o dna do rock: um estudo sobre cross rhytmhs dissonâncias

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o dna do rock: um estudo sobre cross rhytmhs dissonâncias
O DNA DO ROCK: UM ESTUDO SOBRE CROSS RHYTMHS
DISSONÂNCIAS MÉTRICAS NO ROCK
Jorge Falcon (PUCPR)1
Fernando Nicknich2
... o ritmo é um importante meio de desenvolver e reforçar a consciência
moral e mental na cultura Anlo-Ewe em termos do que realmente é
importante na vida, e como a vida deve ser vivida. Desde este ponto de
vista, o ritmo é a força animadora e conformadora, e é o princípio em
que subjaz a distintiva qualidade de vida.
J. Ladzekpo
Introdução
Consideram-se aqui algumas conjecturas que sugerem algum tipo de
sincretismo cultural-musical entre o repertório de música da Europa ocidental e as
manifestações musicais das culturas africanas, gerando processos de hibridação que
gestaram boa parte dos elementos rítmicos estruturais das músicas dos diferentes cantos
do continente americano. Em primeiro lugar, fazemos algumas considerações
socioculturais para entendermos a relação de sincretismo ou de fusão entre duas culturas
em estágios equivalentes de desenvolvimento. Seguidamente explicaremos algumas
características da prática e da escuta da música europeia própria do grupo social que
estava-se deslocando ao novo continente. Apresentar-se-ão algumas características
musicais de Europa e da África, e como sua interação gerou alguns dos fenômenos
rítmicos característicos da música de todo o continente americano: o Cross rhythm. Para
o trabalho ser mais focado e ser mais concreto, analisamos um pequeno repertório deles
usado no gênero rock, aplicando um foco maior aos anos entre 1960 e 1990.
Finalmente, como conclusão, se fazem considerações sobre os temas analisados.
1
2
jorgef@musician.org
fnicknich@gmail.com
A história e a geografia
A colonização das terras que hoje fazem parte dos Estados Unidos da América
e a posterior constituição da cultura norteamericana se deram, de modos gerais, através
da combinação de três culturas distintas: a dos colonizadores europeus provindos
majoritariamente das ilhas britânicas; a cultura dos nativos das terras americanas; e a
cultura dos negros, originários da costa oeste africana.
Pouco se sabe sobre a música dos nativos antes do surgimento das tecnologias
de gravação de som. As características do processo colonizador (que não serão
discutidas aqui por fugir ao escopo do trabalho) permitiram que algumas características
dessas culturas, como a comida, alguns tipos de vestimentas ou religiões, se integrassem
à nova situação sociocultural, permitindo de certo modo a sua sobrevivência. Porém,
pela falta de registro, a música que era executada nessa época se perdeu, de modo que
esse período da história musical da América (c.1600 e 1900) oferece hoje, aos
pesquisadores, um verdadeiro desafio pela falta de fontes de qualquer tipo. Os primeiros
registros existentes datam da última década do século XIX, fruto de expedições como a
Jesup North Pacific Expedition, liderada pelo antropólogo pioneiro Franz Boas
(FREED, 1988). Algumas edições mais tardias, como o West Virginia Centennial book
of 100 songs ou o trabalho de campo de Alan Lomax, trazem registros da música feita
pelos brancos e negros também, mas trata-se provavelmente de apenas uma pequena
parcela da música que existia.
O desenvolvimento musical e cultural que culminou no nascimento do rock se
relaciona mais diretamente ao contato entre o branco europeu e o negro africano. Do
lado europeu, a cultura começa a se estabelecer na América aliada ao ideal cristão de
conversão do não-ocidental (negro ou nativo) em religioso devidamente catequizado. A
música praticada pela igreja anglicana dessa época teve um valor crucial nesse processo.
Na América do Norte, o processo de colonização se realizou maiormente através dos
povos do atual Reino Unido: Inglaterra, Irlanda, Escócia, Gales. Grupos socioculturais
diferentes deslocaram-se para o novo continente, porém os mais significativos foram 1)
ricos, donos de terras, e 2) trabalhadores de lavoura, originários de regiões rurais, com
uma posição sociocultural mais precária, à procura de uma nova vida, prospera e cheia
de aventuras.
