Anais parte 2 - Portal de Poéticas Orais
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Anais parte 2 - Portal de Poéticas Orais
Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ ii UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA Reitora: Profa. Dra. Nádina Aparecida Moreno Vice-reitora: Prof. Dra. Berenice Quinzani Jordão Diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas: Profa. Dra. Mirian Donat Chefe do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas: Profa. Dra. Mariângela Peccioli Galli Joanilho Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários: Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes Comissão organizadora do evento: Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes -PPG Letras/ UEL (coordenador) Fabiana Francisco Tibério - PPG Letras/UEL Felipe Grüne Ewald - PPG Letras/UEL Juliana Franco Alves - PPG Letras/UEL Marcelo Rodrigues Jardim - PPG Letras/UEL Profa. Dra. Marta Dantas Silva - PPG Letras/Artes/UEL Priscilla Lopes da Silva - PPG Letras/UEL Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati - PPG Letras/UEL Profa. Dra. Suely Leite - Letras/UEL Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) S471a Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades (1. : 2010 : Londrina, PR) [Anais do] I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Vozes, Performances , Sonoridades / Frederico Augusto Garcia Fernandes...[et al.] (orgs.) – Londrina : UEL, 2011. 775 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7846-101-0 1. Linguagem poética – Congressos. 2. Literatura – História e crítica – Congressos. 3. Crítica literária – Congressos. 4. Linguística – Congressos. 5. Poesia sonora – História e crítica – Congressos. I. Fernandes, Frederico Augusto Garcia. II. I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Vozes, Performances, Sonoridades. CDU 82-1.09 Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ iii À guisa de apresentação... O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (Gilles Deleuze & Félix Guattari) O “I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances e Sonoridades” foi realizado entre os dias 20 e 22 de outubro de 2010, nas dependências do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e teve como objetivo principal reunir estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, de modo a criar um ambiente de encontro e debate de ideias entre pesquisadores da poesia oral, com fins à cooperação e pesquisas futuras. O evento foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários) da UEL e contou com o apoio financeiro da Fundação Araucária e dos cursos de Especialização em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da UEL. As pesquisas em poéticas orais encontram-se pulverizadas em diferentes áreas do conhecimento. O arco de áreas envolvidas com a oralidade apresenta uma envergadura que vai das ciências da saúde, passando pela Psicologia, pelos estudos de línguas indígenas e vernáculas, pela Linguística Aplicada, História, Antropologia, Sociologia, apenas para citar algumas disciplinas. Além disso, merece destaque nesse encontro, o que é melhor revelado nessas duas partes dos Anais, projetos envolvendo os estudos literários, com debates em torno da oralidade e suas relações com o texto literário, gêneros poéticos orais, a sonoridade e o emprego da voz em textos poéticos vanguardistas e multimidiáticos. Os estudos de poéticas orais no Brasil são melhor compreendidos numa cartografia de estudos e objetos. Empregamos o termo “cartografia” não como um tratado geográfico (espacial) sobre o qual as críticas e os objetos criticados se desenham, mas como a descrição de um conjunto de diferentes olhares e pensamentos, numa relação de espaço/tempo determinada. Trata-se de uma metacrítica sobre o ofício de coleta e análise de textos poéticos orais. Assim, uma cartografia tem a pretensão de colocar o pesquisador da poesia oral frente a diferentes correntes de pensamento e também provocar o diálogo entre elas. Permite a ele ter um olhar crítico sobre o seu próprio fazer, de modo a pensar conceitos e formas de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ iv relacionamento com seu objeto de pesquisa. Vista nesta perspectiva, uma “cartografia de poéticas orais” tem como objetivo principal realizar um estudo dos diferentes olhares críticos em torno da poesia oral e propiciar o debate em torno de ideias. Os dados coletados pelo projeto Cartografia de Poéticas Orais do Brasil1, no que diz respeito à região Sul, revelam também uma pluralidade de áreas de conhecimento envolvidas com as poéticas orais. Num levantamento preliminar de projetos de pesquisa em 19 IES nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, foram detectados projetos em Artes Cênicas, História, Antropologia, Geografia, Sociologia, Comunicação e uma predominância de projetos na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada e Teoria Literária. A realização do “I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais” foi ao encontro do projeto “Cartografias...”, trazendo pesquisadores de diferentes departamentos e áreas do saber, possibilitando o debate e a troca de conhecimentos em torno das pesquisas em oralidade e sonoridade. No Brasil, os pesquisadores em poéticas orais, geralmente, encontram porto para a disseminação e o debate de ideias de suas pesquisas em eventos de Antropologia e História Oral, nos quais se constituem grupos de trabalho ad hoc que tratam de questões inerentes às poéticas orais como performance, narrativa oral, tradição, memória, identidade, entre outras. Cabe destacar, entre este tipo de agremiação, o GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, que há mais de uma década vem reunindo pesquisadores da área de Letras e Linguística nos encontros bienais da ANPOLL e realiza também seu encontro intermediário. A realização do “I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais” rompeu com o paradigma de grupos de trabalho ad hoc, situando as poéticas orais na berlinda de um debate no qual os apresentadores de trabalho podiam interagir com conhecimentos de áreas distintas da sua de origem. Desse modo, a estrutura do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais foi pensada em torno de 5 grandes eixos temáticos, nos quais a interdisciplinaridade pudesse afluir: 1 O projeto Cartografia de Poéticas Orais do Brasil foi proposto e é coordenado pelo prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes. Foi gestado durante 4 anos junto ao GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL e teve início em 2008. Atualmente o projeto apresenta uma equipe de 16 pesquisadores, envolvendo 11 IES (UEL, Unicamp, UFBA, UNEB, UFGD, UFMT, CEFET/MT, UFPA, UEBA, Unipampa, UFRGS). A respeito do projeto junto ao GT de Literatura Oral e Popular, ver o sítio: http://www.anpoll.org.br/site/gts/relatorios/GTLiteraturaOralPopularRelatorio20062008.pdf Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ v a) Questões de Oralidade e Educação Ementa: emprego do texto poético oral como um instrumental metodológico na educação. b) Oralidade e Literatura Ementa: problemas da representação da oralidade em textos literários e a presença da voz de narradores/poetas oriundos de uma cultura oral em obras escritas. c) Mídia e Oralidade Ementa: estudos sobre os diferentes suportes empregados na disseminação do texto poético oral, questões inerentes a: transcrição, transcriação, tradução e edição. d) Performance e Poesia Oral Ementa: abordagem e análise de diferentes expressões performáticas, vanguardistas e populares, em que circulam o texto poético oral. e) Abordagens Interdisciplinares: Ementa: pesquisas oriundas de diversas áreas do conhecimento, de modo a evidenciar trabalhos cuja preocupação principal não é o texto de circulação poética oral, mas cuja abordagem e análise tornam-se necessárias. Tais categorias são amplas e flexíveis, sendo que a proposta dos eixos temáticos teve por objetivo superar algumas dicotomias como “erudito x popular”, “folclórico x canônico”, “escrito x oral”, comumente empregadas ao texto poético oral. Dessa forma, pesquisadores de várias áreas do conhecimento encontraram-se envolvidos durante as sessões de comunicação e as mesas-redondas, o que possibilitou o confronto e o cotejo de enfoques teóricos e de objetos, abrindo espaço para as contribuições que uma área de conhecimento pode dar a outra. Aí reside a diferença dessa proposta de evento, cuja contribuição principal foi a de agregar pesquisadores de diferentes campos do saber, ampliando o escopo de pesquisas em poéticas orais e de promover o diálogo multidisciplinar em torno de textos poéticos orais. Estes Anais reúnem parcela dos trabalhos apresentados durante o evento. Divididos em duas partes, de modo a facilitar seu acesso e download, eles apresentam um amplo panorama cartográfico de como os estudos em poéticas orais podem ser pensados no País. O leitor encontrará em tela artigos que variam de temas como a oralidade na literatura brasileira, passando por capoeira, rap, teatro, ensino de literatura, literatura grega clássica, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ vi francesa, infantil, a poética indígena, a poética de aboios e de rezadeiras, polipoesia, entre outros. Esperamos que a grande profusão dos trabalhos aqui apresentados oxigene ainda mais o diálogo entre os pesquisadores e que as pesquisas configurem-se como uma porta de entrada para que conheçamos a poética das vozes de muitos brasileiros ainda distantes dos bancos escolares. Londrina, 17 de julho de 2011. Os organizadores Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ vii Índice Parte 1 – Acessar pelo outro arquivo Elefante de Francisco Alvim: poética do improviso? Adriano de Souza 1 A representação do demônio na literatura popular Amanda Crispim Ferreira e Raimunda de Brito Batista 13 A palavra como impulso do gesto: reflexões sobre o teatro de Joaquim Cardozo Ana Carolina Paiva 32 Ao som do repente: a poética do improviso Andréa Betânia da Silva 50 Tradição, história e poética no samba de roda baiano Ari Lima 63 Causos e assombrações na coleção Lua Cheia: uma análise do distanciamento do narrador oral Carina Bertozzi de Lima 70 Capoeira Angola: versos, veredas e vadiação Carla Alves de Carvalho Yahn 79 Sertão de linguagem: Rosa, Mallarmé, Heidegger Cleia da Rocha Sumiya e José Sérgio Custódio 94 O Mito de Sísifo no poema “Desastre”, de Cesário Verde Cristian Pagoto 108 Catatau: vozes do cogito em performance Dalva de Souza Lobo 122 Da oralidade enquanto procedimento de organização discursiva Dante Henrique Mantovani 134 Expressões idiomáticas, gírias, e discussão da história nacional em Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho Éwerton Silva de Oliveira 157 O discurso poético de Heráclito: memória e oralidade Felipe Augusto Vicari de Carli e Roosevelt Araújo da Rocha Júnior 174 O espetáculo da violência no conto “Júri”, de Luiz Vilela Francielle Aparecida Miquilini de Arcega e Moacir Dalla Palma 189 A poética da oralidade e a performance do leitor Gláucia Helena Braz 204 Mulher e oralidade: as possíveis marcas do discurso patriarcal na canção Doidinha de seu Jorge Guilian Scorsim Omura, Jullyana Araujo Lopes e Moacir Dalla Palma 220 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ viii O prego – análise de um poema para crianças feito canção Helena Ester Munari Nicolau Loureiro 235 A poética do sarau medieval: liturgia e semiose Jander Antônio Sá de Araújo 249 A saúde pela palavra vocalizada: performances de rezadeiras da Paraíba João Irineu de França Neto 253 Oralidade e educação. Poéticas orais em sala de aula: relatos e retratos Josebel Akel Fares 264 A modernidade no “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade Kayan Gusmão e Cristian Pagoto 280 O caipira e sua música Laurindo Stefanelli 295 O universo configurado pela poesia do cancioneiro popular gaúcho: o homem, a 306 mulher, o amor, suas relações e pontos de vista de um sobre o outro Lisana Bertussi Oralidade e performance na obra de Klévisson Viana Lívia Petry Jahn 316 Ricardo Azevedo: folclore ou “literatura oral”? Luciane dos Santos 329 Performances da literatura de cordel no espaço da migração: uma peleja teórica entre J. 344 Barros e Maxado Nordestino Luciany Aparecida Alves Santos Valère Novarina e o uso performativo da linguagem na dramaturgia contemporânea Marcelo Bourscheid 364 Parte 2 Cora Coralina, um caso de oralidade Márcia Batista de Oliveira 374 Entre o oral e o escrito: a criação de uma oralitura Margarete Nascimento dos Santos 393 A voz em sua pluralidade interna e externa Maria Auxiliadora Cunha Grossi 407 Um estudo de propostas de leitura de poesia em livros didáticos Maria de Lourdes Bacicheti Gonçalves 428 Aboio: poética de um canto de trabalho Maria Laura de Albuquerque Maurício 447 O influxo árabe no português brasileiro derivado do contato de línguas: a herança léxica 458 dos escravos africanos e dos imigrantes libaneses Maria Youssef Abreu Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ ix Ritmo e poesia em performance: uma análise das relações entre texto e música no RAP 480 dos Racionais Mc’s Marília Gessa “A voz é a pessoa”: performance de dona Rita na Lapinha Sagrado Coração de Jesus Marinaldo José da Silva 501 Agamben e a Tucandeira: o contemporâneo em um canto arcaico dos índios SateréMawé Mário Geraldo da Fonseca 513 Explorando a contação de mitos, causos e histórias tradicionais do norte do Paraná no ensino de história: o recurso à oralidade como elemento de análise Mario Junior Alves Polo 526 As narrativas urbanas e a internet: por uma poética da oralidade relacionada às novas tecnologias Mauren Pavão Przybylski 541 Narrativa, tradição e experiência: análise de aspectos da literatura tradicional/oral/popular em A viagem do elefante, de José Saramago Max Alexandre de Paula Gonçalves 563 Experimentalismo e (não) oralidade como representação da violência em O paraíso é bem bacana Moacir Dalla Palma 575 Representações de luta: a retratação do homem sertanejo e de sua vida na literatura de cordel e no filme Vidas secas Paulo Estevão Mortati Fuzinelli 591 Representações identitárias em cantigas de roda Rafael Rodrigues da Silva e Renata Fonseca Monteiro 607 O narrador e o cantador: seus aspectos e papéis referentes à Literatura de Cordel Raphaela Cristina Maximiano Pereira 619 A coita que se conta/canta (vozes da ausência) Renata Farias de Felippe 635 Memória e testemunho: a maldição de ter vivido em “Dama da noite”, de Caio Fernando Abreu Ricardo Augusto de Lima 643 Valor estético e ruptura na linguagem de Augusto dos Anjos Rogério Caetano de Almeida 657 Ogum: uma performance híbrida nos terreiros de umbanda Roncalli Dantas Pinheiro 666 Poesia grega arcaica: oralidade e performance Roosevelt Rocha 673 Acentuação corporal da palavra 683 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ x Sandra Parra Furlanete Oralidade e vocalidade: diferentes possibilidades do conceito de voz na poesia contemporânea de língua inglesa Sílvia Regina Gomes Miho 688 Poética da voz: palavra e performance na cantoria de viola Simone Oliveira de Castro 705 Polipoesia e recuperação da performance da voz Vinícius Silva de Lima 722 O umbigo de Adão: o olhar crítico de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) em conferências Vitor Celso Salvador 733 Arte e loucura: Fernando Pessoa(s)? Vivian Karina da Silva 751 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 374 CORA CORALINA, UM CASO DE ORALIDADE Márcia Batista de Oliveira2 Cora Coralina, em sua escritura, traz um passado em que se é possível adentrar uma realidade diversa. A oralidade é a tônica de sua obra: O primeiro livro lançado pela autora, aos 70 anos – “no tarde da vida”, diz ela – é intitulado Meu Livro de Cordel em que ela mostra por meio de versos vigorosos o cerne de sua poesia e é com esse mesmo vigor que ela realiza a abertura de sua primeira obra: Meu Livro de Cordel Pelo amor que tenho a todas as estórias e poesias de Cordel, que este livro assim o seja, assim o quero numa ligação profunda e obstinada com todos os anônimos menestréis nordestinos, povo da minha casta, meus irmãos do nordeste rude, de onde um dia veio meu Pai para que eu nascesse e tivesse vida. (CORALINA, 1987, p.1) Essa apresentação lírica já infere a tonalidade e o compromisso de sua obra com os simples, assim a fala do povo é colocada no interior da obra de modo natural, também são naturais as expressões utilizadas pela autora, como quem demonstra que pertence a região e está impregnada dos costumes de sua gente. Meti o peito em Goiás E canto como ninguém. Canto as pedras canto as águas, As lavadeiras, também (...) Cantei a casinha velha De velha pobrezinha. Cantei a colcha furada Estendida no lagedo; Muito sentida, Pedi remendos pra ela. Cantei a mulher da vida 2 Coordenadora do Projeto Palavras Andantes SME Londrina Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 375 Conformando a vida dela. (CORALINA, 1987, p.11) Desse modo, seus textos são portas para um universo de pessoas simples marcadas pelo sofrimento e oprimidas pelas rígidas normas sociais, vivendo numa sociedade que é o microcosmo do Brasil Pós República, aspiram à modernidade, mas está presa pelos laços da tradição. Como nesse poema que a poeta reflete a respeito do apego das pessoas às suas convicções: Há um determinismo constrangendo as criaturas. Minha gente do Estado de Goiás, muitos poderiam estar, senão ricos, remediados As mudanças para Goiânia, suas ofertas, lotes, casas e chácaras, terrenos baratos em sua volta. Um decreto do Governador Oferecendo lotes na “nova” a todos os proprietários da “velha” Que requeressem no sentido de compensação generosa, consequente a desvalorização da velha Capital. E prossegue demonstrando certa perplexidade: (...) Qualquer um podia pagar. Rejeitara esses, os ladinos. Não acreditavam, tinham medo de perder suas vinte pratas. Cá ficaram no “ora vejam”. Os destemidos e crédulos avançaram e estão na crista da valorização Imobiliária (...) (CORALINA, 1987, p.179) As expressões utilizadas por Cora Coralina chegam à obra com traços de oralidade, como a expressão “ladina” (que indica esperteza) “remediada” (que indica uma situação financeira definida), remetem a uma tradição oral, ou mesmo um texto de caráter popular, e na tecitura das histórias e dos poemas, observa-se a falar popular. Desse modo, a poeta trata de assuntos relativos à sua terra não como alguém que reporta um fato, mas como alguém que discute, interfere e revive tal realidade. Nesse contexto, a dualidade político-social irá refletir nas ações e no discurso das pessoas, os jovens querem experimentar as inovações, enquanto os velhos professam as tradições. Assim, é possível afirmar que a escritura de Coralina possui uma relação intrínseca com a história, uma vez que elementos históricos perpassam a vida autora. Seus versos abordam as temáticas e as preocupações vigentes o que torna sua obra atemporal, pois traz questões, que até nos dias atuais são polêmicas, por meio dos discursos das pessoas relegadas à margem social. Com sensibilidade, Coralina adentra esse universo e através de sua memória Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 376 lírica retoma a infância, a juventude e a própria maturidade, estabelecendo relações dessas fases com a do espaço de vivência, se inserindo nele. Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa De tuas ruas estreitas, Curtas, Indecisas, Entrando, saindo Uma das outras. Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou Aninha. (CORALINA, 1985, p.47) As pessoas e os locais que a acompanharam nessa trajetória, como parte da região, são o mote para sua poesia: os becos, a periferia, os rios, as casas em decadência são cantadas com lirismo, trazendo ainda, retratos do cotidiano que vem entremeado com discursos folclóricos, neles estão impressos as crenças populares, remontando de forma lírica, alguns ritos religiosos. Um exemplo é o poema Santa Luzia que traz um subtítulo “Recriação de cantigas folclóricas”. A forma em que ele é construído rememora-se as ladainhas proferidas nas novenas. Santa Luzia passou por aqui No seu cavalinho Comendo capim. Santa Luzia guarda os meninos inocentes, que tudo vêem meus olhos, um dia, foram meninos de Santa Luzia. Santa Luzia passou por aqui No seu cavalinho Comendo capim. A simplicidade das rimas e até certa ingenuidade dos versos (por aqui/ comendo capim) empresta ao texto um tom de bênçãos, mostrando a fé popular e os ritos. Evocando os milagres da Santa realizados em pessoas que são conhecidas por um eu lírico que se coloca como testemunha dos fatos, a fim de ratificar e dar cunho de verossimilhança. Como é o caso do menino que pediu a Santa que o permitisse ver só um pedacinho do sol o que foi atendido, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 377 se dando o milagre, fazendo o menino ver para sempre. Ou ainda, a histórias de habitantes da cidade: Maria era peticega Santa Luzia sarou. José tinha branca A menina dos olhos. Santa Luzia deu jeito. Virou o branco em preto E José está homem p´raí Tocando pistão na banda O emprego da expressão recorrente na modalidade oral “peticega” e “branca /a menina dos olhos” aparecem como recurso do autor para tornar o texto mais coloquial e informal e, embora Coralina utilize procedimentos característicos da modalidade falada informal, com um léxico bem conhecido dos interlocutores/leitores, com estruturas sintáticas simples, a mensagem se torna literária pelo ritmo e pelo tom declamativo e também pela maneira em que retrata a fé do povo. A religiosidade premente da poeta dá a dimensão da revelação de sua vivência de forma catártica demonstra sua fé na vida, nas pessoas a de sua formação de raiz católica: é comum nos textos de Cora encontrar uma prece, uma reza ou trechos de uma oração revestida de lirismo, como na Meu Deus, acordai o coração dos Oração do pequeno delinquente “... meus juízes.”(CORALINA,1985,p.233). Entre outras citações semelhantes o eu lírico realiza uma verdadeira profissão de fé, ratificando poeticamente suas raízes. As principais festas da cidade de Goiás, como não poderia deixar de ser, são as festas religiosas populares: Semana Santa, com a Folclórica Procissão do Fogaréu; Folia de Reis, Folia do Divino, Festas Juninas, Festa de Sant’Ana, Padroeira da Cidade, Festa do Rosário, Festa de Nossa Senhora da Conceição, Festa de Santa Luzia, (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1996). Tais festividades fizeram parte da formação da poeta, retoma de forma lírica as festividades de sua terra natal e sua crença nos santos que se alternam com uma forma telúrica de ver a vida: Nossa Senhora das sementes... Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 378 Ajudai todas elas- boas ou más A bem cumprir seu destino De sementes, Lançando do seu pequenino Coração vital O esporo à raiz fálica Que as confirmarão na terra E na sequencia das gerações Através dos tempos Nossa senhora das raízes... (CORALINA, 1987 p.50) Os elementos da natureza impressos nessa oração demonstram uma preocupação natural do homem do campo, da necessidade das sementes germinarem e resultarem numa boa colheita, o eu lírico vai irmanando-se com eles e mostrando a íntima relação da autora com a terra e tudo o que a envolve: os campos lavrados, o encanto das colheitas, os produtos da terra, os animais que nela vivem são materiais dessa apaixonada poesia, em que o discurso dos simples está entrelaçado, como o que está presente no Poema do Milho: As pragas todas, conluiadas. Carrapicho. Amargoso. Picão. Marianinha. Caruru-de-espinho. Pé-de-galinha. Colchão. Alcança, não alcança. Competição. Pac . . . Pac . . . Pac . . . a enxada canta. Bota o mato abaixo. arrasta uma terrinha para o pé da planta. “... - Carpa bem feita vale por duas..." Quando pode. Quando não... sarobeia. Chega terra O milho avoa. Os provérbios, que aparecem no poema apresentam o pensamento vigente e são recolhidos de uma tradição oral e formam essa literatura comprometida retratar uma paisagem agreste ao mesmo tempo em que traz o registro do discurso. Ou ainda: " O mio tá bonito ... " "-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas . " "- O mio tá marcando . . . " Condicionando o futuro: "- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto ... Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 379 Um refrigério " "- O mio lá tá verde qui chega a star azur..." - Conversam vizinhos e compadres. Milho crescendo, garfando, esporando nas defesas... Milho embandeirado. Embalado pelo vento. "Do chão ao pendão, 60 dias vão". (CORALINA, 1987, p.169) Como no poema o Pouso de Boiadas: “A bóia se alaga rumo da aguada /Aguada boa é o que vale” (CORALINA, 1987, p.148) Os discursos nos poemas demonstram o apego de Coralina pelas coisas de sua terra e é transfigurado em seus versos de forma constante que se torna uma um modo de afixar uma identidade: “Sou abelha no seu artesanato./ “Meus versos tem cheiro de mato,/ dos bois e dos currais./ Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas” (CORALINA, 1987, p108). Além dos provérbios, os adágios, oriundos da sabedoria popular por diversos momentos revelam a crítica da autora por esse saber consolidado e por vezes guardião de preconceitos. No tempo dos adágios que os velhos Sentenciavam Enfáticos e solenes: - Quem nasce pra derréis não chega a vintém. Pessimismo recalcando Aquele que pensava evoluir “Vintém poupado, vintém ganhado” Estatuto econômico. Mote gravado No corpo de algumas emissões. “Na pataca da miséria o diabo tem sempre um vintém” Isto se dizia, quando moça pobre se perdia. “Quem compra o extraordinário vê-se obrigado a vender o necessário.” Doía... impressionava. Era a Sabedoria que falava. (CORALINA, 1985, p.61) A palavra sabedoria grafada com letra maiúscula demonstra a intolerância, por parte da autora, por esse saber consolidado que não permite questionamentos, condicionando Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 380 os jovens a eles e os impregnando de ideias estereotipadas. Vigorando desse modo, toda sorte de preconceitos. Através das rememorações, Coralina apresenta a vida de muitas pessoas, revisita lugares, reflete sobre os sentimentos com a desenvoltura de quem conta causos. Como na reflexão de Benjamim “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”.(BENJAMIM, 1994 p.201) Assim, pelas experiências obtidas através de uma vida pródiga, se dividindo entre a família e arte da escrita, a poeta encaminha suas narrativas. Tais narrativas revelam certo saudosismo, como fio condutor da obra, o que é comum numa literatura de memória, porém tal sentimento não a impede de realizar uma crítica tenaz a respeito dos preconceitos, da superioridade das pessoas, da decadência de sua terra pela exploração indevida, a injustiça contra certas tradições familiares que cerceam a liberdade, principalmente aquelas que dizem respeito ao papel da mulher e da criança no âmbito social. Os contos de Coralina são como causos, mostram um tom displicente, à maneira dos contadores de história, tradicionais que sentavam ao redor da fogueira com expectadores ávidos. Nessas histórias estão impressas a mais completa representatividade dos simples: a criança que sofre privações e constrangimentos por parte dos pais e amigos, a mulata faceira e buliçosa no carnaval ou um velho soldado negro. Essas figuras humanas são retiradas do cotidiano e revestidas de lirismo e impregnado de um olhar compassivo por parte da poeta. A memória histórica recupera objetos, lugares, figuras humanas e eventos que identificam o tempo/espaço. Tal tendência é verificada nos contos de Cora Coralina nos quais, na maioria deles, a poeta lança mão de um tom de confronto e ironia. Às vezes cede lugar a um discurso afirmativo em tom de alegria – nem por isso menos sarcástico – em que avança na ousadia e na carnavalização como pode ser observado no conto “Um Carnaval Antigo”, presente no livro Villa Boa de Goiaz, (2003). Nele é realizado um recorte do carnaval do passado, como já antecipa o título, mostrando todo o júbilo presente em tais eventos. A narração traz a história de Joana, mulata bonita e festeira, que sai no cordão carnavalesco enfeitada com ramos de pimenta, como estava na moda. Festeja efusivamente, mas ao ingerir bebida alcoólica começa a passar pimenta e a jogar fogo nos foliões causando confusão geral. Em virtude disso, levam-na para a prisão, lá Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 381 permanecendo pouco tempo, pois seu patrão interfere a seu favor, juntamente com as pessoas do cordão carnavalesco, pedindo sua soltura, carregando-a nos braços, entoando a canção que abre e fecha o conto: Seu delegado, solta a Joana. Ela é do carnaval! (...). Solta a Joana, - respondia o corso. Solta, solta. Ela é do carnaval! Com pimenta ou sem pimenta. Nós queremos é brincar. Solta, solta a Joana (2003 p. 26). Por meio desse conto, iniciado espirituosamente com a marchinha, é possível ter acesso a outro tempo, história que fora nele há elementos de uma memória histórica, através das lembranças vividas pelo narrador que, de modo preciso, expõe com detalhes a descrição das pessoas e dos locais onde se passa a história, como pode ser observada na passagem em que explica de onde veio a idéia de se colocar pimenta no penteado, motivo este que desencadeia toda a trama: Anoca Santa Cruz, cunhada de Luiz Nunes, era no tempo; a pessoa mais considerada respeitada na sociedade goiana naqueles longes passados. Figurinista original e ousada. Ditava moda e sua área magnética era avançada e dominadora. Tinha lançado moda de ramo de pimenta malagueta no penteado alto, do tempo [...] Virou moda e a mocidade goiana passou a se enfeitar de galhos de pimenta, quebrados de pimenteira (2001 p. 24-25). A moda excêntrica proposta pela modista contagia todos pela ousadia, a ponto de ser imitada pela maioria das mulheres; tal fato é tão marcante que parece ter povoado a memória da autora, pois a figurinista e suas invenções são retomadas na poesia “Aborrecimentos de Aninha”, em Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha (1984), na qual se narra, embora em outro gênero e contexto, a inovação dos penteados: Minha irmã Germana vestido, todo fitas e rendas, oferecido pela madrinha –Anoca Santa Cruz Anoca Santa Cruz... elegante, viva, alegre, de comunicação (diriam hoje) Naquele tempo, dada, desembaraçada, espirituosa. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 382 Liderava a sociedade goiana, era ouvida em organização de festas. O palácio nada fazia, no sentido social, sem ouvi-la. Entregava-lhe a direção. Inventava, figurinava. Figurinou a moda: penteado alto, barrete frígio, símbolo republicano recém-implantado. Um dia lançou novidade, nunca vista, sonhada sequer: Ramo de pimenta malagueta no penteado Sei que as pimenteiras foram desgalhadas. Não sobrou moça na cidade que não tivesse no cabelo, seu ramo de pimenta (1984 p. 137). A pimenta malagueta, na escritura de Coralina, serve como mote para estabelecer uma relação com a atitude ousada das mulheres. No conto “Um Carnaval Antigo”, Anoca e Joana, as mulheres retratadas cada qual dentro da sua condição, romperam certas tradições com um espírito criativo e libertário. Deste modo, muito mais do que condimento ou enfeite, no conto a pimenta transforma-se em atributo identificador das duas mulheres, porém apresenta resultados díspares: para Anoca Santa Cruz, de família renomada da cidade, a moda da pimenta, sob os olhares conservadores, é aceita com reservas, recebida e interpretada como excessos da mocidade. Para Joana, a criada, mesmo considerando o excesso da alegria configurado nos excessos no uso da pimenta e da bebida, a reação por parte das autoridades demarca o seu raio de ação. Observa-se então a configuração de duas mulheres, um só atributo – a pimenta – e duas reações como respostas a suas ações: para Anoca, modista pertencente a uma família de renome, a resposta é de aceitação; para Joana, a criada, a resposta vem em forma de restrição por parte da autoridade local, a polícia. A retratação da situação leva-nos a constatar, mesmo que não seja intenção da autora, o tratamento diferenciado que cada uma das mulheres recebe. Observa-se então, a partir dos tratamentos dispensados, o discurso vigente em permanente vigília a assegurar a demarcação dos espaços sociais. Para Anoca uma aceitação interpretada como excessos da mocidade; para Joana, a advertência como sinal de que excessos podem levar para cadeia. De toda forma, as ações da modista e de sua criada são aquelas que dão toque pessoal a essa sociedade de hábitos tão enraizados em rigores morais e que, ultrapassando os limites permitidos, suas presenças metaforizam o efeito da “pimenta malagueta” naquele Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 383 espaço conservador, um toque picante que dão aos eventos e aos costumes, como destacado nos versos: Sei que as pimenteiras foram desgalhadas. Não sobrou moça na cidade que não tivesse no cabelo, seu ramo de pimenta. (1984 p. 137). No poema, mais uma vez está impressa a simpatia do eu lírico pelas pessoas que quebram as regras juntamente com a recuperação da memória histórica através dos modos e dos costumes. A personagem Anoca parece ser mais uma dessas pessoas com espírito de liberdade latente, que não se preocupa com as opiniões alheias. Através dela é possível inferir que, apesar de a sociedade usufruir os inventos da figurinista, o faz com certa restrição. Neste sentido, Anoca destoa desse grupo conservador; tal questão torna-se evidente por meio dos adjetivos a ela atribuídos pela narradora que, numa perspectiva polifônica, traz para o poema o discurso vigente, “naquele tempo, dada, desembaraçada, espirituosa”. Embora esses vocábulos não façam desmerecer os talentos de Anoca, caracterizam-na como diferente, e fazer a diferença talvez seja o bastante para que seu comportamento apresente certa desarmonia com as regras sociais. O eu lírico mostra ainda os avanços temporais, marcados pelas expressões “naquele tempo” e “hoje”, em que se pode perceber que os julgamentos a comportamentos considerados ousados naquela época, possivelmente seriam mais brandos na atualidade. Representando e engrossando o cordão dos socialmente desvalidos, a atitude desabusada da mulata também conta com a simpatia da narradora, que parece narrar tal caso esboçando um sorriso de satisfação e, por meio de certos comentários que tece ao longo do conto, partilha do atrevimento da personagem. A criada Joana, entusiasmada com a idéia de sua senhora, tenta à sua maneira, seguir a moda. Verifica-se, então, seu espírito inventivo retratado na forma como Joana, por meio do improviso, demonstra sua capacidade de superação diante das dificuldades e carências: “arranjou com Anoca, vestidos e sapatos usados. Levantou a trunfa e enramou de pimenta: tentou uma caracterização” quebrou pela base uma pimenteira e amarrou na cintura...” (CORALINA, 2001, p.25). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 384 Tentando fazer parte da folia e alinhar-se de acordo com a moda, Joana se arruma para o carnaval com coisas que ganhara e, diferentemente da maioria das outras mulheres, provavelmente de melhor situação financeira, improvisa, adapta, arruma os cabelos simulando o penteado da moda e exibe gestos de seu capricho, além de um comportamento desabusado, ao colocar os ramos na saia. O modo de agir e ser da mulata é do agrado de todos como consta no trecho seguinte: O caso de que guardei na memória e conto, não foi malhação política nem crítica que as autoridades mereciam, e muito, apenas brincadeiras da rapaziada bilontra, onde entrava como peça principal a crioula Joana, festeira fogosa, que trazia a cidade em rebuliço,de que muitos gostavam e riam com vontade (2003 p. 24). As opiniões da narradora apresentam mais uma vez um veio de transgressão às normas ao demonstrar que, se as autoridades mereciam críticas, estas não seriam agora consideradas, pois entrariam em desarmonia com o espírito carnavalesco e com o enredo, cujo foco principal incide sobre as peripécias da apimentada criada Joana. Apresentando uma intenção de celebração e rebeldia, a narradora elege a mulata Joana como representante desse evento. Seu foco mais uma vez recai sobre os socialmente obscurecidos. O que apresenta certa coerência, afinal trata-se do carnaval, festa que permite inversões de papéis. O que se presencia então é Joana duplamente celebrada: pela própria festa e pela narradora. Nessa festa popular, Joana experimenta a liberdade que não goza no seu cotidiano: a celebração da vida, a desenvoltura, a insubordinação às regras sociais vigentes são todas manifestadas por meio do canto, da dança e das brincadeiras, levando a personagem extrapolar essa liberdade efêmera. A forma como é narrada a composição da fantasia elaborada pela mulata aproxima-se da noção que se tem de carnavalização. A fantasia nesse caso é um arremedo e ao mesmo tempo um recurso de que lança mão os menos afortunados para se adaptarem e se inserirem no contexto do momento. No caso de Joana, as adaptações que faz ao elaborar a fantasia para se alinhar à voga do carnaval da época resultam numa sátira. Entretanto, não parece ser a sátira pela Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 385 carnavalização a principal intenção da poeta, mas sim demonstrar a capacidade de criatividade dos menos afortunados. O carnaval propicia esse regozijo popular, como salienta Bakhtin ao estabelecer relações entre o carnaval e outras festas: Nos lugares onde o carnaval, no sentido estrito do termo, floresceu e se tornou centro que reagrupou todas as formas de folguedos públicos e populares, ele provocou de certa forma o enfraquecimento de todas as outras festas, retirando-lhes quase todos os elementos de licença e de utopia popular. As outras festas empalideceram ao lado do carnaval; sua significação popular diminui, sobretudo porque estão em relação direta com o culto e o rito religioso ou do Estado. O carnaval torna-se então símbolo e a encarnação da verdadeira festa popular e pública, totalmente independente da Igreja e do Estado (mas tolerada por esse último) (BAKHTIN, 1987, p. 191). A apimentada Joana experimenta toda a euforia proporcionada pelo clima festivo do carnaval, momento em que goza de liberdade e, ao menos nessas ocasiões, não estar subordinada a ninguém. Como “cria-ventre livre da casa de Luiz Nunes” (2003, p.24), Joana agora emana jovialidade e liderança e, com seu comportamento irreverente, conduz o cordão carnavalesco, constituindo-se como elemento deflagrador da liberdade, ao passar de ‘cria’ para rainha. “Arranjaram uma cadeira; assentaram a mulata e a carregaram nos ombros, e veio o cordão pelas ruas, novamente cheias; portas e janelas abertas e toda a cidade, alegre, [...] Joana foi reconduzida, em triunfo! Uma consagração! Alegria geral!” (2003, p. 26). Deste modo, a mulata Joana, de posse de um poder fugaz, conduzindo todos para o seu reinado de alegria representa e irradia liberdade “abrindo alas” para que as pessoas, pelo menos por alguns momentos, esqueçam a rotina dura de suas vidas e dêem vazão aos sentimentos reprimidos. Como já foi observado, o conto e o poema apresentados possuem um tom de rebeldia impressa na escolha das temáticas. São trazidas mulheres pertencentes a estratos sociais considerados inferiores, com exceção de Anoca, de modo que Cora Coralina enfatiza o seu lugar no discurso como a querer derrubar as regras instituídas que prezam atitudes ponderadas - principalmente por parte das mulheres, fazendo um contraste com a imagem da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 386 figurinista ousada e de sua criada, presente no conto “Um Carnaval Antigo”, com um diferencial destas trazerem traços de alegria e irreverência, e de posse de tais atributos, consegue até reverter uma situação adversa. Observa-se então que mesmo em gêneros distintos, Cora Coralina demonstra certa desenvoltura, que lhe é peculiar para protestar, criticar ou mesmo celebrar a vida por meio de seus personagens. Delineando ainda, a trajetória dos contos de Cora Coralina e a oralidade pode ser observada no conto “Campo Sales”, presente no livro Estórias da Velha Casa da Ponte (1986), além de seu cunho memorialístico, revela em sua tessitura, críticas ao sistema social e também o discurso. Esta narrativa trata de uma figura singular, o negro Campos Sales, excombatente da Guerra do Paraguai que, embora tivesse tido uma trajetória de dedicação à Pátria – sofrendo ainda das mazelas contraídas no campo de batalha – na velhice vê-se obrigado a fazer faxina para sobreviver e entre um e outro serviço lava o chão das casas alheias. Contratado para limpar a casa de uma família recém-chegada à cidade, o serviço é realizado com capricho e a dona da casa, grata pelo serviço, presenteia Campos Sales com uma calça usada; este, ao encontrar uma boa quantia em dinheiro nos bolsos da velha calça, devolve o dinheiro à mulher que fica admirada com tamanha lealdade. Passado algum tempo, o personagem morre sem receber seus direitos como ex-soldado. O conto traz um narrador em primeira pessoa que vai pontuando certas características do personagem, além de enfatizar que fora testemunha dos fatos: “Quem da gente mais antiga da Jaboticabal inda se lembra de Campos Sales?... Campo Sales, eu o conheci. [...] nós o conhecemos pelas ruas. Durante o dia, lavando casas de família; de noite, às dez horas, lavando os bares do comércio.” (CORALINA, 1985, p.15). Ao colocar-se estrategicamente como testemunha, o narrador procura imprimir, se não veracidade, ao menos cunho documental, tendo como uma das finalidades fazer sobressair a vida de um grupo que, em sua simplicidade, realiza ações dignas de destaque, mas não são lembradas; além disso, solidariza-se com parte da população para legitimar sua crítica à sociedade. A respeito do narrador em primeira pessoa, Maria Lúcia Dal Farra salienta que: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 387 (...) o romance é sempre uma “autobiografia”, pois o “autor” retira, da natureza e da sua própria experiência, os elementos vivos e significativos para proceder à “biografia” de um ser imaginário. Para moldar-lhes as feições e inflar-lhe de vida, ele terá de conferir a este ser foros de vida real: terá de dotá-lo de uma dimensão psicológica e de uma duração, temporal, dados relativos à existência humana (DAL FARRA, 1978, p. 35). Embora o estudo citado seja a respeito do narrador no romance, também é possível inferir alguns desses conceitos no conto “Campos Sales”, quando a autora traz de sua memória uma figura humana alijada da história oficial e a reconstitui no plano literário. Primeiramente, descreve o aspecto físico do personagem, seu cotidiano difícil; com isto, vai elucidando gradativamente um pouco do homem, suas dificuldades e seu discurso revestido de uma polidez servil. Também, os foros de vida real são dados pela descrição, quase que enfática, do local em que o personagem vive, no caso a cidade de Jaboticabal. Nesta localização da cidade estão contidos traços da memória histórica, como pode ser constatado: “Nós, gente da linda cidade de Pinto Ferreira, Terra das Jabuticabas, Cidades das Rosas, velho Patrimônio Foreiro, antiga fábrica de Nossa Senhora do Carmo de Jaboticabal, cidade dos meus filhos, nós o conhecemos” (CORALINA, 1985, p.15). Essa enumeração dos nomes da cidade além de atestar a veracidade do lugar vem de certo modo reforçar o caráter documental do conto. A restituição da memória pode ainda ser observada pelo nome do personagemtítulo, idêntico ao de um dos presidentes da República, indicando um momento histórico marcado ainda por resquícios de um sistema escravagista, uma vez que não atribuíam nome ao homem cativo, sendo comum trazer o sobrenome da família à qual servia: “Campo Sales tinha sido escravo da família Campo Sales – contava. Ganhou sua liberdade, sua alforria de negro cativo, vestindo a farda de soldado brasileiro e pelejando, com valentia, nos esteros do Paraguai. Mostrava suas velhas cicatrizes. Pontaços de lanças inimigas” (1985, p. 15). Esta passagem demonstra que o personagem tem uma vida marcada pela servidão. O fato de ter sido soldado da Guerra do Paraguai corrobora a idéia de que Campo Sales passou da condição de escravo para outra, e no final da vida este estigma ainda prepondera, já que a falta de reconhecimento pelos serviços prestados à Pátria obriga-o a viver de pequenos expedientes. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 388 Vista por muitos estudiosos como uma campanha sangrenta e injusta, a Guerra do Paraguai, ao terminar, deixou muito dos seus soldados à própria sorte, alijados da sociedade. O conto registra em suas entrelinhas que fatos relatados pela história oficial ocultavam grandes outras verdades. Na maioria das vezes são eleitos como heróis indivíduos que não tendo realizado nenhum feito expressivo ainda assim obtiveram reconhecimentos. Em contraposição, muitos que tiveram desempenhos autores de atos dignos de menção honrosa foram relegados ao anonimato, como é o caso da participação dos negros na Guerra do Paraguai, cuja maioria morreu, animados pela proposta de alforria e de um pedaço de terra para cultivo. Essa proposta levou tantos escravos para a guerra que José J. Chiavenatto, em seu estudo, constata: Entre os aliados – brasileiros, argentinos uruguaios - para cada soldado branco havia vinte e cinco mulatos ou negros. Essa desproporção racial aumentava quando era confrontada com o exército brasileiro. No exército do Império do Brasil, para cada soldado branco havia nada menos que quarenta e cinco negros (1979, p. 111). O grande número de escravos negros na campanha deveu-se também ao fato de diversos senhores enviarem os escravos para representá-los. Ainda que muitos negros tenham aceitado o soldo e lutado bravamente, a maioria não conseguiu adquirir a almejada carta de alforria: grande parte voltou mutilada, enquanto outros foram dizimados nos campos. A história de Campos Sales mostra a trajetória de um homem humilde, por meio dela é feito um recorte da história do Brasil, trazendo simultaneamente traços de uma memória histórica através desse soldado que voltara da guerra, fisicamente deformado: “Perdeu seu aprumo vertical. Passou a andar dobrado e contava que muitos companheiros ficaram aleijados como ele”. (1985, p.15.) Comprovando que essas marcas não ficaram apenas no aspecto físico, também permaneceram em suas lembranças todas as tragédias presenciadas: “[...] Apertava os olhos, refrangia e entortava a boca, careteando no horror das lembranças”. (1985, p.15.) Embora a vida desse homem seja marcada por duras injustiças, ainda mantém valores tais como lealdade, integridade, valores demonstrados no decorrer de toda narrativa, principalmente quando é feito referência à precisão que realizava seu trabalho: “Muito certo e Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 389 exato para aquele serviço obscuro e ativo que alguém devia de fazer, num tempo em que ainda ninguém encerava casa” (1985, p.15). Campo Sales cumpriu o seu papel de cidadão: na juventude servindo o país e na velhice a quem precisasse dos seus serviços cumpria-os à risca. No conto, há uma contradição entre o caráter do personagem e o tratamento que o Estado dá aos velhos combatentes. Campos Sales, homem justo e trabalhador, ao passo que o Estado retém os direitos de quem serviu o país. Essa contradição fica evidente quando numa fala simples, mas repleta de honestidade, o velho homem entrega o dinheiro por ele encontrado: “- Óia, Dona, diz ele, vim aqui pro via da carça que vancê me deu. Hoje fui vesti ela, passei a mão no borso e achei dentro esse manojo de dinheiro que decerto vançê ou seu marido guardou e se esqueceu...” (1985, p.17) As marcas da oralidade estão presentes nesse discurso de extrema franqueza, servindo para mostrar mais uma vez as ações inversas que se estabelecem entre o Estado e o personagem: este, por ser miserável, poderia não devolver o dinheiro – o que não é correto, mas é compreensível - ao passo que a Pátria, que deveria cumprir o seu dever, não lhe dá a paga devida. Essa questão fica patente no final da narrativa: Quando veio a reparação do esquecimento e a Pátria lembrou dos sobreviventes, o velho guerreiro tinha dado sua baixa e nada mais precisava. Fazia tempo que seu magro corpo dobrado descansava numa cova humilde no cemitério da linda cidade (1985, p. 17). Tal desfecho, em que predomina o lirismo, é a culminância de um dos aspectos que vinha sendo desenvolvido desde as primeiras linhas do conto, e ao ser pontuado, acentua a lealdade do homem contra a lentidão do Estado em cumprir seus deveres com os cidadãos. Na representação da morte do personagem encontra-se uma crítica, ao abandono a que os soldados foram deixados, também solidariedade que vem por meio de um discurso ardoroso que o narrador emprega. Ao lado do mote dado pelo título Campos Sales, dispondo do nome de um Presidente da República para nomear um personagem representante da camada social mais miserável – um ex-escravo -, a autora não apenas recorre ao despiste, surpreendendo o leitor e levando-o a desenvolver uma leitura ao contrário da anunciada no título, ao trocar os papéis históricos, além disso, realiza metaforicamente também uma rasura no texto oficial à medida que narra a vida de um ex-combatente da guerra - o nome Campo Sales deslocado para a extremidade oposta na ordem das representações sociais. O foco da narrativa desvia-se da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 390 imagem oficialmente reconhecida, o presidente da Republica, e volta sua focalização para o menos representável: um ex-escravo. Os contos aqui citados ilustram o caráter documental que assume a escritura de Cora Coralina, os quais trazem em seu bojo o discurso do povo, em sua sabedoria e simplicidade. Partindo das próprias lembranças ela compõe um universo ficcional comprometido, de modo que realiza uma recuperação de histórias ocultas quando fala dos espaços sociais segregados de sua terra. E quando trata de figuras humanas, traça o percurso dos oprimidos; daqueles esquecidos pelo sistema social. Ao lançar luz sobre Campos Sales, um ex-escravo, e a mulata Joana faz sua escolha, firma o lugar de emissão de seu discurso, revelando na escritura uma atitude comprometida - atitude de quem busca pela literatura, transformar a realidade. Deste modo, Coralina constrói sua poesia transpassada pelo lirismo e a própria poeta define sua criação: “Entre pedras/ cresceu a minha poesia./ Minha vida.../ Quebrando pedras /e plantando flores./Entre pedras que me esmagavam/ Levantei a pedra rude/ dos meus versos.” (CORALINA, 1987, p.13). Ao colocar os versos como “pedra” ela enuncia, de forma catártica, as dificuldades da vida que foram superadas à duras penas, porém os seus poemas trazem os resquícios dessa vivência marcada por dores, perdas e repressões e os seus versos postos como “pedra rude” tornam metáfora de resistência e fortaleza perante as adversidades. Embora o tema demande um desenvolvimento maior, acredita-se que com a análise desses textos (fragmentos de contos e poemas) já se possa perceber que o emprego consciente e recorrente de marcas de oralidade na prosa-poética de Coralina seja uma “estratégia” a fim de envolver o leitor e transportá-lo aos espaços poéticos revisitados por sua poesia. Em outros termos, através da incorporação intencional de marcas de oralidade nos seus textos, Cora Coralina cria uma simulação de realidade cotidiana que aproxima o leitor. A escolha de um léxico propositadamente coloquial aliada a estruturas morfossintáticas simples (típicas da modalidade oral) surpreende o leitor, com sua enorme lucidez e seu olhar sábio que esquadrinha as passagens de sua terra e de sua gente, mostrando o belo e o feio, as justiças e as injustiças, tese que é confirmada pela autora, carinhosamente, através de seus versos: “Amo e canto com ternura/ todo o errado da minha terra/ Becos da minha terra, / discriminados e humildes, /lembrando passadas eras...” (CORALINA, 1985, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 391 p.104). Desse modo, por um texto pretensamente simples, a poeta passa a sua mensagem sempre surpreendente, instigante e renovadora. Bibliografia ALVES, Ivia. Amor e submissão: formas de resistência da literatura feminina de autoria feminina? In: In: RAMALHO, Christina (org). Literatura e Feminismo: propostas teóricas e reflexões. Rio de Janeiro: Elo, 1999. p.107-115. ARRIGUCCI, Davi Jr. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. In SCHWARZ, Roberto (org). Os pobres na literatura brasileira.São Paulo: Brasiliense, 1983. p.106-122. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987. p.419 BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio P. Rouanet. Vol 1. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. 253 p. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3.ed São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 484 p. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 393 ENTRE O ORAL E O ESCRITO: A CRIAÇÃO DE UMA ORALITURA Margarete Nascimento dos Santos (PG-UNEB) Introdução Localizada na América Central, no Mar do Caribe, e fazendo parte do Arquipélago das Pequenas Antilhas, Martinica e Guadalupe foram colônias de exploração Francesa de 1635, quando aconteceu a ocupação francesa, até 1946, quando passam a Estado da União Francesa, através da lei de 19 de Março. Conhecidas como DOM (Départements d’outre mer) ou departamentos de ultramar, juntamente com outros dois departamentos (Guiana Francesa e Reunião), Martinica e Guadalupe fazem parte de uma coletividade territorial integrada à República Francesa com o mesmo status que os departamentos metropolitanos (França continental). O trabalho que ora se apresenta tem por objetivo realizar breve reflexão sobre a produção literária dessa região (Antilhas Francesas), na contemporâneidade. Em meio às questões culturais que em todo tempo questionam a formação identitária dos seus habitantes, essas ilhas nas últimas décadas ganharam destaque também no meio acadêmico ao produzirem uma literatura própria que tem como meta colocar em destaque a produção cultural local. O conceito de oralitura é adotado pelos escritores antilhanos a partir da década de 80 e a justificativa para o uso de tal nomeclatura, segundo estes autores, está no fato da literatura tradicional, da forma como é concebiba, não oferecer espaço que abrigue de forma satisfatória as questões ligadas à produção literária nas Antilhas. Estes escritores proclamam um movimento intitulado de créolité cujo objetivo maior é abrir caminhos que conduzam a uma relfexão mais ampla sobre o ser antilhano, de forma a prezar pela memória coletiva local que está essencialmente forjada na oralidade e que representa as suas tradições. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 394 1 O créole, uma língua entre duas culturas A palavra créole3 vem do latim “creare” e em francês quer dizer “criar ou ser criado”. O termo inicialmente designava a novidade, um mundo novo e se dizia das pessoas nascidas no Novo Mundo. Durante o processo de colonização passa a fazer menção às novas línguas surgidas do convívio entre senhores e escravos, a língua intermediária usada no dia-adia da lavoura e da casa grande. No caso específico do créole da Martinica, chama a atenção o fato desta língua não ser apenas o resultado do contato da língua francesa com as línguas africanas, mas também as várias contribuições que recebeu de outros idiomas, a exemplo do espanhol, do inglês, do holandês e das várias línguas faladas na Índia. Apesar de ser dizer que o créole da Martinica tem por base a língua francesa, uma análise mais específica coloca em xeque esta teoria, tendo como suporte principalmente o fato da estrutura gramatical de uma e outra não ser a mesma. O uso do créole nas Antilhas suscitou nas últimas décadas grandes discussões entre escritores, políticos, teóricos e população, principalmente no que diz respeito à sua aceitação e normatização. Definir o espaço e a significação deste idioma gera polêmica e alimenta a chama das questões ditas identitárias. O escritor e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, em seu célebre livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, escrito no início da década de 50, dedica o primeiro capítulo da obra à discussão sobre o negro e a linguagem, e já no primeiro parágrafo ele declara que falar é existir absolutamente para o outro. Ele afirma ainda que o negro possui duas dimensões, duas relações entre as quais o seu comportamento muda completamente, uma relação com o próprio negro, o seu semelhante, e uma outra com o branco. Essas dimensões se evidenciam principalmente no campo da linguagem a partir do momento em que o homem negro faz uso de códigos diferenciados para estabelecer contato com o outro, variando a linguagem de acordo com a cor da pele do seu receptor. 3 Em português crioulo. Neste trabalho optou-se por utilizar o termo como no original em francês: créole. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 395 Para Fanon, falar é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização. E essa afirmativa é facilmente detectável na observação atenta do processo de inserção dos ex-escravos antilhanos na sociedade. À medida que pretendiam participar da comunidade branca, colocavam a cultura negra à parte, assumindo a cultura do outro, em um processo de ceder para ganhar. A aceitabilidade do outro chega à medida que se fala como outro, veste-se como o outro, comporta-se como o outro. Assim adotando a língua francesa, o negro antilhano se torna cada vez mais branco. “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.” (FANON, 2008, p. 34) Nesta relação dos franceses com os negros nas Antilhas são nítidos dois momentos distintos: o primeiro em que a língua francesa se impõe num processo de assimilação, onde ela aparece como degrau de status dentro da sociedade; e o segundo momento quando acontece o processo de rejeição desta língua do colono, a tomada de consciência e a luta pela afirmação. O ano de 1848 marca o fim da escravidão nas Antilhas, através de um decreto da II República e graças à ação de Victor Schoelcher 4. Mas assim como acontece em outras localidades essa aclamada “liberdade” não é um processo fácil para os ex-escravos. Passados os momentos de euforia e comemoração, os negros percebem que há muito a ser feito. Junto à liberdade vinham os problemas ligados à falta de trabalho, à moradia e ao dinheiro, pontos essenciais para a sobrevivência. Os ex-escravos das Antilhas, também conhecidos como bois d’ébène5, devido a sua qualidade e status enquanto mercadorias, se deparam ainda com um outro problema, o da língua. E o que aparentemente parecia uma questão de adaptação, com o tempo se mostrou 4 Francês, oriundo de uma família burguesa de negociantes, é enviado pelo seu pai às Américas como representante comercial da fábrica familiar, para reconhecimento do mercado e possíveis acordos de exportação. Nesta viagem descobre a realidade escravocrata das Américas e na volta à Paris resolver escrever contra a escravidão. Ele se torna um ativista dos direitos dos negros e ao se tornar subsecretário do Estado francês continua lutando por esta causa. Schoelcher é um dos responsáveis pelo decreto de abolição definitiva, de 1848 que interdita a escravidão em todos os territórios franceses. 5 Madeira do Ébano. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 396 uma questão de imposição e repetição das práticas ditatoriais vivenciadas durante todo o período colonial e que insistia em perdurar mesmo após o processo de libertação. A língua francesa sempre foi a língua estrangeira, a língua do colono branco. No entanto, a aquisição desta língua no período pós-abolição surge como forma de se sentir livre, como um cidadão que faz realmente parte da comunidade onde mora. ... o negro tentará falar francês porque o crioulo, apesar de ser sua língua materna, língua das canções de ninar e dos contos ouvidos à noite, nas festas e nos velórios, é considerado como um patois, um dialeto que se ama e se despreza ao mesmo tempo. (FIGUEIREDO, 1998, p. 20) O créole que até então era a língua falada entre os escravos, começa a perder a importância que sempre teve, pois as pessoas sentem cada vez mais necessidade de falar francês para se sentirem como os franceses, é a sucessão de mudanças que conduz à aceitabilidade. No processo pós-abolição as escolas também cumprem o seu papel democrático e abrem suas portas aos filhos dos ex-escravos, mas nesta instituição o créole não é aceito e a língua francesa mais uma vez se impõe. Para sobreviver, para conseguir uma colocação digna na sociedade, é preciso falar francês. O francês se torna dessa maneira uma distinção social, o créole, a língua que falava, até então, através dos seus cantos das feridas interiores de cada um dos antilhanos, com o tempo é posto a parte. A Martinica vive em um típico caso de diglossia, que Ferguson define como a: coexistência de duas línguas com estatutos diferenciados, cujas funções são complementares: uma língua ocidental, de prestígio, transmitida pela escola e usada nas situações públicas e formais, e uma língua adquirida informalmente, oral, desprovida de prestígio e de uso restrito à família. (FERGUSON apud FIGUEIREDO, 1998, p. 20). Um só lugar marcado por duas línguas. A legítima e a adotiva. Um paradoxo onde a língua que sempre foi entendida como legítima (o créole) passa a ser a discriminada e a adotiva (o francês) passa a ser a legitimada. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 397 É principalmente na escola que o antilhano aprende a desprezar o créole. O francês é a língua ensinada nesta instituição e como tal apresenta-se sob a forma de imposição. A criança, desde o seu nascimento até o momento de ingresso no ensino primário, tem único contato com o créole que é a língua falada em casa e usada nas relações entre vizinhos e outras crianças. Mas em determinado momento as famílias, no desejo de um futuro melhor para os seus filhos, proíbem o uso do créole em casa reforçando assim o papel que a escola desempenha. A guerra conduzida pelos franceses contra o créole imprimiu um forte sentimento de culpabilidade lingüística na psique dos Antilhanos, sentimento que conduziu alguns ao caminho do suicídio lingüístico: não mais querer falar esta língua ancestral e proibir às crianças de a utilizar. (CONFIANT, [?], p.4, tradução do autor) 2 Oralitura, a literatura da oralidade Contrários ao que muitos acreditam sobre o créole, os poetas das Antilhas o chamam de “arrulho divino”. São eles que a partir da década de 30, tendo Aimé Cásaire como grande representante, que começam um movimento de reivindicação do espaço do uso do créole na sociedade. No entanto, é apenas a partir da década de 80 que este movimento ganha força com os escritores da crioulidade que põem em evidência a língua falada e a escrita como meios para a busca da identidade martinicana. Eles valorizam a oralidade e a tradição oral através do créole e fazem da sua bandeira a oralitura, que seria o termo mais completo para definir uma literatura oral que evidencia a produção literária e cultural do negro. O termo oralitura, cunhado pelo haitiano Ernst Mirville e usado pela primeira vez em 1974, surge como um neologismo que destina um espaço específico para a literatura oral, sem se confundir com a mesma. Segundo Mekisono, para os escritores da Martinica a passagem da oralidade para a oralitura é a passagem da memória a curto termo à memória interindividual a longo termo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 398 É esta relação entre o oral e o escrito, a saída da condição de literatura oral para a escrita, e vice-versa, que se torna tema de discussão entre os defensores da crioulidade. Sendo inicialmente uma organização oral, sem registro escrito, o créole é uma língua jovem, tem em média 300 anos. No entanto, é através dele, como em qualquer sociedade que domina a escrita, que se veicula valores tradicionais, conhecimentos técnicos e religiosos e se assume a responsabilidade de estabelecer a troca entre o passado e o presente. A oralitura na Martinica tem um aspecto noturno, pois representa ainda os tempos coloniais em que os escravos trabalhavam na lavoura durante o dia e à noite reuniam-se para contar histórias. Assim como a literatura, a oralitura também possui gêneros possíveis de detectar dentro da sua tradição oral, o que se pode caracterizar como mitos, epopéias, contos, canções, provérbios, ditados e advinhas. É válido ainda ressaltar que o uso do termo oralitura não é unanimidade entre os escritores do Caribe. Pesquisadores como o haitiano Georges Castera faz fortes ressalvas a essa nomenclatura e a forma como é usada entre os autores que vivem em ambientes de diglossia, situação semelhante à da Martinica e do Haiti. Para Castera, cunhar o termo oralitura é apenas uma forma de esconder questões maiores que existem na relação entre o oral e o escrito e que o termo não dá conta de discutir. Oraliture est um mot-valise proposé par l’écrivain Ernst Mirville, pour remplacer le syntagme « littérature oral ». Beaucoup d’auteurs se sont accaparés du vocable, mais je ne vois pas en quoi il acquiert, par enchantement, un statut de concept. Pour ma part, la dichotomie littérature contre oralité que ce terme essaie de gommer, reste entière : la blessure est sous le sparadrap. Vouloir tout faire remonter aux formes orales est une folklorisation abusive comme cela a souvent cours dans le domaine littéraire et artistique haïtien. (CASTERA, 2001, p. 8)6 Apesar de opiniões diversas sobre a nomenclatura, o que se observa é que os escritores em situação de diglossia se unem no que diz respeito à importância de escrever em 6 Oralitura é uma aglutinação proposta pelo escritor Ernst Mirville para substituir o sintagma “literatura oral”. Muitos autores adotaram o termo, mas eu não vejo em que ele adquire, por encantamento, um status de conceito. Da minha parte a dicotomia literatura versus oralidade, que este vocábulo tentar apagar, continua viva: a ferida está sob o esparadrapo. Querer que tudo se volte para as formas orais é uma folclorização excessiva bem freqüente no atual domínio literária e artístico haitiano. (Tradução livre) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 399 créole, de fazer o registro escrito desta língua como forma de valorização de uma linguagem própria. Diferentemente do que afirma Castera, os escritores da créolite não desejam esconder a ferida que se encontra por baixo do esparadrapo, eles tentam fazer da oralitura um mecanismo, um jogo onde é possível brincar com as normas e os padrões de forma a trazer para o registro escrito o que até então nunca havia sido representado. Não é apenas usar o francês como língua de escrita, nem o créole cuja escrita ainda passa pelo processo de formação, mas sim instigar o leitor na descoberta e decodificação de uma nova forma de fazer literatura, de escrever a história e suas variações, executar o papel de criador de novos termos e grafias. Negar a língua crioula, como aconteceu durante muitas décadas, é negar a riqueza cultural possível através do bilingüismo. O créole guarda a possibilidade da construção do imaginário que na língua francesa é limitado. Para o antilhano não é possível escrever, registrar em outra língua a produção crioula, nenhuma outra língua oferece as possibilidades e a abertura que o créole disponibiliza. Como eles afirmam “a nossa história é uma trança de histórias”. E a possibilidade dessa trança só se faz através da língua. Esta não é a língua africana, nem a língua do colonizador, muito mais do que isso, a língua para eles se torna símbolo da construção da identidade, ela é a representação dos diversos discursos que formam esse ser crioulo. Os escritores antilhanos na contemporaneidade não buscam respostas, ao contrário disso eles afirmam terem consciência da complexidade da identidade e do discurso que os constroem. O que de fato eles buscam são alternativas, possibilidades de reflexão sobre esse ser crioulo num território pós-colonial, onde nenhuma contribuição do outro é negada, mas sim transformada e formada num caldeirão cultural que se encontra em constante ebulição. Chamoiseau admite que escrever é também uma forma de divertimento. Ao criar os personagens e dar vida através das falas, ele adentra um mundo particular. Cada palavra escolhida representa uma visão, uma escolha de idéias e de representações. Como ele mesmo afirma, a oralitura não é o desejo de criolizar palavras e frases, escrever em créole é a possibilidade de expressar a sua visão de mundo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 400 Et je disais ça surtout pour certains écrivains qui viennent et qui à notre suite essaient de faire un texte créole se préoccupant uniquement de créoliser des mots et des phrases, alors que la créolisation véritable est d'exprimer une vision du monde qui est la mienne, qui est celle que nous avons ici pour décrire un personnage, pour décrire une situation. Je me demande toujours comment ma mère aurait raconté ça, comment mon père aurait vu ça, comment nous ici nous aurions vu ça. Pourquoi? Parce que insidieusement notre esprit est complètement dominé par les valeurs françaises, c'est-à-dire que spontanément lorsque j'écris, je suis français. Pour être Créole, pour être plus proche de ma vérité, je dois faire un effort de vigilance sur moi-même. 7 (CHAMOISEAU, entrevista à Rose Réjouis, 1996) Um esforço de vigilância. Atitude necessária para os desafios que escrever em créole apresenta. Não apenas por seu uma língua em formação enquanto registro escrito, mas também pela possibilidade de se perder o que a língua tem de melhor em sua forma oral, o encantamento. Encantamento é o que os escritores da créolité vem conseguido fazer nas últimas décadas. Sem perder a originalidade e mantendo a essência do créole, eles desenvolvem essa expressividade fronteiriça que avança sempre instigando os seus fieis leitores. 3 Os escritores da créolité e a defesa de uma literatura local Na Martinica, é forte o sentimento de representação da memória coletiva através da literatura oral, é através da tradição dos contos narrados à noite que o imaginário coletivo das pessoas se constrói e fortalece. A cultura créole martinicana é quase exclusivamente baseada na oralidade. A negação da língua crioula resulta no esquecimento dessa cultura oral e no apagamento das tradições. 7 E eu dizia isso principalmente para certos escritores que vinham e que em seguida tentavam fazer um texto em créole se preocupando unicamente em crioulizar as palavras e as frases, enquanto que a crioulização verdadeira é exprimir uma visão do mundo que é a minha, que é esta que nós temos aqui para descrever um personagem, para descrever uma situação. Eu me pergunto sempre como minha mãe teria contado isso, como meu pai teria visto isto, como nós aqui nós teríamos visto isto. Porque? Por que (?) nosso espírito é completamente dominado pelos valores franceses, isso quer dizer que espontaneamente quando eu escrevo, eu sou francês. Para ser Créole, paa estar mais perto da minha verdade, eu devo fazer um esforço de vigilância sobre mim mesmo. (tradução livre) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 401 Ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques, nous nous proclamons Créoles. Cela sera pour nous une attitude intérieure, meiux : une vigilance, ou mieux encore, une sorte d’enveloppe mentale au mitan de laquelle se bâtira notre monde en pleine conscience du monde. (CHAMOISEAU, 1990, p.13)8. É dessa forma e com essas palavras, que Patrick Chamoiseau, em conjunto com os seus amigos Jean Bernabé e Raphaël Confiant, inicia o seu manifesto Éloge de La Créolité, proferido pela primeira vez em Maio de 1988 em um festival no Caribe, e posteriormente transformado em livro. Nesta obra que conquistou adeptos em todo o mundo e que se tornou o marco oficial do movimento da crioulidade, os autores não estão preocupados em formular uma nova teoria acerca das questões identitárias. Como eles afirmam no manifesto, a principal idéia é de apresentar um testemunho vivo da experiência cotidiana do povo antilhano. Para Chamoiseau e seus amigos, a literatura antilhana ainda não existe, ela está no estado de pré-literatura, situação em que se encontra devido à falta de audiência entre os seus. A pouca circulação do que escrevem resulta na não interação do leitor e escritor. Para eles é o grito da crioulidade que mudará esta realidade. Ao se auto-proclamarem crioulos, esses escritores caribenhos convidam os seus conterrâneos a lançarem um novo olhar sobre a sua cultura e a aprenderem a vê-la através de novas perspectivas, deixando de lado o filtro dos valores ocidentais aos quais sempre foram submetidos. Não são europeus, nem africanos e nem asiáticos, os antilhanos fazem parte de um novo grupo, uma nova geração que é o resultado da convivência entre esses povos e de suas trocas culturais. É a crioulidade o resultado maior de um grande processo de multiculturalismo. Segundo Chamoiseau, “Nous avons vu le monde à travers le filtre des valeurs occidentales, et notre fondement s’est trouvé «exotisé» par la vision française que nous avons dû adopter”9 (1990, p.14). 8 Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiático, nós nos proclamamos Crioulos. Isto será para nós uma atitude interior, melhor: uma vigilância, ou melhor ainda, uma espécie de disfarce mental no meio do qual se construirá nosso mundo com plena consciência do mundo. (Tradução livre) 9 Nós vimos o mundo através do filtro dos valores ocidentais e nosso fundamento se tornou “exótico” pela visão francesa que nós tivemos que adotar. (tradução livre) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 402 Foram esses valores culturais ocidentais que durante muito tempo impediram uma compreensão mais clara da realidade multicultural das Antilhas. O europeu impôs a sua cultura e a reproduziu. Às outras formas de manifestação cultural não coube espaço. No entanto, não podemos falar do movimento da crioulidade sem lembrar do grande percussor dos movimentos a favor da causa negra no Caribe que foi Aimé Césaire. Com o movimento da Negritude na década de 30, Césaire, juntamente com o seu amigo senegalês Léopold Sédar Senghor, assumiu o papel de levar a sociedade crioula a uma consciência dela mesma, partindo da idéia de África e assumindo a dimensão africana pertencente à cultura local. Césaire se dizia africano e assumia a África como sua terra mãe. Fazia oposição ao homem branco e a tudo o que dele vinha. Ele transforma o termo “negro”, até então visto como pejorativo, dando uma nova dimensão, falando da Negritude com “N” maiúsculo, que é um substantivo próprio que representa todos os negros excluídos da sociedade branca. Césaire pleiteava, pois, uma via de autenticidade por oposição ao clima de inautenticidade reinante entre os negros da América convencidos de que o único modelo cultural válido era o modelo branco ocidental. A Negritude césairiana pregava uma rejeição absoluta a essa concepção e suscitava a emergência de uma personalidade antilhana. (BERND, [?], p. 34) É por isso que os escritores da crioulidade se consideram filhos de Césaire, pois foi ele quem abriu passagem para novas formas de pensar o ser negro, foi o pioneiro nas discussões sobre as questões raciais e revolucionou a forma de se pensar enquanto homem não branco, não europeu. Por outro lado, fica claro que os novos escritores antilhanos se recusam a se fechar na idéia de Negritude e ampliam os conceitos que dizem respeito a sua identidade. Eles não se concebem africanos como acreditava Césaire, eles se vêem além desse conceito, se identificam como resultado do caldeirão das misturas de raças e reinvidicam sua identidade crioula e que ela seja reconhecida à parte dos Africanos. Dans de societés multiraciales telles que les nôtres, il apparaît urgent que l’on sorte des habituelles distinctions raciologiques et que l’on reprenne l’habitude de désigner l’homme de nos pays sous le seul vocable qui lui Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 403 convienne, quelle que soit sa complexion: Créole. (CHAMOISEAU, 1990, p.29)10. Portanto surge a necessidade de, segundo eles, deixar tudo, todos os conceitos e teorias até então difundidos e aprender a explorar e a conhecer a si mesmo, é o que eles chamam de visão interior e reveladora que conduz a uma nova aprendizagem. “Réapprendre à visualiser nos profondeurs. Réapprendre à regarder positivement ce qui palpite autour de nous.”11 (CHAMOISEAU, 1990, p.13). Reaprender. São essas idéias proclamadas em Éloge de la Créolité que leva o afro-descendente antilhano a refletir sobre a sua identidade e o papel desta na produção da cultura local. Segundo Ernest Pépin, poeta e romancista antilhano, a crioulidade é a tomada de consciência da diversidade do mundo caribenho. É igualmente a vontade de repensar a noção de identidade e é uma etapa da consciência de si-mesmo que leva a assumir o seu país. Neste grupo de escritores das Antilhas, a escrita militante surge da preocupação com a manutenção e o registro das tradições culturais de seu povo. Chamoiseau, em conjunto com seus companheiros, queria principalmente colocar em evidência a identidade crioula e as suas manifestações culturais. São eles que no fim da década de 80 apresentam o conceito de Crioulidade, e declaram que este “...é o cimento da nossa cultura e que ela deve reger os fundamentos da nossa antilhinidade”12 (tradução livre). Em outras palavras, eles afirmam que é apenas através da aceitação do seu estado crioulo que os latino-americanos encontrarão seu espaço dentro da sociedade e da tradição literária. Os autores discutem a necessidade de reavaliar os valores culturais que lhes foram impostos pelo colonizador e de valorizar os costumes que lhes são naturais e presentes através 10 Nas sociedades multirraciais tais como as nossas, parece urgente que se saia das habituais distinções raciológicas e que se retome o hábito de designar o homem de nossos países sob a única palavra que lhe convém, qualquer que seja a sua natureza: Crioulo. (tradução livre). 11 Reaprender a visualizar nossas profundezas. Reaprender a ver positivamente tudo que palpita em torno de nós. (tradução livre) 12 «... est le ciment de notre culture et qu’elle doit régir les fondations de notre antillanité.» (BERNABÉ, 1993, p.26). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 404 da tradição popular. E nessa busca eles defendem firmemente a procura das raízes locais na oralidade. No entanto, eles percebem que, além da oralidade, eles precisam da escrita, pois a mesma pode ser uma via de conservação da tradição oral. Contrários à idéia de que a escritura pode ameaçar a prática da oralidade, eles acreditam assim como Laroche, que oralidade e literatura, longe de se excluírem, se complementam. Assim, nasce um movimento que, além de colocar em evidência as tradições, pretende estabelecer um espaço para a produção de uma literatura local fundamentada nessa tradição oral. Considerações finais Pensando na escritura como uma via de conservação da oralidade e não como ameaça, os escritores das Antilhas percebem a importância do registro do oral mediante o risco do apagamento das suas tradições. Desse modo, a oralitura atende aos anseios dos jovens intelectuais no que diz respeito à produção de uma literatura própria, pois como afirma Laroche ...il faut distiguer l’oraliture de la littérature mais observer aussi dans l’un et l’autre cas une évulution parallèle qui n’exclut nullemment l’uitlisations des mêmes procedes techniques (...) en fait oralité et littérature, loin de s’exclure, se combinent13. E esta combinação do oral e do escrito torna-se um desafio para os escritores. Os escritores das Antilhas tomam para si esta responsabilidade e, apesar das dificuldades de escrever, de registrar a língua oral, else insistem na conquista deste mundo. Em suas obras observa-se com freqüência uma linguagem fronteiriça entre o oral e o escrito, o registro de expressões em créole seguidas das traduções em francês, a escrita de termos em créole e os neologismos são presentes no decorrer das narrativas. 13 ... é preciso distinguir a oralitura da literatura, mas observar também em um e no outro caso uma evolução paralela que não exclui absolutamente a utilização dos mesmos procedimentos técnicos (...) com efeito oralidade e literatura longe de se excluírem, se combinam. (tradução livre) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 405 Escrever a história é um desafio para os antilhanos, principalmente por ser uma história que conduz a muitas outras histórias. Defender uma literatura local, que fale das tradições usando a língua marginalizada, se constitui um desafio a ser vencido cotidianamente. Referências ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2005. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007. BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. vol. 1. Tradução de Sérgio P.S. Rouanet. 5ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. BERNABÉ, Jean; CHAMOISEAU, Patrick; CONFIANT, Raphaël. Éloge de La Créolité. Paris: Éditions Gallimard, 1992. BERND, Zilá. Inscrição do oral e do popular na Tradição Literária Brasileira. 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Dra.-UFU) I) Introdução Este artigo objetiva suscitar discussões e fundamentações sobre a importância da voz como corpo vivo, como linguagem em ato, manifestada em sua pluralidade interna e externa. Pretende também ressaltar sua importância e função no debate interpretativo que envolve as várias formas de leitura, contribuindo, assim, tanto para a compreensão do fato literário como para o aperfeiçoamento da recepção. Para isto, propomos analisar a eficácia de fenômenos interativos com a voz em situações de mediação e de performances15, ocorridas em espaços formais e informais de educação e cultura, no Brasil e na França16. Assim, indagamos: o que importa como fundamental a uma teoria da linguagem em ato? Este, portanto, será o eixo das discussões e base necessárias à compreensão e fundamentação teórica e prática da voz como instrumento vivo e essencial à recepção e interpretação do fato literário. Partindo das realidades Brasil e França, observamos que a literatura muda sua rota de espontaneidade, de percepção da palavra poética e lúdica, como imagem que dialoga com o real, como som, música, significação subjetiva e plurissignificativa, para se tornar meramente objeto de ações metodológicas dos professores, em suas atividades cotidianas de ensino. 