitáveis no exame de adolescentes mas para crianças mais pequenas são preferíveis colonoscópios pediátricos (<=11,7 mm); lactentes e recém-nascidos devem ser colonoscopados com gastroscópios, standard ou pediátricos. A anestesia geral é frequentemente necessária mas a sedação consciente com midazolam +/- petidina/fentanilo é viável, com necessidade de ajustar a dose à resposta, respeitando um intervalo de tempo entre as administrações das doses suficiente para avaliar o resultado. As crianças entre os 3 e 9 anos são as que requerem habitualmente mais sedação. Diferenças fisiológicas entre a criança e o adulto aumentam o risco de potenciais complicações graves na sedação. As crianças toleram pior os episódios de hipoxémia e são mais susceptíveis a episódios de oclusão aérea estática ou dinâmica, com ou sem sedação, agravados pelo decúbito e contenção mecânica, e maiores riscos de hipotermia em exames prolongados. Está indicada a utilização, por A preparação para colonoscopia envolve uma limpeza adequada do cólon. Vários métodos de preparação são aceites [6]. As preparações à base de fosfato de sódio foram implicadas na indução de lesões aftóides da mucosa que podem imitar a aparência endoscópica da Doença de Crohn. Podem, também, ser responsáveis por perturbações hidroelectrolíticas com absorção de água e perturbações iónicas, com repercussão clínica potencial, particularmente em doentes com insuficiência cardíaca congestiva e insuficiência renal. Pela mesma razão, as soluções electrolíticas de lavagem à base de polietileno-glycol não devem ser misturadas com líquidos contendo carbohidratos, pela modificação da sua tonicidade, que facilita a absorção de sódio e correspondente mobilização de água e pelo risco de conversão em gases explosivos dos carbohidratos fermentáveis [7]. É de realçar que na utilização de electrocirurgia e Argon, mesmo no cólon distal e recto, é mais seguro que a preparação seja efectuada com lavagem intestinal habitual para colonoscopia [2]. A American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) recomenda a não realização de exames de rotina na ausência de patologia conhecida ou suspeita, em endoscopia electiva de ambulatório, incluindo análises de coagulação em exames em que se preveja procedimentos de alto risco hemorrágico como a esfincterotomia endoscópica (ETE) e a polipectomia [8]; no entanto, a posição da British Society of Gastroenterology (BSG) é diferente, pelo menos para a colonoscopia terapêutica e CPRE (Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica), recomendando que todos os doentes programados para CPRE tenham uma avaliação de plaquetas e INR (International Normalised Ratio) nas 24 horas prévias, no sentido de confirmar valores de plaquetas> 50.000 e INR <1,2 [9,10]. Endoscopia em idade pediátrica [11,12] A Endoscopia em idade pediátrica requer atenção para particularidades fisiológicas e emocionais, na criança e nos pais. 189 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA rotina, de oximetria de pulso, monitorização hemodinâmica e suplementação de oxigénio. Um assistente com treino em monitorização pediátrica e, pelo menos, suporte básico de vida pediátrico deve estar presente durante a endoscopia e o recobro. Durante a execução dos exames há que ter particular prudência nos gestos e insuflação, pela maior fragilidade da mucosa, risco de hematomas na biopsia e distensão gástrica aguda. Nalgumas indicações, é preferível fazer uma endoscopia incompleta, pela angulação marcada do duodeno. A bacia estreita pode dificultar a ultrapassagem da sigmoide, podendo ser útil a ajuda da palpação abdominal em posição dorsal. Endoscopia na grávida e lactente [13] Os procedimentos invasivos na grávida e lactente justificam-se quando é claro que, se não forem efectuados, se está a pôr em risco a mãe ou o feto. Em situações onde uma intervenção terapêutica é indispensável, a endoscopia possibilita uma alternativa mais segura que a cirurgia ou a radiologia de intervenção. O feto é particularmente sensível à hipóxia e hipotensão materna, quer devido à sedação excessiva quer a posicionamentos que comprometam a irrigação uterina devido à compressão da veia cava inferior pelo útero gravídico. Os princípios gerais a seguir na endoscopia na grávida são descritos no Quadro 2. A endoscopia alta é realizada da maneira habitual. Na colonoscopia, a grávida não deverá permanecer em decúbito dorsal e, se for necessária pressão externa esta deverá ser efectuada com grande cuidado e afastada do útero; preparação com clisteres de água e soluções de polietilenoglicol são de baixo risco mas as preparações à base de fosfato de sódio devem ser evitadas. A CPRE apenas deverá ser efectuada com intenção terapêutica e por endoscopistas com experiência. Há necessidade de proteger o útero das radiações ionizantes, com aventais de chumbo colocados sob a pélvis e abdómen inferior; evitar a aquisição de películas e tentar que a radioscopia seja o mais breve possível; a corrente bipolar é mais segura que a monopolar. Apesar da electrocoagulação ser relativamente segura para a execução de esfincterotomias e hemostase, as polipectomias deverão ser deferidas para depois da gravidez. Colocar o eléctrodo neutro de maneira a minimizar a passagem de corrente pelo líquido amniótico, afastando o útero da passagem da corrente entre a entrada (ao nível do catéter activo) e a saída (eléctrodo de retorno no doente). Para a maior parte dos exames o nível de sedação deverá ser a ansiólise ou sedação moderada. Na necessidade de sedação profunda, esta deverá estar a cargo de anestesista, sendo recomendável apoio obstétrico e prudente a monitorização QUADRO 2 – PRINCÍPIOS GERAIS DA ENDOSCOPIA NA GRÁVIDA (adaptado de [13]) 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Contra-indicada na presença de complicações obstétricas como placenta prévia, parto eminente, ruptura de membranas ou eclampsia. Indicação forte, particularmente na gravidez de alto risco a. Hemorragia GI significativa ou continuada b. Náuseas, vómitos ou dor abdominal severas ou refractárias c. Disfagia ou odinofagia d. Forte suspeita de um tumor cólico e. Diarreia severa com restante avaliação negativa f. Pancreatite biliar, colangite ou coledocolitiase g. Lesão do canal biliar ou pancreático Deferir a endoscopia para o 2.° trimestre, sempre que possível Usar a dose mais baixa eficaz de sedação. Não existem medicamentos adequados para sedação classificados como categoria A pela FDA; usar preferencialmente os de categoria B (ver quadro 3) Minimizar a duração do procedimento. Posicionar a grávida em decúbito lateral esquerdo. Confirmar batimentos cardíacos fetais antes da sedação e após a endoscopia. Suporte obstétrico se suspeita de riscos para a gravidez. 190 R. Godinho, R. Loureiro fetal. A petidina parece ser de baixo risco nas doses usuais em endoscopia; se forem necessárias benzodiazepinas, utilizar preferencialmente pequenas doses de midazolam. O fentanilo também poderá ser utilizado em pequenas doses. O propofol não foi estudado durante o 1.° e 2.° trimestre e, portanto, deve ser evitado. A naloxona e o flumazenil só devem ser utilizados se for clinicamente importante uma rápida reversão da sedação materna. O glucagon e a simeticona são drogas de baixo risco mas, na maioria dos casos, não são indispensáveis para uma endoscopia eficaz. A profilaxia antibiótica com ampicilina é de baixo risco mas a gentamicina deve ser reservada apenas para doentes com sepsis biliar. No lactente, as preocupações prendem-se essencialmente com a utilização de medicamentos excretados no leite materno. A ama- mentação pode ser continuada após sedação com fentanilo, que é preferível à petidina, e 4 horas após a utilização de midazolam. Não é recomendável a amamentação após a sedação com propofol, mas o período de proibição ainda não está definido. Antibióticos seguros durante a amamentação são as penicilinas, cefalosporinas, eritromicina, tetraciclina e nitrofurantoina (excepto em lactentes com deficiência em glucose-6-fosfato desidrogenase); antibióticos a evitar: sulfamidas, quinolonas e metronidazole. Quadros 3 e 4. Endoscopia no idoso [14,15,16] A idade avançada não é uma contra-indicação para a realização de endoscopia mas esta apenas deverá ser efectuada se os resultados influenciarem as decisões clínicas e o QUADRO 3 – SEGURANÇA DOS MEDICAMENTOS NA GRAVIDEZ E LACTAÇÃO (ADAPTADO DE [13]) Medicamento Petidina É preferível à Morfina e Fentanilo (categoria C) Naloxona Está contraindicado em mães dependentes de opiácios Benzodiazepinas O diazepam não deve ser utilizado e o midazolam apenas quando a sedação com petidina é inadequada e a evitar no 1.° trimestre. Flumazenil Propofol Deve ser administrado por anestesiologista, pelo estreito índice terapêutico. Glucagon Lidocaina tópica É preferível pedir para não engolir. Adrenalina Causa uma diminuição do fluxo sanguíneo do útero; a sua segurança na hemostase endoscópica não foi estudada. Preparação para colonoscopia Polietileno-glycol Fosfato de sódio Antibióticos na gravidez Penicilinas, Cefalosporinas, Eritromicina (excepto estolato), Clindamicina Quinolonas; Estreptomicina; Tetraciclina Metronidazole Sulfonamidas; Nitrofurantoina Antibióticos na lactação Penicilinas, Cefalosporinas, Eritromicina, Tetraciclina, Nitrofurantoina Sulfonamidas, Quinolonas; Metronidazole 191 Categoria FDA Categoria B Categoria B Categoria D Categoria C Categoria B Categoria B Categoria B Categoria C Categoria C Categoria C Seguros Evitar Evitar no 1º Trimestre Evitar no 3º Trimestre Seguros Evitar PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA QUADRO 4 – FDA: CATEGORIAS DE SEGURANÇA PARA AS DROGAS USADAS NA GRAVIDEZ Categoria A B C D X Descrição Estudos em grávidas, adequados e bem controlados, não mostraram risco de alterações fetais Sem evidência de risco em estudos animais; Ausência de estudos adequados em grávidas. Ou Estudos animais demonstraram efeitos adversos, não confirmados em estudos em grávidas. Estudos animais demonstraram efeitos adversos e não há estudos adequados em grávidas. Ou Ausência de estudos animais e Ausência de estudos em grávidas. Estudos adequados em grávidas demonstraram risco para o feto; contudo, o benefício da terapêutica pode compensar o potencial risco. Estudos adequados, em animais ou grávidas, demonstraram evidência positiva de alterações fetais; o uso do produto é contra-indicado em grávidas. prognóstico, particularmente em doentes com esperança de vida limitada. Os exames de rastreio e vigilância para o cancro colorrectal em idades avançadas têm de ser ponderados em função do estado geral de saúde e comorbilidade existente; muitas autoridades recomendam como idades limite os 80 anos para rastreio e 85 para vigilância. A preparação para endoscopia na idade geriátrica pouco difere em relação aos adultos mais jovens. As preparações cólicas à base de fosfato de sódio deverão ser utilizadas com mais precaução pela maior frequência de Insuficiência Cardíaca e Renal. A electrocoagulação da corrente monopolar das ansas de polipectomia pode causar interferências electromagnéticas com a possibilidade de causarem inibição de pacemakers ou determinarem a detecção de falsas arritmias ventriculares. Desfibrilhadores intracardíacos devem ser desactivados antes da utilização de electrocoagulação. Métodos alternativos de remoção ou destruição tecidular e de hemostase devem ser considerados. O mesmo risco teórico existe com as emissões digitais de radiofrequência da cápsula endoscópica pelo que, até existirem dados de segurança, a endoscopia por cápsula deverá ser efectuada em internamento com monitorização cardíaca em doentes com defibrilhadores intracardíacos. A sedação no idoso requer atenção à sua susceptibilidade aos sedativos. A oxigenação arterial deteriora-se com a idade, a estimula- ção cardiorrespiratória em resposta à hipóxia e hipercapnia é lenta e defeituosa, os depressores do sistema nervoso central (SNC) causam depressão respiratória e apneia transitória mais frequentes, o reflexo glótico está diminuído. São preferíveis fármacos com rápido início de acção e curta semi-vida (midazolam preferível ao diazepam; fentanilo preferível à petidina), com doses iniciais menores e ajuste mais gradual da dose eficaz. A suplementação de oxigénio deve ser muito liberal e o recobro mais prolongado. SEDAÇÃO E COMPLICAÇÕES CARDIOPULMONARES As complicações cardiopulmonares representam cerca de 50% da morbilidade e mortalidade associadas com a Endoscopia Digestiva [17] . As situações potencialmente mais sérias incluem a sedação excessiva, com risco de depressão respiratória com hipóxia e retenção de CO2, a excitação paradoxal, a pneumonia de aspiração, as arritmias cardíacas, a hipertensão, a hipotensão e reacção vasovagal, o angor ou enfarte do miocárdio, os acidentes vasculares cerebrais e as reacções adversas farmacológicas. Na prevenção destas complicações, antes de mais, é importante conhecer a história relevante médico-cirúrgica e farmacológica do doente. Na endoscopia de urgência, o doente deve ser compensado o melhor possí192 R. Godinho, R. Loureiro vel antes de se efectuar a endoscopia. Na sedação efectuada pelo gastrenterologista, o que se pretende é a sedação consciente – sedação/analgesia ligeira a moderada, obtendo uma ansiólise e amnésia anterógrada, mas em que o indivíduo responde adequadamente a ordens verbais, não sendo necessárias intervenções para manter a respiração e ventilação espontâneas. Deverá, à partida, ser considerada a sedação profunda ou anestesia geral para doentes onde este tipo de sedação se preveja insuficiente e/ou pouco segura: doentes não colaborantes ou com severas limitações cognitivas, alguns alcoólicos e toxicodependentes, doentes com doença cardiopulmonar grave ou com depressão da consciência, nomeadamente encefalopatia, e em doentes com risco aumentado de obstrução aérea por razões anatómicas ou obesidade mórbida, síndrome de apneia do sono ou doença pulmonar obstrutiva [18]. Deverá também ser considerada, pela importância da protecção da via aérea, na hemorragia alta maciça, particularmente