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ARTIGOS
DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER: O PENSAMENTO DE MICHEL DE
MONTAIGNE COMO PRESSUPOSTO NA DISCUSSÃO SOBRE A MORTE E O PROCESSO DE
MORRER NA PRÁTICA MÉDICA
How to philosophise is learn to die
Discussion of the death in the Montaigne’s Philosophy vision.
Rodrigo Siqueira Batista*, Romulo Siqueira Batista**
RESUMO
A discussão sobre o problema da morte e do processo de morrer na Medicina é o
objetivo do presente artigo. Colocam-se aspectos relevantes da postura médica diante
do paciente com a morte em curso, através da busca de interfaces com o pensamento
cético do filósofo Michel de Montaigne, a partir de seu texto De como filosofar é aprender
a morrer. Espera-se, pois, que direções apontadas pelo exercício de reflexão aqui
proposto possam nortear novas discussões, altamente necessárias para a abordagem
crítica de tão crucial problema.
PALAVRAS-CHAVE
Pacientes terminais, Montaigne, morte
ABSTRACT
In this article we discuss important aspects of medical behavior in front of a terminal
patient and broach the problem working Montaigne’s philosophy. The purpose is
check the ideas and find a conclusion about a doctor’s posture and the death.
KEY WORDS
Terminal patient, Montaigne, death
* Médico e filósofo. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina de Teresópolis e do Núcleo de Estudos
em Filosofia e Saúde, Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO). Mestre e Especialista em Doenças
Infecciosas e Parasitárias pela UFRJ. E-mail: anaximandro@hotmail.com
** Filósofo, Professor Assistente da Faculdade de Medicina de Teresópolis e do Núcleo de Estudos em
Filosofia e Saúde, Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO). Mestrando do Departamento de
Filosofia da PUC-RIO.
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1. INTRODUÇÃO
“Ó doloroso servidor do Hades, que atravessa a barco
A água azul-escura do Aqueronte,
Receba-me, eu o cão Diógenes, se para ti não está
Carregada de almas em demasia a aterradora barca.
Meus pertences: o alforje, o cantil, o velho traje
E o óbolo que faz atravessar os que estão mortos.
Parto para o Hades levando tudo quanto adquiri
Entre os vivos. Nada deixo sob o sol.”
(Leônidas de Tarento)
“Porque aquele que quiser salvar sua vida, perdê-la-á”
(Mateus 16, 25)
A Medicina se coloca, muitas vezes, sob uma perspectiva dialética
entre as “verdades” estabelecidas pela ciência e a “boa conduta” discutida
pela ética. A despeito de todas as críticas que possam ser evocadas por esta
afirmação, sem dúvida boa parte dos médicos estabelece sua prática diária com base nesses pressupostos.
Estas esferas — ética e científica — são mananciais para diversos problemas que necessitam ser discutidos. Sob esta perspectiva surge, com
inquestionável força, o problema da morte e do processo de morrer — nos
aspectos éticos, epistemológicos e metafísicos —, o que evoca a responsabilidade das posturas e condutas a serem tomadas em cada momento, diante do
enfermo que está morrendo. É preciso compreender o processo — afinal, ele
é inerente à prática médica —, postar-se adequadamente, quando ele estiver
em curso, e poder falar sobre ele com o doente “terminal”. A mitologia já nos
esclarece algo se, por exemplo, é lembrada a história de Asclépio, o deus
grego filho de Apolo, que no seu aprendizado com o centauro Quíron, teria
adquirido a habilidade de ressuscitar os mortos (Grimal, 1997: 49):
“Na verdade, ele [Asclépio] recebera de Atena o sangue que escorrera das
veias da Górgona; enquanto as veias do lado esquerdo tinham espalhado
um veneno violento, o sangue do lado direito era benéfico e Asclépio
sabia utilizá-lo para dar vida aos mortos. O número de pessoas que ele
ressuscitou desse modo é considerável. Entre elas conta-se Licurgo, Glauco
(filho de Minos) e Hipólito (filho de Teseu).”
É deveras interessante perceber, através da Mitologia, o já implícito
desejo de vencer a morte, muitas vezes tão inerente à postura médica, mes10
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mo nos dias de hoje. Qual dos doutores, que lêem esse manuscrito, nunca
se sentiu indisposto e/ou impregnado pela impotência, ao vivenciar o
processo de morrer e seu desfecho, de um paciente por si assistido? Esta
dificuldade em se lidar com a morte — e com o enfermo com a morte
em curso — é discutida, por Norbert Elias, em seu livro A Solidão dos
Moribundos (Elias, 2001: 10):
“Nunca antes na história da Humanidade foram os moribundos afastados
de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os
cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal
perfeição técnica do leito de morte à sepultura (...).
Intimamente ligado em nossos dias, à maior exclusão possível da morte e
dos moribundos da vida social, e à ocultação dos moribundos dos outros,
particularmente das crianças, há um desconforto peculiar sentido pelos
vivos na presença dos moribundos. Muitas vezes não sabem o que dizer.
A gama de palavras disponíveis para o uso nestas ocasiões é relativamente
exígua. O embaraço bloqueia as palavras. Para os moribundos essa pode
ser uma experiência amarga.”
É realmente difícil se lidar com a idéia da morte e com seu processo,
o qual em tantos aspectos pode ser doloroso. Não seria diferente com os
médicos. Isso pontua, em inicial medida, os vários senões que permanecem em aberto, gerando uma torrente de ponderações bem inseridas no
contexto de discussão, realidade factível pela importância do processo de
morrer e do seu desfecho na totalidade da vida humana.
A partir destas considerações propõe-se, no presente trabalho, a discussão de pressupostos conceituais da morte e do processo de morrer, a partir
da análise do texto De como filosofar é aprender a morrer de Michel de Montaigne.