14 dorinhagrossi@gmail.com O conceito de performance, cunhado por Paul Zumthor, engloba uma ação comunicativa complexa que requer o envolvimento simultâneo entre emissor e destinatário. Para Zumthor, performance implica competência e revela o conhecimento do intérprete. Se dá por uma tríade indissolúvel: intérprete, texto e ouvinte, sendo este último, co-autor da obra. Na performance não se pode considerar somente os níveis semântico e verbal da obra. Todo o contexto: emissor, receptor, espaço, tempo, público, enfim, é que faz sentido. 16 Este artigo baseia-se na pesquisa de doutorado que desenvolvi em Paris, em 2007, apoiada com bolsa sanduíche pela CAPES. Ela se intitula Literatura e Informação Estética: a oralidade pelas vias da poesia e da canção e seus usos na educação. No Brasil, a referida pesquisa está vinculada ao Departamento de Linguagem e Educação da FE/USP e, em Paris, ao Departamento de Português da Université Paris X - Nanterre - CRILUS - Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone. 15 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 408 Assim, se, por um lado, em colégios e universidades brasileiros e franceses desenvolvem-se metodologias de trabalho com a leitura de poesia, se há declamação de textos poéticos, por outro lado, tais leituras acontecem, em grande parte, como atividades em que o saber termina por percorrer apenas a periferia do texto, da oralidade e da palavra. Percebemos, portanto, que as leituras de poesia acontecem, mas não produzem uma efetiva recepção do texto poético, não remetem concretamente o sujeito a um texto percebido e recebido como poético, literário. II) O que teria sido feito daquelas horas imperfeitas? Iniciamos destacando a experiência de professores e pesquisadores franceses e brasileiros com a leitura e a escrita, desenvolvidas em metodologias aplicadas em sala de aula. Em relação a esta prática dizem Marie-Claire Martin e Serge Martin17: Le professeur des écoles – et de collège – a tendance à déconsiderér, aujourd’hui, souvent avec raison, l’exercice de la récitation hebdomadaire (grifo nosso) ainsi que le cahier de chants et poésies où alternent textes et dessins, mais il ne sait pas très bien par quoi les remplacer et il peut se faire qu’il ne les remplace par rien du tout. Les injonctions institutionelles, mais aussi les évolutions professionelles, invitent en effet à concentrer tous les efforts sur les compétences décisives des apprentissages en lecture-écriture. Si le plaisir de lire, et parfois d’écrire ( “la poésie semblerait de ce côté-là), n’est en aucun cas exclu, la tentation est forte d’aller au plus pressé 18. Analogamente, destacamos as considerações de Samir Meserani: O sistema oficial de ensino, ou o que chamamos comumente de escola, é uma instituição de ensino regulamentada por leis estatais, que “fala” uma linguagem: a linguagem verbal e sua modalidade escrita. Assim, a escola não admite estrangeiros a essa “fala” nas aulas, inaugurando seu ensino pela 17 Marie-Claire MARTIN e Serge MARTIN. Les poésie, l’école, p. 8 O professor das escolas – e de colégio – tem tendência a desconsiderar, hoje, muitas vezes com razão, o exercício da recitação semanal, assim como o caderno de canto e de poesias em que alternam textos e desenhos, mas ele não sabe muito bem por que substituí-los e pode acontecer que não os substitua por nada. As injunções institucionais, assim como as evoluções profissionais, convidam, com efeito, a concentrar todos os esforços sobre as competências decisivas das aprendizagens em leituraescrita. Se o prazer de ler, e, às vezes, de escrever (a poesia pareceria estar deste lado) não está em nenhum caso excluído, a tentação é grande de ir o mais rápido possível. 18 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 409 alfabetização dos recém-inscritos. Inscrever-se na escola é inscrever-se na escrita. De tal modo inscritos e alfabetizados, os educandos seguem os cursos de um longo percurso em que é necessário estar apto para o ler/escrever. Ler para ir diretamente às fontes, aos textos dos livros adotados, recomendados ou permitidos pela instituição. Escrever para, inicialmente, reproduzir no caderno as aulas dos professores 19. Com a experiência de observar aulas, de conhecer e analisar procedimentos pedagógicos em classe de aulas francesas e brasileiras - com relação à abordagem do texto poético, musical, às atividades com a leitura, envolvendo a voz, a dicção, o timbre, enfim, as diferentes performances destas diferentes realidades – alguns conceitos foram se configurando. Consequentemente, as especificidades destas realidades educativas foram tornando-se cada vez mais evidentes. Na França, há uma fecunda valorização à leitura pública de poemas e a uma série de outros conceitos e configurações poético-musicais, presentes nos mais diferentes espaços culturais e sociais que ilustram as formas de dizer e cantar o texto. Em momentos posteriores, focaremos estes espaços e estas conceituações. No Brasil, esta valorização também é detectada em escolas e demais espaços de cultura e educação, embora de maneira mais tímida e nem sempre os diferentes projetos contam com incentivo econômico para a realização plena e efetiva de seus objetivos, o que acarreta um acanhamento nas políticas de formação do leitor e do público. Com os estudos teóricos realizados, pudemos melhor perceber que há ainda um grande fosso entre concepções teóricas e práticas cotidianas em colégios brasileiros e franceses. Constatamos, por exemplo, que determinados postulados teóricos têm ainda a necessidade de se adequarem a realidades interpretativas que envolvem novas concepções de interação entre o oral e o escrito, a obra e o leitor. Neste sentido, existem várias pesquisas educativas francesas recentes20 que investigaram práticas cotidianas com a leitura de poesia, a utilização da voz que canta e que fala, bem como o trabalho com a palavra cantada em sala de aula e fora dela. Tais estudos, aliados ao trabalho com a forma literária, demonstram que o 19 Samir MESERANI. A escola e o livro. In: O intertexto escolar: sobre leitura aula e redação. p. 27 São muitos os textos publicados e pesquisas realizadas por professores. Destacamos as que são considerados mais importantes: Cf. Jean-Yves BRETON. Réception de la littérature de jeunesse par les jeunes. Documents et travailles de recherche en éducation. Didactiques des disciplines. Paris: Institut National de Recherche Pédagogique; Arnault BERNADET. La voix et la machine. Revue de l’Association Française des Enseignants de Français. Cf também Nadine DECOURT. Pour une nouvelle poétique du style oral. In: Musique du texte et de l’image e ainda Georgie DUROSOIR. Parler, dire, chanter: trois actes pour un même projet. Actes de colloque tenu en Sorbonne-Paris IV. 20 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 410 gosto pela leitura de textos literários, pela poesia cantada, assim como a formação e a percepção da experiência estética pelo aluno, podem se concretizar por meio do exercício da oralidade, da expressão da voz e do corpo. Desde o início da pesquisa de campo, detectamos que, em collèges franceses, tais práticas aconteciam, com mais frequência, fora do currículo obrigatório das disciplinas, em projetos complementares desenvolvidos em horário extraclasse, para alunos com dificuldades no aprendizado expressão oral e escrita, em classes de 4 ème e 3ème - o que na escola brasileira corresponde ao 8º. e 9º. anos do ensino fundamental. São várias, portanto, as séries envolvidas nestes projetos. Nestes colégios, o trabalho com a oralidade, a voz, a dicção, a leitura individual e coletiva, a leitura de poemas em voz alta, é uma prática ausente. Em depoimento, uma professora avalia que ocorre uma interpretação intelectual do texto poético, da semântica, da forma, do estilo poético... mas não há uma interpretação dos sentidos pela leitura. Este distanciamento da leitura cria um vazio de sentido pela própria ausência de palavras e vozes que interpretam o texto, sem os quais a compreensão fica prejudicada. Percebemos uma espécie de monologismo interpretativo, a existência de um falar consigo mesmo, expresso por um tipo de hermenêutica conduzida e nascida em uma única fonte geradora de inferências, no caso, o próprio professor. A necessidade de que ações com a leitura interpretativa sejam efetivamente realizadas, de maneira a se propor novas formas de exploração e compreensão do texto, é comentada por Martin (2005): Ce qui relève au fond d’une théorie du langage en acte dans nos institutions d’enseignement (programmes, pratiques d’enseignement et d’apprentissage) demande de montrer, par des exemples concrets, les enjeux de telles implications pour le “débat interprétatif”... L’enseignant n’aurait alors peutêtre comme tâche fondamentalement politique et éthique que de veiller à cette poétique de l’inconnu: l’écoute des voix dans leur pluralité interne et externe à la fois21. 21 MARTIN Serge (2005. P. 34) Donner la parole aux sans-voix. In: Voix: oralité de l’écriture. O que importa como fundamental a uma teoria da linguagem em ato em nossas instituições de ensino (programas, práticas de ensino e de aprendizagem) requer mostrar, por exemplos concretos, os proveitos de tais implicações para o debate interpretativo... O professor não teria, então, talvez como tarefa fundamentalmente política e ética senão zelar por esta poética do desconhecido: a escuta das vozes em sua pluralidade ao mesmo tempo interna e externa. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 411 Foram diversas as observações em classe de colégios nas quais constatamos que o texto não era lido, vocalizado. Uma professora de um colégio em Paris faz o seguinte comentário sobre as práticas de leitura de texto em voz alta em salas de aula: si nous parlons des rimes, de la musicalité, du rythme d’un texte poétique, il est rare que les élèves soient poussés à le mettre en voix, à en faire vibrer les mots, à les faire rouler dans la bouche ou même à en écouter une lecture sur une bande sonore ( enregistrements d’Apollinaire, deTzara...) 22. Por outro lado, obtivemos informações da existência de vários formadores de leitores que ressaltaram o fato de, em écoles - escola primária - a poesia ser lida e declamada com muita frequência. As crianças declamam mais poesia, cantam canções de poetas célebres da literatura clássica e contemporânea francesa, praticam bastante a leitura interpretativa de diversas maneiras. Mas eles salientam também que, muitas vezes, o objetivo pretendido desta prática torna-se o savoir par coeur (saber de cor). Uma das formadoras do IUFM – Institut Universitaire de Formation de Maîtres de Paris, que prepara professores para dar aulas em écoles e collèges, afirmou, em uma entrevista: on fait en général très peu de place à la mise en voix des textes (prose, poème ou chanson) dans nos textes (Atribuímos em geral muito pouco lugar à vocalização dos textos (prosa, poema ou canção em nossos textos). Reafirmamos, portanto, que a leitura, embora sendo uma prática oral, não produz uma efetiva recepção do texto poético e musical, não remete concretamente o sujeito a um texto percebido e recebido como poético, literário. Reflexões e hipóteses sobre as possíveis origens que envolvem dificuldades e carências de abordagens interpretativas mais diversificadas e criativas do trabalho com textos poéticos e musicais em práticas escolares, apontam para implicações no âmbito da história da educação francesa. Há também o fato de que o professor desconhece a efetiva contribuição de uma metodologia de trabalho que valorize a expressão oral e a interpretação do texto por meio 22 Se nós falamos das rimas, da musicalidade, do ritmo de um texto poético, é raro que os alunos sejam levados a vocalizá-lo, a fazer vibrar as palavras, a fazê-las rolar na boca ou mesmo a escutar uma leitura sobre uma faixa sonora (registros de Apollinaire, de Tzara...). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 412 da voz, da declamação, permitindo, assim, uma nova relação entre o sujeito e o texto, entre a literatura e a experiência estética. Existem ainda fortes indícios de que o desenvolvimento da oralidade em sala de aula – incentivado por diferentes tipos de interlocução, por meio de diálogos com o coletivo, de leituras de textos poéticos, da palavra falada e cantada, valorizada pela riqueza interpretativa dos textos – seja, muitas vezes, considerado pelo professor como um trabalho exaustivo, pois exige uma reorganização das diretrizes pedagógicas por ele utilizadas cotidianamente, implica uma renovação de suas práticas mais voltadas à escrita e à leitura textual. As atividades com a oralidade, por outro lado, exigem também um dinamismo no qual o aluno deverá ser o sujeito das ações, das relações com o texto, a partir daquele que mais lhe interessa, enfim, o aluno assume uma atitude de interação com o texto, envolvendo a voz e o corpo. Tal interação demanda domínio do professor no direcionamento do trabalho, tanto do ponto de vista da disposição das falas, da escolha dos textos juntamente com os alunos, da organização do espaço, quanto de sua forma de condução destes trabalhos, no sentido de tornar esta prática efetivamente valorizada e compreendida como fundamental ao conhecimento e à percepção da linguagem. O investimento nesta direção do trabalho pedagógico, que dá a voz aos alunos e permite uma co-participação do grupo, portanto, muitas vezes é visto como uma atividade trabalhosa que, além de tudo, exige um tempo incompatível com a obrigação de cumprimento dos conteúdos previstos nas diretrizes curriculares. Outras análises apontam para o fato de que a linguagem oral, como expressão autônoma do aluno, ao longo de muitos anos, foi limitada ao objetivo de manter o controle disciplinar. Hoje, em colégios e universidades francesas e brasileiras, este quadro parece não apontar para grandes mudanças. Assim, o papel da oralidade na educação francesa tornou-se secundário ao longo dos últimos 30 anos, tendo sido recuperado nas aulas de língua, em que o aluno é convidado a expressar-se, a perceber e a compreender a língua em diversas situações de exercício da expressão oral. Em análise feita por professores universitários 23 e pesquisadores de programas de pós-graduação, argumenta-se com freqüência sobre o fato de que o ensino universitário 23 Análises e avaliações desta natureza foram feitas em encontros periódicos de pesquisadores e alunos da graduação e da pós-graduação da Université Paris X – Nanterre. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 413 francês prioriza o ensino da gramática, e que o aluno tem chegado à universidade sem saber escrever. Em relação ao ensino da literatura, as diretrizes curriculares prezam, em vantagem, pela análise literária, pela produção de texto e pela redação. São listados saberes que limitam a ação autônoma do professor, na medida em que estes saberes devem ser ensinados como conteúdos formais e não preveem, efetivamente, práticas e ações educativas e culturais com a literatura. III) Florespinho do Lácio: oralidade e escrita Interessantes reflexões são suscitadas por Elie Bajard24, ao discutir o conceito de “leitura em voz alta” e sua significação no contexto escolar, político e social: A “leitura em voz alta” tem também uma outra responsabilidade. Antes do século XX a França ainda não está lingüisticamente unificada e em muitas províncias se falam dialetos. Ensinando uma única língua, a escola pode assumir o papel de cimento da unidade nacional. É preciso então que o francês suplante em toda parte as línguas locais. Longe de serem vistas como uma riqueza lingüística, essas últimas são consideradas perigosas para a unidade da nação. Proíbe-se usar as línguas locais na escola e as crianças que o fazem são punidas. Para algumas delas, o francês é uma verdadeira língua estrangeira. Apenas a “leitura em voz alta” pode permitir às crianças adquirir a língua francesa em sua dimensão fonética, ou seja, naquilo que é comumente chamado de boa pronúncia. Uma leitura silenciosa que se contentasse em oferecer o sentido do texto, sem corrigir a pronúncia defeituosa seria imperfeita. Assim, “a leitura em voz alta” contribui para desaparecer o “cheiro da terra” (Chartier e Hebrard, 1989, p. 262). “Um esforço gigantesco é solicitado para neutralizar os sotaques locais e inventar uma elocução ‘francesa’, ou seja, nacional e não mais regional” 25. Tal citação, ainda que faça referência a uma França anterior ao século XX, não exime a realidade atual de situação similar. Isto porque, até hoje, o processo de aceitação e reconhecimento das culturas permanece sendo um desafio a ser enfrentado, continuando a ser a língua fator preponderante para a unidade nacional. A complexidade do fenômeno é grande e divergências em seu interior tornam cada vez mais evidente o fato de que escola e sociedade devem reconhecer a história colonial do ponto de vista do colonizador, mas também do 24 25 Elie BAJARD. Ler e dizer, p. 36. Ibidem, p. 190. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 414 colonizado, aceitando, enfim, este processo de influências mútuas. Este reconhecimento poderá proporcionar uma nova compreensão do processo histórico, amenizando preconceitos lingüísticos, criticando a alienação vivida por sujeitos sociais que passam à margem de valores essenciais à cultura. Bajard explica também que, até o século IV, a prática de emissão vocal do texto incluía a pronúncia na maneira de ler e que os textos sagrados eram “vocalizados”, “memorizados”, lidos, relidos até que se chegasse à situação de serem entendidos pelo leitor. A emissão vocal dissolvia as dificuldades de compreensão que poderiam ser de ordem lingüística, filosófica, espiritual. Neste sentido, era preciso oralizar para compreender. Tal procedimento, em que os signos escritos são transformados em signos orais, em que cada elemento da escrita torna-se elemento do oral, originou o que era chamado de decifração. Bajard nos diz que esta é a estrutura do Antigo Regime, para o qual, para ler bem é preciso decifrar bem. A compreensão não faz parte, portanto, do ato de leitura propriamente dito; ela ocorre depois deste lento trabalho de transposição dos signos escritos em signos vocais26. O autor diz ainda sobre a existência do “uso convivial” da “leitura em voz alta”, em cuja prática o texto é comunicado oralmente para as pessoas que não sabem ou não podem ler; fala também da escuta dos livros lidos em família, e, curiosamente, por cegos que, na Espanha, divulgavam os textos escritos, decorando-os, ou pela mediação de um leitor público, como é o caso da literatura de cordel no Brasil. Tais procedimentos constituem várias formas de compartilhar a leitura, possibilitando o leitor e o ouvinte a apreciá-la. Estas atividades passam a ser chamadas de “leitura em voz alta”. Esta, nas Instruções Oficiais francesas de 1923, se torna leitura expressiva ... na qual o escolar prova, por sua maneira de ler, que compreende o que lê, pois sua dicção exprime a idéia do trecho”. Do ponto de vista do conceito de “leitura em voz alta”, Elie Bajard argumenta que ele não é mais operatório. A terminologia “leitura em voz alta” seria somente adequada quando o leitor faz uso da voz para compreender o texto e não somente para fazer uma emissão dele. Assim, quando os professores comunicam livros ou textos aos alunos, o que eles estão fazendo é uma atitude de “emissão” do texto, e não de recepção. Neste caso não há leitura, não há interpretação, pois não ocorre a recepção. Assim, como também argumenta Bajard, a competência de leitor é também diferente da competência de transmissor. 26 Elie BAJARD. Op. cit., p.33. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 415 A leitura silenciosa, por outro lado, inicialmente tornou-se uma leitura bastante criticada, considerada superficial. Mas neste intenso debate, sua importância foi sendo relevada por seu valor de interioridade, de subvocalização, como uma atividade produtora de sentido. Assim, com o nascimento da imprensa no séc. XVI, a leitura começa a se tornar um encontro individual com o texto, e o caráter coletivo da transmissão vocal deixa de ser hegemônico. Assim nos diz Bajard27: Pudemos observar, ao longo da história, que o modelo da verdadeira leitura foi durante muito tempo a “leitura em voz alta” e que a noção de “leitura silenciosa” nasceu progressiva e tardiamente. Esta última, inicialmente recusada, adquiriu pouco a pouco a qualidade de atividade de leitura, antes de se tornar o seu modelo. A “leitura em voz alta”, por sua vez, se viu gradualmente despojada de seu prestígio e mesmo de sua legitimidade. Através da evolução das representações da “leitura em voz alta”, assiste-se, contudo, à permanência de certas funções que, mesmo não inerentes ao ato de ler, são bastante importantes. Uma delas é a função que diz respeito à convivência, ou seja, a função comunicativa. A leitura, que é um encontro individual com um texto, exclui essa dimensão. Essa função de convivência se estabelece a partir de um texto escrito, preexistente, que não é o único canal de comunicação, uma vez que ele se articula com outras linguagens. De fato, a leitura silenciosa, não só em escolas francesas, como também nas brasileiras, tem, há várias décadas, um valor bastante estimado, conquistando seu lugar no espaço pedagógico. Um valor que é compreendido como a ação primeira, prioritária, prévia para a compreensão de um texto, que deve ser formada a partir desta interiorização, desta leitura particular, subjetiva, pura, que possa vir a causar uma impressão ao sujeito, para que, posteriormente, ele possa vir a se sentir estimulado pelo texto e pelo contexto. Em geral, na escola brasileira, quando o aluno está diante de um texto, exige-se dele uma leitura muito atenciosa. Em primeiro plano, espera-se que ele o compreenda, de maneira a descobri-lo, numa impressão analítica, preliminar, que deve motivá-lo, na seqüência, a aprofundar sua análise pela pesquisa vocabular, com consultas ao dicionário. Uma segunda leitura é realizada, agora com a suposição de haver um maior domínio dos 27 Elie BAJARD. Op. cit., p. 52-3 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 416 sentidos do texto. Espera-se que o aluno possa, então, “interpretá-lo”, por meio de perguntas, elaboradas para facilitar o seu entendimento. A leitura silenciosa, portanto, utilizada, com muita frequência, nos mais diferentes procedimentos pedagógicos , tornou-se sinônimo de postura amadurecida, de disciplina e concentração, comportamentos sempre tidos pelo professor como fundamentais ao aluno. Esta é uma ação privilegiada para melhor se compreender o texto, e, consequentemente, se conquistar o status de leitor maduro, sendo ainda uma etapa necessária para se chegar à leitura em voz alta. Este entendimento da “leitura silenciosa”, como sendo a verdadeira leitura, a que possibilita compreender o sentido do texto, por sua capacidade de fazer surgir uma “voz interior”, uma “autonomia”, uma “dicção criada para exprimir a idéia do texto”, tem sido, em algumas experiências pedagógicas brasileiras e francesas, uma “isca” eficaz. Esta “voz interior” e/ou “autônoma tem sido formada por motivações, por formas de condução da leitura, as quais vêm sendo experimentadas em pesquisas científicas e projetos pedagógicos escolares. Tais projetos mostraram que, ao inverter os objetivos que pretendem desenvolver formas eficazes de interpretação e compreensão do texto, envolvendo atitudes de leitura e práticas com o texto, o resultado poderá se revelar mais frutífero. Assim, a eficácia nas formas de interpretação, valorizada a priori no ato da “leitura silenciosa”, passou a ser, com mais facilidade e efetivamente conquistada, depois de realizadas abordagens nas quais o leitor pudesse, a princípio, desenvolver uma leitura “convivial” com o texto. Posteriormente é que a “leitura silenciosa” surge, aí sim, como uma atitude coerente e verdadeira, construída por uma antecipação de convivência do aluno com práticas diferenciadas de dizer e declamar textos. Estas práticas, portanto, mostraram que a “leitura silenciosa” passou a ser uma ação desenvolvida com sentido, com mais frequência e qualidade, porém, não sem antes “ruminar”, “dizer”, declamar o texto. Nossa pesquisa, realizada no ensino fundamental 28, diante de um quadro de baixa porcentagem de alunos leitores, mostra como os procedimentos didático-pedagógicos, ao permitirem ao aluno “dizer” o texto, fazem com que este aluno descubra a importância da leitura e de sua expressão individual. As atividades propostas de leitura de textos diversos 28 Cf. dissertação de mestrado de Maria Auxiliadora Cunha GROSSI, defendida em 1999, denominada Por uma pedagogia do poético: métodos e técnicas para uma comunicação dos sentidos, na qual práticas de leitura de poesia são apontadas como eficazes à compreensão do texto assim como à formação do leitor. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 417 ocorrem de diferentes formas e em espaços escolares: entre alunos de anos diferentes, no microfone da secretaria, em salas de aula, em sala de professores, nos corredores, laboratórios, cozinha, almoxarifado, entre outros. Alunos das 8ªs séries, hoje 9º ano, declamavam poemas, contavam e cantavam histórias para alunos do pré-escolar. Observamos que estas práticas, no decorrer de um ano, em uma média de 30% de alunos participantes, índice não muito comum na escola, estimularam o gosto pela leitura e pela poesia. Nos anos posteriores, estes mesmos alunos, que concluíram o ensino fundamental, formaram novos grupos de declamadores de poesia e, em eventos na universidade, congressos, em bares e casas de cultura da cidade, declamavam textos e contavam histórias. A hipótese da pesquisa previu que a leitura silenciosa em sala de aula como atividade cotidiana, ou na biblioteca, com a leitura de obras literárias, não tinha um verdadeiro poder de estímulo, como atividade “em si”, cultivada como um ato individual, isolado. Em aulas semanais na biblioteca, o comportamento do leitor, diante do livro, revelou frequente apatia e falta de perspectiva do aluno na definição do próprio gosto pelos gêneros, pela leitura predileta. Com a mudança de metodologia com os textos poéticos, musicais e narrativos, que passaram a ser “ditos”, falados, para um público de ouvintes, a relação do aluno com a leitura mudou substancialmente. Como consequência houve uma transformação nos hábitos de leitura de um considerável número de alunos, o que lhes possibilitou conceber uma nova construção da leitura, diferentemente da concepção de leitura construída, ao longo de muito tempo, como ato silencioso, interior, de fruição, como resposta a uma ação efetiva. Assim, a leitura silenciosa não era mais nosso desejo, como uma postura ideal a priori, mas uma efetiva prática nascida da experiência de interpretar, de sentir, de compreender os sentidos do texto, por meio da voz, do corpo, da expressão individual. IV) Vinde a nós as muitas formas de dizer e de falar La lecture-spetacle poétique Variadas são as formas de leitura pública utilizadas pelos franceses: chansons à textes, musique de paroles, concerts des mots. Diferentemente destas, a lecture-spetacle Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 418 poétique, caracteriza-se pela retomada que o leitor faz direto ao texto, vocalizado, fiel à palavra do autor, com ênfase na própria voz que interpreta gêneros diversos da poesia. Embora muitas vezes praticada em palcos das casas de cultura ou de teatros, em que se usam discretos focos de luzes e de uma performance que se limita ao breve movimento de entrada dos declamadores no palco, a lecture-spetacle poétique é o momento dedicado de fato à palavra falada, com alguns efeitos de som ou performance teatral. Mas há, prioritariamente, uma fidelidade ao texto expressa na palavra declamada, na dicção e na pronúncia, na expressão da voz utilizada, o que poderá valorizar a leitura, comovendo ou sensibilizando o espectador. O declamador desenvolve, assim, sua performance por meio de artifícios sonoros vocais e de recursos tímbricos, realçando o som de uma palavra, assim como o seu significado. Ele transita do grave ao agudo, do alto ao baixo, experimentando diferentes inflexões para a melodia da fala. Lidos em várias línguas, os poemas, neste espetáculo, às vezes se assemelham a melodias ontológicas e tribais. Nestas leituras públicas, dois aspectos chamam a atenção: o aspecto propriamente dito do exercício de declamação dos textos, e a caracterização do evento como lecturespectacle poétique. Quanto ao primeiro aspecto, observamos a qualidade sonora dos textos, a força de sua escritura no conjunto de combinações de sentidos e de estruturas formais e metafóricas da linguagem. O poema apresenta ao espectador uma excelência dominante. A voz, no entanto, como manifestação sonora, como instrumento máximo desta expressão, mostra-se presa ao texto escrito, à palavra escrita, produzindo uma impressão de ruptura entre texto e voz. De fato, a autoridade ali era o livro. Percebemos também que a situação de uma leitura pública não é a mesma que a do canto, da musique de parole, do concerts des mots, o que não a exime de um encanto ou efeito poético dados pela condição vocal. Este tipo de leitura pública em si é menos teatral. A presença do livro, elemento fixo, freia a possibilidade de um jogo dramático dado pela força da palavra, o que, muitas vezes, acarreta um enfraquecimento do efeito vocal. O elemento “livro” faz com que o declamador se concentre na palavra escrita, na linha percorrida pelos olhos, buscando não se perder em seu sentido poético, envolvido pela pronúncia e por um conjunto maior da expressão: o corpo que olha e dialoga com o público de diferentes partes. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 419 Mas o livro, de fato, como nos diz Paul Zumthor 29, não pode ser neutro, em nenhum tipo de leitura: uma vez que ele é “literatura”, e se dirige a ele, no leitor, pela leitura, um apelo, uma demanda insistente. Pouco importa aqui saber se a demanda é justificada. Para além da materialidade do livro, dois elementos permanecem em jogo: a presença do leitor, reduzido à solidão, e uma ausência que, na intensidade da demanda poética, atinge o limite do tolerável. Tal intensidade poética poderá ser acentuada pela presença corporal do ouvinte e do intérprete, como no caso de leituras que objetivam uma performance corporal. Não é bem o que ocorre com a lecture-spetacle poétique, mas nela podemos perceber também uma forte presença do ouvinte, que observa e contempla a voz assumida pelo declamador por intermédio do escrito, do livro. Tal situação exige, neste diálogo – aparentemente e a priori dado apenas entre o declamador e o texto escrito – um conjunto de fatores que incidirá também em energias corporais trocadas entre ouvinte e declamador. Não chegam a ser performances dramáticas, mas exposições cênicas que percorrem a voz e o corpo que fala, sente e diz. No momento da transmissão vocal, muitas vezes o texto lido apresenta-se fragmentado, como se estivesse inacabado. Tal fato parece assim se configurar porque, quando a voz pronuncia a palavra, ela penetra em um espaço, que é o da escrita, mas cuja lógica é fechada. Numa situação, em que a presença corporal do ouvinte e do intérprete é explorada, no caso das leituras dramatizadas, por exemplo, a oralidade não se constitui desta lógica metódica. Uma das razões desta diferença entre estas leituras, talvez se deva ao fato de que, entre a expressão de um texto poético lido e a de um texto dramatizado ou declamado, a diferença marcante resida na intensidade de uma presença corporal mais forte, dada ao segundo, pois, a noção de dizer o texto, sem “lê-lo”, nos faz pensar o discurso como um acontecimento. De fato, ao declarar um texto de forma espontânea, cria-se um campo expressivo de identidade narrativa mais autônoma, o qual coloca o declamador em uma independência, ainda que relativa, em relação ao código escrito. Ao mesmo tempo, o declamador é munido de 29 Paul ZUMTHOR. Op. cit., p. 80. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 420 um modo próprio de dizer que não está necessariamente desatrelado do escrito, mas se relaciona com ele de maneira mais livre e autônoma. Esta relação entre leitura de um texto escrito e um texto transmitido oralmente, nas leituras públicas, aponta para um trabalho bastante diferenciado, presente nas mais variadas formas de manifestações de declamação de poemas. Há também as leituras públicas como os concerts des mots, a musique de parole, a chanson à textes, designativas de um fazer artístico, caracterizado pelo lugar de importância que é dado ao texto falado, declamado, mas como palavra-canto, isto é, a palavra soando. Trata-se, portanto, de textos que possuem sonoridade privilegiada, permitindo ao cantor uma articulação rítmica de sua fala, em consonância com recursos instrumentais, como a percussão, ou instrumentos harmônicos, como o acordeon, e ainda a guitarra, o baixo, a flauta. Porém, esta música dos instrumentos possui linha melódica própria, não estando em composição com a palavra, pois esta é falada, ritmada e não propriamente cantada. Ou seja, ao dizer o texto, o cantor ou declamador o encena utilizando-se de uma articulação vocal rítmica e, conforme o caso, corporal. A música dos instrumentos, neste caso, é dada por um ritmo percussivo que acompanha a leitura do texto, mas não o compõe melodicamente. Às vezes esta leitura deixa de ser um concert des mots, uma musique de parole ou uma chanson à textes, passando a se estabelecer como uma canção. Neste caso, as palavras cantam, possuem uma composição melodiosa na qual palavra e instrumentos propõem um conjunto harmônico, como acontece com a composição musical, em que a relação palavra/música não se mantém na independência, mas na unidade. Quando as palavras cantam, são música, por isso vários textos literários são considerados muito ricos musicalmente. V) O Slam Poèsie na França e no Brasil Importante, abrangente e intenso movimento poético-musical denominado Slam Poésie se desenvolve em Paris, em toda a França, Estados Unidos e em diversos países como a Bélgica, o Canadá, a Alemanha, a Itália, a Singapura. Diversificadas e ricas experiências com a palavra poética declamada, cantada, ritmada, com a leitura de textos em voz alta, acontecem em escolas – como foi destacado anteriormente - em espaços culturais, como bibliotecas, centros de animação, bares, praças e em variados espaços públicos informais de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 421 educação. São inúmeros os projetos desenvolvidos pelos chamados slammeurs. Dentre eles são também numerosos os encontros de Slam Poésie que acontecem em lugares públicos como bares, cafés, teatros, salas de espetáculos, cinemas, assim como em hospitais, prisões, livrarias, mediatecas, mercados ao ar livre. Em toda a sorte de lugares reúnem-se poetas, slammeurs (declamadores, rappers e poetas) e espectadores, sendo o slam, hoje, em sua forma mais tradicional, um spetacle sob a forma de encontros e de torneios de poesia. A palavra slam é originária do inglês, significa pancada ou batida ruidosa, com força, violentamente, podendo ser traduzida também como fazer crítica severa a algo ou alguém. Assim, a ação de slammer envolve uma intenção de tocar, sensibilizar, de forma pungente, profunda, o sujeito e o ambiente, por meio de palavras que criem uma ruptura de valores e sentimentos; os sujeitos são, pois, tocados pela força e pelo sentido destas palavras. Criado em Chicago, pelo trabalhador e poeta Mark Smith, nos anos de 1980, esta forma de demonstração da oralidade pela declamação de poesias, o slam, suscitou admiração e um entusiasmo popular, o que permitiu sua propagação pelo mundo inteiro, trazendo novo fôlego às cenas abertas de poesia, com a participação ampla do público. Nos clubes de jazz de Chicago, Smith organizava competições semanais de poesia, havendo também os jurados escolhidos pelo público. Assim, o slam tornou-se uma forma de arte internacional, concentrando-se sob a forma de participação do público e da excelência poética, sendo também um instrumento de democratização e arte da performance poética. Enfim, tornou-se o lugar, por excelência, que aproximou performance e texto, oralidade e escritura, encorajando poetas e público a se focalizarem no que eles dizem e no como dizem. Inúmeras são também as propostas de interação com a poesia que envolvem um público mais amplo de todas as idades, como a Opération Parlons Slam en France, lançada pelo coletivo Slam Family, que reúne todas as iniciativas, todas as maneiras de falar slam na França, promovendo fóruns de discussão de viva voz, publicações em revistas e vídeos e outros projetos. No Brasil, o Slam Poésie, também conhecido como Slam Poetry, tem se desenvolvido, ainda que timidamente, em algumas capitais como Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Em dezembro de 2006, Paulo Scott, escritor e professor universitário, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 422 publicou, na internet30, texto em que faz referência ao Slam Poetry no Brasil. Para iniciar sua conversa, desafia o leitor com uma incontestável convicção de que ele nunca teria ouvido falar nesta manifestação da poesia em “disputa”. Tal convicção adveio do fato de que ele teria ligado para sete dos poetas mais “antenados” do país, perguntando-lhes se tinham ideia do que a expressão significava, e apenas um disse ter vaga ideia sobre tal manifestação. Diz Scott sobre a conversa com Chacal, poeta carioca,e Marcelo Montenegro, poeta paulista: Aproveitei o tema e pedi a opinião de dois poetas que, na minha opinião, têm na oralidade uma espécie de exuberância de seus textos: o carioca Chacal e o Paulista Marcelo Montenegro. Chacal me disse que não condena, vê nessa experiência um retorno à celebração da oralidade, aproximando ( não é por outra razão que a idéia nasceu nos primeiros anos do rap) a poesia do que já era a poesia do rap. Claro que, faz questão de frisar, é preciso perceber o caráter de brincadeira da slam poetry, porque não é possível julgar se algo é melhor ou pior, o que conta, na verdade, é o momento: naquele momento e para aqueles juízes há um vencedor, mas nada disso pode ser levado tão a sério. Já Marcelo Montenegro ressalta toda a qualidade que ainda se mantém o espaço da poesia ( o caótico, a transgressão da linguagem) e que a torna quase o único (porque último) espaço artístico de plena liberdade, dispensando por completo a possibilidade de ranking, de competição. Submeter a poesia à competição é condicioná-la, é enfraquecê-la. Scott acredita ter sido dezembro de 2006, o marco, no Brasil, da realização do primeiro Slam Poetry promovido por poetas gaúchos – Fábio Godoh e Marcelo Noah. A partir de então, outros eventos estariam programados para o ano de 2007. O fato é que, na França, a “disputa” permanece mais caracterizada nos slams regionais e/ou nacionais, em que caravanas, vindas de várias partes do país, se apresentam, respeitando as regras do estatuto do slam poésie, sobre o qual nos referimos anteriormente. Mas, efetivamente, a prática de declamação disseminou de tal maneira, tornando-se tão espontânea, que a “disputa” não é aplicada nas demonstrações, nas cenas abertas, micro abertas e nos ateliers. 30 Paulo SCOTT. Poesia em disputa: o slam poetry no Brasil. www.terramagazine.terra.com.br Acessado em: jan/2008. DISPONÍVEL EM: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 423 O jornal Le Monde Diplomatique Brasil, em matéria intitulada “Faça você mesmo: a senha da cultura jovem”31 publicou recentemente reportagem sobre a influência do hip hop, arte que vem sendo produzida por grupos de jovens da periferia, neste tipo de criação. Tal matéria informa sobre experiências bem sucedidas em políticas culturais públicas no Brasil que, efetivamente, só entraram em pauta no final dos anos de 1990. Dentre tais políticas, realizadas na periferia de São Paulo, estão debates sobre poesia, (...) publicação de livros, (...) documentários e saraus, que ressurgiram nos últimos anos, tomando conta da periferia paulistana. Tudo isso na tentativa de derrubar o mito piedoso da pobreza em sofrimento permanente. Ainda segundo o jornal, existem também dezenas de encontros na capital e na região metropolitana, nos quais os poetas recitam poemas consagrados, mas compartilham também, em grande número, versos de sua própria autoria. São jovens, crianças, adolescentes, adultos e famílias inteiras participando e assistindo aos saraus patrocinados pela Cooperifa – Cooperativa dos Artistas da Periferia, que ocorrem às quartas-feiras no bairro Piraporinha, na zona sul de São Paulo. Assim diz Eleilson (2008), autor da matéria: Tem taxistas, estudantes, funileiros, escriturários, motoboys, professores, enfermeiros. Tem gente graduada também, mas que não perdeu a humildade nem saiu da quebrada. Allan da Rosa é um desses. Terminou o ensino médio, sabe lá como. Fez cursinho no Núcleo de Consciência Negra e entrou na USP. Graduou-se em História e hoje faz mestrado em Educação. Quem primeiro leu seus versos foi seu pai, a quem o jovem poeta entregava seus escritos quando o visitava na cadeia32. Efetivamente, o Slam Poésie, o Slam Poetry ou os saraus representam um fértil campo de conhecimento sobre práticas culturais com a poesia, a palavra, o ritmo e a voz. Uma voz que pretende ser dita com a força de um despertar para a vida, para as contradições, para as afirmações de amor, de guerra, de violência, de contemplação, de brincadeira, de poesia, de admiração, de surpresa com o sabido e o não sabido, assim como para a beleza que todos estes 31 A referida matéria é de autoria de Eleilson Leite, historiador, programador cultural e coordenador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da ONG Ação Educativa. Le Monde Diplomaquique Brasil, Janeiro, 2008. 32 Eleilson Leite. Onde mora a poesia. Le Monde Diplomatique Brasil. Publicação eletrônica. http://diplo.org.br/2007-11,a2020 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 424 elementos podem adquirir, pelo viés da palavra encantada, simbólica, sonhada, viva, nascida do fazer poético compartilhado. Conhecendo estas experiências, podemos vislumbrar a existência de um amplo e verdadeiro conjunto de ações coletivas que movimentam – resguardadas as suas especificidades sociopolíticas e culturais – um número considerável de pessoas e instituições culturais e educativas, por grande parte das cidades desenvolvidas, mas também das periferias do mundo, demonstrando enorme penetração e aceitação pública. São possibilidades de diálogos que protagonizam a literatura, a arte e acreditam nelas como forma de compreensão e reinvenção da linguagem e do conhecimento. VI) Conclusão O caminho que percorremos, para conhecer as práticas informais culturais e educativas, no contexto da realidade francesa e brasileira, nos revelou diferentes tipos de iniciativas e concepções de leitura. Isto nos possibilitou perceber a ênfase no ensino da leitura como processo interpretativo, porém, não vimos nestas concepções a valorização da leitura como processo criativo que engloba a experiência humana. Verificamos, tanto em um contexto como no outro, a preferência por se ordenar o mundo para o leitor e/ou ouvinte, optando-se prioritariamente pelo comprometimento com a objetividade da linguagem escrita. É o que se chama de pedagogização do elemento estético. A leitura literária e musical, que valoriza a polissemia da palavra em sua potencialidade, que educa os sentidos, transformando a realidade em algo mais inventivo, mais humano e mais socializado, muitas vezes, é abandonada. Sabe-se, pois, que muitos fracassos nestas leituras provêm da ausência de uma delimitação precisa entre uma leitura que media o conhecimento, produzindo sua essência, e a outra que migalha este conhecimento, fragmentando-o e dissociando-o de uma visão interativa e dinâmica com seu todo formal e subjetivo. Pretendemos mostrar que as formas de abordagem da linguagem poética e musical geralmente são motivadas como um caminho que tem como objetivo primeiro a expressão escrita. Tem-se, portanto, como importante fundamento o fato de que é pela escrita que o aluno “toma consciência da linguagem”, aprende a tratá-la como um objeto que se “manipula”, “retoca”, “melhora”. A palavra falada, cantada, declamada, principalmente Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 425 dentro de escolas e universidades não se constitui, nestas práticas, como uma linguagem sobre a qual os alunos deveriam manifestar domínio quanto a seus códigos próprios, como dicção, pronúncia, entonação, com seus referenciais melódicos e de tons, de intensidade, com as mesmas exigências de realização às quais faz jus a linguagem escrita. Vimos que, na experiência francesa, a diversidade de atividades de leitura por meio da declamação de poesia, das variadas formas de falar o texto, de vocalizá-lo está muito presente fora do espaço escolar, o que, no Brasil, constitui-se de forma ainda mais tímida. Por outro lado, percebe-se uma fragilidade deste trabalho, como parte integrante do ensino de literatura, em colégios e universidades brasileiras e francesas. O que se observa são metodologias que não facilitam a recepção do texto literário do ponto de vista performático da voz e da palavra falada e cantada. E nos indagamos: Por que iniciativas vindas da expressão oral, da vocalidade dos poemas, espontâneas e legítimas, que expõem o texto de forma interativa, que envolvem o sujeito em uma ação e não em uma sujeição, estão tão ausentes das atividades acadêmicas? Derrida, um dos pensadores mais polêmicos do nosso tempo, desenvolve suas reflexões sobre o pensamento ocidental, o qual qualifica de logofonocêntrico. Logo, firma sua crença na soberania da razão, e fono, porque atribui à fala um privilégio em relação à escrita. Em Gramatologia, ele diz que há na filosofia tradicional uma assimilação do logos à fala. Há um esforço laborioso para se afirmar uma ligação essencial entre conhecimento, logos e fonia, porque nessa ligação está fundado o privilégio que se concede à consciência. Para empreender a sua desconstrução ao logofonocentrismo, Derrida toma como ponto crítico a noção de representação que vem sendo atribuída à escrita, no campo da Filosofia e das ciências que têm como objeto a linguagem. Nesta noção, é atribuído à escrita o papel de representação da linguagem oral. O alvo de sua crítica é a noção saussuriana da escrita como imagem, já que a ela é atribuída uma exterioridade. Assim, Derrida argumenta que não é próprio do signo ser imagem. A escrita não é imagem ou figuração da língua, não sendo, portanto, um signo do signo. Neste sentido, para o filósofo, a tese da arbitrariedade do signo seria um obstáculo à distinção radical entre o signo oral e o signo gráfico. Compreender é opor à palavra do enunciador uma contrapalavra, ou ainda, uma série de palavras para formar uma réplica. Desse modo, vemos que os sujeitos leitores assumem posições interpretativas diante do livro, da leitura, da música, do poema, do teatro, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 426 do cinema, construindo, dessa forma, posicionamentos identitários e a própria constituição de sua subjetividade. Isso acontece porque a leitura é uma atividade constitutiva de identidades, que se caracteriza como uma forma de interlocução em que o sujeito se constitui, intersubjetivamente e de forma dialógica, a partir das palavras do outro. As relações entre o oral e o escrito têm se desenvolvido sob a forte presença de novas técnicas de difusão da escrita. Também são nítidas as dificuldades para entendermos uma mutação tão rápida, que transforma hábitos e percepções e lança profundos desafios em relação às formas com que costumamos manejar estas percepções para penetrar e produzir culturas presentes no oral e no escrito. Bibliografia BAJARD, Elie. (1994). Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. São Paulo, Cortez. DERRIDA, J. (1973) Gramatologia. São Paulo: Perspectiva. GROSSI, Maria Auxiliadora Cunha. Literatura e informação estética: a oralidade pelas vias da poesia e da canção e seus usos na educação. Tese de doutorado. Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. LE MONDE DIPLOMATIQUE Brasil. Ano 2. N o. 6 – Janeiro 2008. Disponível em: www.diplo.org.br ; acesso em: jan/2008. MARTIN, Marie-Claire et MARTIN, Serge (1997). Les poésies, l’école. Paris: Presses Universitaires de France. MARTIN, Serge (2005). Donner la parole aux sans voix. Revue de l’Association Française des Enseignants de Français. n°.150. Publiée avec le concours du Centre National du Livre. Paris, Armand Colin. MESERANI, Samir.(1995). O intertexto escolar: sobre leitura, aula e redação. São Paulo: Cortêz SCOTT Paulo. Poesia em disputa: o slam poetry no Brasil. Disponível em: www.terramagazine.terra.com.br . Acesso em: jan/2008. ZUMTHOR, Paul. (1983) Introduction à la poésie orale. Paris: Editions du Seuil. _______. (1987) La lettre et la voix. Paris: Éditions du Seuil. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ _______. (2000) Performance, recepção e leitura. São Paulo: EDUC. 427 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 428 UM ESTUDO DE PROPOSTAS DE LEITURA DE POESIA EM LIVROS DIDÁTICOS Maria de Lourdes Bacicheti Gonçalves33 (PG-UEM) A formação do leitor é um processo contínuo que se estende por toda vida escolar e social. Embora não se inicie na escola, é nela, formalmente, que o indivíduo recebe os alicerces para sua constituição enquanto leitor. Quando o centro da discussão é a formação do leitor e a leitura do texto literário, especificamente da poesia, discutir acerca da prática de leitura do texto literário desenvolvida pela instituição escolar é essencial, uma vez que a escola, como instituição que tem como atribuição a responsabilidade pela educação literária, utiliza, primordialmente, em seu trabalho de escolarização, para encaminhar sua prática e atingir seus objetivos pedagógicos, o texto escrito, na maioria das vezes, inserido no livro didático. É fato corrente que o ensino da leitura no Brasil apresenta resultados alarmantes. Pesquisas divulgadas por estudiosos ligados às instituições de ensino superior, bem como pelos próprios órgãos governamentais responsáveis pela avaliação do sistema educacional brasileiro comprovam-nos. Quando se trata da leitura literária, a situação se torna mais problemática. Diante das condições que se apresentam, emergem questionamentos: Existe leitura literária na escola? Se existe, como é encaminhada? Por que há tanta dificuldade na leitura de textos literários? A principal tarefa da escola é a formação do leitor, contudo seu ensino impõe determinados encaminhamentos, visto que a efetivação dessa incumbência, conforme destaca Zilberman (1990, p. 18), “[...] depende de se conceber a leitura não como o resultado satisfatório do processo de alfabetização e de codificação de matéria escrita, mas como atividade propiciadora de uma experiência única com o texto literário”. A associação da literatura e da leitura promove a legitimidade desta última. A conceitualização de leitura é bastante controversa. O trabalho que o professor realiza em sua prática em sala de aula está diretamente vinculado ao conceito que tem dessa prática. A compreensão do ato de ler em nossa sociedade está intrinsecamente ligada à 33 lourdesbaci@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 429 resolução de questões que permeiam o nosso cotidiano e ao trabalho desenvolvido pela escola, uma vez que os modelos consolidados nessa instituição passam a influenciar os modos de ler além desta. Os livros didáticos reforçam o entendimento da leitura que tem como fim a resolução de questões práticas. Zappone (2001) mostra que pesquisas realizadas em diferentes regiões do país revelam que, em relação às práticas de leitura, tanto os textos referenciais como os textos literários têm o mesmo tratamento, ou seja, são utilizados para encontrar informações ou para memorizá-las, estabelecer relações interdisciplinares ou como pretexto para elaboração de outros tipos de atividades. Em razão do caráter polissêmico do texto literário, a formação do leitor não pode se ater às formulas convencionais de leitura dos demais textos (de natureza referencial) e nem ser impositiva. O texto poético requer um tratamento próprio, sistemático e gradual, em razão de sua natureza e complexidade. Assim, embora a poesia seja um gênero menos privilegiado no ambiente escolar e, muitas vezes, não receba um tratamento metodológico adequado que contribua para o conhecimento de seu valor estético, os currículos e as diretrizes educacionais continuam valorizando a literatura e, consequentemente, a poesia, como textos fundamentais no trabalho escolar. A razão dessa valorização talvez possa ser elucidada pela compreensão das características do discurso literário e de sua importância na formação das crianças e jovens. Candido (1972, p. 806) destaca a literatura como uma necessidade universal do ser humano. “Ela não corrompe nem edifica; [...] mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Da mesma forma, Zilberman (1990, p. 13) enfatiza sua relevância ao afirmar que uma questão é fundamental e continua atual: “[...] a de que o texto poético favorece a formação do indivíduo, cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima literária, requisito indispensável a seu aprimoramento intelectual e ético”. Diante disso, uma das questões centrais do trabalho escolar é oferecer ao aluno os conhecimentos para este se torne um leitor de textos literários. A leitura de textos literários pressupõe a participação ativa do leitor no estabelecimento dos sentidos linguísticos e a ativação de conhecimentos textuais específicos. Na presença de um texto literário, o leitor precisa acionar certos mecanismos e colocá-los em funcionamento no ato de ler. Não basta que faça uma leitura superficial da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 430 obra, é necessário investigar as especificidades do texto para compreender sua estrutura, sua organização, a fim de compreender seu valor estético. Não parece, no entanto, que esses objetivos vêm sendo cumpridos, já que estudos têm mostrado a ineficácia da escola no cumprimento de sua função de formar leitores e no desenvolvimento do gosto pela leitura. O processo de formação de um usuário da língua é mediado pelo livro didático. Oferecido às instituições escolares como um dos instrumentos de trabalho do docente, ele acabou ganhando legitimidade no processo educacional, ao tornar-se, nas escolas brasileiras, o guia central do processo ensino-aprendizagem. A escolha textual, suas propostas de leitura, seus encaminhamentos de produção textual, de análise linguística foram seguidos, muitas vezes, à risca, sem questionamentos, sem análise criteriosa, provocando efeitos que se fazem sentir até hoje na sociedade. Visto como um dos responsáveis pelo fracasso escolar neste país, o livro didático passou a ser objeto de investigação, estudos e encaminhamentos tanto por parte dos educadores quanto dos próprios órgãos oficiais responsáveis pelos rumos da educação brasileira. Diante de todas essas considerações, é fundamental discutir com todos os envolvidos com as questões educacionais, sobretudo os professores do Ensino Fundamental, a respeito do material que têm nas mãos para auxiliá-los em seu trabalho, para que não se vejam como simples repassadores de propostas com as quais não comungam ou que não analisaram, não questionaram, não reformularam o projeto. Como contribuição a essa discussão, este estudo traz como especificidade uma pesquisa sobre os modos de ler a poesia propostos em duas coleções de livros didáticos, associando-os às proposições da leitura literária subjacentes na escola, tendo como objetivo investigar se as propostas de leitura da poesia lírica nos livros didáticos contribuem para a formação de leitores literários. Procura analisar se a forma como as abordagens são encaminhadas nos livros didáticos do 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental contribui para que o aluno-leitor perceba, com clareza, a estrutura que organiza o texto poético, e que constitui sua natureza específica, de forma a auxiliar em sua formação literária. Para atingir tal fim, foram realizadas pesquisas bibliográficas sobre leitura literária, sobre o papel da crítica na construção de modelos para leitura do texto literário, sobre a relação escola/livro didático e sobre a poesia lírica; investigou-se se os livros didáticos fornecem, de forma sistemática e gradual, as convenções e os protocolos de leitura do texto Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 431 poético; finalmente, procurou-se verificar se as abordagens de leitura do texto poético propostas nos livros didáticos contribuem para a formação literária. A pesquisa foi realizada em duas coleções Ler, entender, criar, de Maria das Graças Vieira e Regina Figueiredo (VIEIRA; FIGUEIREDO, 2007), da Editora Ática, neste estudo denominada Coleção 1, e Projeto Araribá (KANASHIRO, 2006), obra coletiva produzida pela Editora Moderna, denominada Coleção 2. A leitura da poesia nos livros didáticos Ao estudar o papel do livro didático e a formação do leitor, constata-se que, durante muito tempo, essa relação foi marcada por aproximações e desencontros, sabores e dissabores, que até hoje se refletem socialmente. Conforme discute Moriconi (2002), as experiências de leitura, na instituição escolar, evidenciam o interesse ou a resistência à leitura, e isto é perceptível quando pessoas afirmam que não gostam de ler, fato proveniente, muitas vezes, de experiências e práticas de leitura pouco instigadoras implementadas pela escola. A análise de livros didáticos tem evidenciado que houve avanços em muitos aspectos após o processo de avaliação a que foram submetidos, como demonstra Rangel (1998, 2005). No entanto, há ainda muitos pontos que precisam ser revistos para que eles se tornem um forte aliado do professor na aquisição da competência da leitura literária. Comprova-se que as atividades escolares que envolvem leitura no livro didático ainda precisam passar por análises e revisões para que possam dar os embasamentos necessários para a leitura eficiente de textos, conforme mostram pesquisas e artigos de estudiosos das questões educacionais (SOARES, 2001; BATISTA, 2003; SOUZA; AZEVEDO, 2004; PASSOS, 2004). A isso, podem ser acrescidas as deficiências na formação dos próprios docentes que, em alguns casos, levam a práticas que pouco têm contribuído para a leitura proficiente, visto que, se os docentes não tiverem preparados para utilizar o livro didático e superar as dificuldades que possam surgir, as falhas continuarão a dificultar a aprendizagem. Em relação às coleções analisadas, verifica-se que elas apresentam uma variedade de gêneros textuais, o que contempla, nesse aspecto, orientações dos PCNs (BRASIL, 1998), quanto à importância da escola como espaço singular, legitimado para a formação de leitores Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 432 e que precisa colocar, nas mãos de seus alunos, uma ampla variedade de textos, sobretudo de textos literários. O estudo dos textos que fundamentam a proposição das atividades nos livros didáticos examinados, considerando-se, nesta pesquisa, os textos principais (aqueles que servem como textos-guia de cada unidade e foram focos do presente trabalho) e não os textos secundários ou complementares (aqueles propostos somente para leitura ou como pretextos para outros fins), revela o registro de uma ampla variedade de textos oriundos das mais diversas fontes: textos jornalísticos, de divulgação científica, instrucionais, literários, pinturas, fotos, histórias em quadrinhos, entre outros. Ante a proposta de trabalhar com diferentes tipos de textos, percebe-se que há preocupação dos autores das duas coleções dos livros didáticos em oferecer o acesso a uma ampla variedade de textos que circulam socialmente, assim contribuindo para que o aluno diferencie tipo de gênero e observe os usos concretos de cada gênero. As coleções apresentam a temática por meio de uma coletânea de textos variados, que parece ter como fim despertar o interesse do aluno para leitura. Os textos têm origem no uso concreto em nossa sociedade letrada. Destacam-se, sobretudo, textos extraídos de jornais e revistas de forte circulação no país e, quando literários, escritos por autores consagrados. Em relação aos textos literários, nas coleções analisadas, seus livros contemplam, primordialmente, aqueles considerados pela crítica literária como textos de qualidade indiscutível. Alguns autores, como Luis Fernando Veríssimo, Rubem Braga, Vinicius de Morais, José Paulo Paes, Cecília Meireles e, em especial, Drummond de Andrade, são contemplados com diferentes textos ao longo dos volumes analisados. Embora os autores dos livros didáticos pesquisados procurem colocar à disposição dos alunos e professores textos poéticos aprovados pela crítica, tais textos representam uma minoria nos livros didáticos, já que muitos poemas, neles presentes, são utilizados para diferentes fins e não para o prazer, a fruição e o conhecimento de sua tessitura, ou seja, para um estudo mais profundo de suas especificidades e de sua composição. Quando são apresentados como textos principais da unidade, para um estudo mais aprofundado, muitas vezes, não há um trabalho sistemático de sondagem de seus elementos essenciais. As abordagens são superficiais e não colaboram para sua apreensão e análise abrangente. O estudo de tais elementos é realizado, como forma de exemplificação, por meio de diferentes Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 433 textos, no entanto, nos textos-base, as múltiplas possibilidades de leitura que eles oferecem não são examinadas. Lajolo (1993) e Colomer (2001) reforçam a compreensão desse aspecto ao enfatizarem que não basta a presença de bons textos para que a prática da leitura tenha resultados satisfatórios, visto que “[...] o texto tido como bom pode ser diluído pela perspectiva de leitura que a escola patrocina através das atividades com que ela circunda a leitura” (LAJOLO, 1993, p. 45). Colomer (2001) acrescenta que é necessário que o professor realize um trabalho que leve os estudantes a refletirem sobre os textos e que eles possam expressar suas opiniões e ideias. Se, até pouco tempo, as questões de compreensão e interpretação propostas nos livros didáticos eram fechadas, e o leitor, diante delas, tinha um papel passivo, verificam-se, nos livros analisados, mudanças que, ainda que necessitem de novos exames, encaminhamentos e reformulações para um diálogo mais efetivo com o leitor, apresentam tendências positivas. O exame realizado nesses volumes evidencia que, nas propostas de leitura, ainda se observam questões que não mobilizam e nem contribuem para o desenvolvimento de habilidades necessárias ao desempenho eficaz na leitura, já que estas são apoiadas exclusivamente no escrito, em atividades de decodificação do texto ou de reprodução de conteúdos, o que coincide com os resultados dos estudos desenvolvidos por Souza e Azevedo (2004). No entanto, em muitas questões, prevalecem proposições que exigem que o leitor discuta o texto, faça afirmações inferenciais, extrapole os limites do texto e cujas respostas vão exigir reflexão, julgamento e habilidades argumentativas. Essas questões requerem que o aluno-leitor busque em seu repertório uma série de informações, que faça associações para que possa compreender o texto e, ainda, que ative informações explícitas e implícitas obtidas por intermédio das marcas e pistas textuais, para que ele possa, mediante esse processo, elaborar informações novas e, desse modo, reconstruir os possíveis sentidos. Apesar de o método de abordagem do texto poético ser adequado, ou seja, supor atividades cognitivas importantes, como a inferência, a comparação, a reflexão, entre outras, constata-se, entretanto, que as questões que promovem tais atividades não apresentam uma boa gradação com relação ao conteúdo que exploram. Desse modo, as propostas didáticas, evidenciadas nas questões, pressupõem que o aluno faça uma série de inferências sem que tenha subsídios para tal tarefa. Se os elementos que caracterizam o poema estão na linguagem Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 434 e, como enfatiza Lajolo (1993, p. 45, grifos da autora), “[...] na medida em que a linguagem é uma construção da cultura, para que ocorra a interação entre o leitor e o texto, e para que essa interação constitua o que se considera uma experiência poética”, é necessário que o leitor possa distinguir e reconhecer os elementos de linguagem utilizados pelo autor para a composição de seu texto. Assim, as abordagens de leitura de tais textos devem contribuir para que os alunos-leitores conheçam e tenham percepção desses elementos. A poesia lírica requer de seu leitor a ativação de conhecimentos de diferentes campos. A crítica literária tem apontado os pontos essenciais que têm que ser observados na análise desse gênero textual, sem esquecer que a literariedade de um texto deve ser inscrita na experiência de leitura, conforme discutem os teóricos da Estética da Recepção, entre eles, Jauss (1994) e Iser (1996) e, para isto, a interação leitor/texto é fundamental. Desse modo, para cumprir seu papel em relação à leitura literária, os livros didáticos precisariam apresentar um número maior de questões, de modo a abarcar os diferentes níveis de composição dos textos que pretendem colocar como objeto de leitura, contemplando aquilo que Soares (2001, p. 44, grifos da autora) recomenda em relação à leitura de um texto literário: o exame “[...] daquilo que é textual e daquilo que é literário”. Realizada dessa maneira, a forma de abordagem do texto seria produtiva, porque, nesta sociedade tecnológica, permeada de informações que exigem posicionamento pessoal, é cada vez mais importante, nas mais diversas situações, identificar coisas, entender fatos, selecionar valores, verificar informações, ter o domínio sobre determinadas normas gerais de classificação, saber buscar e analisar, interpretar informações e selecioná-las entre as inúmeras possibilidades que a realidade apresenta ao indivíduo. Compreender um texto é um processo construtivo, participativo que não se restringe a copiar ou extrair informação do texto, nem mesmo envolve apenas conhecimento linguístico. Para que a experiência com a leitura de textos literários, particularmente de poesia, seja significativa, o trabalho pedagógico que circunda o uso desse tipo de texto deve cativar o aluno para que ele perceba, ao ler, o valor dessas produções. Para atingir esse fim, deve ser planejado de tal modo que o aluno possa tomar conhecimento do texto, penetrar nele e compreendê-lo. Contudo, tem-se consciência de que a escola está inserida numa sociedade na qual as condições sociais não contribuem para a valoração e experiência efetiva com esse gênero textual. A questão se torna problemática quando se verifica que, ao inserir diferentes Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 435 gêneros textuais no livro didático, os literários estão, gradualmente, perdendo espaço, a ponto de representarem uma percentagem menor em alguns volumes das coleções analisadas. Os textos literários precisam continuar alicerçando a vivência da criança e do adolescente de forma intensa, porque a literatura, ao mesmo tempo que proporciona conhecimento de mundo, oferece prazer e, desse modo, contribui, como nenhum outro texto, para a experiência existencial do leitor, razão pela qual não pode faltar em seu universo. O exame de como se caracteriza a leitura da poesia lírica nas coleções revela que os poemas continuam a ser um gênero literário pouco valorizado no espaço do livro escolar, não pelo número de textos nele inserido, já que eles têm presença nos diferentes volumes, porém, sobretudo, pelo número reduzido de unidades que se dedicam a um trabalho efetivo de sua leitura. Não há, ao longo de cada coleção examinada, uma proposta contínua e sistemática de apreensão de seus elementos fundamentais (gráficos, sonoros, sintáticos, lexicais e semânticos). Os códigos e os protocolos da poesia lírica são apresentados e reforçados, de forma gradual, em poucas unidades das coleções. Falta, além disso, um trabalho mais aprofundado que mostre os efeitos de seu uso nos poemas, como este contribuiu para sua expressividade, como a forma e o conteúdo se unem para conduzir o leitor a instituir o sentido do texto. Se, no primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental, a proposta de leitura da poesia lírica tem como objetivo intensificar o prazer e o encantamento que a poesia oferece: a leitura-prazer, no terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental, é preciso, gradualmente, trabalhar a especificidade do texto lírico de tal forma que o prazer da leitura não se perca. É relevante também aprofundar o estudo das convenções e dos códigos da poesia, da organização de sua estrutura, não apenas com preocupação de apropriação da metalinguagem relativa ao gênero, mas de forma que esse estudo contribua para que os alunos possam perceber como cada elemento auxilia para o significado do todo, especialmente, para seu aspecto lúdico, mágico e criativo. Nas duas coleções analisadas, apesar das poucas unidades dedicadas ao estudo dos poemas, percebe-se que há preocupação com a escolha dos textos e com a adequação do poema à faixa etária a que se destina. No terceiro ciclo do Ensino Fundamental, os poemas primam pela ludicidade e sonoridade. No quarto ciclo, são marcados por recursos expressivos e imagens que exigem um leitor com mais domínio das convenções desse gênero textual. No Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 436 entanto, se essa adequação é visada na seleção do poema, o mesmo não ocorre em relação às questões propostas, uma vez que, a partir dessa fase, as abordagens de leitura deveriam apresentar um processo gradativo no grau de complexidade, tanto em relação ao conteúdo quanto aos aspectos ligados à forma. A investigação das coleções indicou que, ao abordar os textos, a discussão do tema tem primazia em relação aos demais aspectos. O tipo, o gênero e seus usos efetivos são discutidos com pouca frequência. Quando se trata dos elementos formais – verso, estrofe, rima – não se examinam o porquê de sua utilização e ocorrência e a importância desses recursos para a produção de significação dos poemas. A discussão gira em torno de seus conceitos. Amora (1971) adverte que uma obra literária só pode ser compreendida pela investigação integral de suas partes. Desse modo, as propostas de leitura do texto poético dessas coleções vêm reforçar que o exame de apenas alguns de seus elementos não contribui para a compreensão do todo poético. Uma estratégia bastante produtiva é a entrada cognitiva no texto por meio do título, um elemento fundamental para a produção ativa e propositiva de sentido do texto. Na Coleção 1, o título é trabalhado no primeiro poema do primeiro volume, no entanto esquecido nos demais. Na Coleção 2, é explorado em algumas das propostas de leitura de modo a conduzir o aluno a levantar uma série de hipóteses que ele poderá substituir ou acrescentar após a leitura global. Quando o título é estudado, os autores propõem uma série de atividades envolvendo-o: analisá-lo, justificá-lo e substituí-lo, solicitando ao aluno que observe que efeito(s) as alterações provocam. Na Coleção 1, constata-se que não há um planejamento quanto ao ensino gradual das convenções e dos códigos literários. Não há uma proposta efetiva e contínua de compreensão das especificidades do modo lírico. Seu estudo tem início, na 5ª série, com a noção de poema, verso, estrofe e rima. Esse trabalho é interrompido na 6ª série, já que o estudo da poesia não é privilegiado no volume para estudo. A poesia é utilizada apenas para outros objetivos e, com isso, priva-se o aluno do contato e trabalho com esse gênero. As convenções da poesia lírica são retomadas na 7ª série, no entanto, sem aprofundamento e sem que se estabeleça sua relevância para a expressividade do poema. Introduzem-se as noções de aliterações, assonâncias, os efeitos das repetições e dos neologismos. Na 8ª série, discute-se a poesia lírica em duas unidades. Na sexta unidade, são Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 437 trabalhadas as noções de linguagem denotativa/conotativa; objetiva/subjetiva; linguagem figurada; neologismos. Na décima unidade, discutem-se a sonoridade, a musicalidade, o uso da pontuação e dos elementos gramaticais nos poemas. Retoma-se a noção de rima e versos, ampliando-se a compreensão desses conteúdos e trabalham-se as figuras de linguagem. A deficiência está no fato de que, em vez de promover a compreensão de como as figuras colaboram para os efeitos nos poemas principais em exame, essas noções são trabalhadas em texto informativo e em trechos de poemas. Com isso, perde-se o momento oportuno de mostrar aos alunos como os poemas são construídos e que recursos são empregados nesse processo. Embora apresente alguns pontos a reavaliar, se cada volume da coleção apresentasse uma proposta de estudo da poesia como feito no volume da 8ª série, a coleção poderia contribuir para um estudo mais sistematizado do modo lírico. Reafirma-se, dessa forma, a importância de complementação das lacunas relativas às especificidades de tal gênero. Na Coleção 2, o estudo da poesia está ancorado num planejamento para a compreensão e aprendizagem de seus códigos e suas convenções em cada unidade que se propõe ao seu exame. A proposta de leitura retoma e reforça os conteúdos de diferentes formas, bem como enfatiza sua ocorrência em textos variados, num processo gradativo. No volume destinado à 5ª série, trabalha-se o conteúdo concomitante à discussão de aspectos formais. A proposta tem início com a discussão do eu-lírico, ao mostrar como este se configura no poema quando expressa emoções, sentimentos e impressões, contribuindo, com isso, para o conhecimento da realidade e do ser humano. As noções de verso e estrofe e seus tipos são trabalhados por meio de quadros explicativos e de sua ocorrência nos poemas, o mesmo acontece com a contagem de sílabas poéticas dos versos nos poemas em estudo. Os tipos de versos, o ritmo, a rima e os efeitos provocados pela disposição dos versos nos poemas são focos de atenção, no entanto faltou um exame mais consistente de seu emprego nos diferentes textos analisados na unidade. Os recursos de repetições (assonância, aliteração) também são apresentados nos quadros explicativos e são discutidas as relações que mantêm no poema. Na 6ª série, retoma-se o conceito do eu-lírico, bem como sua manifestação nos textos poéticos, porém o interesse volta-se para as figuras de linguagem, ao trazer à reflexão Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 438 como seu uso contribui para a compreensão dos textos, para o aprimoramento e a beleza da linguagem e para o sentido simbólico das palavras e dos poemas. Os conceitos de eu-lírico, verso, estrofe e rima são revistos no volume destinado à 7ª série, contudo não são examinados nos poemas da unidade. Nesse volume, o uso e a ocorrência de outros recursos poéticos como a enumeração e a repetição de estrutura sintática são introduzidos como forma de imprimir expressividade, ritmo e carga emotiva ao texto. Da mesma forma, as atividades conduzem à análise da força significativa da pontuação e das figuras de linguagem, as quais dão sustentação aos poemas. Os poemas visuais têm destaque no volume da 8ª série, em que se privilegiam os resultados da organização e da forma para seu sentido. Retomam-se os efeitos provocados pelas repetições e, sobretudo, trabalham-se as figuras de linguagem em diferentes poemas. A coleção discute, de modo contínuo, os recursos da linguagem poética, dando ênfase às repetições (ritmo, aliterações e assonâncias), recursos diretamente associados ao ritmo que dão musicalidade ao poema. Tais recursos são observados tanto na capacidade sonora da frase como na possibilidade de seu arranjo. As rimas, as estrofes, as sílabas poéticas, os tipos de versos, aspectos discutidos no volume da 5ª série, são, entretanto, praticamente ignorados nos demais volumes. As figuras de linguagem recebem tratamento especial nessa coleção. Esse é um ponto positivo, uma vez que, conforme discutem Amora (1971) e Culler (1999), é por meio delas, sobretudo, que se renova a linguagem, transmitem-se sugestões e conteúdos intuitivos. Por meio delas, o poeta demonstra ou dá realce a aspectos da realidade não percebidos pelas demais pessoas que, desse modo, passam a observá-los e ver seus significados em toda profundidade, ampliando a visão comum e fornecendo um entendimento imaginativo às incessantes indagações humanas. Elas contribuem para o enriquecimento artístico do texto, ao dar à palavra um novo dimensionamento, ao gerar ideias e emoções. Apesar de trabalhar insistentemente as figuras de linguagem em diferentes poemas, a coleção apresenta uma lacuna ao não trabalhar sua força significativa nos estudos de textos de alguns poemas principais de unidades. A coleção tem uma boa sequência de trabalho com a poesia, apresenta explicações teóricas, mesmo que redutoras, e exemplifica e reforça o uso de seus códigos e convenções. Trabalha o entrelaçamento entre forma e conteúdo, porém precisa promover um exame mais Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 439 consistente dos diferentes níveis que concorrem para o significado do poema, sobretudo naqueles textos selecionados para um estudo mais aprofundado, ou seja, nos textos principais, em lugar de utilizar uma série de textos para exemplificar as características do modo lírico. Por apresentar os códigos e protocolos da poesia lírica em cada volume e reforçá-los, os autores da coleção pressupõem que o aluno já internalizou tais conteúdos. Desse modo, deixam, na proposta textual, muitas lacunas para o aluno preencher. O ponto mais problemático da coleção está no fato de que há uma única unidade destinada ao estudo desses recursos e convenções durante o ano letivo. A Coleção 2 poderia trazer forte subsídio para formação do leitor literário se o tratamento metodológico dos textos poéticos fosse ampliado e se a proposta não estivesse restrita a uma única unidade anual. Trabalhar a poesia em uma única unidade em cada volume não é o suficiente para formar leitores hábeis desse gênero, que é complexo, possui especificidades peculiares que precisam ser do domínio do leitor para que possa atribuir sentido ao texto. Nas duas coleções, a exploração do vocabulário é realizada por meio de sinonímia. Muitas vezes, não é discutido seu aspecto de funcionamento, como o figurado ou metafórico, ou o sentido das palavras que formam as frases e os textos produzidos, visto que as muitas situações de produção colaboram para o estabelecimento da significação. Da mesma forma, a disposição gráfica e, sobretudo, os tipografismos (espaços brancos da página, espaço entre as linhas impressas, o tipo de letra empregado, o uso de letras maiúsculas e de minúsculas, a utilização de grafismos), no texto lírico, são discutidos de forma superficial, o que representa uma ruptura, visto que, como ressalta Aguiar e Silva (1984, p. 593), eles mantêm correlação com os códigos e as convenções da métrica da poesia lírica, “[...] mas outros parecem ter uma função semiótica autônoma em relação quer às estruturas lingüísticas, quer às regras e convenções métricas, exercendo-se essa função sobre a globalidade da estrutura textual”. É o caso da poesia de vanguarda, sobretudo da poesia concretista. Os livros didáticos não discutem esses aspectos que são fundamentais para a produção de sentido do texto. O livro didático para ser um forte aliado do professor e aluno precisa contemplar atividades de leitura que ofereçam oportunidades para que o aluno adquira as competências leitoras exigidas para o grau de proficiência que se deseja levá-lo a atingir. Da investigação das propostas de leitura da poesia lírica nas coleções, verifica-se que a dificuldade de formar Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 440 leitores da poesia advém, com frequência, do fato de que não há, em muitos livros didáticos, um processo contínuo de trabalho com as convenções e os códigos do gênero em estudo. O estudo de texto é redutor. Não há um estímulo ao entendimento efetivo das entrelinhas do texto poético. Como mediador das práticas leitoras, o professor tem um papel decisivo no êxito dessa tarefa, porque lhe cabe analisar como estão apresentadas essas propostas, se elas promovem a experiência contínua com as diferentes categorias textuais, de modo que esse leitor, em processo de formação, institua elos significativos entre a leitura e as situações comunicativas e, caso verifique que isso não se efetiva, precisa buscar formas de suprir as lacunas que o livro didático apresenta. O processo de avaliação dos livros didáticos implementado pelo MEC, por meio do PNLD, embora ainda não tenha promovido, em tais livros, um nível de leitura capaz de formar leitores literários, é uma realidade importante, uma vez que se consegue constatar resultados satisfatórios em muitos campos. Se até alguns anos, como apontam, entre outros estudiosos, Brandão, Martins (2003), Souza, Azevedo (2004) e Alves (2005), a maior parte dos textos dos livros didáticos era fragmentada, utilizada como pretexto para diferentes finalidades, cujas atividades giravam em torno de informações literais (reproduções de ideias) e, sobretudo, de análises gramaticais, dentro de esquemas previamente determinados, já se vislumbra algum avanço. Da mesma forma, a diversificação e a heterogeneidade de gênero e de tipo de texto têm sido alvo de atenção maior e fazem com que as coleções sejam representativas do mundo da escrita. O leitor também está recebendo um tratamento melhor, porque sua participação está sendo mais solicitada, embora ainda seja verificada, em algumas abordagens, apenas sua concordância. Diante do que foi observado e exposto, ratifica-se a necessidade de continuar as discussões sobre o papel dos livros didáticos no processo ensino/aprendizagem, só assim haverá um esforço conjunto de todos os envolvidos para a melhoria e a adequação desses recursos aos objetivos educacionais. É necessário mobilização de todos os órgãos ligados ao ensino para pensar e colocar em prática propostas efetivas de preparação de professores em todos os níveis de ensino, com vistas à realização de estudos e ao oferecimento de suportes teóricos e práticos para que a ação docente seja consciente e alicerçada em bases consistentes, para que o docente não use o livro didático como guia do trabalho em sala de aula, mas, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 441 realmente, como um recurso disponível que favoreça a formação de leitores aptos para a leitura de textos poéticos, leitura que faça a ponte entre o universo textual e vivencial. Como se tentou demonstrar, a leitura literária é feita de protocolos e convenções que precisam ser ensinadas. Como o livro didático é o principal recurso que o docente tem para a realização de seu trabalho, ao utilizá-lo, ele deve estar atento ao modo como é encaminhado o trabalho com a leitura dos textos, sobretudo da poesia. Todos os comentários reforçam o posicionamento de Lajolo (1998) quando enfatiza que os leitores só obterão êxito em sua tarefa de atribuir sentido aos textos literários se a escola lhes proporcionar um bom domínio das convenções e dos protocolos do texto literário. Os professores devem procurar conhecer o que crítica literária tem apresentado às instituições escolares em relação à leitura de tais textos, uma vez que têm suas especificidades que exigem um direcionamento próprio. Entre outros teóricos, Aguiar e Silva (1990), Candido (1993), Aguiar (2000) e Hansen (2005) expõem aspectos que devem ser investigados na leitura de uma obra para que ela revele sua natureza literária. Mostrar ao leitor iniciante como ler literariamente é tarefa da escola e, se esta quiser, efetivamente, formar leitores literários, precisa estar atenta aos encaminhamentos propostos para a leitura desses textos e buscar superar as lacunas e os equívocos que afastam alunos do texto literário e, sobretudo, do mais poético dos textos, a poesia. Conclusão Ao longo deste estudo, procurou-se, pela via da teoria literária, a compreensão dos aspectos essenciais que embasam a leitura literária e, nesta, a leitura do texto poético para a fundamentação das análises desenvolvidas no presente trabalho. O texto literário foi, durante muito tempo, presença obrigatória nos livros didáticos produzidos para a educação brasileira, em razão da compreensão corrente de que eram modelos de leitura e escrita a serem seguidos. O estudo efetuado nas coleções vem confirmar outras pesquisas que mostram que, cada vez mais, a literatura perde espaço, sobretudo à medida que avança nas séries do Ensino Fundamental. Sua presença já não faz parte de práticas educativas e cotidianas no ambiente escolar: os textos literários vêm disputando espaço com outros textos, primordialmente com aqueles que reiteram o universo sócio-cultural do educando. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 442 A preocupação com a diversidade de tipos e gêneros textuais, em particular daqueles com mais presença no universo letrado, é clara nas coleções analisadas. Este é um aspecto positivo, em função de sua necessidade e importância social e porque a compreensão da diversidade textual, tanto oral como escrita, pressupõe o desenvolvimento de habilidades que devem ser objeto de ensino, visto que cada gênero requer uma abordagem específica e o estudo dos códigos e dos protocolos regula seu sentido institucional. Ao trabalhar a diversidade textual, no entanto, os textos literários, especialmente os poéticos, têm sido relegados a um plano secundário nos livros didáticos, sendo privilegiados em poucas unidades de cada volume como textos de estudo. Este é um fator preocupante, não se pode esquecer que os textos literários precisam ser valorizados no trabalho escolar por serem suportes que possibilitam instalar condições para uma abordagem mais completa do humano e para o exercício do diálogo. A leitura da poesia lírica exige que todos os elementos estruturais do texto sejam levados em consideração e que o leitor impulsione seu repertório, ou seja, seus conhecimentos textuais e de mundo, para desvelar e vivenciar as impressões, os sentimentos manifestos pelo texto e os prazeres que ele lhe desperta. As investigações realizadas revelam que não há uma proposta metodológica clara em relação à leitura do texto poético nos livros didáticos examinados, que tenha como fim levar o aluno do terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental ao domínio dos protocolos e das convenções da poesia lírica, de modo a transformá-lo em um leitor proficiente desse texto poético. Em primeiro lugar, porque não há um trabalho contínuo que favoreça, de forma gradual e sistemática, a compreensão progressiva das especificidades desse gênero textual, já que estas são pouco discutidas e diluem-se ao longo das coleções, sem que se verifique o entrelaçamento dos diferentes aspectos envolvidos na construção dos sentidos do poema. Em segundo lugar, porque as atividades relacionadas aos textos ainda precisam ser reavaliadas por não promoverem uma reflexão sobre os diferentes aspectos que interagem para a constituição de seu sentido. As abordagens de leitura dos textos poéticos nos livros didáticos das duas coleções examinadas embora apresentem e abordem as especificidades do gênero, elas não conduzem o aluno a examinar, de forma concreta, por exemplo, como os códigos contribuíram para a construção poética, como a organização sintática interferiu no estabelecimento do sentido do texto, como o arranjo das palavras ou letras no papel Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 443 influenciou o efeito do poema, como a sonoridade concorreu para legitimar as ideias e fazer aflorar emoções As abordagens priorizam discussões sobre a temática, esquecendo que estas só se sustentam e ganham significação com o exame do todo. Com isso, diminui-se o valor literário do texto, uma vez que não se compreende o porquê de tal trabalho e sequer o(s) significado(s) dos textos. Conforme constatado nas coleções analisadas, em alguns momentos, o leitor parece ganhar espaço para expor seus pontos de vista e para trilhar, de modo mais autônomo, os caminhos do texto. Entretanto, em outros momentos, percebe-se que ainda estão presentes maneiras de ler que pressupõem que o texto seja facilmente entendido pelo aluno; concepções acerca de leitura alicerçadas em atividades mecânicas, independentes do conteúdo do texto, que não abrem espaço para um diálogo efetivo. Dessa forma, perde-se o fio condutor que instigaria o sujeito-leitor a construir chaves que abririam as portas para a compreensão global do texto. A pesquisa efetuada nas coleções evidenciou que os livros didáticos têm avançado em relação aos textos que os compõem. A qualidade estética dos textos foi levada em consideração na produção das duas coleções. Os textos literários, presentes nos diferentes volumes, foram escolhidos tendo em vista seu valor estético, porque priorizam muitas leituras, embora nem sempre as propostas apresentadas pelos autores das coleções examinadas explorem as possibilidades mais relevantes para a interpretação do texto. Os autores dos textos que compõem esses livros didáticos são reconhecidos e valorizados como grandes representantes da cultura literária e muitos deles repetem-se ao longo da coleção. Isso, por um lado, evidencia sua importância e garante a qualidade do material colocado à disposição do aluno; por outro lado, leva o aluno a compreender que só determinados autores são representantes da produção estética e isso o priva, como leitor, do conhecimento da diversidade literária existente. Ao analisar a presença dos textos poéticos nas coleções, verificou-se que, em termos quantitativos, embora eles constem em várias unidades, são utilizados para diferentes objetivos. Sua presença está vinculada, ainda, a propostas de produção de textos, ao estudo de aspectos linguísticos, entre outras finalidades. A poesia continua a ser tratada como um gênero menor, fato comprovado pela quantidade inexpressiva de proposições de sua leitura nessas coleções. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 444 Este estudo reafirma, ainda, que a leitura literária precisa ser ensinada por meio de um trabalho sistemático e gradual. Para isso, os protocolos e as convenções que regem o funcionamento da literatura precisam estar presentes no livro didático. É necessário priorizar estratégias que conduzam o aluno-leitor a examinar como eles se manifestam no texto literário. Somente com a apropriação de habilidades, códigos, expectativas e conhecimentos dos elementos que interferem no sentido literário de um texto é que seus leitores podem assumir a posição de interpretá-lo. Ao analisar as formas como os livros didáticos encaminham a leitura, observa-se que, embora eles tenham avançado em muitos aspectos, ainda estão longe de atingir tais metas. Por isso, precisam ser objeto de análise constante, sobretudo por ser o recurso de leitura de textos escritos mais presente em sala de aula. De tudo isso, fica a necessidade de as instituições escolares investigarem, continuamente, o livro didático e seu uso, bem como suas práticas educativas, de modo que se construam novos encaminhamentos que possibilitem um processo efetivo de aquisição da leitura, já que, cada vez mais, com as tecnologias e as exigências do mundo contemporâneo, a leitura assume uma posição importante na vida humana, e a escola, como instituição que tem um papel fundamental na formação do leitor, precisa estar atenta aos modos como tem desempenhado tal tarefa. Bibliografia AGUIAR, Flávio. As questões da crítica literária. In: MARTINS, Maria Helena (Org.). Outras leituras: literatura, televisão, jornalismo de arte e cultura, linguagens interagentes. São Paulo: Senac São Paulo/ Itaú Cultural, 2000. p. 19-35. AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. v. 1. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1984. ______. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade Aberta. 1990. ALVES, José Helder Pinheiro. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 447 ABOIO: POÉTICA DE UM CANTO DE TRABALHO Maria Laura de Albuquerque Maurício (PG/PROLING-UFPB) O Nordeste desperta sua gente No aboio sonoro do vaqueiro O vaqueiro é o símbolo do Nordeste Cava a terra, prepara bebedouro Dá remédio ao garrote, laça touro, Faz gibão com a pele, curte e veste, Emburaca no meio do agreste Desviando-se de espinho de facheiro... Pega a pá, a enxada, e faz barreiro... Bota cerco em garrote experiente, O Nordeste desperta sua gente No aboio sonoro do vaqueiro (OLIVEIRA DE PANELAS) O aboio do vaqueiro nordestino é um canto de trabalho rural, um canto ritualístico, em que se entroniza a voz poética difundida oralmente em estrutura de versos que desencadeia a memória e o improviso em linguagem próxima à poética da cantoria. A poética do aboio apresenta vários eixos, tais como: • O aboio de campo (gado) – cuja característica é ser o canto de trabalho em que o vaqueiro tange o gado ao seu destino; • O aboio de engenho de cana-de-açúcar (bestas) – este aboio de besta era cantado nos engenhos em que era necessário o revezamento dos animais no período de trabalho, principalmente durante a moagem. O revezamento se dava de três em três horas, pois se tratava de um trabalho extremamente pesado e cruel, porque as bestas faziam circular a almanjarra. Segundo Gilberto Freyre (2004, p. 106), “a besta de almanjarra foi um verdadeiro mártir da cana-de-açúcar”. • Aboio versado • O aboio pé-de-serra – que tem uma função semelhante ao aboio de campo • O aboio de vaquejada • Aboio de roça Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 448 Segundo Araújo (2007, p. 134), o aboio de roça é uma forma de canto de trabalho em forma de dueto. Com linha melódica mais triste do que o aboio de gado. O aboio versado é aquele que o vaqueiro canta no trabalho para conduzir o gado e tem uma estrutura poética específica própria para tanger o gado. O aboio de vaquejada é estilizado - não tem a função de canto de trabalho tradicional do campo, é um trabalho midiático, suporte das vaquejadas Dentre os aboios citados, o aboio de campo além de ser um canto de trabalho, tem mais liberdade de ação, o vaqueiro modula a voz em tons e semitons, aproximando-se de tons mais graves e com extensão vocal maior. Isto é comprovado por depoimentos tais como da senhora Rosa Moraes dos Santos, moradora da cidade de Malta, no sertão da Paraíba, que afirma que “sabia que Pedro Migué tava na redondeza porque eu escutava o aboio”. O aboio numa perspectiva de poética tradicional, como um canto de trabalho, tem a função de conduzir o gado, a boiada ao seu destino. Predomina no final de cada estrofe do aboio, um prolongamento marcado pelas vogais - Ôi, Êi – suporte necessário para o aboiador respirar para conseguir prolongar-se mais. Tal prolongamento pode ser observado nas estrofes que seguem: Eu digo com todo o respeito Que Zé Preto é meu irmão Ele deixou de tomar cana Misturada com limão Mai o véio é apaxonado Por mulé dos cabelão Ôi... (DEDÉ DE SALGADO, 2009)34 Naquele tempo passado O gado era crioulo A carne era mais gostosa O leite mais saboroso Cavalo era mais forte Vaqueiro era mais jeitoso Êi... (ZÉ PRETO, 2006)35 34 Aboiador da cidade de Salgado de São Felix - PB Zé Preto, aboiador tradicional da cidade de São José dos Ramos, da região do Agreste e Brejo Paraibano e na Microrregião Agro-Pastoril do Baixo Paraíba.O município está incluído na área geográfica de abrangência do semiárido brasileiro. 35 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 449 Câmara Cascudo (2002, p.5) conceitua “o aboio [como] um canto entoado sem palavras, pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado”. A definição de que o aboio seria “um canto entoado sem palavras, marcado exclusivamente em vogais” se refere a um aboiar mais tradicional. Lembra o folclorista que no Brasil passou a existir também o aboiar em versos, isto é, poemas de assunto pastoril provenientes das regiões do Minho e da Ilha da Madeira. Na fazenda Pilões - município de São José do Brejo do Cruz, sertão da Paraíba -, o vaqueiro João Maria Pereira da Costa, quarenta e seis anos de idade e vinte e sete anos de trabalho com o gado embora não faça o aboio versado entoa um canto sem palavras, alto, longo e triste e define a função do aboio: como canto “pra chamar o gado e o gado vem. O gado atende a pessoa”. Mário de Andrade na Missão de Pesquisas Folclóricas chegou à fazenda São José no município de Patos no estado da Paraíba para registrar o trabalho de alguns vaqueiros no mês de abril de 1928. Encantado com o grito-lamento do vaqueiro nordestino, Mário de Andrade assim diz: “foi quando se escutou um grito que subia, um grito sobre humano, agudíssimo, claro, tão nítido que feria, tão forte que dominou a voz dos bois”. O aboio entoado pelos vaqueiros da Missão de Pesquisas Folclóricas não é tão praticado atualmente, contudo verifica-se que é um grito longo, bem característico da caatinga na pega do gado barbatão, gado bravo solto nas caatingas, difícil de pegá-lo. Encontram-se pouquíssimos vaqueiros entoando esse canto, contudo na cidade de Malta conseguiu-se encontrar Pedro Miguel Filho (Doga) que entoa esse canto, pois já ouviu do pai que era um vaqueiro nascido no final do século XIX e que tinha na memória os aboios tradicionais. Entretanto, a maioria dos vaqueiros, atualmente, canta o aboio versado. A preferência por este tipo de aboio se dá porque eles lidam com o gado mais manso e o espaço da criação é bem menor do que o espaço tradicional. Com o ritmo do gado para uma produção industrial, como os grandes matadores, houve uma substancial mudança no trabalho dos vaqueiros, visto que as fazendas industrializadas não usam mais o vaqueiro como condutor. Além do mais, com as mudanças sociais no campo não há mais grandes fazendas, muitos alqueires foram reduzidos a pequenos hectares que representam uma pequena demanda de gado. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 450 Câmara Cascudo, nos anos quarenta, sinalizou questões cartográficas definidas pelo uso do arame que deu ao vaqueiro, pela primeira vez, a impressão dominadora da posse alheia, a imagem do limite. Esse limite decretou à apreensão das boiadas em percursos longos e como conseqüência a redução do canto do trabalho, por isso, torna-se cada vez mais difícil encontrar aboiadores no exercício desse canto. Contudo, como o estado da Paraíba é de pequena pecuária é mais fácil encontrar o aboio como um documento vivo de práticas de trabalho tradicionais. Muitos aboiadores definem em aboio, formas da tradição, como se pode constatar no exemplo que se segue: É mameleiro pendido É imbuzeiro virado O repente nordestino E a gente chamando o gado. Êi... (ZÉ PRETO, 2004) Vesti gibão 30 ano Foi o que tinha vontade Montando em burro manhoso Matei a minha saudade E amando mulé nova Desfrutei a mocidade Êi... (ZÉ PRETO, 2006) Estes vaqueiros apresentam uma variação do aboio quanto à forma poética e quanto ao sentimento lírico; eles revelam a subjetividade de um sujeito social isolado, em seu trabalho, no campo e facilmente percebe-se poéticas diferentes, O aboio cantado no amanhecer é completamente diferente do aboio cantado no crepúsculo, quando os vaqueiros já cansados do trabalho no campo, trazem o gado de volta ao curral, Os temas mais recorrentes no aboio são: a mulher, a saudade, o heroísmo, a coragem, o machismo e a morte. Observe-se questões identitárias de gênero. Sabe-se que a poética do aboio é, na grande maioria, masculina, pelo exercício do trabalho, Surge pouco a pouco aboiadoras, geralmente pequenas fazendeiras, que não tem como profissão ser vaqueira, mas que seguem Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 451 a idéia do aboio, como memória social dos homens da família. Entretanto, pode-se pensar numa poética de gênero, visto que os aboios cantados por mulheres focam mais em temas sentimentais, como por exemplo a saudade. Há uma aboiadora Lila36 (2009) que versa sobre o tema saudade, enquanto o aboiador Orlando Otávio (2008) versa sobre o heroísmo. Na terra da São José Todo filho tem saudade Vem a festa do aboio Com muita simplicidade Vê os vaqueiro aboiar E viva a festa do gado. (LILA, 2009) O vaqueiro aboiador Na caatinga é um doutor Além de tombar o gado Ainda é cantador No cavalo é um maestro Na garganta é um tenor. (ORLANDO OTÁVIO, 2008) Desta forma, abre-se um diálogo entre formas identitárias de gênero que brota da criatividade do vaqueiro em suas várias linguagens. A linguagem visual, a gestual, auditiva, e tátil, integrando-se aos elementos da performance. O aboio é trazido pela voz e esta por sua vez preenche uma função que é identificadora do trabalho. A oralidade primária, conforme os estudos de Paul Zumthor (1993), consiste em vozes que não apresentam contato com a escritura, como é o caso do aboio cantado por vaqueiros desprovidos dos sistemas de simbolização gráfica. Walter Ong (1998, p. 19) discute o conceito de oralidade primária como as das pessoas que desconhecem inteiramente a escrita, não diferente como o aboiador Zé Preto conceitua: De ler não conheço o ó 36 Lila, (Maria das Neves de Araujo), São José dos Ramos – Zona da Mata da Paraíba. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 452 Pru que num estudei não Trabalhar como cativo Foi a minha tradição Minha escola foi o mato E a farda foi o gibão (ZÉ PRETO, 2004) Analisar a linguagem desta estrofe como um fenômeno oral parece óbvio. Como uma das oralidades tradicionais, o aboio envolve reconhecimento, presença do corpo, gesto, voz e ritual. Neste processo primário de oralidade, da expressividade do gesto, percebe-se que a expressão oral pode existir ou existiu sem qualquer escrita, como pode ser percebido nos versos seguintes: Com oito ano de idade Eu já andava encourado Pegando boi véi na rama No meu cavalo Melado Levano na brincadeira Minha escola foi colcheira E meu professor foi o gado. (ZÉ VAL, 2004) Além do conceito de oralidade primária, pode-se analisar o aboio através de um outro conceito, isto é, através do conceito de performance. A performance é uma ação oral vinculada à voz poética de forma que o vaqueiro aboiador está incluído como presença corporal. No momento em que o vaqueiro silencia juntando o gado para começar a cantar, este silêncio é uma reflexão para suscitar a voz. A voz para Zumthor pode nascer do silêncio e depois retorna para o mesmo. A partir desse conceito de performance podem-se analisar alguns aboios cantados pelos vaqueiros de tradição. Já cantei muitos verso Mas canto bem preparado Canto para Conceição Que ta aqui do meu lado E também canto pro meu amigo E companheiro Ronaldo (DOGA, Malta – PB, 2009) Eu nasci em Olho d’Água De rancharia e encostado Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 453 Perto da serra do sino Terra de mal assombrado Na porteira do curra Ta meu imbigo enterrado (JESSÉ, 2009) Esses aboios oriundos da oralidade são atos de comunicação em presença. Os vaqueiros integram-se as pessoas que os escutam e gradativamente vão se reconhecendo nos gestos, na temática que é muito variada e na voz que neste contexto está na ação materializadora do discurso poético. Aquele que canta se afirma e diz do lugar em que está no mundo, por esta razão, a maioria das performances poéticas são mais cantadas. Assim, percebe-se de que lugar a vaqueira aboiadora Lila canta. Aqui na Universidade Se forma médico e doutor No campo também se forma Vaqueiro e aboiador Cada um com sua cultura Cada um com seu valor (LILA, 2009) A partir desse lugar, observa-se que a aboiadora canta num palco cuja voz está mediatizada, aperfeiçoada tecnologicamente, o que é mais comum nos dias atuais e pode ser repetida através de suportes tecnológicos. Esses cantos das tradições orais são fundamentais para a manutenção da movência da voz, pois aboiadores midiáticos mantém as temáticas dos aboios da tradição, como se pode observar nos versos de Galego Aboiador, tão presentes nas vaquejadas do Nordeste. Este teus olhos brilhante Como pedra de safira Azul da cor de anil Onde o poeta se inspira Repleta de boniteza Você tem toda a beleza Que qualquer homem admira (GALEGO ABOIADOR, 2008) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 454 Embora envolvidos nesse processo de modificação, os aboiadores de tradição – os mais conservadores da memória do aboio – mantedores dos costumes dessa cultura reagem às modificações, impondo-se as mudanças e fazendo o apelo através do campo. O aboiador Fernando37 versa sobre o medo de acabar a cultura do sertão e o desejo de manter o aboio do vaqueiro “montado em um barbatão, pegando novia braba, bolar com ela no chão”. Não quero ver se acaba A cultura do sertão O aboio de um vaqueiro Montado em um barbatão Pegando novia braba Bolar com ela no chão. (FERNANDO ABOIADOR, 2008) Michel Giacometti (1981) afirma que , esses “cantos do trabalho existem com sinais tangíveis de um povo, a memória absoluta da sua navegação terrestre, o respirar fundo de uma esperança infinita. A “alma” da terra é encarnada nesses homens: Na hora de papai morrer Fez a sua despedida Disse adeus terra querida Terra que eu me montei Novilha que eu amansei Soltei cavalo de molho Aí foi fechando os olho Pediu a vela e morreu Êh... (ZÉ PRETO, 2005) Este canto como todos que fazem parte das poéticas das vozes tem na oralidade a principal circulação. Ela é, sobretudo, o suporte da memória. A memória é a essência do aboio porque nela se acumulam as experiências de vida. Aí foi onde eu fui Na terra de dona Aurora Eu vaquejei nove ano Vou lhe contar a história 37 Dizer dados de Fernando Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 455 Hoje não vaquejo mai Pruquê a idade num dá Tem me caido a memória Êh... (ZÉ PRETO, 2005) “Reconstruir o percurso da memória individual e coletiva desses vaqueiros seria cavalgar nas caatingas nordestinas tangendo o gado, cantando para os animais que vai levando uma espécie de acalanto para acalmá-los” (MAURÍCIO, 2008, p. 159). Por isto, definir o aboio e abordar as vozes dos vaqueiros aboiadores revela as questões fundamentais nas discussões sobre as produções dos textos orais, como a performance e suas práticas ritualísticas. Nessas práticas os vaqueiros traduzem gestos e pensamentos de fé como performances de uma sociedade primitiva: sempre tiram o chapéu e inclinam o corpo quando passam na frente de um cruzeiro (cruz). Dessa forma, canta o vaqueiro: Minha mãe quando eu morrer Me enterre lá no terreiro Mande fazer uma cova E junto dela um cruzeiro Pra quando eu chegar no céu Me lembrar que fui vaqueiro Êh boi... (JESSÉ, 2007) A performance, segundo Zumthor (2007), é a voz como prolongamento do corpo. Essa performance é percebida no canto do vaqueiro e é o corpo o suporte vocal ,ligada ao gesto projetada no espaço da performance. Coerente com o tempo e espaço que constrói versões, variantes entrelaçadas pelo movimento constante do nomadismo do trabalho do vaqueiro em constante mudança, pelo menos até os anos sessenta do século XX, pelos móticos de trabalho. Tudo é nômade. Pode-se afirmar que a performance do vaqueiro, de acordo com os estudos de Zumthor (2007, p. 31), é “reconhecimento”, pois “refere-se a realização de um material tradicional conhecido como tal”. É reconhecimento porque “realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade”. A voz está ligada ao gesto no momento em que o vaqueiro oferece a indumentária cantando e levantando os braços. Dessa forma, “a performance é uma realização poética plena”, afirma Zumthor (2005, p. 87). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 456 A performance é por excelência um ato de comunicação, “refere-se a um momento tomado como presente”; não consiste apenas em passar uma informação; “é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação” (ZUMTHOR, 2007, p. 52). A figura do vaqueiro surgiu no cenário histórico brasileiro há mais de três séculos e até o momento nunca foi valorizada encontrando-se em extinção e consequentemente o canto que durante séculos e séculos conduziu o gado pelos imensos sertões nacionais. Os aboios do Nordeste brasileiro são de gado, segundo classificação de Araújo. É um canto livre que pode ser cantado em sextilha – estrofe de seis versos, septilha ou redondilha maior – estrofe de sete versos ou ainda em versos decassílabos – estrofes com dez versos. O aboio também apresenta rimas como os versos das estrofes das cantorias. Assim, o aboio é um dos maiores legados da cultura popular, expressão poética que tanto encantou Mário de Andrade quando esteve em visita de estudos ao Nordeste do Brasil, mas que, entretanto, não tem tido muitos estudos sobre ele. Bibliografia ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga, Flávia Camargo Toni. Belo Horizonte: Itatiaia; Ministério da Cultura: São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção reconquista do Brasil. 2 série; v. 162). ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2002. _____. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2005. FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Global, 2004. GIACOMETTI, Michel. LOPES-GRAÇA, Fernando. Cancioneiro popular português. Círculo de leitores, 1981. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2003. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 457 MAURÍCIO, Maria Laura de Albuquerque. Aboio, o canto que encanta: uma experiência com a poesia popular cantada na escola. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal da Paraíba – UFPB: João Pessoa, 2006. 94 páginas. _____. História de vida do vaqueiro aboiador, Leonel. In: Do silêncio à voz: pesquisas em história oral e memória. Charlinton José dos Santos Machado... [et ali] (Orgs). João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008. ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas, SP: Papirus, 1998. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005. ____. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ___________. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Amalio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ___________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 458 O INFLUXO ÁRABE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DERIVADO DO CONTATO DE LÍNGUAS: A HERANÇA LÉXICA DOS ESCRAVOS AFRICANOS E DOS IMIGRANTES LIBANESES Maria Youssef Abreu (PG-UEL/CAPES) A história de uma língua não é um esquema rigorosamente preestabelecido, não é um problema algébrico. Não se pode partir do latim e chegar diretamente aos dias de hoje, saltando por vários séculos de palpitante vida. (Serafim da Silva Neto) Introdução As línguas geram e expressam os laços que integram os falantes na sociedade e, de distintas maneiras, auxiliam a contar a história deles e de si mesmas. Os estudos em Filologia Românica ou Portuguesa contemplam, sobretudo, o contato entre o árabe e o português na Idade Média ibérica, período no qual ocorreu a interferência de um vasto número de vocábulos do árabe, distribuído em diversos campos semânticos, nas línguas ibéricas e ou delas provenientes. De maneira geral, os estudos filológicos ressaltam três vias de entrada a fim de explicar a interferência dos arabismos na língua portuguesa, a saber: a presença árabe muçulmana na Península Ibérica, a expansão portuguesa e a entrada mediante as línguas européias. Entretanto, omitem a via de entrada de arabismos em terras brasileiras, em decorrência do contato entre o árabe e o português, concretizado a partir da presença de africanos islamizados na sociedade escravagista nos séculos XVIII e XIX e do intenso fluxo imigratório de sírios e libaneses nas primeiras décadas do século XX. Na tentativa de preencher tal lacuna, Vargens (2006) propõe uma revisão do corpus de arabismos do português de todas as épocas, amparado em uma busca bem documentada dos arabismos mais antigos em português e contempla a via de entrada Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 459 brasileira, acrescentando a contribuição do vocabulário herdado dos escravos e dos imigrantes sírios e libaneses. Em seu glossário, o autor reúne mais de três mil termos que, como empréstimos originais, variantes, derivados, ou expressões, são arabismos em português. Trata-se de um registro considerável, tanto quantitativa quanto qualitativamente, na especificidade das línguas românicas da Península Ibérica. Entretanto, no que concerne particularmente ao enriquecimento lexical proporcionado por imigrantes libaneses, até o presente momento não se tem conhecimento de investigações científicas sobre o tema (ARAGÃO, 2008, p. 10). Nessa perspectiva, o presente artigo expõe dados parciais de análise de pesquisa, em nível de doutoramento, cujo propósito central consiste no estudo das interferências léxicas do árabe no português falado por imigrantes libaneses em contato sociolinguístico constante em solo brasileiro, estabelecidos na cidade de Londrina. O corpus constitui-se de dados orais do discurso de dezesseis imigrantes libaneses, bilíngues árabe-português, com idade superior a 18 anos, comerciantes de profissão e com permanência no país entre 20 a 45 anos. Apresentam-se divididos em dois grupos religiosos, cristãos e muçulmanos, de sexo masculino e feminino, distribuídos em dois níveis de escolaridade, fundamental e médio, com dois informantes em cada nível. Para fins teórico-metodológicos, este estudo ampara-se na Sociolinguística do contato de línguas, introduzido por Weinreich (1953) e considera como obra-fonte o Vocabulário de Origem Árabe: subsídios para os estudos de filologia, sistematizado por Vargens (2006). Especificamente, o estudo contempla os vocábulos árabes derivados de dois momentos do contato entre o par de línguas em terras brasileiras, antes referidos, e os campos semânticos em que eles se organizam, como indícios das áreas do saber nas quais se observam as interações entre as duas comunidades linguísticas em contato. A fim de desenvolver este estudo de modo a dar conta de nossos propósitos, subdividimo-lo em três partes: a primeira expõe um breve relato da interferência árabe na Península Ibérica, sugerindo um levantamento dos principais trabalhos realizados sobre o tema em pauta; a segunda discute a influência dos africanos escolarizados que habitaram a sociedade escravocrata na Bahia; e a terceira apresenta aspectos sociohistóricos da imigração libanesa no Brasil, seguida de um pequeno vocabulário de arabismos resultante dessa imigração. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 460 1. A influência árabe na Península Ibérica: o contato linguístico e cultural Os estudos sobre fenômenos originados do contato de línguas ganharam notável desenvolvimento a partir da divulgação da obra intitulada Langues in Contact: findings and problems, de autoria de Weinreich (1953). Com este trabalho, o autor introduziu, pioneiramente, a consideração de fatores de natureza extralinguística no universo da Linguística, abrindo espaços para o posterior surgimento da Sociolinguística. Weinreich (1953) formulou o pressuposto de que as ocorrências do fenômeno da interferência são estimuladas por fatores estruturais e socioculturais, de modo que os usos de estruturas linguísticas são influenciados por fatores extralinguísticos, e isso faz com que as interferências configurem-se sistemáticas e previsíveis. Para o autor, a natureza e a extensão da interferência de uma língua sobre a outra pode ser explicada a partir de dados da fala de indivíduos bilíngues. Weinreich (1953) considera o contato de línguas como um aspecto do contato entre culturas e a interferência exercida por um sistema linguístico sobre o outro, uma faceta da difusão cultural e da aculturação decorrentes do contato entre comunidades linguístico-culturais distintas. Devido não apenas à longa permanência árabe na Península Ibérica, mas, também, ao refinamento cultural dos muçulmanos em relação aos hispanos, visigodos e cristãos, diversos traços culturais permaneceram na região peninsular resultantes desse período de contato sociocultural, incluído, particularmente, o linguístico. Segundo uma extensa bibliografia que documenta a história, em que destacamos Coutinho (1976) e Silva Neto (1988), árabes e berberes do Magreb adentraram o território que compreendia a Península Ibérica, conquistando grande parte dessa região. Denominados ‘mouros’ pelos habitantes da Península, esses povos tinham o islã como religião e o árabe como a língua de comunicação (mesmo aqueles que falavam a língua berbere). O império árabe-muçulmano foi se consolidando nessa região por longo período, estimado, aproximadamente entre sete e oito séculos (levando-se em consideração a data de sua chegada, em 715, até sua expulsão, no século XV. Donos de cultura influente, os árabes desenvolveram uma literatura, uma filosofia e uma ciência bastante próprias que marcaram o pensamento humano em geral e o europeu em particular. Como era de se esperar, o idioma árabe tornou-se a língua dominante em toda a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 461 região e isso resultou na assimilação, por parte dos falantes cristãos, de um vasto léxico de origem árabe. Na caracterização do estudo dos arabismos, nota-se a parcialidade, geralmente verificada na interpretação da conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos e das suas conseqüências. Corriente (1996) sugere uma crítica metódica dos estudos realizados sobre os arabismos do iberorromance e afirma que alguns pesquisadores subestimam a interferência sociocultural islâmica e que desta postura ideológica decorre inadequada análise dos dados linguísticos. Dentre os estudiosos que compartilham essa visão, Francisco Javier Simonet (1829-1897), chega a procurar no moçárabe interferências ibéricas ou latinas, como se negasse a reconhecer-lhe traços tomados do árabe, invertendo o papel de prestígio social do conquistador face ao conquistado e da direção mais provável do influxo (CORRIENTE, 1996, p. 2). Por outro lado, em sua análise, Corriente (1996) verifica que o avançado desenvolvimento técnico-científico dos árabes e o refinamento que caracterizam os califados, por exemplo, chamam a atenção de pesquisadores, como R. Dozy, os quais creditam ao árabe a fonte de diversos costumes ocidentais, linguísticos ou não. Por esse motivo, na revisão do Dictionnaire de Engelmann, realizada por Dozy, o número de arabismos é ampliado significativamente por vocábulos que verdadeiramente não o são. Atualmente compreende-se a amplitude da influência árabe na cultura ibérica medieval resultante da condição política do dominador, reforçada pelo efetivo avanço em diversas áreas. Para Faulstich e Carvalho (2007), a literatura linguística que explica a presença do árabe nas línguas românicas e, particularmente, na língua portuguesa, reduz a interferência árabe, nos léxicos românicos, a campos léxicos pontuais, relativos ao vocabulário de natureza político-social, agrícola, toponímica, científica, de pesos e medidas etc. Não apenas no vocabulário erudito ou de emprego meramente histórico, mas, também, no vocabulário cotidiano de seus falantes, é abundante o uso corrente de vocábulos de origem árabe arrolados ao português brasileiro, conforme ilustra o texto proposto por Chediak (1972): “Uma história. Suponhamos, primeiramente, um casal com um filho, em algum lugar do Brasil. Altair, recém-casada, mora nos arrabaldes ou arrebaldes de uma aldeia do interior, põe o seu vestido de chita e o xale. Pega o garoto, um azougue de menino, lava-o e passa-lhe talco. Se o garoto tosse, dá-lhe uma colher de xarope, empapa o algodão em cânfora ou alcânfora e faz massagem nas suas costas. Vai à cisterna, prende a azêmola Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 462 na argola da manjorra, põe água na modesta jarra. Vai fazer café e adoçao com saboroso açúcar-cândi. O marido, um mameluco, conhecido pela alcunha Boca-Torta, bem cedinho, já se levanta com alguns achaquesenxaqueca, põe as ceroulas (no interior muita gente ainda as usa), o terno cáqui, bem lavadinho com anil, toma um trago de conhaque de alcatrão São João da Barra ou, se não o tem, vai ao alambique, sorve um gole de jeropiga. Toma a tarrafa e vai pescar no açude. Outras vezes, prefere caçar javali; limpa o azinhavre da espingarda de grosso calibre, sai com o fraldigueiro chamado Sultão e volta com algumas arrobas de carne às costas. À hora do almoço, Altair lhe traz umas azeitonas. Senta-se com ele, e principiam uma salada de alface bem regada a azeite. Vêm depois o espinafre, a cabidela, a carne ou peixe escabeche, ou com alcaparra, que ingere com arroz bem soltinho. Ela lhe oferece um prato com acelga ou celga, que rejeita. Prefere alcachofra, por causa do fígado. Vai tomando refresco de tamarindo. À sobremesa, uma boa laranja seleta. Terminado o almoço, descansa, recostando a cabeça na almofada. A casa é modesta, de adobe, mas o alicerce é firme. As janelas não têm alizares. Num pequeno jardim, florescem açucenas ou cecéns e alecrim. Depois da sesta, sai a trabalhar. Mete algum dinheiro na algibeira, algum alimento no alforje e segue para o campo. Tem alguns alqueires de terra. De volta, pára no alfaiate para experimentar um terno. Depois, entra no armazém para algumas compras. Muita gente. Azáfama. À saída, um pobre, cheio de salamaleques, pede-lhe esmola. Não é um nababo, mas também não é um mesquinho. Dá-lhe uns níqueis. Um troço de policiais, com vistosos dólmans, passa ao som de tambores, caminho do aljube. É o reforço que chega. A região foi invadida por uma cáfila de assaltantes. O mameluco tira o chapéu. Passa um ataúde a caminho do cemitério. E retorna à casa.” 38 A presença de numerosos arabismos nas línguas românicas hispânicas e, particularmente, no português, permitiu que se distingam de suas outras irmãs românicas. Esse elevado número de arabismos justifica a propriedade da metáfora aluvião lexical árabe, proferida por Piel (1989 [1976], p. 12 e 13). Para o autor, o superestrato árabe revelou ser incomparavelmente maior em relação aos demais dominadores da região, uma vez que compreende todos os setores da vida material. Define que por ‘arabismos’ devem ser entendidos também vocábulos originalmente não árabes, isto é, ocidentais, berberes etc, incorporados no léxico dos muçulmanos peninsulares. Há trabalhos sobre influência árabe no vocabulário português publicado no Brasil e em Portugal, para os quais, segundo Vargens (2005), alguns não possuem rigor científico, outros são importantes para a lexicografia do português. Entre as contribuições dos lusitanos lexicógrafos, o autor cita os nomes de Carolina Mickaelis, Manuel Augusto Rodrigues, José 38 Segundo Vargens (2007), há controvérsias entre alguns autores quanto à etimologia árabe de alguns vocábulos como cabidela, cáqui, chita, jeropiga e troço. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 463 Domingues e Dias Farinha. No Brasil, os nomes destacados são João Ribeiro, José Chediak, Antônio Faris Mickaele, Rubem Franca e Miguel Nimer. Há trabalhos relevantes realizados no Brasil, como o já citado Nimer (1998), por exemplo, que não se limitou ao estudo dos termos portugueses de origem árabe, vai além, preocupando-se, também, com os termos gregos, latinos, persas, turcos, hebraicos, fenícios, arameus e siríacos, os quais entraram na língua depois de arabizados. Composto por 765 unidades léxicas, o léxico organizado pelo autor é precedido por capítulos introdutórios que explicam aspectos da morfologia do árabe, especialmente no que concerne às raízes trilíteres e a tipologia de afixos própria das línguas semíticas. Um esforço na construção da filologia portuguesa é sugerido por Silva (1997a e 1997b), documentado no ‘Vocabulário português legado pelos árabes’, envolvendo 959 termos, excluídas as variantes e os termos insuficientemente justificados pelos filólogos e etimólogos, entre esses, todos os topônimos e antropônimos. O autor revela que os arabismos entraram para o português em épocas e de maneiras bem diferentes. Muitos passaram por diversos países e foram acolhidos em dicionários brasileiros com sua forma bastante alterada com respeito a sua origem. Outros foram adotados primeiramente pelos árabes como ‘vocábulos de civilização’ e divulgados no Oriente com as ciências, artes e técnicas grecoromânicas, chegando ao português mais tarde. Silva (1997a) tece importantes considerações acerca das características da construção árabe, facilmente observáveis no vocabulário de origem árabe, dentre as quais, destacamos as seguintes: Alguns vocábulos possuem x- inicial, como é o caso de: xá, xadrez, xairel, xaque, xará, xarque, xeique, xerife, xarifa, xaroco, xarofa, xarope, xaveco, xeique, xiita etc, e influenciaram nos representantes de numerosos termos latinos com ex-, como: enxame, enxuto, enxada, enxó, enxugar, enxúndia e enxofre. Outros vocábulos iniciam com enx-, como os seguintes: enxaqueca, enxadrez, enxarope, enxávena, enxeco, enxoval, enxovia etc. Um grupo numeroso de vocábulos se caracteriza pela terminação, entre essas estão os termos que terminam com í- tônico: aleli, alfarqui, alizari, arabi, bafari, carmesi, garabi, haji, huri, javali, maçari, muçurumi, rafadi etc. Em muitos casos, o sufixo í- é transformado em il: adail, aguazil, alcil, alvazil, anafil, anil, arrabil, candil, cordovil, granadil, manchil, maravedil, marroquil etc. E há casos em que o sufixo í- muda para im: .alabardim, alecrim, alfenim, alfolim, alfonsim, anexim, benjoim, borzeguim, cansim, carmesim, celamim, cetim, gergelim, haquim, jasmim, marfim, mirabolim, muslim, muezim, talim etc. Além desses, há casos de palavras que terminam em sílabas como Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 464 afe, -afre, -efe ou -aque, que não são empregadas em final de vocábulos latinos. Os arabismos do português estão distribuídos em diversos campos semânticos, segundo a perspectiva assumida por diferentes estudiosos. Considerando os campos citados por Elia, 2004, Faulstiche e Carvalho (2006), Houaiss (1986), Mattos e Silva (2003), Silva Neto (1988), Vargens (2007) e Vasconcelos (1956), apresentamos o léxico em pauta nos campos semânticos: ▪ Vocabulário de natureza político-social: alcaide, alferes, almoxarife, alfândega etc. ▪ Vocabulário comum: alcova, argola, alicate, alfaiate etc. ▪Vocabulário de técnicas e agricultura: açafrão, açude, alecrim, alfazema, algodão, almuinha, safra, sega tamarindo etc. ▪ Vocabulário de frutos: laranja, lima, limão, tâmara etc. ▪ Vocabulário de pesos e medidas: alqueire, arrátel, arroba, quintal etc. ▪ Vocabulário de alimentos: açorda, açúcar, aletria, almôndega, arroz etc. ▪ Vocabulário de toponímia: Alfama (refúgio), Alcântara (ponte), Almada, (mina) etc. ▪ Vocabulário de guerra e vida militar: alferes, algema, almirante, arrais, arsenal, bodoque, calibre, refém etc. ▪ Vocabulário de indústria e comércio: açougue, alambique, armazém, azenha, azêmola. ▪ Vocabulário de administração e finanças: aduana, alfândega, alvará, aval, leilão, tarifa. ▪ Vocabulário de profissões: alfaiate, almoxarife, magarefe. ▪Vocabulário de ciências, técnicas e artes: algarismo, álgebra, zero, aharque, elixir, enxaqueca, nuca, xarope, alquimia, alaúde, atabaque, atambor, axabeba, cifra. ▪ Vocabulário de vestuário: babuche, alfarda etc. ▪ Vocabulário de habitação e vida doméstica: alcova, alicerce, almofada, andaime, azulejo, chafariz, divã, sagão, sofá, taça, taipa. ▪ Vocabulário de fauna: anta, atuam, gazela, girafa. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 465 ▪ Vocabulário de jogos: xadrez. ▪ Vocabulário de compartimentalização espacial e acidentes geográficos: aldeia, arrabalde, bairro, rincão. ▪ Vocabulário religioso: imame, ulemá, mussurumim, islame, jihad, mesquita, minarete, moçafo, tecebá. ▪ Vocabulário culinário: almôndega, cuscuz, alçorda, etc. Com o passar dos séculos, o árabe e o português restabeleceram suas relações, no caso que queremos ressaltar aqui, no interior de terras brasileiras, onde se verificou a relação entre o árabe como língua minoritária e o português em seu status de língua dominante. Esse fato concretizou-se de forma marcante em dois momentos históricos distintos, apresentados nos tópicos seguintes. 2. A herança léxica dos escravos africanos islamizados No decorrer dos séculos XVIII e XIX, o tráfico de escravos viabilizou a entrada de diversas nações africanas no interior do Brasil, permitindo a emergência de um processo em vários graus de interação étnica e cultural. Muitas línguas e diferentes dialetos africanos adentraram as terras brasileiras constituindo uma efervescente situação de contato linguístico. Houais (1922) afirma que o total de línguas proeminentes da África representava um total nunca inferior a 20% das línguas da África, aproximadamente de 300 a 400 línguas, com falantes por todo o território brasileiro. Entre as diferentes línguas e dialetos falados por escravos africanos, é possível citar o haussá, nagô, jêge-mina, iorubá, banto, quimbundo, mandinga, nupe ou tapa, ewe, fon, uolote, axante, umbundo, entre outras. A questão do influxo dessas línguas africanas no português do Brasil é vista por Pessoa de Castro (2006) mais como objeto do silêncio do que motivo da atenção de linguistas e filólogos. Na discussão sobre o reconhecimento das línguas africanas na constituição histórica do português brasileiro, a autora declara que a resistência quanto ao tratamento de temas associados às línguas africanas no país começa pelo prestígio atribuído à escrita em detrimento da oralidade, a partir de uma visão ocidental que sempre privilegiou o ler e escrever diante da não menos importante arte de falar e ouvir. Também importa lembrar que em decorrência do parâmetro que se colocou para povos que possuem uma forma de escrita Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 466 literária e povos que se servem da tradição oral, esses últimos acabam por serem vistos como portadores de uma cultura inferior ou mesmo sem qualquer tipo de cultura. Dessa perspectiva derivou uma crença de que as línguas de tradição oral não poderiam influir em uma língua de reconhecido prestígio literário como a língua portuguesa (PESSOA DE CASTRO, 2006, p. 95). Em virtude desse pensamento vigente, a presença dos africanos escravos escolarizados destacou-se em relação aos demais na sociedade baiana escravocrata do século XVIII. Genericamente conhecidos pelo nome de ‘malês,’ termo que identificava os africanos muçulmanos escolarizados, esses escravos encontraram-se em um centro urbano que lhes permitiu uma relativa liberdade, o que facilitava suas relações interpessoais, numa condição favorável à promoção de levantes. Segundo Reis (1988), entre os anos de 1807 e 1835, esses escravos lideraram uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da religião católica, traçando todos os planos da rebelião no idioma árabe. Dentre as diversas nações de escravos muçulmanos, Freire (1933), Rodrigues (1945) e Reis (1988) destacam os haussás como os escravos mais intelectuais entre os colonos, mentores de revoltas, sendo também os introdutores do islamismo entre os demais. Em grande número na Bahia, os haussás puderam exercer vigorosa influência cultural 39 sobre a vida cotidiana, devido à posições específicas na distribuição ocupacional dos africanos em Salvador, trabalhando nas ruas da cidade como comerciantes ambulantes de produtos como fumo, especiarias e tapetes. Apesar da exiguidade de registros sobre as línguas faladas pelos escravos no Brasil, os trabalhos desses autores se constituem como marcos históricos da presença da língua árabe, posto que oferecem elementos importantes para que se retracem as relações de coexistência entre o árabe e o português no país. Tomando, pois, tais obras como referencial teórico, vê-se que o árabe era a língua conhecida por um pequeno grupo social e sem qualquer prestígio cultural ou socioeconômico e seu uso na oralidade restringiu-se à dimensão religiosa. Como se sabe, os escravos eram trazidos, forçadamente, de seu país de origem para o trabalho escravo, concentrado em certas em certas regiões do país, mais especificamente, a 39 Os escravos haussás influenciaram, à época, vários aspectos da cultura regional brasileira. Na culinária, por exemplo, Gilberto Freyre (1933) apresenta minuciosamente o preparo do ‘arroz de Haussá:’ ‘O arroz-de-aucá é outro quitute afro-baiano que se prepara mexendo com colher de pau o arroz cozido em água sem sal. Mistura-se depois com o molho em que entram pimenta-malagueta, cebola e camarão: tudo ralado na pedra. O môlho vai ao fogo com azeite-de-cheiro e um pouco de água (FREYRE, 1933, p. 367).’ Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 467 Bahia. Devido às limitadas condições de vida a que eram submetidos os escravos na época, esses falantes eram excluídos de muitos direitos, inclusive, o direito de falar em público, do que resultou um contato limitado entre a língua e o falante nativo. Da mesma maneira ocorreu na escrita, uma vez que os registros de produções linguísticas no árabe se devem, em geral, às reproduções de versos corânicos, orações islâmicas e amuletos. Também não há evidências de descrições de uso cotidiano de uma variável diatópica do árabe entre os escravos africanos no Brasil, o que dificulta uma caracterização mais clara da relação entre as duas línguas nessa ocasião do contato. Ainda que esses africanos islamizados possuíssem uma ‘competência linguística’ limitada no idioma árabe, posto que seu conhecimento se restringisse a copiar orações corânicas em caracteres árabes e decorá-las, mediante processos de memorização, há um consenso sobre a ‘literalidade’ dos escravos malês em relação aos demais africanos. Entretanto, de uma maneira ou de outra, na esfera da vida privada e cotidiana em que o religioso se estende, o vocabulário representativo da prática islâmica aflorava no português falado pelos escravos, como forma de expressar seus ideais de fé. Os arabismos introduzidos no português do Brasil por escravos afro-muçulmanos encontram-se registrados no Glossário de Vargens (2006) perfazendo um total de vinte e cinco unidades léxicas, apresentadas a seguir no interior de dois campos semânticos: Campo Semântico 1. Religião a) Orações islâmicas: açubá, adixá, aiassari, ailá. b) Ministros de culto religioso: alicali, alufá, lemano. c) Crente: amim, malê, mussurumim. d) Templo: djema, maçalami. e) Entidade: aligenun. f) Objetos litúrgicos: tecebá. g) Preceitos: assumi, azaca, jihad, sacá. h) Saudações e locuções interjetivas: barica da suba, bissimilai, Maneco lassalama, sala, maleco. 2. Culinária Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 468 a) alimento: aluá. O escopo acima revela que os arabismos introduzidos no português brasileiro pelos escravos muçulmanos integram apenas dois campos semânticos, isto é, religião e culinária, verificando absoluta assimetria na distribuição entre eles. O campo religioso subdivide-se em oito microcampos, ao passo que o campo da culinária registra apenas um vocábulo designativo de alimento. O caráter ritualístico do árabe praticado entre os escravos africanos resultou em sua perda a partir da ‘criminalização’ do islamismo, por conta da revolta liderada pelos malês, e da sua língua de expressão e veiculação. Dessa feita, o contato árabe-português no período da escravatura no Brasil, se já não se caracterizava pela diglossia, acabou por desaparecer, até que o fluxo imigratório de sírios e libaneses ocorrido recentemente possibilitou o reencontro das duas línguas no país, iniciando um novo capítulo dessa história. 3. A contribuição vocabular dos imigrantes libaneses. ‘Os turcos nasceram para vender bugingangas coloridas em canastras ambulantes. Têm bigodes pontudos, caras de couro curtido. Braços tatuados de estrelas. A pronúncia cômica, a voz sedutora. A língua cifrada cria um mundo-problema Entendê-los, quem pode?’ (Carlos Drumond de Andrade, ‘Os Turcos’) ‘Árabe, turco, sírio, é tudo a mesma coisa. Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, perfumes, berliques, berloques, anéis brilhantes de vidro, perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo. Os turcos jogam cartas com alarido’ (Jorge Amado, ‘Gabriela, Cravo e Canela’) O segundo fato histórico que revela o contato entre o árabe e o português ocorreu mais recentemente com o fenômeno de correntes imigratórias de sírios e libaneses, no final do século XIX, estabelecendo uma nova etapa da história de interações entre as línguas. A imigração libanesa, particularmente, desenvolveu-se em um movimento característico que Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 469 marcou sua trajetória no panorama mundial, quando muitos cidadãos libaneses viram-se impulsionados, sobretudo, por pressões demográficas e econômicas em sua terra de origem. Conforme Knowlton (1995), o processo de imigração no Brasil deu-se em uma conjuntura econômica e política de estímulo destinado à colonização e ao povoamento das terras brasileiras. Ao chegarem ao Brasil, os imigrantes libaneses mostraram sua natureza versátil e sociável, habituados a conciliar antagonismos em sua terra de origem, esses encontraram facilidade de integrar-se às novas situações. Dedicaram-se à atividade temporária da mascateação, comercializando, nos campos e nas praças, diversos tipos de mercadoria. A profissão configurada pelo ofício de mascate foi fundamental na definição da imagem que os brasileiros ainda fazem do grupo imigrante libanês e serviu de instrumental para a ascensão social tanto de cada indivíduo como do próprio grupo. Não obstante, a profissão de mascate oferecia as vantagens imediatas de dispensar qualquer habilidade ou soma significativa de recursos, além de não exigir mais do que o saber rudimentar do português e possibilitar a acumulação de capital. Alguns anos mais tarde, o caminho natural foi a abertura de lojas no ramo de tecidos e armarinhos. Conforme Gattaz (2005), Knowlton (1995) e Truzzi (1997), no início da década de vinte, muitos imigrantes libaneses deixaram o ramo de tecidos e armarinhos, fosse no comércio ambulante, como mascates, fosse como lojistas. Alguns passaram a comercializar tapetes importados, enquanto outros reorganizaram suas atividades com o objetivo voltado para quitandas e bazares. Com a finalidade de tornarem-se proprietários de pequenas empresas, o caminho a percorrer, muitas vezes, envolvia algumas variantes. Em busca de melhores condições de trabalho, distribuíram-se por diferentes regiões do país, mascateando toda sorte de mercadorias e, posteriormente, estabelecendo comércios em pequenos e grandes centros (Gattaz, 2005). Os primeiros libaneses a chegar foram os cristãos. Embora viessem os homens sozinhos ou solteiros, nunca abandonaram a ideia da família patriarcal ou família numerosa. À medida que os negócios prosperavam, buscavam a esposa, os filhos, os pais e demais membros que lhes interessassem. Para preservar os laços culturais, em determinados finais de semana, feriados ou dias santos, os primeiros imigrantes cristãos organizavam reuniões em piqueniques com amigos e familiares. Na vasta mesa montada sobre a relva, uma das características da cultura Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 470 libanesa era expressamente vista: a presença abundante de variados pratos típicos, acompanhados do pão árabe, potes de coalhada, frutas e doces. Depois de fundarem os primeiros clubes sociais, todas as comemorações e festas típicas eram realizadas lá, com muita comida, bebida e danças. Já os libaneses muçulmanos, mais voltados à manutenção dos laços culturais mediante a prática religiosa, reuniam esforços na construção de mesquitas islâmicas em diversas cidades do país, no ensino do árabe e na prática de casamentos endogâmicos entre os membros do grupo. Um fator conflitante, insistentemente presente, ainda hoje, causador de desconforto para muitos imigrantes libaneses, diz respeito à questão histórica de sua identidade. Segundo Knowlton (1995), na época aproximada de 1860, o império otomano exercia severo domínio sobre uma vasta região oriental, localizando-se em diversos países, dentre os quais, o Líbano. Desta maneira, os indivíduos libanêses que emigravam para outros países eram portadores de passaportes fornecidos por autoridades turcas. Independentemente de terem sua verdadeira procedência declarada, eles eram considerados turcos, por ser a Turquia o país que lhes conferia permissão oficial para viagem. Qualquer imigrante oriundo de qualquer país árabe era chamado de turco, fosse egípcio, argelino, persa, palestino, sírio etc. Todavia, atualmente parece haver uma tendência, por parte dos brasileiros, em distinguir os libaneses dos imigrantes de outros países árabes. Todavia, com o passar do tempo, o intenso entrelaçamento das culturas libanesa e brasileira, manifestado através do uso da língua, resultou no fenômeno de interferência no vocabulário das línguas, principalmente na oralidade. Esta situação típica de línguas de contato, somada às dificuldades de uma aprendizagem linguística informal e, ainda, aos fatores sociais aí implicados, foi o ponto de partida para a geração de um dialeto peculiar desta comunidade, que mais tarde a caracterizaria de forma estigmatizada em toda a pátria acolhedora. Não obstante, a notável integração e o amistoso desenvolvimento entre as culturas incidiram em um convívio fraterno, gerando muitas trocas e contribuições, as quais estão nitidamente refletidas em vários segmentos da cultura brasileira, como a literatura, a arquitetura, a medicina, a gastronomia, etc. Importa destacar que um dos fatores que possibilitou a influência e a difusão de termos árabes no vocabulário português foi a ocupação espacial da imigração libanesa no país, a qual apresenta singular diferença em relação aos demais grupos de imigrantes, como os Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 471 alemães, japoneses, ucranianos etc. Estes estabeleceram-se, isoladamente, em áreas geográficas denominadas ‘colônias’ abrindo espaços para o desenvolvimento de ‘ilhas linguísticas.’ Os libaneses, ao contrário, como já foi mencionado, por terem suas atividades ligadas ao comércio, chegaram ao Brasil e embrenhando-se pelos campos e em diferentes centros espalhados do país, imprimindo suas marcas léxicas na língua acolhedora e, inversamente, permitindo-se por ela influenciar. O intenso contato entre essas línguas, experimentado em um período de aproximadamente cento e trinta anos de imigração, reintroduz no interior do léxico do português brasileiro diversos vocábulos do árabe. No léxico português de origem árabe sistematizado por Vargens (2007), encontram-se apenas doze vocábulos exclusivamente do campo culinário, não se verificando em outros campos semânticos, conforme se apresentam abaixo: baba hanuche, beleua, cafta, esfiha, falafel, homos, laban, labna, mijadra, quibe, tabule e tahine. Entretanto, os arabismos chamados ‘vocábulos de civilização’ constituem um grande número desses termos, não restringindo no limitado conjunto acima a contribuição árabe dos imigrantes libaneses, ao contrário, esses arabismos estão profundamente enraizados na linguagem popular de todos os recantos do Brasil. Como já foi mencionado, o influxo do árabe sobre o português brasileiro, viabilizado pelos imigrantes libaneses, ainda está por analisar e, oportunamente, chamamos a atenção para o contexto de nossa investigação sobre a interferência do árabe no português falado pela comunidade bilíngue de imigrantes libaneses. Na compreensão sobre o comportamento da interferência, Weinreich (1953) afirma que o fenômeno resulta da ação de duas forças opostas representadas por fatores de estímulos e fatores de resistência, sendo que ambos podem ser de natureza linguística ou não linguística. Nessa direção, verifica-se que a influência do árabe sobre o português ocorre em consequência da ação de duas forças contrárias que duelam entre si. Partindo de fatores linguísticos, consideramos que as lacunas vocabulares no português brasileiro servem como estímulos de interferências do árabe, e a existência de palavras para expressar os valores socioculturais dos falantes bilíngues atue como um fator de resistência. Quanto aos fatores Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 472 extralinguísticos, supomos que a inadequação de vocábulos para expressar, por exemplo, nomes de receitas culinárias ou termos religiosos, exerçam força estimuladora para interferências. Ja os fatores de prestígio do idioma árabe e, fundamentalmente, a prática da religião islâmica, atuam como resistência na incidência do fenômeno. Do ponto de vista estrutural de ambos os sistemas linguísticos, sabemos que não apenas a interferência léxica, como, também, a fonético-fonológica e a morfossemântica têm como ‘estímulo’ as diferenças e as semelhanças entre as duas línguas, e como ‘resistência’ a estabilidade que esses mesmos sistemas exercem um sobre o outro. Não obstante, ainda que os resultados sejam limitados, uma vez que a análise se encontra numa fase embrionária, eles indicam que algumas palavras do árabe circundam o português brasileiro há mais de cento e trinta anos (data da emigração) e podem chegar às vias de integração na língua. Isso considerado, com o intuito de ilustrar o que temos declarado, apresentamos uma mostra dos arabismos registrados no corpus, originados a partir de mecanismos de interferência linguística entre o par de línguas. Tendo em vista a típica culinária libanesa, conhecida pelo sabor e aroma de seus pratos, apresentamos os arabismos representativos do campo ‘condimentos’, seguidos de definição. Campo condimentos: • Áala (s.m.) macis Especiaria de sabor amadeirado, levemente amargo, em formato de renda avermelhada, que é liberada pelo fruto que dá a semente de noz- moscada. Usada em pó, no preparo de doces, salgados e na fabricação de xaropes e licores. • Áatar (s.f.) essência de malva-rosa Essência em forma de água, extraída da flor da malva-rosa e utilizada para aromatizar caldas de doces, salgados e recheios. • Baadúnis (s.f.) salsinha Erva com flores miúdas, talos finos de cor verde-escuro, aroma e sabor agradáveis, que é usada para tempero de diversas receitas. Junto com a cebolinha de folhas comestíveis, formam o “cheiro-verde.” • Baalat (s.f.) zimbro Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 473 Fruta pequena de sabor picante, levemente adocicada, de cor roxa, formato redondo, que é usada, amassada, para temperar legumes em conserva e como ingrediente no preparo de bebidas e licores. • Bahar (s.f.) pimenta síria Mistura de várias especiarias moídas, como pimenta da Jamaica, canela, pimenta do reino preta e branca, noz-moscada e cravo em pó, que é usada como tempero para carnes e receitas variadas. • Baharat (s.f.) baharat Pó extraído das sementes secas de pimentas de várias espécies, de sabor suave que lembra uma combinação de cravo, canela e noz moscada, e é usada no tempero de receitas doces e salgadas. • Chamró (s.f.) erva-doce Planta cujas folhas, sementes e bulbo são utilizados na preparação de chás, licores e destilados; as sementes pequenas, de cor esverdeada, de sabor adocicado são utilizadas na preparação de massas e doces e o bulbo é usado cru, na preparação de saladas. • Chilchi Halawi (s.m.) xarope de tamarindo Líquido concentrado de sabor ácido e frutado, levemente amargo, extraído da vagem do tamarindo e usado para temperar sopas e cremes em geral. • Chimichurri (s.f.) chimichurri Mistura de ervas e temperos variados, encontrada seca ou combinada com azeite de oliva e vinagre, usada como tempero específico para assados e grelhados. • Chumrat (s.m.) feno grego Erva de caule ereto, com flores brancas ou amarelas coladas na parte inferior das folhas e que produz uma vagem achatada, com sementes ovóides de cor amarelada, que são usadas, em pó, para tempero de recheios e receitas variadas. • Fanília (s.f.) essência de baunilha Essência aromática em forma de água ou óleo, de sabor doce e delicado, de cor marrom escuro, extraída de grãos minúsculos da fava de planta da América Central. É usada no preparo de doces, massas e sorvetes. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 474 • Fulful Mathun (s.f.) pimenta-do-reino Grão de bagos de planta tropical, de formato arredondado, usado como tempero, inteiro ou em pó, apresenta variação de cores conforme diferentes tempos de colheita e de processos de secagem. • Fulful ábiad (s.f.) pimenta-do- reino-branca Grão de bagos de pimenta-do-reino colhido bem maduro, de cor branca, sabor muito picante e usado inteiro ou em pó, mais por estética do que por sabor. • Fulful ahdar (s.f.) pimenta-do-reino-verde Grão de bagos da pimenta-do-reino, colhidos antes da maturação, de cor verde, sabor menos picante e mais frutado, que é usado inteiro, em pó e em conserva para receitas de peixes, molhos e cremes. • Fúlful ássuid (s.f) pimenta-do-reino-preta Grãos de bagos de pimenta-do-reino colhidos antes da maturação e seco ao sol, de cor preta e sabor picante, usados inteiros ou em pó como tempero de várias receitas. • Hábet el hel (s.m) cardamomo Semente com aroma de eucalipto, sabor picante e levemente frutado e usada para aromatizar café. • Hárdel árabi (s.f.) mostarda Tempero de cor amarelada, sabor picante, extraído de pequenas sementes de cor amarela da mostardeira e usado em pó ou em pasta, no tempero de diversos pratos salgados. • Janjabil (s.m.) gengibre Rizoma da planta chamada Gengibre, de cor amarelo-clara, sabor refrescante e aroma marcante. É usado, fresco, no preparo de bebidas quentes, em saladas, e em pó, como condimento para diversas receitas doces e salgadas. • Jauz Táib (s.f.) páprica Tempero em pó, de cor avermelhada, de sabor doce ou picante, obtido da moagem da polpa seca de pimentões vermelhos, doces e picantes e usada para temperar carnes e saladas. • Kerf (s.f.) canela em pó Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 475 Pó aromático, de cor escura e sabor quente, usado como tempero na preparação de pratos doces e salgados. • Louro (s.m.) uára el hár Planta aromática, cujas folhas esverdeadas e brilhantes, de sabor levemente amargo, são utilizadas, frescas, secas ou em pó, como tempero para carnes, conservas e outros. • Máhlebi (s.m.) máhlebi Grão pequeno, de sabor e aroma marcantes, encontrado dentro da semente da cereja-brava e usado em pó para aromatizar doces. • Mai záhar (s.f.) água-de-flor-de-larangeiras Essência aromática extraída da flor de laranjeira, em maceração e usada especialmente para aromatizar caldas de doces. • Mai ward (s.f.) água-de-rosas Essência aromática extraída das pétalas da rosa, por destilação a vapor e usada especialmente para aromatizar a calda de doces e bolos. • Mástic (s.f.) mastique Especiaria em forma de resina, de cor amarelo clara, com superfície farinácea, que é usada como aromatizante para bebidas e licores. • Mint (s.f.) essência de menta Óleo fino e aromático, de cor esverdeada, sabor refrescante, extraído da menta e usado para aromatizar bebidas, licores e determinadas receitas. • Misk (s.m.) misk Resina vegetal, em forma de pedra transparente, de aroma agradável, extraída de árvore típica do Oriente e usada para aromatizar doces e sorvetes. • Náana (s.f.) hortelã Erva aromática rasteira, de sabor intenso e refrescante, com folhas pequenas e opostas, de cor verde, de tamanho oval e com as extremidades serrilhadas. Usada em chás, aromatizantes de licores e bebidas, e como tempero, é ingrediente imprescindível no preparo do quibe e do tabule. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 476 • Náana Yêbsi (s.f.) hortelã seca Pó grosso, de cor verde escuro, obtido da folha de hortelã seca à sombra, que é amassada com a mão e usada como tempero para saladas, coalhadas e picles. • Sábaa Bharat (s.f.) sete pimentas Mistura preparada com a semente de sete tipos de pimentas usadas especialmente no preparo de carnes e recheios. • Sumak (s.m.) sumake Pó avermelhado de gosto bastante ácido e usado como substituto do limão em pratos e saladas. • Tahine (s.m.) tehine Pasta concentrada, de cor clara, consistência firme, preparada à base de semente torrada de gergelim e usado para temperar molhos, pastas, legumes e carnes. • Zátar (s.f.) tomilho Erva aromática com folhas pequenas e finas de cor verde, usada fresca ou seca, separadamente como tempero, ou na composição de outras misturas. • Yansum (s.m.) anis Semente aromática de sabor adocicado, obtidas de planta oriental, com folhas pequenas e flores brancas que dão origem a pequenos frutos ovais de cor marrom. As folhas são usadas no preparo de sopas, saladas e peixes, e as sementes para aromatizar massas, licores e bebidas. • Yansun áhdar (s.m.) anis-estrelado Especiaria aromática tirada de arbusto oriental, de casca acinzentada, que tem o formato de estrela de oito pontas, com uma semente oval, brilhante e de cor marrom. É usado, em pó, no preparo de pratos doces e na produção de licores e bebidas. • Zafarán (s.m.) açafrão Pó de cor amarela, aroma e sabor marcantes, obtido dos pistilos secos de cor alaranjada do açafrão. É usado como tempero de pratos salgados e corante natural. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 477 • Záatar (s.f.) zátar Mistura de várias especiarias secas e moídas como sumake, zátar, semente de gergelim torrada, tomilho e orégano, de cor verde escura, usada como tempero para quibes, queijos e receitas variadas. • Zauba (s.f.) zauba Erva de folhas verdes, de intenso aroma e sabor levemente amargo, usada seca ou fresca como tempero único ou na composição de outros temperos, como a mistura de zátar. Além dos arabismos desse campo semântico, temos encontrado vários outros distribuídos em vários campos e microcampos, em fase de organização em um Glossário de Arabismos da Imigração Libanesa no Brasil, cujo objetivo central é a comprovação da hipótese inicial da pesquisa que sustenta a interferência do árabe sobre o português produzido por imigrantes libaneses, caracterizada por um processo em contínuo desenvolvimento, estimulada por fatores de natureza linguística e extralinguística. Conclusão Os contatos entre o árabe e o português brasileiro em distintos momentos históricos desencadearam o fenômeno de interferência linguística, viabilizando a entrada de vocábulos árabes no português. Considerando a obra de Vargens (2007), o legado léxico possibilitado pela presença dos escravos muçulmanos não é numeroso e restringe-se ao campo religioso. Os arabismos introduzidos no português pelos imigrantes libaneses pertencem especificamente ao campo culinário, ressalvando-se, entretanto, que a escassez de pesquisa na área impossibilita conhecer se há outras contribuições léxicas decorrentes dessa imigração. Bibliografia AMADO. Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro, Record, 1994. ANDRADE, Carlos Drumond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992. CHEDIAK, A. J. Aspectos da influência árabe na língua portuguesa. Revista da Liga dos Estados Árabes. Rio de Janeiro, 1972. 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Uma vez que a canção tem sido frequentemente entendida pelo ambiente acadêmico como uma combinação de música e poesia - tomadas aí como duas artes distintas, desempenhando cada uma o seu papel-, as abordagens em relação ao seu estudo tem sido marcadas pela unilateralidade: as diferentes perspectivas que já surgiram e desapareceram nas teorias literárias, lingüísticas e sociológicas voltaram-se em ampla medida para os textos, tratados como entidades verbais; já no campo da música, recorreu-se a ferramentas da musicologia convencional para analisar canções como obras musicais encapsuladas em partituras, frequentemente relevando-se o seu conteúdo verbal (cf. FINNEGAN, 2008). Embora se tratem de duas abordagens legítimas, quando a canção é transposta para páginas escritas, por meio da transcrição verbal ou musical, ela sofre um processo de redução, no qual muitos de seus traços performáticos desaparecem. Ainda assim, parece ter sido somente nesta forma textual (e artificial) que a canção pôde se tornar um objeto legítimo de análise para os acadêmicos. No campo dos estudos da linguagem, a principal implicação deste tipo de abordagem foi o tratamento da letra da canção como poema escrito. Em seu livro mais recente, In the heart of the beat: The Poetry of Rap, Alex Pate adota este enfoque, buscando “liberar a poesia do rap – a literatura do hip hop – de expectativas estereotipadas acerca de seu 40 mariliagessa@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 481 funcionamento como canção”41 (PATE, 2010, p. 3). A fim de analisar os modos de expressão poética inerentes ao rap, o autor acredita ser necessário isolar a letra do rap de seus aspectos performáticos, inclusive da voz do MC, isto porque, em sua visão, é a letra que define o gênero rap e seu modo de existência. “I claim that the poetry of rap constitutes a whole, and that the music, or the beat of rap, is an addition to that whole. (...) More to the point, I argue that when it comes to rap, the words are more important than the music. And to further complicate this challenge, I am also suggesting that, in order to deal with the literary achievements of a given rap/poem, we must dismiss the actual sound of the poet’s voice.” (Ibid., loc. cit.). Nas análises empreendidas em sua obra, Pate (2010) procura demonstrar que a letra de um rap, bem como sua significação e valor literário são independentes da voz e do acompanhamento musical presentes em sua forma como canção, e que, em última instância, é somente por meio de sua leitura que se pode efetivamente interpretar e apreciar as qualidades literárias de um rap. O ponto de partida implícito no trabalho do professor Pate parece ser o de que a literatura é feita de textos escritos, pois a letra de rap apresenta-se para ele como objeto poético apenas quando liberada da canção e da sua performance, transposta ao papel como um objeto tangível, disponível para análise e releitura. Tal ponto de vista tende a reiterar a oposição escrito/oral, assimilando-a com a oposição poesia/não-poesia. Hoje, no entanto, definições sobre gêneros literários e poéticos que os atrelem diretamente à presença da escrita não satisfazem muitos pesquisadores. Finnegan (2005) considera que as canções, assim como outras formas poéticas orais, não são comparáveis à literatura escrita e nem classificadas como literárias no sentido mínimo de poderem ser reproduzidas como textos escritos, mas sim por possuírem características próprias, dentre as quais são essenciais o uso da voz e a co-ocorrência de multisemioses, que definem a sua natureza performática. E, desse modo, acredito que para discutirmos a natureza literária/poética das canções, uma distinção mais frutífera para este trabalho seria aquela entre poesia escrita e poesia oral, pois gêneros literários orais têm diferentes potencialidades em 41 Tradução minha. No original: “I want to liberate the poetry of rap – the literature of hip hop – from the stereotyped expectations of their function as ‘songs’”. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 482 relação à literatura escrita e esse aspecto é de importância primordial tanto para a apreciação quanto para a análise da canção como um modo de expressão estética. Vale ressaltar, no entanto, que ao propor esta distinção, não estou tomando como verdade que a escrita não possa participar dos processos de criação e até mesmo de transmissão e performance de um poema oral42. Ao contrário do que se costumava acreditar, um poema não é considerado oral somente se for composto sem que se recorra à escrita (cf. FINNEGAN, 1977). À exceção dos freestyles 43, o processo de composição de um rap é geralmente anterior à sua performance e mediado pela escrita. Mano Brown, membro dos Racionais MC’s, revelou-me em conversa informal que todas as letras de sua autoria no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia foram compostas por escrito, no entanto sem perder de vista o fato de que elas deveriam ser performatizadas para o público. Cada verso era cantarolado ao mesmo tempo em que era escrito, para que se adequasse ao ritmo e à métrica do rap. Além disso, cada palavra no encadeamento dos versos deveria soar claramente quando pronunciadas, do contrário, elas poderiam prejudicar a audição do verso todo e, consequentemente, o entendimento do conteúdo da letra pelo ouvinte. Em entrevista, KL Jay, o DJ do grupo, nos exemplifica este cuidado do MC: “Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o Mano Brown não deixa de fazer o plural porque ele não sabe que se fala os meninos ao invés de os menino. Ele não é ignorante. Acontece que o s é muito difícil de cantar. Ia soar embolado. Então, como todo mundo fala os menino, ele escreve também, pela facilidade de cantar. Ou então substitui os menino por a rapazeada”. Como podemos ver, no rap, a escrita deixa de possuir o valor de referência absoluta e de modelo regulador exclusivo do pensamento e do discurso poético para se tornar 42 Finnegan (2005) observa que a escrita pode interagir com a realização oral literária por meio de transcrição, cartões de memória, anotações, versões impressas de poemas orais, roteiros e até mesmo como ferramenta para que a audiência possa compreender melhor a performance durante o seu desenvolvimento, além de múltiplas combinações e seqüências destas e outras formas de interação escrita/oralidade. Estudos sobre oralidade que vão desde a performance oral de poemas na Corte Imperial Japonesa e na Europa Medieval até as recitações de poesia contemporânea, performances de canções populares e produções de rádio e televisão revelam que as formações textuais nestes contextos intercalam-se entre os modos orais e letrados e podem participar de ambos. 43 Os freestyles são raps improvisados no momento da performance. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 483 uma ferramenta entre muitas disponíveis no processo de criação, transmissão e performance de um poema (cf. BÉTHUNE, 1999). Assim, embora Mano Brown escreva as letras de seus raps, ele nunca perde de vista o fato de que elas serão interpretadas em shows e transmitidas por CDs na forma de canções, ou seja, que seu verdadeiro modo de existência é o oral, o que quer dizer que seus raps não têm sua existência na forma de um texto escrito, mas em sua performance realizada de forma temporal e sequencial através da ativação simultânea da música, do texto e do canto. Relatos do processo composicional do autor nos revelam indícios de que o rap é sempre pensado, desde o seu planejamento, numa relação de interdependência entre base instrumental, letra e canto. Quando perguntado sobre o seu processo de composição, no programa Do Lado de Cá44, Mano Brown responde: “Eu vejo um som, eu já dou um tema, o caminho que eu vou seguir, imagino a letra pronta e ela finalizada. Eu imagino ele [o rap] pronto.” Embora a concepção da base instrumental e a da letra do rap se dêem em momentos distintos, fica claro no depoimento de Mano Brown que estes são eventos profundamente interdependentes. É particularmente interessante aqui o fato de que Mano Brown inicia o processo de composição pela audição de uma base instrumental. É ela que guiará toda a concepção da letra, desde o tema até a escolha de palavras, de acordo com as sonoridades, possibilidades de encadeamento, aspectos timbrísticos, métrica e o ritmo sugeridos pela base instrumental. E é por isso que, mesmo antes do início da escrita da letra, o compositor “já imagina o rap pronto”, ele opera com a conjugação simultânea dos três eixos principais do rap (música, letra e canto) e seus desdobramentos, no ato da composição. Desse modo, tona-se evidente que o fazer musical e a visão do produto final aos olhos de Mano Brown não é segmentado. Compor um rap exige o esforço do autor em operar com essas três dimensões e estabelecer fios de ligação e significação entre elas. Esta posição de Mano Brown vai ao encontro da opinião de muitos estudiosos da poesia oral que têm entendido este gênero como um objeto multidimensional, ao invés de puramente oral. Isto porque os gêneros orais, cada qual com sua própria estética, podem se valer de uma série de recursos auditivos - rítmicos, prosódicos, timbrísticos -, visuais e gestuais, entre outros traços performáticos, que se aglutinam, transcendendo a separação de 44 Programa de Internet, disponível em www.doladodeca.uol.