Segundo o autor Philip TAGG, em British Blue Notes and Backbeats ─
Musicological Missing Links (2004), a maior parte dos imigrantes nunca tinha ouvido
Handel, o compositor oficial do rei; nem bandas de metais (brass bands), orquestras
sinfônicas e outros tipos de grupos instrumentais dessa ordem; música para acordeom,
piano ou outros instrumentos de afinação temperada; música gravada ou de difusão
electromagnética. Porém, já tinham ouvido música para canto e dança rural popular
(folk music); hinos simples harmonizados (como Scots’ Psalter, 1564; Wesley’s Psalms
& Hymns, 1737); bandas de fifes e percussão (bandas marciais, etc.).
Do lado africano, é mais difícil estabelecer um espaço geográfico preciso de
onde as culturas levadas à América teriam a sua origem, uma vez que o europeu estava
presente em praticamente toda a costa africana. No mapa abaixo (Fig. 1), a faixa escura
representa o território aproximado de onde foi retirada grande parte da população levada
ao novo continente para trabalhar como escravos.
Fig. 1
Embora o território seja extenso, as pesquisas do musicólogo Arthur Morris
JONES (1959) sobre a música africana identificaram a existência de uma gramática
musical comum às culturas do território subsaariano. A saber, tais culturas se utilizam
de um mesmo processo rítmico generativo batizado por Jones de cross-rhythm.
Apresentaremos mais tarde uma conceituação mais apropriada do cross-rhythm,
bastando por hora apontar a existência desse elemento musical que, como veremos, terá
papel fundamental no desenvolvimento do rock no continente americano.
Algumas características rítmicas da música ocidental
A grade rítmica concebida pela música ocidental está formada (e pode ser
assim representada) por vários níveis. Partindo do conceito de que nosso cérebro precisa
encontrar algum tipo de referência ou escala discreta com que possa situar e interpretar
os contínuos (como espaço, tempo, ou agudo/grave) e eles devem estarem uma escala
significativa para nossa percepção3. Na música, a maneira de mensurar unidades
compatíveis é tendo um pulso como referência. O pulso rege nossa dança, serve para
contabilizar “distâncias temporais”, unifica ou separa movimentos entre executantes e é
a base do sistema de aprendizado musical de base ocidental.
Para interpretarmos melhor os efeitos dos cross-rhythms, trabalharemos com
um sistema de níveis métricos, estabelecendo o nível 0 (Ni0) como representação do
pulso, que é nossa medida de interpretação temporal mais prática. O nível 0
correspondendo ao pulso, podemos então subir ou descer níveis, tendo assim, um nível
acima, um outro pulso que corresponde ao dobro da “distância temporal” do pulso Ni0,
e um nível acima ainda, um pulso Ni2 correspondendo a quatro vezes o valor do pulso
regular Ni0. A mesma lógica de deslocamento do pulso pode ser feita a níveis
inferiores, como mostra a figura 2:
Ni2
Ni1
Ni0
Ni-1
3
Não faz sentido para a nossa compreensão do mundo pensar em distâncias de trilhões de quilômetros
(ou mesmo em anos luz) nem
Ni-2em distancias subatômicas porque nossos sentidos não tem capacidade de
interpretá-los. Metros, centímetros ou quilômetros são sistemas de unidades discretas que podem ser
administrados por nossos sentidos, pois podem ser experienciados, afinal, nossos sentidos servem para
isso, para nos relacionar com o meio ambiente que nos rodeia.
Fig. 2: Matriz binária absoluta
Temos ainda que considerar a existência, na música ocidental, das subdivisões
rítmicas ternárias (Fig. 3, esquerda). Assim, podemos elaborar uma matriz rítmica
absolutamente binária, outra absolutamente ternária, e outras que intercalam umas e
outras (Fig. 3, direita).