Sem embargo, esta discussão precisa ser pontuada, inicialmente, a partir da
compreensão do significado da morte e do processo de morrer. Apreender
o que se passa é preciso. A seguir, procurar-se-á estabelecer um elo para a
compreensão do significado da morte para o homem que está morrendo, e
para o médico, homem que, no momento do morrer, o assiste.
2. A
MORTE E SEU SIGNIFICADO
Vida e morte podem ser apreendidas como instâncias dialéticas de
um mesmo processo, como no dizer de Jaspers: “considerando que tanto
como existência quanto como consciência que temos desta própria existência, nós somos como existência a morte” (Jaspers, 1973: 89).
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Nessa perspectiva, morrer é um dos pontos culminantes e críticos da
existência humana, habitualmente relacionado, em nossa sociedade ocidental, à tristeza e ao sofrimento. Falecer significa se despedir, deixar de
fazer parte deste único mundo que conhecemos, afastar-se do convívio de
pessoas queridas. Morrer causa temor. É o desconhecido que está por vir.
Mas, em que consiste este momento — algo pontual (?) —, a morte? Aqui
pois um dos problemas a serem enfrentados: a moderna tecnologia de
suporte das funções vitais — amplamente embasada no progresso científico da Medicina — vem colocando em xeque os profissionais envolvidos
na assistência dos doentes ditos terminais, pela ocorrência cada vez mais
freqüente de situações limítrofes, nas quais não é possível estabelecer, com
precisão e acurácia, os limites entre o viver e o morrer, entre estar vivo ou
morto (Barrêto, 1992). Nesse sentido, razoáveis conjecturas sobre esta
transição são apresentadas no trabalho de Kastenbaun, que discrimina
vários estratos no processo de morrer (Kastenbaum, 1981):
• a morte começa no momento em que se reconhece uma situação
em que há ameaça à manutenção da vida, ou seja, quando médico
e/ou paciente acumulam dados que sugiram essa nova realidade
— caracterizando uma inserção no processo de morrer;
• a morte se inicia quando os fatos são frontalmente comunicados,
cabendo distinguir-se a não interposição temporal da realidade para
o médico — emissão do prognóstico — e para o paciente — momento da informação;
• a morte se inicia quando da tomada de consciência por parte daquele
que morre, após decorrido o tempo entre a notícia e a assimilação
do novo status quo;
• a morte apenas se inicia quando o fluxo biológico tornar-se inviável,
ou seja, no momento em que o dano orgânico é irreparável a ponto
de nada mais poder ser feito para a manutenção da vida.
As três primeiras colocações são de insuspeitada grandeza em termos
da otimização da relação médico-paciente. Sem embargo, no que se refere ao último conceito, ainda é da maior dificuldade se estabelecer o momento em que o processo de morrer se inicia, se ele, uma vez iniciado é
passível de retorno e, se o é, em que ponto emerge a irreversibilidade.
Mas morrer, o fato em si, não é o único problema. Não se pode
perder de vista que a morte está geralmente relacionada, em nosso uni12
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verso conceitual, ao sofrimento de uma doença grave e progressiva —
desfecho nefasto desse processo — ou à crueza de um acidente ou outra
causa violenta de fenecer, que ceifa a vida nos melhores dias (SiqueiraBatista, 2001). Em ambas as situações, a supressão do bem maior da
vida, tanto de forma insidiosa, quanto de forma abrupta, possibilita a
adoção de uma postura reflexiva, com revisão de conceitos e paradigmas
daqueles que experimentam a proximidade da morte — quer familiares,
quer profissionais.
3. A
MORTE, O PROCESSO DE MORRER E SUA INSERÇÃO NA MEDICINA
A Medicina é uma das atividades que colocam o homem diante de
seus mais íntimos conflitos, seus mais contundentes limites. Em poucas
profissões o indivíduo encontra-se tão incisivamente sujeito a todo o tipo
de pressões e ao desgaste profissional, como na prática médica (Selingman
Silva, 1994). A peculiar face de agir, na maior parte das vezes, nas condições em que pulula a dor — momento em que se rompe o equilíbrio
próprio à saúde —, faz do médico um profissional permanentemente
confrontado com as questões evocadas pelo sofrimento, em suas mais
diferentes facetas (Machado, 1997).
No mais das vezes não se pode sair impune deste processo: o confronto direto com o sofrimento, que tem como perene pano de fundo a morte.
A presença da morte — aquela que, no transcorrer do ato médico precisa
ser vencida — instaura no exercício profissional um alto grau de responsabilidade pelo enfermo, sua dor e sua trajetória à restituição da saúde ou
ao êxito letal. Abrem-se, desse modo, perspectivas para as reflexões sobre
as melhores condutas a serem adotadas, a mais adequada forma de se
lidar com a finitude do outro, sem que seja adotada uma infrene negação
da inexorabilidade. É assim, pois, no diagnóstico de uma grave enfermidade, na exposição a um paciente dos riscos da cirurgia a que será submetido, nas hórridas complicações advindas de um tratamento agressivo,
todas situações nas quais os profissionais envolvidos experimentam, de
uma forma geral, um manancial de sentimentos negativos, que têm sua
gênese em uma rede de processos que se interpenetram, em uma perspectiva multifatorial (Palacios, 1993). Aqui, nestes exemplos drásticos, é a
dialética vida-morte que está presente: ou acerto ou morre o paciente! A densa
noção de responsabilidade pela existência do enfermo e a permanente
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necessidade de decidir nestes momentos cruciais são os elementos chaves
dessa malha interconectada geradora de angústia.