na suspeita de varizes esofágicas [17]. te na endoscopia terapêutica prolongada. Apesar de raramente, foi associado a arritmias cardíacas com prolongamento do intervalo QT, pelo que a sua utilização deverá ser reservada para procedimentos prolongados e com monitorização cardíaca contínua. A dose inicial não deverá exceder os 2,5 mg, com incrementos de 1,25mg até ao máximo de 5mg [18]. O propofol é um agente anestésico aprovado para a indução e manutenção anestésica e para sedação em doentes ventilados [18]. Pela sua rapidez na indução e recuperação anestésica, tem vindo a crescer de interesse na sedação profunda de ambulatório [19]. No entanto, dada a sua pequena janela terapêutica, levanta preocupações de segurança na sua administração e controvérsia na qualificação de quem o administra. A BSG [16] recomenda que a sedação com Propofol não deva ser efectuada na ausência de um anestesiologista; no entanto esta posição não é consensual, desde que seja administrado por um profissional qualificado, apenas com responsabilidade na sedação e monitorização do doente e esteja presente na sala alguém com treino em suporte avançado de vida [18,20]. Todos os doentes sedados, e alguns doentes não sedados seleccionados, deverão ter, durante o exame e o período de recobro, um acesso venoso com cânula flexível e não apenas uma “butterfly”, oxigénio e monitorização com oximetria de pulso; a monitorização electrocardiográfica e da tensão arterial deverá estar rapidamente acessível para doentes de risco. A oximetria de pulso é um útil indicador da oxigenação mas não da ventilação! Na presença de oxigénio suplementar, a descida da saturação está retardada 30-90 segundos duma depressão respiratória/apneia grave, razão pelo que a capnografia contínua é recomendada na sedação com propofol, por ser o indicador mais precoce de depressão respiratória [16,17,18]. A vigilância clínica é indispensável, e deverá ser continuada na sala de recobro, mantendo contacto verbal frequente e regular com o doente sedado, se necessário utilizando estimu- Os fármacos mais recomendados para a sedação consciente são as benzodiazepinas – midazolam e diazepam – e os analgésicos opióides – petidina e fentanilo. O midazolam e o fentanilo têm um início de acção mais rápido e tempos de semivida menores, pelo que são preferíveis [19]. O efeito sedativo destes fármacos é sinérgico, pelo que há necessidade de atenção redobrada quando são usados em conjunto. A dose utilizada deverá ser a mínima eficaz e, no caso de utilização conjunta, os opióides deverão ser administrados primeiro. Na maioria dos exames endoscópicos, as doses máximas recomendadas são 5mg de midazolam, 50mg de petidina e 100 mcg de fentanilo. Nos idosos, a administração deverá ser efectuada com incrementos de pequenas quantidades, com pausas para avaliar o efeito, e redução da dose total em cerca de 50% [16]. O droperidol é um agente neuroléptico com efeitos sedativos, com eficácia demonstrada em doentes difíceis de sedar, nomeadamen- 193 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA lações tácteis ligeiras e incentivando-o a respirar fundo. Se o doente não responde satisfatoriamente, deverão ser administrados os antagonistas das drogas utilizadas – flumazenil e/ou naloxona. É recomendado reverter as benzodiazepinas antes dos opióides. Enquanto se espera pelo efeito dos antagonistas poderá haver necessidade de proteger a via aérea, com elevação do queixo, tubo de Guedel, Ambu ou, eventualmente, entubação traqueal. alto [27]. A Gastrostomia Percutânea Endoscópica (PEG) e a CPRE em doentes com obstrução biliar ou pseudoquistos pancreáticos têm risco infeccioso local que pode evoluir para sepsis grave. As recomendações actuais na prevenção da endocardite bacteriana assentam nas recomendações da American Heart Association de 1997 [28] aceites e adaptadas para incluir as situações de risco aumentado de bacteriémia sintomática pelas sociedades de gastrenterologia internacionais [26,27,29,30] e pela Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED) [31] . Apesar de, na sua essência, serem equiparáveis, existem diferenças de pormenor entre as recomendações das várias sociedades de endoscopia, susceptíveis de criarem confusão e impeditivas de uma uniformização das práticas de actuação nesta área. As principais diferenças evidenciam-se nas recomendações para os casos de fronteira – exames de baixo risco em doentes de alto risco e exames de risco em doentes de risco cardíaco moderado. A ASGE [29] e a European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) [27] reflectem uma posição baseada na evidência publicada de que só raramente uma endocardite se desenvolve na sequência de um procedimento endoscópico, sendo que, na maioria dos casos, não se identifica nenhum procedimento invasivo e que a profilaxia antibiótica nem sempre é eficaz [27] – não há evidências que suportem a profilaxia antibiótica nestes casos, pelo que a sua utilização é opcional e determinada caso a caso. No entanto, a Société Française D’Endoscopie Digestive (SFED) [30] e a British Society of Gastroenterology (BSG) [26,32] parecem valorizar o receio que, frequentemente nos é transmitido pelos colegas de cardiologia na prática clínica de todos os dias – as consequências de uma endocardite são tão catastróficas que é preferível prevenir em excesso. Esta última, em documento publicado on-line em Março de 2006 [32], resultante de uma reunião de consenso com grupos de trabalho de cardiologia e microbiologia, afirmou a necessidade de clarificação das recomendações nesses casos e PROFILAXIA DA INFECÇÃO EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA As complicações infecciosas são consequências raras da endoscopia digestiva e podem ser divididas em três grupos: infecção a partir da própria flora do doente em que a endoscopia promove bacteriémia; transmissão de infecção de doente a doente através do endoscópio; contaminação do pessoal de saúde pelo doente e vice-versa [21,22]. Esta última situação está dependente de precauções universais nos serviços de saúde, não sendo específica da endoscopia, pelo que não será abordada neste trabalho, sugerindo-se como documentos de estudo as guidelines do Center for Disease Control (CDC) [23,24] e da ASGE [25]. Infecção endógena A maioria dos procedimentos endoscópicos não necessita de profilaxia antibiótica, mesmo em doentes com patologia cardíaca e vascular. A bacteriémia na sequência de exames endoscópicos é frequente mas transitória, não mais significativa do que em algumas actividades diárias como a escovagem de dentes [21, 26], com pouca probabilidade de causar danos, a não ser que exista uma susceptibilidade aumentada e apenas para alguns procedimentos endoscópicos em que a taxa de bacteriémia é elevada e com bactérias habitualmente associadas a endocardite – dilatação de estenoses esofágicas, escleroterapia de varizes esofágicas, terapêutica fototérmica no tracto gastrointestinal 194 R. Godinho, R. Loureiro transformou, para “cima”, as situações opcionais nas outras sociedades – recomendação de profilaxia antibiótica em TODOS os exames endoscópicos nos doentes de alto risco e nos exames de alto risco em doentes de risco cardíaco moderado. Os regimes de antibioterapia propostos nas diversas recomendações também variam em pormenores, essencialmente na dose. Na recomendação da BSG, a mais actual de todas elas, foi abandonada a necessidade da clássica dose 6 horas pós-exame e substituída a vancomicina pela teicoplanina nos doentes alérgicos à penicilina. A PEG e a CPRE, nas situações referidas, são de profilaxia em todos os doentes. A ESGE recomenda também profilaxia em todas as CPRE terapêuticas. Nestes doentes, quando co-existem lesões cardíacas de risco, deverá ser adicionada a profilaxia da endocardite bacteriana. A necessidade de profilaxia na ascite e imunocomprometidos ainda não está esclarecida, devendo ser considerada caso a caso, sendo recomendada pela SPED, nos exames de alto risco [31]. Contudo, a hemorragia digestiva é considerada um risco independente de infecção no cirrótico, pelo que é recomendada profilaxia com quinolonas [29,38,39]. Parece-nos importante realçar que estas recomendações deverão ser adaptadas às características microbiológicas do hospital/ /comunidade. Em Portugal, existe uma elevada taxa de resistência às quinolonas, motivo pelo qual, no Hospital Garcia de Orta, EPE – Almada – a Comissão de Infecção não aceitou a ciprofloxacina para profilaxia em CPRE. Nos quadros 5 e 6 procurou-se agrupar as recomendações relevantes na profilaxia da infecção endógena em endoscopia digestiva. problema que se reveste de grande preocupação pública e tem merecido a atenção da comunidade médica, o que levou à adopção de normas de consenso de várias sociedades [37]. Os endoscópios flexíveis são considerados instrumentos semi-críticos – contactam com membranas mucosas ou pele não intacta – e necessitam de desinfecção de alto nível, enquanto que os acessórios que invadem tecido estéril ou o espaço vascular, como as agulhas de esclerose, as pinças de biópsia e os esfincterótomos são considerados instrumentos de uso crítico, exigindo a esterilização [21]. Esta pode ser conseguida por autoclave ou óxido de etileno ou pela utilização de materiais de uso único, que são os recomendados para biopsias do íleon na suspeita de encefalopatia espongiforme [38]. A esterilização dos endoscópios pode estar indicada, quando funcionam como instrumento de nível crítico, a serem utilizados através de enterotomia cirúrgica, com possibilidade de contaminar o campo operatório. Não sendo compatíveis com a esterilização por autoclave, esta pode ser conseguida pelo óxido de etileno ou pela exposição prolongada aos desinfectantes químicos [21]. Não é nossa intenção detalhar os protocolos de desinfecção reconhecidos para os endoscópios, mas recordam-se os passos fundamentais: 1) lavagem manual das superfícies externas e internas; 2) utilização de um germicida químico líquido eficaz, na duração e temperatura recomendada e monitorizando a concentração mínima efectiva; 3) enxaguamento com água microbiologicamente pura; 4) secagem com álcool a 70º e ar comprimido e arrumação em área bem ventilada e não húmida [39]. Cada vez está mais generalizada, pelo menos a nível hospitalar, a desinfecção automática. No entanto, é indispensável não confundir que se trata de máquinas de desinfecção e não máquinas de lavagem. Alguns pontos críticos da desinfecção de endoscópios flexíveis continuam a depender de tarefas manuais: uma completa lavagem como pri- Infecção exógena A transmissão de infecções através da endoscopia é real mas extremamente rara, tendo em conta o número de procedimentos endoscópicos que se efectuam [35] e, nos casos reportados, documentaram-se quebras nos protocolos de desinfecção [36]. É, no entanto, um 195 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA meiro passo da desinfecção, sem a qual esta é ineficaz, particularmente fulcral no elevador dos duodenoscópios [36], a secagem e um adequado armazenamento para impedir o desen- volvimento de Pseudomonas aeroginosa, que é um dos principais agentes infecciosos envolvidos nos casos de infecção atribuída à endoscopia [40]. QUADRO 5 – PROFILAXIA ANTIBIÓTICA EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA Condições associadas a alto risco de endocardite bacteriana ou bacteriémia sintomática RISCO ELEVADO • Válvula cardíaca prostésica • Endocardite prévia • Shunt cirúrgico sistémico pulmonar • Enxerto vascular sintético com menos de 1 ano • Neutropénia severa (neutrófilos < 100 x 109/L) RISCO MODERADO, LIGEIRO OU TEÓRICO • Prolapso da válvula mitral COM insuficiência • Valvulopatia reumática ou cardiopatia congénita • Cardiomiopatia Hipertrófica • Shunt ventrículo-peritoneal • Transplante cardíaco • Neutropénia moderada (neutrófilos 100-500 x 109/L) SEM RISCO AUMENTADO • Prolapso da válvula mitral SEM insuficiência • Pacemaker cardíaco • Bypass coronário • Próteses ortopédicas • Ascite • Imunocomprometidos, excepto neutropénia Risco infeccioso dos procedimentos endoscópicos ALTO RISCO A – Risco Aumentado para Endocardite e Bacteriémia • Dilatação esofágica • Esclerose de varizes • LASER em EDA BAIXO RISCO B – Risco Aumentado para Infecção Local • CPRE na obstrução biliar e pseudo- • Todas as outras situações quistos pancreáticos1 • EUS-FNA em quistos pancreáticos • PEG Recomendações de profilaxia antibiótica nos procedimentos endoscópicos DOENTE PROCEDIMENTO Profilaxia da Endocardite Bacteriana e Bacteriémia sintomática Risco Elevado Exame de Alto Risco Exames de Baixo Risco Risco Moderado/Ligeiro Exame de Alto Risco Exames de Baixo Risco Sem Risco Aumentado Todos os Exames Profilaxia da Infecção Local Obstrução Biliar Quistos Pancreáticos Todos os doentes Profilaxia na Neutropénia Severa CPRE CPRE, EUS – FNA PEG Adicionar o Regime D aos regimes apropriados HDA na Cirrose Hepática Cirrose, ascite e imunocomprometidos 1 2 3 Todos os exames Exames de Alto Risco PROFILAXIA Regime A ou A1 Opcional2 Opcional2 Não Recomendado Não Recomendado Regime B Regime B Regime C Regime D + A/A1 ou B ou C Regime E Opcional3 (escolha de antibiótico de acordo com risco previsto) A ESGE considera de Risco Aumentado todas as CPRE terapêuticas, recomendando Profilaxia A BSG e a SFED recomendam profilaxia nestas circunstâncias A SPED recomenda profilaxia nestes doentes na CPRE, dilatação esofágica e esclerose de varizes 196 R. Godinho, R. Loureiro QUADRO 6 – REGIMES ANTIBIÓTICOS RECOMENDADOS (adaptado de [27]) A. Regime Geral para doentes não Alérgicos a Penicilina 1 Adultos: Ampicilina/Amoxicilina 1-2 g EV/IM + Gentamicina 1,5 mg/kg EV/IM administrados 0-30 minutos antes do exame, seguido de Amoxicilina 1,5g oral (ou Ampicilina 1g EV) 6 horas depois. Crianças <10 anos: Amoxicilina 500mg EV/IM + Gentamicina 2 mg/kg EV/IM administrados 0-30 minutos antes do exame, seguido de Amoxicilina 250mg (5-9 anos) ou 125mg (0-4 anos) oral (ou Ampicilina 25mg/kg, EV) 6 horas depois. A1. Regime Geral para doentes Alérgicos a Penicilina 2 Adultos: Vancomicina 1g EV lento (1-2 horas) + Gentamicina 