Estágios ternários dentro de matrizes
majoritariamente binárias
Ni1
Ni0
Ni-1
Ni-2
Fig. 3: Gráficos de possíveis matrizes que combinam níveis ternários ou binários
Ainda é possível diferentes misturas, com subdivisões binárias em
determinados níveis, enquanto uma subdivisão ternária aparece em outros níveis. Na
música Roxanna, de Toto, por exemplo, pode-se observar uma subdivisão ternária
acontecendo no nivel Ni-2, como mostra a figura 4:
Ni0
Ni-1
ternário
Fig. 4: estrutura métrica da música Rosanna, de Toto
Dissonâncias métricas. África indo à América
Os termos consonância e dissonância aplicam-se na música ocidental quase
exclusivamente à sensação subjetiva resultante da combinação de duas alturas, ou
frequências4. Porém, a partir de Yeston, a ideia de consonância e dissonância passou a
ser observada em outras dimensões da música, como por exemplo, no ritmo. Na
dissonância rítmica, elementos rítmicos podem “destoar” momentaneamente com o
pulso normal ou subdivisão do pulso, porém, sem interromper o sentido de regularidade
métrica (número de pulsos por compasso, ou posição do acento métrico). A
sobreposição de uma divisão métrica impondo a ocorrência simultânea de tempos
simples e compostos (3/4 sobre 6/8) é um exemplo deste tipo de dissonância.
(CORRÊA e SUPLÍCIO, 2008).
As complexidades em relação ao pulso e às divisões métricas de certo modo
contrastantes antecipam a ideia de dissonâncias métricas. Mas, para melhor
compreendermos essa ideia, precisamos ainda entender algumas divergências
conceituais entre a música europeia e a da África subsaariana. A música africana possui
um sistema de organização estruturadora interna diferente da música europeia. Ela se
organiza através de uma medida de referência que corresponde, na nossa grade métrica,
a um pulso ao nível Ni-1 (considerando o Ni0 como o nível aqui estabelecido5). Para
exemplificar, na música europeia, dizemos que um compasso 12/8 comporta um ritmo
de 12 colcheias, completando 4 tempos ou pulsos em subdivisão ternária. No contexto
4
Intervalos simultâneos podem ser consonantes (8vas e 3as, por exemplo) e dissonantes (2das e 4tas
aumentadas).
5
Evidentemente, a nomenclatura dos níveis pode variar de acordo com o que se estabelece para cada
análise, de acordo com cada caso. Para efeitos deste artigo, consideramos o Ni0 como sempre
equivalendo ao pulso de semínimas em compasso 4/4.
da música africana, o mesmo ritmo corresponderia ou seria compreendido como 12
pulsos (Fig. 5).
Fig. 5: Um grupo de 12 pulsações
Na música africana, estes períodos (que podem ser também de 16, 24 ou 32
pulsações) estão regidos por um pulso regulador que tem função semelhante ao do
primeiro tempo do compasso ocidental, servindo como referência aos instrumentistas.
Esses pulsos reguladores são chamados de time line patterns, ou padrões temporais. A
música africana é circular, ou seja, utiliza-se desses padrões ou patterns como um pano
de fundo sobre o qual a polifonia rítmica é tecida. Os bell patterns6 ou padrões de
campana ou claves caracterizam e estabelecem a marcação que representa o tipo de
música tocado. Existem diversos patterns. Na figura 6, o pattern conhecido como
Bembé:
Pulso regulador
Fig. 6: Padrão Bembé
Na figura 7, podemos ver o ritmo de rumba nas diferentes notações praticadas,
enquanto a figura 8 mostra vários padrões de ritmos africanos (TOUSSAINT, 2003).
Fig. 7: ritmo de rumba em
diferentes notações
6
Para mais informações sobre música africana ver Anku (2000) , Blacking (2000), Lazkdepo (1995), e
Toussaint (2003).