A morte anunciada — lenta e sofrida —, como a vivida por doentes
terminais dos mais diferentes tipos de cânceres ou da AIDS, nos remete às
discussões pertinentes não somente à morte em si, mas a toda a problemática do sofrimento para o moribundo — o processo de morrer. Subserviente à máxima médica de consolar sempre, um enfermo que se encontra
na mais absoluta condição de penúria, já com a sua sorte selada pela
doença — eventualmente com semanas ou dias de vida — deve estimular
no profissional médico o esforço de condução com mínimo de padecimento, em condições dignas, até o desenlace final.
Os problemas estão assim colocados: há um evento, um fato inegável e
inexorável, capaz de colocar em xeque nosso próprio pensamento — partindo-se do pressuposto, como queriam os epicuristas, que há cessação do
pensamento após o derradeiro momento —, ou seja, a morte. Por seu turno, este
momento não surge do nada — ex nihilo nihil —, mas sim como desfecho de
um devir, o processo de morrer. É possível estabelecer um ponto de partida
para a abordagem do problema? Como, sob uma perspectiva da vida, olhar
para a morte? Seria isto possível? Em que medida estas conjecturas mostram-se úteis à atividade médica, ao olhar do próprio médico em direção
aos seus enfermos moribundos? A seguir é trazida, como contribuição ao
encaminhamento das interrogações apresentadas, uma breve reflexão acerca da morte, tomando de empréstimo o ceticismo de Michel de Montaigne.
4. DE
COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER
O problema da morte e do processo de morrer é discutido em várias
passagens da obra do pensador francês Michel de Montaigne, como em
“De como filosofar é aprender a morrer”, publicado no Ensaios, no qual
Montaigne faz uma análise bastante interessante sobre a morte quase como
perspectiva da vida: “A meta de nossa existência é a morte; é o nosso
objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo sem tremer?” (Montaigne, 2000: 92).
O enfrentamento da questão — o que é a morte e como ver o processo
de morrer — é uma atitude intrinsecamente filosófica. Para isto, ainda no
princípio do ensaio, Montaigne conclama à vivência da virtude como
pressuposto para lidar com a idéia da própria morte: “Um dos principais
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benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que
nos permite viver em doce quietude e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência.” (Montaigne, 2000: 93).
É preciso pensar no que significa a morte, em toda a sua abrangência.
Montaigne adverte sobre a tolice dos homens que se negam a refletir sobre
o último momento, considerando esta atitude uma verdadeira cegueira. A
negação da morte é uma postura que fomenta ainda mais o sofrimento —
quando de sua proximidade se toma, enfim, o conhecimento — capaz de
trazer dor e desespero (Montaigne, 2000: 93):
“Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a
morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência
compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos
exime de toda a sujeição e constrangimento.”
Trata-se do aceite da condição intrínseca à vida, a morte. Para
Montaigne é mister preocupar-se com o desfecho de antemão, uma vez
que é inevitável, atingindo infalivelmente a todo e qualquer humano.
Pensar nela e não se preocupar ou a temê-la é o que se faz de mais
produtivo. Isso retira da morte o que ela tem de trágico: o inesperado, o
desassossego do desconhecido; praticando-a, habituando-se a ela, tendo-a —
de uma forma ou de outra — incrustada no pensamento, assimila-se que algo
está por vir e que nada pode ser feito em contrário (Montaigne, 2000: 95):
“Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de
alfinete, digamos: se fosse a morte! E esforcemo-nos em reagir contra a
apreensão que uma tal reflexão pode provocar.”
“A chegada da morte não me surpreenderá; acho-me sempre, e quanto
posso, preparado para essa ocorrência. Ela se mistura sem cessar no meu
pensamento, nele se grava.”
Montaigne ainda adverte, de forma interessante, que a própria Natureza, a própria existência, o fluxo inexorável das coisas, ao seu modo, nos
prepara para o que está por vir (Montaigne, 2000: 96):
“As flutuações a que se sujeita a nossa saúde, o enfraquecimento gradual
que sofremos, são meios que a natureza emprega para dissimular-nos a
aproximação de nosso fim e de nossa decrepitude.”
“Se nossa morte é súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se não,
na medida em que a enfermidade nos domina, diminui naturalmente o
nosso apego à vida.”
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Esta perspectiva de reflexão, de uma forma ou de outra, traz conforto àquele que pensa. Se algo é incontornável, não há porque temêlo ou sofrer de antemão: que se espere e viva enquanto há vida por se
viver, enquanto a chama permaneça acesa. Dessa postura brota o
manancial da liberdade, pressuposto para o fluir da própria vida. Não
há mais a preocupação com o quanto eu vou viver ou como se dará a minha
morte, mas sim com o momento em que se vive — uma vez que não há
qualquer garantia de que no instante seguinte se possa qualquer coisa
(Montaigne, 2000: 96):
“Em relação à morte, viver pouco ou muito é a mesma coisa, pois nada é
longo ou curto quando deixa de existir.”
“Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade
não reside na duração e sim no emprego que lhe dais.”
A interseção vida-morte pode também ser apreendida sob outra instância, em que a morte significaria, tão somente, a libertação de toda a
sorte de impropérios e sofrimentos inerentes ao viver, como nos assegura
Montaigne: “Que tolice nos afligirmos no momento em que vamos nos
ver livres de nossos males.” (Montaigne, 2000: 101).
Pode-se dizer que Montaigne nos apresenta uma estreita composição
entre o binômio vida e morte, não podendo se pensar em uma desconectada
da outra. Esta visão da morte em estreita relação e interdependência com
a vida, lembram um dos fragmentos do filósofo grego Heráclito de Éfeso:
“Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília
e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente.” (apud Bornheim, 1999: 41).
É bem verdade que todos, em algum momento, são tocados por estas
questões. Difícil imaginar aquele que não pensa, mesmo fugazmente, na
morte. Entretanto, a delimitação do problema em relação à inseparabilidade
dos conceitos de vida e morte, como o colocado por Montaigne (Montaigne,
2000: 93), talvez seja o grande esteio de toda a atitude filosófica, como
asseverado pelo “Filosofar e aprender a morrer”. Talvez seja este o grande papel da Filosofia.