1,5 mg/kg EV, 0-15 minutos antes do exame Crianças <10 anos: Vancomicina 20mg/kg EV lento (1-2 horas) + Gentamicina 2 mg/kg EV, 0-15 minutos antes do exame (Vancomicina pode ser substituída por Teicoplanina 400mg no adulto e 6mg/kg na criança, administrado 0-15 minutos antes do exame) B. Profilaxia em procedimentos biliopancreáticos 750 mg Ciprofloxacina oral 60-90 minutos antes do procedimento Ou 120 mg Gentamicina, EV, 0-15 minutos antes do procedimento Alternativas: quinolona, cefalosporina ou ureidopenicilina, EV, 0-15 minutos antes do procedimento C. Profilaxia na Gastrostomia Percutânea Endoscópica 2 g Cefotaxime (ou equivalente), EV, 30 minutos antes do procedimento Alternativas: 1,2 g Amoxiciclina/ácido clavulânico, EV Ou 4,5 g Piperacilina/Tazobactam, EV D. Doentes com Neutropénia Severa Adultos e Crianças: Adicionar Metronidazol 7,5 mg/kg, EV, aos restantes regimes E. Profilaxia na Hemorragia Digestiva no Cirrótico Ciprofloxacina 500mg, 2xdia, durante 7-10 dias, pela SNG ou EV seguido de Oral 1 A BSG abandonou a dose 6 horas após o procedimento 2 A BSG recomenda a Teicoplatina em vez da Vancomicina para o doente, tendo em conta três factores: o risco hemorrágico do procedimento endoscópico, a medicação antitrombótica utilizada e o risco tromboembólico da sua suspensão. ANTICOAGULAÇÃO E ANTIAGREGAÇÃO PLAQUETÁRIA A endoscopia em doentes sob terapêutica antiagregante ou anticoagulante é uma situação frequente em endoscopia digestiva e constitui um factor de risco para o doente em dois cenários principais: a hemorragia digestiva num contexto de antiagregação e/ou anticoagulação, terapêutica ou supra-terapêutica, e a execução de procedimentos endoscópicos com risco hemorrágico em doentes anticoagulados. Se o risco de hemorragia é uma preocupação legítima do gastrenterologista, o risco potencial de suspender o tratamento antitrombótico não deve ser subestimado. A suspensão brusca da varfarina pode levar a um agravamento súbito do risco tromboembólico [41]. Casos de morte súbita e de oclusão de stent estão descritos nos 7 dias seguintes à paragem dos anticoagulantes [42]. A decisão de suspender a terapêutica deve pesar o risco/benefício Risco hemorrágico dos procedimentos endoscópicos Quando o risco hemorrágico de um procedimento é pequeno, a terapêutica antitrombótica tem pouco impacto, principalmente em situações com possibilidade de hemostase endoscópica. A sua importância torna-se relevante em procedimentos com um risco hemorrágico espontâneo elevado e em procedimentos em que, apesar do risco de hemorragia não ser particularmente elevado, a acontecer, não é acessível a hemostase endoscópica ou compromete a terapêutica cirúrgica – quadro 7. São assim definidos procedimentos de baixo e de alto risco hemorrágico. 197 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA QUADRO 7 – RISCO HEMORRÁGICO DE PROCEDIMENTOS ENDOSCÓPICOS (ADAPTADO DE [42]) Procedimentos de ALTO RISCO Risco elevado de hemorragia (>1%) • Ressecção tecidular, fora da biópsia standard: – Polipectomia cólica (1% - 2,5%) – Polipectomia gástrica ou macrobópsia com ansa diatérmica (4%) – Mucosectomia endoscópica (até 22%) – Ampulectomia (8%) • Esfincterotomia endoscópica (2,5% – 5%) • Fotodestruição e fotocoagulação LASER (até 6%) • Tratamento endoscópico de varizes (até 6%) • Hemostase de lesões vasculares (até 5%) Pequeno risco de hemorragia (<1%), sem possibilidade de controlo endoscópico • EUS-FNA • Gastrostomia Endoscópica Percutânea • Dilatação de estenoses digestivas (pneumática ou com dilatadores rígidos) ou colocação de próteses metálicas sem dilatação • Endoscopia Alta por via nasal, pelo risco de epistaxis Procedimentos de BAIXO RISCO (< 1% ) • Exames diagnósticos • EDA ± biópsia • EDB ± biópsia • CPRE sem ETE • Colocação de Prótese bilio-pancreática, sem ETE • EUS sem FNA • Enteroscopia outros factores de risco, nomeadamente doença valvular (INR terapêutico de 2-3). Todas as outras indicações são de médio ou baixo risco tromboembólico. Nas condições de risco tromboembólico major, é indispensável considerar a sobreposição com Heparina clássica ou Heparina de Baixo Peso Molecular (HBPM) durante a suspensão dos anticoagulantes orais. A reinstituição dos anticoagulates orais deve ocorrer no mesmo dia do procedimento e com uma sobreposição com Risco tromboembólico do doente (quadro 8) As indicações major para anticoagulação, em que os doentes têm um maior risco tromboembólico, são a presença de prótese mitral mecânica, prótese metálica aórtica da 1ª geração ou qualquer prótese metálica em doentes que já tenham tido um episódio tromboembólico prévio (INR terapêutico de 3-4,5) e, ainda, a fibrilhação auricular associada a QUADRO 8 – RISCO TROMBOEMBÓLICO E INDICAÇÕES PARA ANTIAGREGAÇÃO Indicações para Anticoagulação [43] Risco Tromboembólico Alto Risco Tromboembólico Baixo • Prótese mecânica mitral • Trombose Venosa Profunda (prevenção ou tratamento) • Prótese mecânica aórtica com antecedente tromboem- • FA não complicada bólico prévio • Prótese mecânica aórtica • FA associada a valvulopatia • Prótese valvular biológica Indicações para Antiagregação [42] Indicações major • Síndromes coronários agudos <1 mês • Endoprotese coronária passiva <1 mês • Endoprotese coronária activa <2 meses (prótese de sirolimus) ou <6 meses (prótese de paclitaxel) • Endoprotese coronária coberta com<1 ano • Radioterapia endocoronária com<1 ano Indicações médias e minor • Síndromes coronários agudos >1 mês e angina estável • Prevenção secundária de EAM ou arterite • Prevenção secundária de AVC em doente sem cardiopatia emboligénia • FA < 65 anos, sem outros factores de risco tromboembólicos • Prevenção primária de EAM em doentes com > 50 anos e >= 1 factor de risco AVC – Acidente Vascular Cerebral; EAM – Enfarto Agudo do Miocárdio; FA – Fibrilhação Auricular 198 R. Godinho, R. Loureiro A anticoagulação pretendida varia segundo o risco tromboembólico da doença predisponente, pelo que o objectivo terapêutico pode variar desde 2 até 4,5 de INR; valores abaixo de 2 não têm benefício terapêutico e acima de 4,5 representam um risco aumentado de hemorragia. Em Portugal estão disponíveis a varfarina (Varfine®) e o acenocumarol (Sintrom®). heparina que se prolongue até ter sido atingido um INR terapêutico em duas terminações consecutivas com dois dias de intervalo. Na ETE, o risco hemorrágico grave no caso da anticoagulação ser instituída nos primeiros 3 dias pós CPRE sobe para 10-15%. Nestes casos, a reinstituição precoce da anticoagulação só se justifica em doentes em que o risco de complicação tromboembólica exceda significativamente o risco de hemorragia [43]. Na antiagregação plaquetária, as indicações major são: síndromes coronários agudos com menos de 1 mês, endoprótese coronária passiva com menos de um mês, endoprótese coronária activa com menos de 2 meses (prótese de sirolimus) ou 6 meses (prótese de paclitaxel), endoprótese coronária coberta com menos de um ano e radioterapia endocoronária com menos de um ano. Nestes casos, durante a suspensão da antiagregação é indispensável uma sobreposição com heparinas, clássica ou HBPM [42]. Nas restantes indicações com risco médio ou minor é, habitualmente, justificável a suspensão simples da antiagregação. Heparinas A Heparina Não Fracionada (HNF) ou clássica actua por activação da antitrombina III que inibe a actividade dos factores de coagulação, nomeadamente a trombina e o factor Xa. Interfere também com a actividade plaquetária, inibindo a formação do coágulo estável de fibrina. Pode provocar trombocitopénia. Em doses profilácticas tem uma acção selectiva na inibição do factor Xa. É administrada por via intravenosa, preferencialmente em perfusão contínua, e por via subcutânea. A sua acção modifica o Tempo Parcial de Tromboplastina (PTT) que é útil na sua monitorização. Na perfusão contínua em doses de 400-600 U/Kg/24 horas, a semivida é de 45-90 minutos, esperando-se uma coagulação normal 4-6 horas após a suspensão da perfusão. A mesma dose em 2-3 administrações subcutâneas necessita de um período de espera de 8-12 horas, dado o maior tempo de semivida. Ao contrário das HNF, as Heparinas de Baixo Peso Molecular (HBPM) – dalteparina, enoxaparina, nadroparina, reviparina e tinzaparina – não interferem com a acção plaquetária e apresentam uma maior selectividade para o factor Xa e pouca afinidade para a antitrombina. Todas apresentam uma absorção mais uniforme e melhor biodisponibilidade que a heparina clássica, um tempo médio de semivida mais prolongado e uma eliminação dose-independente, o que permite atingir facilmente níveis previsíveis de heparina com injecções subcutâneas de doses altas e o uso de doses fixas baseadas no peso. O PTT não é Risco hemorrágico dos tratamentos antitrombóticos [41,42,44]. Anticoagulantes Orais Os anticoagulantes orais disponíveis são todos antagonistas da Vitamina K. A anticoagulação obtida depende da dose e da susceptibilidade individual (para além de eventuais interacções medicamentosas), pelo que se torna necessário a vigilância do Tempo de Protrombina. O risco hemorrágico está directamente dependente do INR. A sua acção só se torna aparente após a depleção plasmática dos factores da coagulação dependentes da Vitamina K, o que acontece 2-3 dias após o início da terapêutica e o retorno à coagulação normal só é obtido, teoricamente, 2-4 dias pós a sua suspensão, dependendo da molécula, sendo a varfarina a que tem um maior tempo de semivida. 199 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA dimentos endoscópicos de risco hemorrágico como a polipectomia cólica e a esfincterotomia, assim como para a cirurgia digestiva [43]. O dipiridamol é um inibidor da recaptação da adenosina e inibidor da fosfodiesterase, com uma acção antiplaquetária ligeira e vasodilatadora, utilizado na prevenção secundária da isquémia cerebral [41]. É essencialmente utilizado em combinação com a aspirina e não parece aumentar o risco hemorrágico, mesmo em combinação com esta [45]. alterado significativamente, pelo que não serve para monitorização. As fracções de diferentes pesos moleculares têm propriedades funcionais distintas e não existe equivalência entre os vários preparados no que respeita à dosagem. Em profilaxia são utilizadas habitualmente com dose standard 1xdia, sendo o risco hemorrágico negligenciável 12 horas após a administração. Com intenção terapêutica a administração é efectuada 1-2 vezes dia e com doses ajustadas ao peso; na administração 1xdia, a coagulação normal só é atingida 24 horas após a última dose e cerca de 12-18 horas na administração 2xdia. As tienopiridinas – ticlopidina e clopidogrel – provocam um bloqueio plaquetário irreversível e impedem a retracção do coágulo, persistindo o efeito vários dias após a sua suspensão [44]. Alguns estudos referem não haver diferenças de risco hemorrágico entre estes antiagregantes e a aspirina mas, na cirurgia, o risco hemorrágico perioperatório parece ser importante, com recomendação de suspensão da terapêutica antes de cirurgia electiva 10-14 dias para a ticlopidina e 5-7 dias para o clopidogrel [41]. A ASGE considera não existirem ainda dados suficientes para fazer uma recomendação de suspensão em procedimentos endoscópicos de risco, devendo essa decisão ser individualizada mas desejável [43]. No entanto, o grupo de trabalho francês onde participou a SFED considera que não existem ainda dados suficientes para extrapolar as recomendações existentes para a aspirina, justificando-se a suspensão das tienopiridinas, mesmo que, nos doentes com indicação major de antiagregação, seja necessário uma sobreposição com heparinas [42]. Novos Anti-Trombóticos O fondaparinux (Arixtra®) é um medicamento com actividade anti factor Xa pura, utilizado na prevenção da trombose venosa profunda na cirurgia ortopédica. O risco hemorrágico é sobreponível ao das HBPM. Não há nenhum antídoto no caso de acidente hemorrágico, pelo que, na necessidade de endoscopia electiva é preferível esperar a eliminação do produto – 4 a 5 vezes o tempo de semivida, que é de cerca de 15 horas. Antiagregantes Plaquetários A aspirina e os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) limitam a agregação plaquetária por inibição da ciclogenase. A aspirina provoca uma inibição irreversível, pelo que a reversão completa da sua acção depende da renovação total das plaquetas – cerca de 7-10 dias, ao ritmo de cerca de 10% por dia. Considera-se que 50000 plaquetas funcionantes são suficientes para uma hemostase normal, o que, dependendo do valor de base, reduz o intervalo de segurança para cerca de 3-5 dias. Os AINEs provocam uma inibição reversível, pelo que a duração do efeito antiagregante está dependente do tempo de semivida da molécula. Diversos resultados publicados sugerem que a aspirina e os AINEs não acrescem risco hemorrágico significativo em proce- O passo final da agregação plaquetária é a glicoproteina GP IIB/IIIB, que liga o fibrinogénio e outras proteínas adesivas que agregam plaquetas adjacentes. Os antagonistas do receptor da GP IIb/IIIa – abciximab, eptifibatide e tirofiban – interferem com esse passo final da agregação plaquetária e são usados na angina instável e como adjuvantes da reperfusão em procedi- 200 R. Godinho, R. Loureiro com heparina em perfusão, fondaparinux e antagonistas do receptor da GP IIb/IIIa. mentos de revascularização. O primeiro é um anticorpo monoclonal e os outros dois pequenos inibidores competitivos. São administrados em perfusão contínua, com um tempo estimado de acção após a suspensão da infusão de 24-48 horas para o abciximad e 4 horas para o eptifitabide e tirofiban. A hemorragia é o efeito adverso mais frequente e não devem ser administrados a doentes com risco hemorrágico [41,45]. Pelas suas indicações, na prática gastrenterológica não são medicamentos que coloquem problemas nos exames electivos mas podem ser responsáveis por hemorragia digestiva aguda. Anticoagulação Oral Recomendações [31,42,43]: • Procedimentos de baixo risco: sem necessidade de suspender anticoagulação; devem ser adiados enquanto o INR for supra-terapêutico. • Procedimentos de alto risco em doentes de alto risco: suspender a anticoagulação, fazendo-se “ponte terapêutica” com heparina. • Procedimentos de alto risco em doentes de baixo risco: suspender a anticoagulação; ponderar caso a caso a necessidade de “ponte terapêutica” com heparina; considerar avaliação prévia do INR. Recomendações de actuação na endoscopia electiva em doentes anticoagulados, antiagregados e com defeitos de coagulação. Normas práticas de actuação na suspensão da anticoagulação [42]: 1. Parar varfine 5 dias antes e acenocumarol 3 dias antes do procedimento; 2. No dia seguinte iniciar heparina (HNF ou HBPM 1) em dose terapêutica. 