Fig. 8: diferentes ritmos africanos
Como podemos apreciar, a adaptação dos ritmos africanos a nossa grade
métrica provoca dissonâncias métricas. Isto deve-se principalmente a que nosso sistema
ocidental de escrita foi criado a partir das necessidades da música ocidental. Quase
todas as músicas não ocidentais, como grande quantidade de música ocidental atual não
tem possibilidades de representação completa no sistema de escrita musical tradicional
(que apenas serve para escrever com precisão alturas, ritmos, grades métricas e, com
menos precisão articulação, dinâmicas e outras dimensões). Por isso, a escrita de ritmos
não ocidentais é muito complexa, porque é o fruto de querer forçar um sistema dentro
de outro.
Offbeats
LACERDA (2005) define o offbeat da seguinte maneira: “uma configuração
rítmica transcorre em posição de offbeat quando faz uso consistente de um ponto de
apoio rítmico constante, deslocado e independente do valor rítmico referencial de uma
peça musical. Isto é, cria-se um plano métrico não coincidente com o plano métrico
hierarquicamente definido como básico.” Em português, chamamos tradicionalmente a
esse tipo de evento – fora do nível padrão mais significativo (o pulso) – de contratempo
ou síncope, dependendo da duração dos eventos.
TEMPERLEY (2000) sugere que na música ocidental, a tendência a alinhar
sílabas acentuadas com tempos fortes é bastante pronunciada. Desvios dessa regra
podem causar considerável confusão métrica. Contudo, alguns autores notam que esta
regra é violada com bastante frequência na música africana, de maneira que sílabas
acentuadas acontecem em tempos fracos, embora todos pareçam concordar com a
existência de alguma correspondência entre acentos linguísticos e métricos.7
7
Embora acreditemos na validez dessa observação, não podemos concordar com o autor no seu modo de
adaptação e releitura do offbeat na música popular (TEMPERLEY, 2000, 82/5), utilizando o sistema de
hierarquias métricas como “pontos certos” e fazendo uma redução schenkeriana das dissonâncias
rítmicas, processo que tira o elemento diferencial: a dissonância métrica estrutural da música influenciada
pela música africana, como estamos tratando de demonstrar.
A importância dos offbeats no repertório do rock torna-se mais clara quando se
observa que as suas aparições não são ornamentais ou com propósitos expressivos,
como na música tradicional europeia, mas sim, adquirem função estrutural, ou ainda,
formadora e caracterizadora do gênero. Num exemplo clássico, a figura 9 apresenta
offbeats no riff inicial de ‘Smoke on the Water’, do Deep Purple:
No pulso
(on beat)
Offbeat:
contratempo
No pulso
No pulso
Offbeat:
contratempo
Fig. 9: Offbeats em “Smoke on the water”, de Deep Purple (Introdução)
O mito do cross-rhythm8
Para cross-rhythms, apresentamos algumas definições que nos parecem
parcialmente descritivas:
1. A combinação de ritmos, frases ou motivos pode se realizar de tal forma
que sua acentuação não coincide, resultando em novas configurações
rítmicas (PINTO, 2001);
2. Segundo Ladzekpo (1995), na compreensão cultural Anlo-Ewe a técnica
de cross-rhythm é uma interação altamente desenvolvida de ritmos
variáveis que simulam a dinâmica de momentos contrastantes ou tensão
emocional, como na vida. Como prescrição preventiva para ansiedade
extrema ou dúvidas sobre sua capacidade de lidar com ameaças ou
problemas, esses fenômenos de tensão simulada, ou cross-rhythms, estão
incorporados na dança-percussão como exercícios de alimento para a
mente, que tem como objetivo modificar a expressão do potencial inerente
do pensamento humano ao enfrentar os desafios da vida. A premissa é que,
se instruímos corretamente nossa mente em copiar esses momento
simulados de tensão, a intrepidez é alcançada. Intrepidez, ou falta de
medo, na visão Anlo-Ewe, é um extraordinário poder da mente. Ela ergue
a mente por sobre os problemas, desordens ou emoções. (...) é por esse
8
O termo cross-rhythm poderia ser traduzido como ‘ritmos atravessados’ ou ‘ritmos cruzados’, porém,
preferimos manter a nomenclatura em língua inglesa por ser um padrão consistente já na literatura da área
e porque traduções livres podem deturpar o conceito que existe deles como “instituição musical”.
poder que pessoas comuns se transformam em heróis, mantendo-se em um
estado de tranquilidade mental, e preservando o uso livre de sua
consciência ainda sob as mais terríveis e surpreendentes circunstancias.