“Morrer é a própria condição de vossa condição; a morte é a parte
integrante de vós mesmos.”
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5. EIS
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A QUESTÃO...
Pode-se perceber nesta breve análise do ensaio de Montaigne, que a
melhor forma de se lidar com a morte é aceitando-a como tal, sem se
preocupar com as influências que a noção de finitude podem imprimir
na vida, mas sim procurando experienciar o estar vivo sob a perspectiva
mais plena possível.
Retomando o problema do olhar e da postura médicas sob esta perspectiva, é forçosa a revisão de uma prática destinada à luta incessante contra
a morte — afinal, se o contexto é colocado sob este prisma, o médico já
entra na luta com todo o ônus da derrota. O médico, isto posto, não é um
gladiador contra a morte, mas sim um profissional que deve se esmerar
em restabelecer a saúde daquele que dela se encontra privado. A aceitação dessa condição, por si só, já seria capaz de minorar a angústia que se
sente ao constatar que um enfermo está com a morte em curso.
Deste modo, cabe perguntar se é justo inverstir na manutenção da vida
— a todo o custo —, quando se está diante de um doente grave e incurável, conforme já assinalado em outro momento: “É lícito investir na perpetuação da vida, neste grupo de pacientes, até o fim, digladiando com a
morte até suas últimas conseqüências, mesmo quando a medicina, em
tese, esgotou todos os seus recursos?” (Siqueira-Batista, 2001: 21).
Lançar mão de toda a ciência e tecnologia disponível é a postura
adotada por alguns médicos para manter o paciente vivo, obter a cada
momento uma nova “vitória” sobre a morte, a despeito de todo o sofrimento que isto pode lançar (Brody, 1976; Siqueira-Batista, 2001).
Essa prática necessita, no mínimo, ser reavaliada, uma vez que a cada
dia novos avanços são alcançados em relação à manutenção da vida, ou
melhor, dos sistemas orgânicos em funcionamento (aqui mesmo reside,
conforme o discutido na primeira parte deste trabalho, a dúvida sobre a
transição morte-vida, ou seja, em que momento ela se dá). É premente
que surja a instigante atitude de rever, em nosso mais íntimo foro, o
arquétipo de um Asclépio que subsiste em todos nós... Ademais, uma
ampla discussão no âmbito dos profissionais de saúde e da sociedade civil
seria altamente desejável, pelas possibilidades de aprimoramento no trato
destas ponderações. O médico que está no corpo-a-corpo diário com estas
questões, deve adotar uma postura reflexiva sobre sua própria prática,
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suas atitudes e decisões, sob pena de passar, de médico, a um manipulador
de botões e drogas no ambiente frio da UTI, ou pior, do seu próprio coração.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARRÊTTO, F.J.T. A morte e o morrer. A assistência ao doente terminal.
In: MELLO FILHO, J. (Org.) Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1992. p. 287-298.
BORNHEIM, G.A. Os filósofos pré-socráticos. 13. ed. São Paulo: Cultrix,
1999. 128p.
BRODY, H. Ethical Discussions in Medicine. Boston: Little Brown, 1976. 568p.
ELIAS, N. A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001. 108p.
GRIMAL, P. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 3. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997. 554p.
JASPERS, K. Filosofia da Existência. Rio de Janeiro: Imago, 1973. 478p.
KASTENBAUN, R.J. Death, society and human experience. 2. ed. St. Louis:
Mosby, 1981. 345p.
MACHADO, M. H. Os Médicos no Brasil. Um Retrato da Realidade. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. 248p.
MONTAIGNE, M. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 2000. v.1. 512p.
PALACIOS, M. P. Trabalho hospitalar e saúde mental: o caso de um
hospital geral e público do município do Rio de Janeiro. 1993. 124p. Dissertação (Mestrado em Medicina) - Instituto de Medicina Social.
UERJ, Rio de Janeiro.
SELINGMANN SILVA, E. Desgaste mental no trabalho dominado. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1994. 262p.
SIQUEIRA-BATISTA, R. O médico diante da morte: perspectivas de
discussão ética com base na filosofia de Immanuel Kant. Revista da Faculdade
de Medicina de Teresópolis. Teresópolis, v.3, n.1, p. 18-22, jan./jul. 2001.
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A N A M A R I A T E S TA T A M B E L L I N I , V O L N E Y
DE
MAGALHÃES CÂMARA
sistema de saúde como atividades independentes até a década de 90. A
consolidação operada incorpora em ambos os modelos e de forma não
homogênea e disciplinada, tipos particulares de agravos e processos que,
por características de seus campos de práticas não são assumidos e integrados nos dois tipos hegemônicos de vigilância. Mais que isto, a incorporação de novos objetos de vigilância e as articulações efetivas de suas
ações no interior destes dois tipos hegemônicos não resultaram em práticas tidas como inovadoras e capazes de criar novas possibilidades de
avanços para os modelos já consagrados. Talvez as origens destas novas
práticas, enquanto questões teóricas e metodológicas e de intervenção,
não se inscrevam no modelo de neutralidade política e unidisciplinaridade
que caracterizam os modelos precedentes. Fica também evidente a falência dos resultados/integrações desejáveis, pois que no contexto dado às
novas práticas só são aceitas como possíveis elementos de articulação e
apoio político burocrático com aderência negociada e temporária às matrizes institucionais permissivas que as detém.