3. Controlo de INR na véspera do procedimento 4. Descontinuação da Heparina a. HNF: parar heparina em perfusão contínua 4-6 horas antes do procedimento ou última injecção subcutânea de heparina cálcica 8 horas antes (3 administrações/dia) ou 12 horas antes (2 administrações/dia). b. HBPM: última dose 24 horas (1 administração/dia) ou 12 horas (2 administrações/dia) antes do procedimento. 5. Retomar a heparina 4-8 horas após o procedimento. 6. Retomar o anticoagulante oral no mesmo dia à noite 2 7. Suspender heparina quando 2 INR terapêuticos em 2 dias consecutivos. A decisão de suspender uma anticoagulação deve ser sempre tomada considerando o risco hemorrágico e o risco tromboembólico. Os procedimentos de baixo risco não envolvem um risco hemorrágico importante pelo que os exames diagnósticos deverão ser efectuados sem modificação da anticoagulação e/ou antiagregação. Quando há necessidade de instituição de terapêutica endoscópica, é importante questionar o risco/benefício de ser ou não efectuada (e.g.: polipectomia de pólipo pequeno em doente idoso ou com esperança de vida reduzida), substituir intervenções de elevado risco hemorrágico por alternativas de menor risco (colocação de prótese biliar em vez de ETE com extracção de cálculos), a utilização preventiva de técnicas de segurança (laço hemostático em polipectomias de pólipos pediculados) e considerar alternativas cirúrgicas. Em doentes com risco tromboembólico major temporário, a melhor atitude nos procedimentos electivos é adiá-los. Esta postura é, evidentemente, a única acertada para exames electivos necessários em doentes medicados 1 2 Não recomendada no caso de mulheres grávidas com próteses valvulares mecânicas [45] Excepto pós-ETE [43] 201 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA Recomendações de actuação na hemorragia digestiva aguda no doente anticoagulado/antiagregado. Anticoagulação com Heparinas de Baixo Peso Molecular Recomendações [42, 45]: • Procedimentos de baixo risco: sem necessidade de ajuste terapêutico, independentemente da condição de base. • Procedimentos de alto risco em doentes de baixo risco: suspender a HBPM 8-24 horas antes do procedimento, em função da semivida da molécula. A reinstituição da terapêutica deve ser individualizada. O tracto gastrointestinal é o local mais comum de manifestação da discrasia hemorrágica dos doentes anticoagulados ou antiagregados, aumentando esse risco hemorrágico quando a anticoagulação está supra-terapêutica ou existe uma antiagregação associada. A investigação endoscópica justifica-se pois tem uma elevada taxa de identificação de lesões significativas [22]. A decisão de reverter a anticoagulação deve ser tomada pesando o risco de complicações tromboembólicas contra o risco de hemorragia, tendo em conta a severidade da hemorragia, o valor do INR e o grau de risco tromboembólico [41]. Aspirina, outros AINEs e Dipiridamol Recomendações [31,42,43,45]: • Na ausência de condição hemorrágica pré-existente, podem-se efectuar procedimentos endoscópicos em doentes medicados com doses terapêuticas de aspirina ou outro AINE e dipiridamol; no entanto, a segurança deste último em exames de alto risco hemorrágico é desconhecida. Anticoagulação Oral Um INR entre 1,5-2,5 permite a realização de endoscopia diagnóstica e terapêutica com taxas de sucesso sobreponíveis às obtidas em doentes não anticoagulados. Após terapêutica endoscópica eficaz é, em geral, seguro a reinstituição da anticoagulação oral em poucos dias, podendo-se justificar em alguns doentes a utilização de heparina para um mais rápida protecção tromboembólica [43]. Um INR supraterapêutico pode ser corrigido com plasma fresco congelado ou Concentrado de Complexo Protrombínico (CCP), mais rápidos do que a simples suspensão dos anticoagulantes e administração de vitamina K [41,47] – quadro 9. Antiagregação com Tienopiridinas – Ticlopidina e Clopidogrel Recomendações [42,45]: • Procedimentos de baixo risco: sem necessidade de interrupção terapêutica. • Procedimentos de alto risco: – A ASGE considera que a decisão deve ser individualizada mas desejável. A SFED recomenda a suspensão das tienopiridinas 7-10 dias antes do procedimento. – Nos doentes com indicação major de antiagregação, considerar a necessidade de sobreposição com heparinas. – Nos doentes em agregação dupla com aspirina, deverá ser considerada a reversão para um único fármaco, preferencialmente a aspirina. – Devido ao lento início de acção, é apropriado reiniciar a terapêutica no dia seguinte ao procedimento. Heparinas clássica e de Baixo Peso Molecular Hemorragias ligeiras devido a sobredosagem de heparina podem ser resolvidas apenas com a suspensão do fármaco. É de esperar um retorno à coagulação normal cerca de 4-6 horas após a suspensão da heparina em perfusão contínua e 12-24 horas após a última dose 202 R. Godinho, R. Loureiro QUADRO 9 – UTILIZAÇÃO DO CONCENTRADO DE COMPLEXO PROTROMBÍNICO (ADAPTADO DE [47]) Informações Gerais: • Derivado do plasma humano – justificação obrigatória no Modelo nº 1804 da ICNM • Factores II, VII, IX e X, Proteína C e S e Heparina • Frascos de 500 UI de factor IX – pó solvente para solução injectável (20 ml) • Administração IV lenta: iniciar a 1ml/min, podendo ir até 2-3 ml/min Precauções na utilização: • Profilaxia com antihistamínicos e corticosteroides em doentes atópicos • Após administração, vigiar para sinais de CID ou trombose • Administrar com cuidado em doentes com história de doença coronária ou enfarte do miocárdio, doença hepática, pós-operatório e recém-nascidos Contra-indicações: • Alergia conhecida aos constituintes • História de trombocitopénia por alergia de tipo II à heparina • EAM recente, angor pectoris e risco elevado de trombose • Risco elevado de CID Indicações Terapêuticas: • Deficiências congénitas de factores II, VII, IX e X, isoladas ou combinadas Só usar na hemofilia B e na deficiência de VII quando os respectivos concentrados não estão disponíveis • Deficiência adquirida dos factores do complexo protrombínico Deficiência significativa dos factores do complexo protrombínico por insuf. hepática e em caso de: • Manobra invasiva – CPRE, biópsia hepática, grande cirurgia Administrar 1-2 fórmulas de CCP + PFC com objectivo terapêutico de INR 1-1,5 Doses adicionais de acordo com a situação clínica e resultados analíticos (PT e INR seriados) • Hemorragias – rotura de varizes, gastro-intestinais e SNC Administrar 1-2 fórmulas de CCP + PFC Doses adicionais de acordo com a situação clínica e resultados analíticos (PT e INR seriados) • Episódios hemorrágicos e sobredosagem com anticoagulantes orais • Hemorragia major e/ou manobra invasiva/cirurgia emergente – Parar Anticoagulantes Orais – Vitamina K: 5-10 mg, IV (a correr em 30 min, em SF) – CCP: 15 UI/Kg se INR £ 5; 30 UI/Kg se INR> 5 – PFC: 15 ml/Kg se CCP não disponível; eventualmente após CCP – Avaliação INR após terapêutica CCP – Concentrado de Complexo Protrombínico; CID – Coagulação Intravascular Dessiminada; EAM – Enfarto Agudo do Miocárdio; INR – International Normalized Ratio; PFC – Plasma Fresco Congelado; PT – Tempo de Protrombina; SNC – Sistema Nervoso Central penso. Ao contrário da heparina, não há nenhum antídoto específico e a eliminação do produto demora cerca de 75 horas [41]. No entanto, num estudo em indivíduos saudáveis, o factor recombinante VIIa – eptacog alfa – administrado 2 horas após uma injecção de fondaparinux, normalizou a coagulação por um período de 6 horas, sugerindo que pode ser útil no tratamento de complicações hemorrágicas [48]. subcutânea para as HBPM. A hemorragia grave pode ser controlada com a administração endovenosa, lenta, de Sulfato de Protamina. A dose está dependente da quantidade de heparina a neutralizar. Cada mg de protamina neutraliza cerca de 100 UI de heparina. Por cada dose não deverá ser administrado mais do que 50 mg de protamina [41]. Na decisão de administrar Sulfato de Protramina deve ser considerado o risco de hipotensão grave e reacções anafilácticas [45]. Tienopiridinas e Antagonistas do Receptor da GP IIb/IIIa Fondaparinux Na hemorragia induzida por ticlopidina, clopidogrel ou antagonistas do receptor da GP Na hemorragia num contexto de anticoagulação por fondaparinux, este deve ser sus203 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA IIb/IIIa, estes devem ser suspensos e a terapêutica adequada instituída, incluindo a endoscópica. No caso de ser necessária uma reversão rápida da agregação plaquetária, a transfusão de plaquetas ou desmopressina pode ser apropriada, num contexto de hemorragia major [45]. mente antes, suficiente para obter uma contagem de 20.000 para exames de baixo risco e de 50.000 para procedimentos de alto risco. Se a hemorragia acontecer após o procedimento, mais plaquetas devem ser transfundidas. A metilprednisolona e a gamaglobulina podem ser usadas se a resposta à transfusão de plaquetas for insatisfatória [33,49]. Recomendações de actuação em doenças com perturbação da Hemostase PREVENÇÃO EM PROCEDIMENTOS ENDOSCÓPICOS ESPECÍFICOS Na Doença de von Willebrand e nas hemofilias A e B há necessidade de administração de factor de coagulação VIII (ou IX) de maneira a existir uma actividade de 0,80 – 1,20 U/ml durante o procedimento e de 0,300,50 U/ml depois, nas duas semanas seguintes para procedimentos terapêuticos e de 2-3 dias para exames diagnósticos. Na Doença de von Willebrand menos severa (tipo I) e para procedimentos diagnósticos, sem ou com biopsias, o tratamento com desmopressina poderá ser suficiente [33]. Prevenção de complicações em Endoscopia Digestiva Alta Não existem estudos prospectivos de qualidade, recentes, sobre as complicações da EDA diagnóstica. Um estudo retrospectivo, realizado em 1974 nos EUA mostrou uma taxa de complicações de 0.13% e mortalidade de 0.004% [50]. Cerca de 50% são complicações cardiopulmonares relacionadas com a sedação [17]. A pneumonia de aspiração, especialmente em doentes com depressão do estado de consciência e/ou estase gástrica, é um risco inerente a qualquer EDA. A hemorragia digestiva (HD) com significado clínico é uma complicação incomum das EDA diagnósticas com biopsia e, habitualmente, não necessita de qualquer intervenção na ausência de coagulopatia, trombocitopenia ou hipertensão portal. A realização de biopsias parece ser segura com plaquetas em número igual ou superior a 20 000. Na presença de trombocitopenia mais grave e, caso a obtenção de biopsias seja imprescindível, deverá ser realizada transfusão prévia de plaquetas [51]. A perfuração durante a EDA diagnóstica é rara, estimando-se uma frequência entre 0.0009% e 0.1%, com mortalidade de 0.01% [50] . Esta pode ocorrer em qualquer local do tubo digestivo alto, habitualmente na faringe ou esófago, em zonas com patologia e/ou durante a passagem cega do endoscópio. Factores de risco para a sua ocorrência são a existência de osteófitos cervicais, divertículos, Por norma, na coagulopatia da doença hepática, não há necessidade de correcção em exames diagnósticos, apesar de alguns centros o fazerem quando o INR é superior a 2,5. A correcção para valores de INR de cerca de 1,5 é recomendável para procedimentos terapêuticos, utilizando vitamina K e plasma fresco congelado e, mesmo, concentrado de complexo protrombínico em procedimentos de alto risco hemorrágico [33,47]. Na insuficiência renal ocorre um defeito qualitativo plaquetário, associado à urémia, não identificado analiticamente. A transfusão de plaquetas não é necessária por rotina, a não ser que coexista trombocitopénia significativa mas, recomenda-se hemodiálise pouco tempo antes do procedimento (com reduzida dose de heparina), de maneira a reduzir a ureia abaixo de 50-75 mg/dl [33]. Na trombocitopénia, se o procedimento endoscópico não pode ser deferido, é recomendável a transfusão de plaquetas imediata204 R. Godinho, R. Loureiro estenoses e, possivelmente, esofagite eosinofílica, devendo ser evitada a passagem cega do endoscópio [51]. Entre as complicações raras descritas incluem-se edema cerebral agudo, embolia gasosa, luxação da articulação temporomandibular, traumatismo dentário, laceração de Mallory-Weiss, impacto do endoscópio [2,51]. São frequentes complicações minor como a odinofagia e o desconforto abdominal; no entanto, um estudo prospectivo mostrou que 2% destes doentes procuravam observação médica e que, por vezes, eram hospitalizados [52]. A endoscopia terapêutica está sujeita às mesmas complicações que a diagnóstica, com maior frequência pela duração mais prolongada e doses mais elevadas de sedoanalgesia, e às complicações inerentes à realização de cada procedimento. Num contexto de hemorragia digestiva alta, antes da endoscopia, deverá ser assegurada uma adequada estabilização hemodinâmica do doente e iniciado o tratamento farmacológico para a causa mais provável. Todo o material eventualmente necessário à terapêutica endoscópica deverá ser preparado antecipadamente, assim como, na suspeita de hemorragia de causa varicosa, um balão para eventual tamponamento, deverá estar disponível. Qualquer que seja a modalidade de tratamento endoscópico, o doente deve ser sedado eficazmente, de modo a diminuir o risco de perfuração traumática ou hemorragia e, caso necessário, protegida a via aérea através de entubação orotraqueal, particularmente na hemorragia por rotura de varizes [53]. Hemostase de lesões não varicosas As complicações mais temidas da hemostase endoscópica de lesões não varicosas, felizmente raras, são