(tradução nossa)
3. Para uma definição (um pouco) mais prática de cross-rhythm, poderíamos
dizer que é a sobreposição de eventos sonoros que representam algum tipo
de estrutura acentual contrastante, durante um período determinado de
tempo. Alguns tipos de cross-rhythms são representados no quando abaixo
Fig. 10: cross-rhythms
O cross-rhythm no rock
O cross-rhythm surge no curso da história da música popular norteamericana
no momento em que as características rítmicas da música africana começam a se
mesclar com as características rítmicas da música europeia. A acentuação
majoritariamente ternária da música negra é absorvida no esquema binário da música
branca de modo a produzir formas de expressão rítmica com acentuações peculiares.
Podemos encontrar no blues um gênero que se cristalizou numa forma métrica binária
composta, de subdivisões ternárias, com acentuações marcadas aos moldes de um
compasso europeu. Já no rock, um pouco mais tardio, ocorre um fenômeno um pouco
distinto: as subdivisões ternárias da música negra são incorporadas ao compasso 4/4
europeu na forma de acentuações deslocadas e contrastantes com as acentuações
“naturais” do compasso. Essas formas rítmicas produzem, por si mesmas, um contraste
com o sistema que serve como grade métrica (no caso do rock, majoritariamente o
compasso 4/4 no nível Ni0), ou em relação a outros instrumentos que expressam essa
grade ao executar um ritmo correspondente a ela. O que acontece, na prática, é que as
oito colcheias do compasso quaternário tradicional ganham uma acentuação específica,
sendo agrupadas na forma 3+3+2 (ou combinações desse padrão), como veremos nos
exemplos adiante.
É importantíssimo ressaltar que os cross-rhythms são gerados por
agrupamentos em um nível inferior ao que os ouvimos. Por exemplo, um cross-rhythm
332 (formado por um grupo de 3 colcheias + 3 colcheias + 2 colcheias) criará
acentuações diferentes ao ser executado sobre um compasso 4/4, produzindo o efeito de
acentos deslocados ou não coincidentes, como podemos ver na figura 11, abaixo:
3
3
2
3
3
2
Fig. 11: acentos do cross-rhythm em compasso 4/4
É importante ressaltar que o modelo de análise que estamos desenvolvendo se
aplica apenas a exemplos do repertório em compasso 4/4, sendo possível estabelecer
modelos para trabalhos em 3/4 ou 2/4, com as adaptações necessárias. Essa
configuração é abundantemente mais comum no repertório do que outras formas quiçá
possíveis, razão pela qual nos atemos a elas, por ora. Ainda, modelos para compassos
em subdivisão ternária 6/8, 9/8 ou 12/8 estão sendo estudados pelo grupo de pesquisa
‘O DNA do Rock’.
Para fins de facilitar a explicação e tornar mais fácil a visualização desse
elemento rítmico no repertório, utilizaremos o mais comum de todos os cross-rhythms:
o 332 (3 colcheias + 3 colcheias + 2 colcheias), como ele aparece no riff inicial de
Paranoid, do Black Sabbath (figura 12).
3
3
2 | 4/4
|3
3
2 | 4/4 etc.