Entre essas novas formas de práticas, duas modalidades de vigilância,
ambas intimamente ligadas entre si do ponto de vista teórico e articuladas
no que diz respeito às relações processuais que as categorias de determinação de processos mórbidos mantêm entre si, tiveram rápido e considerável desenvolvimento a partir da década de 80. São elas: a vigilância da
saúde associada ao trabalho em seus processos de produção, onde o ambiente levado em conta é aquele microambiente onde o processo de trabalho
se realiza; e, a vigilância de saúde associada aos variados ambientes da
“vivência” não necessariamente nominados que, de maneira geral, abarca
todos os compartimentos ambientais nas suas mais diversas especializações.
A primeira modalidade citada, tida como instrumento da área de
Saúde do Trabalhador – Saúde Ocupacional, foi a que mais se desenvolveu no período, acumulando níveis de experiência e reflexão, ainda que
não tenha conseguido se institucionalizar, mantendo-se senão à margem,
pelo menos fracamente assumida pelo sistema de saúde. Pode-se dizer
com alguma margem de segurança que um processo semelhante aconteceu, em menores proporções, com a Vigilância Ambiental em Saúde.
Chamaria a atenção, ainda que não se constitua em questão principal
de nossa reflexão, mas por ser certamente um elemento de preocupação
do ponto de vista da ética e do cuidado relativo a preservação de defesa
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VIGILÂNCIA
A M B I E N TA L E M S A Ú D E
de direitos fundamentais dos cidadãos, uma nova modalidade de vigilância que estamos denominando de “Vigilância de Comportamentos Prejudiciais à Saúde”. Esta teria como objeto o sujeito em suas ações, costumes
e hábitos e como objetivo recomendar medidas para conter/evitar o aparecimento e a persistência de comportamentos humanos julgados como
elementos de maior relevância para conformação de riscos específicos
para a saúde da coletividade e dos próprios indivíduos “portadores” de
tais formas de atuar. Tal vigilância já se concretiza, atualmente para o
caso de abuso de drogas, comportamentos violentos e condutas sexuais,
se constituindo em formas de disciplinarização exercidas freqüentemente
de forma coercitiva, e em graus diversos, sobre os sujeitos (indivíduos/
coletividades), chegando em alguns casos a ferir os direitos dos cidadãos
e a dignidade humana.
Na Vigilância à Saúde do Trabalhador são utilizados indicadores do
processo do trabalho em suas relações técnicas e sociais e indicadores
microambientais, ou seja, indicadores das condições dos ambientes nos
quais se realiza o trabalho, como elementos preditores dos agravos e
doenças. Neste caso, admite-se riscos à saúde diferenciados para situações
de trabalho particulares, postos e níveis de trabalho. O ambiente de trabalho é tomado como elemento/categoria mediadora ou como uma via
de acesso para analisar a relação causa/efeito nos processos de saúde/
doença que vão se manifestar no trabalhador. A elaboração das atividades desse tipo de vigilância considera como fundamental em seu modo de
proceder à participação nestas atividades da população trabalhadora, objeto
e a razão de seu exercício, seja como elemento da gestão do sistema, seja
como elemento componente das atividades em vigilância. Neste sentido,
são enfatizados não só os processos de informação à população alvo, mas
principalmente os processos educativos em saúde.
Sendo uma área intensamente normatizada e sujeita a legislação específica e, dado o alto nível de complexidade que alcança a produção e as
relações capital/trabalho nas sociedades capitalistas ocidentais, há necessidade de se elaborar indicadores destas questões pela incorporação de
conceitos e categorias do âmbito jurídico-legal. Deve-se lembrar que tal
fato acontece também, por razões diversas e ligadas ao consumo e aos produtos/mercadorias resultantes dos processos de trabalho no regime de produção
vigente e que se constitui no objeto de atividades na Vigilância Sanitária.
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Assim, a Vigilância à Saúde em nosso meio se elabora a partir de
vários olhares e diferentes postos de observação, o que possibilita a adoção de modelos diferenciados que se julgam apropriados à diversidade
das questões sob mira, às oportunidades particulares de exercê-las, aos
diferentes níveis e especificidades dos serviços a que se destinam, à competência técnica e social dos recursos disponíveis e ao grau do desenvolvimento dos serviços básicos de informação em saúde. Também se faz
necessária a integração com outras áreas técnicas e científicas, cujas informações digam respeito a processos envolvidos na determinação da dinâmica deste campo de prática (saúde), tais como os dados e indicadores
demográficos, sociais, econômicos, culturais, ambientais, ecológicos e técnicos (Corvalán et al., 1996; Ministério da Saúde, 1998; Domingues, 2001).
2. A VIGILÂNCIA AMBIENTAL
EM
SAÚDE
Ao longo do desenvolvimento das vigilâncias no Brasil, são descritos
fatos/acontecimentos que caracterizam episódios epidêmicos de acidentes/intoxicações que tiveram como origem situações de risco presentes no
ambiente (Tambellini & Câmara, 1998), e que foram enfrentados indistintamente pelas vigilâncias epidemiológicas ou sanitárias nos diferentes
estados brasileiros. Somente a partir da implantação do Projeto Vigisus a
Fundação Nacional de Saúde iniciou um processo de institucionalização
das ações de VAS que foi intensificado em 2001 através da estruturação
do Sistema Nacional de Vigilância Ambiental em Saúde (SINVAS), regulamentado pela Instrução Normativa No. 1 de 25 de setembro de 2001 da
Fundação Nacional da Saúde/Ministério da Saúde que definiu competências no âmbito federal, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, para estes fins (Franco Netto, 2001). Este sistema define a VAS
como um conjunto de ações e serviços prestados por órgãos e entidades públicas e
privadas relativos à vigilância ambiental em saúde, visando o conhecimento e a detecção
ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes do meio
ambiente que interferem na saúde humana, com a finalidade de recomendar e adotar
medidas de prevenção e controle dos fatores de risco relacionados às doenças e outros
agravos à saúde (FUNASA, 2001). Aponta ainda como prioridades para
intervenção os fatores biológicos representados pelos vetores, hospedeiros, reservatórios e animais peçonhentos e os fatores não biológicos, que
incluem a qualidade da água para consumo humano, ar, solo,
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contaminantes ambientais, desastres naturais e acidentes com produtos
perigosos (FUNASA, 2001).