a indução de hemorragia incontrolável com necessidade de cirurgia (0,3% dos casos) e a perfuração de víscera (0.5% dos casos). A hemostase endoscópica pode ser obtida através da utilização de métodos de termocoagulação por contacto (sonda térmica e electrocoagulação mono ou bipolar), termocoagulação sem contacto (coagulação por árgon-plasma, laser), mecânicos (aplicação de clips hemostáticos, endoloops, ligadura elástica) ou métodos de injecção (adrenalina, etanolamina, polidocanol, sulfato de tetradecil de sódio, cianoacrilato, etanol, morruato de sódio), ou combinação dos diferentes métodos. Os métodos de termocoagulação por contacto estão associados à indução de hemorragia incontrolável com necessidade de cirurgia, e perfuração em 0.39% e 0.7% dos casos respectivamente, enquanto que os métodos de injecção estão associados a 0.4% e 0% respectivamente [54]. A injecção submucosa de adrenalina (1/10000) é eficaz, de fácil utilização e segura, embora com raras mas reconhecidas complicações sistémicas (hipertensão arterial, arritmias ventriculares, enfarte agudo do miocárdio), especialmente quando utilizada no esófago onde a dose administrada deve ser a menor possível [55]. A utilização de esclerosantes após a injecção de adrenalina deve ser evitada por não se traduzir numa maior eficácia, podendo provocar necrose tecidular, ulceração e perfuração [51,56]. No Quadro 10 estão expressas as concentrações e doses máximas recomendadas QUADRO 10 – CONCENTRAÇÕES E DOSES MÁXIMAS DOS AGENTES HEMOSTÁTICOS (adaptado de [57]) Agente Adrenalina Etanol Oleato Etanolamina Morruato de Sódio Tetradecil de Sódio Polidocanol N-Butil cianoacrilato Concentração Dose/injecção 1/10000 98% 5% 50mg/mL 1% 1% (1-3 %) 1:1 com lipiodol 0.5 a 2 mL 0.1 a 0.5 mL 1 a 2 mL 1 a 5 mL 0,5 a 2 mL 0.5 a 1 mL 1 mL 205 Dose max total ?, seguro até 20 mL 2 mL 20 mL 20 mL 10 mL 5 mL 6 mL PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA dos diferentes agentes utilizados na hemostase endoscópica por injecção de fármacos [57]. O uso de electrocoagulação monopolar ou laser para a hemostase de lesões não varicosas deve ser evitado devido ao risco acrescido de perfuração [51]. Ao contrário, a electrocoagulação multipolar e sonda térmica são amplamente empregues e, muitas vezes, associadas à injecção de adrenalina, sendo eficazes na coagulação de vasos com até 2.5 mm de diâmetro [56]; os aspectos técnicos da utilização da electrocoagulação bipolar estão expressos no Quadro 11. Deve ter-se em atenção uma remoção cuidadosa da sonda e, caso esta se encontre aderente à lesão, utilizar a irrigação para a destacar do tecido coagulado a fim de evitar a precipitação de nova hemorragia. A aplicação repetida aumenta o risco de perfuração. A electrocoagulação por árgon plasma (APC) é um método eficaz e seguro para a hemostase de lesões sangrantes não varicosas. Os parâmetros habitualmente utilizados são: um fluxo de gás de 0,5 L/min e potência entre 40 e 60 watts (35-40 w como limite superior quando empregue no transverso proximal e cólon direito) [56]. Os métodos mecânicos de hemostase incluem a aplicação de endoloops, clips hemostáticos e ligadura elástica. A aplicação de clips é eficaz no controlo da hemorragia em 95% dos casos, sendo a sua complicação mais frequente o insucesso na realização da técnica. A sua colocação não deve ser considerada nos casos em que não se consegue observar o vaso sangrante, não se consegue abordar de face a lesão ou em lesões observadas apenas em retroflexão, devido à elevada probabilidade de falha técnica [56]. Hemostase de lesões varicosas A técnica hemostática de eleição para o tratamento das varizes esofágicas é a ligadura elástica visto ser um método mais eficaz, rápido e seguro que a esclerose [51,54,58]. A variz deve ser abordada o mais perpendicularmente possível, aspirada na sua totalidade para dentro do cap, de modo a se atingir a obliteração do campo de visão (“red out”), evitando-se assim laqueações parciais. Depois da aplicação de cada elástico, a aspiração deve ser mantida durante alguns segundos, após o que se insufla e retrai o endoscópio de modo a desacopolar a variz laqueada do cap, reduzindo a possibilidade de lesão mecânica [53]. Nos casos em que a técnica não se encontra disponível, a hemorragia activa não permite a aplicação adequada dos elásticos, ou esta é difícil, a escleroterapia mantém-se uma alternativa. Os agentes esclerosantes – polidocanol, oleato de etanolamina, morruato de sódio e sulfato de tetradecil de sódio –são equiparáveis na eficácia e associados às mesmas complicações. Complicações graves ocorrem em 1-20% dos doentes, com uma mortalidade associada de 2-5% [51]. Na hemorragia por rotura de varizes gástricas a injecção intravaricosa de colas (cianoacrilato, trombina) é o método de hemostase endoscópica mais eficaz [51,53,54,59]. A aplicação de cianoacrilato nas varizes gástricas tem complicações específicas que podem ser prevenidas com a adopção de algumas medidas – quadro 12. QUADRO 11 – PARÂMETROS TÉCNICOS PARA ELECTROCOAGULAÇÃO BIPOLAR (adaptado de [56]) Lesão Sonda Pressão Potencia Duração dos pulsos Úlcera péptica 10 fr Muito firme 15-20 W 8-10s ou 7x 2s Lesão de Mallory-Weiss 7,5-10 fr Moderada 15-20 W 4s 206 Lesão de Dieulafoy 10 fr Firme 15-20 W 8-10s ou 7x 2s Angiectasia gástrica 10 fr Ligeira 10-15W 2s R. Godinho, R. Loureiro QUADRO 12 – PREVENÇÃO DE COMPLICAÇÕES NA ESCLEROSE COM CIANOACRILATO (ADAPTADO DE [53]) Complicação Medidas de segurança Fixação intravaricosa da agulha • Agulha de esclerose deve ser retirada da variz após a injecção da mistura, durante a injecção continua de água destilada ou lipiodol (não deve ser utilizado soro fisiológico por provocar a polimerização da cola). • Se esta acontecer, a agulha não deve ser removida à força (risco de extrusão do polímero que pode originar uma hemorragia cataclísmica). Polimerização prematura do cia- • Irrigação do canal de trabalho com lipiodol, óleo de silicone ou azeite antes da noacrilato dentro da agulha de introdução da agulha de esclerose. esclerose • Evitar a proximidade do sistema com sangue/muco intraluminal. • A relação cianoacrilato-lipiodol da mistura deve ser de 1:1 (uma diluição superior a 0,5:0,8 é factor de risco para embolização) Embolização de polímero solidifi• O volume injectado deve ser inferior a 2 mL por injecção. cado • Em varizes com diâmetros acima dos 10 mm devem ser ponderadas abordagens alternativas, dado o maior risco de embolização. Estrago dos endoscópios Alergia • Evitar a aspiração durante alguns minutos após a retirada da agulha da variz • Utilização de endoscópios com canal de trabalho largo. • Lavagem com abundante água e simeticone após retirar a agulha da variz. • Caso o cianoacrilato polimerize na objectiva, esta pode ser limpa com acetona. • O lipiodol é uma emulsão iodada; esta modalidade terapêutica não deve ser empregue em doentes com alergia ao iodo [59] encontrou dificuldade na passagem do fioguia. O dilatador sólido inicial – dilatadores de Savary-Gilliard ou olivas metálicas de EderPuestow – deve ter o diâmetro estimado da estenose com aumento progressivo, não devendo ser passados mais de 3 dilatadores com incrementos sucessivos de 1mm numa mesma sessão – “regra dos 3”. O diâmetro alvo na maioria das estenoses é de 13-15 mm. Em doentes com estenoses esofágicas malignas, a dilatação até um diâmetro suficiente para obtenção de material histológico, realização de estadiamento através de ecoendoscopia ou colocação de prótese, evita os riscos associados a dilatações até diâmetros maiores [60-62]. As próteses metálicas expansíveis (SEMS) são efectivas na melhoria da disfagia mas as complicações são frequentes (20-40%, com mortalidade de 3%) [51]. A complicação mais temida da colocação de SEMS, para a paliação de estenoses malignas esofágicas, é o compromisso respiratório por obstrução traqueal provocada pelo deslocamento anterior da massa tumoral durante a expansão da prótese; nos casos em que esta complicação é potencial, deverá ser realizada uma broncofi- Dilatação e colocação de próteses As complicações mais frequentes da dilatação esofágica são a perfuração, a hemorragia e a pneumonia de aspiração [51]. A taxa de perfuração associada à dilatação de estenoses esofágicas é de 0.1 a 2.1%, com uma taxa de mortalidade de 1%, existindo vários factores de risco: estenoses complexas, estenoses malignas, radioterapia prévia, estenoses por cáusticos, esofagite eosinofílica, inexperiência do endoscopista, anatomia alterada por cirurgia e toma crónica de corticoesteróides. A realização de uma dilatação esofágica deve ser um procedimento planeado em doentes adequadamente investigados e preparados. Quando a estenose é inultrapassável endoscopicamente, a realização de um esofagograma permite a sua caracterização anatómica de modo a programar melhor o procedimento [60]. Na maioria dos casos, é prudente a realização de dilatação sobre fio-guia ou controlo endoscópico. O controlo radiográfico é recomendado quando a estenose é tortuosa, complexa ou associada a divertículos ou volumosas hérnias do hiato ou, ainda, quando se 207 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA broscopia com eventual colocação de prótese traqueal prévia à paliação esofágica. O risco de aspiração pode ser minimizado através da monitorização apertada, aspiração de secreções frequente e utilização de pequenos volumes de irrigação com aspiração endoscópica imediata. A perfuração durante a colocação de prótese pode ser causada pela passagem do endoscópio, provocada pela passagem do fioguia ou pela dilatação excessiva da estenose. A utilização de fios guia com ponta flexível, evitar passar o endoscópio através da estenose (ou utilizar um endoscópio de pequeno calibre) e uma dilatação prévia podem diminuir a taxa de perfuração. A perfuração tardia é uma complicação descrita de SEMS duodenais devido à erosão da parede duodenal pelas extremidades da prótese. No caso de tumores localizados na 1.a ou 2.a porções do duodeno, esta pode ser minimizada através do posicionamento da extremidade proximal da prótese no estômago (a perfuração do antro é pouco provável); em neoplasias mais distais, deverá ser assegurado que a extremidade distal da prótese não fica “encostada” à parede duodenal, o que pode ser conseguido através da colocação da SEMS numa curva, com a extremidade distal na porção recta subsequente [63]. ge e avaliada a presença de qualquer objecto a montante do esófago. A esofagoscopia rígida ou a laringoscopia directa são as técnicas de 1ª linha para a extracção dos corpos estranhos na hipofaringe e ao nível do músculo cricofaríngeo. A intubação deve ser escrupulosa, avançando sempre cuidadosamente e sob visualização directa, com insuflação e irrigação mínimas até à identificação do corpo estranho. Na remoção de objectos cortantes ou pontiagudos devem ser utilizadas manobras para minimizar a lesão mucosa: distensão esofágica máxima com insuflação, orientação da parte cortante/perfurante do objecto no sentido contrário ao movimento de remoção e utilização de uma campânula protectora tipo Ballard ou overtube [64,65]. A endoscopia flexível é o melhor meio diagnóstico e terapêutico mas, provavelmente, a prevenção mais eficaz de complicações é a sua utilização judiciosa. Pilhas, objectos cortantes/pontiagudos que estão alojados no esófago ou impactos alimentares que causam obstrução completa exigem endoscopia urgente, mas nem todos os corpos estranhos necessitam de endoscopia intempestiva. Uma vez no estômago, a maioria das pilhas passam sem complicações até serem expelidas nas fezes, pelo que podem não ser retiradas, excepto se o doente tiver queixas ou se for uma pilha de maiores dimensões e permanecer no estômago mais do que 36 - 48 horas. Para outros corpos estranhos, já no estômago, está indicado, na maior parte dos casos, uma atitude conservadora, podendo ser removidos endoscopicamente apenas se ao fim de 3 – 4 semanas ainda permanecerem no estômago. Contudo, objectos com mais de 6 cm dificilmente passam o bulbo duodenal, devendo ser removidos de imediato. A rotura de invólucros de narcóticos pode ser fatal e, por isso, não deve ser tentada a sua remoção endoscópica. No impacto alimentar, o recurso a fármacos para o relaxamento do esófago (glucagon; b-hioscina) é seguro e pode promover a sua passagem espontânea, mas enzimas proteolíticos, como a papaína não devem ser utilizados, pois Remoção de corpos estranhos ingeridos A ingestão de corpos estranhos ou o impacto alimentar constituem uma emergência gastrointestinal frequente. Previamente à endoscopia, todo o material potencialmente necessário deve estar disponível – pinça de corpos estranhos, cesto de Roth, ansa, cesto de Dormia, campânula de Ballard, overtubes, etc – e, se possível, um ensaio com um objecto semelhante deve ser tentado, de modo a avaliar a melhor forma de remoção do corpo estranho em questão. Deve ser assegurada a protecção das vias aéreas do doente com a posição de Trendlenbourg, a utilização de overtube ou, mesmo, a intubação traqueal. O endoscópio deve ser introduzido na hipofarin208 R. Godinho, R. Loureiro foram responsáveis por hipernatrémia, erosão e perfuração do esófago [66]. plicação temida, com consequências muitas vezes cataclísmicas. A punção inadvertida destas estruturas também pode determinar a formação de trajectos fistulosos gastro-colo-cutâneos [67,68]. Contudo, o pneumoperitoneu é uma complicação frequente da colocação de PEG (56% dos casos) e não tem, na maioria dos casos, qualquer significado clínico [69]. A selecção cuidadosa e adequada dos doentes e do local da punção são os modos mais eficazes de prevenir as complicações relacionadas com a técnica. O Quadro 13 apresenta um resumo da prevenção de complicações na colocação de PEG e actuação na suspeita de complicações precoces [69]. Acessos entéricos A colocação de gastrostomia endoscópica percutânea (PEG) apresenta uma taxa global de complicações que oscila entre 4-23,8%, com 3-4% de complicações major que condicionam cirurgia ou internamento. Os dados referentes às Gastrojejunostomias Endoscópicas Percutâneas (PEGJ) e às Jejunostomias Endoscópicas Percutâneas Directas (DPEJ) são mais limitados mas semelhantes. As técnicas de Ponsky (pull) e Sachs-Vine (push) são igualmente eficazes e com complicações semelhantes. Nestes doentes o risco de aspiração é mais elevado devido à posição utilizada para a realização do exame (decúbito dorsal) e ao frequente compromisso dos reflexos de protecção da via aérea. A redução do risco de aspiração pode ser conseguida através da prevenção da sedação excessiva, do cuidado na aspiração de secreções, da minimização da insuflação de ar no estômago (embora a técnica necessite de uma insuflação generosa) e da realização expedita do procedimento. A laceração completa do estômago, intestino delgado ou cólon e consequente peritonite, é uma com- Prevenção de complicações em Endoscopia Digestiva Baixa A colonoscopia tem complicações raras mas potencialmente graves e mortais. A taxa global de complicações ronda os 0,35%, com uma mortalidade aos 30 dias que chega aos 0.07%, geralmente em indivíduos idosos, com comorbilidades múltiplas associadas [9]. A complicação mais frequente da colonoscopia é a dor, durante ou após o exame, associada, na maioria das vezes, a insuflação excessiva do intestino ou estiramento da vís- QUADRO 13 – PREVENÇÃO DE COMPLICAÇÕES NAS PEG (ADAPTADO DE [69]) Localização do Estômago • Elevação do leito de modo a deslocar o cólon para baixo na cavidade abdominal • Obtenção de transiluminação adequada • Identificação de indentação da compressão digital da parede abdominal no local de transiluminação • Introdução firme e contínua da agulha • Evitar puncionar em áreas de cicatriz de laparotomia devido ao risco de aderência • Introdução da agulha acoplada a uma seringa com líquido, em aspiração contínua – a aspiração de ar para dentro da seringa deve ocorrer simultaneamente ao aparecimento da agulha na cavidade gástrica; se for aspirado ar e não se observar a penetração da parede gástrica é possível que outra víscera oca tenha sido puncionada! Actuação na dor abdominal precoce • Peritonite generalizada nas primeiras horas indica lesão de órgão ou víscera: • Laparotomia • Dor localizada e defesa em torno da PEG: • Nos casos graves, suspensão alimentar e antibióticos de largo expectro • PEGograma se a localização do tubo é duvidosa • Dor severa durante a alimentação sugere deslocamento parcial: • Suspensão alimentar e PEGograma • TAC para avaliação do grau de contaminação peritoneal e decisão terapêutica • Dor severa durante a alimentação com PEGograma normal: • TAC para exclusão de extravasamento peritoneal sem deslocação 209 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA cera e do mesentério, devido à formação de ansa mas, pode também ser o reflexo de uma perfuração pneumática ou mecânica, que surge em aproximadamente 0,11% dos doentes submetidos a colonoscopia diagnóstica. As complicações cardiovasculares são mais frequentes que durante a EDA, encontrando-se provavelmente relacionadas com a reacção vagal à distensão e estiramento de ansas e mesentério. A hemorragia é uma complicação pouco frequente da colonoscopia diagnóstica, raramente associada à realização de biopsia simples mesmo em doentes anticoagulados (em níveis terapêuticos). Em contraste com a colonoscopia diagnóstica, a colonoscopia com polipectomia associa-se a uma taxa global de complicações de até 2.3% [70]. As principais complicações são a perfuração, a síndrome pós-polipectomia e a hemorragia. A taxa de perfuração varia entre 0 e 0.21% [9]. O risco de perfuração aumenta com o tamanho do pólipo, nos pólipos sésseis e nas localizações mais proximais. A perfuração após a polipectomia, mucosectomia ou hot biopsy tem como causa principal a lesão térmica transmural, quer nas perfurações imediatas, quer nas tardias, por necrose e colapso da parede cólica. Como a maioria das perfurações é determinada pela passagem de corrente, esta deve ser evitada sempre que possível, o que depende do tipo, tamanho e forma do pólipo a excisar. A corrente de corte pura ou blend apresenta, em teoria, um menor risco de perfuração que a corrente de coagulação de baixa potência, o que ainda não foi demonstrado.Também a utilização de corrente durante a polipectomia com hot-biopsy deve ser cuidadosa; apenas a extremidade do pólipo deve ser aprisionada pela pinça e deve-se aplicar a corrente até à cauterização completa do pólipo mas tendo em atenção não lesar excessivamente a mucosa normal circundante [71,72]. APC; para tal são aplicados pulsos curtos de electrocoagulação com potência que oscila entre 30-35 watts no cego e 60-70 watts no recto baixo [71]. A hemorragia é a complicação mais comum da polipectomia e pode ser imediata (1,5% das polipectomias) ou tardia, até 30 dias após o procedimento, (2% das polipectomias) [9,71]. A sua prevenção depende, em primeira instância, da abordagem adequada dos doentes antiagregados/anticoagulados segundo as recomendações estabelecidas. Apesar da suspensão da antiagregação no contexto de polipectomia não ser recomendada pela generalidade das guidelines, alguns peritos suspendem-na frequentemente, durante 7-14 dias após a excisão de pólipos sésseis maiores de 2 cm. Existe um risco acrescido de hemorragia imediata na polipectomia de pólipos volumosos, de pedículos grossos, de pólipos sésseis, e na utilização de corrente de corte pura/blend ou coagulação insuficiente. Este perigo pode ser diminuído através da injecção de adrenalina prévia à polipectomia ou da aplicação profilática de endoloops ou clips no pedículo de pólipos considerados de maior risco [71]. Procedimentos de segurança na colonoscopia diagnóstica e terapêutica são resumidos no quadro 14. A prevenção de complicações associadas à colocação de SEMS no cólon é semelhante àquela descrita para a colocação de próteses duodenais, mas alguns aspectos merecem uma consideração especial. Na colocação de SEMS em estenoses malignas no contexto de obstrução cólica em ansa fechada (com válvula ileocecal continente) é importante minimizar a insuflação de ar de modo a não agravar a distensão do cego. Nos casos em que se torna necessária a colocação de 2 próteses sobrepostas, é conveniente colocar em primeiro lugar a mais distal e depois a proximal através da anterior, o que ajuda a diminuir o risco de deslocação da prótese. Dor, tenesmo e incontinência fecal são aspectos relacionados com a colocação de SEMS no recto. Não existem recomendações precisas no que se refere a quão baixo se Por vezes, após a realização da polipectomia/mucosectomia permanecem lesões residuais passíveis de serem fulguradas através de 210 R. Godinho, R. Loureiro QUADRO 14 – PREVENÇÃO DE COMPLICAÇÕES NA COLONOSCOPIA Procedimentos de segurança na colonoscopia diagnóstica • Procedimento técnico adequado, evitando insuflação excessiva e formação de ansas • Reconhecimento precoce da formação de ansas e rectificação frequente do aparelho • Evitar a introdução forçada do aparelho • Interrupção do procedimento em caso de dor excessiva, náuseas, vómitos ou alterações do ritmo cardíaco • Selecção adequada dos doentes tendo em conta os factores de risco para perfuração (doentes idosos, doença diverticular grave, antecedentes de neoplasia ou radioterapia abdominal/pélvica, aderências e bridas pós-cirúrgicas, colite grave, fulminante ou Megacolon Tóxico) • Considerar métodos de estudo alternativos (colonografia por TC) Procedimentos de segurança na polipectomia/mucosectomia • Evitar passagem de corrente, sempre que possível: • É seguro remover com pinça de biópsia pólipos <3 mm • Pólipos pediculados <5mm podem ser removidos com ansa a “frio” • Pólipos sésseis até 7-10 mm, desde que não muito volumosos (“planos”), podem ser removidos com ansa a “frio” • Podem ser laçados, conjuntamente com o pólipo, alguns milímetros da mucosa normal circundante de modo a assegurar a remoção completa da mucosa alterada • Evitar polipectomia/mucosectomia se a preparação intestinal for inadequada • Adequada orientação do pólipo (6h) • Laçar o pedículo do pólipo a 1/3 da distância entre o colo e a base • Nos pólipos pediculados deve ser evitado o contacto do pólipo com a parede oposta de modo a prevenir a lesão térmica da mucosa contralateral • Se for sentida resistência no ajuste da ansa durante a passagem de corrente, esta deve ser suspensa e a situação avaliada (confirmação de que não há mucosa adjacente laçada) • Após laçar o pólipo séssil este deve ser levemente elevado de modo a criar um pseudo-pediculo, assim reduzindo a probabilidade de lesão transmural • Remoção em piecemeal de pólipos> 2cm de forma a limitar a extensão e duração da passagem de corrente e assim reduzir o risco de lesão térmica profunda • Em pólipos volumosos proximais utilizar injecção submucosa (soro fisiológico, hidroxipropilmetilcelulose 1-1.5% ou dextrose a 50%) de modo a elevar a lesão e criar um pseudo-pedículo. • Associação de corantes (azul de metileno/índigo carmim) à substancia injectada para uma melhor percepção da profundidade da ressecção • Não excisar pólipos que não elevam com a injecção submucosa • Idealmente as lesões devem ser excisadas numa só sessão, o que nem sempre é possível • Encerramento de escaras profundas com clips • Aplicação profilática de endoloops/ clips no pedículo de pólipos de maior risco hemorrágico pode colocar a prótese de modo a não afectar a função esfincteriana. As únicas formas de prevenir esta complicação é evitar a colocação de SEMS no recto distal (caso a estenose se encontre no recto mais proximal) ou através da adopção de métodos alternativos de paliação que não envolvam a colocação de uma prótese em estenoses muito baixas – colostomia [63]. Existe um maior risco teórico de perfuração do que na EDA (particularmente no esófago cervical e duodeno), dado o maior diâmetro dos ecoendoscópios; no entanto, os estudos disponíveis não o comprovaram, demonstrando valores semelhantes, entre 0,03 e 0,15%. Apesar de não haver técnicas estabelecidas para diminuir o risco de perfuração, alguns autores preconizam a insuflação parcial com água do balão da extremidade do aparelho durante a intubação e passagem duodenal, de modo a minimizar qualquer traumatismo. No estadiamento das neoplasias do esófago, a EUS é, frequentemente, precedida de dilatação. Apesar do risco acrescido desta estratégia, alguns estudos mostram que a dilatação até 14-16 mm parece ser segura e influencia a modalidade de tratamento dos doentes [73,74]. Prevenção de complicações em Ecoendoscopia As complicações da ecoendoscopia (EUS) diagnóstica são decorrentes da via de abordagem e sobreponíveis às da EDA, enquanto a realização de aspiração por agulha fina (FNA) está associada a complicações específicas – Quadro 15 [73]. 211 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA QUADRO 15 – COMPLICAÇÕES DA EUS E EUS-FNA (adaptado de [73]) Risco Perfuração Pancreatite pós FNA Infecção • Bacteriemia transitória • Infecção/sépsis* Hemorragia pós FNA • Ligeira intraluminal • Ligeira Extraluminal • Ligeira intraquística Disseminação neoplásica no trajecto da agulha Peritonite biliar Pneumoperitoneu Taxa de complicações 0.03 – 0.15% 0.85 – 2.0% 0 - 6% 0.2 – 0.6 % * Drenagem de quistos associada a antibioterapia profilática A realização de FNA permite a obtenção de tecidos para citologia e, recentemente, têm sido utilizadas agulhas trucut (19 G) para obtenção de material para exame histológico, com uma taxa de complicações global de 0 a 13% [73,74], sendo maior para lesões quísticas do que para lesões sólidas [75]. O risco de pancreatite aguda (PA), habitualmente ligeira após FNA de massas pancreáticas sólidas, oscila entre 0.85 e 2%. Doentes com antecedentes de pancreatite aguda recente parecem ter um risco acrescido, pelo que, se possível, a EUS-FNA deve ser adiada para depois de 8 semanas após um episódio de PA e o número de passagens com a agulha através de parênquima normal deverá ser limitado. A frequência de bacteriémia na EUS e EUS-FNA parece ser sobreponível à da EDA e da colonoscopia diagnósticas mas, a EUSFNA de lesões quísticas do pâncreas tem as mesmas recomendações da CPRE em relação à profilaxia antibiótica – quadros 5 e 6. Deve também ser considerada profilaxia na punção de lesões adjacentes ao recto e cólon [75]. A hemorragia é uma complicação rara da EUS e EUS-FNA e, habitualmente, autolimitada. A sua prevenção passa pela utilização de Doppler em tempo-real para identificar e evitar as estruturas vasculares e pela limitação do número de passagens com a agulha, assim como pelo cumprimento das recomendações <4% 1.3% 6% Relato de casos Relato de casos Relato de casos estabelecidas para doentes anticoagulados e/ou antiagregados – quadros 7 e 8. O risco de disseminação de células neoplásicas no trajecto da EUS-FNA é pequeno e parece ser menor que na biópsia aspirativa percutânea. Tendo em conta este risco de metastização, só deverá ser realizada se o resultado for passível de ter um impacto significativo na abordagem terapêutica do doente. De forma a diminuir o risco de disseminação metastática, o local e trajectória da punção devem ser seleccionados de modo a serem englobados posteriormente na peça de ressecção e a distância entre o local de punção e a lesão deve ser a menor possível [73,75]. Prevenção em Colangiopancreatografia Endoscópica A CPRE é uma das técnicas endoscópicas mais invasivas, com uma taxa de complicações major significativa. A taxa de complicações global oscila entre 4 e 16% e a mortalidade situa-se entre os 0 e 1%. A CPRE terapêutica parece estar associada a mais complicações. Nas séries mais recentes, a ETE tem uma taxa de complicações global de 5% (60% ligeiras, 20% moderadas e 20% graves) e uma mortalidade de cerca de 0.2% [10,76,77,78]. A mortalidade da CPRE está fortemente relacionada com complicações cardiopulmonares, encontradas em cerca de 22% dos procedi212 R. Godinho, R. Loureiro Por outro lado, as consequências de uma CPRE não conseguida podem conduzir à repetição do exame, à progressão da doença, a uma abordagem percutânea ou intervenção cirúrgica, aumentando a morbilidade e mortalidade. Por isso, dependendo do contexto