Fig. 12: riff inicial de Paranoid, do Black Sabbath
Os compassos 1 e 3 diferenciam-se ritmicamente dos compassos 2 e 4 porque a
configuração acentual sugere um objeto rítmico que propõe uma negação do resultante
previsível da estrutura de compasso de 4/4. Por que isso ocorre? Numa sucessão de
eventos sonoros de características mais ou menos diferenciadas, é possível sentir que
alguns eventos são percebidos como mais importantes que outros. Alguns soam mais
“intensos” que outros, e podemos dizer que são acentuados. Estes eventos destacam-se
perceptivamente de outros por possuir maior ou melhor quantidade e/ou qualidade de
informação9. Para reconhecer as notas mais importantes de um trecho musical (aquelas
hierarquizadas pelos acentos), vamos aplicar a ideia de acentos de LERDAHL e
JACKENDOFF (1987, p.17). Segundo os autores há três tipos de acentos:
• fenomenológico: dado pelas características fenomenológicas do material;
• estrutural: responde às “forças direcionais” do sistema tonal/modal (estrito ou
livre10);
• métrico: depende do lugar da grade métrica em que o som está inserido.;
• O fenomenológico pode ser reconhecido em:
→ acentos propriamente ditos (sons com mais intensidade/volume);
→ articulações diferenciadas;
→ notas longas ou intervalos entre ataques maior do que a média (toda peça tem
uma média de intervalos entre ataques, IOI ou inter onset intevals ou intervalos
entre ataques);
→ ataques (quando acontecem em intervalos maiores do que o nível de referência –
nível Ni0);
→ mudanças repentinas de direção, timbre, dinâmica ou qualquer parâmetro
significativo;
→ saltos.
9
Para uma definição de ‘informação’ ver FALCÓN (2011, p.93); para ‘quantidade de informação’ e
‘qualidade de informação’, ver p.16, nota de rodapé.
10
Sobre a definição de ‘tonal-livre’ ver FALCÓN (2011, p.19, nota de rodapé no. 13)
Os gráficos abaixo pretendem representar a ideia de acento a partir de gráficos
visuais, porém, podem ajudar na compreensão da ideia de eventos mais hierarquizados
perceptivamente:
.........................
....... ...... ...... ......
acento por volume
acento por timbre
x
x
x
• O acento estrutural é um conceito que permite entender que a tônica de uma
escala é a nota mais hierarquizada, e, portanto, cada vez que um trecho musical
passa pela tônica produz-se um efeito de atração. Também, um direcionamento
das outras notas da escala em procura dessa tônica como um centro tonal/modal
reforça a hierarquia do evento. Este é o tipo de acento resultante de regras
gramaticais do sistema musical ocidental, com um alto componente de
condicionamento cultural.11
• no acento métrico, qualquer nota localizada no primeiro tempo (de qualquer
nível) será mais acentuada que outras, localizadas em lugares mais fracos da
grade métrica.
Em You really got me, do The Kinks, tem-se:
ac. fenomenológico
ac. estrutural
ac. métrico
resultado:
11
Tempos mais acentuados
Neste caso, deixamos de fora pesquisas em acentos estruturais em sistemas não tonais, atonais ou
politonais, ajustando-nos apenas ao recorte do gênero objeto deste estudo.
Fig. 14: Mapa de acentos em You Really Got Me, do The Kinks
Quando uma banda está executando uma peça musical, os instrumentistas
podem interagir integrando-se ou diferenciando-se entre eles a partir de várias
dimensões da música: tipo de compasso, grade métrica, ritmo, velocidade, acordes,
escalas, dinâmica, articulações, entre outras. No caso de Paranoid, citado anteriormente,
o riff é executado inicialmente apenas pela guitarra, enquanto nas próximas vezes o
baixo e a bateria se comportam imitando o fraseado da guitarra. Poderíamos, assim criar
um mapa acentual:
3 3
2
colcheias
4 (ou 8 colcheias
agrupadas em 4
tempos)
3 3 2
colcheias
4 (ou 8 colcheias
agrupadas em 4
tempos)
Fig. 15: mapa de acentos em Paranoid, do Black Sabbath
Os cross-rhythms podem acontecer em todos os instrumentos ou não. Na
introdução de Highway Star, do Deep Purple, por exemplo, é possível reconhecer
auditivamente que, a partir de 0:17, o órgão se separa dos outros instrumentos,
executando um cross-rhythm de 333322 (guitarra, baixo e bateria mantém uma
marcação absolutamente atrelada à grade métrica do compasso 4/4), gerando uma
dissonância rítmica muito significativa. Assim, cross-rhythms não precisam ser
executados por todos os músicos ao mesmo tempo. Diferentes combinações geram
“pesos” diferentes, e portanto, resultados perceptivos (e estéticos) diferentes.