A definição da Vigilância Ambiental em Saúde, aliada a importância
que tem os processos produtivos na relação saúde/ambiente, explicita
suas interfaces com as outras vigilâncias. Com a Vigilância Epidemiológica
no que diz respeito às doenças que estejam relacionadas, qualquer que
seja a forma, ao ambiente ecológico-social; com a Vigilância Sanitária no
tocante ao consumo de produtos/mercadorias cujos resíduos produzam
modificações na natureza que afetem a saúde; e, com a Vigilância da
Saúde dos Trabalhadores no que se refere à necessidade do conhecimento dos processos produtivos que possam poluir os sistemas ecológico-sociais.
A vigilância do ambiente deve ser incluída como prioridade porque é
necessário identificar as situações de risco que antecedem os efeitos considerados adversos para a saúde. A ausência deste tipo de informação,
dependendo do objeto da vigilância, não deixa outra alternativa senão o
desenvolvimento de metodologias/tecnologias para identificação dos
poluentes em amostras dos diversos compartimentos ambientais. Entre os
sistemas oficiais de informação existentes, pode-se incluir o Sistema de
Informações Hidrológicas da Agência Nacional de Energia e Eletricidade
(ANEEL); as imagens de satélites e monitoramento de queimadas do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); os recursos hídricos,
qualidade dos assentamentos humanos, biodiversidade, Amazônia Legal e
de políticas de desenvolvimento sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA), além dos sistemas de monitoramento do ar realizados por
algumas instituições estaduais de meio ambiente, tais como a Companhia
Estadual de Tecnologia em Saneamento Ambiental (CETESB) em São
Paulo e a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA)
no Rio de Janeiro (Domingues, 2001).
Na VAS são utilizados indicadores de processos, condições e dinâmicas do ambiente, tomado em sua acepção mais global (ecológico-social):
espaço complexo construído natural e socialmente que atua, através de
suas várias formas e componentes, na determinação dos processos de
saúde e de doenças. O trabalho, melhor dizendo, os processos de produção, bem como os de consumo, transporte de mercadorias e seus resíduos,
fazem parte da rede complexa de determinantes das condições e dinâmicas ambientais, ou seja, contribuem em maior ou menor grau, para a
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conformação dos sistemas ecológicos que compõem o ambiente em termos amplos, mas, não necessariamente, condicionam diretamente a gênese de doenças em todos os grupos populacionais submetidos a um dado
espaço de “vivência”.
Um exemplo bastante promissor de construção de indicadores que
caracterizam um modelo de compreensão/ação em Saúde Ambiental,
nos é fornecido pela Organização Mundial da Saúde (Corvalán et al.,
1996). É proposta uma matriz definidora de uma seqüência hierárquica
que inclui cinco níveis destes indicadores, onde, em ordem decrescente,
são classificados em Forças Motrizes, que são representadas pelas características mais gerais dos modelos de desenvolvimento adotados pela sociedade; Pressão exercida por estas forças motrizes no ambiente, notadamente
as características de ocupação e exploração do meio; Estado do ambiente
que se encontra em freqüente modificação, dependendo das pressões que
recebem; Exposição dos grupos populacionais submetidos ao meio; e,
Efeitos adversos à saúde associados a esta exposição. No caso específico
da VAS, para cada um destes níveis correspondem ações específicas, tais
como, respectivamente, políticas econômicas, gerenciamento de riscos,
melhoria da qualidade ambiental, equipamentos de proteção individual e
tratamento dos casos (Corvalán et al., 1996; Domingues, 2001).
3. A VIGILÂNCIA AMBIENTAL
EM
SAÚDE
E SUAS INTERFACES
O ambiente pode de muitas maneiras afetar a saúde humana, o que torna
a Vigilância Ambiental em Saúde uma prática de elevada relevância para a
saúde das coletividades na identificação e definição de ações/intervenções para
prevenção e controle. Neste sentido, é fundamental o conhecimento das situações de risco de origem no ambiente e suas conseqüências para a saúde.
O entendimento da Vigilância em Saúde a partir de seus objetos que
configuram tipos particulares de vigilância pode nos fornecer um instrumento de valor para visualizar e aprofundar a análise das articulações
necessárias entre as vigilâncias “oficialmente nomeadas” em direção a
integralidade que é própria da saúde.
De acordo com o objeto da vigilância podemos explicitar os seguintes
tipos de observação vigilante: vigilância da “doença/agravo”; vigilância
dos “expostos”; vigilância de “agentes”; vigilância dos “produtos”; vigilância de “processos”; e, vigilância dos “resíduos/passivos” ambientais.
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A vigilância da “doença” é a mais primitiva destas modalidades, pois
que a doença é justamente aquilo que se propõe evitar e sua presença é a
demonstração cabal de que falharam todos os recursos e alternativas escolhidas para combate-la (esta expressão foi usada para enfatizar a ideologia
de luta – visão belicosa da doença como um mal proveniente de forças
contrárias ao bem-estar dos homens) com que os sistemas de saúde tem
conduzido suas estratégias de prevenção de doenças. A adoção deste tipo
de vigilância pode significar uma fase incipiente do conhecimento sobre a
relação causa/efeito, a impossibilidade de se obter informações ou de se
atuar completamente sob os demais elementos significativos da estrutura
epidemiológica, entre outras razões de ordem racional, técnica e social
que em cada tipo específico de doença se apresentam de forma particular.