clínico, um procedimento bem sucedido com uma complicação ligeira ou moderada poderá ser preferível a uma CPRE falhada mas sem iatrogenia associada [1,2,81]. mentos, o que sublinha a importância do apoio anestésico para a sedoanalgesia e monitorização adequadas. Para além das complicações comuns aos exames endoscópicos, a CPRE, diagnóstica e terapêutica, tem complicações específicas, uniformizadas em 1991, de maneira a permitir uma comparação adequada entre estudos [79] – quadro 16. Face a uma morbimortalidade significativa, a prevenção de complicações da CPRE tem início antes da realização do procedimento: 1. A indicação para o exame deve ser clara devendo os exames com indicação “frágil” ser recusados (como disse Cotton: “ERCP is most dangerous for those who need it the least”) [80]; 2. Se tiver intuito puramente diagnóstico as modalidades menos invasivas devem ser consideradas como abordagem primária; 3. Deve obter-se um consentimento (realmente) informado do doente e familiares; Pancreatite Aguda pós-CPRE Observa-se hiperamilasémia após CPRE em até 75% dos exames, podendo atingir 600 UI/L na ausência de evidência clínica de pancreatite; apenas 3 a 10% destes doentes desenvolvem PA clínica [10]. A PA corresponde a mais de 50% das complicações da CPRE/ETE com uma incidência, nas séries mais recentes, que ronda os 5%, a maioria das quais ligeira ou moderada (0,4% a 0,6% de PA grave) [10, 82,83]. Quadro 16 – Definição das complicações major da CPRE e sua gravidade Ligeira Hemorragia Perfuração Pancreatite Infecção (colangite) Impactação do Cesto 1 Moderada Grave1 Evidência clínica de hemor- Transfusão de ≤ 4 UCE, sem Transfusão de >4 UCE ou ragia; queda de Hgb <3g/dl necessidade de intervenção intervenção angiográfica ou sem necessidade de transfu- angiográfica ou cirurgia cirúrgica são Possível ou leak muito Qualquer perfuração defini- Tratamento médico> 10 pequeno de fluído ou con- da tratada medicamente em dias ou intervenção (cirúrgitraste, tratável por soros EV 4 a 10 dias ca ou percutânea) e aspiração em ≤ 3 dias Pancreatite clínica, amilase Pancreatite necessitando de Hospitalização> 10 dias ou ≥ 3 x normal> 24 horas hospitalização 4-10 dias pancreatite hemorrágica, após o exame, necessitando fleimão, pseudoquisto ou de internamento ou prolonintervenção (cirúrgica ou gamento do internamento percutânea) por 2-3 dias > 38° durante 24-48 horas Doença febril ou séptica Choque séptico ou cirurgia necessitando de> 3 dias de tratamento hospitalar ou intervenção (endoscópica ou percutânea) Cesto libertado espontanea- Intervenção percutânea mente ou por repetição da endoscopia Cirurgia Qualquer evento que obrigue a internamento em UCI ou cirurgia não planeada é considerado grave 213 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA O desempenho técnico correcto, com treino e competência adequadas do endoscopista e assistente, é de extrema importância na prevenção de complicações. Alguns estudos mostram que a canulação com esfincterótomo e fio guia, em comparação com cânula, pode diminuir a taxa de pancreatite, talvez devido a uma canulação mais rápida e com menos tentativas [85,86]. Não está demonstrado que a utilização de contrastes não iónicos, de baixa osmolaridade, reduza a incidência de PA, pelo que a sua utilização, excepto em doentes com antecedentes de reacções anafilácticas graves à administração endovenosa de contraste [77], não é recomendada pela ASGE [87]. O tipo de corrente electrocirúrgica utilizada não parece ser um factor determinante para o desenvolvimento de PA, mas é prudente evitar a utilização excessiva O mecanismo exacto da PA pós CPRE não está completamente esclarecido, sendo múltiplos os factores propostos: lesão ampular mecânica ou térmica, lesão hidrostática, química e/ou alérgica causada pela injecção do contraste, lesão enzimática causada pela introdução de enzimas activadas com origem no duodeno, libertação de mediadores próinflamatórios desencadeada pela contaminação bacteriana [10,76,81]. Os factores de risco para o desenvolvimento de PA estão relacionados com o endoscopista, o doente e o procedimento (Quadro 17). A presença de múltiplos factores aumenta dramaticamente o risco de PA [76]. A prevenção da Pancreatite Aguda envolve estratégias relacionadas com o gesto técnico e a utilização profilática de fármacos – quadro 18. QUADRO 17 – FACTORES DE RISCO PARA PA PÓS CPRE EM ANÁLISE MULTIVARIADA (adaptado de [75,76,81,84]) Endoscopista Baixo nº de CPRE 1 SOD – disfunção do esfíncter de Oddi 1 Possível aumento de risco 2 Sem aumento significativo do risco Doente Idade jovem Sexo feminino1 Bilirrubina normal1 PA pré-existente História de PA pós-CPRE Suspeita de SOD Ausência de coledocolitíase1 Ductos biliares não dilatados2 QUADRO 18 – PREVENÇÃO DA PA PÓS-CPRE (ADAPTADO DE [75,76,81]) Estratégias técnicas • Treino e competência adequada do endoscopista e assistente • Evitar canulação do ducto pancreático quando não indicada • Canulação com esfincterótomo em vez de cânula • Limitar o tempo de canulação para evitar traumatismo papilar • Limitar o n.° e volume de injecção de contraste • Evitar o uso de coagulação excessiva próximo do orifício do ducto pancreático • Utilização de pré-corte apenas se indicação forte • Colocação de prótese pancreática profiláctica Prevenção farmacológica – fármacos estudados Gabexate mesilato1 Antibióticos Inibidor C1 Somatostatina1 Calcitonina Secretina Octreótido Glucagon Heparina Interleucina-10 Nifedipina Corticóides EV Diclofenac Alopurinol Afritonin Nitroglicerina 1 Fármacos com eventual interesse clínico, em doentes seleccionados 214 Procedimento Canulação difícil Injecção do ducto pancreático Acinarização1 Pré-corte ETE do pancreático ETE Biliar2 Dilatação Papilar Endoscópica Manometria do esfíncter do Oddi2 R. Godinho, R. Loureiro de coagulação junto ao orifício pancreático [81] . A utilização apenas de corrente de corte durante a ETE, de forma a minimizar a formação de edema e assim reduzir a taxa de pancreatite, tem sido advogada; no entanto os resultados dos estudos realizados são díspares com alguns a mostrar uma diminuição na incidência de PA [88,89] e outros não [90,91]. Uma meta-análise de colocação profilática de prótese pancreática em doentes de alto risco – disfunção do esfíncter de Oddi (SOD), vias biliares finas, utilização de pré-corte, dilatação com balão, canulação difícil – demonstrou benefício, com uma redução do risco de PA de 3 vezes, sendo necessária a sua colocação em 10 doentes para evitar um episódio de PA [92]. Próteses curtas (2-3 cm), de pequeno diâmetro (3-4 F), sem aletas, estão associados a uma maior taxa de sucesso e menos complicações [76]. A dilatação papilar endoscópica (DPE) é uma forma alternativa do tratamento da coledocolitíase. Em comparação com a ETE, a taxa global de complicações da DPE é semelhante, com a ETE mais frequentemente associada a hemorragia e aquela a PA. No entanto, 2 estudos mostraram uma maior incidência global de complicações, especialmente de PA grave (5,2 a 6,1% vs 0%), no grupo DPE [93,94]. Actualmente, a utilização rotineira da DPE no tratamento da coledocolitíase não é encorajada, sendo advogada por certos autores apenas para o tratamento de alguns doentes com risco acrescido de hemorragia (coagulopatia, Billroth II) [76]. A utilização de fármacos com o objectivo de prevenir a PA pós-CPRE tem sido objecto de múltiplos estudos com resultados discrepantes e, na sua maioria, desapontadores [2,10,76] . Apenas o gabexate mesilato e a somatostatina demonstraram algum benefício em estudos randomizados e a interleucina-10, resultados promissores, em estudos preliminares. Em relação ao gabexate mesilato, um inibidor da protease sintético, apenas a infusão durante 12 horas, iniciada 30-90 minutos antes da CPRE, demonstrou redução na taxa de PA clínica (8% para 2%) [95]. A infusão de curta ou intermédia duração não mostrou qualquer benefício ou revelou resultados conflituosos [96,97,98]. A somatostatina, que inibe a secreção pancreática e a contracção do esfíncter de Oddi, diminuiu a incidência da PA pós-CPRE em alguns estudos, o que não foi aparente noutros [84,99,100]. Pelo contrário, o octreótido (análogo de longa duração da somatostatina), apesar de levar à diminuição dos níveis de amilase, não parece ser eficaz na redução da incidência de PA, provavelmente devido ao seu efeito estimulatório na contracção do esfíncter de Oddi [101,102]. Actualmente, não existe nenhum agente universalmente aceite para a profilaxia da PA pós-CPRE e os resultados promissores de alguns fármacos necessitam de confirmação. Enquanto algumas intervenções farmacológicas podem ser razoáveis em doentes de alto risco, não existem estudos de custo-eficácia que justifiquem a sua utilização. Hemorragia pós-CPRE A CPRE diagnóstica está associada a um risco virtual de hemorragia, sendo a ETE responsável pela quase totalidade das hemorragias significativas. A incidência global de hemorragia varia entre 0.76% e 3.2% (considerada mais perto de 2%) e a da hemorragia grave entre 0.3 e 0.5%, com uma taxa de mortalidade na ordem dos 0.1% [10,76]. Algum grau de hemorragia é observado na maioria das ETE, na maior parte dos casos sem relevância clínica. Cerca de 50% dos casos das complicações hemorrágicas significativas são reconhecidos imediatamente após a realização de ETE, mas podem demorar até 10 dias a tornarem-se aparentes [103]. Foram identificados diversos factores de risco para a hemorragia pós-CPRE – quadro 19. A realização de ETE grande, alargamento de ETE prévia e a existência de ampuloma não parecem constituir factores de risco [2,10,76,78]. A maioria dos casos de hemorragia é facilmente controlada endoscopicamente com injecção de adrenalina, embora modalidades alternativas como a coagulação com árgon215 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA QUADRO 19 – FACTORES DE RISCO PARA HEMORRAGIA PÓS CPRE (adaptado de [2,75,76]) Anatómicos Gastrectomia Billroth II Divertículo peri-ampular Estenose da ampola de Vater Cálculo impactado no colédoco Dilatação do colédoco Doente Coagulopatia Anticoagulação <3 dias antes da CPRE Cirrose classe C de Child Insuficiência renal crónica em hemodiálise Tentativa de hemostase como indicação Colangite plasma, sonda térmica, tamponamento com balão ou colocação de clips hemostáticos tenham sido utilizadas com sucesso; deverá ser evitada a injecção de esclerosantes. Qualquer que seja a modalidade utilizada deverá haver a precaução de evitar qualquer traumatismo do esfíncter pancreático. A angiografia ou a cirurgia são raramente necessárias, utilizadas em doentes refractários à terapêutica endoscópica, o que sucede em menos de 1/1000 doentes submetidos a ETE [78]. A prevenção da hemorragia pós-CPRE envolve a identificação dos doentes em risco, associada, quando possível, à correcção dos factores de risco e a alguns aspectos técnicos. Em todos os doentes devem ser obtidos a contagem de plaquetas e INR prévios à CPRE, de preferência não mais de 24 horas antes; plaquetas> 50 000 e INR <1.2 são considerados seguros para ETE [10]. Em doentes anticoagulados e/ou antiagregados, deverá ter-se em atenção as recomendações estabelecidas, sendo a CPRE com ETE considerada um procedimento de alto risco hemorrágico – quadro 7 (ver acima, “anticoagulação e antiagregação plaquetária”). Em doentes anticoagulados, o risco hemorrágico, se os anticoagulantes orais forem introduzidos até 3 dias após a ETE (a recomendação geral de prevenção hemorrágica em doentes anticoagulados determina a reintrodução na noite do procedimento), aumenta 3x, pelo que, na ETE, a reintrodução dos anticoagulantes deve ser determinada caso a caso, numa solução de compromisso entre o risco hemorrágico e o risco tromboembólico [43]. A utilização de corrente de corte pura parece estar associada a uma maior taxa de hemorragia minor, desprovi- Procedimento Pré-corte Extensão de ETE prévia ETE não controlada ETE com faca de Morey Endoscopista inexperiente Hemorragia durante a CPRE da de significado clínico [76,91,104]. Quando comparada com a utilização de corrente de corte pura ou blend, a utilização de Endocut está associada a uma redução da incidência de hemorragia minor pós ETE, não havendo, contudo, diferenças significativas nas taxas de hemorragia clínica, pancreatite ou perfuração [104,105]. Em alguns doentes com coagulopatia ou cirrose a DPE constitui uma alternativa à ETE no tratamento da coledocolitíase, devido ao menor risco hemorrágico associado [76,81]. Perfuração pós-CPRE A perfuração relacionada com a CPRE é rara, ocorrendo em 0,3 a 1,3% dos procedimentos, mas com uma mortalidade elevada – 8 a 14% [76]. Distinguem-se 4 tipos de perfuração: 1) perfuração dos ductos ou tumores (melhor denominada de penetração) – perfuração dos ductos e tumores pelo fio-guia ou outros instrumentos, mais frequente após dilatação de estenoses malignas – 2) perfuração retroduodenal – tipo mais comum, relacionada com a ETE – 3) perfuração endoscópica – perfuração distante da papila causada pelo duodenoscópio – 4) perfuração associada a prótese – penetração e perfuração do duodeno, intestino delgado ou cólon por migração de próteses bilio-pancreáticas (rara) [81]. Os factores de risco considerados relevantes na perfuração são apresentados no quadro 20. A maioria das perfurações é evidente através do extravasamento de ar ou contraste da árvore biliar ou lúmen intestinal, e o seu reconhecimento tardio associa-se a um mau prognóstico. 