Alguns modelos de cross-rhythms
• 332: O mais comum de todos. Pode ser ouvido no baixo de Hound Dog,
interpretado por Elvis Presley e seu trio12. Um exemplo interessante está na comparação
12
Link para visualização online: http://www.youtube.com/watch?v=lzQ8GDBA8Is. Acesso: 19 de
Agosto de 2013.
de duas músicas da banda Bachman-Turner Overdrive: em Let It Ride, os violões da
introdução antecipam a divisão 332. Quando os outros instrumentos (bateria e baixo) se
somam, agregam-se ao esquema 332 durante todas as seções em que esses acordes estão
presentes. E, em You Ain't Seen Nothing Yet, a banda faz uma verdadeira superposição
de instrumentos de cordas acentuando 332 junto à bateria, que se mantém em 4/4.
Assim podemos concluir que alguns cross-rhythms sucessivos (como na introdução de
Paranoid, analisada acima) produzem o efeito de tensão ou dissonância rítmica
sequencialmente, ou seja, a cada vez que um padrão diferente do existente aparece,
produz-se mudanças perceptivas significativas ao padrão métrico que tínhamos adotado.
A outra possibilidade está em que, como se observou em You Ain't Seen Nothing Yet,
alguns instrumentistas escolham alguma das configurações e outros escolham outras,
produzindo-se a dissonância na simultaneidade de acentos entre os diferentes planos
sonoros13.
• 233: bastante menos usual, pode ser encontrado em Hard Times, do Kiss.
O efeito 233 no nível Ni-1 se escuta como cross-rhythm com o Ni0. Em ‘De do do do,
de da da da’ do The Police, o guitarrista Andy Summers usa um cross-rhythm na
estrofe (a partir de 0:28, fora de fase, assunto que descreveremos melhor logo a seguir, à
distancia de 1 semicolcheia no nível Ni-2)
• 333322: utilizado em Painkiller, do Judas Priest:
3
3
3
3
2
2
Fig. 16: cross-rhythm no riff inicial de Painkiller, do Judas Priest
• 233332: aparecem em 2 Minutes to Midnight, do Iron Maiden, no riff
inicial; também, em Keep me Comin’, do Kiss:
13
Chama-se de planos sonoros a uma das linhas tocadas por instrumentos ou grupos de instrumentos que
tem a mesma função ou carregam semelhante material. Para mais informação ver FALCÓN (2011, 12).
Fig. 17: cross-rhythm em Keep me Comin’, do Kiss
• Fora de fase: são aqueles cross-rhythms que começam em outros lugares
que não o primeiro tempo do compasso. Um 323 fora de fase aparece em Look Sharp,
de Joe Jackson (Fig. 18). Este exemplo é curiosamente parecido com as claves tocadas
em And I love her, do The Beatles, a partir da segunda estrofe:
intro
3
3
2
2
3
3
Fig. 18
Em This Love, de Maroon 5, encontramos um exemplo mais moderno, o único
encontrado até agora em que o 2 da formula 332 cai na cabeça de um compasso (Fig.
19):
3
3
2
3
3
2
3
3
2
3
Fig. 19
Fig. 20
3
3
3
3
V
V
V
V
• Incompletos (3,3,3,3...): Aparece em Back in Black, do AC/DC:
3
• Bizarros
Kashmir, de Led Zeppelin
Parte A
Parte B
Fig. 21
• Longo (333333332222): em Fear, de Lenny Kravitz, acontece um crossrhythm no nível Ni-2, porém suas consequências se sentem no Ni-1:
3
3
3
3
3
3
3
3
2 2 2 2
Fig. 22
• Em outros níveis: Pearl Jam, em Even Flow, apresenta um riff em 332
no nível Ni-2; em Alive, a guitarra base faz novamente um 332 em Ni-2, que ocupa só a
metade do compasso 4/4; em Jeremy, sugere-se um 33... que não tem sua resolução
muito clara.