Este tipo de vigilância é uma forma particular da “vigilância de efeitos” que inclui todos os resultados e conseqüências de um considerado
processo de determinação de mudanças no plano da saúde. Assim, os
efeitos podem abarcar desde os casos da doença em uma dada população
até as falhas/impropriedades observadas no sistema de saúde, ou as perdas no plano vital e social decorrentes da adoção de determinados critérios jurídico-legais, ou ainda, a disfunção ecológica-social capaz de criar
riscos para a saúde e que é resultante de um processo de produção, cujo
componente técnico em sua relação com o ambiente altera a dinâmica e
equilíbrio deste meio. Todas estas alternativas podem ser observadas principalmente no que diz respeito às vigilâncias nas áreas de Saúde Ambiental
e do Trabalhador. Porém, a forma presente mais comum de vigilância de
“doenças”, é apanágio da “Vigilância Epidemiológica”, que é também a
forma mais bem sedimentada do ponto de vista institucional, dado que já
existe instalado um Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (SNVS)
fundamentado sobre as bases deste tipo de vigilância. A maior experiência das atividades da Vigilância Epidemiológica lhe permite estabelecer
um modelo já testado na realidade, associando a ele vantagens, desvantagens e indicações de usos adequados a determinadas situações concretas.
Por outro lado, o próprio desenvolvimento do Sistema de Informação
em Saúde existente contempla o evento doença em suas múltiplas possibilidades de registro enquanto causa básica de óbitos, enquanto diagnóstico
realizado no atendimento médico do sistema de saúde e especialmente
como forma obrigatória de referência nos vários sistemas de notificação
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de doenças compulsórias ou não, entre eles, o Sistema de Informações
Hospitalares (SIH/SUS), Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) e
Sistema de Informações Ambulatoriais, todos do DATASUS; o Sistema
de Notificação de Agravos (SINAM) e Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC), ambos do Centro Nacional de epidemiologia
(CENEPI); o Sistema de Informações Tóxico-farmacológicas da Fundação Oswaldo Cruz (SINITOX); além das Comunicações de Acidentes e
Doenças Relacionadas ao Trabalho junto a Previdência Social.
Neste sentido, o sistema de saúde está preparado internamente para
operar com este tipo de vigilância, porque os dados a serem analisados
por ela, em sua maior parte, são produzidos pelo próprio sistema, além de
outras vantagens, tais como, a já citada experiência acumulada sobre este
tipo de atividade, a existência de recursos humanos especializados para
operá-la, bem como uma rede de ensino, aperfeiçoamento e treinamento
para a formação dos mesmos em âmbito nacional, a existência de unidades institucionais em funcionamento em todos os níveis do sistema de
saúde e abarcando uma significativa parcela de municípios sob supervisão
dos respectivos estados, a familiaridade das populações com este tipo de
atividade e seus resultados, entre outros, além do fato de ter orçamento
previsto nas despesas públicas nacionais destinadas à saúde.
A vigilância dos “expostos” inclui toda população existente num determinado território, com ênfase naqueles grupos mais susceptíveis a cada
tipo de situação de risco/doença objeto do sistema. A Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) através do Censo Demográfico
e da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios é a principal fonte de
informação para este tipo de vigilância. Outras fontes se referem a grupos
particulares da população, tais como trabalhadores, escolares,
previdenciários, presidiários, entre outros, especificando possibilidades de
exposição e convivência. Tal como a vigilância da “doença”, está centrada
no sujeito, ou seja, no elemento humano capaz de atuar, ser submetido à
exposição e exibir a doença.
A vigilância do “agente” só consegue se realizar e produzir resultados
positivos para a prevenção das doenças nos casos em que é clara a etiologia
da doença e acessível o elemento patógeno considerado como causa necessária. Usado principalmente nas denominadas doenças infecciosas e
parasitárias (DIP), seu objetivo principal é encontrar fórmulas concretas
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de controle que evitem o encontro/exposição dos suscetíveis com os agentes etiológicos de determinado agravo/doença. Esta forma pode se encontrar associada e em alguns casos contida na já citada Vigilância
Entomológica, que atua não só nos elementos biológicos considerados
como agentes mas também em seus veículos bióticos (espécies transmissoras)
ou abióticos e elementos do ambiente considerados importantes no processo de exposição dos suscetíveis.
A vigilância do “produto” diz respeito a determinadas mercadorias
cujo consumo pode levar a alterações da saúde de seus consumidores,
sendo objeto da Vigilância Sanitária cujo principal objetivo consiste em
evitar que os produtos analisados que possuam determinadas características consideradas potencialmente patógenas não cheguem ao consumidor.
Como já dissemos anteriormente, estas mercadorias são produtos de processo de trabalho/produção e a presença destas características no produto
é quase sempre indicativa de sua existência - nem sempre em condições
controladas - no processo que as produziu, podendo significar contaminações ambientais de âmbitos e tipos diversos (microambiente de trabalho,
ecossistemas). Estas contaminações colocam em pauta possibilidades de
outros tipos de exposições, além daquela própria do ato do consumo da
mercadoria propriamente dita, tais como, a dos trabalhadores envolvidos
em sua produção e a de outros grupos populacionais que possam estar
submetidos aos ambientes (externo ao microambiente de trabalho gerador da contaminação) poluídos pela falta de controle da produção. Daí a
sua importância para a Saúde Ambiental.
As vigilâncias do “agente” e do “produto” devem ser consideradas
como formas particulares de vigilância de “causas”, pois dizem respeito a
elementos considerados entre aqueles que são aceitos cientificamente como
componentes dos complexos causais/condicionantes/determinantes de
resultados negativos para saúde e para os quais existem possibilidades de
informações e acesso. Sua escolha é também estratégica, mas indica sobretudo um certo grau de conhecimento e domínio sobre a estrutura
epidemiológica da doença e sobre os mecanismos presentes no processo
relacional que leva aos efeitos adversos à saúde.