216 R. Godinho, R. Loureiro QUADRO 20 – FACTORES DE RISCO PARA PERFURAÇÃO PÓS CPRE (adaptado de [75,76,81]) Doente SOD Dilatação do colédoco Divertículo peri-ampular Gastrectomia Billroth II Estenose da ampola Procedimento Realização de ETE Duração prolongada do procedimento Dilatação de estenoses biliares ETE grande Pré-corte Injecção intramural drenagem cirúrgica ou percutânea em casos de insucesso endoscópico. A profilaxia antibiótica, para além da prevenção da endocardite infecciosa em doentes de risco, está indicada nos doentes com obstrução biliar e pseudoquistos pancreáticos, estando recomendados os antibióticos referidos no quadro 6. No entanto, conforme foi referido acima, a ESGE [27] recomenda profilaxia em todas as CPRE terapêuticas. Sempre que não se consiga uma drenagem eficaz, deverá ser iniciada antibioterapia endovenosa e, em casos de desobstrução incompleta da via biliar por litíase, deve-se assegurar uma drenagem temporária com sonda naso-biliar ou prótese [106]. A orientação adequada do sentido do corte (entre as 11 e a 1 hora) durante a ETE e a aplicação controlada de corrente de forma a evitar cortes longos e descontrolados (zipper), pode reduzir o risco de perfuração. A extensão da ETE deve ser ajustada ao tamanho da papila, do colédoco e do cálculo observado durante a colangiografia. Especial atenção deverá ser dada no caso de papilas pequenas, planas, quase integradas na parede duodenal, cujo ducto biliar apresenta um trajecto intramural mínimo, que permite apenas a realização de ETE com uma extensão muito limitada [10]. Infecção pós-CPRE As complicações infecciosas da CPRE incluem a colangite ascendente, a colecistite aguda e a sépsis pancreática. A mais frequente é a colangite ascendente (0.3 a 1.3% das CPRE), habitualmente no contexto de uma drenagem incompleta da árvore biliar obstruída ou oclusão de uma prótese biliar. A colecistite aguda complica 0.1 a 0.7% das CPRE, sendo causada pelo compromisso da drenagem do canal cístico (por tumores, cálculos ou próteses biliares) ou injecção de contraste não estéril. A sépsis pancreática é rara e está associada à infecção de um pseudoquisto após drenagem incompleta ou injecção de contraste no ducto pancreático [10,76,81]. Para a prevenção deste tipo de complicações há que assegurar a limpeza e desinfecção adequada dos endoscópios, a utilização de meios de contraste estéreis e, fundamentalmente, uma adequada descompressão da via biliar em caso de obstrução, considerando a Impactação do Cesto de Dormia Antes da introdução da litotrícia mecânica esta era uma complicação major, que se tornou menos frequente nos dias de hoje. O Cesto de Dormia pode ficar impactado em qualquer local das vias biliares, habitualmente na porção intra-duodenal do colédoco, durante a remoção de cálculos volumosos, a montante de estenoses. Como factores de risco assumem-se cálculos grandes, com formas irregulares e duros, ETE pequenas e um colédoco terminal estreito e fibrosado. Pode-se tentar a resolução do impacto, empurrando o cesto com o cálculo para um segmento mais largo da via biliar, libertando o cálculo e removendo o cesto. Muitas vezes tal não é possível, pelo grau de impactação, sendo a litotrícia mecânica, utilizando um litotritor tipo Soehendra, uma alternativa para a qual se deve estar preparado. A exten217 PREVENÇÃO DAS COMPLCAÇÕES EM ENDOSCOPIA DIGESTIVA são da ETE, litotrícia intra ou extracorporal ou, em alguns casos, cirurgia, restam como alternativas. Medidas a adoptar para prevenir esta complicação [10,76,105]: • O tamanho do cálculo e a sua relação com o colédoco distal devem ser cuidadosamente avaliados; • A ETE realizada deverá ser adequada ao tamanho do cálculo; • Deve-se evitar encerrar completamente o cesto em torno de um cálculo grande, de modo a impedir que fios do cesto fiquem distorcidos ou embebidos no cálculo; • Utilização de balão de remoção. 218 R. Godinho, R. Loureiro BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. Mergener K. Defining and measuring endoscopic complications: more questions than answers. Gastrointest Endoscopy Clin N Am 2007; 17:1-9. Cremers MI. Iatrogenia em Endoscopia – Parte I. GE – J Port Gastrenterol 2005, 12:306-330. Green J. Complications of gastrointestinal endoscopy. British Society of Gastroenterology (BSG) – Clinical Practice Guidelines 2006. (Acesso 16 Mar 2007). www.bsg.org.uk. Schwartz PJ, Breithard G, Howard AJ, Julian DG, Rehnqvist Ahlberg N. 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Como é óbvio, a lavagem das mãos, entre doentes e entre procedimentos, é obrigatória para todo o pessoal .(1,2) Durante os procedimentos em que é utilizado material cortante, este deve ser imediatamente colocado em contentores estanques e imperfuráveis, com a finalidade de evitar acidentes que possam ocorrer durante a sua manipulação. As agulhas não devem ser reencapsuladas.(3,4) PROTECÇÃO FÍSICA Durante a realização de exames endoscópicos, existe uma exposição aumentada a fluidos orgânicos, potencialmente patogénicos, pelo que o pessoal (médico e de enfermagem) deve estar devidamente protegido com máscaras com viseira (ou alternativamente com óculos de protecção), batas e aventais impermeáveis e luvas. As máscaras devem cobrir o nariz e a boca. Existem vários tipos de máscaras : as máscaras cirúrgicas, promovem a protecção contra gotículas de partículas infecciosas de grandes dimensões e que viajam distâncias pequenas (inferiores a 1 metro) e devem ser utilizadas para proteger o doente de partículas emitidas pelos profissionais; os respiradores de partículas (EN 149 – Classe P1), promovem protecção contra partículas de pequenas dimensões e que viajam distâncias superiores a 1 metro, sendo o seu uso recomendado na prevenção de inalação de partículas patogénicas pelos profissionais de saúde. Após o exame, o pessoal de enfermagem e auxiliar que participa no processamen- Periodicamente, devem ser efectuadas avaliações pela Medicina Ocupacional a todo o pessoal da Unidade, a fim de se detectarem alterações, nomeadamente do foro alérgico, uma vez que a exposição continuada aos desinfectantes pode causar ou agravar patologias alérgicas respiratórias, oftalmológicas ou dermatológicas. Pessoal que apresente lesões exsudativas ou extensas soluções de continuidade da pele não deve estar exposto aos desinfectantes, nem em contacto directo com os doentes, podendo este facto implicar evicção temporária do local de trabalho ou de determinadas tarefas. Todo o pessoal, na altura da sua integração na Unidade, deve receber treino específico em desinfecção, manipulação de material e protecção individual. Pelo menos uma vez por 225 PROTECÇÃO DO PESSOAL NUMA UNIDADE DE TÉCNICAS DE GASTRENTEROLOGIA ano, devem ser feitas auto-avaliações de procedimentos, que serão eventualmente revistos e actualizados.(1,2) especiais, como o uso obrigatório de óculos protectores de lesões da retina, adaptados ao comprimento de onda utilizado, bem como protecção cutânea, que não permita que o feixe laser entre em contacto directo com a pele ou mucosas dos profissionais.(2) Nas CPREs, dilatações, colocações de próteses e outros procedimentos que requerem a utilização de Raios X, deve ser considerada a utilização de barreiras específicas que minimizem a exposição do pessoal. Os raios X são radiações do espectro electromagnético com comprimento de onda curto, frequência e energia elevadas, que cindem as ligações químicas e eléctricas entre as moléculas, podendo originar mutações ao nível do DNA molecular. Estudos efectuados em salas de CPRE demonstram que a maior quantidade de radiação se encontra junto à porção cefálica do doente, que é exactamente o local onde se situa o pessoal médico e de enfermagem. Todo o pessoal que permanece dentro da sala onde exista exposição à radiação, deve usar aventais protectores de chumbo, colares protectores para a tiróide e óculos ajustados de protecção contra radiações a fim de evitar o aparecimento tardio de cataratas. É obrigatório o uso de monitorização individual de radiações por intermédio de dosímetros, que devem ser colocados preferencialmente por cima do avental, embora a localização do dosímetro seja controversa. A exposição anual individual não deve exceder 20mSV. Pessoal com leituras dosimétricas acima do permitido não deve ser autorizado a permanecer na sala. Sempre que possível, deve ser feita rotação do pessoal a deslocar-se para a sala onde existe radiação. Durante a realização dos exames, deve ser tomado em conta que o braço emissor de radiação deve estar o mais próximo possível do doente, devem ser utilizados aparelhos e materiais de blindagem que evitem ao máximo a dispersão da radiação e que a fluoroscopia deve ser usada criteriosamente, o menor tempo possível, para reduzir o tempo de exposição à radiação.(5,6) Uma prática pouco frequente, mas utilizada em várias Unidades de Técnicas de Gastrenterologia, é a fulguração de condilomas. Esta prática permite a aerossolização de partículas virais de HPV, que são de muito pequenas dimensões, podendo mesmo atravessar os respiradores de partículas, estando descritos alguns casos de colonização das vias aéreas pelo HPV. Para evitar este facto, preconiza-se a utilização de material protector superior aos respiradores de partículas (máscaras P3) pelos profissionais de saúde e colocação de extractores mecânicos com filtros adequados, nas salas em que estes procedimentos são efectuados.(7) Igualmente importantes, mas muitas vezes negligenciados na concepção das Unidades de Técnicas são outros factores, nomeadamente, a ventilação adequada das salas de exames e de desinfecção, já mencionada atrás; a manutenção de uma temperatura ambiente agradável e constante, de cerca de 20 ºC; a iluminação , que deve ter duas vertentes - a natural, atenuada com persianas e a artificial, atenuada com recurso a reóstatos; o pavimento, que deve ser lavável e mantido limpo e seco, para evitar quedas e ainda o isolamento acústico das salas. PROTECÇÃO IMUNOLÓGICA A todo o pessoal da Unidade que tem contacto com doentes ou material de processamento de endoscópios , uma vez que estes são considerados potencialmente infectados, deve ser fornecida vacinação para a hepatite a vírus B. Uma exposição acidental deve implicar a pesquisa de entidades patogénicas (HBV, HCV, HIV) no doente e o fornecimento de terapêutica adequada de imediato (imu- A utilização de laser nalgumas Unidades implica igualmente a tomada de medidas 226 Ana Luísa Alves noglobulina específica, anti-retrovirais, etc.) , devendo manter-se o seguimento do funcionário afectado pela Medicina do Trabalho. Deve igualmente ser considerado o apoio psicológico.(1,2) superiores. O esforço continuado de suporte do peso do endoscópio aliado a movimentos de flexão, torção e rotação internas, causam lesões no ombro. As lesões do punho e do polegar são causadas pelo suporte do peso do endoscópio e pela torção continuada pelo uso dos comandos.(9) Para minimizar estas queixas, devem ser tomadas algumas medidas, como o uso de monitores com haste regulável em altura e ângulo, para ser ajustável individualmente, a fim de que o endoscopista esteja a olhar em frente e não para cima, em extensão cervical. As macas em que o doente se encontra deitado devem igualmente ser reguláveis em altura, para conforto do endoscopista e do enfermeiro que, deste modo, minimizam a flexão do tronco. Os endoscópios devem ser concebidos em materiais cada vez mais leves e flexíveis. Todo o restante material de protecção, como, p. ex., os aventais de protecção contra radiações, devem igualmente ser concebidos em materiais tendencialmente menos pesados, mas mantendo a eficácia protectora.(10) A avaliação destes parâmetros pela Medicina Ocupacional é geralmente desvalorizada, mas torna-se fundamental na detecção dos riscos, na sua correcção e na recuperação dos trabalhadores. Idealmente, deveriam ser ministradas, com regularidade, sessões de correcção postural. PROTECÇÃO CONTRA LESÕES DE TRABALHO Em Portugal, pouca importância se dá às lesões profissionais no âmbito do exercício da gastrenterologia. No entanto, estudos efectuados no nosso país, demonstram que os profissionais apresentam queixas relacionadas com o exercício da profissão e que as modificações ergonómicas efectuadas no local de trabalho são eficazes na diminuição da incidência e da gravidade das lesões.(8) As longas horas de pé, os movimentos repetitivos, a necessidade de estar a olhar para um monitor, as compressões utilizadas durante as colonoscopias, geram posturas incorrectas e lesões osteoarticulares que podem tornar-se incapacitantes. Assim ,num estudo que incluiu 400 endoscopistas, 27% referiram lombalgia e/ou dorsalgia; 13% cervicalgia; 19% dor no polegar; 32% síndrome do canal cárpico; 19% dor no ombro; 15% epicondilite (alguns dos profissionais referiram mais que um sintoma). Mais de metade dos profissionais mantém dor, independentemente de estar ou não a realizar endoscopias, o que os leva a reduzir a sua actividade profissional e 4% tiveram mesmo de interromper definitivamente a sua actividade profissional.(9) A posição de pé, a torção repetitiva anterior e lateral do tronco, conduz a um esforço acrescido à coluna vertebral, originando o aparecimento de hérnia discal, radiculopatia e parestesias dos membros inferiores. As compressões efectuadas pelo pessoal de enfermagem, o trabalho do endoscopista com os braços elevados e a extensão cervical para manter a posição da cabeça dirigida a um monitor muitas vezes mal posicionado em relação à altura , causa lesões da coluna cervical, radiculopatia e parestesias dos membros PROTECÇÃO PSICOLÓGICA O pessoal da Saúde é diariamente exposto a um nível de stress ainda não quantificado, mas nem por isso negligenciável. A pressão das listas de espera, que obriga a realizar um maior número de exames, com as consequentes lesões articulares, as más condições de trabalho (má ventilação, má insonorização, má iluminação), a agressividade dos utentes, a insatisfação profissional, tudo leva a um aumento dos níveis de stress psicológico, que origina um considerável número de queixas, orgânicas (p. ex. cefaleias) ou não (síndrome depressivo). Estas queixas traduzem-se em 227 PROTECÇÃO DO PESSOAL NUMA UNIDADE DE TÉCNICAS DE GASTRENTEROLOGIA absentismo e baixo rendimento de trabalho. No futuro, deverá ser considerada a protecção psicológica, que passará não só pela reeducação dos profissionais no contacto com os utentes, na educação da população e numa monitorização e actuação rápida a nível psicológico, a fim de evitar o agravamento de situações de stress. 228 Ana Luísa Alves BIBLIOGRAFIA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Akyuz N, Ozbas A, Cavdar I. 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