• Funções. O cross-rhythm é usado em diferentes momentos e com funções
muitas vezes bem delimitadas.
→ Como riff;
→ Em introduções, sugerindo a provável coexistência de algum crossrhythm sobre outra configuração rítmica (normalmente 4/4);
→ Como convenção: quando toda a banda assume o formato de crossrhythm e o executa conjuntamente;
→ Sobrepondo cross-rhythms;
→ Mudando-os;
→ Utilizando-os como final de hipercompasso
→ Utilizando-os como pontes
→ E mil funções mais. Veja quantas você pode descobrir.
Conclusão
A partir do estudo dos cross-rhythms, pode-se perceber a importância desse
elemento rítmico como formador (junto ao offbeat e ao offbeat harmônico) de alguns
dos elementos estruturadores mais importantes da linguagem do rock, trazendo à tona a
incrível riqueza acentual que o rock tem, entre outroas dimensões.
Esse estudo foi desenvolvido junto ao grupo de pesquisa ‘O DNA do Rock’,
formado por Stefany Sohn, Fernando Nicknich, Gabriel Floriani, Vitor Wielewski do
Carmo, Thiago Jachelli, e Andreas Müller, sob minha coordenação e orientação. A
proposta do grupo é aprofundar as pesquisas acerca da linguagem do rock, tendo nesta
primeira discussão inicial algumas questões que poderão ser desenvolvidas,
acreditamos, em várias direções. Estudando os modelos, usos, funções, em diferentes
artistas, países, estilos, épocas, selos discográficos, produtores e outros parâmetros a
pesquisar, temos descoberto que o rock, embora seja um território bastante conhecido
através da informação antropológica, sociológica e jornalística, tem muitos
(muitíssimos) elementos musicais que ainda esperam uma devida atenção dos
pesquisadores para que sejam devidamente estudados e compreendidos. De nossa parte,
adoramos esse desafio, ainda mais escutando a música que amamos.
Bibliografia:
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Rhythm in African Music. Society for Music Theory, Volume 6, Number 1 January,
2000. Disponível em http://www.mtosmt.org/issues/mto.00.6.1/mto.00.6.1.anku.html.
Acesso: 18 de Agosto de 2013
BLACKING, John. How musical is man?. Seattle and London: University of
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CORRÊA, Antenor F., SUPLÍCIO, Eliana G. Dissonâncias rítmica e métrica. I
Annais do XVII Encontro Nacional da Abem. São Paulo: 2008.
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Bachman-Turner Overdrive, Bachman-Turner Overdrive II., Let it Ride. Mercury,
1973.
Bachman-Turner Overdrive, Not Fragile, You Ain’t Seen Nothing Yet. Mercury, 1974.
Black Sabbath, Paranoid, Paranoid. Vertigo, 1970.
Deep Purple, Machine Head, Smoke on the Water. EMI/Warner, 1972.
Elvis Presley, Hound Dog (single), Hound Dog. RCA, 1956.
Iron Maiden, Powerslave, 2 Minutes to Midnight. EMI, 1984.
Joe Jackson, Look Sharp!, Look Sharp!. A&M/Polygram/Universal, 1979.
Judas Priest, Painkiller, Painkiller. Columbia, 1990.
Kiss, Dinasty, Hard Times. Casablanca, 1979.
Kiss, Creatures of the Night, Keep Me Comin’. Casablanca, 1982.
Led Zeppelin, Physical Graffiti, Kashmir. Swan Song, 1975.
Lenny Kravitz, Let Love Rule, Fear. Virgin, 1989.
Maroon 5, Songs About Jane, This Love. J/Octone, 2002.
Pearl Jam, Ten, Alive; Even Flow; Jeremy. Epic, 1991.
The Beatles, A Hard Day’s Night, And I Love Her. Parlophone, 1964.
The Kinks, Kinks, You Really Got Me. Pye/Reprise, 1964.
The Police, Zenyattà Mondatta, De do do do, De da da da. A&M, 1980.
Toto, Toto IV, Rosanna. Columbia, 1982