A vigilância do “processo” se torna forma preferencial nos casos onde
a determinação é complexa. As vigilâncias dos ambientes ecológicas e
sociais e do trabalho se constituem em unidades complexas que somente
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podem ser compreendidas e acessadas via formas processuais e através de
aportes multidisciplinares. Por outro lado, a intervenção sanitária nestas
situações demanda equipes multiprofissionais. Assim a Vigilância Ambiental
em Saúde e a Vigilância do Trabalhador, bem como a Vigilância Sanitária se constituem em formas da vigilância de “processos” quando realizam plenamente seus objetivos.
A vigilância do “processo” também é utilizada quando não se identificam agentes enquanto elementos causais necessários ou há impossibilidade de isolar e acessar tais elementos. Por exemplo, a maioria das doenças crônico-degenerativas, imunológicas e acidentes se incluem neste grupo de acontecimentos/eventos que possuem problemas de determinação
com este tipo de obstáculo. Nestes casos, são abordados processos de
várias naturezas e formas onde podem ser identificados núcleos de relações de menor complexidade, cujo papel é decisivo na alteração de saúde
dos indivíduos ou coletivos neles envolvidos.
Por outro lado, a vigilância dos “fatores de risco” fica a meio a caminho entre a vigilância de agentes e de processos, desde que são construtos
matemáticos probabilísticos de orientação epidemiológica que podem se
referir tanto aos doentes/expostos, agentes, condições ambientais ou a
articulação de todos ou alguns destes elementos que ocorrem durante o
curso do processo saúde-doença.
A vigilância dos “passivos ambientais” se aplica aos resíduos originados de todas as fases dos processos produtivos, incluindo matérias primas,
instrumentos e produtos que podem sofrer, ou não, alterações na natureza. Essas alterações freqüentemente modificam suas características físicoquímicas e como conseqüência, produzem efeitos para a saúde das coletividades. Além da importância sanitária, esta vigilância constitui-se também em elemento de peso para o desenvolvimento sustentável.
A importância desta vigilância está presente em nosso país onde o
desenvolvimento industrial e o aumento do consumo pela população propiciou o aumento dos resíduos sólidos e líquidos, notadamente nos grandes
centros urbanos, e têm sido motivos de preocupação para a Saúde Ambiental.
Esta situação impõe a necessidade de um gerenciamento adequado que
considere as condições da realidade do país no projeto de sistemas capacitados para produzir um tratamento eficaz dos mesmos e, conseqüentemente, seus impactos ambientais (ATSDR, 1992; Ferreira, 2000).
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Um exemplo deste tipo de vigilância ambiental em saúde pode ser
visto na proposta de avaliação de riscos para a saúde causados por resíduos perigosos (ATSDR, 1992) cujo alvo são as populações que vivem e
trabalham próximas a locais poluídos por substâncias químicas. Tem como
principal característica o fato de realizar uma avaliação de saúde baseada
em três tipos de informações: informação ambiental pertinente, nos dados
sobre efeitos à saúde e ainda, nas avaliações qualitativas e quantitativas
das preocupações da comunidade associadas ao local onde ocorreu liberação de substâncias perigosas. Esta metodologia determina as implicações para a saúde pública no local e aconselha o início de atividades de
seguimento em saúde (ATSDR, 1992).
Para as atividades de vigilância existem ainda poucas informações
disponíveis sobre os locais que concentram resíduos perigosos, uma vez
que está em sua fase inicial de implantação pela coordenação de Vigilância Ambiental em Saúde (CGVAM/FUNASA) um cadastro de áreas de
resíduos perigosos notificadas pelos Estados e Municípios, além de um
Sistema de Monitoramento de Populações Expostas a Agentes Químicos
- SIMPEAQ (Franco Netto, 2001).
4. CONCLUSÕES
Do ponto de vista do conhecimento torna-se necessário adotar conceitos e definições que esclareçam o entendimento do que seja o ambiente, bem como as possibilidades de se especificar e classificá-lo de acordo
com suas características principais e daquelas outras características e atributos que possam se constituir em elementos da relação ambiente-homem
potencialmente envolvidas em processos de produção de efeitos, principalmente, negativos sobre a saúde. Além disso, é necessário elaborar ou
selecionar um modelo de produção deste efeito compatível com o conhecimento atual que possibilite um pensar relativo aos desdobramentos dos
fatos/situações/acontecimentos da realidade sob a forma de um processo.
O modelo processual é importante por várias razões, entre outras: contém
os elementos/relações causadoras; explicita momentos e fases distintas
onde pode se dar a exposição; identifica formas e conteúdos e elementos
que o conformam, bem como, as mudanças nelas imprimidas pela dinâmica do processo. É possível influir em sua velocidade de progressão,
inclusive paralisando seu curso.
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Quando se tem uma plenitude de interações das mais variadas naturezas e formas, submetidas em graus diversos a normas, regras e contingências que não se dão a conhecer à simples observação da aparência,
então, o olhar necessariamente cauteloso e ponderado que torna visível o
processo em seus detalhamentos é que vai conseguir vigiar para prevenir.
Finalmente, deve-se também enfatizar que a vigilância deve buscar e
privilegiar a dimensão do afeto, isto é, o cuidado: cuidar, estar perto/zelar.
Uma vigilância amorosa, aberta para o outro porque carrega como princípio o crescimento solidário e a realização de projetos coletivos consensuais, respeitadores de desejos
e expectativas fundadas no bem querer. Esta vigilância deve prevalecer sobre a outra, a
vigilância do controle: cercear, restringir/delimitar. Uma vigilância instrumental, fechada por possibilidades estratégicas de domínio sobre o outro porque reivindica a coerção/
punição como elemento de realização de projetos de poder elaborados por facções/grupos
particulares contra formas de ser e estar de outros grupos (Tambellini, 2002).
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