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 484 seus componentes individuais. Nesta perspectiva, no rap, bem como na canção popular em geral, texto e música compõem facetas superpostas de um evento performático que não pode ser dividido (cf. FINNEGAN, 2008). O rap evidencia como as palavras tornam-se um entre outros elementos em jogo no momento da criação e da performance poéticas - todos cruciais para a sua realização e recepção literárias-, o que implica em considerar que a poeticidade do rap, como um gênero oral (e multimodal), não reside apenas em sua realidade verbal, mas na atualização em performance de música, texto e voz. Portanto, ao se dirigir o foco de análise dos raps apenas ao seu conteúdo verbal, na forma de poemas escritos, corre-se o risco de negligenciar aspectos definidores do gênero. E é por isso que observar os papéis desempenhados por cada um dos elementos do poema em performance tem se tornado uma abordagem cada vez mais reconhecida para a análise das criações poéticas orais e é esta que empregarei nas análises do rap “To ouvindo alguém me chamar” dos Racionais MC’s que empreenderei a seguir. Longe de poder expor todos os modos pelos quais o canto falado de Mano Brown interage com a base instrumental e quais os significados que emergem dessa relação, neste artigo, procurarei exemplificar como as tecnologias sonoras de sampleagem empregadas na composição interferem ativamente na manipulação e produção de sentidos dentro da canção, por meio da teatralização de situações narradas e da inserção de sons não musicais que dirigem, muitas vezes, a interpretação do texto verbal. As relações entre texto e música nos raps dos Racionais MC’s: o caso do sample O rap brasileiro pode ser brevemente resumido como um poema oral (geralmente de longa duração quando comparado a outras canções populares), em que a arte de rimar é combinada a bases instrumentais produzidas por uma moderna tecnologia sonora. A metrificação dos versos não obedece à contagem de sílabas, mas ao pulso que marca o ritmo da música, na maioria das vezes, numa subdivisão quaternária (4/4). Em relação aos raps dos Racionais MC’s, tal fato pode elucidar porque Mano Brown utiliza a base instrumental como guia métrico para a criação de suas letras. As instrumentais de um rap são construídas por meio da repetição de uma mesma sequência musical do início ao fim da canção, por isso, raras vezes um rap comporta variações Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 485 e mudanças de compasso. No entanto, é interessante assinalar aqui que, nos momentos em que não há uma base instrumental acompanhando o canto, podem ocorrer tais variações e mudanças, pois sem a rigidez rítmica da instrumental, o intérprete ganha maior liberdade para cantar. A introdução de Jesus Chorou (MANO BROWN, 2002), por exemplo, iniciada na fórmula de compasso quaternário, para atender a exigências de metrificação do canto, torna-se ternária em um momento, conforme nos exemplifica a transcrição abaixo: Os métodos de produção do acompanhamento musical de um rap são baseados numa série de procedimentos manuais e tecnológicos de manipulação de sons já gravados e/ou sintetizados por computador, dentre os quais podemos citar: - o scratch: uma técnica executada pelo DJ que consiste na produção de uma escansão rítmica ou um efeito sonoro a partir de um ou vários LPs manipulados manualmente num vai-e-vem sucessivo sobre uma porção determinada do disco de vinil. - a mixagem: misturar as informações de diferentes fontes sonoras a permitir uma sensação de continuidade entre estes fragmentos, manualmente – utilizando dois LPs e um crossfader – ou eletronicamente, por meio de um computador. - a sampleagem: procedimento realizado por um sampleador que consiste na extração de sequências rítmicas, melódicas, fundos rítmicos, linhas instrumentais etc. de músicas já gravadas. Tais sequências podem sofrer modificações por métodos de manipulação sonora. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 486 - o corte: fragmentar frases musicais para serem sampleadas - o loop: repetição regular ou aleatória de um fragmento sonoro - layering: superposição de samples - beat box: biblioteca de sons sintetizados que podem ser incorporados às canções, adequando-se à velocidade, acentuação métrica, timbre etc. Por meio destes procedimentos, fragmentos de músicas e sons variados, ambos previamente gravados, podem ser extraídos de seus contextos originais e combinados de diversas maneiras de forma a comporem a base rítmica e melódica de um rap. Essa combinação é executada por um produtor45 e esses “pedaços de música” são chamados de samples que podem provir tanto de outros raps quanto de músicas pertencentes a outros gêneros musicais. Os samples podem ser ainda derivados de um material não musical, tais como diálogos, sons de sirene, choros, tiros, conforme veremos. O recurso do sample, do ponto de vista musicológico, põe em causa o papel da nota como a menor unidade da linguagem musical. Segundo Tordjman (1998), o sample definiu uma mudança brutal no alfabeto e no vocabulário musicais, dos quais a nota deixou de ser componente, e isso não pôde ocorrer sem que houvesse mudanças nas práticas de criação musical. Conforme ressalta Béthune (1999), a composição a partir de notas musicais é uma atividade altamente formalizada. Ou seja, na música ocidental, utilizar os códigos musicais tradicionais requer um conhecimento prévio sobre as suas regras e normas estabelecidas ao longo dos séculos. “Composer à partir de notes, c’est accomplir um itinéraire esthétique qui part de la théorie pour aller à l’objet.” (BÉTHUNE, 1999, p. 52). Já na composição de um rap, a prática de criação está calcada na manipulação dos equipamentos e instrumentos tecnológicos e não há a necessidade de um aprendizado formal de teoria musical. Trata-se de um processo empírico de recombinação de materialidades já existentes. “La pratique de l’ échantillonnage prive l’ oeuvre de sa dimension spéculative: la démarche créative y demeure exclusivement empirique. (...) La manifestation sensible de l’oeuvre est desormais 45 O produtor de música rap é aquele responsável pela montagem em estúdio das canções. É ele quem une a base de acompanhamento musical (que pode ser de sua autoria ou não) à letra cantada pelo MC e dá o acabamento final aos raps, inserindo scratches, samples e outros efeitos (cf. SCHLOSS, J., 2004). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 487 déterminée par l’habilité d’un tâtonnement expérimental où prévaut le sensible, et dont la mise en oeuvre s’apparente à une sorte de bricolage” (Ibid., loc. cit.). Na tradição musical ocidental, historicamente, sons que não fossem oriundos de um instrumento musical convencional não eram utilizados nas composições e seriam considerados ruídos se ocorressem durante a sua execução46. A técnica da sampleagem contribuiu decididamente para a mudança deste paradigma, uma vez que os samples podem ser combinados de diversas formas sem, necessariamente, obedecer a regras de harmonia, condução melódica, contraponto, entre outras e, com isso, o ruído passa a ser um som musicável. Deste modo, o rap pode extrair sons de diversas fontes, oriundas ou não de instrumentos musicais, e combiná-los de modo a constituir sua base instrumental e este fato é fundamental para o entendimento da importância que a porção musical tem na atualização dos sentidos provocados por um rap. Em “To ouvindo alguém me chamar” (MANO BROWN, 1997), por exemplo, os samples utilizados para compor a porção musical da obra se apresentam como poderosos recursos de teatralização dos cenários e das situações narradas nas letras, interagindo com o canto mais do que em aspectos rítmicos e melódicos e influenciando diretamente na produção de sentido do rap. A canção “To ouvindo alguém me chamar” é o relato autobiográfico do narrador da canção, um rapaz de aproximadamente 24 anos sobre a sua vida a partir de sua entrada no mundo do crime até o momento exato de seu assassinato. A narrativa é construída numa estrutura temporal não-linear, permeada por lembranças que se entrelaçam com o momento presente, como se o filme da vida do narrador passasse diante de seus olhos, entre o momento em que ele leva o tiro até o seu falecimento. Na verdade, a letra começa e termina com a dramatização do assassinato do narrador, de modo breve e até indecifrável no início da canção, sinalizada apenas pela fala “Aí, mano, o Guina mandou isso aqui pra você”, proferida por um personagem que não é o narrador, e de modo mais completo ao final da canção, conforme a transcrição: 46 Se acompanharmos a história da música ocidental, notaremos profundas mudanças no âmbito do fazer musical, com o advento da gravação. Desde os primeiros experimentos com a música concreta e as iniciativas que se seguiram, contribuíram decisivamente para o uso de sons não provenientes de instrumentos musicais convencionais. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 488 (Exemplo 1) Letra da Canção Acompanhamento Musical Dez minutos atrás Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Foi como uma premonição Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Dois moleque caminharam Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Em minha direção Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Não vou correr Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Eu sei do que se trata Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Se é isso que eles querem então vem Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Me mata Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação Disse algum barato pra mim Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco na caixa de som esquerda Que eu não escutei Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco na caixa de som esquerda Eu conhecia aquela arma Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco É do Guina eu sei Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Uma três oito zero prateada Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ Que eu mesmo dei 489 Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Um moleque novato Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Com a cara assustada Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco “Aí mano o Guina mandou isso aqui Base musical acompanhada de batida forte sem pra você” reverberação. Fala proferida por outro homem que não o narrador; a mesma que abre a canção. Som de quatro tiros Mas depois do quarto tiro eu não vi Base musical acompanhada de batida forte sem mais nada reverberação e som de quatro tiros; Som de monitor cardíaco Sinto a roupa grudada no corpo Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Eu quero viver Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Não posso estar morto Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Mas se eu sair daqui eu vou mudar Base musical acompanhada de batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Eu tô ouvindo alguém me chamar Batida forte sem reverberação, fim da base musical. O som do monitor cardiaco prolonga-se e depois cessa indicando a parada cardiaca. Nao há mais som forte sem reverberaçao indicando o ritmo cardiaco. FIM DA MÚSICA Conforme salienta Bentes (2007), este recurso de começar um relato por uma das cenas do acontecimento final da narrativa (in media res) é pouco utilizado em letras de música Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 490 em geral. Porém, o tempo de mais de onze minutos de “To ouvindo alguém me chamar” permite que Mano Brown explore diversos recursos textuais/narrativos e sonoros/musicais de modo a situar o ouvinte acerca da situação vivenciada no momento presente pelo narrador e sobre aqueles fatos que remetem a lembranças do passado. Desde os primeiros 23 segundos da canção, logo após o primeiro verso, “O Guina mandou isso aqui pra você”, e até o último verso cantado pelo MC (conforme transcrição acima), o compositor integra à base musical um som que reproduz o ruído de um aparelho de eletrocardiograma e batidas graves sem reverberação que sugerem o ritmo cardíaco do narrador enquanto ele agoniza, e por isso essas batidas são metricamente irregulares, fora do compasso quaternário da obra. Ainda que, de início, o ouvinte não saiba que o narrador fora vítima de um alvejamento, o receptor da obra tem a nítida sensação de que o coração do narradorpersonagem está sendo monitorado, o que sugere que ele esteja sendo atendido por médicos num pronto-socorro ou por paramédicos em uma ambulância. Para tornar esta imagem ainda mais acurada, o DJ KL Jay e o MC Mano Brown, produtores da canção, tiveram o cuidado de fazer com que esse som se movimentasse pelo pan estéreo, ou seja, que o som alternasse de uma caixa de som para a outra, reproduzindo o movimento de um gráfico de eletrocardiograma. É somente o efeito de prolongamento deste som, ao final da canção, sinalizando ausência de batimentos cardíacos, que indica ao ouvinte a morte do personagem. Tal procedimento composicional exemplifica uma marca importante de “To ouvindo alguém me chamar”: a situação presente do narrador é trazida à música menos por meio do texto verbal do que pelos recursos de encenação que os samples permitem incorporar. Esta estética é seguida durante a música toda. Antes do desfecho da narrativa, transcrita no exemplo 1, há apenas dois momentos em que o narrador canta sobre o seu momento presente, conforme os versos em negrito na transcrição abaixo. Porém, notem que, a primeira vista, numa análise tão somente textual, seria possível relacionar os versos em negrito com as situações narradas que os antecedem e julgar que, apesar do tempo verbal presente, o narrador está encenando uma lembrança do passado, conforme acontece em outras passagens da canção. A desambiguação das passagens só se opera se considerarmos a dimensão sonora da canção em sua análise. Vejamos os exemplos: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 491 (Exemplo 2) Letra da Canção Acompanhamento Musical Sample - Aí, é um assalto todo mundo pro chão, Cessa a base musical. pro chão Iniciam-se acordes de teclado, criando clima de suspense. Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Sample - Aí filho da puta aqui ninguém tá de Batida forte sem reverberação e brincadeira não Sample som de monitor cardíaco - Mas eu ofereço o cofre mano, o cofre, o Batida forte sem reverberação e cofre som de monitor cardíaco - Vamos lá que o bicho vai pegar Narrador Pela primeira vez eu vi o sistema nos meu Ladrões continuam falando ao pés fundo Apavorei... desempenho nota dez Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Dinheiro na mão o cofre já tava aberto Ladrões continuam falando ao O segurança tentou ser mais esperto fundo Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Então, Ladrões continuam falando Foi defender o patrimônio do playboy Sons de tiros Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Cuzão, Sons de tiros Não vai dar mais pra ser super-herói Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ Narrador Se o seguro vai cobrir Fim dos acordes de teclado He he, foda-se e daí? Sons de gritos 492 Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Hã, o Guina não tinha dó Sons de gritos ao fundo Se reagir, bum, vira pó Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Sinto a garganta ressecada Sons de gritos ao fundo E a minha vida escorrer pela escada Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Narrador Mas se eu sair daqui, eu vou mudar Batida forte sem reverberação e Eu to ouvindo alguém me chamar som de monitor cardíaco Respiração ofegante Narrador Eu to ouvindo alguém me chamar Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Respiração ofegante Batida forte sem reverberação e som de monitor cardíaco Sons de respiração ofegante, sirene policial, risadas e, ao final, o grito de uma mulher INÍCIO DE NOVA ESTROFE (Exemplo 3) Letra da Canção Acompanhamento Musical Agora é tarde, eu já não podia mais Base musical acompanhada de batida forte Parar com tudo, nem tentar voltar atrás sem reverberação e som de monitor cardíaco Mas no fundo, mano, eu sabia Base musical acompanhada de batida forte Que essa porra ia zoar minha vida um dia sem reverberação e som de monitor cardíaco Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ Me olhei no espelho e não reconheci Estava enlouquecendo, 493 Base musical acompanhada de batida forte não sem reverberação e som de monitor cardíaco podia mais dormir Preciso ir até o fim Base musical acompanhada de batida forte Será que Deus ainda olha pra mim? sem reverberação e som de monitor cardíaco Eu sonho toda madrugada Base musical acompanhada de batida forte Com criança chorando e alguém dando sem reverberação e som de monitor cardíaco risada Não confiava nem na minha própria sombra Base musical acompanhada de batida forte Mas segurava a minha onda sem reverberação e som de monitor cardíaco Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei Base musical acompanhada de batida forte o lugar sem reverberação e som de monitor cardíaco Que um conhecido meu, quem?, ia me matar Precisava acalmar a adrenalina Base musical acompanhada de batida forte Precisava parar com a cocaína sem reverberação e som de monitor cardíaco Não to sentindo meu braço Base musical acompanhada de batida forte Nem me mexer da cintura pra baixo sem reverberação e som de monitor cardíaco Ninguém na multidão vem me ajudar Base musical acompanhada de batida forte Que sede da porra eu preciso respirar sem reverberação e som de monitor cardíaco Cadê meu irmão? Base musical acompanhada de batida forte Eu to ouvindo alguém me chamar sem reverberação e som de monitor cardíaco Sons simultâneos de bebê chorando, de sirenes policial e de ambulância, risadas, e uma respiração ofegante que vai ficando cada vez mais forte. Cessa o acompanhamento musical de base, tornando-se mais evidentes a batida forte sem reverberação, indicando o ritmo cardíaco, e o som de eletrocardiograma. INÍCIO DE NOVA ESTROFE Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 494 Tal como acontece no exemplo 1, o verso “Eu to ouvindo alguém me chamar”, que fecha cada estrofe, é seguido pelo silêncio do narrador-personagem, também nos exemplos 2 e 3. Este verso claramente sinaliza ao interlocutor um evento externo àquele da narrativa que vinha em curso até o momento, chamando a atenção para as ações que estão acontecendo ao mesmo tempo em que o narrador personagem conta a sua história. No momento de respiro da canção, que segue o verso, o narrador se cala e os diversos efeitos de sampleagem vêm a primeiro plano, informando o ouvinte sobre o cenário em que o personagem se encontra e os diversos eventos externos simultâneos que estão ocorrendo ao redor dele. A partir destas pistas sonora/musicais, combinadas com as informações em negrito nos versos, o ouvinte consegue construir a imagem de um homem que está agonizando, caído no meio da rua, sendo socorrido por uma ambulância, com uma multidão em volta, e na presença da polícia. Apenas ao final da narrativa, no entanto, o ouvinte compreenderá que este cenário se deve ao fato do personagem ter tomado um tiro. E o desfecho da toda a situação se dá também sonoramente, com o eletrocardiograma sinalizando a morte do personagem, conforme demonstrado. Em geral, ao longo de toda a canção, as mudanças de cenário, de tópico e tempo narrativo não se operam linguisticamente. Tal fato aponta para uma diferença importante no que tange às possibilidades de realização literária oral e escrita: o que na escritura se opera por meio da explicitação discursiva, o rap integra em sua dimensão sonora. Em “To ouvindo alguém em chamar”, os recursos de sampleagem criam a ilusão de que o mundo não figura a título de simples representação, mas que ele se apresenta concretamente, ou ainda, de que o rapper não fala sobre a realidade, mas de dentro dela. “Per le jeu de ses collages complexes e de ses échantillons (samplings) variés, de ses montages en boucle et de ses superpositions, de ses scratchings, de ses prévelèments de tout ordres, la mise en scène sonore, inséparable de textes, accomplit une osmose du scène poétique et du réel avec une prégnance qui échappe encore à l’image.” (BÉTHUNE, 1999, p. 47) Segundo KL Jay, o DJ do grupo Racionais MC’s, o recurso da sampleagem confere uma expressividade à base musical que vai além da simples imitação ou ilustração sonora da situação narrada pelo canto, em que, por exemplo, o MC pronunciaria a palavra Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 495 “tiro” e sons de disparos seriam tocados simultaneamente; os efeitos de sampleagem constroem uma narrativa própria, que ocorre simultaneamente à narrativa falada. Os dois se complementam e, em sua opinião, não há hierarquia entre elas. A atribuição de maior importância à letra ou à música dependerá da audição de cada ouvinte. No processo de construção da base musical das canções dos Racionais MC’s, primeiro cria-se a base de acompanhamento e, só depois que a voz é colocada, que os recursos de sampleagem são inseridos. Como o texto verbal cantado não comporta explicações e contextualizações extensas, o DJ esclarece que cabe ao produtor de determinado rap perceber e musicar “a parte da história que o MC não conta”. Assim, o texto cantado não é simplesmente acompanhado por efeitos sonoros, ao contrário, sons verbais e sons não-verbais fundem-se num evento performático literário que não é dividido. De um modo geral, os Racionais MC’s utilizam-se muito do efeito de sampleagem de sons não musicais em seus raps. No entanto, há algumas canções que são construídas inteiramente com o recurso da sampleagem de trechos de outras obras musicais que se repetem durante toda a música, com poucas variações. Sobre esses raps, KL Jay diz que a base musical é tão importante quanto nos outros, na medida em que é ela que conduz o ouvinte para o texto. Em entrevista, o DJ me diz: “Pra fazer o rap, a primeira coisa, a música tem que ser boa. E ela tem que repetir. O cara ouve aquela base e fica ali, só prestando atenção nos sons, pensando no que vem depois. Ele se envolve na repetição. É foda. Ele fica ali... Quando a voz entra, ele [o ouvinte] já tá dentro da música, e começa a prestar atenção no cara [o MC quando canta]. Só porque ele gosta da música que ele consegue ouvir a idéia. Senão virava só discurso. A idéia tem que ser boa, pra frente, mas a música tem que ser do caralho, se não a idéia boa não serve pra nada.” KL Jay relata ainda que os ritmos de fala e da música se integram de modo que as sonoridades da voz e da base de acompanhamento tornam-se um só fluxo musical, e que a atenção do ouvinte não se divide entre letra e música, mas dirige-se à interação entre um e outro. O que seria este ato de voltar-se à forma do que é dito mais ou tanto quanto ao que é de fato dito, senão a recepção poética? Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 496 Algumas considerações finais Finnegan, em seu texto The How of Literature (2005), convida-nos a olharmos os glossários e enciclopédias de literatura e a observarmos como muito pouco ou mesmo nada é escrito a respeito dos complexos aspectos performativos dos textos literários cujas formas principais de realização são a exibição pública no aqui e no agora, pois seus autores baseiamse na posição estereotipada de que literários são aqueles trabalhos cujos pontos de partida e final de referência são a sua existência como escritura. A autora frisa ainda que, quando mencionados, os aspectos performáticos aparecem como irrelevantes diante da existência concreta e duradoura dos textos escritos. Uma visão de literatura que engloba a oralidade e a imediatez da performance desafiou o paradigma da alta literatura como a norma pela qual todas as formas de arte verbal são julgadas e permitiu uma maior valorização da realidade literária de gêneros populares que se encontram fora do tradicional cânone europeu, como o rap, por exemplo. Assim, os conceitos de literatura oral e de poesia oral abriram-nos para um maior entendimento das diversas atividades de realização literária, levando-nos para além da análise de textos escritos e oferecendo-nos um campo mais amplo de estudos dos gêneros orais e literários. A poesia oral põe em causa a suposta separação entre os recursos expressivos linguísticos e paralinguísticos. Segundo Finnegan (2005), uma das principais características da literatura oral é a sua multimodalidade. Ora, não poderia ser diferente, uma vez que esta é também uma das qualidades de qualquer texto oral, formal, informal ou poético. Para Urbano (1997), a expressividade, inerente à língua falada, se manifesta não só por meios estritamente lingüísticos como também por outros meios de natureza não linguística, conforme o esquema abaixo: verbais: gírias, vocativos etc RECURSOS EXPRESSIVOS suprassegmentais: lingüísticos prosódicos entonação, acento etc Co-segmentais: ordem etc pausas, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ não-lingüísticos/paralingüísticos 497 cinésicos: gestos etc situacionais (URBANO, 1997, p. 122) Para Finnegan (2005), deve ficar claro que aqueles que produzem artes literárias performáticas fazem mais do que apenas enunciar palavras: “They also play upon the flexible and remarkable instrument of the voce to exploit a vast range of non-verbalized auditory devices of which the prosodic that are up to a point notated within our literary texts – rhyme, alliteration, assonance, rhythm, acoustic parallelisms – are only a small sample. There are also subtleties of volume, pitch, tempo, intensity, repetition, emphasis, length, dynamics, silence, timbre, onomatopoeia, and the multifarious non- verbal ways performers can use sound to convey, for example, character, dialect, humor, irony, atmosphere, or tension. And then there are all the near-infinite modes of delivery: spoken, sung, recited, intoned, musically accompanied or mediated, shouted, whispered; carried by single or multiple or alternating voices. (...) It goes beyond the vocal too, huge as that whole range is. Percussion and instrumental music can play a part too (...)”. (FINNEGAN, 2005, p. 170-171) A posição da autora levou-me a considerar que a poeticidade de um rap existe na conjugação de um texto integrado a uma composição musical e, por isso, uma abordagem que trabalhasse com o rap considerando-o como texto escrito não me pareceu adequada para o entendimento das suas possibilidades de realização estética/literária: sua análise e sua crítica devem ser empreendidas levando-se em conta a sua dimensão sonora. Nesta perspectiva, a análise da interação entre o canto do rap e os samples pareceu-me muito ilustrativa para demonstrar a qualidade multimodal da obra poética oral e a importância dos aspectos paralinguísticos para a compreensão do texto verbal. Na obra dos Racionais MC’s, o sample, como ferramenta composicional da obra musical, é utilizado de forma a atrair a atenção do ouvinte aos diversos elementos em jogo na canção e ao modo como eles interagem na criação de uma mensagem poética. Isto se dá pela intenção consciente do compositor, conforme relato de KL Jay, de construir uma sequência sonora que seja prazerosa ao ouvinte, para que, assim, ele possa centrar sua escuta nos modos como o rap se desenrola progressivamente, som a som, incluindo-se aí a dimensão do canto. A partir, então, do prazer estético suscitado pela canção, pela atenção dada à forma sob a qual Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 498 ela se desenvolve, o ouvinte poderá apreender o seu conteúdo e a sua mensagem, tal qual descreve Jakobson a respeito da função poética da linguagem. Ora, se a música constitui-se como esse elemento de mediação importante e, até, indispensável, conforme salienta o DJ, entre ouvinte, o prazer experimentado na recepção poética e a construção de sentidos, logo, os aspectos musicais e sonoros do rap não poderão ser considerados elementos contingenciais adicionados à obra completa e elaborada das letras, como argumenta Pate (2010). Longe de se constituírem como aspectos secundários na composição dos raps dos Racionais MC’s, os samples desempenham papel central nos modos pelos quais o ouvinte constrói os sentidos do poema. As análises de “To ouvindo alguém me chamar” demonstraram que as bases instrumentais utilizadas nas composições não conferem apenas acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração àquilo que é expresso pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão necessariamente dados no texto verbal. Uma vez que o rapper dispõe da tecnologia de inserção de efeitos sonoros diversos, ele pode integrar à esfera musical informações que, na literatura escrita, deveria darse por meios de explicitação discursiva. Notem como, em Sou Mais Você, o grupo opera a passagem da noite para a manhã, sem utilizar nenhuma palavra: Duração do som Tipo de som 0’’ a 5’’ som de carro freando 6’’ a 8’’ som de tiros 7’’ a 16’’ som de cachorros latindo 9’’ a 15’’ som de carro saindo em arrancada 16’’ a 24’’ ((silêncio)) 25’’ a 28’’ som de galo cantando 32’’ a 1’45’’ som de despertador tocando 44’’ a 1’47’’ base musical 46’’ a 1’45 canto do rap por Mano Brown Não quero com isso dar a entender que o texto fora relegado a um lugar de segunda importância. Ao contrário, não poderíamos compreender “literatura” sem que este Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 499 conceito nos remetesse à arte verbal. O fato é que, cada vez mais, o estudo comparativo das práticas literárias ao redor do mundo tem levado estudiosos a compreenderem que outras semioses podem co-ocorrer com a palavra, sem que isto afete a percepção de seus produtores e receptores de que se trata de uma obra literária. Exemplo disso é que, quando perguntado se era poeta, Mano Brown respondeume assertivamente: “Eu faço rap. E rap é poesia.” À mesma pergunta, KL Jay respondeu-me, em tom de brincadeira, que era o “poeta das pick-ups”, já quando perguntado se rap era poesia, respondeu-me séria e prontamente que sim, “o rap é a poesia dos pretos”. Ao longo da pesquisa de campo realizada por mim também entre receptores de rap nas periferias paulistanas, pude perceber que estes sujeitos envolvidos com a cultura hip hop não consideram haver diferença alguma entre rap e poesia. A dimensão sonora e musical do rap não o desqualifica, portanto, como um produto literário. Ao contrário, abre as portas para que, aqueles interessados nas diversas formas pelas quais a literatura se realiza, possam entender os modos plurais pelos quais ela é produzida e recebida. Bibliografia FINNEGAN, R. Oral poetry. Cambridge: Cambridge University Press. 1977. ______. The how of Literature. In: Oral Tradition. 20/2. 2005. pp.164-187. ______. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance? In: C. N. MATOS, E. TRAVASSOS, & F. T. MEDEIROS, Palavra Cantada: Ensaios sobre Poesia, Música e Voz (pp. 15-43). Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. MANO BROWN. Jesus Chorou. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais MC’s. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 2002. ______. Sou Mais Você. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais MC’s. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 2002. ______. To Ouvindo Alguém Me Chamar. CD. Sobrevivendo no Inferno. Racionais MC's. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 1997. PATE, A. In the heart of the beat: the poetry of Hip Hop. Plymouth: The Scarecrow Press, Inc., 2010 TORDJMAN, G. Sept remarques pour une esthétique du sample. Technikart. Vol 20. 1998. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 500 URBANO, H. A expressividade na língua falada de pessoas cultas. In: D. Preti. O discurso oral culto. São Paulo: Humanitas, 1997. pp. 115-139. ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 501 “A VOZ É A PESSOA”: PERFORMANCE DE DONA RITA NA LAPINHA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS Marinaldo José da Silva47 (PG-UFPB) Maria Ignez Novais Ayala (Profa. Dra.-UFPB-Orientadora) Este trabalho propõe discutir alguns aspectos da oralidade, no que se refere à performance de uma brincante, Dona Rita Viturino, da Lapinha Sagrado Coração de Jesus e à escritura em um depoimento dado por ela. O material utilizado para análise foi parte de uma pesquisa de campo, feita por mim, para montagem da minha dissertação de mestrado, realizada entre 1998 e 2002, na comunidade de Mandacaru, bairro da capital. Naquele momento, não utilizamos o teórico Paul Zumthor, agora foi direcionando, principalmente, à poesia oral, nome que recebe a obra dele que serviu de base como proposta de execução deste trabalho. A Lapinha é uma dança dramática popular com características religiosas no que diz respeito às alusões ao Nascimento do Menino Deus. Fundamenta-se em uma perspectiva de diálogo com as propostas de Paul Zumthor – um pensador das poéticas do oral e vocal, estudioso do medieval às culturas tradicionais, do universo da oralidade presentes nas performances contemporâneas. Pensando na onipresença da voz e a diversidade de registros, resolveu-se utilizar como corpus deste trabalho, um depoimento oral que foi transcrito na tentativa de produzir um texto mais próximo da fala. A expressividade vocal da brincante foi vista da forma mais fiel com que ela falava, pois a intenção seria manter os valores lingüísticos da voz. Pensando assim, em meio às classificações de uma oralidade primária (código oral – a fala do inconsciente coletivo) ou pura, sem contato com a “escrita” – a oralidade pura define uma civilização da voz viva, em que esta constitui um dinamismo fundador simultaneamente preservador dos valores de palavra e criador das formas de discursos próprios para manter a coesão social e moral do grupo. Desta forma, a oralidade será a matriz da escritura, pensando na fala de Dona Rita – voz poética. 47 marpopular7@hotmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 502 O corpo e sua relação com a voz serão analisados por meio de fotografias, formas de expressão escrita e algumas jornadas (cantos da ‘brincadeira’) expostas no decorrer do depoimento de Dona Rita. O objetivo é construir uma experiência compartilhada de bases teóricas e metodológicas com foco na cultura tradicional e na literatura oral. Assim, propiciar o conhecimento da diversidade cultural oral brasileira a partir de registros de pesquisa de campo e estudos etnográficos e mostrar como a escritura pode ser posta a serviço da oralidade. Algumas consideração sobre o Folclore e a Cultura Popular numa perspectiva oral O folclore tende a mobilizar, deixar a cultura popular estática pelas derivações de conceitos limitados se pensarmos em resgate, mas a cultura popular é dinâmica por ter a diversidade de saberes, vozes, depoimentos, podendo assim evidenciar passagens do cotidiano, pois a vida sócio-cultural é repassada nas próprias histórias, geralmente numa sociedade rústica em meio daqueles que fazem as brincadeiras populares, em geral. É com a oralidade que se rompem os limites estabelecidos pelos estudiosos do folclore. Pode-se pontuar a seguinte consideração de Oswaldo Elias Xidieh quando diz que “a cultura popular é uma soma continuada entre pessoas de um determinado lugar, a partir de um tempo não determinado, sendo informado por meio de traços orais, costumes, fazeres e saberes” - (XIDIEH, 1976). Pensando a cultura popular enquanto híbrida, ela não é presa a uma tradição. É grande o impasse entre oralidade, voz, som entre outros elementos que envolvem a performance do ser na lingüística, porém se pensarmos na abordagem de Walter Ong sobre oralidade e cultura escrita, pode-se verificar a importância histórica da escrita e seus respectivos registros dizendo que “é útil abordar a oralidade e a cultura escrita de modo sincrônico, pela comparação entre culturas orais e culturas quirográficas (ou seja, escritas que consistem num dado período). Mas é absolutamente essencial abordá-las também diacrônica ou historicamente, pela comparação de períodos sucessivos”. Outro ponto importante que podemos salientar é a questão da oralidade da linguagem, apontando a questão da oralidade primária, a oralidade de culturas não afetadas pela cultura escrita, mtivo discursivo, classificatório, de Walter Ong. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 503 Sob esta perspectiva, pensamos no depoimento de Dona Rita, transcrito de forma muito cuidadosa para que não perdesse a poesia oral de sua fala, pois Dona Rita desconhece inteiramente a escrita, motivo que se enquadra na oralidade primária levantada pelo teórico em questão. A escrita é uma representação da linguagem falada na forma visível. Isso é bastante comum no que se refere aos depoimentos daqueles que fazem a cultura popular. Pensando na Poética da Voz, de Zumthor, esboçamos o seguinte esquema: A voz é um grande fio cultural É importante, hoje, falar em cultura oral e cultura escrita. Em meio às diversas formas de oralidade, a voz é um grande fio cultural, pois é a partir dela que se constrói a performance do gesto e do corpo. VOZ............+ ............GESTO........ =............ PERFORMANCE / / / DANÇA / / / REPRESENTAÇÃO (o sagrado se dilui na performance do imaginário) CANTO / (som) PROVOCA IMAGENS, PROVOCA O GESTO / / A VOZ IMPREGNA NO CORPO (movência das imagens) / / / / / / PROVOCA EMOÇÃO (êxtase) / / / MOVÊNCIA DAS IMAGENS Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 504 LIBERDADE DE AÇÃO - - - - - - - - - - DANÇA E CANTO - - - - - - - LAPINHA / / / / / / / / / VOZ - DONA RITA - LAPINHA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS Enquanto esse fio condutor que pudemos chamar de VOZ, na leitura de Zumthor, faz-se necessário apontar os seguintes tópicos sobre o esquema exposto: Para se chegar aos textos orais, é necessário chegar às pessoas e tentar perceber o flagra no momento da conversa, pois esquematicamente podemos pensar nos componentes do ato de fala: emissor, receptor, mensagem, código, canal e referente. Dependendo da ênfase que se deseja dar a cada um dos componentes da comunicação, a linguagem pode assumir diferentes funções, entretanto, na lingüística pode-se pensar na performance da voz. Observemos o esquema no qual se pensou assim: PERFORMANCE = SIGNO = REPRESENTAÇÃO / VOZ – (ela está no corpo, emprenha o corpo – emissor) / / CORPO (ele é a recepção – receptor) / / TEXTO (todo o texto é teatral, representa a voz - mensagem) / / MEMÓRIA (história individual ou coletiva expressa pelo oral – canal) / / Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 505 TEMPO ANTROPOLÓGICO (fala de Dona Rita – assunto da mensagem – referente) - A oralidade é plural, é de um conjunto de seres que somam, aderem, não hierarquizam. - A voz alimenta a escrita. - O oral sempre é negligenciado, principalmente quando se trata do popular. - As oralidades se comunicam entre si, mas são específicas. - Na performance da voz, a voz é a pessoa. A voz tem a identidade da pessoa. - A performance é puramente corpo e voz. - A voz é a portadora da linguagem. É por ela que se articulam as palavras. - Há uma classificação da oralidade: primária, código oral – fala do inconsciente coletivo ou puro sem contato com a ‘escrita’, diz: “A oralidade pura, define uma civilização da voz viva, em que esta constitui um dinamismo fundador simultaneamente preservador dos valores de palavra e criador das formas de discursos próprios para manter a coesão social e moral do grupo” - (ZUMTHOR, 1997). Dona Rita: a Voz da Lapinha Em meio às indicações e descobertas, encontrei Dona Rita, Rita Viturino Monteiro, 78 anos, migrada do Recife – PE, com muita história de lapinha para contar. Ela era a organizadora da Lapinha Sagrado Coração de Jesus, desde menina, aos cinco anos, já fazia parte da brincadeira, desenvolvendo diferentes papéis nas apresentações públicas. Por participar há muito tempo das lapinhas de João Pessoa, Dona Rita carrega na memória a lembrança da tradição das várias montagens já vivenciadas ao longo de sua vida. A cada ano, apoia-se em experiências mais recentes ou do passado, quando brincou como Cigana, como Linda Mestra ou como outro dos dezoito personagens deste espetáculo, tem colaborado ativamente para dar beleza e entusiasmo, tanto ao cordão azul, quanto ao cordão encarnado, os dois partidos que dão vida a esta dança. Hoje em dia, Dona Rita mora no município de Conde, considerado Grande João Pessoa. Lá Dona Rita conseguiu reunir um grupo, no ano em que chegou por lá, mas não chegou a queimar a lapinha. Em 2001, ensaiou algumas meninas e fez apenas a Festa da Queima da lapinha, que se realizou no dia cinco de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 506 janeiro de 2002, às 19h em sua casa, onde montou um cercado improvisado de palhas de coqueiro com uma gambiarra, dois tocadores, sendo um de pandeiro e outro de cavaquinho, sem aparelho de som, véspera do Dia de Reis, dia em que geralmente fazem esta festa. Dona Rita é quem sempre canta as jornadas na sua lapinha. Às vezes canta com a Linda Mestra, principal pastorinha do cordão encarnado, ou com a Contramestra, principal pastorinha do cordão azul. Mesmo vindo da terra dos famosos pastoris ‘apimentados’, como o Pastoril do Velho Faceta, Dona Rita conduz a sua lapinha para o lado mais religioso e mais familiar. Para ela, pastoril é de ”puta”, pejorativamente falando. Lapinha é de crianças, meninas e moças. Ela tem muito respeito por esta dança, por isso as meninas impulsivas não dançam, e como ela diz: “Tem que procurar as menina’ com o candeeiro”. Pois a brincadeira é bastante séria: louvar o Nascimento do Menino Deus, é de fundamental respeito entre aqueles que participam da lapinha. Estruturação do Espetáculo As lapinhas de João Pessoa são compostas, normalmente, por dezoito pastoras distribuídas em três fileiras. Nestas três filas as pastoras dividem-se em dois cordões: Cordão encarnado: Lindo Anjo, Linda Mestra, Camponesa, Borboleta, Linda Rosa, Diana e a Pastorinha. Cordão azul: Lindo Guia, Contramestra, Libertina, Borboleta, Lindo Cravo, Açucena e a Pastorinha. A terceira fileira, que é mista, é composta por Linda Estrela, Linda Céia, Pastor e Cigana, personagens que pertencem ora a um cordão, ora a outro, quando não representam à fusão das duas cores. A Estrela tem traje na cor azul e pertence ao cordão de mesma cor. O Pastor se veste com as duas cores, também pertence ao azul. A Linda Céia se veste de encarnado, logo pertence ao cordão encarnado. A Cigana carrega as duas cores e faz parte do cordão encarnado. Assim, são sete pastorinhas em cada lado, mais quatro entre o azul e o encarnado que pertencem a cada um deles, contendo no final nove pastoras em cada um dos cordões. O momento em que pudemos comprovar essa divisão do cordão central foi quando Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 507 as pastorinhas entraram no local de apresentação dançando uma marcha, música apenas orquestrada, divididas em apenas dois cordões. É composta por crianças e mocinhas de idade entre cinco e dezesseis anos. Cada uma delas desempenha um papel diferente dentro da lapinha. São pastorinhas que têm seus versos cantados e recitados, muitas vezes têm suas cenas específicas, quando não fazem parte apenas da encenação principal do espetáculo, que é a cena da morte e ressurreição da Contramestra. Além dessa cena maior da apresentação há também outras, como a cena das Borboletas; as da Cigana: parte da esmola e da leitura das mãos de cada pastorinha que é cantada e recitada; a do Pastor, entre outros entrechos dramáticos que passam pela oferta de cravos perfumados e ramalhetes de flores oferecidos aos partidários de cada cordão. A Voz Poética de Dona Rita: uma Performance do Popular No que diz respeito às transcrições, tentamos reproduzir, por meio da escrita, da forma mais fiel possível, tudo o que estava contido no registro feito em fita cassete e, principalmente, os comentários do que foi visto durante o registro oral, por exemplo: (“...o povo fica tudo assim...” - [Faz uma expressão de espanto] - Fala de Dona Rita em uma das entrevistas sobre a beleza da montagem da sua lapinha. Em seguida, colocou-se uma convenção para indicar os gestos expressivos enfatizando o momento da fala, respeitando toda performance daqueles que fazem a brincadeira. É oportuno dizer, no entanto, que a análise deste material é apenas uma amostra que fizemos, relacionadas ao texto escrito, inédito que exige bastante atenção. Logo, trata-se de uma transcrição de um depoimento de uma participante da lapinha Sagrado Coração de Jesus que fazem da cultura popular um labirinto poético cheio de encanto, cânticos e sabedoria, possibilitando-nos vários caminhos a percorrer. Nas experiências que vivenciamos com Dona Rita, sentimos que seria fundamental sermos fiéis ao máximo possível dentro das entrelinhas dessa transcrição procurando respeitar o jeito da fala do outro e tentar entender a duração de emoção na pausa, como fluxo da memória no momento da mesma, para não interrompê-la. É cômodo para nós, ouvirmos Dona Rita, por exemplo, falar. Mas, é uma tarefa meio árdua somar ao seu jeito expressivo e exagerado, comum entre tantos que ‘sabem’ fazer Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 508 uma brincadeira e carregam na alma o dom de se mostrar, de pura soberba, muitas vezes excluída por um outro ‘saber’, com a sua fala ornada de trejeitos: “Nói’, vói’, Viemo’, depoi’ Trei’Rei’, véia’, foo’emmm, quarennnta, ói’, mair’, ar’ menina’” (essa substituição do “s” por “r” nesses dois últimos exemplos é uma marca muito comum na fala de Dona Rita ao longo do texto, por isso, optamos por deixá-la.), entre tantos outros que iremos nos deparar ao longo dessas falas e de outras, resultando nas transcrições em textos. Vale salientar que para marcar o abrandamento, queda de alguma letra e substituição de uma letra por outra, principalmente o ‘s’ para grafar o plural em todo o período, fizemos uso de um apóstrofo, forma que encontramos para chamar a atenção nessas passagens. Também achamos importante dobrar, triplicar ou repetir quantas vezes fossem necessários, algumas vogais para dar vida ao texto, fazendo-o enfático e mais original em meio à fala e cantos da colaboradora. Tentamos com isso, explorar as várias possibilidades da língua para dizer e poder mostrar essas expressões, assim como foram trabalhadas as formas de escrevê-las. Iremos perceber também que muitas vezes os colaboradores falam a mesma palavra de formas diferentes, isto é muito freqüente no discurso de Dona Rita (Corremos corremo’). Outra coisa é a marca de reticência no final e no início das falas de Fátima (filha dela), Dona Rita e a nossa, para indicar a fala simultânea de cada um no momento em que pensam para dizer alguma coisa (no que podemos chamar de fluxo da memória). O uso da vírgula ‘desnecessária’, foi ‘proposital’ para marcar o jeito de falar dos colaboradores. Sei que há possibilidade até de se perder, perturbar-se frente à complexidade de um texto transcrito, mas podemos dizer que sairemos ganhando se seguirmos à frente. Segundo Paul Thompson, quando se refere ao pesquisador à coleta de dados na pesquisa de campo, diz que: Uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o informante falar. Você deve manter-se o mais possível em segundo plano, apenas fazendo algum gesto de apoio, mas não introduzindo seus próprios comentários ou histórias. Essa não é ocasião para você mostrar seus conhecimentos ou seu charme. E não se deixe perturbar com as pausas. Ficar em silêncio pode ser um modo precioso de permitir que um informante pense um pouco mais e de obter um comentário adicional. (THOMPSON, 1992: 271). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 509 A entrevista com Dona Rita, a responsável pela organização da Lapinha Sagrado Coração de Jesus, do bairro de Mandacaru, em João Pessoa, foi realizada dia 22 de outubro de 1998. Neste texto é preciso pensar na palavra oral enquanto dimensão da prática poética que determina o plano físico, psíquico e sociocultural, pois são pela voz que se articulam as palavras. Vejamos: Dona Rita: (...) Eu peguei a dançar lapinha eu tava com cinco anos de idade. Daaancei, na rua de doutor São João, aaali onde ficava a matança velha. Sabe onde fica? Ali detrai’ aquela rua do cemitero’, lááá... que hoje é tudo mato. Agora que tão botando o asfalto nas casa’. Depoi’, minha mãe vei’ me buscar ... aaa minha prima vei’ me buscar de novo, eu vim ser Cigana, eeeu ganhava munto’ dinheiro! Meus cabelo’ era pela cintura menino! A subranceia’, que agora caiu-se, pelô’! A subranceia’ era beeem graaande, a boca cheia de dente, meus olho’ era grande, diminuiu! Adepoi’ de véia’ fiqueiii... porque quando a gente fica véia, fica tudooo, muda logo! Aííí ficou. Depoi’, nói’ viemo’ morar em Zé de Barro, aí a finada Massulina inventou uma lapinha mai’ a fia’ dela, e Rita vai ser a Mestra; lááá fumo’. No outo’ ano, qu’eu num sei da data do ano mai’, no outo’ ano, aí Dona Regina botou outa’, vamo’ ser Mestra, Dulce botou no outo’ ano, vamo’ ser Mestra, depois Maria de Baxim’ botou outa’ no Roger, vamo’ ser Mestra. E e tudo eu dancei por Mestra. Eee a lapinha de Dona Julha’ Preta em Mandacaru eu dancei doze ano’ por Mestra ... nunca perdi, ... nuuunca perdi, só saia ganhando. Então, e lá vai, depoi’ eu disse: Agora eu vou botar pra mim mermo’ em casa ... aí fiquei ... botei em quaren’não! Botei emmm... quarenta e n’quarenta e nove, quarenta e nove, não! Peraí’, foo’emmm... parece em trinta e oito, foi em trinta e oito. Quarennnta... Fátima:...Quarenta e oito! Dona Rita: Êh?! Ói’... Fátima: ...Quarenta e oito. Dona Rita: Quarenta e oito. Quarenta e sete. Tudo eu botava lapinha. Pa’ findar da conversa, eu terminei em cinqüenta, queimei a lapinha num sábado, e casei no outo’. Aí depooi’ passei de maior, fui ficando véia, fui tendo fie’, fui tendo aperreio, foi tudo assim. Fui pro Recife. Quaaando eu cheguei lááá, o povo: Vamo’ botar’ lapinha? Eu digo: Não. A lapinha daqui é muito diferente. – Não, mai’ a senhora vai meno’ ajudar, num sei o quê! Eu digo: Vou não. E depoi’ qu’eu n’t [Estala a língua], eu não! Aaaíí, ajudei duar’ lapinha’ no Recife. Depoi’, aquela menininha minha aí [Aponta para a fotografia na parede] que morreu, inventou uma lapinha ali ói’! [Sinaliza para a frente da casa] No terreiro de casa, de criança; quememo’! Depoi’, eu me abusei! Eu digo: Eu quero mair’ lapinha não, ih! Quero mair’ não! Aí Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 510 quand’eu cheguei aqui, aí tinha uma lapinha ali, a mulé’ saiu da lapinha, aí minha nora disse: Nildo, ali tem uma mulé’, a minha sogra, chegou do Recife, ela dançou muita lapinha, se tu quiser qu’ela vá ensinar ar’ menina’, ela vem. Aí Nil disse: Eu queero! Aí mandou me chamar. Eu fui lááá; aaíí, tá certo! Aí pronto. Fo’em oitenta ... e sete! Oitenta e sete, oitenta e oito... Dona Rita: Maaas naquele teeempo, as coisa era muito boa, eu aprendi muita coisa, depoi’ fui aprendendo, foi depoi’ foi aprendendo e hoje eu tô véia’ eee só sei dessa besteira mermo’ ... Agoraaa... Podemos dizer que a Lapinha é uma forma de homenagear o nascimento do Menino Deus, com dança, canto em jornadas, gestos e performance numa perspectiva artística, brincante e religiosa que dependerá da criação de quem a organiza. Como feito da memória do fazer, do montar, do criar as diversas situações culturais vinculados à tradição-experiência em meio à memória, permanência da lembrança e do saber, pois Ecléa Bosi diz que: suas memórias contadas oralmente foram transcritas tal como colhidas no fluxo de sua voz. E eles encontraram também os limites de seu coro, instrumento de comunicação às vezes deficitário. Quando a memória amadurece e se extravasa lúcida, é através de um corpo alquebrado: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta, a cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as lágrimas incerciveis. Se as lembranças afloram ou emergem quase sempre são uma tarefa, uma paciente reconstituição. Há no sujeito plena consciência de que está realizando uma tarefa. (BOSI, 1987). Ao expor um contexto transcrito, tentando reproduzir, pela escrita, a voz de uma mulher, em plena atividade, como uma polifonia da Lapinha Sagrado Coração de Jesus, seguindo-se a fala popular de uma organizadora da brincadeira. Com isto, poderemos compartilhar sua experiência, contrapondo com as palavras de Ecléa Bosi, transitando na memória a experiência da voz. Assim, buscamos evidenciar a Lapinha Sagrado Coração de Jesus e a sua responsável em um estudo de caso por meio da voz, a partir do qual se pode entender parte da história da lapinha em João Pessoa por meio da oralidade. Enquanto dança dramática, isto é, espetáculo de teatro popular que envolve diferentes personagens, versos cantados, textos Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 511 declamados, tem-se uma das maneiras de existência da literatura popular. Esta se constrói na fusão de poesia, textos narrativos declamados, cantos, tendo a memória cultural alicerçada na experiência de pessoas que carregam em si sua história. Nas Encruzilhadas das Vozes Poéticas, a Performance de Dona Rita na Lapinha Sagrado Coração de Jesus, Ecoa na Cultura popular “... assim como me ensinaro’, a minha prima que já morreu fa’i muitos ano’, Dona Maria, de finado Augusto, também já morreu fei’ muitos ano’, Maria do fumero, tudo isso que me ensinava, que elas já dançaro’ e já era povo vei’ que já tinha dançado quando acho quando o mundo começou, éé era!” (Dona Rita) JORNADA Entre as pastoras entrai Venham ao presépio adorar Adorar um Deus menino Que nasceu pra nos salvar Enquanto o menino dorme Ressona entre as palhinhas Vamos à margem do rio Lavar suas camisinhas Lavandeira quer lavar Roupa de Nosso Senhor Lavar em rios corrente Para em campos de flôr A camisa do menino Não se lava com sabão Lava com água-de-cheiro Dentro do meu coração (Lapinha Coração de Jesus – Dona Rita – Mandacaru – João Pessoa/PB, recolhida em 22/10/98). Assim, Dona Rita expõe parte de sua história de brincante sob a luz da voz, de maneira singular, feliz, sorridente, cheia de vida e saberes poéticos, na fala e na jornada. Ver anexos. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 512 Bibliografia ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Ed. Org. Por Oneyda Alvarenga. Z. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, Fund. Pró-Memória, 1982, 3T. ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 36). AYALA, Marcos e Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil: Perspectivas de análise. São Paulo: Ática, 1987 (Princípios:122). BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. Z. Ed. São Paulo: T. A. Queiros: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1987. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O (Primeiros passos: 60), 1982. que é folclore. São Paulo: Brasiliense, CEREJA, William Roberto. Literatura Brasileira: 2º grau - São Paulo: Atual, 1995. FURTADO, Maurício. Auto da Lapinha. Revista brasileira de folclore. Ano XII, N. 33:114170, Maio/Ago., 1972. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: et aii. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural. (Os pensadores) 1983. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2.ed. São Paulo: Vértice; Editora dos Tribunais, 1990. ONG, Walter J. Oralidade e Cultura Escrita: A tecnologização da palavra. Campinas, SP: Papirus, 1998. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. XIDIEH, Oswaldo Elias. Cultura Popular, Feira Nacional da Cultura Popular, São Paulo, SESC, 1976. _______. Narrativas populares: estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e mais São Pedro andando pelo mundo. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral / Tradução de Jeruz\a Pires, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: HUCITEC, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 513 AGAMBEN E A TUCANDEIRA: O CONTEMPORÂNEO EM UM CANTO ARCAICO DOS ÍNDIOS SATERÉ-MAWÉ Mário Geraldo da Fonseca48 (PG-UFMG) Introdução O trabalho propõe a leitura de um canto arcaico do grupo indígena Sateré-Mawé (Amazonas-Pará) a partir das teorias do contemporâneo, do filósofo italiano Giorgio Agamben. Assim, as noções desenvolvidos no ensaio “O que é o contemporâneo?” ( 2009) servem de ferramentas para analisar o canto “A Origem da Tucandeira”, colhido pelo antropólogo Nunes Pereira (2003), quando este fez o seu trabalho de campo, na década de 40, em várias tribos amazônicas. O canto é executado durante o Ritual da Tucandeira, necessário para que seja feita a “passagem” para a idade adulta. Para tanto, o menino-índio passa pela prova, que exige colocar a mão em uma luva recheada de tucandeiras, formigas conhecidas pelo seu tamanha avantajado e, sobretudo, pelo efeito muito doloroso do seu ferrão afiado. Na tradição sateré-mawé, “colocar a mão na tucandeira”, como os índios chamam o gesto principal do ritual, é condição para que o jovem se torne “esperto”. O texto analisa exatamente esta noção de “esperto” dentro da tradição que origina o canto, procurando defender equivalências com o conceito de contemporâneo de Agamben. O com-tempo-raneo Para responder à pergunta-chave do ensaio “O que é o Contemporâneo?”, Giorgio Agamben (2009) escolheu o poema O Século, do russo Osip Mandel’stam. A partir desta obra, prepara o terreno para apresentar o que considero o ponto mais alto da sua teoria sobre o contemporâneo. Este situa-se no sexto ponto do ensaio, no qual vai tirar a conseqüência de maior alcance a respeito do que definiu como “contemporaneidade”, no primeiro ponto, a saber: “A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Extraio, da definição 48 mgeraldof@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 514 entre aspas, a expressão “ao mesmo tempo”. Ou seja, o contemporâneo, como o próprio nome sugere, é contemporâneo do seu tempo, mas, “ao mesmo tempo”, deve distanciar-se deste tempo. Para afirmar este “ao mesmo tempo”, Agamben, no sexto ponto do seu ensaio, autoriza a formulação de uma dedução, que irei formular assim: o contemporâneo vive um presente-arcaico. Na explicação do que seria este “presente-arcaico” é o segundo termo (arcaico) que lança o foco sobre o primeiro (presente). Como o filósofo faz questão de precisar, arcaico vem de arké, isto é, origem, da etimologia grega (Ibid., p.69). E logo em seguida faz questão de precisar outro aspecto da noção de arké: A origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente (Ibid., loc. cit.). Note que, mais uma vez, aparece a expressão “ao mesmo tempo”. Por isso, acho que a expressão não é tão somente um recurso retórico, mas uma expressão fundamental para definir o método para abordar o tema central no ensaio em questão. Isso leva, inevitavelmente, a perguntar como tal método procede para apresentar uma visão do tempo em que o presente é contemporâneo da origem. Para tanto, Agamben aplica o “ao mesmo tempo” ao vivido. Sem ter medo da tautologia, repito ter entendido de Agamben que o contemporâneo é o que vive o vivido no presente e vive, ao mesmo tempo, o que nele não pode ser vivido. Vive, portanto, o vivido e o não-vivido (ao mesmo tempo). Nas palavras do filósofo: “O presente não é outra coisa se não a parte de não-vivido em todo vivido” (Ibid., p. 70). Neste caso, o presente faz uma dobra sobre si mesmo, através da qual o próprio presente retorna a um outro presente, que é, sim, vivido, mas que nunca, na verdade, foi presente. Este vivido no presente que não é presente, Agamben aproxima-o da origem. Origem, portanto, não seria propriamente um presente, entendido como um tempo preciso no qual, depois de a ele se ter retornado, poder-se-ia nele ficar instalado. A origem, na Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 515 interpretação que faço dos termos propostos pelo filósofo italiano, é o próprio gesto de retornar, uma vez que se está retornando “a um presente em que jamais estivemos” (Ibid., loc. cit.). Retornar a um presente jamais estado é, para Agamben (2009, p. 71), o “ponto de quebra” do próprio presente. O contemporâneo, para ele, faz desta quebra “o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e gerações (Ibid., loc. cit.). A quebra (prefiro chamar, com Deleuze, de dobra), portanto, é o ponto de encontro entre os presentes: o presente que é ele mesmo, aquele que recebe o facho de luz proporcionado pelo que é vivido; o presente que é a algo que nele é vivido mas não é presente, ao qual o facho de luz só chega para que a própria escuridão deste presente possa estar devidamente focada; e o presente que é apenas “dobra”, ou seja, retorno a si mesmo como a possibilidade de viver algo na sua própria impossibilidade de não-vivido. A este terceiro presente, que assinala a existência de algo não-vivido, Agamben considera como a luz que emana do escuro e, como tal, não é propriamente uma luz, mas tão somente uma procura (ou um retorno, termo que usei anteriormente). Esta luz, para o filósofo, só “procura nos alcançar e não pode fazê-lo” (p. 65). Sendo assim, é uma luz, como aquela que emana das galáxias e dos corpos luminosos no firmamento, que, ao se lançar na procura por uma visibilidade, apenas se distancia do objeto procurado. Este é o paradoxo que Agamben toma da Física contemporânea, que trabalha com a hipótese do universo em constante expansão. O que este universo se dá como visível é exatamente o escuro que dele emana, uma vez que a luz que emite viaja de uma maneira incrivelmente veloz que não pode nos alcançar (Ibid., loc. cit.). Portanto, para o filósofo, ser contemporâneo é “ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós” (Ibid., loc. cit.). Qual é, portanto, o compromisso que, na visão de Agamben, a contemporaneidade assinala? Pelo que foi dito anteriormente, tal compromisso não tem lugar simplesmente no tempo cronológico. “É, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma” (Ibid., loc. cit.). É algo que está no “no” (uma outra forma de dizer no “ao mesmo tempo”); no que urge dentro do tempo presente. No “muito cedo” e no “muito tarde” (Ibid., loc. cit.). Ou, para usar as belas palavras do autor, no “de um ‘já’ que é, também, um ‘ainda não’” (Ibid., loc. cit.). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 516 O lugar do contemporâneo, por isso, não é propriamente um lugar, mas uma posição assumida diante do tempo presente. Esta posição é aquela do “ao mesmo tempo”, ou seja, de quem está de olho no cá e no lá e que, portanto, não está aqui nem lá, mas no que promove o trânsito entre o aqui e o lá. Um presente que é, “trânsito”: passado e futuro, origem que só pode ser vivida como destino, destino que só pode ser vivido como presente; presente que é origem. Presente-arcaico. O esperto É neste presente-arcaico que gostaria de situar a letra do canto A Origem da Tucandeira, dos índios sateré-mawé. Como acenei anteriormente, ao fazer o trabalho de campo em localidades que ficam na região média do Rio Amazonas, precisamente daquela do estado do Amazonas que se aproximava do Pará, em direção a Belém, o antropólogo Nunes Pereira viveu, por algum tempo, na área Sateré-Mawé, tribo de origem tupi, entre as mais conhecidas da Amazônia. A fama se deve ao fato de grupo se situar entre os primeiros a terem sido contactados (acredita-se que isso tenha ocorrido há cerca de 400 anos) e pelo fato de possuir uma tradição que deixou marcas indeléveis na cultura da região. Uma destas marcas se deve exatamente à maneira como esta tribo sistematizou, em mitos e rituais, alguns dos personagens que iriam se tornar os mais conhecidas da Amazônia. Na lista das famosas figuras que povoam o imaginário da região, está a tucandeira (Paraponera clavata sp), formiga de porte avantajado, temida pelo seu ferrão de consequência profundamente dolorosa (chega até provocar desmaios, febre e vômitos), mas que, “ao mesmo tempo”, é profundamente desejada pelo que produz de efeito no corpo (e na imaginação) de quem se deixa ferrar por ela dentro do ritual que leva o seu nome. Para deixar mais claro o que foi dito anteriormente, é necessário apresentar o canto e fornecer algumas pistas para entender as suas condições primeiras de produção e recepção. Vamos ao canto A Origem da Tucandeira, assim como foi apresentado, por Nunes Pereira (2003), em língua nativa (a tradução, também do mesmo autor, virá logo em seguida): Mê pémun te andem sari Me pémun cori te andem Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 517 Mecoó arroó-ui Aitó unambi optiá capé Aiuépit mambac ramoap Oipó-eté, sari quién En qué-epó été-té én Oito qué uatzi été Eçó rememgué rupi-i Icacho urre sari Ipain apossaou rocát Mangou aporrin ipai Camaró tan êpêetat Queossou queôssou, êpêpateat Uenô pê tritan êpeateât Meuétan an oito Uatócóssab acoitó * 1 Tatu Grande fez sair Tucandeira 2 Tatu Pequeno fez sair Tucandeira viva 3 Para cá para os moços se ferrarem 4 Para ficarem espertos 5 Em minha mão Tucandeira ronca 6 Tatu Grande: você se ferra só na mão? 7 E eu, que é em toda parte? 8 Assim fala o Tatuzinho: 9 É bonito o lugar da minha Tucandeira 10 Enfeitado de vermelho 11 E de pena de gavião real 12 E do toco do cumaru 13 E do toco do ingazeiro 14 E do toco do cipó-chato 15 Assim eu era antes 16 Mas nós havemos de passar... * Para o visitante bem informado sobre o Ritual da Tucandeira (os índios o chamam de Waymat) que chega na área dos Sateré-Mawé, e tem a oportunidade de presenciar o evento, acaba por se decepcionar se, para ele, não dirigir um olhar contemporâneo, ou seja, de alguém que está vendo e participando de alguma coisa que só pode ser vista e participada dentro de um “ao mesmo tempo”, ou seja, estando no presente e tendo em vista um passado remoto e até mesmo um passado que nunca foi vivido. De fato, na última vez que estive entre os saterés, em janeiro de 2010, pude ver alguns jovens no momento em que, eles mesmos, organizavam e para eles próprios Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 518 participarem do Ritual da Tucandeira. “Que pobreza!”, exclamei em um primeiro momento diante da disparidade de força entre o que havia lido sobre os parentes antigos dos meninos e a situação na qual me encontrava. O evento fora organizado às pressas e os iniciantes foram colhidos como se cata pessoas para fazer papéis de coadjuvantes de um filme de terceira categoria. Diante de tamanha penúria, ocorreu-me de pensar no texto de Agamben. Assim, aquilo que já começava a me entediar recebeu uma espécie de “aura” que o colocou como na condição de ruína de um edifício que, embora não existisse mais, mantinha, dentro do solo em que antes fora uma imponente construção, os alicerces que, por muitos anos, lhe suportaram. Desta forma, a pisada que se ouvia da cadência apressada dos jovens, soou-me como dadas sobre tais alicerces. Assim, pude ficar em paz para pensar nos restos de um importante ritual, indispensável para entender a vida atual e a história antiga dos Satére-Mawé, sem exigir tanto do presente. Ou melhor, perceber o presente como “passagem”. Este termo – “passagem” – assume, no ritual, uma conotação muito variada e rica. Em linhas gerais, se pode dizer que é passagem sobretudo de um estado dormente para um estado desperto. No canto que escolhi para analisar, fica clara a finalidade do ritual no versos 3 e 4, ao afirmar o fato de a Tucandeira ter sido entregue “para os moços se ferrarem e ficarem espertos”. Na tradição dos sateré-mawé, “ficar esperto” é, sobretudo, desenvolver a virtude da coragem. Por isso, o ritual consiste em provar a resistência à dor, uma vez que prescreve que o índio sateré deve se deixar ferrar pelo menos 20 vezes na vida. Se ele não fizer isso, a Tucandeira o chama para junto de si, isto é, para o fundo da terra, onde habita. Deste tronco principal, o “ficar esperto” se desdobra em vários outras ramificações. Na direção da saúde, por exemplo. Assim, ficar esperto para evitar doenças, uma vez que, como diz o mito de origem da Tucandeira, o Tatu Grande (Mypynukuri) entregou a formiga para os índios vencerem a febre, a malária, o reumatismo etc. Ficar esperto para vencer a guerra, entendida como a capacidade de caçar, de pescar e de ter sorte no trabalho e na vida de modo geral. E, de modo particular, ficar esperto no amor. Este último tipo de “ficar esperto” merece um comentário mais prolongado, pois possibilita explicar, um pouco melhor, a expressão “efetivação de afinidade” empregada por Gabriel Alvarez (2009), antropólogo que se dedicou a estudar a cultura dos índios SateréMawé. Para colocar o problema no âmbito antropológico mais geral, o pesquisador chama atenção para as principais características das relações de parentesco na Amazônia. Considera, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 519 por meio de uma teoria clássica do parentesco, que este é construído em três tipos de categorias: consangüíneos, afins e inimigos (ALVAREZ, 2009, p.92). Para ele, o papel simbólico do Waymat atua nas três direções, aproximando aqueles que, se não passassem pelo ritual, continuariam distantes e estrangeiros. Como acontece, por exemplo, na construção das possibilidades para que ocorra o casamento entre índios-índios e entre índios-não-índios. Na maneira mais tradicional, o Waymat sempre foi encarado como uma ocasião em que o jovem sateré apresenta publicamente a sua coragem e, por isso, é observado pelas moças que estão na idade de se casar. Em certos casos, algumas delas se compadeciam do sofrimento do iniciante e, ali mesmo no momento da realização do evento, formulava o convite para o casamento. Em outros casos, quando alguém não pertencente ao grupo nativo se interessava por uma moça sateré, para pretendê-la, deveria, no mínimo, passar pelas dores do Ritual da Tucandeira. Ou quando, já estando vivendo com uma mulher nativa, o cônjuge de fora do grupo, para legitimar a sua união diante da comunidade, deveria meter a mão na Tucandeira. O ponto mais importante a que Alvarez chama atenção, porém, não diz respeito propriamente ao casamento em si, mas ao que considera a “casabilidade” (p. 72). ou seja, a força que o ritual tem de transformar os jovens afins potenciais em cônjuges potenciais para as mulheres (Ibid., loc. cit.). Note-se a ênfase no termo “potenciais”. Parafraseando o antropólogo, posso dizer, então, que o Waymat é a “efetivação de potencias”, que movimenta as forças necessárias para que a relação possa acontecer. É, em outras palavras, o lugar da transformação necessário para que ocorra a passagem de um estado para outro, de uma situação para outra ou de uma ação para outra. * Tive a possibilidade de observar o evento no seu sentido mais tradicional, ou seja, como ritual de passagem para idade adulta. Vendo como o menino-sateré é colocado no centro da atividade que culmina com a imersão das mãos na luva, é possível ser induzido a acreditar que a figura do jovem é realmente o centro do ritual. Claro que ele, ao explicitar o desejo de fazer a “passagem”, dá o ponto de partida para que tudo aconteça. Mas o seu comunicado deve passar por várias instâncias, de modo particular pelas autoridades da sua vida particular e coletiva, a começar pelos pais, indo para o tuxaua e tendo o pajé ou xamã Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 520 como aquele que fornece a avaliação final. É o xamã que tem um poder determinante na realização ou não da vontade expressada pelo jovem. Isso porque é ele que, quase sempre, vai ocupar o lugar de condutor do ritual. Sim, porque só ele vai estar credenciado para realizar a primeira e fundamental parte do ritual que acontece no momento em que é preciso pedir autorização da própria Tucandeira para que o fato aconteça. Para isso, ele deve saber falar a língua dela para entender o canto que será ditado para constar no momento mais importante do ritual. É por isso que o entendimento do cantor não se resume simplesmente na sua capacidade de cantar, mas, sobretudo, de saber ouvir. O xamã, portanto, se coloca como mediador entre a Tucandeira e o menino que expressou o desejo de servir a ela. Assim, tudo poderia ser inútil, mesmo diante do desejo expresso do menino-índio, se a própria Tucandeira não desejasse que ele fizesse parte da relação com ela. Isso fica claro pelas possibilidades que o xamã coloca para guiar o evento. Ele sabe que, se as formigas não quisessem, elas se esconderiam e, assim, sem elas, não haveria dança. Por isso, o primeiro canto é para elas, no momento em que se deixam encontrar no toco apodrecido de alguma árvore. O segundo canto é oferecido à luva na qual elas serão colocadas, o que demonstra a importância do artefato na realização do evento. Por isso cada detalhe da luva tem uma explicação (quanto a isso, mais adiante, irei tratar com mais detalhe). O que precisa ser dito aqui é que a luva é primorosamente trabalhada, a base de fibras de vegetais (warumá), e, antes de nela serem colocadas as formigas, repousa em um lugar privilegiado da casa do responsável por guiar o ritual. O seu molde remete ao desenho de algum animal, podendo assumir a forma de um pássaro, um peixe e até mesmo o da própria formiga. São pintadas com tinta extraído do urucu e do jenipapo, de modo que são tratados como se fosse o próprio corpo da Tucandeira. Só depois de ter preparado o canto para a Tucandeira e também haver cantado para a luva é que o cantor poderá se dirigir ao menino cujo desejo motivou toda a ação. Isso quer dizer que, segundo a tradição sateré-mawé, é a própria formiga, afinal de contas, o agente principal do desejo que foi expressado. É ela que vai se entregar ao menino como condição para que o desejo dele seja realizado. Sem esta entrega não haveria realização e, sem realização, não haveria desejo. Mas o que este desejo, enquanto desejo, realmente realiza? Para tentar responder a esta pergunta vou entrar na parte principal deste artigo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 521 A passagem No ensaio de Agamben, o contemporâneo também recebe o nome de presente. Mas, como vimos, um presente o qual contém vários presentes. Estes estão sustentados no presente-presente por uma quebra ou dobra. Retomar isso me ajuda a formular a hipótese que irei sustentar: de que a dobra, no Canto da Tucandeira, é a própria Tucandeira. O principal motivo já expus na parte anterior, ao defender que a figura da formiga ocupa, não diria o centro (para evitar a capciosidade desta palavra carregada de uma conotação que remete ao sentido de “essência”), mas o meio. Meio no sentido de Guimarães Rosa: lugar da travessia. Ora, para falar do estado meio, a própria disposição dos versos do canto A Origem da Tucandeira fornece o indicativo mais convicente. Se formularmos a questão “qual é o lugar da Tucandeira?” e formos procurá-lo no canto, ali, no nono dos dezesseis versos, está exatamente este: “é bonito lugar da minha Tucandeira”. Este verso é como o ponto de onde se pode observar as duas metades que vêm expressadas no canto. Não seria correto dizer, porém, que o nono verso divide o canto em dois. O mais certo é dizer que o nono é o verso-limite, aquele a partir do qual é possível observar o momento em que a dobra acontece. Para mostrar o que seria esta dobra, irei, primeiramente, assinalar o que chamei, não tão corretamente assim, de duas metades. Para tanto, é necessário se ater aos personagens que aparecem no texto. A figura do Tatu (seja o grande ou o pequeno) domina a primeira parte do canto. A segunda parte, depois do nono verso, pertence ao domínio das aves. O primeiro verso deixa claro onde o Tatu entrou, ou melhor, isto é, do fundo da terra. Do fundo: é este o lugar da primeira parte, de onde a Tucandeira sai através da ação da Tatu-Grande. Já a segunda é, diria, para onde ela almeja ir: para o alto, onde estão a arara e o gavião real, por isso o lugar dela está “enfeitado de vermelho” (v. 9) e da “pena do gavião real” (v. 10). No entanto, no momento em que o canto é executado, a Tucandeira encontra-se em “um já que é um ainda não”, para usar os termos de Agamben. Nem já no fundo e ainda não no ar. Nem ao Tatu nem às aves. O lugar da Tucandeira, para usar uma palavra do canto, é no “toco”. É enquanto “toco”, ou seja, o resto apodrecido do que um dia fora um tronco de uma árvore, a parte que assinalava o fim da região em que se encontravam as raízes (o fundo) e o início da parte em que os galhos (o ar) começam a brotar. O “toco”, aquilo que restou do tronco, é, portanto, uma outra maneira de dizer meio, nem no baixo nem no alto. Por isso, a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 522 imagem do “toco” tem uma importância capital no canto, sendo usada em três versos. Os que fazem referência aos tocos do cumaru (v. 12), do ingazeiro (v.13) e do cipó-chato (v.14). Por quê? A resposta se deve procurar no meio, no o que acontece entre o toco e a luva. Para explicar melhor, convém começar pela luva. A parte da luva onde as formigas são colocadas de modo que possam estar preparadas para depositar o seu ferrão nas mãos do iniciante é chamada de saia ou, na língua indígena, saari. Ora, fica claro que a parte principal da luva está sendo designada com um adereço feminino. Nada disso é fortuito, como se acenou anteriormente, pois para cada detalhe da luva existe uma explicação e, no centro (ou no meio) desta explicação está a figura da mulher. Por isso que o canto faz referência ao cumaru, ao ingazeiro e ao cipó-chato, pois, segundo o mito que explica o Ritual da Tucandeira, foi do toco destas árvores que Mypynukuri retirou as três mulheres que deram origem ao canto (daí o nome Origem da Tucandeira), a saber, Unia Wassatea Mambiera, Moiria Nhãngo Sacuri e Sari Aimberiau. Fica, portanto, autorizada a se interpretar a relação, já salientada anteriormente, Tucandeira/Mulher. Esta última, como se disse, é apresentada como operadora da aliança entre grupos que, se não fosse pelo casamento entre um homem de um determinado lugar e a mulher, de um outro, estariam condenados a não conversarem. Mas é preciso estar atento para uma implicação importante da aproximação entre a mulher/tucandeira: como se sabe muito bem, o casamento é mantido por uma relação sujeita a muitas turbulências; logo, a aliança que a mulher opera é instável. Assim, a instabilidade da mulher significa travessia: meio. Isso ajuda a explicar porque, além de serem mulheres, as três figuras que a letra do canto remete, são irmãs. Elas, portanto, estão ligadas por um parentesco mais profundo, o que ajuda a entender porque estão associadas à figura da cobra. O nome que este animal recebe em língua sateré é, por isso, bastante eloqüente: moi. Como se observa, no nome de uma delas – Moria Nhángo Sacui – o termo vem claramente explícito. Mas é também este mesmo termo – moi – que os saterés usam quando querem formular uma frase na qual contenha o equivalente ao verbo “transformar”em português. Assim, se me fosse pedido a tradução o termo moi, a melhor solução, talvez, recaísse na palavra “transformação”. E como a imagem da cobra, animal que muda de pele, que transita com desenvoltura tanto pela terra quanto pela água, serve de suporte para significar uma aliança dinâmica. Sim, porque a própria natureza da aliança, por mais duradora que pareça, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 523 está sujeita a se desfazer, ainda mais quando se trata da relação entre humanos. É uma outra maneira de dizer que a aliança que o termo moi sugere está mais próximo do que se entende por “força” do que por “união”, como salienta Alvarez. A Tucandeira: o desejo O menino-sateré, quando sente estar capacitado a passar pela prova, exatamente porque nele se manifesta o desejo de mudança, sabe que isso representa um salto no escuro. Não sabe o que lhe pode acontecer, se será capaz de agüentar ou não a dor desta mudança, mas sabe, no entanto, que dela não pode fugir. Neste caso, ele está sendo contemporâneo do seu próprio desejo ao reconhecer que, nele, habita algo que ele próprio não sabe reconhecer mas que é impoderável. Assim, topa ir para enfiar a mão na luva recheada de tucandeiras, como se assumisse o papel do Tatu que se mete no fundo do buraco para ir buscar algo que deve, porém, ser entregue a outro. O algo que ele vai buscar, à medida que deve ser entregue a outro, é como aquela luz que o contemporâneo de Agamben procura e que não pode alcançar. Até que entende que tal luz ilumina exatamente só a procura pelo escuro que ela própria proporciona. Este é o mesmo dilema que o Tatu vive no canto A Origem da Tucandeira. Ele vai buscar a Tucandeira, mas ela não pode ser alcançada. Ou melhor, ela só é alcançável quando o gesto de alcançá-la reconhece que ele próprio deve passar o objeto do seu alcance a um outro. Não, por acaso, a palavra final do canto se resume no seguinte verso: “Mas nós havemos de passar...” (v. 16). Quanto de sugestão não está embutida naquelas reticências no final! É, de fato, como uma reticência a imagem que o canto nos sugere para o seu andamento. À medida que o evento caminha para o seu final, os passos fortemente cadenciados no solo, como se quisessem despertar as outras tucandeiras que continuaram no fundo da terra, ficam cada vez mais fortes. Na verdade, as pisadas agudas do menino-sateré se voltam para ele mesmo, como que dizendo, “agora você realmente deve despertar”. Ora (não custa perguntar de novo) não foi para isso que o Tatu entregou a Tucandeira “para cá para os moços se ferrarem/ para ficarem espertos”? Com isso, posso dizer que o adjetivo “esperto” assume no canto o sentido que, no ensaio de Agamben, é associado ao contemporâneo. Cabe, portanto, reconhecer como, no Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 524 canto em questão, estão dadas as orientações para que o menino “fique esperto”, ou seja, para que ele seja contemporâneo do seu tempo. Ele, o menino, vai enfiar a mão no mais fundo do que se pode simbolizar como “passagem” na tradição Sateré-Mawé. Por ser assim, tem um alto preço, que pode ser objetivado na terrível dor pela qual vai passar. Exatamente isso: ser “esperto” é reconhecer que, por mais terrível que seja, a dor passa. Isso, porém, não elimina o que a dor tem de dor. Por isso, por mais que o menino até seja capaz de reconhecer que, metendo a mão na luva, vai sentir uma terrível dor que no entanto vai passar, ele, “ao mesmo tempo”, sente medo. De quê? Sabe que, ao meter e ao tirar, é ele próprio que está, na verdade, passando. O medo é, portanto, desta “passagem”, que atesta que ele está entrando em um mundo que vai lhe exigir ser “esperto”, na guerra e no amor. Treme porque está diante de um compromisso ético diante de si e diante da comunidade. Disse que ser “esperto” na guerra e no amor tem um outro nome: coragem. No caso da guerra, está claramente exposta na relação que a letra produz com o mito do gavião real. Por isso, o menino pode mirar a própria luva da qual será tirado o efeito da terrível dor que irá sentir, e ver que, na ponta da luva, existem as penas do referido animal, que ele aprendeu a admirar pela sua coragem, assim como ela é contada nos mitos. Neste momento, lembra que ser “esperto” é pronunciar bem o que está dito no verso central do canto: “como é belo o lugar da minha Tucandeira” (v. 9). É belo porque tal lugar está “efeitado de vermelho e de pena de gavião real”. A arara e o gavião, que fornecem as penas não só para a luva da Tucandeira mas também para as flechas que irão combater o inimigo, são viçosas e coloridas. Portanto, a indicação que o canto dá para que o menino fique “esperto” diante do momento em que ele poderá sentir maior medo, é que veja este momento como “belo”, ou seja, absolutamente necessário para que ele possua a coragem, a maior (portanto, a mais bela) das virtudes nas tradições de origem tupi, que tem na guerra (real ou imaginária) um elemento que estrutura a vida do grupo. Pois, afinal, é esta mesma virtude que lhe será exigida no amor. O canto A Origem da Tucandeira também fala disso. “Na minha mão a Tucandeira ronca”, diz o verso 5. Isso quer dizer que a introdução da mão na luva significa que o menino deve penetrar o mais profundo da entranha da Tucandeira. Meter, neste caso, deve ser com determinação. Mas, quanto mais determinação ele meter a mão, mais tem possibilidade de receber o efeito dos Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 525 ferrões. Mais dor, portanto, vai sentir. No entanto, quanto mais dor for capaz de sentir, mais pode penetrar profundamente. Esta virilidade é a parte que mais a Tucandeira exige. Seja esperto! Agamben, no final do seu ensaio, diz que só quem consegue perceber no mais contemporâneo os índices do arcaico é que realmente consegue dele ser contemporâneo. Mas, o que, afinal, o canto que analisei nos disse do que é ser contemporâneo? Que aprendamos com os Sateré-Mawé a ouvir a Tucandeira, que nos repete: “seja esperto, seja esperto!”. Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. ALVAREZ, Gabriel. Satereria: tradição e política Sateré-Mawé. Manaus: editora Valer? Capes/Prodoc, 2009. PEREIRA, Nunes. Os Índios Maués. Manaus: Valer /Governo do Amazonas, 2003. UGÉ, Henrique. As Bonitas Histórias Sateré-Mawé. S.1, p/d. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 526 EXPLORANDO A CONTAÇÃO DE MITOS, CAUSOS E HISTÓRIAS TRADICIONAIS DO NORTE DO PARANÁ NO ENSINO DE HISTÓRIA: O RECURSO À ORALIDADE COMO ELEMENTO DE ANÁLISE Mario Junior Alves Polo49 (UEL) Introdução Tem-se proposto, para o Ensino de História, a análise e interpretação das fontes em sala de aula como parte do processo de ensino-aprendizagem. Confrontar diferentes documentos prepararia o aluno para lidar com os vários discursos que o atingem. Neste intento uma grande variedade de fontes pode ser explorada na produção do saber histórico escolar. É nesse sentido que propomos o trabalho com narrativas orais, aliado às discussões sobre memória, identidade e patrimônio imaterial. Especificamente, tratamos aqui da experiência com a oficina de contação de histórias, realizada junto a turmas do ensino fundamental e médio de escolas públicas da região norte do Paraná. A idéia é que alunos e professores encarem as narrativas orais como documentos, explorando o seu potencial independentemente do suporte pelo qual lhes chegam (o qual deve ser levado em conta: uma gravação, uma transcrição, uma narrativa ouvida diretamente, etc., pressupõem dados que compõem o documento). A oficina também prevê estimular, entre os alunos, a valorização da oralidade. E fazer com que reconheçam a riqueza e as especificidades da História transmitida pela oralidade ou da História não-escrita. Ao saber que esta forma de transmissão de conhecimentos é tão valiosa quanto aquela escrita, poderão se interessar em registrar ou recontar as histórias que ouvem de narradores talvez até bem próximos de seu cotidiano. Assim, o estudo dessas fontes pode contribuir para o reavivamento de experiências e memórias, para o sentimento de pertença a grupos e comunidades, para “dar voz” a setores da sociedade não lembrados em fontes tradicionais. 49 junior163@msn.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 527 Ao longo do texto pretendemos explorar os conceitos que nos guiaram na montagem da oficina de contação de histórias e no trato com as narrativas, inserir esta atividade no contexto do Projeto Contação de Histórias do Norte do Paraná, indicar o conteúdo trabalhado e apresentar resultados obtidos com as experiências já realizadas. A oficina de contação de histórias é apenas parte de um trabalho bastante amplo que articula professores, alunos, comunidade, Museu, graduandos e pesquisadores de Ensino de História, que é o Projeto Contação de Histórias do Norte do Paraná – fomentado pela SETI (Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) através do Programa Universidade Sem Fronteiras, em parceria com o Núcleo Regional de Educação de LondrinaPR e com a UEL, por meio do departamento de História e Museu Histórico de Londrina. O Projeto dá apoio, em escolas da rede estadual, ao desenvolvimento de um plano de atuação realizado por alunos e professores em vista da formação de um registro da memória local. Esta integração se constrói na coleta de fragmentos de memória e fontes de diversos tipos, priorizando-se a lembrança de trabalhadores das comunidades e envolvidas. O Projeto oferece aos professores um curso e oficinas de extensão nos quais recebem orientações para elaborar o plano de trabalho da escola e desenvolver o tema escolhido. Com as primeiras reuniões os professores puderam pensar o recorte temático e temporal para seus projetos pessoais, nos quais os alunos atuariam, sendo que o tamanho do grupo envolvido ficava a seu critério. Entre os temas propostos este ano estão: A história dos índios Kaingang nas suas expressões culturais; A toponímia do Parque Ouro Verde em Londrina – nomes africanos; Memórias do bairro de San Rafael, em Ibiporã; As práticas relacionadas às religiões de matriz africana em Florestópolis nas décadas de 70 e 80; e Clube da Fotografia: O cotidiano e as representações socioculturais a partir das fotografias dos álbuns de famílias de moradores da Região Norte de Londrina, entre outros. Já a atuação dos estagiários tem por base a experiência que adquirem no Museu, participando de atividades que envolvem os setores técnicos, mas também o setor de Ação Educativa, indo desde a manutenção do acervo, como a higienização de fotografias e catalogação, até a oferta de mini-cursos. E a diversidade da atuação no Museu é intencional: este serve como um laboratório, para que os estagiários sejam mediadores privilegiados entre os professores e o Museu, e para que essa mediação inclua a troca de saberes, de materiais... Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 528 Para apoiar professores e envolver os alunos, são realizadas as oficinas nas escolas nas quais se prioriza o trabalho com fontes diversas (levantamento, tratamento e exploração em sala de aula), todas realizadas por estagiários que integram o projeto, graduandos da UEL, dos cursos de História e Comunicação Social. Com as oficinas pretende-se sensibilizar os alunos para o trabalho com essas fontes para a produção do saber histórico escolar. A idéia é sensibilizá-los para a coleta de depoimentos orais, a interpretação de textos visuais, mas também o registro fotográfico, para a produção de mapas e a montagem de um blog no qual a escola divulgará seu trabalho. A contribuição das narrativas orais O trabalho com a oralidade merece atenção especial no Projeto Contação não só porque caminha junto às oficinas de entrevista e fotografia, mas porque as narrativas orais, possuem um conteúdo que lhes é muito próprio e podem dar contribuições que outras fontes tradicionais ignoram, seja quanto ao conteúdo ou à forma. Resta-nos saber, assim, de que se trata esta especificidade, que contribuições são estas, e como aproveitá-las. A oralidade, como a encaramos, refere-se à transmissão oral dos conhecimentos que pertencem à memória. Os provérbios, as preces, as receitas, tudo é passado e repassado através do tempo, pela oralidade. Em muitas culturas e comunidades, a identidade do grupo, ou mesmo sua História, está sob guarda de contadores de histórias, cantores e outros tipos de arautos, que na prática eram autenticamente os portadores da memória da comunidade. Este é o caso, por exemplo, do papel desempenhado na África Ocidental pelos griot, reproduzido ainda hoje em comunidades negras no Brasil. Na tradição oral, a narrativa inclui o narrador e a audiência. Nesta relação, as mensagens são divulgadas por aqueles que detêm os fatos na memória e os propagavam recorrendo à voz e ao corpo, numa performance que exige do público leitor da cena uma atenta audição e visão. A mensagem é apreendida e gera novos saberes. É dessa forma que a narração transforma a memória em experiência. Este processo tem se perdido nos dias de hoje em que somos invadidos por inúmeras memórias que, entretanto, não fazem sentido: Vivemos seduzidos pela memória do passado e em um mercado de passados. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 529 Desde as lembranças adquiridas em uma viagem, os cartões de museus, até as produções cinematográficas e as novelas “de época”, fazem-nos consumidores de passados. Consumismo gerador de um “culto à memória” que se torna mais espetáculo e entretenimento do que processo de formação histórica capaz de restabelecer elos entre passado e presente e compromissos sociais.50 O narrador cria a experiência enquanto a audiência depreende a mensagem e cria imagens mentais e pessoais. Nesta experiência, a audiência se torna “co-criadora”. E é por isso que narradores muitas vezes dialogam com a audiência, ajustando suas palavras em resposta aos ouvintes e ao momento. A narração oral sobre o passado faz parte de um contexto maior, que é a representação coletiva da memória. Pois, para fazer parte da tradição oral é preciso antes fazer parte das memórias, das lembranças. E a memória de um grupo, a memória coletiva, é fundamental para compor a identidade e a historicidade de alguém. Falamos, assim, das narrativas envolvidas por sentimentos de angústia, medo, nostalgia e esperança que conferem sentido às experiências vividas e por meio dos quais as pessoas elaboram significados sobre si51. Outra característica da tradição oral é que um narrador não memoriza um conjunto de textos, mas aprende uma seqüência de incidentes que formam uma trama, com um início, meio e fim distintos. O narrador visualiza os personagens e cenários e então improvisa o fraseado. Por conseguinte, nunca duas narrativas de uma mesma história oral serão exatamente iguais. É nesse sentido também que Darnton afirma que “[...] na narrativa tradicional de histórias, as continuidades de forma e de estilo tem mais peso que as variações de detalhes, seja entre os índios norte-americanos ou entre camponeses iugoslavos” 52. As narrativas orais, enquanto fontes, ultrapassam seu conteúdo falado ou posteriormente transcrito, pois compreendem toda uma performance que deve ser levada em conta, se possível, durante sua análise. Afinal, estas narrativas são contadas combinando-se 50 FRANCO, Aléxia P.; VENERA, Raquel A. Sena. “A memória e o ensino de História hoje: um desafio nos deslizamentos de sentidos”. In: ZAMBONI, Ernesta (org.). Digressões sobre o Ensino de História: Memória, História Oral e Razão Histórica. Itajaí: Maria do Cais, 2007. p. 79. 51 Cf. ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1988. 52 DARNTON, Robert. “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”. In: ________. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.35. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 530 gestos, expressões, repetições, rimas, entonação, olhares, musicalidade e outros dispositivos mnemônicos. Além disso, alguns conteúdos não encontrados em documentos tradicionais e oficiais são facilmente identificáveis entre a tradição oral, como, por exemplo, temas que constituam um tabu e memórias de grupos marginalizados. Os discursos orais são capazes de revelar as imagens hegemônicas e as contradições sociais, as práticas do poder local, os mecanismos de valorização e esquecimento. Tomazi cita Benatti para se referir a como é mais interessante o recurso a fontes não-convencionais quando se trata de estudar certos grupos: Um dos encantos (e dificuldades) de uma história dos marginais é o seu caráter mesmo de “anti-história”, a possibilidade que ela oferece de uma navegação outra nos conteúdos da história, no sentido contrário à tradição imposta pela memória hegemônica. Mas uma questão imediatamente se coloca: como escrever uma história dos marginais quando sabemos que são abundantes os registros indiretos, partidos do “centro”, mas faltam registros diretos, partidos deles mesmos, sobre sua experiência vivida? Sem dúvida, a falta de fontes ou a forma como foram registradas já é um indicativo da problemática vivida por estes personagens. Isso exige uma leitura nas entrelinhas que ultrapassa a intencionalidade do imediato registro. [...] A história dos marginais é necessariamente uma história fragmentada. Ela fazse pelos indícios que foram deixados principalmente pelos que detinham o monopólio dos discursos, pelo que falavam sobre os marginais, mas não os deixavam falar. Por isso a necessidade de recorrer aos mais variados tipos de fonte (ou mesmo construí-las, quando isso é possível) para, através da multiplicação dos pontos de observação e do confronto de diferentes tipos de testemunho, escrever uma “outra história” ou dar à história do centro uma nova perspectiva53. E são muitas as populações entre as quais a tradição oral forneceria elementos muito mais ricos do que a documentação escrita e mais típica. No caso do Brasil isso abrange, por exemplo, indígenas, remanescentes de quilombos, caboclos, caipiras, sertanejos, faxinalenses, pantaneiros, jangadeiros, pescadores artesanais, açorianos e muitos outros. 53 BENATTI, 1996, apud TOMAZI, Nelson D. Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. pp. 2-3. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 531 Definindo algumas direções e limites Para a montagem da oficina foi preciso explorar a noção de oralidade e estabelecer, logo de início, que não seriam todos os tipos de narrativas orais que utilizaríamos. A idéia era trabalhar principalmente com os causos, mas também incluir outros tipos de narrativas que dissessem respeito à tradição oral das populações do norte do Paraná, ou que se comunicassem com estas através de algum elemento de permanência, por exemplo. Assim, a oficina partiu de diferentes histórias, contos populares, causos, mitos, literatura oral e do folclore, na tentativa de que diversas vozes e diversos personagens da região fossem representados. Entretanto, para que possamos prosseguir é necessário tomar o cuidado de fazer as devidas classificações. O causo, do qual falamos até agora, não é uma simples lenda. Ele é, antes, uma narrativa oral curta, muito próxima do conto, podendo ser definido como conto realista. Os causos são “[...] repletos de coincidências, disfarces, golpes teatrais, desfechos improváveis” 54 . E devem ter suas origens plantadas em experiências e crenças ancestrais. Porém, não se apresentam como uma descrição do cotidiano vivido, não distinguem o sentido literal do metafórico, mas, geralmente, combinam elementos do concreto para projetar o imaginário. O causo deve estar conectado à realidade para que tenha efeito sobre a audiência, pois é a possibilidade de sua concretude que o torna interessante. Ao contrário das lendas, com uma narrativa mais fixa, o causo é, essencialmente, a atualização da experiência humana no tempo e no espaço. Muito distante dos causos e das lendas está o mito. Em uma apresentação na UEL, o professor Kaingang, Luiz Yagjo Gino, foi indagado sobre a diferença entre mito e lenda. Para ele a lenda seria uma história corriqueira, provavelmente inventada e com uma boa carga de humor, e cuja narração geralmente começa com o termo “Diz que...”. Já o mito seria verdade, uma história séria, que conta o começo do mundo, uma das bases da cultura Kaingang. Com a distinção feita por Gino, temos a clara noção de que o mito está calcado no sagrado, na ancestralidade e na identidade de uma população. O mito é uma verdade 54 SIMONSEN, Michele. O Conto Popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.7. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 532 metafórica, é o que foi mesmo, e está ligado a grandes eventos. E para alguns grupos o mito é sua própria História, ou pelo menos parte dela, sem a distinção entre mito e história). Estas características precisam ser levadas em conta na contação de histórias. Tomamos todo o cuidado para que as diferenças ficassem claras, lembrando que o mito deve ser pensado dentro de uma mitologia, num contexto simbólico no qual, e somente então, poderá fazer sentido e ter eficácia. Além disso, tomamos o cuidado para que nem o mito, os causos ou as lendas fossem compreendidos como simples histórias ficcionais, o que invalidaria o trabalho. A oficina não agrega histórias como os contos de fada, histórias fantásticas e outras histórias que se pretendem distantes e desconectadas da realidade, histórias que intencionalmente operam a fuga do mundo. Este tipo de história tem enorme valor, e podem ser tão bem aproveitadas como as narrativas orais que estamos explorando, porém não fazem parte do objetivo da oficina de levantar diferentes vozes e componentes sobre a formação e caracterização do norte do Paraná. Não pretendemos nos aprofundar aqui nas proposições de análise dessas fontes orais. Isso demandaria um espaço maior. São muitas as abordagens possíveis e muita informação pode ser encontrada em um mito, por exemplo. Mas para que pudéssemos analisar e esmiuçar as histórias com que trabalhamos, algumas direções gerais foram tomadas, bem como alguns cuidados metodológicos. Robert Darnton, em “O grande massacre de gatos”, fornece bons caminhos nesse sentido: [...] parece desaconselhável elaborar uma interpretação com base numa única versão de um único conto, e mais arriscado ainda basear análises em detalhes [...]. É possível estudá-lo [o conto] ao nível da estrutura, observando a maneira como a narrativa é organizada e como os temas se combinam, em vez de nos concentrarmos em pequenos detalhes. Assim é possível comparar o conto com outras histórias. E, finalmente, trabalhando com todo o conjunto dos contos populares [...], poderemos distinguir características gerais, temas centrais e elementos difusos de estilo e tom. 55 Relacionando este esforço de interpretação ao ofício do antropólogo, Darnton ainda infere: 55 DARNTON, Robert. Op. Cit. p.33. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 533 [...] quando saem em campo [os antropólogos], usam, para a compreensão das tradições orais, técnicas que podem, com discernimento, ser aplicadas ao folclore ocidental. Com exceção de alguns estruturalistas, eles relacionam os contos com a arte de narrar histórias e com o contexto no qual isso ocorre. Examinam a maneira como o narrador adapta o tema herdado a sua audiência, de modo que a especificidade do tempo e do lugar apareça, através da universalidade do motivo. Não esperam encontrar comentários sociais diretos, ou alegorias metafísicas, porém mais um tom de discurso – ou um estilo cultural – capaz de comunicar um ethos e uma visão de mundo particulares.56 Talvez a maior contribuição destas fontes transcenda os elementos do conteúdo da narrativa, e se encontre, pelo contrário, na forma e no contexto. Reforçamos o olhar, assim, sobre a sua enunciação, a sua existência dentro de uma cultura ou de uma mitologia e os elementos que a tornariam fundamentalmente humana. Darnton também enfatiza a rigorosa documentação que deve ser feita, o que significa levar em conta, entre outras coisas, a ocasião em que foi feita a narrativa, os antecedentes do narrador e o grau de contaminação pelas fontes escritas. E a oficina propõe que os alunos façam este tipo de registro, o que é bastante viável e profícuo. E que eles levem estas possibilidades para o momento de coleta e produção de fontes orais, como na hora de entrevistar algum personagem da cidade que interesse ao projeto da escola. Plantando e colhendo histórias As narrativas utilizadas contam diferentes versões da história da região norte do Paraná, e incluem os mais diversos personagens. E também a forma de se contar estas histórias é bem diversa, indo desde a animação de objetos, até o causo tradicional e a musicalidade, para que se atente à variedade de práticas de contação. Entre os recursos que ajudam a compor a atividade estão instrumentos musicais (sino, berimbau, xequerê, violão, chocalho, e outros improvisados), tecidos e pequenos objetos a serem animados, chapéu, baralho, duas fotografias em porta-retratos e reproduções de cartazes da Companhia de Terras Norte do Paraná. Quanto à seleção das narrativas que compuseram a oficina, algumas foram ouvidas em experiências familiares próprias, outras foram coletadas a partir de experiências 56 Idem. p.28. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 534 anteriores do próprio Projeto Contação, outras surgiram de conversas com algumas pessoas em especial e outras ainda puderam ser encontradas através das leituras realizadas. A oficina começa com algumas indagações que podem ser feitas aos alunos: se eles ouvem muitas histórias, se seus avós contam causos, se eles dão atenção a essas narrações, enfim, qual sua relação com as histórias que emergem cotidianamente, qual sua relação com narradores típicos e com a tradição oral como um todo. Outra provocação que pode ser feita neste primeiro momento seria perguntar o que é mais importante: aquilo que é escrito ou aquilo que é falado. Nesse ponto argumentamos sobre a importância da memória não-escrita, da memória ritualizada, e apresentamos informações sobre sociedades e grupos cuja História é construída na oralidade. Também se pergunta sobre que mitos eles conhecem. As primeiras histórias contadas se referem a mitos da cosmogonia Kaingang. A idéia é partir dos primeiros ocupantes da região, e entre Guaranis, Kaingangs e Xetás, os Kaingang tem predominância quanto ao norte do estado. Além disso, tivemos a oportunidade de conhecer alguns Kaingang e ouvir pessoalmente algumas histórias. Conta o mito de criação da vida, para alguns aldeamentos, que isto se deu através dos irmãos Kamé e Kainru, que dividem as coisas que povoam o mundo. Como esses dois irmãos com a sua gente foram os criadores das plantas e dos animais, e povoaram a Terra com seus descendentes, tudo neste mundo pertence ou à metade Kanyerú ou à metade Kamé, conhecendo-se a sua descendência já pelos traços físicos, já pelo temperamento, já pela pintura: tudo o que pertence a Kanyerú é manchado, o que pertence a Kamé é riscado. Essas pinturas, o índio vê tanto na pele dos animais como nas cascas, nas folhas ou nas flores das plantas, e para objetivos mágicos e religiosos cada metade emprega material tirado de preferência de animais e vegetais da mesma pintura.57 Também neste momento se faz referência às guerras Kaingang, ou seja, às batalhas constantes entre esta etnia e militares, capangas da Companhia de Terras e de fazendeiros, guardas, policiais e representantes da sociedade civil com os quais travaram conflito direto desde o início da “(re)ocupação” da região, termo defendido por Tomazi58. 57 58 NIMUENDAJU, 1986 Apud TOMAZI, Nelson D. Op. Cit. p. 85. TOMAZI. Idem. p. 8. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 535 Aí também citamos os termos Wãnxy e Ury, utilizados pelos Kaingang para definir, respectivamente, o tempo de fartura, em que o trabalho trazia a alimentação e a saúde, e o tempo atual, de luta e resistência, bem como de incerteza. A partir destes elementos, pensamos a recorrência desta imagem em outras populações, como muitos nordestinos, que se referem a passado como um tempo de gratificação, e ao tempo atual como um tempo de luta incessante. Ou também podemos identificar esta imagem na fala de membros mais velhos a da comunidade, que tendem a romantizar o passado e a estigmatizar o presente. Desta referência Kaingang passamos a este elemento muito comum às narrativas orais, que é a comparação entre o tempo presente e o tempo que já se foi, uma comparação valorativa, e na qual são evidentes os processos de cristalização de memórias, os esquecimentos, e a seleção romantizada de lembranças específicas. Um segundo conjunto de histórias envolve a figura do posseiro. Aqui apresentamos este personagem, que foi intencionalmente eliminado da história oficial do Paraná. O posseiro é aquele que habita e utiliza um trecho de terra, sem ter a posse, o documento que o habilite para tal. Isso faz com que, entre os posseiros, haja desde exescravos vindos de Curitiba ou do interior do atual estado de São Paulo, morando em ranchos de palmito, até fazendeiros que estendem suas terras para além de suas posses. Tentamos tornar possível ao aluno imaginar as condições de vida do posseiro. Alguns, chamados de safristas, criavam varas de porcos soltos no mato e alimentados pelo milho que era plantado em clareiras, os quais depois eram transportados para o abate assim como os rebanhos bovinos, atravessando riachos, sendo guiados pelos criadores em seus cavalos. Depois de tornar mais familiar a figura do posseiro, contamos causos que fazem parte da tradição oral sertaneja, especialmente alguns contados por pessoas que tiveram pelo menos a infância em zona rural, assim como grande parte dos pais dos alunos, e até um bom número deles próprios. São causos que compõem a literatura oral de muitos dos norteparanaenses, e que podem ser facilmente relacionados ao posseiro e ao habitante independente desta região, aos pioneiros ligados às atividades rurais e aos tropeiros e caboclos. Contamos especialmente o causo dos galopes ouvidos e sentidos sem que se veja nenhum cavalo ou peão por perto, lembrando histórias de mortes violentas. E também o causo da estrada em que, em certa altura, os cavalos empinam e não passam, e onde os cachorros Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 536 latem sem parar ao se aproximarem, o que seria devido a um homem enforcado em uma árvore daquele lugar ou a um morto enterrado “de travessado” na estrada, fato que os animais sentiriam. Estes dois causos parecem ser bem difundidos, e a idéia, depois de contá-los uma primeira vez, é explorar suas variantes, e ouvir dos alunos a versão que foi contada para eles. Em uma turma de Miraselva, dois alunos apontaram exatamente em qual estrada e em qual altura estaria a alma deste morto, pois o pai deles teria passado por lá. Um terceiro momento da oficina envolve a referência direta à presença negra na região, relacionando-a inclusive à presença nordestina, especialmente em Londrina e em cidades como Florestópolis. Esta referência é feita através de um causo muito comum, e que ganha contornos especiais no Paraná, aquele que conta a história da Mãe do Ouro, ou Mãe d’Ouro (ou ainda Mãe d’Água e Mãe do Fogo, dependendo da variante). Diferente das versões mais presentes ao norte e mesmo no nordeste do país, onde a figura predominante é a Iara, ou Mãe d’água, (que é uma mistura de elementos mitológicos europeus e indígenas, principalmente, e que, como acreditamos, também africanos), aqui na região em questão esta personagem se apresentaria como uma bola de fogo ou uma bola de luz, que indicaria onde existe ouro, seja em um rio ou em terra mesmo. Não há referências constantes à intenção de atrair os homens para a morte, como no caso da Iara e da sereia de água doce. Neste caso as pessoas são atraídas pelo brilho, pelo ouro, e não pela beleza feminina. Enfim, a partir da análise deste causo, conduzida junto com a turma, propomos, como uma interpretação possível, que a forte referência ao ouro seja uma imagem facilmente elaborada nesta região do país que já foi chamada de Eldorado, em referência à facilidade de se enriquecer por aqui. Em uma região marcada pelo espírito desbravador, pioneiro, ambicioso, e pela gana de se enriquecer rapidamente, a presença do ouro neste causo seria mais facilmente explicada. Ainda, para se aprofundar nas possibilidades que este causo oferece, passamos a explorar melhor esta figura feminina, ligada à água doce e ao ouro. Apresentamos, neste momento, um mito (um Itan) de Oxum, divindade originária da atual Nigéria, e que hoje compõe o panteão do Candomblé e da Umbanda. O mito é contado com o uso de objetos, na intenção, como já foi dito, de contarmos histórias partindo de diferentes estímulos. Neste Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 537 mito, Oxum é responsável por convencer Olorun (ou Olodumare, Deus superior para os Yorubás) a devolver a água doce ao Aiyê (à Terra), salvando a existência humana e se tornando a mãe das águas doces. Assim, Oxum, que é a Orixá da sensualidade, da beleza e do ouro, se liga também à fertilidade, pois sem água doce não existe vida. Propomos, desse modo, um caminho possível ao aluno, para que ele se aprofunde e tente saber mais sobre as histórias que ouve, por mais que seja um causo curto. E muitas vezes é por desconhecer algumas referências que eram comuns a certos grupos ou por contemplar superficialmente um causo, por exemplo, que acabamos não compreendendo o seu humor ou sua tensão. Quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema, temos a certeza de que encontramos algo. Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranho. O fio pode até conduzir a uma pitoresca e maravilhosa visão de mundo.59 Na seqüência, falando sobre a (re)ocupação do norte do Paraná e seus diferentes personagens, lembramos daqueles que vieram para trabalhar na agricultura, em função da terra roxa, que tanta lama formava. Produzindo-se a imagem de um paulistano chegando a Londrina pela estação de trem, é cantada a música “Cochilou o cachimbo cai”, de Tião Carreiro e Pardinho, que alude ao esforço pessoal e ao “trabalho pesado”. Ainda sobre o tema das plantações e dos lotes rurais vendidos pela Companhia de Terras, conta-se um causo que muitos conhecem, ligado aos cafezais em época de florada. É o causo da “luzinha na plantação”, uma pequena luz clara que ronda a plantação de café, a qual seria, em algumas versões, uma noiva que se suicidou no dia do casamento, e em outras versões uma virgem violentada e morta na plantação. Essa imagem da jovem e sua ligação com a virgindade e o noivado se firma no fato de que o cafezal fica coberto pela cor branca quando os pés de café estão em flor, e o véu da noiva, branco – símbolo da pureza e virgindade –, cobriria o cafezal nesta época. As regiões e plantações onde a luz já foi vista variam de contador para contador. Os alunos são indagados se já ouviram esta história ou alguma parecida, e se saberiam qual plantação é esta. 59 DARNTON, Robert. Op. Cit. p. XV. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 538 A atividade é encerrada pedindo-se que contem mais causos, ocupando o lugar do contador e reforçando a idéia de que crianças também podem contar histórias. E o tom de oficina é conseqüência do efeito prático que esta atividade toma no contexto do projeto. Ela é pensada como um meio de instrumentalizar os alunos para o trato com a oralidade. E essa instrumentalização começa na conversa e parte da resposta que recebemos deles. Assim, ao longo da oficina, realizamos exercícios de interpretação de narrativas orais para que os alunos possam verificar de que modo isso pode ser feito quanto ao tema local, ou seja quanto às narrativas que irão recolher ou às quais já tem acesso, e que dizem respeito ao tema do projeto de seu professor. Não pretendemos, com a oficina, recolher narrativas orais ou produzir conhecimentos a partir de algum tema que possa ser levantado pelo trabalho com estas fontes. Pretendemos, antes, sensibilizar alunos e professores para que, eles sim, num esforço conjunto, possam desenvolver estas atividades. Ao realizarem este trabalho, os alunos não partem da pretensão de elaborar um conhecimento final ou de nível acadêmico sobre certo tema, mas se aproximam e são introduzidos ao saber científico e ao ofício do historiador. Os professores, esses sim, podem desdobrar as atividades e desenvolver trabalhos densos a respeito. Buscamos, dessa maneira, não apenas ampliar o conceito de fonte documental e estendê-lo às narrativas orais, como desenvolvê-lo e explorá-lo em sala de aula, na aprendizagem em História. E quanto ao trato destas fontes orais, o que fazemos é, ao invés de propor um modelo de análise definitivo, adaptar propostas de análise para a sala de aula para que os alunos possam explorar as fontes orais de maneira aprofundada – do mesmo modo como isto vem sendo preconizado quanto à utilização de outras fontes 60, como a fotografia e os mapas. A finalidade destas análises, por sua vez, é direcionada pelos professores, que podem utilizálas para verificar os conhecimentos e os saberes de seus alunos ou que podem mediar estas práticas e aproveitá-las em sua produção sobre o tema tratado. 60 Sobre o tema, verificar CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. “As fontes históricas e o ensino da História” In: ________. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 539 Considerações finais Esperava-se que, ao final da oficina, os alunos pudessem reconhecer o valor da tradição oral, bem como a expressividade e riqueza da mitologia nacional. E assim sendo, que isto os levasse a estimar a fala dos mais velhos e as referências à ancestralidade e à sua descendência. Tentou-se, também, como um objetivo subseqüente, que pudessem identificar as narrativas orais como fontes para a construção do conhecimento histórico, ou seja, como documentos de análise tão ricos e interessantes quanto fotografias ou histórias em quadrinhos. Acreditamos que a oficina, durante seu desenvolvimento com as turmas, tenha permitido que os alunos constatassem as especificidades que envolvem a narrativa oral, a multiplicidade de formas que a oralidade assume, e os diferentes modos de se enunciar uma história, em diferentes situações. Por conhecer os alunos e saber do tema escolhido pelo professor para ser trabalhado dentro do Projeto Contação, podemos direcionar o conteúdo da oficina para a área de maior interesse e que mais fosse útil para a turma em suas futuras pesquisas, bem como na coleta e produção de materiais. Assim, contribuímos naturalmente com a oficina de entrevistas, sendo que estes alunos comumente abrem mão de muitas noções debatidas em nossa oficina na hora de realizarem a coleta de depoimentos orais. A reação dos alunos a nossa atividade é, de início, um tanto apática. A idéia de contação de histórias soa, principalmente às turmas mais velhas (da 6ª série adiante), como uma atividade infantil demais, ou relacionada às histórias contadas por seus pais, avós e outros contadores ocasionais, o que consideram enfadonho e sem importância. E, pelo contrário, quando se demonstram empolgados quanto à oficina, é porque a imaginam como um espetáculo ou alguma apresentação teatralizada, uma atividade de entretenimento alternativa às aulas regulares. Sendo assim, a oficina não parece nunca corresponder às expectativas dos alunos e mesmo dos professores. Mas ao longo de sua realização, vai se clarificando quais as intenções da atividade, e como isto pode ser fértil. E compreender melhor a oficina já significa concretizar seu objetivo básico, que é justamente promover esse novo olhar sobre as narrativas orais e sobre as possibilidades que elas oferecem. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 540 Bibliografia CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. DARNTON, Robert. “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”. In: ________. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986. FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (Org.). Oralidade e Literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina: EDUEL, 2003. FRANCO, Aléxia P.; VENERA, Raquel A. Sena. A memória e o Ensino de História hoje: um desafio nos deslizamentos de sentidos. In: ZAMBONI, Ernesta (Org.). Digressões sobre o Ensino de História: Memória, História Oral e Razão Histórica. Itajaí: Maria do Cais, 2007. MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: EDUEM, 1994. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _______. Os Príncipes do Destino: histórias da mitologia afro-brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. PROPP, Vladimir. Raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SIMONSEN, Michele. O Conto Popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987. TODOROV, Tzvetan. Os homens-narrativa. In: _______. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1969. TOMAZI, Nelson D. Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1988. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 541 AS NARRATIVAS URBANAS E A INTERNET: POR UMA POÉTICA DA ORALIDADE RELACIONADA ÀS NOVAS TECNOLOGIAS Mauren Pavão Przybylski61 (PG-UFRGS) “O memorável é o que se pode sonhar de um lugar”. (Michel de Certeau) I. Para começar... Desde os primórdios, a ideia que se tem quando se pensa em transmissão cultural de conhecimento, parte de uma escrita centrada na palavra, na fixidez de um discurso que só vê validade naquilo que é publicado na academia. Mesmo os autores que defendem algum tipo de valorização da voz o fazem, na grande maioria das vezes, de uma perspectiva que parte da passagem do oral para o escrito. Ao leitor desavisado, que tomar conhecimento desse texto, meu titulo pode parecer deveras interdisciplinar. Se isso parecer, terei alcançado um de meus objetivos. Acredito que a internet deva ser também um local de transmissão e fixação das narrativas urbanas; narrativas essas que são, certamente, poéticas. Aliar as narrativas urbanas às novas tecnologias é mais um modo de fazê-las presentes no cotidiano das pessoas, já que os meios virtuais tornaram-se o maior centro de interesse numa velocidade inimaginável. Portanto, quero aqui cotejar narrativas urbanas, virtuais e poéticas, entendendo o que nelas é semelhante, além do que uma pode auxiliar na justificativa da outra, e no que elas têm de diferentes. Para tanto, trarei aqui as ideias de Walter Ong, Henri Meschonnic, , entre outros. Quando falo narrativas urbanas penso que isso abre para diferentes histórias, contadas por narradores impares. Todavia, é preciso marcar que as narrativas que compõem o meu corpus fazem parte do projeto “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de acervo de narrativas orais”, projeto este fomentado pelo CNpq e que tem como um dos objetivos criar um acervo de narrativas orais que compõem-se por documentos em 61 maurenpavao@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 542 áudio, vídeo e ambiente virtual. O projeto, coordenado pela Profª Drª Ana Lucia Tettamanzy, tem seu locus de pesquisa de campo na Restinga, maior bairro de periferia localizado a 30 km do centro de Porto Alegre. Da ligação das novas tecnologias com as narrativas urbanas surgem inquietações: como transformar o oral em vídeo e transportar tudo isso ao ambiente virtual? Quais os critérios dessa passagem? Existem perdas? Como são feitas as escolhas? Qual nosso papel? E o papel do nosso narrador? Vamos às respostas... ou, pelo menos, às tentativas de... II. Considerações “teóricas” iniciais: situando o campo Começo esta reflexão a partir do pensamento de Michael Pollak vê a memoria não só como seletiva, mas como um processo de negociação para conciliar memoria coletiva e memorias individuais. Ele traz Halbwachs para justificar que “Para que nossa memoria se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum”.(1989 p.3-4) Cláudio Guilarducci (s/d) diz que: Por cidade, entende-se o espaço geográfico construído por homens com todas as suas concretudes e materialidades como a arquitetura e os traçados de ruas e de praças, ou seja, é todo registro físico de uma determinada localidade que tem uma determinada forma. Pode-se afirmar que a “cidade é volume, espaço, superfície” (PESAVENTO, 2002, p24) materializada pela ação do homem. Justamente por ser uma construção humana deve-se também considerar as imagens e os discursos que as pessoas elaboram do espaço em que ocupam, pois é lá que acontecem os conflitos, o convívio social, as trocas de informações, as sensibilidades e as práticas que conferem sentidos e significados. A cidade deve ser vista e analisada não somente pelas suas construções arquiteturais e suas possíveis ocupações no espaço, mas antes pela dimensão da existência, pois ela é construída por homens e suas relações. Nesse sentido, Eckert e Rocha vão afirmar que Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 543 Nas modernas metrópoles, a vida humana torna-se objeto principal de estudo pelos “retalhos e pelos resíduos”, pelo “secundário ou excêntrico”, isto é, a moda, o jogo, o colecionador, os dioramas, a prostituição, o flâneur, as passagens, o interior, as ruas, a fotografia, o réclame”, tudo atribui sentido de lugar, de pertença a uma história urbana que também se esvai no tempo. Em nome da sua perspectiva materialisticamente teológica, Benjamin (1993) nos ensina que, na cidade, o objeto da duração não é unicamente o presente-futuro, mas também o passado. Para Benjamin, a narrativa urbana, para durar no tempo, não necessita recorrer a recursos estilísticos “preciosos” para se configurar como memória e patrimônio. Ao contrário, ela precisa aderir à fluidez do tempo e à efemeridade dos processos de transformações dos sistemas de representações simbólicos (imagens e valores) que caracterizam a vida na cidade. Essa fluidez do tempo e efemeridade dos processos de sistemas de representações simbólicos (imagens e valores) que caracterizam a vida na cidade e as quais as autoras destacam são bastante presentes nas estórias contadas na Restinga e que registramos em audiovisual e ambiente virtual. O sentido de lugar que cada morador tem é diverso, mas o objetivo é o mesmo: a constituição de um acervo de memória do bairro. É fato, a partir disso, que nem sempre o que buscamos no bairro é o que vamos escutar. Existe uma negociação interna que perpassa não só aquilo que o narrador conta, mas aquilo que ele pensa que queremos ouvir. Assim, ele seleciona fatos que julga serem importantes e que, na maioria das vezes, não são os que queremos ouvir, mas o que ele tem para contar. São seleções que partem do que ele deduz ter de melhor em sua invidualidade e que pode servir para valorizar o coletivo. Entendo bastante esta afirmativa de Pollack no contato com um narrador da Restinga62. José Carlos dos Santos, o Beleza, 63 aposentado, ex62 A Restinga, mais conhecida por seus moradores como “Tinga”, é o maior bairro de Porto Alegre, localizado ao sul da cidade. Foi criado pela Lei 6571 de 8 de janeiro de 1990. No entanto, sua origem remonta há algumas décadas antes e é marcada por uma série de remoções de moradores indesejados das áreas centrais da cidade, que tinham que ser “higienizadas” para dar lugar a espaços planejados, sinais do progresso urbano. A Lei de 30 de dezembro de 1965, que criou o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), transferiu tais habitantes para um local 22 km longe do centro de Porto Alegre, a Restinga. E é nesse bairro, permeado por intensas dificuldades socioeconômicas, políticas e culturais, que vivem Jandira, Maragato, Beleza, Alex e Ventura, nossos parceiros e narradores. 63 Nesta discussão tomaremos como sujeitos de pesquisa Marco Maragato e José Carlos dos Santos, Beleza, por serem bastante significativos naquilo que queremos relatar. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 544 conselheiro tutelar, militante por uma Restinga com memória e valor reconhecido, nos afirma, a cada história contada, uma reconstrução da lembrança sobre uma base comum. A base comum, nesse caso, é a Restinga idealizada, uma Restinga que existe na memória de cada morador. Ao trazer fatos que ele afirma reais, ele representa a realidade do bairro de forma a misturar verdade e fantasia. No entanto, a fala de Beleza por vezes não tem valor nenhum dentro de sua comunidade pela falta do que ele mesmo afirma : “os diproma” 64. Qual é, então, o lugar da escrita e da oralidade na construção dessa narrativa? III. O lugar da escrita e da oralidade na construção narrativa Quando pensamos nos estudos que buscam investigar culturas orais e escritas podemos destacar que estes emergiram, sistematicamente, no inicio dos anos 1960. Eric Havelock (1995) vai fixar, entre 1962 e 1963, quatro publicações fundamentais que contribuíram para a constituição desse novo campo de pesquisas. Esses trabalhos, enfatizando em temas diferentes e originários de países diversos, tinham em comum o fato de darem destque à oralidade. Em 1962, foram publicados The Gutenberg Galaxy 65, de McLuhan, no Canadá, e La pensée sauvage66, de Lévi- Strauss, na França; em 1963, Jack Goody e Ian Watt publicaram o artigo “The consequences of literacy” 67na Inglaterra, e Eric Havelock publicou Preface to Plato 68nos Estados Unidos. As próprias transformações pelas quais passavam os meios de comunicação contribuíram para que a oralidade e a escrita fossem reconsideradas objeto de estudo de destaque, segundo Havelock (1995). Na mesma direção, Ong (1998) situa nas décadas de 1960 e 1970 esse movimento acadêmico de análise das relações entre culturas orais e escritas. Os trabalhos realizados nesse período, em diversas áreas de conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia, enfatizaram o caráter oral da linguagem e as profundas implicações, em todos os níveis, da introdução da escrita em culturas tradicionais. Muitas dessas pesquisas debruçaram64 Ele fala assim não porque essa seja sua linguagem, mas como uma critica social no sentido de que se é da Restinga fala errado, é iletrado, etc. 65 A galáxia de Gutenberg (McLuhan, 1972). 66 O pensamento selvagem (Lévi-Strauss, 1983). 67 “As conseqüências do alfabetismo” (Goody, Watt, 1963, não traduzido para o português). 68 Prefácio a Platão (Havelock, 1997). Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, maio/ago. 2006 Oralidade e escrita... Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 545 se, por meio de trabalhos de campo, sobre sociedades ainda orais, buscando vestígios daquilo que se convencionou denominar oralidade primária: “melodias, cantos, epopéias, danças, exibições e músicas, ainda preservados oralmente e transmitidos de geração a geração entre as sociedades tribais...” (Havelock, 1995). De maneira semelhante, Cook-Gumperz e Gumperz (1981) situam as origens das pesquisas sobre os efeitos culturais do letramento nos estudos de folcloristas e pesquisadores da área de literatura que investigaram os processos pelos quais os grandes épicos eram transmitidos nas sociedades não letradas, como é o caso dos trabalhos de Lord (1960) e Havelock (1963). Na avaliação de Ong (1998), pode-se considerar a emergência desses estudos com preocupações semelhantes em um mesmo período histórico como um movimento de redescoberta da oralidade, decorrente do estabelecimento, por Saussure, do primado oral da linguagem. Do mesmo modo, trabalhos de antropólogos estruturalistas realizados anteriormente haviam analisado a tradição oral em sociedades sem escrita. Para Ong (1998), a “novidade” dos estudos mais recentes estava na preocupação dos pesquisadores em contrastar, realizando oposições, a oralidade e a escrita, em diversos níveis. Nesse sentido, diversos autores (por exemplo, Ong, 1998 e Havelock, 1995) citam o trabalho de Milmam Parry, na área de estudos literários, ainda nos anos 1920 na Iugoslávia, como um dos marcos iniciais desse novo campo de estudos. Na tese L’épithète traditionelle dans Homère 69, publicada em Paris em 1928, Parry analisou a Ilíada e a Odisséia, trabalho que teve prosseguimento na obra de seu discípulo Albert Lord que, em 1960, publicou The single of the tales 70. Naquele momento, Lord divulgou o material que Parry havia recolhido entre bardos, com uma análise dos cantores tradicionais iugoslavos. Havelock cita ainda diversos outros trabalhos que antecederam a década de 60 e que, de algum modo, haviam se dedicado ao contraste entre oralidade e escrita como, Ramus: method and decay of dialogue71, de Walter Ong, publicado em 1958. Estudos dessa ordem provocaram também um novo interesse pela palavra escrita e seu principal suporte contemporâneo: o texto impresso e, em particular, o livro. Nessa direção, destacam-se algumas obras que centraram suas análises nas conseqüências da palavra escrita e impressa 69 O epíteto tradicional em Homero (Parry, 1928, não traduzido para o português). O cantor de histórias (Lord, 1960, não traduzido para o português). 71 Ramus: método e decadência do diálogo (Ong, 1998, não traduzido para o português). 70 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 546 em sociedades e épocas determinadas, como é o caso de L’apparition du livre72, de Henri-Jean Martin e Lucien Febvre, publicado em 1958, e The printing press as an agente of change: communication and cultural transformation in early modern Europe 9, de Elizabeth Eisenstein, publicado em 1979. Os efeitos da introdução da escrita e da imprensa em sociedades não letradas têm sido, pois, uma das principais questões que norteiam esse novo campo de estudos. Segundo Havelock, o desenvolvimento crescente, a partir dos anos 60, de pesquisas no campo de estudos que investiga as relações entre o oral e o escrito, coloca, na atualidade (o texto foi escrito em 1987), os conceitos de oralidade e de oralismo em uma situação diferente da que ocupavam anteriormente, ganhando maior importância acadêmica. Esses conceitos contribuem para a caracterização de sociedades que, dispensando o uso da escrita, têm se valido da linguagem oral em seus processos de comunicação. As expressões têm sido utilizadas também para identificar um certo tipo de consciência, supostamente criada pela oralidade (Havelock, 1995). Essas preocupações têm sido centrais nos estudos realizados nesse campo. Paul Zumthor (1993), por sua vez, distingue três tipos de oralidade. A primeira, que denomina “primária e imediata”, não estabelece contato algum com a escrita, encontrando-se apenas “nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos”. Em segundo lugar, haveria uma “oralidade mista” em que o oral e o escrito coexistem, mas a influência do escrito “permanece externa, parcial e atrasada”. Esse tipo de oralidade procederia de uma “cultura ‘escrita’”. Finalmente, o autor denomina “oralidade segunda” aquela que é característica de uma “cultura ‘letrada” e se “recompõe com base na escritura num meio onde este tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário” (p.18). Esses tipos de oralidade variam, segundo Zumthor, de acordo não somente com as épocas, mas com as regiões, as classes sociais e também com os indivíduos. Todas essas perspectivas tratam de uma análise que, muitos embora por alguns possa estar enraizada a um código escrito, cotejam com uma tradição que é oral. Nesse sentido, Virginia Vich e Victor Zavala (2004), ao pensarem da questão da tradição oral, das literaturas populares e do problema do cânone entendem que a recompilação e análise de contos populares e tradições orais tem sido guiados pelo afã de chegar a uma 72 O aparecimento do livro (Martin, Febvre, 1992). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 547 espécie de inconsciente social que permita reconstruir as raízes simbólicas de uma comunidade. Por tradição oral, o que se tem entendido vai à perspectiva de referência ao universo mítico ou imaginário de qualquer grupo humano e o interesse nela tem tido relação com a pergunta pelo conjunto de representações que constituem o “ser coletivo”. Os autores assumem que a linguagem é a instância que revela melhor a identidade de um povo – o lugar de onde se cifra e constitui a identidade – e, para tanto, o estudo das tradições orais tem sido entendido como a melhor via de acesso à suposta “essência” da cultura, na medida em que abarca manifestações pelas quais a tradição oral pode ter voz e legitimidade (p.73). Os estudos culturais são, nesse sentido, uma perspectiva de analise que abre para um entendimento da narrativa como hibrida. Tentemos rapidamente pontuar... IV. Sob a perspectiva do culturalismo: o hibrido narrativo O estudo da tradição oral, a partir daquilo que vimos discutindo, presta-se a uma discussão sob a ótica dos estudos culturais. Homi Bhabha vai entender a linguagem da critica como eficiente, na medida em que ultrapassa as bases da oposição dadas e abre um espaço de tradução: um lugar de hibridismo, para se falar de forma figurada, onde a construção de um objeto politico que é novo, nem um nem outro, aliena de modo adequado nossas expectativas políticas, necessariamente mudando as próprias formas de nosso reconhecimento do momento da politica. ( BHABHA, p.51) A linguagem tem, pois, poder e esse poder alcança seu objetivo maior no momento da tradução. Traduzir é também construir um objeto político que versa a intenções pré-determinadas, ou seja, existe algo que se quer alcançar. Entretanto, existe um hibridismo que quebra com nossas expectativas alienando-nos. Essa alienação é o que abre para novas visões e possibilidades acerca do objeto traduzido. Se esse objeto for um “sujeito de pesquisa” a questão é ainda mais delicada. O traduzir deve ser um lugar de aceitação de diferenças dentro das subjetividades e nenhuma delas é hegemônica; o traduzir não é reescritura, é troca. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 548 Voltando a Bhabha(2000), no que tange ao hibrido, ele vai entende-lo como é um processo agonístico em estado constante de negociação inconclusiva, sem trégua, sem assimilação nem incorporação: Trata-se de um processo de inter-relação cultural que, mais do que transcender fronteiras ou limites, insiste em mostrar - em qualquer diálogo cultural ou comunal - as dissonâncias que precisam ser atravessadas apesar das relações de proximidade; as disjunções de poder ou posição que precisam ser contestadas; os valores éticos e estéticos que precisam ser "traduzidos" mas que não transcenderão pacificamente o processo de hibridização [...] A hibridização não é algo dado, encontrável num objeto ou numa identidade mítica "híbrida" - é uma forma de conhecimento, um processo de compreender ou perceber o movimento ambíguo e ansioso de trânsito ou transição que necessariamente acompanha qualquer forma de transformação social sem a promessa de clausura celebratória, nem a transcendência das condições complexas até mesmo conflitantes que acompanham o ato de tradução cultural. (2000) Interessante, a partir disso, pensar em transcender fronteiras e limites, na medida em que trazendo a perspectiva de um trabalho que se pretende enquanto uma análise de narrativas orais em ambiente virtual, essa transcendência é para nós um objetivo. Ao transpassar textos híbridos e orais para o ambiente virtual nossa transcendência de fronteiras e limites estar no fato de perseguirmos o máximo possível a verdade de nossos narradores. Nosso projeto vê os narradores como sujeitos e como parceiros, visto que contestamos posições e pensamos numa igualdade de vozes. Ao ter contato com indivíduos periféricos traduzimos nossos valores éticos e estéticos e não saímos ilesos. É uma troca de conhecimentos, de intenções que altera a relação de alteridade. Nosso eu e nosso outro pelo qual somos atravessados é transgredido. E nessa relação há uma transformação social, não no sentido de nos transformarmos no outro, mas na medida em que trazer por exemplo, para a academia, indivíduos periféricos, estamos confrontando um ambiente tradicional e canônico e colocando em xeque tudo aquilo que já é conhecido como permitido. Nossa pesquisa vai nesse caminho de ser, mais do que uma escrita, uma tradução cultural. Frederic Jameson (apud BHABA, p.200) invoca algo semelhante em seu conceito de “consciência situacional” ou alegoria nacional, em que o “contar da história individual e a experiência individual não podem deixar de, por fim, envolver todo o árduo contar da própria Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 549 coletividade”. Na Restinga essa consciência situacional é fato, já que cada sujeito de nossa pesquisa, ao narrar sua historia, narra também a coletividade. Explicação simples para isso está no fato de que o narrar histórias deles tem como objetivo ser o resgate da memória do bairro e a valorização de uma coletividade plena de indivíduos que merecem ter seus trabalhos reconhecidos. Nosso site, nesse sentido, é uma forma democrática de reconhecimento destes talentos até então silenciados por uma sociedade que os vê como um entulho e, assim, os deixa a margem de tudo aquilo que é cultural, acadêmico e socialmente reconhecido. V. O contar tradicional e o contar virtual: aproximações e distanciamentos. Quando se pensa em narrativa é natural que se pense também na questão do mito. O que determina que algo contado é de origem mítica? Segundo Rogerio Carvalho, em seu projeto de pós-doutorado, Para Durand o mito está sempre presente na capacidade que o ser humano tem para simbolizar, seja pelas imagens propriamente simbólicas ou pelos motivos arquetípicos. Significa que o imaginário é o centro da habilidade do homem para transcender e que, com pouca variância, se realiza na forma de imagens simbólicas e de narrativas arquetípicas. Ou seja, com base em Durand todo ser humano é capaz de produzir mitos, a partir das imagens simbólicas que ele produz e reproduz na forma de narrativas arquetípicas. Na Restinga, o que temos, são estes tipos de narrador, capazes reproduzir imagens simbólicas como forma de resgate primeiro de uma memória pessoal, depois da do bairro. Paul Ricoeur atribui ao ato de presentificar a distinção entre o fato de “contar” e a coisa “contada”. Para o autor: O que é contado e que não é narrativa, não é em si mesmo dado em carne e osso na narrativa, mas simplesmente “devolvido restituído”(Wiedergabe); por outro o que é contado é fundamentalmente a “temporalidade da vida”; ora “a vida [ela própria] não se conta, vive-se” (p.254). As duas interpretações são assumidas pela seguinte declaração: “Qualquer contar é um contar algo que não é narrativa, mas processo de vida” (p.261). Qualquer narrativa, desde a Ilíada, conta a própria fluência (Fliessen): “ A epopeia é Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 550 tanto mais pura quanto mais rica de temporalidade for a vida” ( “Je mehr Zeitlichkeit des Lebens, desto reinere Epik 1995:p.250). Na Restinga percebemos fortemente essa ideia ricoeuriana, na medida em que o que cada morador quer é valorizar os tantos processos de vida presentes na comunidade. A fala de cada um, suas ações enquanto poetas, educadores populares, nômades cibernéticos objetiva ser essa descrição de uma temporalidade da vida. Suas narrações contam a fluência de uma comunidade, comunidade essa onde faz-se extremamente importante destacar que foi removida de seu locus primeiro de morada por uma questão de higienização urbana. Cabe ressaltar que o objetivo deste trabalho é analisar a passagem do oral para o escrito e todas as perdas e ganhos do processo, mas, para isso, precisamos contextualizar nosso estudo. A Restinga é nosso locus de trabalho e os sujeitos acima citados nossos “sujeitos de pesquisa”. Se, inspirando-nos em Genette, é possível chamar de “jogo com o tempo” a relação entre tempo do contar e tempo contado na própria narrativa, o que esse jogo põe em jogo é o vivido temporal (Zeiterlebnis)visado pela narrativa. (...) Em todos os casos, uma criação temporal efetiva, um “tempo poético” (p.311) revela-se no horizonte de qualquer “composição significativa (p.308)”. É essa criação temporal que está em jogo na estruturação do tempo, que, por sua vez, se dá entre o tempo levado para contar e o tempo contado. (Ricoeur, 1994: p.137) A experiência de composição de um site pode ser muito mais do que uma simples técnica. Para isso, basta que a página a ser criada pretenda dar conta de narrativas, narrativas que são certamente de cunho ficcional, mas que vem de personagens/narradores reais. A composição do site “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de acervo de narrativas orais” foi, e continua sendo, para mim, um desafio. Nesse sentido, entendo a construção de um site na esteira daquilo que entendem Eckert e Rocha: A concepção da arquitetura do site tem se constituído na expectativa da leitura/interpretação do objetocidade pelo usuário do site no sentido de confrontá-lo com dois tipos de divisibilidade das imagens dos fenômenos urbanos, no espaço e no tempo: o corte e a ruptura. Neste ponto, corte e ruptura têm sido tomados aqui como elementos indutores de narrativas etnográficas do e no meio urbano de Porto Alegre uma vez que, através de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 551 ambas as ações, os usuários exploram o conhecimento local do fenômeno do “desencaixe” do tempo e do espaço tão característico da Modernidade. Trata-se de evitar ordens discursivas acerca das transformações dos cenários da vida coletiva em Porto Alegre e a tendência de transformar coleções etnográficas em depósitos ordenados de uma cultura material, dispostas numa lógica evolutiva. Nosso objeto, por sua vez, é o objeto-bairro. É a Restinga vista de dentro e de fora, por nós, mas principalmente por seus moradores que executam por vezes cortes no tempo e no espaço como forma de restaurar aquilo que lhes é mais caro na constituição e uma identidade do bairro. A página internet em si propicia uma desordem discursiva, na medida em que cada um lerá e interagirá da maneira que melhor lhe convier. O acervo de narrativas, por sua vez, transformará todo aquele material recolhido na Restinga em objetos de cultura material que estarão ao acesso de quem sem interessar, ao invés de virarem meras coleções etnográficas guardadas em uma sala. E as autoras acrescentam: A criação do site compreende, portanto, uma proposta de exposição de coleções de documentos etnográficos em telas que se afastam da idéia de recuperação de uma história linear de estilos de “viver a cidade” segundo a realização racional de periodização do tempo no tratamento espacial da memória. Da mesma forma, considerando-se a intenção da compreensão do microcosmo social que pulsa no interior da vida urbana porto-alegrense, tem sido avaliado também o estudo da poética do detalhe que envolve o tratamento da estética de “alta fidelidade” da vida cotidiana dos seus habitantes no sentido de essa permitir ao usuário do site “inferir” as macronarrativas acerca da vida urbana.( ILUMINURAS, Vol. 1, No 1 (2000) O que se quer é a recuperação tanto de um bairro, a Restinga, no que tange as suas histórias de vida e a possibilidade de que as pessoas criem um novo olhar, que não aquele de lugar violento e de moradores marginais, sobre a Restinga, quanto uma revalorização de tantas histórias de tantos sujeitos que se viram perdidos pela supremacia de um mundo tecnológico. Nossa intenção é unir tecnologia e narrativa como forma de auxiliar no resgate de estórias que fazem parte da própria constituição da sociedade moderna. 73 73 Não nego a importância de um relato teórico acerca da poeticidade dessas narrativas, entretanto, este texto é apenas um primeiro recorte de minha tese de doutorado que está em fase inicial e pretende, em um segundo momento, contemplar a questão poética. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 552 Deparei-me com uma quantidade imensa de materiais a serem transferidos para o ambiente virtual, materiais que davam conta de aproximadamente quatro anos de pesquisa. Mas a dificuldade não estava somente na quantidade, mas no modo de fazer, pensando na concepção de De Certeau. Eu estava lidando com trabalhos de indivíduos com os quais tenho contato, que tem voz, ideias próprias e uma expectativa em cima de mim. Como eu lidaria com a memória deles? Sim, entre outras coisas nosso projeto se pretende enquanto um arquivo de memória, onde as pessoas deixam seus registros em áudio, vídeo, daquilo que para elas é mais importante, do que elas valorizam em si, em suas comunidades e querem que seja destacado. A maior parte do que temos é advindo da Restinga e isso não é à toa, visto que o bairro é o nosso locus de pesquisa de campo. 74 Partilhamos ainda das ideias de Eckert e Rocha no sentido de que ao usar tecnologias da informática com o tratamento eletrônico ou digital da memória, problematizamos a noção do tempo como realidade composta de um continuum de instantes logicamente hierarquizados e não como “monumentos de lembranças”. Nesse sentido, propomos que os jogos de simulação permitem a criação de formas mais integrativas e interativas de resgate, recuperação, criação e produção de coleções etnográficas. Ao ter em mãos a tarefa de passar do oral para o escrito as memórias das pessoas e sendo esse escrito o ambiente virtual me deparei com muitas questões: como fazer? De que modo colocá-los preservando suas verdades? Deveria eu corrigir os erros, por exemplo, de ortografia em alguma poesia ou texto dos meus narradores ou seria intervenção demais? Meus questionamentos foram partilhados com o meu grupo de pesquisa, na medida em que eu fui um instrumento para que aquele material fosse ao ar, mas não idealizei cada titulo de menu e sub-menu sozinha. Quando falo em partilha é preciso que eu deixe bem claro que, mesmo não sendo talvez, para muitos, a forma ideal de trabalhar, nosso projeto prima por uma construção coletiva de saberes e conhecimentos e, por isso, fui também atrás de meus narradores para que eles dessem suas opiniões e contribuições. Dessas opiniões foram, certamente, feitas escolhas. E esse é o momento que julgo mais delicado porque, se eu 74 Utilizo o plural e o singular, o nós e o eu, de forma proposital, na medida em que minha tese está engajada em um projeto de pesquisa intitulado “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de acervo de narrativas orais” e que, mesmo tendo sido publicado por mim, foi pensado por todo o grupo de pesquisa. Minhas reflexões são, portanto, fruto de discussões semanais proporcionadas por este grupo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 553 estou escolhendo materiais e deixando outros de fora, eu estou, de uma certa forma, intervindo na verdade do narrador. Onde fica, nesse sentido, meu objetivo maior de manter sua verdade? Alguns cuidados foram tomados em nosso processo de passagem das narrativas e demais materiais para o ambiente virtual. O primeiro foi o de colocá-los, se não lado a lado em termos físicos por uma impossibilidade técnica, logo abaixo de nossas descrições no ambiente virtual. Depois, os colocamos como Colaboradores, porque é isso que eles são. Na verdade, se fossemos realmente defini-los em um menu colocaríamos Sujeitos-parceiros de pesquisa, mas existem questões de técnica e estética que precisam ser obedecidas. E finalmente colocamos Outros Colaboradores que, se pensássemos sob uma perspectiva em primeiro lugar acadêmica e canônica deveriam vir antes, na medida em que são professores de outras instituições, pesquisadores. Nosso objetivo não é uma valorização de nosso trabalho intelectual, mas o de criar um espaço de memória tanto para os moradores da Restinga quanto para todas as pessoas que quiserem registrar fatos que julgam importantes acerca de sua existência e valorizarem-se enquanto indivíduos que possuem um lugar no espaço. Nosso desenho virtual continuou no momento em que criamos mais um menu: o Imagens. Dentro dele: Etnografias. Nesse, nosso objetivo é publicar os registros produzidos principalmente na casa do morador José Carlos dos Santos, o Beleza, documentando os momentos de produção de narrativas orais. Uma das fotos mais interessantes presente neste sub-menu é a da defesa de um atualmente membro externo do projeto, mas que produziu a primeira dissertação do nosso grupo de pesquisa, Felipe Ewald, em que três moradores da Restinga: Marco Almeida “ O Maragato”, José Carlos dos Santos “O Beleza” e José Ventura aparecem sentados naquelas cadeiras que outrora foram ocupadas pelos membros da banca de defesa, contando suas experiências. Depois de darmos conta das etnografias partimos pelo que optamos denominar Memorabilia. Nele temos os objetos e registros das criações e produções dos narradores da Restinga. Aqui é possível encontrar-se, entre outras coisas, as poesias produzidas por dois moradores: Alex Pacheco e Jandira Brito. Os descobrimos poetas e os fizemos (re) descobrirem-se poetas a partir da valorização em seu trabalho. Nossa valorização não é algo que fique no campo da oralidade, mesmo que nosso objeto de pesquisa sejam as narrativas, e com muitos esforços conseguimos publicar um livro com as poesias de nossos ilustres Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 554 parceiros. A escolha das poesias, bem como das imagens do sub-menu anterior, foi feita de acordo com o que sentíamos ser mais caro aos narradores. Nossa escolha precisou, ao longo de todo o site, ser baseada na sensibilidade e na experiência que parte do contato no campo. Não encontramos outra opção que pudesse ir ao encontro do objetivo traçado. No que tange a esta Memorabilia ainda é mister destacar o trabalho desenvolvido pela geografa Nola Gamalho. Ela, juntamente com o morador Beleza, fez a trajetória do bairro, foi o caminhar pelo bairro (se parafraseamos De Certeau) de Nola e Beleza que permitiram a confecção de um mapa atualizado da Restinga. Diferentemente daquele fornecido pelo DEMAHB, Nola mapeou cada unidade que compõe a Restinga. Ao ser mostrado aos moradores, numa exposição realizada pelo Grupo de Pesquisa75, foi interessante a percepção de cada morador acerca de seu locus de morada. A impressão que tivemos é de que muitos deles não sabiam da diversidade cultural e geográfica de seu bairro. Questões politicas internas também vieram à tona na medida em que eles apontavam os locais de que não gostavam, onde não circulavam, os que julgavam mais ou menos perigosos. Foi um exercício de reencontro com sua identidade. Ainda dentro das Imagens temos as Incursões. Neste sub-menu damos mais ênfase aos registros de experiência do grupo de pesquisa e do Projeto de Extensão quem conta um conto – contadores de histórias em diferentes espaços do bairro. Neste momento nossa voz pode falar com mais liberdade, na medida em que era nossa subjetividade que seria relatada de forma explicita. Todavia, a partir do momento em que lidamos com imagens produzidas por nós, mas que não são nossas, certos cuidados se fazem necessários. Nas situações de contação de histórias, por exemplo, muitas crianças aparecem e foi preciso distanciar seus rostos e preservar suas identidades por serem menores e não termos nem direito, nem autorização, de expô-las em ambiente virtual. É fato que mesmo na internet existem normas que devem ser cumpridas, mesmo que nem sempre isso aconteça. Em Museu de Imagens temos documentos escaneados, fornecidos por nossos parceiros/narradores, contendo registros de experiências, entre eles: jornais, cadernos, fotos pessoais, fotos de outros acervos, etc. Neste o cuidado com as imagens do qual falamos acima se faz também bastante presente. 75 Daremos ênfase à exposição na sequencia do relato. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 555 E por fim Via Crucis vai dar conta da exposição de que citei acima. O nome da exposição foi sugerido por Marco Maragato em função da dor e sofrimento passado por esses moradores desde que aconteceu a remoção de seu antigo locus para onde estão atualmente. Cada estação conta um pouco da história da Restinga. Disponibilizamos, no site, as 10 estações para que quem se interessar (pensamos num interesse que partisse, sobretudo, dos educadores) pudesse ter acesso e trabalhar com isso em seu dia-a-dia. Da exposição, surgiu a ideia de realizarmos uma Oficina para os professores da rede pública do bairro. A aceitação primeira era grande, mas toda a vontade de conhecer o projeto terminava ao nos verem chegando junto com os moradores. O que a comunidade escolar em geral queria era o contato com a Universidade, com alguém que os era “intelectualmente superior” em função de possuir um diploma. Mas que autoridade seus pares teriam para ensina-los algo? Muitos dos professores também não se interessaram pelo projeto pelo fato de ser um resgate da memória do bairro e eles não serem moradores. A eles não interessaria atravessar a cidade, no sábado, para ouvir moradores falarem. Em respeito aos poucos interessados, registramos no site. O menu Textos e seus submenus dá conta do que nós, pesquisadores, vimos pensando. São relatos de nossas experiências passados para o papel através de artigos, publicações em livro, monografias, dissertações e teses, sendo que esta última dá conta de trabalhos que ainda estão em desenvolvimento. No menu vídeos temos como objetivo disponibilizar alguns dos vídeos produzidos pelo grupo de pesquisa. Já temos pronto o Narradores da Restinga I e estamos em fase de produção do II e de um terceiro que dá conta da poética indígena. A experiência do vídeo 76 nos é muito cara e ao mesmo tempo bastante nova. Questões como duração, em uma perspectiva bachelardiana, não foram por nós ainda contempladas. Nosso campo de estudo recai muito mais nas questões de memoria e identidade e como editar tudo isso vendo-nos como tradutores de mensagens politicas, sociais e de libertação de uma realidade que não agrada mais. 76 Muito embora nosso objetivo não seja aqui discutir nossos vídeos, os traremos como exemplo ilustrativo de nossa pesquisa. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 556 VI. Hipertexto e poética digital: tradução? Dadas essas questões teóricas de tradição oral, tradução cultural e hibridismo que apóiam minhas reflexões, qual o papel de nossos narradores quando suas produções são transferidas para o ambiente virtual? Antes de responder a esta e as demais questões propostas no inicio desta reflexão, é necessária a discussão acerca de alguns conceitos. É preciso que fique claro, todavia, qual o conceito de site que queremos enfocar: construção hipertextual, locus privilegiado de tradução de ideias, imagens, vídeos, objetos de arte, documentos escaneados e etc. É isso que perseguimos com nosso site, acrescentando o objetivo de se manter a verdade dos “sujeitos de pesquisa”. Para Henri Meschonnic (2007: 43-44 apud Marcia Pietroluongo), 77 a questão fundamental da tradução se funda na indissociabilidade entre teoria e prática. Toda prática encerra em si uma teoria da linguagem, desvela suas representações. Toda teoria que não refletisse a partir de sua prática se revelaria uma lingüística da língua aplicada sobre o discurso. Por ser uma poética experimental, a tradução ocupa um lugar único no âmbito das teorias da linguagem. A variação operada sobre um mesmo texto a traduzir ao longo das épocas e dos diversos espaços desvela não apenas as diferentes concepções sobre a linguagem, mas também a variedade de representações sobre o literário. São essas concepções e, sobretudo estas variadas representações sobre o literário, que queremos trazer à tona com nossos vídeos e nosso site. Rachel Longi78, 2000, citando Jay Bolter diz que: Muitos autores buscaram uma espécie de subversão da ordem, de acordo com Bolter (1991), ao estruturar o texto de maneira alternativa, apostando mais na atividade do leitor do que nos cânones (bem) estabelecidos da literatura que sempre vigoraram. Estes verdadeiros "transgressores" procuraram, de alguma forma, libertar-se dos limites a sua arte. Neste 77 Signo, sujeito e tradução. Tradução em Revista 7, 2009, p. 01-08. Disponível em http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/14718/14718.PDF . Acesso em 05 outubro 2010. 78 Hipertexto e poéticas digitais: uma análise de Patchwork Girl e do Storyspace. Revista Em Questão, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 121-135, jan./jun. 2005. Disponível em http://www6.ufrgs.br/emquestao/pdf_2005_v11_n1/7_hipertexto.pdf . Acesso em 05 outubro 2010. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 557 sentido, é importante atentarmos para a obra de Marcel Proust, James Joyce, Júlio Cortázar, Jorge Luiz Borges e Laurence Sterne. Ao tentar romper uma narrativa considerada linear, eles poderiam estar inaugurando uma forma de pensamento hipertextual na literatura. "É como se estes autores estivessem esperando pelo computador para libertá-los do impresso. E de fato, muitas de suas obras poderiam ser transferidas para o espaço da escrita (hipertextual) e plenamente reconstruídas naquele" (Bolter, 1991, p. 132). Ou seja, essa tradição de uma escrita não linear, alternativa, de subversão da ordem é algo que já existia numa perspectiva canônica tradicional. Existiram autores que se instigaram por essa vontade de romper com os paradigmas do que é literariamente aceito. O hipertexto é, nesse sentido, a modernização de uma perspectiva outrora desejada. Segundo Landow (1992 apud Alexandre Nallim)79 , o hipertexto põe em cheque: seqüências fixadas, começo e fim definidos, uma história de certa magnitude definida e a concepção de unidade e todo, associada a todos esses conceitos. Na narrativa hipertextual, o autor oferece múltiplas possibilidades através das quais os próprios leitores constroem sucessões temporais e escolhem personagens, realizando saltos com base em informações referenciais. E se existem personagens, se existe mesmo uma intenção de que essa sucessão seja subvertida, se existem informações referenciais, existe também poética. A poética esta na forma que esse hipertextual é constituído. Segundo Heim ( 1993 80), o hipertexto é um modo de interagir com textos e não só uma ferramenta como os processadores de textos. Por sua característica, o usuário interliga informações intuitivamente, associativamente. Através de saltos - que marcam o movimento do hipertexto – o leitor assume um papel ativo, sendo ao mesmo tempo co-autor. O hipertexto despe-se de convenções sociais e entende autor e co-autor num mesmo patamar. Para Ted Nelson81, o hipertexto possibilita novas formas de ler e escrever, um estilo não linear e associativo, onde a noção de texto primeiro, segundo, original e referência não existe. Poderíamos adotar com noção de hipertexto assim: o conjunto de informações textuais, podendo estar combinadas com imagens ( animadas ou fixas ) e sons, organizadas de forma a permitir uma leitura ( ou navegação ) não linear, baseada em indexações e 79 Hipertexto & Narrativa, disponível em http://www.brazilcommunity.com/brazilcommunity/colunistaalexandre02.htm acesso em 02 outubro 2010 80 Ibdem Idem. 81 Ibdem Idem. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 558 associações de idéias e conceitos, sob a forma de links. Os links agem como portas virtuais que abrem caminhos para outras informações. No caso do site “A Vida Reinventada” queremos que essas portas se abram para a intervenção de quem desejar se colocar como um individuo, que está na sociedade, e tem muito para falar. O que nos interessa é a voz, o gesto, é isso que queremos levar para o ambiente virtual. O virtual, nesse sentido, é mais um local através da qual todos os que desejarem poderão se enunciar. Para Lévy ( 1993), o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras , páginas, imagens, gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertexto. Os itens de formação não ligados linearmente, como em uma corda como nó, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Para Shneiderman & Kearsley ( 1989 ) 82, o hipertexto pode ser uma rede de nós e ligações entre documentos, onde documento são nós e as ligações são referências cruzadas. As redes podem ter a forma de hiperarquia (As empresas virtuais utilizam uma estrutura organizacional chamada de estrutura em rede. E já que a maioria delas é interligada pela Internet, intranets e extranets, sua estrutura também pode ser chamada de hiperarquia, segundo o modelo de estrutura em hiperlinks da Internet), embora geralmente as associações entre os nós sejam mais complexas. Os nós ligações não se restringem a textos, mas podem ser gráficos, fotos, sons narração ou seqüência (vídeo ). A idéia de hipertexto eletrônico pode ser nova, mas o exercício da hipertextualidade tem sua origem antes mesmo da massificação da Internet. VII. O lugar do periférico no virtual: o exemplo da Restinga Marco Almeida, o Maragato é mais pragmático e também se mostra mais receoso em função de situações de preconceito que ele julga advirem de sua condição financeira e sua raça, visto que é negro. Contudo, é alguém que mesmo exalando este rancor, numa atitude completamente contraditória, sabe se impor. Muitas vezes, ao chegarmos para as reuniões de pesquisa, ele já tinha sua pauta que era sempre de cunho prático, buscando pontuar o que tinha realmente sido realizado e apontando o que ele pensava poder ser melhorado. Maragato 82 Op. cit 19 p. 14. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 559 é versátil, de uma versatilidade que advém de suas circunstancias e faz dele alguém capaz de desempenhar diversos papéis (e ao mesmo tempo) na sociedade. De manhã educador popular, à tarde catador de lixo e/ou vendedor de algodão doce e no tempo que sobra autor de diversos blogs, poesias e pequenas historinhas em quadrinhos. Seu conhecimento de internet é autodidata e seu objetivo é que ela seja uma ferramenta de educação; ele quer mostrar aos jovens da Restinga o outro lado da rede que não somente o das salas de bate-papo e/ou redes de relacionamento. Através de um programa que ele descobriu, Maragato cria histórias em quadrinhos, leva para seus alunos quando desempenha o papel de professor, e os ensina a criarem suas próprias. Para ele, esta é uma forma de incentivar as crianças e adolescentes a adquirirem o habito da leitura. Maragato luta por uma verdadeira inclusão digital, capaz de qualificar as crianças na realização de seus sonhos e que as possibilite um futuro melhor. Sua fala é politica, seus registros audiovisuais mínimos, ele prefere o virtual ao real, mas entende a necessidade do real para a realização de seu engajamento politico. Afinal de contas, os dominantes não podem jamais controlar perfeitamente até onde levarão as reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis. A verdade é que Maragato é um artista que vê na educação de crianças e jovens a aplicação de sua realização poética. Ele faz uso dos suportes digitais que são na forma de se olhar a realidade social, a atual configuração de uma nova poética. A forma do texto poético é própria. Ela já é um desenho, mostra-se em verso, configura um espaço novo no pergaminho, na página ou na tela, tempo e espaço se buscando, se sobrepondo. Os primeiros teóricos perceberam este conflito de formas e códigos. [...] o que a vista abarca de um só lance, ele (o poeta) nos enumera lentamente, pouco a pouco, e muitas vezes sucede que, ao último traço apresentado, já esquecemos o primeiro... Para a vista, as partes contempladas conservam-se constantemente presentes, ela pode percorrê-las quantas vezes lhe aprouver, para o ouvido, porém, as partes ouvidas se perdem, caso não se gravem na memória. (OLIVEIRA apud LESSING, 1999, p.12-14) Isso porque ele é um agente social que realiza uma produção cultural plural que deve ser pensada, se tomarmos como base as ideias de Wilson Azevedo e Philadelpho Meneses, como interpoética. Essa manifestação interpoética é descrita por Wilson Azevedo como algo que está fora dos métodos tradicionais de produção artística, pois se trata de uma linguagem de intervenção e intersecção – de código para código – com uma característica Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 560 mais ativista. Maragato é portador de uma linguagem que quer ser, ao mesmo tempo que uma intervenção no mundo, – na medida em que existem sim intenções sociais e politicas na sua atuação em comunidade, além de um interesse em mostrar que embora não tenha tido oportunidade de frequentar os bancos da universidade tem o que passar para os jovens, de forma a ajudar que eles tenham um futuro mais promissor – e de intersecção visto que lida com vários códigos , seja a linguagem virtual, seja a língua falada , seja ainda a passagem do escrito para o ambiente virtual, para alcançar objetivos que são os de valorização de seu local de enunciação : A Restinga, que não é só um bairro marginal e de marginais e de sua identidade: de catador de lixo, puxador de ferro e também de educador popular que vê na arte a possibilidade de um futuro com perspectivas de crescimento intelectual e dentro do bairro, mostrando que ser alguém a partir da ( e na) Restinga é possível. VIII. Conclusões possíveis: Estas são reflexões que advém de um trabalho em construção, portanto, afirmar taxativamente acerca de uma ou outra perspectiva abordada não é ainda possível. Alguns passos têm sido dados, também por nós, para que a poética digital e a própria poética de tantas vidas reinventadas seja reconhecida dentro da academia. Até aqui, conseguimos, a partir da publicação das poesias de Alex Pacheco e Jandira Brito, também parte desta parceria, e dos vídeos Narradores da Restinga I e Narradores da Restinga II (estando este último em fase de produção) mostrar as pluralidades poéticas que fazem parte da Restinga. Entendo que a performance acabe no momento em que se realiza, mas entendo também que o fato de registrarmos a fala desses narradores em vídeo e suas produções artísticas na internet é uma forma de valorizar suas identidades e possibilitar que eles sejam reconhecidos a partir da arte que produzem. É uma tentativa de registro dos gestos e discursos de cada um deles, que muito tem a falar e ensinar. O meu critério, ao passar tudo para o virtual, é respeitar ao máximo a verdade do meu narrador. Entretanto, entendo que, no momento em que escolhemos, e aqui falo nós porque é uma escolha do grupo, uma foto em detrimento a outra, estamos realizando uma Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 561 intervenção. A perda, talvez, esteja ai, no fato de termos um momento de trabalho na academia o qual não nos permite ter contato diário com nossos narradores. Nosso papel é fazer do site, dos vídeos e de nossa produção provenientes desse projeto, local de valorização dos narradores e de suas histórias, sendo as mais constantes aquelas relacionadas à Restinga por razões que já expusemos ao longo deste texto. O narrador é, portanto, a personagem principal de tudo , o parceiro, o que produzimos, e nós, nada mais é do que uma ponte para que ele possa ter sua identidade valorizada. Entendo que a poética esteja presente, mas o que é esta poética digital? Como reconhecê-la? São as reflexões as quais me tenho feito e que estas considerações feitas até aqui ainda não são suficientes para responder. Bibliografia BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte : Editora da UFMG, 1998. BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: ___ (coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1986. ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas, SP: Papirus, 1998. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo II. Campinas: Papirus,1995. VENTURELLI, Suzete et DOMINGUES, Diana (orgs). Criação de Poéticas Digitais. Caxias do Sul, RS: Educs, 2005. VICH, Victor & ZAVALLA, Virginia. Oralidad y poder. Norma: Buenos Aires, 2004. 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ILUMINURAS, Vol. 1, No 1 (2000) Revista Iluminuras - Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH e ILEA/UFRGS GUILARDUCCI, Claudio. Memória Urbana: um espaço construído e um tempo contado. Disponível em http://www.unirio.br/espacoteatral/iv-seminario-texto-guila.html. Acesso em 28 set 2010 LONGHI, Rachel. Hipertexto e poéticas digitais: uma análise de Patchwork Girl e do Storyspace. Revista Em Questão, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 121-135, jan./jun. 2005. Disponível em http://www6.ufrgs.br/emquestao/pdf_2005_v11_n1/7_hipertexto.pdf . Acesso em 05 outubro 2010. NALLIM, Alexandre. Hipertexto & Narrativa, disponível em http://www.brazilcommunity.com/brazilcommunity/colunistaalexandre02.htm acesso em 02 outubro 2010 PIETROLUONGO, Marcia Attála. Signo, sujeito e tradução. Tradução em Revista 7, 2009, p. 01-08. Disponível em http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/14718/14718.PDF . Acesso em 05 outubro 2010. POLLAK, Michael. 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Contudo, agora em 2010, a Literatura perdeu definitivamente de seus domínios José Saramago. No entanto, essa perda já se mostrara possível anteriormente, pois devido a uma doença respiratória, seu penúltimo livro, A viagem do elefante (2008), quase não foi concluído. Mesmo assim, com um intervalo de meses, Saramago terminou essa história, e nos prestaremos a analisá-la nesse trabalho. Já são marcas da obra de Saramago o humor e a ironia para mostrar a habitual e difícil relação do homem consigo mesmo. Então, acrescente-se a isso a relação do homem com os animais, ou melhor, com um animal, mais especificamente um elefante, de nome Salomão. É este o enredo da trama sobre a viagem do elefante Salomão, que partiu de Portugal no século XVI em direção a Viena, na Áustria, como presente de Dom João III, rei português, e de sua esposa Catarina d’Áustria ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos V. É essa a história em que se basearão as nossas posteriores reflexões. Abordaremos, entre algumas das questões, qual a proximidade dessa narrativa de Saramago com as histórias orais da cultura popular; observaremos como aparece a representação da oralidade numa cultura escrita, quer dizer, a ficcionalização de elementos orais materializados no livro. Como funciona esse procedimento? Aliás, como fica essa passagem da literatura tradicional e oral para a literatura escrita? A transmissão e a tradição sofrem desvios, ou ainda, perdas? São alguns dos nossos questionamentos. Nosso arcabouço teórico contará com as teorias de Walter Benjamin sobre a narrativa. Além disso, utilizaremos 83 max_alehis@hotmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 564 também apontamentos de Mikhail Bakhtin e de outros pesquisadores que podem contribuir para o desenvolvimento de nossas problemáticas. Iniciaremos o nosso trabalho pela teoria benjaminiana sobre a narrativa e a elucidaremos concomitantemente com o texto de Saramago. Há um ensaio de Walter Benjamin intitulado O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de 1936, em que o crítico alemão escreve que a arte de narrar estaria em vias de extinção, pois o narrador já seria algo de outrora naquele momento. Então, Benjamin anuncia Leskov como um dos últimos narradores da atualidade. Contemporâneo de Dostoievski e de Tolstoi, foi a partir de Leskov que Benjamin elaborou suas reflexões, aliás, ele considerou que localizar um narrador à sua época exigia uma distância apropriada e um ângulo favorável de observação. Segundo o crítico alemão, a dificuldade em narrar ocorre porque na atualidade estamos privados de uma faculdade que em outros tempos nos “parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Esse ponto é importante, pois em Experiência e pobreza, um texto anterior ao do ensaio sobre Leskov, Benjamin já expusera que o ato de narrar uma história estaria ligado à função de transmitir uma experiência, e esta, por sua vez, possuiria um significado muito peculiar: [A experiência] sempre fora comunicada aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos (BENJAMIN, 1994, p. 114). No entanto, recorrer à experiência é uma atitude em baixa para Benjamin – “Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando a sua experiência?” (BENJAMIN, 1994, p. 114). Não devemos esquecer que Benjamin escreveu os dois ensaios que citamos após uma das piores experiências da história: a 1ª Guerra Mundial. Esse evento marca uma nova relação das pessoas com a experiência, pois Benjamin percebeu que os combatentes voltavam silenciosos do campo de batalha, ou seja, retornavam mais pobres em experiência comunicável. Conforme o teórico, isso ocorria por conta das experiências que as gerações entre 1914 e 1918 tiveram, uma vez que elas foram radicalmente desmoralizadas: “experiência pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 565 do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (BENJAMIN, 1994, p. 114). Aqui se encontraria o problema nas narrativas contemporâneas: a ausência de experiências transmissíveis, pois, voltando ao texto sobre o narrador, Benjamin comenta que a experiência que “passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, p. 198). Percebe-se assim o enaltecimento das narrativas orais por Benjamin, pois ele as compreende como as melhores formas de transmissão da experiência, ou ainda, da tradição. Podemos adiantar que A viagem do elefante se encaixa nessa consideração de Benjamin, pois esse conto oriundo da narrativa oral, ao ser passado para a escrita, consegue preservar a tarefa atribuída à narrativa, ou seja, a de comunicar uma experiência, por meio de recursos que abordaremos logo mais. Um segundo aspecto da narrativa, na maneira como Benjamin a compreende, é a da narrativa ter “sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária” (Ibid., p. 200). Essa utilidade pode aparecer por diversas formas: num ensinamento moral, numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer modo, o narrador tem por característica fornecer conselhos sábios. Vamos nos deter agora numa dessas formas, o provérbio. O provérbio é uma característica das obras de Saramago, desde Levantado do Chão (1980) ao Ensaio sobre a lucidez (2004) (Cf. DUARTE, 2009). Em Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de etnotexto, Jean-Noël Pelen concebe o provérbio como um gênero da literatura oral, pois ele enuncia e confirma a ordem estabelecida de determinada comunidade, da qual pertence e é o reflexo. Dessa forma, Pelen define o provérbio da seguinte forma: O provérbio é caracterizado pela rapidez de sua expressão e a arte do locutor está em saber empregá-lo com sabedoria e oportunamente. (...) ele está mais frequentemente inserido dentro de uma palavra compartilhada, dentro de uma conversação, que ele vem marcar com sua densidade informativa (PELEN, 2001, p. 54). Se anteriormente vimos que Walter Benjamin considera que as melhores histórias escritas são as que se aproximam das narrativas orais, então, o provérbio, enquanto gênero de literatura oral, ao aparecer ocasionalmente seja na voz do narrador ou na dos personagens da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 566 história, torna o conto de Saramago muito mais próximo da literatura tradicional/oral/popular, o que o aproxima mais da idéia benjaminiana sobre a narrativa. Em um texto muito interessante, Helena Margarida Vaz Duarte observou o jogo intertextual que os romances de José Saramago fazem com os textos da literatura tradicional/oral/popular. A crítica propôs que o provérbio é apropriado e recriado ao adquirir um estatuto literário pelas mãos do literato português. Além disso, o uso intertextual desses textos representa uma tentativa de transgredir as “verdades” da História e da Literatura, isto é, a busca por um passado reconstruído a partir de vozes até então silenciosas ou silenciadas. É a vez das personagens “ex-cêntricas” – as excluídas pela História oficial – com o saber que emana delas, que ganham voz no olhar de Saramago. É essa atitude que permite o cornaca Subhro, de A viagem do elefante, participar ativamente de um episódio envolvendo duas das coroas mais importantes da Europa do século XVI. Assim, os provérbios são utilizados por Saramago na sua forma fixada, porém ele “inova estes enunciados aparentemente cristalizados ao alterá-los, parodiá-los, amplificando-os, cruzando-os com textos eruditos, num processo de constante (re)criação, num processo dinâmico entre tradição e inovação” (DUARTE, 2009, p. 120). Duarte tem por mérito, ainda, o trabalho de ter registrado o número de ocorrências proverbiais nos onze romances de Saramago que analisou, entre eles, Memorial do convento e A jangada de pedra. Todavia, preferimos seguir o outro caminho tomado pela autora: verificar que os ditados populares contribuem para o diálogo intertextual, que eles possuem “uma função de dessacralização de verdades instituídas na caracterização de certas personagens e colaboram na explicação e na condensação das situações narradas, como ‘narrativas mínimas’ que são” (DUARTE, 2009, p. 121). Apontaremos alguns casos de ocorrência proverbial encontrados em A viagem do elefante, isto será importante para elucidar a dimensão utilitária do provérbio nessa narrativa, o qual é definido também por conter juízos de valor ou morais sempre implícitos. O primeiro provérbio que identificamos em A viagem do elefante ocorre quando o secretário Pêro de Alcáçova Carneiro fica na dúvida se elogia ou não o rei por causa da escolha de um estribeiro-mor, que sua alteza havia feito para levar a carta que ofertaria o elefante como presente ao arquiduque da Áustria. Eis que a lembrança do pai surge com um provérbio pertinente à situação: “Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 567 inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa” (SARAMAGO, 2008, p. 16). É interessante notar que esse primeiro provérbio apareça justamente como um conselho, quer dizer, uma opinião que transmite a experiência de um homem mais velho, Antonio Carneiro, pai do secretário, pessoa que exercera o mesmo cargo antes do filho, e que, possivelmente já havia estado na mesma condição. Há ainda um provérbio justificando como são relativos os juízos de valores. Novamente, os personagens do rei e do secretário estão envolvidos. Quando Dom João III vê o elefante, pergunta ao secretário o que ele acha do animal, eis que prontamente este responde: “Bonito ou feio, meu senhor, são meras expressões relativas, para a coruja até os seus corujinhos são bonitos” (Ibid., p 22). Podemos comparar este provérbio que explicita o relativismo que cerca as compreensões da realidade com um provérbio que aparece em A jangada de pedra, registrado por Helena Margarida Vaz Duarte: “cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem” (SARAMAGO apud DUARTE, 2009, p. 128). Utilizando novamente o trabalho de Duarte, prosseguimos com outro provérbio que a autora havia encontrado somente em História do cerco de Lisboa: “no melhor pano pode cair a nódoa”. Em muitos casos como esse, o provérbio é empregado a fim de condensar uma narrativa mínima, que nos romances de Saramago, representa “a estória da história que está a ser contada” (DUARTE, 2009, p. 125). Por exemplo, o uso de “no melhor pano pode cair a nódoa” representa a breve história de Subhro, o cornaca, e Salomão, o elefante, da chegada a Belém até a saída para Valladolid. Quando foram para ali lançados, a curiosidade popular subiu ao rubro e a própria corte chegou a organizar selectas excursões a belém de fidalgos e fidalgas, de damas e cavalheiros para verem o paquiderme, mas em pouco tempo o interesse começou a decair, e o resultado viu-se, as roupas indianas do cornaca transformaram-se em farrapos e os pêlos e as pintas do elefante quase vieram a desaparecer sob a crosta de sujidade acumulada durante dois anos. Não é, porém, a situação de agora (SARAMAGO, 2008, pp. 33-34). Vemos então que o provérbio aqui significa as mudanças pelas quais passaram Subhro e Salomão, os quais, em um primeiro momento, ocuparam um papel importante no imaginário da corte portuguesa, e, depois, foram esquecidos até que novamente recuperassem seu prestígio pela razão de o elefante ter se tornado um presente para o arquiduque Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 568 Maximiliano II. Assim, nas poucas palavras que o provérbio emprega, temos uma pequena história de auge, declínio e ascensão. Como diz o próprio Subhro: “assim é a vida, triunfo e olvido”. Todavia, o provérbio “No melhor pano cai a nódoa” ao significar que mesmo o melhor pode sofrer algo de pior, é evocado novamente pelo narrador quando comenta a atitude do arquiduque Maximiliano II de fechar a caravana com couraceiros – uma força militar – para evitar ataques. É certo que não estamos na calábria ou na sícilia, mas sim nas civilizadas terras da ligúria, às quais se hão-de seguir a lombardia e o veneto, mas, como no melhor pano cai a nódoa, como tantas vezes a sabedoria popular tem avisado, bem faz o arquiduque em manter a sua retaguarda protegida. Resta saber o que lhe virá do alto céu. (SARAMAGO, 2008, p. 179) Mais um provérbio que surge evocando a experiência e saber que este enunciado carrega aparece nas palavras do cura, que o utiliza para responder as gentes que lêem os evangelhos para contestar os ensinamentos do padre: “quem se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos” (SARAMAGO, 2008, p. 80). É interessante destacar nessa passagem que o padre nos dá indícios da relevância da cultura oral para a transmissão de um saber, pois o aldeão, ao tentar contestar o cura pela leitura que realizou do evangelho, é repreendido pelo religioso, recebendo a indicação de que ele deveria prestar mais atenção na missa. Além disso, esse trecho também demonstra um predomínio da voz oficial sobre a voz não-oficial, já que quem lia o evangelho para o aldeão era a filha dele, missão que o padre assume para si como exclusiva. Mas a comunicação da sabedoria popular não possui como único veículo o provérbio. Há outras formas de enunciados, e Saramago também se apossa delas. Uma dessas categorias é a metáfora. Há uma muito bela que extraímos de A viagem do elefante, citada pelo narrador da história, quando a rainha de Portugal, Catarina de Áustria, é questionada pelo narrador se lembrará do elefante Salomão depois de dois ou três anos. O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra. E as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 569 ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre os ombros um cornaca chamado subhro, nome que significa branco (...) (SARAMAGO, 2008, p. 33). Na maioria das vezes, como bem verificou Duarte, as múltiplas ocorrências proverbiais e metafóricas não são enunciadas pelas personagens ditas populares, cabendo este papel ao narrador, “mas também a personagens canonicamente consideradas superiores, sejam aquelas que detêm o poder (...), sejam as personagens históricas D. João V e D. Afonso Henriques, o heterônimo Ricardo Reis e também Deus” (DUARTE, 2009, p.122), No nosso caso, isso também é válido, com o rei D. João III ou o arquiduque Maximiliano II produzindo o enunciado. Dessa forma, a linguagem parêmica atua como um recurso para “humanizar” as personagens canonicamente destacadas e elevar as anônimas, numa tentativa de “dessacralização da verdade que a História, a Literatura e os Evangelhos instituíram” (DUARTE, 2009, p. 122). O caráter utilitário do provérbio, na forma de um conselho ou de uma sugestão, quando tecido na substância viva da existência adquire um nome: sabedoria, de acordo com Benjamin. Então, Saramago, ao mesmo tempo em que salva a narrativa de sua morte, recupera a sabedoria ao colocá-la na voz de personagens de quem não esperaríamos que ela emergisse. Por que insistimos nessa discussão sobre a dimensão utilitária da narrativa por meio de enunciados, tais como o provérbio ou a metáfora? Pois Benjamin compreende que o surgimento do romance no período moderno seria o primeiro sinal da evolução que culminaria na morte da narrativa. E Saramago, apesar de fugir das terminologias, prefere chamar essa história sobre a viagem de Salomão de “conto” e não romance, pela falta de ingredientes que caracterizam um. Ao avaliarmos tudo o que dissemos até aqui sobre a cultura oral/popular/tradicional na narrativa de Saramago, podemos responder pela própria teoria de Benjamin, que prevê o romance como vinculado essencialmente a uma cultura escrita, visto que a sua difusão só foi possível com a invenção da imprensa – da qual o folhetim faz parte. Entretanto, todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – são oriundas da tradição oral, e continuam a alimentar a mesma. Isso estaria relacionado ao fato de que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos ouvintes. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 570 1994, p. 201). Já o romance é diferente das outras formas de prosa que apontamos aqui, pois se origina no indivíduo isolado, que não dá conselhos, mas que também não os recebe. O romance não possui a dimensão utilitária de comunicar sabedoria, pois se mostra totalmente refratário ao conselho e ausente de sabedoria 1. De forma um tanto profética, Benjamin ainda nos deixa pistas para compreender o conto e o narrador de José Saramago. Uma delas diz que a narrativa deve ser concisa para que a memória a retenha, já que o ouvinte tenderá a contá-la e recontá-la um dia se conseguir assimilá-la, quer dizer, o ouvinte pode vir-a-ser um narrador e, mais interessante ainda, ele pode imprimir a sua marca na narrativa, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Além disso, diz Benjamin na seqüência, “os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Ora, e não vemos essa característica em Saramago quando ele escreve antes do início da história como descobriu sobre a viagem do elefante? Ou seja, estamos querendo apontar que, em A viagem do elefante, autor e narrador não estão separados e tudo indica que o próprio Saramago seria o narrador dessa história. Se Gilda Lopes Encarnação não fosse leitora de português na Universidade Salzburgo, se eu não tivesse sido convidado para ir falar aos alunos, se Gilda não me tivesse convidado para jantar no restaurante O Elefante, este livro não existiria. Foi preciso que os ignotos fados se conjugassem na cidade de Mozart para que eu pudesse ter perguntado: ‘Que figuras são aquelas?’As figuras eram umas pequenas esculturas de madeira postas em fila, a primeira das quais, olhando da direita para a esquerda, era a nossa Torre de Belém. Vinham a seguir representações de vários edifícios e monumentos europeus que manifestamente enunciavam um itinerário. Foi me dito que se tratava da viagem de um elefante que, no século XVI, exactamente em 1551, sendo rei D. João III, foi levado de Lisboa a Viena (SARAMAGO, 2008, p. 5). Pelos comentários que o narrador faz em determinados momentos da trama, podemos vê-lo como contemporâneo. Vejamos no seguinte trecho a sua atualidade quando ele 1 Essa proposição segue as idéias de Walter Benjamin no ensaio “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Os argumentos da nossa discussão se restringem ao conto A viagem do elefante. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 571 se presta a fazer comentários sobre as medidas de tempo utilizadas pelos personagens do século XVI: (...) enquanto o cornaca e os que o acompanham, porque não teriam outra maneira de entender-se, irão continuar a falar de distâncias de acordo com os usos e costumes do seu tempo, nós, para que possamos perceber o que ali se vai passando nesta matéria, usaremos as nossas modernas medidas itinerárias, sem ter de recorrer constantemente a fastidiosas tábuas de conversão. No fundo, será, como se num filme, desconhecido naquele século dezasseis, estivéssemos a colar legendas na nossa língua para suprir a ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falada pelos actores (SARAMAGO, 2008, p. 38). Possui ainda A viagem do elefante outro pressuposto da teoria de Benjamin sobre a narrativa e o narrador, qual seja, a de que a história contada pelo narrador deve estar inserida na história natural, quer dizer, uma história que lide com a idéia de nascimento e morte, ou ainda de começo e fim, do homem ou dos eventos históricos. Ora, geralmente as histórias de Saramago estão inseridas dentro da história natural e com A viagem do elefante não é diferente. Por exemplo, há a referência à Inquisição e o medo dela por parte das pessoas, citada tanto pelo narrador como pelas personagens, como podemos ler no seguinte diálogo entre o rei Dom João III e o seu secretário: Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer isso dizer, Vem aí a inquisição, meu senhor, acabaram-se os salvos-condutos de confissão e absolvição, A inquisição manterá a unidade entre os cristãos, esse é o seu objectivo, Santo objectivo, sem dúvida, meu senhor, resta saber por que meios o alcançará, Se o objectivo é santo, santos serão também os meios de que se servir (...) (SARAMAGO, 2008 p. 17). Ainda mais, vemos também alusões aos acontecimentos da Reforma protestante e da posição de simpatia de Maximiliano II pelas novas idéias de Lutero, além de como os eventos religiosos e políticos da história natural se relacionam com a história narrada. Observemos como o padre explica para Subhro o porquê da necessidade do “milagre” de o elefante se ajoelhar em frente da basílica de Santo Antonio: Porque Lutero, apesar de morto, anda a causar grande prejuízo à nossa santa religião, tudo quanto possa ajudar-nos a reduzir os efeitos da predicação protestante será bem-vindo, recorda que ainda só há pouco mais de trinta Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 572 anos foram afixadas as suas nefandas teses às portas da igreja do castelo de wittenberg e o protestantismo vai alastrando como uma inundação por toda a europa, Não sei nada dessas teses, ou lá o que seja, Nem precisas de saber, basta que tenhas fé (...) (SARAMAGO, 2008, pp. 189-190). Além disso, o narrador para Benjamin encarna uma forma épica em que todas as histórias se articulam, uma história na outra, como numa espécie de rede. Esse narrador se assemelha a Scherazade, que imagina uma história dentro da outra nas narrativas de Mil e uma noites. Não seria esse o caso de Subhro ao contar a origem do deus hindu Ganeixa? Ou quando dentro dessa história o personagem articula a cosmogonia na percepção da religião hindu? Devemos fazer um intervalo aqui e mencionar as idéias de Mikhail Bakhtin, um autor que abordou em seus estudos uma obra de discurso oral materializado pela escrita. Os elementos da obra Gargântua e pantagruel, de François Rabelais, são representados pelo que Bakhtin chamou de “vocabulário da praça pública” (BAKHTIN, 1993, p. 125). Esse vocabulário foi pouco compreendido e, por isso, distorcido, pela interpretação de autores que empreendiam uma leitura da obra coerente com as características modernas. No entanto, o cinismo que Rabelais emprega é essencialmente ligado à praça pública da cidade, ao campo da feira, à praça do carnaval do fim da Idade Média e do Renascimento, que eram pontos de convergência de manifestações não-oficiais, lugar em que as vozes marginais circulavam ao lado dos discursos ligados à ordem, porém a última palavra cabia ao povo. E o grotesco é um elemento que compõe o vocabulário da praça pública. Por meio do “baixo” corporal, a zona dos órgãos genitais, o rebaixamento grotesco é aludido. Assim, o excremento e a urina são elementos capitais das imagens do “baixo” material. Nas palavras de Bakhtin: Mas todos os gestos e expressões degradantes dessa natureza são ambivalentes. A sepultura que eles cavam é uma sepultura corporal. E o “baixo” corporal, a zona dos órgãos genitais é o “baixo” que fecunda e dá à luz. Por essa razão, as imagens da urina e dos excrementos conservam uma relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a renovação, o bem estar. Na época de Rabelais, esse aspecto positivo era ainda perfeitamente vivo e sentido da maneira mais clara (BAKHTIN, 1993, p. 128). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 573 Que relação se estabelece com A viagem do elefante a partir disso? Que a obra de Saramago é marcada por uma multiplicidade de vozes e discursos, numa ficcionalização da cultura oral. O rebaixamento grotesco acontece quando o elefante Salomão solta seus excrementos no convés do barco que o levaria a Itália: “(...) na ausência do cornaca, solimão havia decidido que as tábuas do convés eram o melhor que podia haver para que ali mesmo fossem depositadas as suas urgências fisiológicas, e, em conseqüência, patinhava literalmente, num tapete pastoso de excrementos e urina” (SARAMAGO, 2008, p. 169). Observamos que os excrementos marcam uma sensação de bem estar nesse momento da narrativa, mas, sobretudo, de renovação também, pois significa que o elefante na mudança para um novo lugar, longe dos cercados de Belém, não teme nem a renovação de nome – a pedido de Maximiliano II, Salomão passa-se a chamar Solimão – nem de espaço, a travessia de barco que alguns desconfiados pensaram que o elefante seria incapaz de realizar. Ainda mais, essas imagens atuam em conjunto com o riso nesse sistema de concepção do mundo, como um meio de deslegitimar, de forma grosseira e incisiva, a ordem oficial. Gostaríamos de finalizar esse artigo aplicando os argumentos de Henriqueta Maria Gonçalves, expostos no seu texto Encontros e desencontros da literatura tradicional/oral na literatura escrita. Para essa pesquisadora, escritor e mundo estão relacionados, de maneira que, respectivamente, o primeiro não se encontra isolado. Vozes estão a todo o momento pululando na cabeça do escritor, e a sua escrita demonstra essa suposição. Não se pode acreditar ingenuamente que o universo de escrita do literato seja constituído sem a presença dessas vozes. Ao seguir este raciocínio, abrimos portas para compreender que A viagem do elefante é uma re-escrita em que foi acrescentado algo. Não esqueçamos como ocorre a idéia de escrever o conto, comentada acima. Assim, de acordo com Gonçalves, podemos entender que essa obra de José Saramago é um objeto estético “refeito no conflito das vozes interiores oferecido como objeto original, resultante de uma visão particular do mundo e que se configura como autêntico e pessoal, a marcar uma presença, uma sensibilidade individual no seio da Literatura” (GONÇALVES, 2009, p. 155). Portanto, a retomada de um texto proveniente da tradição oral, como é o caso do nosso objeto de estudo, demonstra uma preocupação reprodutora das vozes que o veem indo em direção ao abismo do esquecimento. Por isso, as narrativas de Saramago são preenchidas Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 574 com provérbios, expressões idiomáticas e metáforas, pois é assim que ele expressa essas vozes antigas. Contudo, a atitude de registro e cautela dessas vozes por parte do autor não deve ser confundida como uma mera transcrição, pois Saramago consegue criar um objeto esteticamente original ao ressignificá-las e, assim, expressar uma visão particular de mundo que o seu estatuto de criador requer. Afinal, é por meio de outros textos que o texto da tradição é contestado e redimensionado. Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. O vocabulário da praça pública na obra de Rabelais. In: ______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. 3. Ed, Trad. Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec/Brasília: Editora da UnB, 1993. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad: Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. _______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad: Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DUARTE, Helena Margarida Vaz. Alguns aspectos da literatura tradicional/oral/popular nos romance de José Saramago. In: Narrativas em Metamorfose: abordagens interdisciplinares. BLAYER, Irene Maria F; FAGUNDES, Francisco Cota (orgs.). Cuiabá: Cathedral Publicações, 2009. GONÇALVES, Henriqueta Maria. Encontros e desencontros da literatura tradicional/oral/popular. In: Narrativas em Metamorfose: abordagens interdisciplinares. BLAYER, Irene Maria F; FAGUNDES, Francisco Cota (orgs.). Cuiabá: Cathedral Publicações, 2009. PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. In: Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História (PUCSP), v.22, pp. 49-77, 2001. SARAMAGO, José. A viagem do elefante: conto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 575 EXPERIMENTALISMO E (NÃO) ORALIDADE COMO REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA EM O PARAÍSO É BEM BACANA Moacir Dalla Palma84 (Prof. Dr.-FAFIPAR/FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA) André Sant’Anna é da nova geração de escritores brasileiros, sua primeira obra publicada foi Amor, em 1998. No ano seguinte lançou Sexo, obra que confirmou a busca por uma estética experimentalista, na qual importa muito mais o estereótipo das personagens do que a construção da trama. Nesse sentido, interessa muito mais o vazio existencial de personagens perdidas em mundo de valores degradados do que a ação. As obras de Sant’Anna ganham valor, exatamente por essa busca constante de representar o homem em meio a situações que o conduzem a agir como um autômato. Sendo assim, as personagens de André Sant’Anna são incapazes de se ajustar, ou melhor, de entender o meio social em que estão inseridas. Ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, são conduzidas pela ideologia do senso comum das massas. O que se quer evidenciar é o fato de as personagens não possuírem uma identidade própria, elas são apenas o reflexo (estereótipo?) de uma estrutura social fragmentada. Isso talvez explique a opção de André Sant’Anna pelo experimentalismo na construção de suas narrativas. Tal opção seria uma tentativa de exprimir, por meio da própria estruturação textual, a angústia do homem contemporâneo, perdido em meio às mais variadas possibilidades de identificação. Sobre essa situação, vale destacar o ponto de vista de Ronaldo Lima Lins em Violência e Literatura, quando está discutindo o que ele denomina de “um novo personagem: o homem violento”: É verdade que, considerada como um todo, a literatura faz bem mais do que refletir sobre o problema da consciência ou retratar a tragédia de um homem incapaz de ajustar-se [...]. A representação da realidade [...] implica numa totalidade de percepção à qual não escapa a comunicação em si, na forma como se dá em nossos dias, e a violência do impasse no qual se situa a inteligência em nossa época. É desta maneira que, num romance fragmentado em sua composição formal, como é fragmentado o homem das ruas, seja ele um banqueiro ou um assaltante, existe uma constatação, uma crítica e a possibilidade de uma saída, ainda que, em certos casos, 84 moadpalma@yahoo.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 576 semelhante saída se mostre tão tênue quanto a realidade do trabalho criativo. (LINS, 1990, p. 48). Como se vê, são assim os seres que aparecem nas histórias de André Sant’Anna. Em Sexo, por exemplo, o fato de nomear as personagens com as características que as destacam revela uma preocupação formal de enquadrá-las em determinada categoria social e, além disso, destacar o comportamento autômato desses seres. Para evidenciar tal situação, basta pensar no capítulo em que o narrador descreve as relações sexuais entre “O Jovem Executivo de Gravata Vinho com Listras Diagonais Alaranjadas” e sua “Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol”, e entre “O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos” e sua “Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol”. Note-se, portanto, que nas características (ou nomes) das personagens já se tem uma semelhança que direcionará suas ações. Ambos resolvem ser agressivos na relação sexual com a noiva porque leram o artigo “É dos Fortes que Elas Gostam Mais”, publicado na revista Ele & Ela. Tal artigo dizia “que uma relação sexual poderia ganhar um molho extra quando o homem agia de modo rude, primitivo e másculo, com a parceira sexual.” (SANT’ANNA, 2001, p. 119), e “que boa parte das mulheres gostava de se sentir dominada por um homem viril durante a relação sexual.” (SANT’ANNA, 2001, p. 119). Sendo assim, os dois “jovens executivos” colocam em prática aquilo que leram, sem ao menos refletirem se era aquilo que suas noivas esperavam deles. Essas duas personagens agem de acordo com um padrão ditado pelo meio de comunicação de massa, como se isso fosse a verdade a ser seguida. Elas nem percebem que o artigo da revista se referia a “boa parte das mulheres” e de que suas noivas poderiam não gostar de um homem rude. Nesse sentido, vale destacar como André Sant’Anna constrói o capítulo para destacar o comportamento idêntico dos “jovens executivos” e também de suas noivas. Cada parágrafo descreve uma ação realizada, mas um parágrafo descreve a ação de “O Jovem Executivo de Gravata Vinho com Listras Diagonais Alaranjadas” e o seguinte uma ação idêntica de “O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos”, acontecendo a mesma coisa com as ações realizadas pelas noivas. Tanto a situação é idêntica entre os casais que, ao final do capítulo e da história dessas personagens, as noivas se separam dos respectivos noivos “jovens executivos” e passam a namorar o outro, agora vistos como homens sensíveis e educados. Mas, todos continuam com o mesmo comportamento autômato. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 577 Outro exemplo de narrativa de André Sant’Anna, que segue esta inovação na forma de narrar é o conto “A Lei”, publicado na coletânea Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea. Nesta narrativa curta, a opção é pela primeira pessoa do discurso, o narrador é um policial que resolve relatar as atrocidades cometidas por ele e seus colegas de trabalho. Por isso, percebe-se todo o trabalho de construção da linguagem para revelar a forma de se expressar de um policial de nível intelectual baixo, embora ele demonstre certa consciência a respeito da violência de seus atos e do uso da linguagem. Mesmo assim, o texto se desdobra por meio de um discurso que desvela um padrão de comportamento autômato: Mas a gente, que é, que somos, animal, burros, sente mais tesão, mesmo, é quando a gente pode dar porrada em mulher. Aí é tesão mesmo, mesmo quando a mulher é feia, é mendiga. Porque, nesse caso, tem a buceta também, onde a gente pode enfiar umas coisas, poder enfiar o cano do revólver, pode enfiar garrafa quebrada, pode enfiar faca, enfiar e tirar, enfiar e tirar, enfiar e tirar e ir rasgando tudo e fica saindo sangue e gente, que é a polícia, fica rindo. [...] De vez em quando, até dá pra fazer essas porra com mulher que não é mendiga também. [...] Tem umas putas que são muito gostosas e são sozinhas no mundo, sem ninguém para protegê-las, para denunciar a gente. Aí, a gente, nós, aproveitamos, aproveita. Junta uns cinco, burros, maus, polícia, e é a maior sacanagem. Todo mundo, os cinco, nós, come, comemos, comemos, a puta. Um põe o pau na buceta da puta, o outro no cu, outro na boca (Pra botar o pau na boca, tem que ser no começo da sacanagem, quando a mulher ainda está com medo e a gente pode ameaçá-la – gramática perfeita – porque, no final, a mulher vai estar tão fodida, tão sem nada a perder, que, para ela, aquela piranha, morder o pau da gente não custa nada e nem adianta mais ameaçá-la com mais porrada, mais facada na boceta, mais tortura, mais nada, porque ela, aquela vaca, não vai estar mais sentindo nada, nem dor, nem medo, nem nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada... nada. Aí ela morde mesmo, na maior), o outro no sovaco, outro no nariz. Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher? Eu já, porque eu sou da polícia. (SANT’ANNA, 2006, p. 42-43) Apesar de extensa, a citação serve para ilustrar o modo peculiar de construção da narrativa utilizado por André Sant’Anna, o qual opta pelo experimentalismo na elaboração discursiva, para desvelar seres completamente submetidos a padrões de comportamento estabelecidos pelo meio que os cercam. Além, ainda, de uma opção pela tentativa de estabelecer as marcas da oralidade no texto narrativo. Fato que se percebe na elaboração discursiva da personagem-narrador e, principalmente, quando ele faz menção ao narratário: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 578 “Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher?”. Tal fato deixa evidente a tentativa de fazer parecer que a história está sendo narrada oralmente para um interlocutor. Após essa breve explanação acerca do estilo de André Sant’Anna, necessário se faz iniciar as discussões a que se propõe este trabalho. O objetivo é analisar O Paraíso É Bem Bacana, de 2006, sob a perspectiva de que o autor se utiliza do experimentalismo na elaboração narrativa e da falta de domínio da oralidade da personagem principal para expor a violência na contemporaneidade. A obra narra a história de um menino, Manoel dos Anjos, denominado até pelo narrador de Mané, que se destacava como jogador de futebol na seleção dente-de-leite da cidade de Ubatuba, foi levado para o Santos e depois para o Hertha Berlin na Alemanha, pela qualidade de seu futebol. Contudo, a história é calcada no fato de a personagem não saber aproveitar as oportunidades que a vida lhe ofereceu, pois não tinha a mínima noção do que estava acontecendo em sua volta. Mané é um ser fechado em si mesmo, não tem qualquer possibilidade de se relacionar com o mundo, seus pensamentos estão o tempo todo voltados para a fantasia de realização sexual. Algo que não acontece porque seu medo de se relacionar é muito maior do que o desejo sempre latente, pois seu maior problema é a dificuldade de se expressar. Dificilmente Mané consegue elaborar uma única frase completa e com algum sentido, além de não conseguir compreender aquilo que lhe é falado, seja, inclusive, uma frase simples. Tanto que, em Berlim, Mané recebe do companheiro de equipe, Hassan, um folheto sobre o Islamismo e pede para Uéverson, atacante do time principal do Hertha que chegou na Alemanha junto com Mané, traduzir o que está escrito. O grande problema é que Uéverson, pela dificuldade de traduzir o texto, conta histórias que ouviu sobre o Islã. Mané, então, se deixa levar pela ideia islâmica de que se fosse mártir teria lugar garantido no paraíso, ao lado de setenta e duas esposas virgens. Com isso, acaba explodindo uma bomba de baixo poder de destruição amarrada ao próprio corpo, sofrendo graves lesões que o deixam em estado de coma. Por isso, diversas partes da narrativa são as aventuras sexuais narradas pelo próprio Mané, no que ele pensa ser o paraíso, mas que não passa de puro delírio. Dessa maneira, quanto ao caráter experimental na construção da narrativa, percebe-se de imediato que a narrativa se estrutura de forma diferenciada de qualquer outra até então produzida. Num primeiro momento, poder-se-ia até pensar que o modelo seria extraído da técnica de construção da narrativa cinematográfica. No entanto, logo isso é Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 579 descartado pela presença constante de um narrador, não que o cinema já não tenha se utilizado dessa técnica, mas esse narrador dificilmente poderia ser extraído do cinema pelas escolhas de linguagem que faz para narrar alguns fatos da vida da personagem. Ele faz uso constante de palavrões, principalmente dos termos “filho-da-puta” e “viado”. Além do fato de utilizar o tempo todo a expressão “Mas não” que, ao mesmo tempo, nega e reafirma as afirmações anteriores, criando uma ambiguidade discursiva que pode confundir o leitor. A título de exemplo, veja-se: O joelho do Mané ainda não estava completamente bom. Mas não. O representante do Santos já estava naquela filha-da-puta de cidade, tentando acertar com a puta da mãe do viado filho-da-puta do Mané a ida dele, do viado filho-da-puta do Mané, para a Vila Belmiro. (SANT’ANNA, 2006, p. 96) Mesmo assim, a estrutura da narrativa tem semelhança maior com a estrutura de um documentário, tendo em vista as personagens, que de algum modo tiveram contato com a personagem principal, relatarem, como em um depoimento, fatos acerca de sua vida. No entanto, aqui também há problemas, pois os relatos das personagens são transcritos sem nenhuma escolha de palavras. Isso acontece porque nos depoimentos das personagens é respeitado o modo de se expressar de cada uma delas, dando naturalidade às falas. Tal condição, evidencia a forte presença da oralidade no discurso narrativo. Mas, ao mesmo tempo, expõe uma linguagem carregada de termos obscenos e ofensivos. Fato evitado na estrutura dos documentários. Nota-se, com isso, que a base construtiva do discurso narrativo em O Paraíso É Bem Bacana é a do documentário, todavia há uma inversão de valores quando da elaboração ideológica. Veja-se, por exemplo, a inversão dos valores familiares em um dos depoimentos da mãe de Mané: Não ia ser nada mesmo. Nada. É um bostinha, filho daquele bostão que me comeu e fez ele. Comeu, não. Estrupou. O pai era burro, eu sou burra e ele é burro. Não quero nem saber. Ele também não quer nem saber de mim, nem da irmã. Foi pro estrangeiro, sumiu, não levou nós e agora, burro, foi fazer besteira, se meter na confusão dos outros. Se machucou porque quis. E eu vou beber, eu quero mesmo é beber até morrer, porque eu já bebi tudo e fiquei meio maluca, acabada. [...]. E tomara que a Brigite, a minha filha, vira puta pra ganhar uns dinheiro [...]. Novinha assim, ela pode ganhar uns Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 580 dinheiro [...]. Eu queria ser puta, mas eu sempre fui muito feia mesmo, assim, horrível, sem dente. Só aqueles dois mesmo, bêbado, pra me estrupar e fazer esses filho que não serve pra nada ni mim. Ronaldinho porra nenhuma. O Mané virou só Mané mesmo. (SANT’ANNA, 2006, p. 28) Não obstante, o documentário normalmente se caracteriza por uma história que remonta a grandes personalidades ou situações históricas relevantes. No caso da narrativa de André Sant’Anna, a história é de um menino pobre, negro e jogador de futebol. Ele até poderia ter se transformado em personalidade do esporte, pois o narrador e diversas personagens, as quais dão seus depoimentos, esclarecem que Mané era um excelente jogador de futebol. Contudo, como a própria mãe evidencia no trecho acima, não soube aproveitar a oportunidade por não saber conduzir a própria vida, deixando-se influenciar por uma fantasia criada a partir da má compreensão do que os outros lhe falavam. Esse é outro fator interessante na estruturação da narrativa. Mané passa a acreditar nas histórias contadas por Uéverson sobre o paraíso islâmico, principalmente na parte em que o mártir de uma causa teria setenta e duas virgens como esposas. Por isso, grande parte do romance são as transcrições do delírio de Mané que, depois de explodir uma bomba atada ao próprio corpo, fica gravemente ferido e, em seu delírio, se vê no paraíso, vivenciando os prazeres sexuais que nunca teve coragem de experimentar quando estava saudável. Sendo assim, rompe-se novamente com a estrutura padrão do documentário, tendo em vista ser o próprio Mané quem narra suas aventuras no suposto paraíso, como se o leitor tivesse condições de ler os pensamentos da personagem: É aqui. O Paraíso existe e é aqui. O Paraíso existe e é este. Não é aquele do Deus. O Paraíso é do Ala, que é Deus, mas outro deus. É o Deus que o Hassan me ensinou e por isso eu pôdi vim pra cá quando eu morri. E o certo é esse, é ser sem mulher, sem trepar nelas lá na vida e agora, depois que ser bom e não trepar nas mulher, pode trepar na hora que quiser, com todas as mulher que a gente gosta, até a Pámela, pode fazer tudo que tem nos filme do Jeipom, é por isso que é bom. (SANT’ANNA, 2006, p. 57) Além desses fatores, que caracterizam o experimentalismo de André Sant’Anna na elaboração da narrativa, pode-se destacar, ainda, os diálogos que ocorrem ao longo do romance. Pois, há na narrativa o relato dos acontecimentos no quarto de hospital onde está internado o personagem principal. É a partir desses fatos que o leitor toma conhecimento a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 581 respeito da verdadeira situação do Mané, o qual está totalmente desfigurado pela explosão da bomba, tendo perdido diversos membros do corpo, inclusive os órgãos genitais. Veja-se o que um músico brasileiro, internado no mesmo quarto de hospital por causa de uma overdose de entorpecentes, afirma sobre a situação do Mané: “O cara não tem mais braço, não tem uma das pernas, não tem o couro cabeludo, tem um buraco sangrento no lugar do olho direito, a orelha virou um monte de carne retorcida. Caralho! O cara não tem mais pau, não tem mais saco! Eu vou vomitar.” (SANT’ANNA, 2006, p. 20) Os diálogos acontecem, desta maneira, entre esse músico brasileiro, colocado no mesmo quarto de Mané estrategicamente, a enfermeira, o enfermeiro, e os agentes que investigam os fatos que levaram à explosão da bomba. O objetivo desses diálogos é descobrir a que grupo terrorista pertence a personagem principal, especialmente quando se dá entre os agentes e o músico brasileiro. No entanto, fica evidente na narrativa que o garoto não pertence a qualquer grupo terrorista, explodindo a bomba única e exclusivamente com a intenção de atingir o paraíso descrito por Uéverson. Tanto que detona a bomba em si mesmo no estádio do Hertha Berlin, em dia que praticamente não tem público, não atingindo ninguém além dele próprio. Mesmo assim, os agentes passam a narrativa inteira tentando descobrir quais foram as intenções de Mané e a que grupo ele pertence, não chegando a conclusão alguma. Há também, na narrativa, diálogos entre Uéverson, Mnango – um camaronês companheiro de equipe de Uéverson – e Mechthild – adolescente alemã apaixonada pelo Mané. A maioria dos diálogos entre eles é sobre a situação de saúde de Mané e as consequências do ato que ele praticou. Para finalizar essa primeira parte, resta afirmar que o romance se estrutura por partes independentes, mas todas relacionadas ao personagem principal da narrativa. A construção do texto, portanto, se dá de tal forma que passado, presente e futuro se confundem, como se todos os eventos narrados fossem do presente da personagem, não há uma ordem a ser seguida. Sendo assim, a narrativa se inicia com a entrada do narrador relatando fatos do início da vida escolar de Mané, uma situação que marcará seu destino porque ele foge de uma briga. Na sequência, sem explicação alguma por parte do narrador, tem-se a fala de Mané sobre suas experiências no “paraíso”, que mais tarde o leitor descobrirá ser o delírio da personagem em coma. Desta maneira, depois vem a fala de Uéverson, da enfermeira, novamente o delírio de Mané, do músico brasileiro, volta o narrador, o diálogo entre a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 582 enfermeira e o enfermeiro, o diálogo entre o músico brasileiro e os enfermeiros, num processo interminável de depoimentos das personagens, de diálogos, de delírios de Mané, de entradas do narrador, como se fossem todas elas partes independentes e incoerentes. Nesse sentido, para entender o todo da história é necessário que o leitor atente-se para as mais variadas partes e perceba nelas uma ligação fundamental com a história de vida do garoto de onze anos de Ubatuba. Com quatorze anos idade, o ele é levado para o Santos Futebol Clube, time de futebol de expressão nacional, onde é descoberto por um olheiro internacional que o leva para o Hertha Berlin, em Berlim, na Alemanha, já com mais ou menos dezesseis ou dezessete anos de idade. Em meio a isso, têm-se as mais variadas situações que demonstram que o menino tem sérios problemas psicológicos, pois suas dificuldades de relacionamento com as outras pessoas são evidentes. Ele é um garoto extremamente tímido, medroso e com problemas para se expressar e compreender o que os outros lhe dizem. A partir disso, pode-se, então, iniciar a discussão da segunda parte deste trabalho, a dificuldade de Mané de se comunicar como fonte geradora de violência na narrativa. Essa personagem sofre diversas formas de violência ao longo da narrativa e, ao final, acaba todo desfigurado em uma cama de hospital por causa de uma auto-violência, a qual ele pensa ser a sua redenção. Todas as violências sofridas pelo Mané estão relacionadas com o fato de não conseguir se expressar adequadamente e de não compreender o que lhe é enunciado pelos outros. A primeira cena não está necessariamente vinculada à ideia de que o Mané tem dificuldades de comunicação. Mas, como assinalado antes, é um fato importante para se entender o destino da personagem e suas dificuldades ao longo da história. O narrador relata que na saída da escola “o gordinho filho-da-puta”, incentivado por um grupo de meninos liderados por Levi, tenta bater no Mané. Este, ingenuamente, pensa que alguém do grupo que os cercava iria separar a briga, no entanto os meninos queriam ver um bater no outro. Quando Mané percebe que a briga não será separada e que não tinha motivos para bater no “gordinho”, ele encontra um espaço entre o grupo e foge, “para se tornar um viado filho-daputa” (SANT’ANNA, 2006, p. 8). Com isso, Mané passa a ter uma vida extremamente conturbada, porque se transforma em motivo de chacota e passa a ser perseguido pelo grupo do Levi: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 583 Numa cidade filha-da-puta de pequena como aquela, um moleque bobão como o Mané [...], que arrega numa briga na saída da escola, passa a ter uma vida filha-da-puta. O Mané arregou para o gordinho filho-da-puta e o filho-da-puta do Levi decidiu que o Mané era viado e filho-da-puta. Viado, porque o Mané tinha arregado para o gordinho filho-da-puta. Filho-da-puta, porque a mãe do Mané era largada e bebia pinga. Os outros filhos-da-puta todos acataram a decisão do filho-da-puta do Levi. [...]. Numa cidade pequena filha-da-puta como aquela, todo filho-da-puta precisa ter um filho-da-puta para chamar de viado. (SANT’ANNA, 2006, p. 8-9) Sendo assim, Mané não terá mais sossego e passa a ser perseguido sistematicamente pelo grupo de Levi, mesmo quando se transforma no principal jogador de futebol do time dente-de-leite de Ubatuba. Tal fato era para fazer com que os outros meninos respeitassem Mané. Contudo, acontece justamente o contrário, diversas vezes eles tentam currar o garoto, além de agredi-lo na volta da escola para casa e de criar situações vexatórias que o deixam cada vez mais fechado em si mesmo, pela vergonha e pelo medo que tomam conta de Mané. Veja-se, por exemplo, o que acontece em uma partida na qual o Mané joga bem: O Mané só não entrou com bola e tudo porque teve vergonha. Mas não. O Mané só não entrou com bola e tudo porque ficou com medo de tomar um monte de porrada dos filhos-da-puta do time adversário e até mesmo dos filhos-da-puta do seu próprio time. Quando o Mané fazia um golaço, ninguém corria para abraçá-lo. Quando o Mané fazia um golaço, ele ganhava era uns cascudos na cabeça. [...]. Depois do jogo, o Mané entrou no vestiário segurando bem firme o calção, já preparado para a tentativa de estupro que sempre acontecia quando ele, o Mané, fazia uma grande partida. (SANT’ANNA, 2006, p. 73) Mas, a pior de todas as situações vexatórias, a mais humilhante de todas as humilhações sofridas pelo menino, acontece quando, em sua despedida de Ubatuba, ele resolve convidar a Martinha e seu namorado, Toninho Sujeira, para fazer um lanche no Império – lanchonete na qual o Mané adorava comer o lanche “americano no prato” – porque havia conseguido certa quantia de dinheiro e queria agradar a menina pela qual estava apaixonado. Todavia, ameaçado pelo Levi, aceita pagar o lanche para todos da turma e, como Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 584 sempre faziam, os pretensos amigos comem e bebem além da quantia de dinheiro que o Mané possuía. Carioca, o proprietário da lanchonete, decide que Mané deve ser castigado por não conseguir pagar a conta. Ajudado pelo Levi e por dois policiais militares, obriga o menino a comer pão francês com fezes. Mané até tenta fugir, entretanto os policiais o seguram e o entregam ao Carioca: Tinha um carro de polícia encostado bem na porta do Império e o Mané bem que podia pedir uma ajuda aos dois PMs que ocupavam a viatura, onde estava escrito “Policial Militar: Amigo de Fé, Irmão Camarada”. Mas não. O Mané tentou escapar saindo em disparada. Mas não. O filho-da-puta do amigo de fé, irmão camarada segurou o Mané pelo pulso e entregou ele, o Mané, para o filho-da-puta do Carioca, que logo justificou, muito justo, o que estava para acontecer com o Mané: “Ta tentando fugir sem pagar a conta.” A dupla de PMs, muito justa, achou justo que o Levi saísse do banheiro com uma fatia de pão toda molhada por um líquido marrom esverdeado e a enfiasse na boca do Mané, goela abaixo. [...] Enquanto o filho-da-puta do Carioca segurava o Mané, sob o olhar justo dos dois PMs, o filho-da-puta do Levi enfiou na boca dele, do Mané, a segunda fatia de pão com bosta, mijo, cuspe e tudo quanto é tipo de merda que fica na privada fedorenta de um banheiro imundo de uma lanchonete suja de uma cidade pequena filha-da-puta. (SANT’ANNA, 2006, p. 110-111) Apesar disso, Mané se destaca como jogador de futebol. Tanto que o treinador do time da cidade de Ubatuba resolve convocá-lo para a seleção dente-de-leite que enfrentaria o Santos no aniversário da cidade, mesmo ele não sendo o menino que representava o lema do treinador: “bom de bola, bom na escola”. Desde o princípio da narrativa e neste momento, especificamente, constata-se que a personagem principal, de certa maneira, é privilegiada pela sorte. No início, porque o narrador afirma que Mané esperava que algum garoto, que ia até sua casa jogar futebol de botão no jogo que ganhou no bingo da Igreja, podia defendê-lo dos insultos e agressões que sofria depois de ter fugido da briga com o “gordinho”. Note-se que o jogo de futebol de botão foi ganho em um bingo, o que caracterizaria a sorte do menino. Neste instante da narrativa, novamente isso fica caracterizado, pois os conselheiros decidem convocá-lo para a seleção da cidade mesmo não sendo um bom aluno. Esse fato dará Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 585 condições a Mané de ir treinar em um grande time de futebol, pelo que ele realizará na partida contra o time infantil do Santos. Atente-se para a afirmação do narrador: Bom de bola, qualquer filho-da-puta, por mais filho-da-puta que fosse, sabia que o Mané era. Mas não. O Mané era péssimo na escola. Mas não. Numa reunião entre o Mário Telles [o treinador], o Ciro Pai-de-Todos e os representantes da Associação Comercial de Ubatuba que financiavam a categoria dente-de-leite ficou decidido que, no caso do Mané, seria necessário fazer uma certa vista grossa para o boletim sem assinatura dos pais ou responsável, todo cheio de notas vermelhas. (SANT’ANNA, 2006, p. 8-9) Sendo assim, tudo parece se encaminhar para um destino feliz para a personagem. Tendo em vista essa convocação possibilitar a ida de Mané para o Santos Futebol Clube e, depois, para o Hertha Berlin, na Alemanha. No entanto, como se ressaltou antes, Mané não tem a mínima noção a respeito das coisas que estão à sua volta. Isso se dá porque ele não consegue elaborar racionalmente qualquer pensamento, seja o mais simples possível. Essa dificuldade está visível desde o princípio da narrativa, Mané age instintivamente em todas as situações de sua vida e qualquer coisa que exija dele uma elaboração mental transforma-se em problema insolúvel. Note-se que isso pode ser consequência da desestruturação familiar, já que só tem a mãe, uma alcoólatra inveterada que não se preocupa com o filho, como se vê nos boletins escolares sem assinatura. Aliado a este fato, Mané não sabe quem é o pai e sofre as mais diversas atrocidades por causa disso. Além da desestruturação familiar, outro fator decisivo é a violência sofrida dos colegas de escola e de futebol. Principalmente porque isso acontece no momento de vida em que o garoto está em processo de formação da personalidade. Mané transforma-se, então, em um indivíduo tímido, medroso, que vive no mundo da fantasia e não tem a mínima noção da realidade que o cerca. São os instintos mais básicos que conduzem suas ações, mesmo quando está jogando futebol, pois suas grandes jogadas não são pensadas e elaboradas, é puro impulso. Tanto é assim que, quando já está no Santos, deixa de jogar bem porque o instinto de sobrevivência é mais forte do que aquele que o faz jogar bem. Quando chega em Santos, Mané é escalado no time de reservas e é ameaçado pelo Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 586 zagueiro do time titular, após a primeira partida na qual realiza diversos dribles desconcertantes. Desta forma, passa a não desenvolver as jogadas que fizeram dele uma promessa do futebol por medo de sofrer agressões do zagueiro. Mané só volta a jogar bem depois que é escalado no mesmo time do tal zagueiro, novamente num golpe de sorte, pois é por intermédio de um senhor, o qual acompanhava todos os treinos do time do Santos e percebe que o menino está com medo do zagueiro, que o treinador resolve escalar Mané no time titular. Necessário se faz, destacar a tentativa do clube paulista de ajudar o menino, tendo em vista ele ser encaminhado para a psicóloga do clube, a qual se esforça por desenvolver um diálogo com Mané. No entanto, seus esforços são em vão, porque ele não entende absolutamente nada do que a psicóloga lhe fala e não consegue expressar frases minimamente entendíveis. Note-se, por exemplo, uma das tentativas da psicóloga de conversar com Mané para entender como funciona a mente dele, nessa vez o garoto até desandou a falar, mas nada coerente e, na maioria das vezes, sem entender o que a psicóloga perguntou: “Olha, Mané: o tempo até já acabou, mas a gente podia aproveitar que hoje você está falando mais, pra gente entender o que se passa na sua cabeça.” “...” “Então você brincou com a Martinha. Mas você fez sexo com ela também? Fez... como eu vou dizer?... Você colocou o seu, o seu, você sabe... Você foi até o fim?” “Foi no quarteirão inteiro, dando voltinha. O Levi falou que eu não fiz nada, mas eu fiz, sim, nos peito dela, da Martinha.” “Mas houve penetração?” “...” “Meu Deus. Mané, você sabe o que é sexo?” “...” “Sexo é quando o homem coloca o pênis dele na vagina da mulher.” “...” “Claro que você não sabe o que é pênis, o que é vagina, o que é penetração. Então, vamos lá. Mané, você comeu a Martinha?” “Comeu, eu paguei tudo, paguei lanche, paguei sanduíche e a Martinha falou ai ló viú pra mim e eu dei uma porrada no Toninho Sujeira que queria ficar namorando a Martinha, mas é eu que é namorado da Martinha.” (SANT’ANNA, 2006, p. 230-231) Como se vê, Mané tem uma enorme dificuldade de se expressar, suas elaborações mentais são desconexas e muitas vezes não estão relacionadas com o que lhe foi perguntado. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 587 É a psicóloga que vai resumir, numa conversa com o técnico do time, como funciona a mente do Mané, evidenciando que ele é totalmente impulsivo e age basicamente por instinto: “Do ponto de vista psicológico, o Mané é um amontoado de problemas. Nunca tive um paciente tão primitivo. Bom... aí eu nem sei se o problema é psicológico mesmo, ou se tudo isso é fruto de ignorância, da pobreza, da falta de educação. Eu já vi muitos desses meninos vindos de ambientes miseráveis, meninos que passaram fome na infância até. Mas o Mané, de todos, é o mais atrasado. O mais primitivo mesmo. Ele não consegue elaborar um pensamento que seja.” (SANT’ANNA, 2006, p. 231) Se a situação já era complicada para o Mané no Brasil, imagina-se no que se transforma quando chega na Alemanha. O garoto não sabia se expressar nem na língua materna, em alemão então as coisas ficam ainda mais complexas. Talvez, por isso, Mané se agarre à amizade com Uéverson, atacante profissional que foi transferido do Flamengo para o Hertha Berlin. A amizade se concretiza porque Uéverson trata o menino com certa atenção no voo, pois percebe que ele está desesperado, acalmando-o. Já em Berlim, Uéverson se transforma numa espécie de protetor do Mané, tentando de todas as formas ajudá-lo a se relacionar melhor com as pessoas. Entretanto, isso só serve para incentivar mais ainda as fantasias do menino. Uéverson é a caricatura de diversos jogadores de futebol que vão para a Europa e perdem a cabeça, fazendo festas regadas a bebida e orgia sexual. Nesse sentido, para Uéverson o problema do Mané era falta de sexo e, se ele perdesse o medo de se relacionar sexualmente com alguma mulher, teria todos os seus problemas resolvidos. No primeiro depoimento de Uéverson evidencia-se o que ele pensa a respeito dos problemas do Mané: Tadinho do Mané. Moleque, moleque. Porra, dezessete ano. Ele só precisava comer uma buceta, caralho. A gente levava ele nas parada da night, ele ficava olhando pras gata com aquela cara de mamãe-eu-quero, mas morria de medo. Eu até achei que o Mané era viado, mas não era não. O Mané era é envergonhado. Era só ver uma gostosa que ele já começava a suar, podia estar vinte abaixo de zero que ele ficava todo suado. E as gata dava tudo em cima dele. Aqui não é que nem no Brasil, não. Aqui, preto faz o maior sucesso, caralho [...]. Já comi umas de quinze, dezesseis aninho. Tudo querendo conhecer o tamanho da jeba do negão. Mas o Mané é mané mermo. Em vez de comer as loirinha, foi se meter com aquela galera. Eu avisei pro cara. O pessoal aqui gosta de negão, mas turco não come ninguém. Até come aquelas mocréia deles, mas as gostosinha, as lourinha rastafári... ai, meu Deus, cada bucetinha... Eu não podia imaginar que ele ia Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 588 levar aqueles folhetos tão a sério. O Mané era muito burro, acreditava em tudo o que a gente falava. Pô, será que eu tive culpa? Não... eu só tava sendo psicólogo dele, que o moleque tinha problema psicológico. Eu falei pra ele que eu não acreditava em nada daquelas parada. (SANT’ANNA, 2006, p. 11) Percebe-se aí, a descrição de quais são os verdadeiros problemas do Mané, sua dificuldade de se expressar, aliada à falta de compreensão do que os outros lhe dizem, revelam uma mente sem a mínima estrutura psicológica para conviver em sociedade, pois viver no meio social exige, pelo menos, certa capacidade de se fazer entender e de entender o que os outros enunciam. Além disso, na fala de Uéverson revela-se também o maior drama da vida da personagem principal: o desejo sexual. Já se afirmou aqui que Mané é uma personagem instintiva, impulsiva, incapaz de racionalizar qualquer situação em que está envolvido. Por conseguinte, seria lógica sua fixação pela realização sexual, o instinto mais básico do ser humano. Isso se revela, durante a obra inteira, pelo desejo incontrolável que toma conta do garoto no contato com qualquer mulher minimamente bonita. Mas, esse desejo fica no nível da fantasia, porque o medo e a insegurança são mais fortes do que o desejo. Nesse sentido, Mané, que já não tem condições de verbalizar seus pensamentos para qualquer pessoa, não consegue falar ou se expressar diante de uma mulher que lhe desperta desejo. Sendo assim, diversas são as passagens em que o narrador descreve as fantasias sexuais de Mané ao se masturbar. Tudo começa na infância, com a foto de uma mulher nua em uma revista erótica que ele furtou de uma banca, tal mulher será uma das suas setenta e duas esposas virgens do delírio. Depois, são diversas as mulheres, reais ou fictícias, que serão fonte de inspiração às orgias masturbatórias do garoto. Dentre elas estarão a psicóloga do Santos, a repórter de televisão do programa esportivo, a professora de alemão contratada pelo Hertha Berlin, atrizes das novelas de televisão, animadoras de torcida de outra revista erótica, Martinha, a primeira paixão de Mané, e Mechthild, a adolescente alemã apaixonada pelo Mané. Não é sem razão, portanto, que Mané se deixa levar pelas imagens do paraíso islâmico que cria em sua mente a partir das histórias contadas por Uéverson. Como Mané não tem coragem e suporte psicológico para vivenciar os desejos que o consomem, resolve Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 589 explodir uma bomba no próprio corpo para conquistar o paraíso elaborado em sua mente perturbada: É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, elas têm tanto amor ni mim [...] e elas fica agora pegando no meu pinguelo e fica fazendo carinho assim com as mão e elas são tão limpinhas que é tudo virgens [...], que nem o Uéverson leu e agora eu nem preciso falar nada, nem preciso do Uéverson falando, porque elas me ama e sabe tudo que eu preciso pra ficar bom, pra ficar contente e até feliz, porque aqui não tem vergonha e eu não tenho vergonha [...]. Setenta e duas e o meu pinguelo, que não para de ficar duro, durinho, até depois que eu acabo e eu fico continuando, botando o pinguelo nas bucetinha, tudo nas minha setenta e duas esposa que são tudo minha. Três que fica é com a cara assim, esfregando a cara no meu pinguelo, e mais duas que eu fico só enfiando os dedo nas bucetinha, nos cuzinho, que são tão gostoso que têm até perfume, que é perfume bom [...]. (SANT’ANNA, 2006, p. 9-10) Tem que escolher e eu escolhi certo, escolhi o que que é melhor que é esperar pra na hora de trepara nas mulher não ter vergonha e ficar todo assim calmo, mandando elas beijar o pinguelo, passando maionese nos cuzinho pra mim poder lamber e mesmo assim sem ficar com vergonha. Agora não precisa mais ver os filme do Jeipom que eu faço eu mesmo que nem nos filme, eu mesmo, aqui nesse Paraíso, aqui com as minha esposa. (SANT’ANNA, 2006, p. 58) Tal paraíso, no entanto, não passa de fruto da própria mente de Mané, em delírio numa cama de hospital. São longas e constantes as delícias relatadas por ele ao longo da obra, parece até que, pelo menos em fantasia, a personagem principal vivenciava os prazeres que tanto desejou e de que assim continuaria. Contudo, como tudo na vida de Mané, o sonho bom se transforma em pesadelo. No final da narrativa o que se tem é o paraíso fantasiado por Mané transformado em Inferno. Todos os traumas, medos, dores, angústias e sofrimentos lhes são apresentados de uma só vez no final do delírio, quando as mulheres maravilhosas sonhadas por ele, transformam-se completamente e começam a rir e debochar de Mané, enfiando objetos em seu ânus: No cuzinho, não, não pode, não, não, não, não, vamo fazer cabaninha, aí vocês tudo pode ficar brincando com esse meu pinguelão que vocês ama. Vocês ama eu, né? Não ama? Ama? [...] Então não faz isso, não, ai, ai, ai, no cuzinho, não, tira isso daí, não ri, não, por que que vocês ta rindo? Tá doendo, tá tudo doendo, tá tudo pegando fogo, tá pegando fogo no cuzinho, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 590 essa risada não é amor [...]. E elas fica tudo rindo deu, a lá, não pode, não. Elas tá rindo, mas é risada feia, é risada de tirar sarro [...]. Cadê o pinguelo? Não tem mais pinguelo. Por quê? Por quê, hein? Cadê o meu pinguelo? [...] Não! A lá os cara, cheio de cara, a lá eles, olha! Olha eles trepando nas minha esposa virgens. Não! Não pode, não. (SANT’ANNA, 2006, p. 441) É setenta e duas. E elas vem vindo, tudo perebenta, muito horríveis, e elas não me ama, dá pra ver nos olho delas que elas não me ama. Elas não ama o marte. Eu não sou marte. Eu não fiquei marte. Agora eu tô vendo. (SANT’ANNA, 2006, p. 443) Conclui-se, portanto, que mesmo moribundo em uma cama de hospital, Mané não se livra das dificuldades que tem de verbalizar seus sentimentos e pensamentos. Tendo em vista seu sonho de paraíso se transformar naquilo que ele mais temia: ser humilhado pelas outras pessoas. Bibliografia BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LINS, Ronaldo Lima. Violência e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. SANT’ANNA, André. A Lei. In: FERNANDES, Rinaldo de. [Org.]. Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Geração Editorial, 2006. p. 39-47. ______. O Paraíso É Bem Bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ______. Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. ______. Sexo e Amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 591 REPRESENTAÇÕES DE LUTA: A RETRATAÇÃO DO HOMEM SERTANEJO E DE SUA VIDA NA LITERATURA DE CORDEL E NO FILME VIDAS SECAS Paulo Estevão Mortati Fuzinelli85 (G-UEL) Introdução A Literatura de Cordel é o resultado do reflexo cultural em que esses poetas estão inseridos. Desta forma, pode-se constatar a peculiaridade identitária que esse tipo de narrativa oral possui. Essa característica própria é um meio para que se entenda a temática abordada nos livretos, bem como o entendimento de sua articulação enquanto gênero literário. Já o cinema, também se constitui enquanto linguagem artística diferenciada da literatura e tem como objetivo a representação de uma sociedade, um tempo, um povo através da produção de imagens brutas ou através do poético. Portanto, neste trabalho se notou a possibilidade de comparação ou constatação das semelhanças entre as imagens do filme Vidas Secas de Nélson Pereira dos Santos em que está retratada a vida de uma família retirante, demonstrando assim como se dá sua existência no sertão nordestino, a busca de melhorias vitais e a retratação desse mesmo homem, povo, através dos olhos dos cordelistas. Estes folhetos estão presentes no acervo de Literatura de Cordel da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina. A Literatura de Cordel A Literatura de Cordel, como manifestação cultural assume ares nordestinos desde que desembarcou em Salvador por volta dos séculos XVI e XVII, mas foi no século XX que essa prática literária já estava fortemente fixada no Brasil. Essa literatura, quando surge de forma a retratar a vida do sertanejo, explicita as crendices, a realidade, e a cultura desse homem através de uma linguagem de caráter único. Essas narrativas são feitas na forma de verso (variando entre sextilhas, septilhas ou décimas) e são impressas em papel jornal. A quantidade de páginas tem variação e são 85 paulofuzinelli@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 592 sempre em números pares. A capa é feita através de fotografias, desenhos, off-sets, ou então em sua forma mais popular, através de uma xilogravura, que é um desenho gravado em uma madeira, estampado a tinta no papel. Esse tipo de literatura é exposto e vendido em feiras, onde muitas vezes, também são cantados. Apesar de o cordel não possuir origem nordestina, sofreu uma grande adaptação e atualmente é tido como tal. Essa literatura deve ser em grande parte, relacionada ao meio em que é construída e também por quem é produzida. Seus principais representantes são os poetas populares (em grande parte analfabetos ou semi-alfabetizados e também com visões bastante conservadores). Devido à temática da Literatura de Cordel ser imensa, a maioria, senão tudo, serve para se constituir um folheto, desde personagens e romances extremamente tradicionais, até desastres, ideologias e religiosidade do mundo atual, e muito desses temas fazem parte da vida e do cotidiano do poeta popular. Segundo Manuel Diégues Junior: Tem-se atribuído às "folhas volantes" lusitanas a origem de nossa literatura de cordel. Diga-se de passagem, e antes de mais nada, que o próprio nome que consagrou entre nós também é usual em Portugal (...) Estas "folhas volantes" ou "folhas soltas", decerto em impressão muito rudimentar ou precária, eram vendidas nas feiras, nas romarias, nas praças ou nas ruas; nelas registravam-se fatos históricos ou transcrevia-se igualmente poesia erudita. Gil Vicente, por exemplo, nela aparece. Divulgaram-se, por intermédia das folhas volantes, narrativas tradicionais, como a Imperatriz Porcina, Princesa Magalona, Carlos Magno. Tudo isso, evidentemente, e como seria natural, se transladou com o colono português, para o Brasil; nas naus colonizadoras, com os lavradores, os artífices, a gente do povo, veio naturalmente esta tradição de romanceiro, que se fixaria no Nordeste como literatura de cordel. (apud ABREU, 1999, p. 16). Pode-se obter uma comparação verossímil sobre a representação desse homem sertanejo, com os poetas que produzem, a literatura no qual o mesmo se encontra retratado. Existem poetas que saem de suas cidades e migram para os grandes centros, como São Paulo. Eles costumam ainda produzir temas que remontam o passado, mas mesmo assim, recriam histórias para se adaptarem as condições de vidas em que se inserem, aparentemente, como uma estratégia para sobreviver. Os poetas acabam por ser aculturar, já que se trabalhassem problemas que não são condizentes a forma de pensar dos que lá estão. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 593 No Nordeste, além do cordel em sua forma escrita é comum encontrar as cantorias, essas cantorias são feitas através da apresentação de poemas ou então de desafios. Os desafios são conhecidos também como pelejas, ou seja, dois poetas disputam e ambos devem prosseguir com o verso criado pelo oponente. Essa disputa pára, apenas quando um dos poetas diz que não é capaz de dar continuidade a cantoria devido ao fato de não possuir uma resposta adequada. Segundo Márcia Abreu (1999, p.64) a Literatura de Cordel iniciou seu processo de definição dentro desse espaço oral, antes de surgir o folheto impresso. E ainda afirma: Não restaram registros dessa prática nos primeiros séculos da história do Brasil, mas alguma notícia sobre cantorias oitocentistas foram conservadas. São informações e trechos de poemas guardados na memória de antigos poetas entrevistados por folcloristas ou reconstituições feitas em folhetos recordando velhas pelejas. Se não são registros inteiramente confiáveis, sujeitos aos deslizes da memória, carregam consigo uma marca fundamental: o caráter fortemente oral dessa produção, tanto o que tange à composição quanto à transmissão. (ABREU, 1999. p. 74) O homem do sertão, Vidas Secas e o cinema novo O cinema e a literatura são suportes diferentes, porém, ambos têm o seu papel de promover o conhecimento e retratar a sociedade. O filme Vidas Secas, surgiu no cinema juntamente ao filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, e desde o começo, trouxe a mensagem para o público de que aquilo era realidade bruta, representando o que era vivido desde sempre, por muita gente, filmes carregados com grandes críticas sociais. Vidas Secas, junto ao filme de Glauber Rocha, foi um dos filmes que conquistou seu espaço perante a crítica, dentro do contexto do Cinema Novo. Com a motivação surgida a partir da cultura nacional e ao final das companhias cinematográficas paulistas e também, a necessidade de atribuir voz à população, a fim de abater todo o tipo de alienação que estava presente nos meio de comunicação da época, cineastas uniram-se para colocar em seus filmes, imagens mais realistas e de custo inferior. Sendo assim, se basearam na Nouvelle Vague francesa e também no realismo presente na Itália. A partir daí, surge o Cinema Novo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 594 Durante a década de 50, surgiu uma disparidade entre a parte estética e a ideológica. Dessa forma, surge também uma maior necessidade de reflexão sobre a condição humana. Em Rio, 40 graus do ano de 1955, Nélson Pereira dos Santos foi indicado como empreendedor do movimento do Cinema Novo, que foi caracterizado pela exploração, interpretação e recriação da realidade social brasileira. O cinema era a maior forma de conhecimento humano em seus aspectos puramente lógicos, demonstrando esse homem em suas características plenas. Os cineastas do Cinema Novo procuravam resgatar as idéias modernistas. Glauber Rocha considerava imprescindível, leituras e literaturas que retratassem a realidade social. Com isso, a literatura que se encaixa no Modernismo Brasileiro, principalmente as das décadas de 30 e 40, foram em grande parte, inspiração para muitos dos filmes do movimento. Walnice Galvão (apud TOLENTINO, 2001, p.66) em relação ao seu estudo sobre o livro de Guimarães Rosa ressalta que o "homem do sertão sempre impôs dificuldade à consciência urbana e civilizada que sobre se debruça, a fim de estudá-lo". Ela diz ainda, que o sertanejo é dividido em duas classes: "como tipo humano" e o sertanejo bruto, real. E outro fator notável é que: O rural pode ser a nossa mais profunda brasilidade, ou nosso atraso, ou nossa reserva de purismo, mas será sempre uma espécie de outro, distante daquele que fala, mesmo quando no discurso à primeira vista venha considerado como tal "país real". (TOLENTINO, 2001, p.11) A primeira visão é como se o mesmo fosse algo representativamente nacional, sendo uma espécie de referência a um marco nacional. Já o sertanejo em sua representação real, aparece junto a repulsa. Segundo Bernadet Vidas Secas tem uma expressão discreta que situa o personagem central, Fabiano, e sua família, em relação ao trabalho, à propriedade da terra, às instituições, à cultura popular e erudita, à repressão policial, à submissão e a violência, etc. (2001, p. 102). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 595 Análise do filme Vidas Secas Vidas Secas é um filme do ano de 1963, baseado no livro de mesmo nome do autor brasileiro Graciliano Ramos. Premiado no Festival de Cannes em 1965, na França, o filme do diretor brasileiro Nélson Pereira dos Santos tem a pretensão de expor as vivências de uma família, que em função da seca, resolve abandonar o Nordeste do país, ou seja, demonstrar a vida dos retirantes Fabiano, Sinhá Vitória, dos meninos mais velho e mais novo e também a cachorra Baleia, que possui uma espécie de solidariedade sem interesse, essa solidariedade não pode ser notada na representação dos homens. Nélson Pereira dos Santos foi um dos precursores do Cinema Novo, movimento cinematográfico que teve como objetivo explorar a cultura e o folclore brasileiro. Com seus 103 minutos de dramaticidade foi o único filme nacional indicado a participar do Britsh Film Institute como umas da obras fundamentais para se possuir em uma cinemateca. O filme trabalha suas imagens em preto e branco e com um contraste muito forte, em uma explosão da cor branca, faz que a região nordestina seja demonstrada de uma forma mais árdua, causando a percepção de calor no expectador. Pode-se comparar a falta de água à falta de vida, de esperança, de possibilidades que não alcança esse homem nordestino. O filme não se baseia em uma ficção, mas sim em uma realidade que afrontava a maioria dos nordestinos, que viam fora de suas terras de origem a oportunidade de uma vida mais digna. Essa busca pela vida digna é uma criação do imaginário popular onde o distanciamento da dura vida do campo e o objetivo de alcançá-la. Mas essa realidade que tanto o autor Graciliano Ramos, como o diretor Nélson Pereira demonstraram, é perfeitamente aplicável nos dias de hoje, quando as pessoas saem do Nordeste (nem sempre em condições como as do filme) para buscarem nas metrópoles, empregos e moradias dignas. Alguns não conseguem tais conquistas e acabam sendo marginalizados por não terem condições e nem dinheiro para voltarem para suas terras. Tais fatos constituem um tipo da cultura desse povo brasileiro, menos favorecido. O filme começa com um estranho som, o som de um carro de boi que pode nos remeter ao trabalho e com o início de uma longa jornada, que logo é caracterizada pela Sinhá Vitória como algo difícil de acontecer positivamente, ela demonstra sua descrença com aquilo Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 596 que está a praticar (a fuga de suas terras), isso é explicitado no filme através de alguns breves comentários a respeito da incessante viagem rumo ao desconhecido. Isso demonstra que o retirante tem uma visão negativa, nesse momento, do futuro e do rumo que sua vida está seguindo, e tal falta de entusiasmo com o futuro gera um fatalismo de maior escala em sua vida. Sinhá ainda se permitia sonhar, acreditava que um dia ainda dormiria em uma cama de couro, ela tinha a vontade de “ser gente”; aqui, evidencia-se que ela não se considerava humana, gente, por não ter as condições de vida necessárias. Posteriormente, Sinhá diz que com o salário, faria a cama de couro para que pudesse ostentar uma vida digna. Nessa mesma cena a cachorra Baleia boceja. Sinhá que não é Sinhá, mas sonha com o que as Sinhás possuem. Ainda no começo do filme, o menino mais velho demonstra seu cansaço, sentado no chão e durante esta cena nota-se que essa canseira é muito mais do que física, é uma canseira vital, caracterizada pelo choro e pela inércia ao apanhar do pai com a espingarda. Fabiano faz apelo por um emprego, para poder cuidar do gado, que é o puro reflexo do ambiente em que vive, um lugar pobre, onde os urubus apenas esperam o momento de atacar, a comida para eles é certa. Fabiano é caracterizado como um homem analfabeto e ignorante. Quando conseguiu seu emprego, na fazenda, durante o pagamento, o fazendeiro diminui o seu salário e Fabiano insiste que era mais dinheiro que deveria receber pelo fato de sua mulher saber contar, mas mesmo assim, aceita o que lhe foi pago, ou seja, um valor menor. Aqui se explicita uma figura presente na cultura nacional, o coronel, que tem amplo poder sobre pessoas e coisas, e define o que deve ser feito ou não. Muitas vezes esse coronelismo é caracterizado por uma submissão a esse chefe militar que lhe é capaz de proteger e manter vivo. Nesta cena fica visível a passividade de Fabiano Mais adiante sofre humilhações dos guardas do vilarejo em que está instalado, apanha e é preso, o fazendeiro o resgata, logo após, aparece a figura da benzedeira, característica cultural brasileira marcante, orando e invocando em cima de seus ferimentos. Durante esta cena fica evidente que o homem sertanejo possui uma crença no poder divino, acreditando assim, que a melhoria de seu ferimento ou que seja, de sua vida, pode acontecer através de um poder extraterreno. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 597 Após algum tempo de sua injusta prisão, Fabiano se encontra novamente com o guarda que o prendeu e tem em suas mãos a oportunidade de vingança, apenas uma facada e tudo estaria resolvido. Mas ele desiste, demonstra seu respeito perante as leis e a sua honestidade. Adiante, o menino faz um questionamento aos pais sobre o que é o inferno, após ver a benzedeira orar em cima de seu pai e o mesmo dizendo: “sai pro inferno”. A partir das respostas obtidas (espeto quente, calor, coisa ruim) ele cria uma associação, de que o inferno, é aquilo que está vivendo e também o espaço onde vive. Sendo assim, cria-se um paralelismo do imaginário infantil do garoto com a dura realidade em que sua família vive, deixando explícita a insatisfação com o real. Não era apenas Sinhá Vitória que se permitia sonhar, a cachorra Baleia também possuía os seus sonhos, pensava que gostaria de viver em um mundo cheio de preás, mundo este, que ela foi tristemente viver, após sua seca morte. Ela, já doente, foi motivo de alguns tiros disparados por Fabiano, a solidária cachorra, que até comida já havia caçado e proporcionado à família estava morta, morta também, ficou a alegria dos meninos, que tinham em Baleia, motivos de sua felicidade. Por fim, Fabiano acaba desempregado, junta novamente sua família e pretende partir, à noite, para evitar confrontos com seu ex-patrão, o fazendeiro. Seguiram sem rumo, sem saber onde parar, só sabiam que tinham de seguir. O filme como um todo, demonstra claramente aspectos culturais do nordeste do país, como a figura marcante do sertanejo para a cultura brasileira, o modo como eles se vestem, as casas, a forma rústica de cozinhar (a partir da lenha) e também a forma como se comunicam, apesar de durante todo o filme, o silêncio ser um fato constante. O silêncio é uma característica do sertanejo nordestino, homens de pouca fala e muito siso. O silêncio demonstra a solidão deles e também conduz à falta de tudo, inclusive da palavra. Outra imagem que caracteriza esse sertanejo nordestino é a da cena em close no rosto de Sinhá Vitória e de Fabiano revelando, naquele momento, a singularidade que o sofrimento lhes causava. Sofrimento representado por uma intensa apatia, como se estivessem isentos de sentir e buscar melhorias e ao mesmo tempo não agüentassem mais sofrer. A fim de evidenciar aspectos relacionados à existência do homem nordestino, de forma clara durante todo o filme, o Nordeste brasileiro com seus aspectos em sí, diz muito Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 598 sobre a cultura desse povo, além de demonstrar esse específico modo de vida recorrente no país. Seus personagens são transformados pelo espaço em que existem, ou seja, ocorre uma interação entre ambos. Segundo Platão e Fiorin (apud SIRINO, 2007, p. 6): Espaço onde se movem as personagens é, muitas vezes, fundamental para o entendimento [...] o que o narrador procura construir, em geral, é uma correlação entre espaço e comportamento das personagens, entre figurativização do espaço com certos temas. Eles não têm o que dizer, eles são força. O sofrimento e a vida deixaram de existir. Suas buscas são apenas pelo ato de sobrevivência. A cachorra baleia acaba por demonstrar mais emoção do que eles. Transmutação do homem, homem se transformando em animal e o animal se transformando em homem. Essa comparação entre homem e animal pode ser melhor visualizada no livro, quando Fabiano pensa em todas as dificuldades pela qual estão passando e passaram e diz: “você é um homem” (RAMOS, 1998, p.53). Mas depois de um tempo ele lembra que não possuía nada, que era submetido a seu chefe e diz: “você é um bicho, Fabiano” (RAMOS, 1998, p.53). Como representado no livro, essas reflexões de Fabiano são entrecortadas pela chegada de Baleia, para receber carinho e aí, coloca a cachorra Baleia na mesma situação que a dele quando diz a ela: “você é um bicho Baleia” (RAMOS, 1998, p.53). Por fim, compreende-se que o fator homem/tempo/espaço é uma realidade extremamente variável. A história de Vidas Secas se passa em 1941 sendo plausível sua execução nos dias de hoje, já que o homem continua muitas vezes esquecido em sua realidade longe de qualquer benefício existente. Compreende-se também ao longo do filme, que o nordestino é forte por agüentar o que a vida lhe impõe, às vezes de forma passiva, às vezes lutando por melhorias, é um povo cheio de honra e que apesar de tudo, ainda é capaz de sonhar. O sertanejo, em Vidas Secas é a representação física e bruta da pobreza da terra, uma vez que o homem não suporta a força da natureza. Eles vivem em condições de miséria e acabam sendo explorados por uma classe superior a deles, com maior prestígio. São "acomodados" a uma situação nada humana, beirando ao animalesco. As imagens nos demonstram a subnutrição desse povo. Todas essas Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 599 características são realçadas pela valorização estética que é dada ao ambiente, através do filme. Análise dos folhetos Abaixo, algumas análises de folhetos que estão presentes no acervo de Literatura de Cordel da biblioteca central da Universidade Estadual de Londrina. Foi preservada, nos exemplos, a grafia que os cordelistas utilizaram para construir o folheto. No folheto O sertão e o Sertanejo de José Severino Cristóvão estão registrados diversos aspectos da cultura sertaneja bem como sua tradição reinante. O autor inicia o folheto dizendo que o sertão era um ambiente bastante sofrido por não haver transporte e atualmente esse sofrimento se dá pelo desmatamento que destruiu as belezas da região. O primeiro indício que surge no folheto em relação ao homem sertanejo é o de que é um ser respeitoso e honesto, onde não se vê nenhum tipo de marginalidade. O homem é honrado pela justiça que prega e tem espaço para todos os tipos sociais, do mais alto até o considerado mais baixo. Essa mesma terra que orgulha o poeta é o que atribui valor ao homem. Do Sertanejo e do Sertão A saudade é demais Lá na terra de vovô Da Infância de meus pais Terra de homem honesto Que não se ver marginais É a terra dos meus pais E de homem justiceiro E a terra do pequeno E do grande fazendeiro E terra que da valor Ao poeta violeiro. (CRISTÓVÃO, 1982, p. 2). Outro retrato que surge, é em relação à valentia desse homem. A partir da estrofe abaixo, nota-se que o sertanejo é um homem de fibra, onde o fracasso não faz parte de seu cotidiano, resiste ao que a terra lhe impõe. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 600 O homem lá no sertão Ele não mostra fracaço O brejo é na foice O sertanejo é no balaço Que o brejo ficou prá cana E o sertão prá cangaço (CRISTÓVÃO, 1982, p. 4). O folheto é divido em tópicos, e os assuntos são relacionados às características do sertão, como a vegetação, o clima e características sociais dessa região. Há um tópico em que o poeta narra suas aventuras de infância deixando claro como era a vida desse homem. O autor inicia o tópico dizendo que viveu em uma era de seca e de tristeza, e que a solidão era inerente a sua existência. Ele considera também que sua infância foi perdida. Ele prova a valentia do povo do sertão dizendo que seu pai “perdia a vida” enfrentando batalhas com o Lampião e os cangaceiros dentro das matas. De um modo geral, o folheto relaciona a existência do sertanejo em seu ambiente original como algo difícil e de extrema força, já que esse mesmo ambiente é carregado de coisas negativas. Dessa forma, o sertanejo retratado no folheto se difere do retratado em vidas secas, já que o mesmo permanece na terra que não lhe proporciona condições boas. Já no folheto Artimanhas de Zé Catureba, O aprendiz de Malazartes de Franklin Maxado é apresentada a visão de um nordestino que usa de artimanhas, consideradas pelo autor como "safadeza" para sobreviver. É a apresentação de um nordestino esperto, que se utiliza sua malandragem para conseguir o que precisa. Fica evidente também, que esse essas necessidades são alcançadas através da inteligência, de sua capacidade intelectual, fazendo com que ele não perca o tino. Tais fatos podem ser percebidos na estrofe abaixo: Foi uma lição do Pedro: - A gente tem de ser ladino Para tirar dos que têm Sem cometer desatino Usando só a cabeça E jogando com o destino. (MAXADO, 1979, p. 3). Nota-se também, que esse homem nordestino representado no folheto é um homem que se demonstra justo, pois ele acredita que os que possuem mais que o necessário, roubaram, e por isso merecem perder um pouco do que possuem. Ele considera que essa atitude não é crime, pois ele tira sem violência. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 601 Pois estes que têm muito, Muito mais do precisado, Na certa, também golpearam Usando o necessitado. (...) Por isso não é bem crime Tirar deles umas partes. (MAXADO, 1979, p. 3). E ainda é apresentada características físicas desse homem e como ele se diverte, além do mesmo, ser considerado um herói: Catureba ficou moço Sambudo, empapuçado. Cabeça chata sem barba. Cabelo ralo, arrupiado, Zarolho, zambeta, pé chato Um mestiço amarelado. (MAXADO, 1979, p. 4). Aparece também, no folheto, uma referência a religiosidade, mas uma religiosidade satirizada, onde um homem abusa dessa devoção de outro homem para se dar bem, retirando-lhe o dinheiro com a premissa de dízimo. Já no folheto Da roça para o viaduto: basta a seca e um matuto, ou, o calvário do caboclo de Carlos Gildemar Pontes, se vê na primeira estrofe, que o narrador-personagem já se coloca como alguém que passa por necessidades, dessa maneira já percebemos que sua ida para a capital tem a ver com a necessidade de mudança de vida em busca de melhorias. Na segunda estrofe o narrador tem a visão de que as pessoas são pobres, mas tem de onde tirar o sustento, como ele que tem roça para plantar, não precisa de ambição maior, característica adotada como meio de se acostumar com a sua situação, tal fato é muito comum na resignação religiosa. O narrador só troca a resignação pela necessidade de se alimentar, sua terra está seca, mas o fator que proporcionou à família a situação de retirante foi a desapropriação que seu sítio sofreu, e com a venda a um valor baixo, sua família se vê obrigada a partir. A partida para a cidade grande se dá no desespero de encontrar algum lugar, com oportunidades e que tenha espaço para esse homem que precisa trabalhar. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 602 Nota-se que o sertanejo ao chegar na "cidade grande" tem vergonha de si mesmo e de suas origens e a situação que encontra não é a que esperava e sonhava quando saiu do sertão. Nota-se essas características nos versos abaixo: Pra completar a minha sina fui tentar ser empregado com vergonha e ansioso passei um tempão sentado quando me mandaram entrar lá fui eu, o abestado. (PONTES, [19-?], p. 5). Ele e sua família se encontram degradados vivendo de uma forma péssima e sem condições físicas regulares: Sendo grande a caminhada do sertão para cidade os meninos amarelo merecendo caridade os ossos furando a pele veja que barbaridade. (PONTES, [19-?], p. 5). Ele acaba por assinar, "o livro dos bestas" que é o livro de espera, a assinatura acontece de forma enganosa, já que ele acredita que está assinando o livro dos empregados, e afirma que é uma pessoa forte, que não teme a nada, "pois sou sertanejo forte / não temo nada enfrentar". Compreende-se ainda que esse sertanejo, retirante, ainda sofre inúmeros preconceitos, o que dificulta ainda mais a conquista de um emprego. Por onde quer que eu andasse todos fechavam a mão nas ruas e até nas praças nas lojas, no lotação olhavam minha sujeira com nojo e indignação (PONTES, [19-?], p. 7). Ao final do folheto é perceptível que o sertanejo acaba aceitando a condição, que a "cidade grande" lhe impôs. Cheio de nostalgia e de saudade, sente falta daquele local que por ele, era considerado difícil, mas ainda sim havia alguém que lhe ajudasse ou fizesse Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 603 companhia. Esse mesmo homem, sem condições de retorno acaba virando mendigo, bêbado e colocando seus filhos em situação também degradante, para fazer trabalhos braçais: Triste e desconsolado saí de lá com saudade pensando agora o que faço nem tenho mais meu compadre coitado dos meus curumins vivendo nessa maldade só teve um jeito pra nós foi aceitar a desgraça três filhos vão mendigar três limpam carro na praça mas um filho pra nascer e eu fico a beber cachaça. (PONTES, [19-?], p. 8). A mescla dos suportes Tanto as características presentes no filme quando nos cordéis analisados, são baseadas na forma de vivência (não predominantemente única) dos nordestinos e no conhecimento de cognição desse povo, ou seja, é um processo de conhecimento, que envolve atenção, memória, percepção, imaginação etc. A reprodução desses aspectos não se prende unicamente a fatos cem por cento reais, podem variar com a adição do imaginário popular. Portanto, têm-se dois produtos que estão inseridos na indústria cultural. Ambos, a literatura de cordel e o filme Vidas Secas, trabalham suas representações de homem sertanejo, enquanto população, de maneira variada, mas com bastante características em comum. É perceptível que nos dois suportes o homem do sertão é indissociável da sua condição social. A discrepância entre ambas as fontes ocorre a partir da variação psicológica e de caráter desse homem, fato que será abordado adiante. Essa representação humana da cultura nordestina pode ser vista no filme a partir da condução de imagens que nos levam a crer na força dessa população. São pessoas que estão em busca, humildemente, de melhorias para a família de um modo geral. O grupo pode ser associado facilmente a bichos ainda mais quando na falta de comida, se alimentam de palma, que é utilizada, em tempos de fartura, para alimentar o gado. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 604 Os meninos mais novo e mais velho não possuem nome, sendo assim, se referem à condição anônima, sem voz, que a família viva. Vê-se também, representação desses sertanejos através da fuga constante, de um caminhar que não alcança o fim. Essa condição na qual eles fazem parte não se modifica ao longo do filme. Já no folheto O sertão e o sertanejo, nota-se que o sofrimento desses homens se dá pelo desmatamento que destruiu a beleza das terras e não pelo fato de não possuírem oportunidades como no filme. A fim de assimilar o folheto ao filme, vê-se que o sertanejo no folheto é tratado com um homem honesto, íntegro, e no filme, Fabiano também se comporta como tal. Ele não mata, e não rouba, mesmo sendo roubado pelo patrão. Duas discrepâncias entre este folheto e o filme é que na terra de Fabiano, não há espaço para o pequeno, o sertanejo sem grandes condições financeiras não tem espaço e no folheto esse espaço está aberto a todos os tipos e classes sociais. Outra diferença é a de que homem resiste à degradação que o sertão lhe impõe. Já Fabiano e sua família mudam, não resistem e saem da sua terra o que não significa que eles não possuem força. No segundo folheto analisado Artimanhas de Zé Catureba, O aprendiz de Malazartes o nordestino é apresentado representativamente como um homem esperto que utiliza de sua esperteza ou safadeza para conseguir o que precisa. Ele considera justo que se tire dos que possuem mais para dar aos que possuem menos. Já no filme, Fabiano, como já dito, é honesto e não rouba, tanto que é roubado por uma pessoa que tem muito mais que ele. Tanto Fabiano e sua família, quanto esse homem, personagem do folheto, acreditam no que é justo, mas é uma justiça diferente. Enquanto o homem do folheto acredita na religiosidade como um meio de conseguir o que quer, ou seja, roubando os fiéis, Fabiano acredita na religião de uma forma mais séria, a fim de curar seus ferimentos. Em relação ao folheto Da roça para o viaduto: basta a seca e um matuto, ou, o calvário do caboclo constata-se que o sertanejo representado tem uma vida parecida com a de Fabiano e sua família. Ambos possuem necessidade e saem de suas terras para encontrar a mudança, muitas vezes necessária, de vida. Porém, no folheto, entende-se que mesmo com a seca, aparentemente o homem não se mudaria, ele apenas sai de sua terra devido a desapropriação do ambiente em que vive. Já Fabiano e sua família fogem da seca. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 605 Em ambas as representações, esse povo que migrou, é enganado: no folheto, no momento em que ele acredita que por dó, o chefe o daria emprego, mas apenas o deixou em uma lista de espera, e no filme, no momento em que Fabiano é enganado quanto a quantia que deveria receber por seus serviços prestados. Outro motivo que se pode comparar é o da saudade. Tanto no filme Vidas Secas, quanto no folheto, o homem sertanejo sente saudade de sua terra. No folheto, não retornam porque não tem condições para realizarem tal ação, e em Vidas Secas o retorno não se dá devido à ainda, possuírem esperança de melhorias. Segue o trecho, do livro de Graciliano Ramos em que este fato está explícito. Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde existiam montes baixos, cascalhos, rios secos, espinhos, urubus bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos. (RAMOS, 1998, p. 172). Esse trecho acontece durante a primeira partida, mas ao final tanto do livro quanto do filme, acontece uma nova fuga, uma espécie de volta ao passado, mas agora de uma forma diferente, com novas perspectivas. Eles estão animados para o novo trajeto em busca de um novo futuro. Considerações finais Nota-se que tanto no cordel quando no filme, são demonstradas visões em que a cultura desse homem se sobressai a qualquer tipo de opinião. Nélson Pereira dos Santos constrói um homem íntegro e resistente, forte, que sai de suas terras de origem em busca de melhoria, além de retratá-lo como um homem animalizado. Já os cordéis fazem referência a esse mesmo homem só que acrescentando a ele, também, características peculiares, como a malandragem, a esperteza etc. Em ambas as fontes, esse homem é trabalhado de forma a integrar o ambiente. Para se compreender melhor essas representações, se faz necessária, acima de tudo, compreendê-la como um recorte cultural e representação social bruta, plena. É Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 606 impossível de dissociar o mesmo do ambiente em que pertence no momento, seja na cidade ou no ambiente rural. Bibliografia ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Marcado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, Campinas, 1999. BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. CRISTÓVÃO, José Severino. O sertão e o sertanejo. 2.ed. Caruaru : [s.n.],1982. 32p. DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Ciclos temáticos na literatura de cordel, in: Literatura Popular em Verso: Estudos. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultural/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973, tomo I. MAXADO, Franklin de Cerqueira. Artimanhas de Zé Catureba, o aprendiz de Malazartes. Feira de Santana: [s.n.], 1979. 14p. PROENÇA, Ivã Cavalcante. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976. PONTES, Carlos Gildemar. Da roça pro viaduto. Basta a seca e um matuto. O calvário do caboclo. [S.I.] : eD. caf, [19-] 8P. RAMOS , Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record , 1998. SIRINO, Salete Paulina Machado. Vidas Secas: da literatura ao cinema uma reflexão sobre suas possibilidades educativas. R. Cien., Curitiba, v.2, n.2, p.01-17, 2007. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2001. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 607 REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS EM CANTIGAS DE RODA Rafael Rodrigues da Silva (G-UEL) Renata Fonseca Monteiro (G-UEL) Introdução Nesta pesquisa vamos trabalhar a influência das cantigas de roda na formação da identidade feminina. O objetivo deste é relacionar a linguagem usada nas cantigas citadas, observando não somente as letras, mas também as coreografias que são realizadas, bem como estas são representantes da cultura oral de nosso país. O mundo adulto desperta grande interesse nas crianças, o namoro e a escolha do parceiro são ideais comumente apresentados em variadas canções. Pretendemos mostrar que algumas canções apresentam o casamento, principalmente, como parte de um fator natural da vida do ser humano; nascer, crescer, casar-se, criar descendentes e por fim, morrer, ou seja, o casamento acaba agregando um papel natural, fundado como instituição social. Ao não seguir esse tal “padrão-modelo” de vida, a pessoa que não vir a se casar, acaba por tornar-se vítima de preconceito por tal ideia imposta. Agregado ao casório, mostramos também como tais cantigas discorrem sobre a imposição de serviços domésticos, o cuidado com os filhos, o namoro, a castidade e as escolhas. Algumas canções consideram explícito o desejo do casamento por parte do sexo feminino, sendo assim, as cantigas acabam demarcando normalização para a escolha que a mulher faz entre casar-se ou não. A imposição do namoro, casamento e constituição de família são, sem dúvida, uma divisão entre algo positivo e algo negativo. As cantigas de roda possuem indícios remotos de tempo e espaço, ou seja, elas não possuem uma fonte segura de suas autorias e nem dos anos em que foram compostas, suas prováveis origens são Portuguesas e Espanholas, incorporadas a romances, poesias, histórias e outras músicas. Apesar desses fatos, essa cultura é muito familiar para a maioria das pessoas, pois ainda a ouvimos e a reproduzimos. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 608 A reprodução destas cantigas não é mais frequente como há alguns anos, porém, as crianças procuram adaptá-las à atualidade. Segundo Rodrigues (1992, p.13): Observa-se no entanto que as crianças jamais pararam de cantar, apenas cantam outras coisas. Nestas outras coisas estão incluídas as músicas de sucesso do rádio e televisão, improvisações e canções folclóricas. Parece difícil acreditar, mas se observarmos atentamente o que as crianças realizam espontaneamente, vamos nos dar conta de que a atividade folclórica ainda é um fator de identidade entre elas e, a despeito da força dos meios de comunicação, canções populares são adaptadas, reinventadas para serem assimiladas como brincadeira, mesclando-se no folclore já existente. Não podemos deixar de levar em conta também o valor simbólico que estas canções representam, pois elas são uma ponte para a socialização, emoções e a valorização dos costumes. É também de fundamental importância salientarmos que as cantigas de roda são uma rica fonte da cultura oral. Os valores atribuídos a essas cantigas são uma forma que as pessoas encontraram de viver as práticas culturais, sem a representação oral é como se essas não tivessem significado. Foram utilizadas, para a elaboração deste trabalho, cinco canções retiradas do livro Esquindô-lê-lê de Altimar de Alencar Pimentel e Cleide Rocha de Alencar Pimentel, auxiliou-nos na elaboração dos processos de análise metafóricos ilustrativos os livros Cantigas de Roda, de Lourenço Chacon Jurado Filho e Cantigas de Roda de José Pereira Rodrigues. Além do material já citado, utilizamos, para melhores esclarecimentos simbólicos, os seguintes dicionários: Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant e Dicionário de Simbologia de Manfred Lurker. Procuramos ainda relembrar da nossa infância para resgatarmos parte dessa cultura. Formação da identidade feminina As relações de poder existentes entre homens e mulheres são evidentes em nosso meio social. As divisões preestabelecidas dos papéis sociais não são novidade para a atual sociedade, apesar de essas diferenças estarem sendo minimizadas a cada século. Essa tradição sociológica é reforçada por representações religiosas, culturais entre outras. O papel que a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 609 mulher deve ocupar na sociedade é muito conhecido em cantigas folclóricas, pois nelas as atividades como cozinhar, lavar, passar roupas e cuidar dos filhos são “impostas” a essas representantes femininas. As grandes difusões dos conceitos bíblicos na maioria das religiões, baseados em trechos do antigo e novo testamento sobre a submissão e subordinação da mulher, defendem que o papel feminino destaca-se pelos cuidados com o lar, enquanto ao homem é regrada a obrigação de fornecer o sustento da casa e defender sua nação, devido às características típicas, “tais como, a coragem, o desembaraço e a independência”. (MORAES, 1985, p. 21). Moraes (1985) ressalta ainda uma ideia de inferioridade ao sexo feminino quando aborda que a mulher se difere do homem durante a socialização, no qual existem características consideradas como “tipicamente” masculinas e que essas, têm maior prestígio social do que as características de personalidade relacionadas às mulheres. Apesar das diferenças que distinguem “eles” de “elas” estarem minimizando-se ao longo dos séculos, ainda observamos tal tradição sociofundadora pelos meios de comunicação, em filmes, novelas e em músicas. Se analisarmos os papéis de homens e mulheres, veremos que estes ainda apresentam-se visíveis na sociedade e a carga de diferença existente entre diferentes sexos é muito grande aos olhos da coletividade, ou seja, o homem trabalhando e provendo o sustento da família e a mulher realizando os serviços domésticos e cuidando dos filhos. Belotti (1979, p.52) enfatiza que: [...] a superioridade e a força de um sexo dependem exclusivamente da inferioridade e fragilidade do outro. Se o macho sente-se assim só porque pode dominar, inevitavelmente necessitará produzir alguém que aceite ser dominado. Mas se pararmos de ensinar ao macho que deve dominar e à mulher que aceite e goste de ser dominada, poderão florescer novas e insuspeitadas expressões individuais muito mais ricas, articuladas e imaginosas do que os mesquinhos e mortificantes estereótipos. Esta citação questiona os papéis que a sociedade impõe para cada gênero, com as quais os estereótipos a serem “florescidos” são papéis de igual peso para homens e mulheres, no qual as diferenças físicas, genéticas e históricas não causem distinção. Porém, na realidade atual, a consequência imposta por um grupo de maior valor social, isto é, o poder social que impõe e fixa a fim de garantir de alguma forma o privilégio sobre os demais, torna as Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 610 diferenças motivo de exclusão, preconceito e rejeição. Silva (2000, p. 85) aponta tal caso numa relação com os mitos fundadores: Os mitos fundadores que tendem a fixar as identidades culturais são, assim, um exemplo importante de essencialismo cultural. Embora aparentemente baseadas em argumentos biológicos, as tentativas de fixação de identidade que apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a inferiorização das mulheres ou de certos grupos “raciais” ou étnicos nalguma suposta característica natural ou biológica não é simplesmente um erro “científico”, mas a demonstração da imposição de uma eloqüente grade cultural sobre uma natureza que, em si mesma, é - culturalmente falando – silenciosa. A formação da identidade feminina baseia-se nos conceitos relacionados ao seu papel na hierarquia masculina, destacando; a imposição sobre a sua função de companheira do homem, subordinada e inferior, observando que as comunidades ainda perseveram sobre esse contexto; mesmo a visão do papel feminino na atualidade sendo menos ditador tem-se a ideia da representação feminina, muito mais como subalterna do que dominadora, apesar das novas marcas de igualdade que surgem com o passar dos anos. Em nossa sociedade, inúmeras mulheres ainda interiorizam uma imagem depreciativa e constrangedora delas mesmas. Ao observarmos algumas canções de roda, notamos que meninos e meninas, ao longo do tempo, representam papéis predefinidos. Desde criança, as meninas são identificadas como sinônimo de meiguice e delicadeza, as representantes femininas também são vistas como mães e mulheres preparadas para a vida caseira. O mundo adulto desperta nas crianças uma profunda vontade e interesse no âmbito de vivenciar relações afetivas e cultivarem-se como “pequenas mulheres”. O namoro, o casamento e a teatralização do ser mãe são quase em todos os casos, maneiras das meninas, em especial, verem-se como adultos. As cantigas, passadas de geração em geração, ajudam a estabelecer os exemplos da vida cotidiana típicos numa sociedade que insere os papéis femininos como os citados acima. As cantigas teatralizam alguns papéis na sociedade, como, por exemplo, o papel da mulher cuja união com um parceiro torna-se imprescindível para completá-la, pois, considerada um sexo frágil, inferior e sem a habilidade de se proteger, necessita da proteção Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 611 de um homem, ou seja, seu marido, e para que este, exerça seu papel na relação e demonstre sua coragem, necessita que a mulher desempenhe um papel inferior ao dele. A coreografia, o meio pelo qual as cantigas são encenadas, evidencia outro fator de diferença: a inclusão e a exclusão (SILVA, 2000). Algumas canções agrupam semelhantes e inferiorizam os “diferentes”. Essa relação, seria encarada como formações de identidades superiores, pois estabelecem uma oportunidade de a criança escolher semelhantes, consequentemente afastando aquela que não possui as características desejáveis, ou seja, escolhendo a qual mais “lhe agrada” ou “menos lhe agrada”, atribui-se carga positiva e negativa, simultaneamente. É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença adquirem sentido. É por meio da representação que, por assim dizer, a identidade e a diferença passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer: “essa é a identidade”, “a identidade é isso”. (SILVA, 2000, p.91) É por meio das representações que a criança constrói gradativamente seu mundo e sua noção sobre ser adulto; é por meio também das representações, com as quais a criança teatraliza seu futuro, canta seus sonhos e acredita ser o que imagina que ela forma sua identidade. Impõe-se a análise das manifestações artísticas populares como cultura presente, em diálogo ou em confronto com outras produções culturais também presentes. Nas criações populares, tanto podem ser encontradas considerações críticas a respeito da dominação, quanto maneiras de endosso e submissão à(s) cultura(s) dominante(s). (AYALA, 2003, p. 85) Além disso as cantigas representam uma carga muito grande de sentidos dentro da cultura de uma sociedade. Além da responsabilidade de formação da identidade feminina, elas simbolizam uma cultura que se fixa na memória coletiva para sempre, pois a carga de símbolos existentes nos narradores/cantores, nos sons, movimentos e sensações é uma marca coletiva de fundamental importância. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 612 Cantigas de roda e representações do feminino Pombinha Branca A pombinha branca Que está fazendo? Tou lavando roupa Do meu casamento. A roupa é muita E eu sou vagarosa: Minha natureza É de preguiçosa. (MARQUES, 1996, p.91). Nessa cantiga notamos a utilização da personificação, pois a intenção é representar uma mulher quando se cita “Pombinha”, sendo que este animal, símbolo de paz na cultura popular, além de representar a paz em várias situações conhecidas, como por exemplo na religião, agregado ao adjetivo “Branca” que simboliza também a clareza e a harmonia. Podemos citar também o mito do cavaleiro que chega no cavalo branco para salvar sua dama e se casar, sendo que este mito popular ainda é fortemente usado atualmente, mesmo que com ironia. Esta manifestação de pureza simboliza a castidade, a virgindade, a mulher que ainda não se casou neste caso, sendo assim uma mulher virgem. A representação do lavar roupas demonstra um afazer doméstico, agregado à mulher. Interpretamo-la com a ideia, novamente, de clareza ou pureza, além de reforçar a noção de que a identidade natural da mulher é reforçada como aquela que faz os serviços domésticos. Teresinha de Jesus Terezinha de Jesus De uma queda foi ao chão: Acudiram três cavalheiros, Todos de chapéu na mão. O primeiro foi seu pai; O segundo seu irmão; O terceiro foi aquele Que a Tereza deu a mão. Da laranja quero um gomo, Do limão quero um pedaço, Da morena mais bonita Quero um beijo e um abraço. (LIMA, 1943, p.103). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 613 Nesta canção, notamos o cavalheirismo quando se representa os cavalheiros acudindo Teresinha de Jesus, além da representação da mulher frágil, meiga e dócil, sendo que a noção de “mulher perfeita” é esta (até mesmo atualmente em alguns casos). Logo surge uma ideia de hierarquia sobre a mulher, notamos a relação: pai (o que cria), na falta do pai, o irmão (com o papel de homem da casa) e, por terceiro, o marido, na noção de casamento, ou seja, à mulher é agregado um papel de objeto possuído, ou até digamos um objeto de posse e desejo dos homens por ser tão desprotegida (o poder do homem sobre a mulher, eles escolhem ela ou não). Agora, temos o conceito da escolha, tanto na letra como na coreografia , quando cita, “Quero um beijo e um abraço” a criança escolhe tanto linguisticamente como por atos (abraçando e beijando) outra criança para substituí-la no centro da roda. No caso a representação indica que a criança ao centro escolherá outra que a agrade para que se “case” com ela. Provavelmente a criança escolhida terá atributos que agradem não somente àquela que a escolheu como também a todas as outras, ou seja, uma criança que tenha características desejáveis pelas outras. A citação “Da morena mais bonita quero um beijo e um abraço” demonstra que o que chama a atenção do futuro marido é sua beleza, ou seja, neste caso, o homem escolhe sua futura mulher e somente pelas qualidades físicas. Siu, Siu, Siu. - Siu, siu, siu, Vem cá, meu bem. Sou, siu, siu Ele vai, já vem. - De tarde estava cosendo A linha foi deu um nó; Se quiser falar comigo Venha amanhã, que estou só. - Siu, siu, siu, etc. Cravo branco na janela É sinal de casamento; Menina guarda o teu cravo Que contigo eu caso sempre. - Siu, siu, siu, etc. (MELO, 1981, p.206). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 614 O cravo branco é um símbolo de castidade e virgindade, também esta flor já foi empregada como representação do mês de maio, sendo este conhecido como o mês das noivas. A imposição da pureza reaparece nesta cantiga, a expressão “guarda o teu cravo” indica a castidade, a necessidade de a menina matrimoniar-se virgem, de guardar-se para o futuro marido. As cantigas de roda podem ser consideradas uma forma de se conhecer ou revelar pontos da sociedade, segundo José Geraldo Vinci de Moraes a música popular e a canção são “uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura popular e desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados”. (MORAES, 2000, p. 204-5). A partir daí é possível verificar a importância de se analisar as cantigas não somente enquanto fonte da cultura oral, mas também como fonte de compreensão para a realidade de um determinado grupo social. Bom Barquinho Dá licença, bom barquinho, Dá Licença eu passar Carregada de filhinhos Que ajuda a criar. Passarás, passarás Que um deles há de ficar: Se não for o da frente Há de ser o de detrás. (LIMA, 1943, p.44). No trecho em que cita “Carregada de filhinhos” temos a impressão de várias crianças, na coreografia, as crianças realizam uma espécie de túnel (semelhante ao das quadrilhas de festas juninas) e um destes filhos fica excluído, para que sobre somente uma criança e a brincadeira recomece. Temos a representação da mulher com vários filhos, cuidando deles sozinha, ou seja, o papel da mulher como a principal encarregada de educar e cuidar dos filhos, seja na ausência do pai das crianças por este ter falecido, largado a mãe das crianças ou até mesmo porque apesar do pai ser marido da mãe, ele é ausente e o papel de cuidar dos filhos fica somente à matriarca. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 615 Sambalêlê Sambalêlê tá doente Tá com a cabeça quebrada, Sambalêlê precisava De umas oito lapadas. Refrão: - Samba, samba, samba ô lê-lê! Pisa na barra da saia, ô lê lê! Samba, samba, samba, ô mulata! Pisa na barra da saia, ô mulata! Minha morena bonita Diga como se namora: Bota o lencinho no bolso Deixa a pontinha de fora. Refrão Minha morena bonita Diga como se cozinha: Bota a panela no fogo Vai conversar com a vizinha. Refrão Minha morena bonita Diga como é que se casa: Bota o véu na cabeça E dá o fora de casa. Refrão Minha morena bonita Diga onde é que você mora: Mora na praia Formosa, Dou adeus e vou embora. Refrão (RIBEIRO, 1991, p.96). A relação que a sociedade faz da mulher com os serviços domésticos é expressa nesta canção. A analogia de poder quando o homem sai para trabalhar e a mulher fica em casa cozinhando, lavando, limpando e, como é mencionado na música ironicamente, “...vai conversar com a vizinha”, ou seja, fofocar, nos demonstra a criação social e cultural que está Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 616 agregada aos papéis femininos e masculinos, atribuindo-se à mulher o papel inferior ao do homem. Esta canção também nos apresenta o namoro e o fato de a menina sair de casa quando aceita o matrimônio, sendo que tal fato soa como uma alegria para a noiva. As cantigas de roda em sua maioria são voltadas para o sexo feminino, sendo que há indícios de que são as próprias que mais as cantam e as representam. Antigamente, as meninas tinham maior interesse pelas cantigas, pois era uma maneira de tentar romper uma barreira existente entre meninos e meninas. Podemos denominar esta imposição de matrimônio sobre a mulher como um mito, pois, apesar de não conhecermos o passado exato das cantigas, algumas delas como “Sambalêlê”, por exemplo, é popular entre os brasileiros, a maioria a canta e a repassa, mesmo sem ter a consciência de que estão colaborando para a fixação dos termos usados nas cantigas. Considerações finais As cantigas de roda, sem dúvida, são preciosas para nossa cultura, o valor histórico que elas possuem é indiscutível e o papel que representam para a socialização de nossas crianças, pois essas necessitam desse contato afetivo com as outras; devemos citar também a importância da manifestação coreográfica e o exercício de canto que a criança realiza, colaborando assim para a sua desinibição. Porém, notamos também a relação de inclusão e exclusão que algumas cantigas possuem, a incitação aos papéis que homens e mulheres devem realizar ao longo da vida e, em consequência disso, a existência de um gênero com carga mais positiva que outro. Apesar das crianças serem ingênuas e muitas vezes nem compreenderem o que reproduzem nas cantigas, a linguagem com que nos deparamos nestas cantigas não são ingênuas, pelo contrário, ela faz insinuações a elevação de uma classe, um gênero, uma cor ou uma situação social. Em nosso caso, mostramos a relação entre os sexos, evidenciando assim a formação da identidade feminina, pois são elas, as meninas, as principais continuadoras desta cultura folclórica. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 617 As relações de poder entre homens e mulheres não é a principal abordada nesta pesquisa, mas sim a relação de formação de identidade entre mulheres; como por exemplo, foi citada em uma das cantigas, a diferença entre se casar ou ser freira. Nessas situações, a menina normalmente não escolhe se quer casar-se ou não, a canção já faz essa escolha para ela: ela vai se casar. Afirmando assim a relação de poder entre se casar ou não. A criança necessita do processo de teatralização para compreender o mundo a sua volta, seja imitando os pais, a atriz da televisão ou, neste caso, representando um papel social por meio da música; sendo assim compreendemos que os exemplos que a criança possui ao seu redor são formadores de sua identidade. Bibliografia AYALA, Maria Ignez Novais. A Cultura Popular em uma Perspectiva Empenhada de Análise. In: FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (org) . Oralidade e Literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina: Eduel, 2003. p. 81-112 BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão: O descondicionamento da mulher. 2.ed. Tradução Ephrain Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1979. CASTRO, Zaíde Maciel de. Jogos e rondas infantis. Serviço da Indústria (SESI), 1956. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da Costa e Silva. 16.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. JURADO FILHO, Lourenço Chacon. Cantigas de Roda: jogo, insinuação e escolha. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 619 O NARRADOR E O CANTADOR: SEUS ASPECTOS E PAPÉIS REFERENTES À LITERATURA DE CORDEL Raphaela Cristina Maximiano Pereira(PG-UFSJ) Apresentação: Torna-se importante explicitar a estrutura do presente trabalho, para que haja melhor compreensão do mesmo. Na primeira parte, serão abarcadas algumas questões gerais sobre o foco do estudo dessa pesquisa. Falar-se-á acerca da literatura oral, popular e sobre uma de suas mais ricas e vastas manifestações no Brasil: a Literatura de Cordel. Em seguida, haverá uma abordagem do texto “O narrador”, de Walter Benjamin, na qual se buscará relacionar as características dos cantadores das poesias de cordel com a figura do narrador criada e exemplificada pelo autor alemão. Neste momento, também será falado sobre a correspondência entre o conceito de “performance”, de Paul Zumthor e a ação de compreensão mútua realizada entre leitores e cantadores dos poemas populares. Posteriormente, será identificada a questão da coletividade e da memória nesses textos que buscam resgatar as marcas tradicionais de um povo e o impacto que essas causam na sociedade, abrangendo conceitos de autores como Paul Zumthor, Jacques Le Goff e Maurice Halbwachs. Também serão mencionados outros autores cujas pesquisas ajudam a propiciar um melhor entendimento do assunto aqui enfatizado. I. Introdução: Notas sobre Literatura Oral, Popular e de Cordel "A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve." (Michel de Montaigne) Delimitar o que seria a cultura popular é uma tarefa complexa. E a definição de literatura oral, também não facilmente demarcada, abarca uma série de manifestações dessa cultura do povo. O intuito do presente trabalho não se prenderá à complexidade de definições possíveis sobre o tema em questão, embora seja necessário salientar algumas das principais teorizações acerca do assunto. Os enfoques contemporâneos dados à literatura oral e à cultura Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 620 popular, no meio acadêmico, têm resultado em opiniões diversas e, até mesmo, contrastantes. Stuart Hall (2009), em Notas sobre a desconstrução do popular, alerta o leitor sobre a dificuldade em se lidar com o termo “popular” que, ultimamente, tem se tornado tão complexo de ser definido quanto o termo “cultura”; e ainda completa afirmando que “quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (p. 231). O autor completa seu posicionamento afirmando que a cultura popular é organizada em torno da contradição e a isso se deve a dificuldade de definição dos termos; segundo ele, tanto o termo “popular” quanto o “povo” são altamente problemáticos: “[...] assim como não há um conteúdo fixo para a categoria da ‘cultura popular’, não há um sujeito determinado ao qual se pode atrelá-la – ‘o povo’.” (2009, p. 246), uma vez que esse “povo” nem sempre esteve em um mesmo lugar, com sua cultura intocada e seus instintos intactos, alheios às transformações que, inevitavelmente, ocorrem ao redor dele. Assim como Hall, Paul Zumthor (1997) confirma a ideia de que os termos folclore e cultura popular são bastante vagos e possuem mais de um significado, podendo até se tornarem contraditórios. O mesmo ocorre com o adjetivo “popular” ao qual podem ser atribuídas conotações ambíguas. Ivan Cavalcante Proença (1979), atentando para os paradoxos existentes entre os termos “literatura” e “oral” quando são direcionados à poesia popular em verso, ressalta que “no folclore existe uma parte que é chamada literatura oral. Um paradoxo, porque literatura subentende letra, e oral é justamente o que não tem letra” (p.23). De modo mais sucinto e até mais simplório do que outros autores, Proença (1979) ainda classifica essas tensas definições da seguinte maneira: Inicialmente, há duas linhas, maneiras de ser, da literatura oral. A popular, que, embora apresente características de poesia folclórica, é normalmente impressa, é moda, e não anônima. E a realmente folclórica, que independe de moda e já é anônima, caiu no patrimônio coletivo por esquecimento do nome de seus autores. (1979, p. 37) Em meio às distintas constatações realizadas acerca dessas definições, os conceitos referentes às categorias de literatura oral e popular vêm sendo redefinidos e reorganizados, de modo a constituir um campo de discursos menos conflituoso. De forma Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 621 similar ao que foi defendido por Proença, Jesus Martín-Barbero (2008) define o assunto aqui em destaque da seguinte maneira: Há uma literatura que, ausente por inteiro das bibliotecas e livrarias de seu tempo, foi contudo a que tornou possível para as classes populares o trânsito do oral ao escrito, e na qual se produz a transformação do folclórico em popular. [...] Literaturas que inauguram uma outra função para a linguagem: a daqueles que, sem saber escrever, sabem contudo ler. Escritura portanto paradoxal, escritura com estrutura oral. (p.148) Joseph M. Luyten (1992) também afirmou que “[...] o cordel é um estágio quase intermediário entre a oralidade e os sistemas de comunicação letrada, uma vez que é poesia que deve ser lida em voz alta ou cantada” (p. 171). Já a literatura oral, para Luís da Câmara Cascudo (1984), que “reúne todas as manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição” (p. 29), pode ser caracterizada como toda e qualquer manifestação cultural que existe do povo e para o povo. Segundo o autor, principalmente no contexto do nosso país, esse tipo de produção é composto por provérbios, contos, frases-feitas, orações, cantigas de roda, jogos infantis entre outras fontes de expressão sócio-cultural. Portanto, falar de literatura oral é mencionar, obrigatoriamente, as tradições orais que todos os povos possuem e que, ao serem disseminadas com o passar dos anos, vão se modificando, de acordo com as diferentes sociedades e épocas das quais passam fazer a parte. De acordo com o que é enfatizado por Peter Burke (2003), “em nosso mundo nenhuma cultura é uma ilha” (p. 101), o que nos comprova a ideia de que todas as tradições, das mais diversas e distantes culturas existentes no mundo, estão em contado, direta ou indiretamente, uma com as outras. Assim, passa-se a entender as tradições como frutos de constante modificação, “sempre sendo construídas e reconstruídas quer os indivíduos e os grupos que fazem parte dessas tradições se dêem ou não conta disso” (BURKE, 2003, p. 102). A literatura oral e popular, como parte de uma produção cultural específica e situada em contextos de constante renovação, também reflete o hibridismo das culturas e tradições, o qual é facilmente identificado nos versos dos poemas. Pode-se dizer que o discurso oral é produzido em um grupo social e a presença da coletividade na composição dos textos permite que haja uma leitura e compreensão da cultura à qual esse grupo se refere. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 622 Como já foi dito, a definição de literatura oral abarca uma série de manifestações de cultura popular. No Brasil, a literatura de cordel é uma das mais recorrentes representações desse gênero. Embora sua difusão seja mais eminente na região Nordeste do país, os versos de cordel não se limitam a uma cultura específica, possuindo, em suas incontáveis publicações, as marcas da tradição do local aonde aquelas foram produzidas. Mesmo que os temas tratados nos versos de cordel sejam mais contemporâneos ou mais ligados à tradição da qual fazem parte, é perceptível identificar a relação entre esses versos e a memória da época em que foram escritos, pois, como é evidenciado por Zilá Bernd (1995), o texto literário oral quase nunca está isolado, se encontrando sempre inserido em um dado discurso. Pode-se dizer que o discurso oral é produzido em um grupo social e a presença da coletividade na composição dos textos permite uma leitura cultural. Bernd ressalta que é através do discurso sobre o passado “que a memória cultural se funda e se estrutura” (1995, p. 39). Segundo Diégues Jr (1986), tudo conduziu para o Nordeste se tornar o ambiente propício em que a literatura de cordel se tornaria vasta e forte. Isso se deve a vários motivos, como o das condições étnicas, já que foi ali que o encontro do colonizador português e do africano se fez de maneira contínua, e não esporádica, resultando em ma mútua fusão de influências. Um dos outros motivos se refere ao próprio ambiente social que oferecia condições para o surgimento dessa forma de comunicação literária, uma vez que a difusão da poesia popular poderia se dar tanto através de escritos quanto em formas de cantoria. Assim, as condições sociais e culturais (como as práticas tradicionais familiares de se juntarem, à noite, para a declamação de histórias) do ambiente foram suficientemente ideais para transformar o Nordeste em área de difusão dessa manifestação cultural que é a literatura de cordel. Todavia, também há estudiosos que consideram que esses fatores não correspondem a causas ou determinações, e sim a consequências desse fenômeno da intensificação da circulação dos folhetos no Nordeste (MENEZES, 1977, p. 41). De acordo com Manuel Diégues Jr (1986), os inícios da literatura de cordel são amplamente ligados à divulgação de histórias tradicionais e narrativas de outras épocas que, ao serem retomadas pela memória popular continuaram a ser transmitidas. O nome literatura de cordel provém de Portugal e possue essa denominação pelo fato de os folhetos de cunho popular serem presos por barbantes (chamados cordas ou cordéis) e, dessa forma, expostos nas casas em que eram vendidos. Embora a presença desse tipo de poesia no nosso país tenha Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 623 raízes lusitanas, não se pode dizer que o romanceiro brasileiro seja totalmente dotado de características genuinamente portuguesas, uma vez que os folhetos que chegaram em Portugal também eram provenientes de diversas e diferentes fontes. Sobre as origens desse tipo de literatura popular o Brasil e em outros países, o autor salienta que: Da península foi que nos veio: é uma das heranças que devemos, o Brasil a Portugal, os outros países americanos à Espanha, fazendo com que o épico e o lírico, pelo que o povo se manifestava, persistissem entre nós, ora em sua forma tradicional, das narrativas registradas no romanceiro, ora em suas formas ocasionais, pelo registro de fatos circunstanciais, de momento, que mereceram a atenção das populações, conservando-os na memória popular. (DIÉGUES JR, 1986, p. 35) Conforme foi dito, a Literatura de Cordel tem suas raízes ligadas à divulgação de histórias tradicionais, provenientes de velhas épocas. Essas foram conservadas e transmitidas através da memória popular e são denominadas novelas de cavalaria, de amor, relatos de guerra e de viagens, entre outros. A origem é da literatura medieval, mas a partir do momento que passou a integrar o cotidiano brasileiro, a Literatura de Cordel assumiu as características desse contexto, assim como assumiu também a atualidade dos fatos narrados. Concomitante ao surgimento dessas histórias tradicionais apareceram, na poesia, relatos de fatos recentes, ou seja, de acontecimentos sociais que chamavam a atenção dos ouvintes. A Literatura de Cordel também se tornou, portanto, fonte de informação para seu público, constituindo, através dos folhetos jornalísticos ou noticiosos, uma espécie de “jornalismo popular” (LUYTEN, 1992). Essa literatura brasileira de cunho marcadamente popular, embora seja muito conhecida em várias partes do país, ainda é pouco estudada no meio acadêmico de nosso país. A arte popular brasileira vigora de forma autêntica e contínua por muitos anos, apesar dos equívocos que sua existência provoca. Como é colocado por Ariano Suassuna em seu ensaio de 1969 intitulado “A arte popular no Brasil” e inserido em seu Almanaque Armorial compilado em 2008, “a literatura popular brasileira também existe, bastando o fato de possuirmos, nos folhetos, o maior e mais variado Romanceiro vivo do mundo” (p.152). Os preconceitos que circundam os estudos da literatura popular podem ser explicados de várias formas, mas é compatível com o presente trabalho resumi-lo a algumas palavras do próprio Suassuna (2008): Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 624 Nós, aqui no Brasil, temos, à mão, um material muito mais vasto, rico e variado do que o Romanceiro ibérico [...]. Por causa da injusta discriminação a que já me referi, o Romanceiro Popular do Nordeste é deixado de banda nos estudos literários universitários do Brasil. Aqui, são criadas essas discriminações contra grandes artistas e escritores que, somente por não terem tido formação universitária ou informações e participação sobre ‘as conquistas da civilização industrial’, ficaram como que estigmatizados e relegados a posições secundárias. (p.152) Essa discriminação sofrida pelos poetas populares também pode ser explicada através dos fatos relativos às origens da disseminação da literatura de cordel. O início da disseminação desses folhetos era marcado pela transmissão oral das poesias. Os cantadores ou cordelistas eram responsáveis por passarem ao povo, quase sempre analfabeto, as informações e entretenimento de um modo mais informal e acessível. Com o passar dos anos e com a valorização da escrita até em ambientes em que ela não era privilegiada, esses poemas passaram a ser escritos, mas nunca se desprendendo completamente das marcas da oralidade. Com base no exemplo dos folhetos nordestinos, Bernd (1995) confirma a ideia de que “a marca da oralidade encontra-se na escritura” (p.85), já que, independentemente de se encontrarem sob a forma de texto escrito, o compromisso original das poesias é ser composta para ser declamada. Assim, “os folhetos de cordel e os romances nordestinos podem frequentemente ser considerados como versões escritas de narrativas transmitidas pela tradição oral” (p.91). Apesar de a literatura de cordel não ter uma preocupação excessiva com certo padrão de rigor técnico comum a famosas obras canônicas, ela também possui um conjunto de marcas, como a métrica e as rimas; ou seja, um “compromisso” com determinados padrões específicos que a identificam como popular. Diferentemente do que ainda é escrito sobre ela, essa literatura popular não se limita, somente, a evidenciar o fantástico, o imaginativo, o mágico; mostra-se atenta aos comentários críticos da vida cotidiana e às observações que são julgadas relevantes para serem passadas aos leitores86. Caracterizados por serem compostos, 86 Segundo Roberto Benjamin (apud Luyten, 1992), “o público principal da literatura de cordel é ainda o seu publico tradicional” (p. 67), o que corresponde dizer que os consumidores mais fiéis dos folhetos ainda é o povo que frequenta feiras de pequenas e médias cidades do interior do Nordeste, migrantes nordestinos e analfabetos, a quem as histórias são passadas oralmente. No entanto, o público do cordel vem se modificando desde o momento em os folhetos entraram em salas de aulas de colégios e universidades, fazendo com que estudantes também tornassem parte da nova clientela do cordel, além Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 625 principalmente, com o intuito primordial de serem passados oralmente, os textos de cordel não apresentam, na maioria das vezes, algum tipo de obrigatoriedade de se prender às normas impostas pela gramática da nossa língua. Mesmo nas circunstâncias em que são escritos, eles não se desvinculam das marcas da oralidade, como uso de palavras na forma coloquial, verbos em forma reduzida e inadequações ou desvios da norma culta gramatical. Como os narradores e autores dos folhetos de cordel não exibem preocupação em seguir um roteiro prédeterminado na produção de suas falas que, posteriormente se transformam em escritos, a espontaneidade e a naturalidade desses indivíduos tornam-se marcadamente notáveis em cada uma de suas composições. Assim, ainda mais evidente do que em discursos ou textos mais formais, as marcas tradicionais e peculiares de quem se fala tornam-se mais perceptíveis. II. Narradores e cantadores Em seu texto “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, datado de 1936, o filósofo e crítico literário alemão Walter Benjamin afirma que a arte de narrar está em vias de extinção, uma vez que é cada vez mais escasso encontrar pessoas que saibam narrar devidamente. Mais do que traçar uma discussão sobre o escritor russo Nikolai Leskov, Benjamin propõe um estudo sobre a memória na construção da narrativa a partir do papel desempenado pelo narrador. Ao longo das teses levantadas no texto, ele esmiúça o que seria esse ato de construir uma narrativa ideal: considera que o grau de experiência de quem narra deve ser elevado para que se possa contar histórias e formular ensinamentos aos que forem seus leitores. Considerando o contexto entre as duas Guerras Mundiais (1914 – 1918 e 1939 – 1945) em que o autor escreveu essas análises, ele não titubeia ao garantir que os homens têm se tornado mais pobres em histórias surpreendentes por participarem de experiências incomunicáveis, como as que acontecem nos grandes campos de batalha. Quando essas pessoas querem esquecer as experiências negativas, elas ficam sem ter o que contar. Como “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (p.198), torna-se possível compreender a importância da transmissão oral que é feita entre os indivíduos, como, logo em seguida, afirma o próprio autor: “entre as narrativas escritas, as de turistas que demonstram interesse em conhecer a cultura à qual o folheto está vinculado. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 626 melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (p.198). Benjamin (1994) ressalta que o ato de narrar supõe a presença de ouvintes e estes constituem um grupo; a narração só teria sentido a partir do instante em que é dirigida a esse coletivo. Sobre a figura errante e persistente do cantador, Cascudo ressalta: Curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo orgulho do seu estado. Sabe que é uma marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de supremacia, de predomínio. [...] São pequenos plantadores, donos de fazendolas, por meia com o fazendeiro, mendigos, cegos, aleijados, que nunca recusam desafio, vindo de longe o feito de perto. Não podem resistir à sugestão poderosa do canto, da luta, da exibição intelectual ante um público rústico, entusiasta e arrebatado. (1984, p. 127) Como coloca Scholes e Kellogg (1977), “o cantador87 depende totalmente de sua tradição” (p.14); é, principalmente, a transmissão oral que os cantadores nordestinos utilizam como veículo para narrar suas experiências e essas podem ter sido adquiridas através de viagens (o que Benjamin define como “narrador migrante”) ou pelas histórias tradicionais que conhece e as experiências dos outros que são passadas a esses (“narradores sedentários”). Sobre a relação entre o cantador e a tradição, Scholes e Kellog (1977) ainda completam: O cantor oral ilustra a mais extrema forma do talento individual a serviço da tradição e talvez, também, a forma extrema da tradição a serviço do talento individual. Os dois são simplesmente aspectos da mesma entidade. Sem cantos, a tradição morreria; sem a tradição, não haveria cantos. (p.16) Segundo Benjamin (1994), a verdadeira narrativa é aquela que possui uma dimensão utilitária e essa utilidade pode ser constituída por ensinamentos morais, provérbios ou normas de vida; isto é, é aquela que possui o dom de dar conselhos: “o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos [...]” (1994, p. 221). Esse tipo de narrativa se baseia na sabedoria (considerada o “lado épico da verdade”) com a qual o narrador formula 87 No presente trabalho, a palavra “cantador” se referirá não somente aos poetas populares que usam o canto no momento da recitação dos versos, mas também àqueles que os interpretam, podendo ser identificados também como intérpretes, contadores. Portanto, o cantador poderá ser compreendido aqui como aquele indivíduo que, durante a performance oral, estabelece um intercâmbio intenso entre o público, os versos e o seu próprio posicionamento. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 627 seus conselhos, embasado no seu acervo de experiências próprias ou alheias a ele. Já em 1936 o autor concluía que essa sabedoria, o “pano de fundo” da arte de narrar, estava definhando e impedindo que narradores compusessem boas histórias e até deixassem de resgatar também as mais tradicionais. Sobre a literatura de cordel, Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (1977) coloca que, nela, “é facilmente identificável, [...], uma função pedagógica” (p.31), uma vez que os versos também podem desenvolver a função de passarem ensinamentos. É possível afirmar que na literatura oral, os autores e intérpretes dos versos se preocupam em transmitir ao seu receptor histórias que possam acrescentar algo em suas vidas. Visando informação ou diversão, esses narradores populares se atêm a traduzir o mundo em que vivem, de forma direta e acessível: “Na literatura popular encontramos traduzido o próprio espírito da sociedade” (Diégues Jr, 1986, p. 173). A literatura oral não se limita a provérbios, adivinhações, contos e orações e se mantém viva por ainda ser perpetuada pela transmissão oral e também pela impressão dessas histórias tradicionais. Segundo Cascudo (1984), a literatura oral se mantém intacta no convívio dos falantes, sendo constantemente ativada pela memória popular, paralelamente ao mundo composto pela literatura clássica e pelas produções contemporâneas. O povo torna-se fiel à tradição e a conserva sempre atual, paralelamente a outros elementos: A literatura que chamamos oficial, pela sua obediência aos ritos modernos ou antigos de escolas ou de predileções individuais, expressa uma ação refletida e puramente intelectual. A sua irmã mais velha, a outra, bem velha e popular, age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo, nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas nas noites de “novena”, nas festas tradicionais do ciclo do gado, nos bailes do fim das safras de açúcar, nas salinas, festa dos “padroeiros”, potirum, ajudas, bebidas nos barracões amazônicos, espera de “Missa do Galo”; ao ar livre, solta, álacre, sacudida, ao alcance de todas as críticas de uma assistência que entende, letra e música, todas as gradações e mudanças do folguedo. (CASCUDO, 1984, p. 27) Walter Benjamin, assim como o estudioso brasileiro, também acredita que as histórias tradicionais bebem na relação harmoniosa e complementar exercida entre narradores e leitores que, juntos, exercem a função de perpetuar uma literatura que pode se manter viva a par de outras manifestações mais formalizadas. A tradição oral, que é a fonte das narrativas orais, incorpora as coisas narradas às experiências dos ouvintes e, por tal motivo, adquirem a Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 628 capacidade de se fortalecerem e se perpetuarem como uma história tradicional e peculiar a um certo grupo. Portanto, quanto maior a naturalidade do narrador com a história narrada, maior a probabilidade de seu ouvinte em assimilá-la, o que torna possível que adquira a capacidade de contá-la novamente. O autor alemão mostra a importância exercida pela relação entre ouvinte e narrador, a qual é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Assim, como “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas” (BENJAMIN, 1994, p. 205), o fato de se memorizar uma narrativa equivale à ação de disseminá-la, preservá-la, passá-la adiante. Cada narrador é responsável por aplicar na narrativa uma marca peculiar sua. De acordo com o que é salientado por Diégues Jr (1986), nas cantorias da literatura oral no Nordeste, é possível que se encontre dois tipos de poesia; um é tradicional, que está na memória dos cantadores e que serve para encher o tempo, sendo chamado de “obra feita”. Esse tipo de poesia, em geral, aproveita versos da literatura já escrita e, nele, perde-se, na maioria das vezes, a autoria dos textos originais, uma vez que os versos são exaustivamente repetidos pelos cantadores. Mesmo que em alguns casos se modifiquem as palavras, as ideias são conservadas. E há, também, outro tipo de poesia que é denominado “repente” e é caracterizado por ser improvisado e fruto de um fato momentâneo. O problema da autoria, muito recorrente na literatura de cordel, faz com que os verdadeiros autores dos versos sejam confundidos com os cantores, ou seja, com aqueles que interpretam as poesias. Sobre o assunto, Diégues Jr (1986) salienta que: Passavam os cantadores da região a ser conhecidos como autores das histórias ou, pelo menos, do folheto, numa identificação tipicamente popular e, aliás, tão comum em casos semelhantes. Adaptava-se desta maneira, ao meio nordestino a poesia tradicional, as velhas novelas européias, tão divulgadas também em Portugal [...]. (p.46) Nas narrativas orais, a transmissão de histórias através das gerações se perde, pois a versão contada mais recentemente assume o local daquela que tinha sido recitada anteriormente e, daí por diante, são inevitáveis as modificações no teor dos versos. A falta do registro escrito possibilita que não se conheçam esses processos de mudanças que, na transmissão oral do conto, são apagados, sem que as pessoas envolvidas no processo de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 629 transmissão das histórias tenham conhecimento das metamorfoses sofridas por esses.. Em toda a literatura popular a questão da autoria constitui um problema importante, já que é intimamente ligada ao analfabetismo da maioria dos autores dos versos. Assim, Diégues Jr (1986) confirma que “O analfabeto, como é a maioria dos poetas populares, inventa ou repete o que ouve, não registra, guarda na memória; o alfabetizado, às vezes nem mesmo sendo poeta, registra o que ouvi, e pode divulgar como próprio” (p.48). A figura do cantador, portanto, torna-se relativamente ambígua, a partir do momento em que se tem a dúvida sobre a autoria das poesias que recita. Cascudo (1984) também ressalta o fato de que o ouvinte da poesia oral não se prende ao nome do autor, mesmo que esse tenha sido exposto ao seu público: “O desnorteante é que ninguém guarda o nome do autor. Só o enredo, interesse, assunto, ação, enfim, a gesta...” (p.28). Sobre o momento em que o narrador, ou cantador, se dirige a seu ouvinte, Paul Zumthor (1993) classifica-o como o ato da performance. A performance, para o autor, distingue-se do possível anonimato das poesias orais pelo fato de aquela nunca ser anônima; sempre carregada das marcas de quem a realiza, ela também corresponde a um maciço resgate da memória. A performance seria então o processo completo da declamação das poesias: ela evoca a importância da ação, dos atores, dos meios e das circunstâncias, do tempo, dos objetivos. Zumthor classifica o narrador como intérprete e, da mesma forma que cantador nordestino ativa sua bagagem de memórias populares para encarnar o seu personagem narrador, esse transforma, recria e ajusta a coleção de lembranças folclóricas de uma comunidade. A qualidade da performance está vinculada à completa interação entre intérprete, texto e ouvinte. Zumthor afirma que “O intérprete é o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo que ele diz ou canta” (1997, p. 225). O autor ainda ressalta que a predisposição do público é essencial para que haja sucesso no papel desempenhado pelo executante da poesia: “a forma de atividade do intérprete, durante a performance, varia segundo o número daqueles que o assistem ou partilham de seu papel [...]” (1997, p. 234). Durante a performance, o intérprete é o indivíduo do qual se tornam nítidos a voz e os gestos. A tradição entoada nos versos existe tanto na memória do intérprete quanto na do grupo ao qual ele se refere, o que garante a revisitação mútua da tradição. Com grande similaridade ao que Zumthor chama de performance, Benjamin (1994) coloca que: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 630 A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) (p. 220) A narrativa, ainda como é exposto pelo autor alemão, é uma forma artesanal de comunicação e, mergulhando o que é contado na vida de quem realiza o processo de narrar, “se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (p.205). Benjamin (1994), ao citar o poeta francês Paul Valéry, afirma que o narrador é aquele que, na prática da narrativa, sabe coordenar a alma, o olhar e a mão, como um típico artesão. Da mesma forma que o grande narrador de Benjamin “tem sempre suas raízes no povo” (1994, p. 214), aos poetas de cordel do Nordeste do país também são delegadas as funções de transmitir o que é entendido como próprio do povo, como as cantorias, as cantigas de roda, as orações, os poemas. A tradição não se estanca e nem perece por ainda existir indivíduos que se comprometem a disseminar essas manifestações populares e a ensinar esse “ofício” às gerações posteriores. Assim, mesmo que as experiências contemporâneas ainda continuem em baixa, enquanto houver possibilidades de se inventar histórias ou de resgatá-las de algum passado remoto ou não, existirão pessoas dispostos a fazê-lo. Seja no interior de algum país, seja em grandes capitais. III. Memória e sociedade Le Goff (2003), ao afirmar que a memória social ocupa todos os âmbitos da evolução humana durante o longo processo do desenvolvimento do homem, também evidencia que o indivíduo reencontra sua memória coletiva a partir dos documentos escritos do passado e os orais do presente. Para o autor, as sociedades que possuem a memória social oral ou as que estão em vias de construir a escrita são as que compreendem melhor a luta pela dominação da recordação, isto é, a retomada de temas de uma tradição e da manifestação da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 631 memória. Portanto, a memória coletiva se destaca por ser estritamente ligada a uma classe social, pois, se essa desaparecer, aquela também passa a ser inexistente. A mensagem poética que se integra à consciência cultural do grupo recorre, sempre, a sua oralidade. Esta só tem relevância em um determinado grupo sócio-cultural definido, pois nenhum discurso é neutro e tenderá, sempre, a assimilar as leis de um comportamento social. A poesia oral possui um aguçado instinto de conservação social, o qual permite que acontecimentos do passado sejam contados e direcionados para as gerações seguintes. Os valores culturais refletidos nos contos populares são produtos de tradições e as narrativas tornam-se constantemente atualizados, por representarem documentos do passado sendo relidos no presente. Paul Zumthor (1993), ao afirmar que “a voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver” (p.139), também ressalta o fato de que as tradições orais permeiam todos os discursos, independentemente da temporalidade desses. Portanto, pode-se dizer que a “voz poética é memória” pelo fato de também representar uma série de textos, ações e performances imbuídas no espírito de um grupo social. Como já foi dito anteriormente, o texto literário oral encontra-se raramente isolado, e sim sempre enxertado em discursos ou em situações sociais. Segundo Bernd (1995), a coletividade elabora a sua própria cultura e reforça ou questiona sua identidade e os apoios memoriais de um grupo que permitem que os textos literários que se encontrem somente no passado permaneçam vivos no presente. No texto “O narrador”, de Walter Benjamin, anteriormente exposto no presente trabalho, é notável que o autor privilegia a memória visto que essa depende da capacidade de narrar e é associada, completamente à oralidade. Como acredita Halbwachs (2006), toda memória sempre é um produto social. As histórias reproduzidas nos folhetos de cordel são reflexos da atualização e da adaptação que essas narrativas sofrem ao passarem a ser difundidas no Brasil. A partir do momento em que são contadas em um determinado local, são naturalmente integradas a esse ambiente e, assim, adquirem características e circunstâncias peculiares dessa sociedade. Com relação à memória individual e às sociedades à que se referem, Halbwachs (2006) salienta que Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 632 Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o individuo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. (p.72) As culturas em que a oralidade ainda predomina sobre a escritura possuem a memória como único fator de coerência, a qual perde a sua importância social à medida que se aumenta o uso da escrita. A memória, além de ser o meio natural de conservação da poesia oral, é o fator essencial para a propagação dela. No ato da performance, ou seja, no momento em que se narra a poesia, a predisposição do público e o talento do cantador constituem a atitude coletiva de que a memória necessita para se tornar evidente nos textos recitados e lidos. Sobre a imprescindibilidade da tradição para a compreensão dos textos orais, Scholes e Kellogg (1977) ressaltam que “qualquer texto ou representação oral isolada é, ao mesmo tempo, criado e restrito pela ‘gramática’ de sua tradição e refletirá somente uma seleção das infinitas possibilidades que são a própria tradição” (p.27). Na literatura de cordel, a atualização dos romances tradicionais ocorre naturalmente. Com o passar dos anos e com a mudança de geração de cantadores, os poemas também são influenciados pelas características do novo ambiente e, claro, dos poetas que o interpretam. Contudo, as modificações proporcionadas por diversos fatores não altera a carga memorial que cada poema traduz, representando, ainda, o retrato das circunstâncias nas quais foi produzido. Diégues Jr (1986) afirma que “se a memória popular vai conservando e transmitindo velhas narrativas e acontecimentos recentes, esta transmissão está sempre marcada pelo espírito desta sociedade” (p.173). O autor também conclui seu ponto de vista afirmando que Se os fatos tradicionais permitiam que a memória oral os conservasse e os fosse transmitindo, geração a geração, os fatos acontecidos ofereciam a oportunidade para a sua fixação nessa mesma memória; uns e outros se incorporavam à história oral da sociedade, passando a assinalar momentos de vivência ou épocas por ela vividas. Daí porque muitas vezes a própria narrativa tradicional se atualizava, incorporando não apenas expressões novas, criadas em cada época, senão ainda elementos expressivos da própria sociedade, em sua cultura material ou mesmo em suas formas ou concepções criadas espiritualmente. (p.173) Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 633 Assim, para a conclusão do seguinte trabalho, pode-se reafirmar que a literatura oral se mantém forte e viva e filiada às suas tradições, apesar das transformações naturalmente sofridas pelo tempo e por outros fatores, resgatando os apoios memoriais da sociedade a que estão relacionados. Os narradores, intérpretes ou cantadores dessas poesias, com a ajuda do seu público, assumem a função e a responsabilidade de perpetuarem esses textos e transformá-los em obra peculiar de sua própria tradição, independentemente das influências, estrangeiras ou não, que permeiam os poemas. Bibliografia BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre Nikolai Leskov. In: ____. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e História da Cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERND, Zilá; MIGOZZI, Jacques (orgs.). Fronteiras do literário: literatura oral e popular – Brasil e França. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1995. MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. Para uma leitura sociológica da literatura de cordel. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. VIII, nº 1 e 2, p. 7 – 87,1977. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. Rio Grande do Sul: Ed. Unisinos, 2003. CASCUDO, Luís da Câmara. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 634 LUYTEN, Joseph M. A notícia na literatura de cordel. São Paulo: Estação Liberdade, 1992. PROENÇA, Ivan Cavalcante. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Ed. Imago; Brasília: Ed. INL, 1979. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. Tradução de Vicente Ataide. São Paulo: Mc Graw-Hill do Brasil, 1977. SUASSUNA, Ariano. A arte popular no Brasil. In: ____. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “Literatura” Medieval. Tradução de Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 635 A COITA QUE SE CONTA/CANTA (VOZES DA AUSÊNCIA) Renata Farias de Felippe88 (Profa. Dra.-UFSM) Em Fragmentos de um discurso amoroso, Rolando Barthes trata sobre o discurso da ausência problemática que, segundo o crítico, envolve as diferenças entre os gêneros: Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o Homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos-de-saia). É a mulher que dá forma à ausência, elabora-lhe a ficção, pois tem tempo para isso; ela tece e ela canta; as Fiandeiras, as Canções de fiar dizem ao mesmo tempo a imobilidade (pelo ron ron da Roca) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem, vagas marinhas, cavalgadas) (BARTHES, 2003, p.36). Se em uma primeira leitura, a abordagem barthesiana relativa aos gêneros pode soar parcial ou ingênua, o uso da letra maiúscula, que torna Mulher e Homem substantivos próprios, remete a uma tipificação, a uma espécie de padronização referente aos paradigmas arcaicos e fundadores da concepção dos gêneros. Tal essencialização volta-se ao arcaico, ao simbólico e não às práticas e às relações sociais contemporâneas. Ao atribuir o discurso da ausência à feminilidade simbólica, porém, Roland Barthes não retira do gênero masculino a voz que brada o vazio amoroso: Segue-se que, em todo homem que diz a ausência do outro, o feminino se declara: este homem que espera e sofre com isso é miraculosamente feminizado. Um homem não é feminizado porque é invertido, mas porque está enamorado. (Mito e utopia: a origem pertenceu e o futuro pertencerá aos sujeitos em quem o feminino está presente) (ibidem). Nesse sentido, o feminino não seria uma condição, mas uma passagem, independente do gênero do enunciador. Se adotar o discurso da ausência é “feminizar-se”, a Mulher é a personagem que permite a expressão da perda, da desvantagem, do desejo de completude. 88 renatfelippe@yahoo.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 636 As ideias barthesianas nos parecem oportunas para tratarmos a relação entre o discurso da ausência e a tradição literária (especialmente a oral), elo que tem no Trovadorismo o seu momento de irrupção89. Tal poesia, organizada em torno do sentimento de vazio amoroso, inaugura uma nova concepção de amor, que é mais sentimental e movida pela ânsia de reciprocidade. Segundo Lígia Cademartori, ainda que a lírica medieval não tenha iniciado a temática amorosa, com a poesia cavalheiresca, “inicia-se o culto consciente do amor, o destaque à sua importância, a crença de que o sentimento amoroso seja fonte de bondade e beleza” (CADEMARTORI, 2002, p.11). Esse culto consciente, que torna o sujeito amoroso alvo de devoção - ideal retomado pelos românticos - revela uma postura que contraria o teocentrismo predominante na Idade Média, ao mesmo tempo em que reproduz o servilismo social (entre senhor e servo) no âmbito da poesia amorosa. Atormentado diante da indiferença da Senhora, mulher de classe social superior e, frequentemente, casada. na lírica cortês medieval o sujeito poético canta/conta a sua dor. Ao contar a sua desvantagem, o eu lírico masculino é subjugado pela amada, o que representa uma inversão, se considerarmos as relações entre os gêneros na época. Tratar sobre as cantigas medievais envolve, necessariamente, a referência ao trovadorismo provençal, modelo preponderante em toda a Europa, exceto na Península Ibérica, onde predominou o trovadorismo galego. Aliado à herança árabe e moçárabe, o trovadorismo português deu origem às cantigas de amigo, manifestações cuja origem popular remete às carjas, cantos anônimos entoados por mulheres de origem mourisca (SEIXAS, 2000, p.20). As cantigas de amigo, porém, apresentam peculiaridades: nelas, o trovador 89 A aproximação entre Roland Barthes e a tradição poética medieval tem o texto de Nicole Loraux, “O elogio do anacronismo”, como um norte. Segundo a historiadora, a prática controlada do anacronismo seria uma maneira de refletir sobre a presença de elementos do passado no presente, bem como um modo de interrogar o pretérito com questões atuais não exatamente para julgá-lo, mas no intuito de perceber a não-novidade de determinadas inquietações contemporâneas. De acordo com Loraux: Nem tudo é possível absolutamente quando se aplicam ao passado questões do presente, mas se pode pelo menos experimentar tudo, com a condição de estar a todo momento consciente do ângulo de ataque e do objeto visado. A verdade é que, ao trabalhar no regime de anacronismo, há ainda mais a tirar da caminhada que consiste em voltar para o presente, com o lastro de problemas antigos [grifos meus] (LORAUX, In: NOVAES [org],1992, p.64). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 637 assume um sujeito poético feminino e popular que conta/canta às amigas, à natureza ou a si mesma a dor resultante da ausência do amado. Segundo Cid Seixas, ao adotar o gênero feminino o trovador cria uma personagem, o que faz dessas cantigas manifestações, simultaneamente, poéticas e ficcionais. De acordo com Seixas, ao reconhecer a ficcionalidade do eu poético, a velha cantiga de amigo já realiza aquilo que é frequentemente atribuído à modernidade: a despersonalização (SEIXAS, 2000, p.92). A utilização do artifício poético contraria a “sinceridade” de sentimento almejada pela lírica galaico-portuguesa de influência provençal. Se as cantigas de amor colocam a poesia e a ficção em campos separados, as cantigas de amigo aliam ambas as expressões. Nesse sentido, de acordo com Seixas, as cantigas de amigo introduzem na literatura portuguesa uma problemática que viria a ser, provocadoramente, retomada por Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor. Se muitos séculos foram precisos para que entendêssemos que “fingir é conhecer-se” (cf. ibidem, p.25), as cantigas de amigo são as manifestações que introduzem na literatura portuguesa o processo de despersonalização literária. Discursivamente, o “travestimento” poético tem um efeito significativo sobre as cantigas de amigo, que soam mais espontâneas, melancólicas e, frequentemente, mais ousadas quanto à expressão do sentimento amoroso 90, quando comparadas às cantigas de amor. 90 A cantiga “Baylia das avelaneyras”, de Ayras Nunes de Sant’Iago, é frequentemente retomada como exemplo de manifestação que alia a espontaneidade das jovens amantes à sensualidade. Segundo Cid Seixas: Observa-se a sugestão amorosa contida na frase “mentr’al nõ fazemos” (enquanto outra coisa não fazemos). A dança, sob as avelaneiras, é então um pretexto ou uma preparação para o ato amoroso. Nesta estrofe final ficamos sabendo que as amigas marcaram um encontram amoroso sob os pés das avelãs e que dançam enquanto esperam seus namorados. Por outro lado, a tradição medieval ibérica registra festas amorosas com danças por entre flores, o que acentua a leitura erótica deste poema musical (SEIXAS, 2000, p.97). A “Cantiga mal maridada”, atribuída ao rei trovador D. Diniz é uma composição que vai mais além: nela, o sujeito poético feminino revela o adultério e, assim, “vinga-se” não só do marido como das convenções. Para maiores detalhes, consultar: SEIXAS, Cid. O trovadorismo galaico-português. Feira de Santana: UEFS, 2000. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 638 A mulher que fala nas cantigas de amigo vê o amor como bem supremo e epifania da vida, enquanto o sujeito das cantigas de amor cultiva a sublimação dos sentimentos humanos em ânsia incorpórea. Não podemos deixar de ver o confronto das duas culturas, de duas visões de mundo conflitantes, que compuseram o sistema cultural da Península Ibérica na Idade Média. De um lado, a sensualidade como essência da vida dos povos árabes, o culto do corpo e suas veredas sinuosas; do outro, a abstinência como caminho à ascese cristã, a identificação do corpo como lugar dos vícios (ibidem, p.93). Se o sujeito poético das cantigas de amigo tem no gênero feminino uma suposta barreira à livre expressão afetiva, por outro lado, o fato de o amado ser também uma figura popular elimina dessa expressão a submissão social. A adoção do gênero feminino, portanto, nas cantigas de amigo, permite ao trovador uma libertação expressiva, uma abertura à espontaneidade afetiva da qual as mulheres da época não dispunham. As carjas, das quais as referidas cantigas descendem, diferentemente, eram compostas e entoadas pelas próprias mulheres. No que diz respeito à liberdade de expressão feminina, as cantigas de amigo, portanto, representam um retrocesso diante das carjas, cerceamento evidentemente motivado pela concepção cristã. Desse modo, as cantigas se destacam não apenas por fundarem uma concepção amorosa peculiar, mas por fazê-lo a partir da articulação de tradições populares ancestrais, o que nos lembra, incessantemente, que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2006, p. 26). Gênero fundador, ainda que influenciado por referenciais ainda mais remotos, as cantigas de amigo inauguram um novo modo de contar o amor e a perda. Tais manifestações permitem a abertura do sujeito poético para uma nova sensibilidade, “feminina”, como revela Roland Barthes. A liberdade discursiva propiciada pela adoção do gênero feminino, porém, só se realiza ficcionalmente e não a serviço das mulheres. A coincidência entre o gênero do discurso e o da identidade da autora, como é sabido, só será realizada e popularizada no século XX. Falar como mulher e pela mulher: artifício que permite maior liberdade estética e expressiva ao cantador, mas prática não empenhada em romper com o silenciamento real do gênero feminino. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 639 As cantigas de amigo como textualidades fundadoras de discursividade 91 – originam o discurso da ausência que, como vimos, é feminino – baseiam-se em uma apropriação, que tem uma feminilidade presumida como medida. Nesse sentido, os textos que formulam uma suposta sensibilidade feminina parecem desconfortáveis quando tomados como referenciais para textos de autoria feminina. No presente trabalho não pretendemos “reparar” ou denunciar silenciamentos históricos, mas refletir sobre a irrupção de uma tradição, por vezes imprevista, no interior de textualidades contemporâneas nas quais o gênero do discurso e o da enunciadora coincidem. Se as cantigas de amigo são lembradas como manifestações que estão na origem de uma discursividade feminina - ainda que as mesmas se utilizem de um processo de ficcionalização e despersonalização -, não podemos ignorar, no entanto, que tais cantigas foram construídas por trovadores que, por sua vez, se apropriaram das vozes ancestrais e populares de mulheres anônimas. Nesta confluência de empréstimos, nos primórdios deste verbo, estavam as carjas, manifestações compostas e entoadas por mulheres, rejeitadas pelos códices por questões que envolvem não apenas a problemática do gênero como a de classe, tendo em vista o caráter popular de tais cantos. A ausência amorosa, como temática, movimenta uma tradição que transcende a natureza do relato (oral ou escrito) e, no âmbito da expressão, faz daquele que conta/canta o vazio um sujeito discursivo feminino. Na tradição literária portuguesa, as vozes da ausência originaram textualidades que, mesmo distanciadas no tempo, se aproximam estilisticamente: das famigeradas Cartas portuguesas, atribuídas a Mariana Alcoforado, à poesia de Florbela Espanca; das cantigas de amigo aos fados, o vazio, com sotaque lusitano, se faz ouvir e notar. A inquietação que move o presente trabalho é a irrupção de uma voz que, mesmo distanciada culturalmente da tradição portuguesa, desta se aproxima. A canção “Honey, Honey”, da cantora e compositora canadense Feist, parte do álbum, não casualmente, intitulado The Reminder (2007), está muito próxima das canções de amigo não só do ponto de vista formal, mas por aliar a simplicidade e a espontaneidade de sentimento a um requintado processo de tessitura poética. Na primeira estrofe da composição, o sujeito poético feminino, à maneira das cantigas de amigo, pede à natureza, metonimicamente representada pelo mel armazenado no 91 Os textos fundadores de discursividade, segundo M. Foucault, são aqueles que produzem a “possibilidade e a regra de formação de outros textos” (FOUCAULT, 1992, p.58). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 640 alto das árvores, que guie o amado e os seus companheiros ao mar pelo leste. A palavra honey, que em inglês significa tanto “mel” quanto “querido (a)”, na canção, é utilizada ora em um sentido, ora em outro. Em ambas as utilizações, porém, o termo remete ao afeto que o eu lírico dedica ao seu objeto amoroso, bem como indica a intimidade entre os amantes. Nos primeiros versos, o termo é utilizado em seu sentido primeiro: Honey honey up in the trees/ fields of flowers deep in his dreams/ lead them out to sea by the east/ honey honey food for bees92. Na estrofe seguinte, o termo adquire outra conotação: Honey honey, out on the sea/ in the doldrums thinking of me/ me I'm driving thinking of he/ honey honey, not next to me93. O eu lírico feminino imagina o seu amado mar afora, entediado, pensando nela, enquanto a própria lamenta a sua ausência e a sua distância. Palavra geralmente utilizada como substantivo ou como adjetivo, a letra da canção abre à possibilidade de entendermos o termo “querido” como um vocativo, como uma interpelação, o que acentuaria a carência afetiva e a solidão do sujeito poético, voltado para um interlocutor imaginário ou, simplesmente, ausente. A inquietação e o sofrimento se acentuam na estrofe seguinte, quando o sujeito questiona: Even if he wanted to/ Even if he wanted to/ Do you think he’d come back?/ would he come back?94 Nos versos citados, não fica claro se o eu lírico se dirige a algum elemento da natureza (como o fez na primeira estrofe, ao se dirigir ao mel armazenado no alto das árvores), se trava um questionamento consigo mesma ou se se dirige ao ouvinte presumido. Independentemente do interlocutor, a impossibilidade de o sujeito poético obter uma resposta às suas aflições nos leva a encarar as perguntas como questionamentos internos. Ao tratar sobre as cantigas de amigo, Cid Seixas revela que “o diálogo da apaixonada com os elementos 92 “Mel, mel nas árvores/ campos de flores no fundo dos seus sonhos/ leve-os para o mar pelo leste/ mel, mel comida para abelhas”. 93 “Querido, querido no mar afora/ no marasmo pensando em mim/ eu em terra firme pensando nele/ querido, querido não está perto de mim”. 94 “Mesmo se ele quisesse/ mesmo se ele quisesse/ Você acha que ele voltaria? Ele voltaria? Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 641 da natureza [...] pode representar o diálogo interior da pessoa consigo, estratégia discursiva utilizada pelos trovadores para compor o quadro ingênuo da rapariga simples” (cf. SEIXAS, op.cit. p.100). Sendo esta análise movida pelo intuito de aproximar as vozes da ausência, o questionamento interior pode ser visto como mais um elemento que aproxima a canção de Feist das cantigas. O verso seguinte (“Oh, no”), repetido na música à exaustão, reiteram, uma vez mais, a inquietude e o sofrimento do eu poético. Na estrofe final, no entanto, o sujeito contemporâneo sai à procura do amado, distanciando-se do eu poético ancestral que nas cantigas de amigo dava voz à espera e à impotência: Honey, honey out on the sea/ in the doldrums waiting for me/ me in my boat searching for he/ honey, honey food for bees95. Ainda impotente - já que a amante não obtém respostas às suas perguntas e tampouco encontra o amado - , ao contrário dos sujeitos femininos das cantigas, na canção a portadora da voz transforma a coita na força que move a sua busca. Mesmo que entendamos a procura como um processo imaginário, nas cantigas originais o exercício ou mesmo a expressão da iniciativa são representações ausentes ou, no mínimo, infrequentes. O verso que encerra a canção é impregnado de ternura, de melancolia e de uma inquietante ambiguidade: o mel é a comida das abelhas ou o querido seria o alimento? No caso de, como leitores/ouvintes, aceitarmos a última possibilidade de leitura, o amado é o alimento para as abelhas por ser doce/dócil ou por estar morto? Aqui entramos no jogo de um eu lírico/personagem hábil a ponto de envolver o seu leitor (ou o seu ouvinte) na teia de suas próprias angústias. A canção “Honey, honey”, ao contar/cantar a coita amorosa, anima vozes ancestrais esquecidas que soam particularmente estranhas à cultura canadense. Se, no momento, não nos parece possível mapear influências diretas, é fato que a lírica medieval inaugura uma expressão peculiar do sentimento amoroso que é mais lamentosa e mais próxima aos afetos do cantador. No caso do trovadorismo ibérico, as cantigas de amigo, de origem popular, vão mais além: inauguram a expressão íntima de sentimento através de um 95 “Querido, querido mar afora/ no marasmo pensando em mim/ eu no meu barco procurando por ele/ mel, mel comida para abelhas” Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 642 processo de despersonalização que envolve questões de gênero e de classe. A expressão da ausência, nessas cantigas, é permeada por uma espontaneidade forjada, que estaria mais de acordo com a expressão de um sujeito feminino. Já a composição em análise – que, como vimos, apresenta inquietantes semelhanças com a tradição poética medieval ibérica e popular – também é movida por um processo de despersonalização não propriamente relativo ao gênero, mas por trazer à tona uma posição discursiva arcaica e impotente. Nesse sentido, “Honey, honey” pode ser encarada como uma ruína, amparada sobre os escombros de uma tradição inusitada. Ao tratar a impotência e a inquietação da amante em um período no qual as mulheres gozam de liberdade expressiva e afetiva, a composição soa anacrônica e é esse anacronismo um dos elementos responsáveis pelo envolvimento emocional do leitor/ouvinte. Bibliografia BATHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. LORAUX, Nicole. O elogio do anacronismo. In: NOVAES, Adauto (org). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, SEIXAS, Cid. O trovadorismo galaico-português. Feira de Santana: UEFS, 2000. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 643 MEMÓRIA E TESTEMUNHO: A MALDIÇÃO DE TER VIVIDO EM “DAMA DA NOITE”, DE CAIO FERNANDO ABREU Ricardo Augusto de Lima96 (G-UEL) O narrador, ao atualizar o arquétipo, desempenha uma tripla função na cultura oral: narra, é o performer sensível ao auditório, já que incorpora a voz da comunidade; ouve, troca experiências com outros narradores e absorve as histórias que lhe contam; e cria, torna-se o responsável por constituir um sentido para o que ouviu, bem como por atualizar isso com significantes e significados diferenciados. (FERNANDES, 2003, p. 34). Narra, ouve e cria. Essas três estâncias que garantem ao narrador oral o estatuto de narrador podem ser notadas de várias maneiras. A literatura mais recente carrega consigo um tom memorialista que, mesmo estando sempre presente na literatura, se faz mais presente, ou mais explícita, a partir do século XX. Não podemos ignorar a presença de certas autobiografias, como a primeira desse gênero, de Agostinho de Hipona, ou a primeira sob os moldes que chamarei talvez cedo demais de modernos, ou seja, a de Rousseau. No entanto, não me prendo a esse tipo de narrativa, e sim àquela que possui tom confessional, ainda que construída dentro de uma obra nitidamente ficcional. Diferentemente da autobiografia, tais textos não assumirão o pacto de verdade do qual fala Philippe Lejeune. Esse pacto de verdade surge quando o autor deixa claro sua intenção: conta sua história. Desta forma, fica explícita sua intenção de criar ali uma sequência de fatos que podem ser tomados como referenciais, isto é, verídicos. Tal intenção fica clara na identidade do autor, narrador e personagem. Quando essas três figuras são declaradamente a mesma pessoa, temos uma autobiografia. 97 Logo, não podem ser chamados de autobiográficos, mesmo que certos traços históricos ou até mesmo pessoais do autor empírico sejam notados, misturados aos fatos fictícios. A esses textos, cuja memória muitas vezes se fará presente, chamarei autoficção. Com isso, pode-se dizer que a ficção contemporânea traz consigo uma marca autobiográfica de seus autores que, mesmo se inscrevendo em realidades paralelas à dimensão 96 ricardodalai@gmail.com P. Lejeune aborda outros fatores que não nos interessam com intensidade aqui, como a narrativa ser em prosa, por exemplo. O que queremos enfatizar aqui é a figura do autor e do narrador e/ou personagem, uma vez que a autoficção terá neles sua base teórica. 97 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 644 real, ainda remontam certa proximidade com suas personalidades iniciais, que, se bem observado, não é de se estranhar em uma literatura que por si só é polifônica. Em se tratando de Brasil, Silviano Santiago escreve que predomina na prosa dos anos 1970 a chamada “prosa com nítida configuração autobiográfica” (1989, p. 32). Nesse contexto, o nome de Caio Fernando Abreu aparece por ter uma obra transgressora no “pacto ficcional”, visto que incorpora elementos que pedem a leitura conjugada de um paratexto, ou, ainda, elementos que pedem outra leitura, não só ficcional, mas também referencial. Tal modo de escritura cabe naqueles laços que Lejeune chamou de “pactos indiretos”, isto é, há breves, e muitas vezes implícitas, indicações no texto que nos revela a pessoa do autor, que ressuscita no mesmo. Philippe Lejeune (2008, p.42) ainda ousa afirmar que tais textos são “homenagens que o romance rende à autobiografia”. Desta forma, algumas obras de Caio Fernando Abreu se inscrevem entre dois gêneros, ficção e autobiografia, incapazes de serem um ou outro. Seu tom intimista, o mesmo que encontramos em Clarice Lispector e Lúcio Cardoso, por exemplo, impede que seja feita uma leitura excludente de um desses dois fatores. Assim, para se verificar a oralidade incluída como ferramenta de autenticação do testemunho dado através da memória, abordaremos o conto “Dama da noite”, do livro Os dragões não conhecem o paraíso, de 1988. Tal livro foi chamado por Caio Fernando Abreu, como seu livro mais autobiográfico, mesmo que esse rótulo fosse, sempre, rejeitado pelo autor. Os treze contos giram em torno de um único tema: o Amor, em todas as suas faces. Amor-morte, amor-dor, amor-solidão. Talvez por isso o livro seja tão “autobiográfico”: Caio Fernando sempre foi um amante. Primeira, pela literatura. Depois, uma vez descoberta sua sexualidade, por várias pessoas. Tais amores, por sua vez, sempre traziam tristeza, fracasso, não realização, levando o escritor a escrever. Sua literatura é, portanto, altamente confessional, embora ficcional. Discordando do próprio autor em chamar seu livro de 1988 de autobiográfico, preferimos chamá-lo de autoficcional, concordando com Philippe Lejeune em uma leitura ficcional de textos que partem de fatos empíricos, como se verá adiante. Não se pode ignorar o fato de que toda memória escrita se torna ficção, e que, possivelmente, todo romance é uma espécie de desejo de ser sincero, por menor que seja esse desejo. A oralidade faz com que a memória da personagem Dama da noite não seja simplesmente escrita, mas falada, qual depoimento. Aliás, é a oralidade que dá ao conto seu Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 645 tom memorialista. A enunciadora obtém pela escrita e pela fala as três estâncias citadas a partir da abordagem de Frederico Fernandes: narra, ouve e cria. A narração provém do fato de ouvir (somado aos outros sentidos de ver e sentir). Logo, teremos a experiência como forçamotriz dessa narração. O criar fica por conta da escrita: cria-se uma ficção por meio da palavra, eterniza-se a voz. Vejamos: Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. (ABREU, 1988, p. 91) Esse começo não nos revela nada de novo em tons narrativos. Uma pessoa identificada como mulher apenas pelo adjetivo no feminino (parada, sentada) em um bar. Como muitos contos do autor, a narrativa já “começa-começada”, na metade da ação. Não se sabe como ou quando a Dama da noite chegou àquele bar. Tampouco se sabe como seu interlocutor, o “boy”, chegou lá. Porém, mais adiante, a oralidade se fará notar no tom de conversação. [...] Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota – tá me entendendo, garotão? Nada, você não entende nada. Dama da noite. Todos me chamam e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não suporto: luz, também nunca tenho nada pra fazer – o quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, adianta insistir. Mutreta, trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy. (ABREU, 1988, p. 91). A partir de traços orais da linguagem (sei lá, tá me entendendo, o quê?) nota-se que se trata não de uma narrativa apenas escrita, mas de uma narrativa transcrita. A mulher, que fala “sozinha”, sugerindo ao leitor-interlocutor as perguntas feitas e dando as devidas respostas, começa a pensar a vida, chamada por ela de roda. A imagem da roda da fortuna, muitas vezes associada à vida, se faz presente. A roda aqui, entendida como espécie de engrenagem social e, também, símbolo de sorte, ou seja, de destino, controla e modela a vida Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 646 das pessoas, deixando-as tontas. Todo o conto vai girar em torno da roda, mostrando quão desesperançosa é aquela geração da qual faz parte a Dama da Noite, que muito já viveu, que muito já viu, que muito já ouviu e que muito já narrou. Interessante notar que a personagem, que ao longo do conto vai descrever uma cidade parecida com São Paulo, lança a expressão bá, característica do Sul do país. Não podemos, aqui, em uma leitura pelo viés autoficcional e oral, ignorar o fato de Caio Fernando Abreu ter saído do Rio Grande do Sul, quase fronteira com a Argentina, da cidade de Santiago do Boqueirão, e ter ido morar em São Paulo (experiência esta, diga-se de passagem, negativa no ponto de vista pessoal – ao contrário se diz do profissional). Logo, temos uma identificação oral da narradora (ficcional) com o autor (real). Para essa afirmação, ignoramos a diferenciação feita por Chartier entre autor e escritor englobando um único termo (autor) para representar tanto o nome que assina quanto o autor empírico. Trata-se do monólogo de uma personagem que se autonomeia “Dama da noite”, alusão à planta de mesmo nome de intenso odor, por vezes irritante. O interlocutor é um rapaz, o “boy”. Entretanto, em certos trechos, é irresistível não imaginar que a Dama fala com o próprio leitor, devido à proximidade de situações que ela coloca. Ora, o conto, já dito, parte do livro Os dragões não conhecem o paraíso, trata do amor, nas suas mais variadas formas. O amor, e podemos dizer isso tendo em mente toda a obra caiofernandiana, aproxima autor e leitor, mundo e obra. Daí nosso interesse em abordar a oralidade da Dama da noite como premissa de uma autoficcionalidade, não apenas afirmando ser um conto autoficcional, visto que aborda o contexto como pano de fundo para sua formação, mas também porque, a priori, o “boy” é qualquer um que lê, que ouve, que é sujeito passivo do monólogo da Dama da noite, inclusive, e primeiramente, o próprio autor. Não será exagero afirmar que esse “boy” com quem a Dama fala é metonímia de toda uma geração sem grandes esperanças, cuja juventude/maturidade se dá na década de 1980. Isso fica explícito quando a Dama se irrita e fala: Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar, sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 647 mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente (ABREU, 1988, p. 94). Aqui se apresenta claramente essa geração chamada por Haroldo de Campos de pós-utópica: uma geração cuja poesia (arte) é destituída de esperança, ou ainda, possui uma “esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente” (CAMPOS, 1997, p. 265). Todo texto é marcado por essa falta de esperança na “roda”, evocando a crise, o fracasso, uma vida que já é por si só niilista. Ela, por sua vez, se acredita como uma espécie de griot, porque “tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha.” Sua vivência, mais do que sua idade, a faz merecedora do título de narradora. Sua capacidade de narrar provém de suas experiências, princípio este comungado por Caio Fernando Abreu, ao afirmar que "a melhor maneira que tinha de melhorar [sua] literatura era [vivendo] o máximo de experiências possível." (ABREU, 1994). Além disso, a geração desse “boy” se formou após o período de boom da AIDS, onde até mesmo a sexualidade, conquista maior do homem pós-moderno, foi privada. A oralidade na qual a escrita se constrói, cria, a partir da voz da Dama da noite, a identidade desse sujeito-interlocutor que não nos é dado conhecer. Porém, a mesma oralidade cria a figura do “boy” e, mais, cria as ações entre os dois personagens: Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito que eu be m entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de queixo furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus, não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um carinha que. Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo bem. Levanta não, te pago outra vodca, quer? (ABREU, 1988, p. 92). Essa sexualidade conhecida da Dama da noite está face a face com o perigo iminente da morte na metáfora da AIDS. Ela própria se faz, a partir da sua contação de histórias, testemunha dessa crise sexual. E mais: ela se faz participante dessa crise. O Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 648 sentimento que ela experimenta é um sentimento amargo, de amor não realizado, de fuga inexistente. Ela viu muita coisa, e seus olhos refletem essa vivência. Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar AIDS. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. (ABREU, 1988, p. 94-5). “Vírus do amor”. Assim chegamos ao centro de toda a narração oral-escrita dessa mulher madura: o amor se faz nela a metáfora do total fracasso que a vida moderna se tornou. A vida contemporânea nos oferece meios para se aliviar as frustrações amorosas (prostituição fácil, internet, sexo virtual, pornografia, enfim). Entretanto, os laços afetivos estão cada vez mais frágeis e fúteis, condicionados aos amores líquidos, apontados por Bauman (1998). O sexo virtual, por exemplo, é alívio e fuga de uma sexualidade reprimida (a) pela AIDS e (b) pela efemeridade dos laços afetivos. Porém, a “sede” continua. Essa fuga-sede é uma espécie de “antropofagia sentimental”: come-se o outro a fim de nutrir-se a si mesmo, não mais para oferecer algo. Esse ato de comer se compara às comidas rápidas da modernidade: sua comida em menos de cinco minutos. Passadas algumas horas, sente-se fome novamente. Com o perdão da ambiguidade e da possível comparação chula, o amor se apresenta da mesma forma: sente-se fome, come-se o fast food e a fome, que inicialmente aparenta estar saciada, surge minutos depois. Da mesma forma que o “boy” sabe disso porque “vê pela tevê”, a narrativa indica que a Dama da noite sabe disso porque viu pela vida, senão vivendo. Assim, ela testemunha sua provável fatalidade: Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 649 para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. (ABREU, 1988, p. 95). Ela se torna, também, metáfora da própria AIDS, já metáfora da morte. A sua contação, então, ao invés de trazer a cultura da vida, como entre griots africanas ou pajés indígenas, traz a cultura da morte, a fatalidade do mundo, a doença do sexo e do amor. Dito isso, podemos crer que a utilização da oralidade explícita no texto deseja, estilisticamente, causar o impacto que a Dama da noite quer causar no “boy”: sendo testemunha daquilo que conta, ela se torna merecedora de crença. Não está contando os fatos pelas vozes do outro, do narrador onisciente ou do narrador onipotente. Renuncia a isso, pois, se pudesse, acabaria com essa morte completa. Como pessoa, ela não tem esse poder. Seu único “poder” é “contaminar teu sangue com todos os vírus”. Se fosse onipotente, salvaria, e não mataria. A geração da qual “boy” faz parte se formou durante o período mais cruel da AIDS, modificando todo o processo social normativo. A sociedade de consumo se fortalece, o individualismo, enfim, se consolida e o hedonismo conduz a experiências cada vez mais individuais, fazendo com que o privado se torne público, fato que encontramos nos contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, também de Caio F. Isso faz com que a Dama da noite afirme que: “Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos.” (p. 95). Assim, uma geração que “não viu nada”, “nem viu o amor”, não pode ficar a mercê dessa sociedade. Por isso, a longa fala solitária da Dama da noite (e talvez nem tanto solitária devido às inúmeras referências às perguntas feitas pelo interlocutor, ou, ainda, perguntas que provavelmente ele faria) precisa ser fortalecida pelo estatuto de vivência, experiência, de ser fato empírico, e não mais uma notícia de jornal ouvida ou um filme assistido. Ou, ainda, para os mais cultos, que ouvem falar de um vírus e vão pesquisar: “Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei.” (p. 94) Dama da noite é a típica figura assombrada pela paranoia da AIDS que precisa “preparar” uma nova geração, Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 650 a fim de que não sofram como ela sofreu. Ela sabe, como o autor sabia: “amor mata amor mata amor mata”. (p. 95). Interessante ressaltar que a cultura transmitida oralmente pela Dama da noite é, assim como que em sociedades tribais, africanas e indígenas, uma cultura social: a de um grupo, de uma geração. A homossexualidade sempre existiu, assim como o sexo. Porém, só no século XX é que começa a existir uma cultura sexual e, consequentemente, uma cultura homossexual, que irão, por sua vez, gerar um modo de vida. Esse modo de vida, inquietante para Foucault, é o criador de uma teia social. A Dama da noite se prende a esse modo de vida (homo/a) sexual, pois Das muitas tendências, inclinações e propensões naturais dos seres humanos, o desejo sexual foi e continua sendo a mais óbvia, indubitável e incontestavelmente social. Ele se estende na direção de outro ser humano, exige sua presença e se esforça para transformá-lo em união. Ele anseia por convívio. Torna qualquer ser humano – ainda que realizado e, sob todos os outros aspectos, auto-suficiente – incompleto e insatisfeito, a menos que esteja unido a um outro (BAUMAN, 2004, p.55). Mesmo tendo o sexo se tornado algo episódico, a busca pelo Outro permanece implacável e, pode-se dizer, cruel. Nessa voz, marcada pela oralidade de um sujeito que não quer, mas fala sozinho, encontramos, por sua vez, a voz do autor. Ignorando preceitos barthianos e foucaultianos sobre a morte do autor, podemos aplicar paralelamente à estética da oralidade, a estética autoficcional, uma vez que a Dama da noite relata vivências de alguém, isto é, um autor empírico. Essa identificação de sexo como amor ocorre frequentemente em textos do escritor gaúcho. Vejamos: a Dama da noite percorre bares a procura de um porto, um “verdadeiro amor”. Errata: “O Verdadeiro Amor”. Não mais algo passageiro, não mais algo episódico, mas algo que seja, como o amor romântico, eterno. Esse amor, comumente relacionado ao sexo, é a grande procura também de Caio. “As personagens procuram no sexo a promessa do ‘grande amor’” (BESSA, 2002, p. 120). Já adentrando nos campos da autoficção, o próprio Caio Fernando confirma isso a Marcelo Bessa, na entrevista parte de seu livro Os perigosos: autobiografia e AIDS, afirmando que seus “personagens querem a fusão das duas coisas, sexo e amor” (BESSA, 2002, p. 120). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 651 Segundo Philippe Lejeune (2008), a autoficção será marcada pela presença do eu que deseja ser autobiográfico, com o texto permanecendo ficcional. Não podemos, por outro lado, assegurar que a voz da Dama da noite pertence ao autor Caio Fernando Abreu. Entretanto, podemos assegurar que a geração da qual Dama da noite faz parte é a mesma geração de Caio Fernando Abreu. Além disso, a Dama aborda duas das temáticas mais frequentes do escritor gaúcho: amor e morte (sob a metáfora da AIDS). Devido a essa característica, Caio Fernando é dito por muitos como símbolo literário da geração pósutópica, pois viveu a alegria de uma década de 1970, com todo seu fervor sexual e artístico, e a tristeza de uma década posterior, tomada mais fortemente pelo regime político e, principalmente, pelo advento da AIDS. Uma década de “anseios não realizados, nervos em frangalhos, amores frustrados, sofrimentos, medos, solidão, hipocrisia, egoísmo e compulsão à repetição” (BAUMAN, 2004, p. 66). Sobre essa influência do real na ficção, o também francês Dominique Maingueneau, em seu estudo O contexto da obra literária (2001), argumenta que a vida do autor quase que “precisa” influenciar sua obra, visto que somente os sentimentos não dão conta do peso da ficção. Esta, por sua vez, pode ser vista como uma realidade “mais ou menos disfarçada”. E ainda: Na realidade, a obra não está fora de seu “contexto” biográfico, não é o belo reflexo de eventos independentes dela. Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união. (MAINGUENEAU, 2001, p. 46). E para esse contexto biográfico que a obra é escrita: a Dama da noite quer não apenas narrar algo, mas dar testemunho de uma época corrompida pela doença, não só aquela física, mas também de uma doença social e geral que atinge o homem na sua busca de sempre: o amor. Isso nos leva a pensar nessa sede do Outro que não será saciada, visto já pela solidão medonha e profunda do homem “moderno”. Ao lado desse testemunho temos a voz silenciosa do “boy”, que responde calado as perguntas da Dama: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 652 Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns, você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy (ABREU, 1988, p.96). Dos vários exemplos que o conto apresenta, o trecho acima ilustra bem o que, nos dizeres de Maingueneau, serve como “ameaça do co-enunciador”: [...] a fala do enunciador encontra-se sob ameaça constante do coenunciador, que a todo momento pode intervir na enunciação em curso. Ele pode também dar força à posição do enunciador, expressando sua aprovação (com sua atitude ou com comentários: “Ah!”, “Veja só!” etc.). (MAINGUENEAU, 2008, p. 75). No caso do conto, tais aprovações são ocultas, porém percebidas pela fala da enunciadora, que repete o que, provavelmente, o “boy” tenha dito. Ora, o texto é, segundo Maingueneau, o “rastro deixado por um discurso em que a fala é encanada” (2008, p. 85). Logo, essa cena da Dama da noite pode ser (a) uma enunciação de um texto; (b) uma enunciação de um episódio fictício em um bar escrito na forma de um conto, ou (c) a cena de enunciação de uma conversa entre uma mulher desconhecida com um rapaz, igualmente desconhecido, em um bar no final da noite. O leitor está envolvido nessas três ocasiões, porém, ele pode se sentir (a) um leitor, (b) um leitor literário e/ou (c) um interlocutor. Este último só é alcançado pela oralidade que o texto possui. Ainda segundo Maingueneau, “todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima” (2008, p. 87). Concordamos em afirmar que, a cena da Dama da noite, é legitimada pelo rastro oral da escrita, atingindo seu público que aceita a cena como sendo “quase-real”. A cena é a mesma de um bar qualquer, com uma mulher de meia idade conversando com um rapazote de vinte. O que legitima a cena é a enunciação, ou seja, a forma com que é narrada a cena, o dispositivo da fala que comprova um testemunho e a memória da Dama. Quanto mais avançamos na Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 653 leitura do conto, mais se (re)conhece o universo do qual a mulher fala. A Dama da Noite possui, nas palavras de Marcelo Secron Bessa (2002, p. 122), “a amargura de viver em um momento em que o toque no corpo alheio se transforma em horror”, um horror não nomeado, englobando, assim, não só a AIDS (talvez alegoria mais completa), mas também todos os horrores dessa sociedade pós-utópica. Essa ferramenta do enunciador é muito usada por Caio Fernando, em contos e crônicas, talvez pelo grande exercício epistolar do autor. Muitos de seus contos contam com esse contexto: uma pessoa ao telefone, uma pessoa que já inicia o texto contando ou falando algo, um monólogo no lugar do diálogo dos casais etc. Em todos os textos que assim se apresentam, marcas da oralidade são presentes. Os usos e abusos da oralidade apresentam primeiramente que o narrador é um sujeito “representante” da sociedade. Ele se torna não só um modelo, mas um responsável por aquela tradição, por transmitir aquele ensinamento, uma vez que transforma o texto oral em escrito e o texto escrito com traços provindos da oralidade inicial. O que se observa é a interrelação entre escrita e fala, por vezes se misturando no discurso, diminuindo o distanciamento estético a fim de aproximar-se com o leitor. E se pergunta: por que se escreve? A fala, por um lado, contribui com sua legitimidade, sua confissão, seu testemunho. A escrita, por outro, mantém o caráter de eternizador: verba volant, scripta manent. Além do mais, abordar o amor na literatura pós-moderna é mais do que necessário: é a principal, senão única, forma de eternizar aquilo que se sabe não ser eterno. Pelo menos, não mais com tanta frequência. Últimas palavras, o dia amanhece. Com o que foi posto, podemos assimilar a oralidade da escrita do conto “Dama da noite” com o caráter confessional que Caio Fernando Abreu buscava em suas obras a fim de moldar o retrato de uma época. Tal retrato é criado a partir da busca (antiguíssima) do amor, embora o casamento e o relacionamento em si estejam perdidos na pós-modernidade dos fatos. A busca pelo Outro, embora “careta”, existe no indivíduo enquanto necessidade de união que talvez não necessite de rostos e nomes: basta estar ali. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 654 Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro. (ABREU, 1988, p. 97-8). Desta forma, a busca da mulher perdida e “rodada” no fim da noite (ainda) é o “verdadeiro amor”, que ela sabe, como que com certeza, que um dia vai encontrar. O alerta de cuidado provém, em nossa leitura, do poder que teriam as “duas metades” juntas, retomando o mito do Andrógino divido por Zeus, temente do poder que as duas faces teriam juntas. Tal mito é frequente na obra de Caio Fernando Abreu. A metade perdida, o eu que não está em mim, a metade procurada, enfim. Porém, a Dama sabe da sua condição de solitária: Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou o fora já. Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas, envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. (ABREU, 1988, p. 97) Sabe que é “babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O Verdadeiro Amor” (ABREU, 1988, p. 95). E, no fim da noite, sua máscara de femme fatale cai. Se revela humana (“Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto.”), se revela mulher (“Viro outra vez aquilo que sou todo Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 655 dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo[...]”) e se revela frágil (“uma criança assustada.”). Em suma, o que o discurso da Dama da noite pretende é convencer o “boy” que aquele mundo “idealista” que ele vive e/ou sonha não existe, que a realidade é mais cruel, que o mundo é, como diria Clarice Lispector, um “mundo cão”. Triste descobrir isso por si mesmo. Por isso, a Dama quer como que vacinar o rapaz que ela desconhece, a fim de que ele esteja preparado para tudo o que irá encontrar. Ao escrever esse monólogo, Caio Fernando faz o mesmo alerta de forma geral, assumindo, assim, sua representação da geração. Caio Fernando Abreu vai, ao longo do conto, sendo identificado (a) com a Dama da noite, que quer alertar a sociedade dos riscos dela própria; (b) com o “boy”, enquanto precisa de informações para viver nesse mundo caótico, pois, também ele (e talvez principalmente ele) se acredita ser uma criança assustada. Tanto Caio Fernando como a Dama da noite, e o “boy”, não passam de pessoas como tantas e tantas outras, que buscam o “Verdadeiro Amor”. Cuidado, boy. Um dia eles encontram. Bibliografia ABREU, Caio F. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ______. Entrevista. O Globo, 14 out. 1994. BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BESSA, Marcelo S. Os perigosos: autobiografia e AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997. FERNANDES, F. A. G. A voz em performance: uma abordagem sincrônica de narrativas e versos da cultura oral pantaneira. Tese (Doutorado) 384f. Universidade Estadual Paulista – UNESP. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2003. FLÔRES, Onici. Da oralidade à escrita, uma busca da mediação multicultural e plurilinguística. Canoas: Ed. ULBRA, 2005. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 656 LEJEUNE, Philippe. Pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad.: Cecília P. de Souza e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2005 ______. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes: 2001. SANTIAGO, Silviano. Prosa literária no Brasil. In: Nas malhas da Letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 24-37. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 657 VALOR ESTÉTICO E RUPTURA NA LINGUAGEM DE AUGUSTO DOS ANJOS Rogério Caetano de Almeida (PG-USP) A obra de Augusto dos Anjos é normalmente estudada como uma exceção na literatura brasileira. Os estudiosos do autor insistem em não colocá-lo em uma determinada escola literária, igualmente não conseguem enquadrá-lo completamente em qualquer área do conhecimento humano. Tampouco se consegue emoldurar sua obra em uma tradição literária anterior de língua portuguesa com uma única ressalva: quando comparado com Antônio Nobre98. O poeta, descendente de uma oligarquia nordestina falida e depois de completar seus estudos em direito, tenta a sorte na capital, Rio de Janeiro, mas acaba publicando seu único livro de poesias (“Eu”) com custeio do irmão Odilon dos Anjos em 1912, o que ajuda a concluir que as finanças sempre foram reduzidas para o autor. Essa necessidade premente faz com que ele se transfira para a cidade de Leopoldina, Minas Gerais, ao ser aprovado em um concurso para diretor de um colégio na cidade e em julho de 1914 assume o cargo, mas faleceu três meses depois. Sua obra, na época, foi completamente desdenhada pela crítica, como demonstra muito bem o estudo de Otto Maria Carpeaux: Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: parecia a personificação de uma fase especialmente infeliz da evolução intelectual do Brasil, mistura incoerente de uma cultura ou semicultura bacharelesca, ávida de novíssimas novidades científicas, mal assimiladas, e dos ambientes das massas populares miseravelmente abandonadas nas ruas estreitas do Nordeste tropical. Ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro, e é conhecida a cena de um dos seus raros admiradores que leu um soneto de Augusto dos Anjos a Olavo Bilac e recebeu a resposta desdenhosa: ‘É este o seu grande poeta? Fez bem ter morrido!’99 98 Ver um estudo nosso publicado recentemente em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/01/Artigos/12.PDF consultado em: 26/04/2008. 99 CARPEAUX, Otto Maria. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 658 Uma constatação que parece óbvia é a de que se o grande nome do Parnasianismo brasileiro, Olavo Bilac, desdenhou da poesia de Augusto dos Anjos, os modernistas então respeitariam sua obra. Não. A impressão que ficou foi a de que o Parnasianismo não poderia aceitar os temas grotescos da poesia de Augusto dos Anjos e, por outro lado, os modernistas não aceitavam aquela forma conservadora do soneto decassílabo clássico, entre outros conservadorismos. O poeta do hediondo também possui elementos Simbolistas e seus textos são um prenúncio da poesia moderna, como apontam vários estudiosos, entre eles o de Ferreira Gullar. Dentre os aspectos que indicam a modernidade de sua obra está o que Hugo Friedrich chama de tensão dissonante: Com estes poetas (os modernos), o leitor passa por uma experiência que o conduz [...] muito próximo à característica essencial de tal lírica. Sua obscuridade o fascina, na mesma medida em que o desconcerta. A magia de sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a compreensão permaneça desorientada. [...] Essa junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. A tensão dissonante é um objetivo das artes modernas em geral. 100 Afora a constatação óbvia feita anteriormente de que Augusto dos Anjos não pode se enquadrar em uma escola literária, portanto pode ser colocado como um genuíno poeta moderno, como ele chega aos nossos dias se é desprezado por todos de sua época? Carpeaux diz que é o povo nordestino que faz sua existência perdurar e sua popularidade chegar aos dias de hoje. No entanto, sua obra não é apenas popular hodiernamente e exige um olhar que discuta e investigue melhor suas peripécias verbais. Sua poesia também deve ser estudada pela sua complexidade lexical, semântica, filosófica (mesmo que mal digerida, como afirma Carpeaux), estética, ou seja, tudo aquilo que forma uma obra literária. Com isso, chegamos ao desejo de Zenir Campos Reis: “Fico aqui desejando que as duas tradições, a popular e a universitária, se encontrem.” Entre os elementos que erigem a poesia, um dos fundamentais é a construção da linguagem. Poesia é linguagem. Neste sentido, Augusto dos Anjos comunica ao mundo a estranheza que essa orbe possui, mas como comunicá-la? Vitor Manuel de Aguiar e Silva 100 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século XX). Trad. Marise M. Curione e Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 15. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 659 responde esse questionamento de maneira instigante: “A língua literária representa um desvio quando comparada com a língua normal e, por conseguinte, a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal.”101 O autor aponta que essa noção de “desvio” é discutida desde Aristóteles e que contemporaneamente ela segue duas vertentes. A utilizada aqui é a linguagem que “‘viola’, ‘infringe’, ‘subverte’ as regras da língua normal e, por isso mesmo, apresenta múltiplas ‘anomalias’ em relação a esta última”102. A definição de desvio, portanto, se coaduna em certo sentido com a tensão dissonante definida por H. Friedrich. A partir daí, chegamos à ideia de linguagem-novidade e linguagem-originalidade. De maneira geral, Vitor M. de A. e Silva cita o estudo de Stefan Morawski no que se refere à novidade e à originalidade no que ele chama de “análise do funcionamento global do sistema semiótico-literário”: [...] a novidade marca a separação, a ruptura em relação a padrões formais e sémicos dominantes num dado contexto histórico, ao passo que a originalidade se funda num modo diferenciado de ver o mundo, o qual conduz a uma realização e a uma articulação peculiares dos signos estéticos, das suas regras semânticas e sintácticas, das suas funções e dos seus valores.103 Neste sentido, a linguagem-novidade é uma subversão do que foi produzido até então, ou seja, estabelece uma dialética com o contexto histórico no qual está inserida. Já a linguagem-originalidade se apropria do fato de estar inserida no contexto estético-artístico e se transforma em uma realização com valor próprio dentro da obra, ou seja, ela é um valor em si e, portanto, se aproxima do conceito de estranhamento fornecido por Chklovski. No que diz respeito à linguagem-novidade, percebemos em Augusto dos Anjos, no verso que talvez seja o mais conhecido do poeta um decassílabo constituído de duas palavras – “Profundissimamente hipocondríaco”. O verso é retirado do segundo quarteto do soneto intitulado “Psicologia de um Vencido”: 101 SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8ª edição. Porto: Livraria Almedina, 1997. p. 147. 102 Idem, Ibidem. p. 148. 103 Idem, Ibidem. p. 133-134. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 660 Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. A sonoridade remete a um decassílabo alexandrino – cesura na sexta e na décima sílabas métricas –, mas um verso tão longo constituído de dois signos constrói um sub-verso, ou seja, uma substituição do verso tradicional. Há, ainda, o significado das palavras que também se relaciona com a extensão que essas possuem, é exemplar o caso do “profundissimamente” que não apenas é um signo incomum em um poema pela extensão, mas também amplia o sentido da palavra para o leitor, como também o prolonga para a sensação da voz poemática, o que indica uma hipocondria enorme, agigantada sintanticamente pela sua função de advérbio de modo. A construção dessa linguagem não é um fenômeno raro em Augusto dos Anjos, pelo contrário aparece constantemente, portanto faz-se necessário demonstrar tal elemento constitutivo de poemas diversos: “Pan/ te/ is/ ti/ ca/ men/ te/ di/ ssol/ vi/ do” (no Soneto de 1911 dedicado ao filho que nasceu morto) aparece de maneira similar ao que foi citado anteriormente no que diz respeito ao sentido, à extensão do signo, ao sentido, etc; Em Debaixo do Tamarindo percebemos a utilização do superlativo absoluto sintético no verso final do primeiro quarteto: No tempo de meu Pai, sob estes galhos, Como uma vela fúnebre de cera, Chorei bilhões de vezes com a canseira De inexorabilíssimos trabalhos! O uso desse recurso é considerado um exagero e é aí que está a novidade de sua obra – a adjetivação dada pelo poeta aproxima o trecho da hipérbole que aparece no verso anterior e com a comparação sinistra que coloca no segundo verso. O desmesurado de sua elocução, portanto, acaba criando uma atmosfera dissonante, incomum que se constitui como elemento de estranheza não mais da linguagem apenas, mas de todos os aspectos que são analisados no texto: semântico, sintático, semiótico, estilístico, retórico, etc. Outrossim, a linguagem é um elemento criador de toda a estranheza de sua obra, o que atinge uma Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 661 invenção moderna preocupada com a forma e conteúdo juntos construindo uma totalidade coesa e repleta – é a obra de arte realizada. Augusto dos Anjos exagera na linguagem construída em todos os seus textos e é nesse momento que surge sua linguagem-novidade, repetida inevitavelmente enquanto estratégia estilística do autor. Por exemplo, o uso do superlativo absoluto é uma constante em sua obra. Outra repetição em sua construção é o exagero e a utilização do prefixo “ultra” no verso também decassílabo que aparece no segundo quarteto de Vozes da Morte. Ele se dispõe a criar uma espécie de eco às avessas com a rima /tura/: Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura Ultrafatalidade de ossatura, A que nos acharemos reduzidos! Uma curiosidade que se revela é que o decassílabo é o verso mais utilizado por toda a poesia produzida em língua portuguesa até a ascensão do verso livre, mas jamais havia sido construído dessa maneira, com alguma possível exceção não notada por nós na poesia de Antero de Quental ou na produção do brasileiro Cruz e Sousa. No entanto, esses elementos não são constitutivos da totalidade da obra dos artistas supracitados, enquanto que em Augusto dos Anjos é uma constante e até elemento basilar de sua poética. Faz-se necessário observar então que essa forma de utilização dos vocábulos é não mais uma linguagem-novidade; apesar de sê-la também, a linguagem do poeta do “Eu” é uma linguagem-originalidade e o próprio título, como aponta Ferreira Gullar, é uma estranheza. A acepção dada acima mostra que o signo linguístico ganha um sentido próprio no contexto em que está inserido quando prima pela originalidade formal e adquire um sentido conteudístico. Novamente, destacamos que esta é uma ferramenta típica de poetas modernos. Além da linguagem científica, Augusto dos Anjos trabalha vocabulários que até então eram antipoéticos, afinal pertenciam a um cotidiano vulgar e doentio, como em Budismo Moderno: Tome, Dr., esta tesoura, e... corte Minha singularíssima pessoa. Que importa a mim que a bicharia roa Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 662 Todo o meu coração, depois da morte? Esse tipo de prosaísmo jamais havia sido pensado na literatura brasileira, mesmo no Romantismo que tentou se aproximar do popular. A estranheza não está apenas no sentido semântico de pedir para ser cortado, o que revela uma postura do eu lírico um tanto masoquista, mas também no fato de a palavra “doutor” aparecer abreviada no poema. A questão não é apenas sonora, pois para o verso seguir a métrica decassílaba há uma elisão entre “tesoura” e “e”, ou seja, o artista coloca esse signo no poema porque deseja assim, faz parte de seu trabalho poético. No verso seguinte aparece o superlativo absoluto novamente, que já foi analisado enquanto ferramenta de sua linguagem-originalidade. Se o estranhamento da obra de Augusto dos Anjos em um primeiro momento parece demonstrar que é completamente fechada em si, depois mostra sua popularidade não apenas pela forma como sobreviveu - segundo Ferreira Gullar e Carpeaux - através do povo: Eu é o livro de poesia que mais vende no Brasil. A edição utilizada por nós é a 43ª e foi publicada em 2001. Além disso, Um texto de Soares Feitosa no sítio do Jornal de poesia afirma que Augusto dos Anjos é mais lido do que Fernando Pessoa, Camões e Castro Alves.104 Assim sendo, sua obra cria uma linguagem-novidade e depois se transforma em linguagem-originalidade. Antes disso, é uma espécie de desvio que culmina no conceito formalista de estranhamento, ou no que H. Friedrich, como já referido aqui, chama de dissonância, o que coloca sua obra como precursora do que veio a ser chamado “poesia moderna”. O interessante de sua obra é que apesar de ser hermética tanto no que diz respeito à linguagem quanto em fazer o leitor sofrer e não compreender o que é dito em muitos trechos se não for um pesquisador dedicado em desvendar a complexidade de seu universo, ainda assim é atraente a ponto de ser conhecida, reconhecida e aclamada como uma poesia de estranha qualidade. A estranheza de sua obra transcende o aspecto textual em si. Não fica apenas nas atmosferas de demência, necrologia, putrefação, maledicência, coprologia, biologia, ou mesmo tal qual faz na seleção linguística do poema Agonia de um Filósofo: 104 Ver: http://www.revista.agulha.nom.br/augusto.html Consultado no dia: 27/04/08. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 663 Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo... O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo Com a eólica fúria do harmatã inquieto! Assisto agora à morte de um inseto!... Ah! todos os fenômenos do solo Parecem realizar de pólo a pólo O ideal de Anaximandro de Mileto! No hierático areopago heterogêneo Das idéas, percorro como um gênio Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!... Rasgo dos mundos o velário espesso; E em tudo, igual a Goethe, reconheço O império da substância universal! Pelo fato de seu texto abarcar um tema relacionado à filosofia, o autor subversivamente faz uso de estrangeirismos completamente desconhecidos – essas palavras estão em destaque no poema acima. O Phtah-Hotep é um papiro do antigo Egito em que a ideia geral é a transmissão da sabedoria de pai para filho. Já o Rig-Veda é o livro mais antigo do hinduísmo e teve sua posteridade garantida através da oralidade. Segundo uma perspectiva mais recente o livro descreve os hinos, as oferendas e os rituais oferecidos às divindades; numa outra vertente é um livro de alto valor histórico. Na segunda estrofe o poeta cita um nome da filosofia mais próximo ao conhecimento da língua portuguesa: Anaximandro de Mileto. Ele é um dos precursores da astronomia grega e pregava como princípio de tudo algo infinito - o ápeiron. Haeckel, o nome que aparece na terceira estrofe, foi um dos naturalistas que ajudou a disseminar a teoria de Darwin sobre a evolução da espécies. Ele faz a teoria da recapitulação, que depois é refutada pelo fato de ser cientificamente forjada. Augusto dos Anjos lê muito esse tipo de investigação e essa temática aparece de maneira obsessiva em sua obra. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 664 O último nome é Goethe. O criador do Fausto não é conhecido apenas por sua produção literária. Ele também se ligou a pesquisas científicas e filosóficas. Diz-se que a antroposofia é ligada ao que foi teorizado anteriormente por Goethe. Analisando, portanto, os quatro nomes que aparecem no poema, identificamos que a seleção de substantivos ligados à tradição filosófica no poema combina com o título dado ao texto. O caráter de estranheza que esse texto assume na linguagem utilizada é que a sonoridade desses nomes é estranha à língua portuguesa. Além da estranheza sonora, todos os nomes supracitados são reconhecidamente nomes ligados às pesquisas com a origem das coisas é o que o poeta coloca em destaque no poema: a substância universal. Esta se faz presente na palavra ou, melhor, na estranheza das palavras escolhidas pelo poeta. Como podemos observar, não são apenas os termos escolhidos para esta leitura que são subversivos ou antipoéticos e, por fim, estranhos. Toda sua obra é pura bizarrice. Contudo, o fato mais intrigante de todos é que sua particularidade linguística, entre tantas outras peculiaridades possíveis em sua obra, consegue, através de sua complexidade, ser atraente a qualquer tipo de leitor. Desde o homem mais simples, o nordestino que fez com que sua obra perdurasse, como disse Otto M. Carpeaux, ou mesmo o intelectual, estudioso de Letras, iniciado nas técnicas para a construção de uma complexa literatura moderna ou não, são leitores, apreciadores e admiradores profundos da poesia de Augusto dos Anjos. Um dos aspectos que contribui para tal estranheza é a construção de sua estranha linguagem, mas não é o único fator. Além disso, quiçá todos os elementos se unam numa leitura crítica não teremos uma resposta, nem muitas, porque o estranho é estranho. Ele se faz através de uma linguagem que é não apenas estranhamento, dissonância ou desvio. A obra de Augusto dos Anjos não se constrói apenas no que foi chamado aqui de linguagem-novidade e linguagem-novidade. Os aspectos feios de sua linguagem possuem uma expressão bela e é justamente aí que entra a inexplicabilidade de seu sucesso. A estranheza de sua obra é sua maior beleza. Bibliografia ALBUQUERQUE, Medeiros e. O livro mais estupendo: o Eu. In: Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 30 de setembro, 1928. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 665 ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 43ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. BAKHTIN, Mikhail. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 666 OGUM: UMA PERFORMANCE HÍBRIDA NOS TERREIROS DE UMBANDA Roncalli Dantas Pinheiro105 (PG-UFPB) Conforme Laraia (2008), toda cultura possui uma lógica própria que não é transponível sem perdas de um sistema para outro. “A coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence”. Laraia defende essa posição levando em consideração o contexto etnocêntrico, em que defendia a superioridade de culturas científicas em relação às primitivas, de pensamento mágico. Mas retirando a afirmativa do seu contexto original, observando-a isoladamente, pode-se problematizar as questões de hibridismos culturais no Brasil como forma de questionamento do posicionamento de Laraia. Será que é impossível analisar aspectos da cultura européia tomando como ponto de partida o olhar do afro-brasileiro? Estudar a performance de São Jorge em síntese com Ogum nos terreiros de umbanda é, de certa forma, uma maneira de quebrar com o paradigma exposto por Laraia. A performance de Ogum nos terreiros de umbanda é uma expressão cultural que resulta também da leitura que esses povos fizeram de uma outra cultura, assimilaram para si e produziram algo híbrido entre duas regiões de culturas distintas e distantes geograficamente. Do ponto de vista histórico, sabemos dos elementos sociais, políticos e econômicos pelo qual os africanos passaram no Brasil. A escravidão, a proibição na realização dos seus cultos, a dificuldade de comunicação nas senzalas devido a presença das diferentes etnias que propositadamente estavam juntas. Mas, observando as performances de Ogum, envolvem, intrinsecamente, uma leitura dos elementos da cultura européia. Uma sistematização e uma relação orgânica do resultado dessa leitura com os elementos culturais africanos trazidos pelos negros. Outro elemento a levar em consideração na leitura da performance de Ogum é a dinâmica cultural envolvida. Pois ela existe independente do sistema a qual esteja estudando. São mudanças que ocorrem com maior ou menor velocidade, dependendo da área cultural que esteja em foco. O sistema religioso, a filosofia e as noções sociais de família em uma cultura costumam ter uma dinâmica mais lenta do que as mudanças tecnológicas, científicas. Então, considerando que o objeto de estudo se caracteriza por pertencer à esfera religiosa, a 105 roncallid@gmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 667 tendência deveria possuir uma dinâmica restrita com poucas mudanças no transcorrer do tempo, o que de fato não ocorreu na Umbanda. Essa assimilação, tomando como base os conceitos de interstícios culturais de Homi Bhabha (2007), é resultante mais de um trabalho fronteiriço da cultura do que parte de um continuum de passado-presente gerado no seio de um sistema cultural, de uma dinâmica interna. Portanto, entender a Performance de Ogum é considerar uma dinâmica cultural de entre lugares, que performatiza-se nômade e impura entre culturas distintas, conforme Santiago (2000). É também apreender uma lógica ética, em que a alteridade é celebrada. Relato de São Jorge a partir da oralidade e a imagem A partir de uma rede de textos provindos de várias fontes, principalmente internet, pode-se editar relatos sobre a biografia de São Jorge. Elas remetem ao final do século III, quando a mãe de Jorge retorna à sua cidade natal, Lida, após se tornar viúva na Capadócia. Ela propicia uma boa educação ao pequeno, que, posteriormente, se alista no exército e segue a carreira do pai, oficial do exército Romano. Jorge cresce e logo ascende na corporação militar, chegando a ser membro da guarda pessoal do imperador Diocleciano. Após um tempo trabalhando com afinco, no ano 303, explode a notícia de que o imperador havia decretado a perseguição aos cristãos em todo o Império Romano, impelindo Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 668 o jovem a participar da perseguição, mas ele prefere professar sua religião e, indo de encontro à política estabelecida, se atreve a criticar a decisão do imperador. Diocleciano então reage duramente às críticas e, como forma de punição, ordena a tortura e execução do traidor. Ele é torturado e, finalmente, no dia 23 de abril de 303, é levado às muralhas de Nicomédia para execução, por decapitação. Relato de Ogum a partir da oralidade e a imagem. Conforme Verger (1997), Ogum era o guerreiro sanguinário e temível. O mais velho e mais combativo dos filhos de Odudua, o conquistador e rei de Ifé. Do texto abaixo, colhido por Verger da tradição oral africana ainda sem a interferência que ocorreu no Novo Mundo, Caribé elabora a ilustração. “Ogum o valente guerreiro, O homem louco dos músculos de aço! Ogum, que tendo água em casa, Lava-se com sangue!” (Verger, 1997). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 669 O hibridismo Cultural, Ogum e São Jorge no terreiro de Umbanda. O arquétipo de Ogum é, conforme Verger (1997), o das pessoas violentas, impulsivas, que não perdoam as ofensas de que foram vítimas. Daquelas que perseguem energeticamente seus objetivos e não desencorajam facilmente. Tem relação com o ferro e o aço. O que acaba produzindo uma analogia com as imagens e lendas de São Jorge da tradição cristã, que montado no cavalo adornado com peças metálicas, vence o mau, o dragão. Observando fotografias de performances de Ogum em terreiros de Umbanda, o cavalo, o acolhedor do Orixá, adorna-se de elementos simbólicos assimilados de São Jorge. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 670 A leitura de uma Performance é algo quase inatingível, por que ela não se encontra no campo semiótico. Ela não é signo, não está representando algo. É o próprio Ogum que se entroniza e cumprimenta os demais no ambiente. A semântica do significante movente que se apreende em tais evoluções corporais não se relaciona apenas com audição, paladar, olfato, tato etc. É, antes de tudo, um somatório dos sentidos, sendo algo que se presencia somente no instante do evento, graças às trocas e comunicações com as demais pessoas. Então surge a dificuldade da transcrição de uma linguagem que não possui representatividade em sua atuação mais global (a performance) para um outro código (a escrita), que reivindica para si sua semioticidade. Para solucionar essa problemática, Zumthor (2007) sugere fazer uma leitura dos elementos marginais. É um método analítico e, para o próprio autor, falho, pois não representa a totalidade, mas esfacela, analisa e não reconstrói para o leitor o evento integral. Todavia, não existe outra maneira de envolver o evento que presenciamos no limitado código verbal da escrita, ausente de voz, de gestual, de entonação e de tudo o que se refere à arquitetura na enunciação, o ambiente que recebe os corpos envolvidos. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 671 Para este trabalho, não se pretendeu fazer uma leitura verbal das performances, nem descrevê-la por análise. O objetivo é utilizar as imagens como ferramenta textual não verbal e sugerir uma espécie de montagem, que possibilite a reconstrução da performance de maneira que ela não esteja em análise, fragmentada em diversos significantes. O objetivo é deixar que o leitor faça a fruição e realize as associações performáticas a partir do encontro e choque entre três grupos de imagens. Entre a figura performática de São Jorge no momento em que mata o dragão. A ilustração de Caribé no momento de fúria do Orixá Ogum e observar a presença desses elementos na performance atual, que ocorreu em 2008 na cidade de João Pessoa, incorporado em uma das filhas de Ogum mais antigas e respeitadas. Para um segundo momento, seguindo a Linha de Zumthor (2007), descrevendo analíticamente a performance, observa-se a presença de São Jorge nas vestimentas de Ogum; A cor vermelha; O capacete, a espada, o brilho e a presença de folhas de espada de São Jorge presas nas paredes do recinto, além da postura e atitude de cavalgar como se estivesse sobre o cavalo. Já os elementos simbólicos que remetem a ogum estão marcadamente nas cores verde das vestimentas, nos colares, e sobre tudo, na expressão facial em que a fúria toma conta da pessoa que recebe a entidade. Conclusão A performance de Ogum, por envolver elementos sintetizantes, é também uma leitura afro-brasileira de um mito vindo por vias de Portugal, assimilado, impuro no seio do ritual da Umbanda. A leitura posterior desses elementos se somam produzindo novas informações que não envolvem completamente a cadeia de significados da performance. As fotografias e os textos são apenas ferramentas expressando a leitura de um evento, a qual se constitui em sua base o fundamento de uma leitura maior, assimilando outros sistemas culturais em hibridismos. Bibliografia LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007 VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1997 VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos orixás. Salvador: Corrupio, 1997 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007 672 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 673 POESIA GREGA ARCAICA: ORALIDADE E PERFORMANCE Roosevelt Rocha106 (Prof. Dr.-UFPR) Hoje em dia nós lemos esse conjunto de textos que chamamos de poesia grega arcaica. Porém, esse tipo de produção poética, originalmente, não foi composto para ser apreciado dessa maneira. Aquilo que hoje conhecemos através dos livros e da cultura escrita, letrada, de modo geral, foi, na verdade, concebido para ser recitado com acompanhamento musical, como é o caso da poesia épica de Homero e da poesia elegíaca; ou para ser recitado sem acompanhamento musical, como pode ter acontecido com a chamada poesia jâmbica de Semônides de Amorgos e de Hipônax de Éfeso; ou para ser cantada e dançada ao som de um instrumento de corda como a lira ou cítara somado ou não ao acompanhamento de um instrumento de sopro, principalmente o aulo, como é o caso da poesia lírica coral. Sendo assim, meu objetivo é mostrar que, para interpretarmos corretamente a poesia grega arcaica, é preciso sempre lembrar que esse tipo de produção poética foi composto num contexto cultural em que a oralidade tem um papel muito mais importante do que na nossa cultura pós-helenística, pós-romana, pós-renascentista e pós-gutenberguiana. Nesse tipo de cultura, onde a memória e a tradição, sem o suporte da escrita, encontraram modos diversos de fixar e transmitir mensagens, através do uso de estratégias discursivas específicas tal como o emprego de fórmulas, epítetos e símiles e também através do uso da métrica e das melodias, nesse contexto a performance e tudo que está relacionado a ela precisa ser levado em conta por quem pretende interpretar um enunciado poético produzido na Grécia Antiga entre os séculos VIII e V antes de Cristo. É claro, estamos tratando de composições que remontam a um período muito recuado no tempo. E sobre esse período, muitas vezes, não temos como ter um conjunto considerável de informações seguras. Afinal, aquilo que conhecemos como textos, como já disse, foram originalmente cantados ou recitados e somente mais tarde ganharam a forma escrita mais ou menos parecida com aquilo que podemos ler hoje. Contudo, possuímos e fazemos parte de uma tradição poético-literária que remonta aos poemas homéricos e desse enorme manancial de textos podemos obter muitos testemunhos sobre a oralidade e a 106 rooseveltrocha@yahoo.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 674 performance dos textos poéticos da Grécia Antiga. E é sempre importante lembrar que os estudos nesse campo avançaram muito, principalmente depois das contribuições de Milman Parry e Albert Lord e também depois dos estudos de Eric Havelock, para citar apenas alguns nomes. Comecemos falando da performance da poesia homérica. Já de início, cabe lembrar que os antigos gregos não chamavam Homero de poeta, pelo menos não antes de Platão e Aristóteles, que produziram suas obras no século IV a. C. Ele era chamado de aedo, ou seja, cantor. Fazendo uma comparação entre os tipos de estruturas métricas tradicionais da Grécia Antiga, chegamos à conclusão de que existiam tipos de canto diferentes, ou seja, maneiras diferentes de cantar, alguns tipos sendo mais simples e mais repetitivos, como o hexâmetro e o dístico elegíaco, e outros tipos sendo mais complexos, como nos indicam os elaborados metros usados na poesia lírica coral de Álcman, Estesícoro, Simônides, Píndaro e Baquílides. Por isso, podemos propor a hipótese de que a poesia homérica era musicalmente mais monótona e previsível do que a poesia de Píndaro, por exemplo. Mas, mesmo assim, os antigos helenos chamavam Homero de aedo, nome que deriva do verbo aeido, que significa cantar. Bem, além disso, sabemos também que os aedos cantavam ou recitavam seus versos com o acompanhamento de um instrumento de corda. Nos poemas homéricos, encontramos, em várias passagens, a palavra phórminx, que transcrevo com o vocábulo fórminge. Esse instrumento era da família da lira e da cítara, provavelmente mais simples, mais rústico talvez, com poucas cordas, três ou quatro por volta dos séculos IX e VIII a.C., se dermos crédito à tradição que nos chegou da Antiguidade. Esse pequeno número de cordas nos indica que as melodias entoadas pelos aedos daquela época, provavelmente, eram bastante limitadas, com poucas notas musicais, pois era um hábito da época cantar a mesma nota que estava sendo tocada no instrumento musical. Essa relativa simplicidade também é perceptível na estrutura métrica dos poemas homéricos, o hexâmetro de base datílica. O dátilo é formado por uma sílaba longa seguida de duas breves. O hexâmetro era formado de seis pés datílicos, sendo que era possível substituir um dátilo por um espondeu, formado por duas sílabas longas. Dito assim parece realmente simples e fácil de prever o resultado. Porém, dentro das sequências de pés datílicos, eventualmente substituídos por pés espondaicos, havia momentos em que o poeta fazia Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 675 pequenas pausas que são chamadas de cesuras. Essas cesuras podem aparecer em partes diferentes dos versos e, de certa forma, eram elas, junto com o maior ou menor uso de dátilos ou espondeus, que davam um certo colorido aos versos que, comparados com as sequências da poesia lírica coral, deviam mesmo parecer mais monótonos, repetitivos. Usando, esse tipo de recurso, contudo, os aedos homéricos conseguiam dar um certo caráter a uma passagem, compor um determinada cena com um clima, um sentimento específico. Por exemplo, se o poeta queria cantar com mais velocidade, ela usava mais o ritmo datílico, o que parece adequado para as descrições de batalha da Ilíada. Mas, se ele queria carregar nas tintas da religiosidade ou acentuar o sentimento de tristeza causado pela morte de um guerreiro, por exemplo, então seria mais apropriado usar mais o ritmo espondaico, para que seu canto se tornasse mais lento e lamentoso, por um lado, ou mais nobre e respeitoso, por outro. Outro aspecto que precisa ser levado em conta ao interpretarmos um poema grego arcaico é a participação do público e o contexto em que o poeta improvisou, compôs e/ou apresentou a sua canção. De modo geral, existiam dois contextos em que o poeta podia realizar sua performance: um mais particular e com um número menor de participantes, ou seja, o simpósio; e outro de caráter público, ligado à vida cívica e religiosa da cidade, que eram os festivais aos quais as pessoas acorriam em grande número. São situações bastante diferentes. No simpósio, era mais comum que fosse executada uma poesia mais ‘leve’, que tratava do amor, do vinho ou de questões de interesse de certos grupos políticos e sociais, como é o caso de boa parte dos fragmentos elegíacos de Arquíloco e Mimnermo, dos jambos de Semônides e de Hipônax e da lírica monódica de Safo, Alceu, Íbico e Anacreonte. Nos festivais, nas celebrações públicas ou em momentos chave da vida da cidade, como nas preparações para batalhas ou em assembleias, eram executados poemas com temática que interessava à comunidade naquele momento. Exemplo desse tipo de composição são as elegias de Tirteu, Calino e Sólon e a lírica coral em geral. No período arcaico da história da Grécia Antiga, que se estende do século VIII ao começo do século V a. C., aconteceram muitas transformações em todos os campos da vida dos humanos da época: na economia, houve a expansão dos limites geográficos com o processo de colonização e o consequente enriquecimento de uma classe mercantil que se beneficiou com esse movimento; em parte, em decorrência dessas mudanças, as oligarquias dominantes, paulatinamente, vão perdendo seu poder político e seu prestígio, baseados na Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 676 posse da propriedade fundiária e justificados pelas narrativas tradicionais transmitidas geração após geração, e a classe dos aristoi se vê substituída por tiranos que sobem ao poder depois de intensas lutas intestinas e, mais tarde, já no final do período arcaico (fim do século VI) ela assiste ao surgimento da democracia, principalmente em Atenas; nesse contexto, acontecem também importantes transformações culturais e religiosas, que levarão ao surgimento da filosofia, da história, da sofística (retórica), da medicina, do teatro e das formas políticas que mais tarde inspirarão nosso modo de pensar e interpretar a realidade. A elegia, o jambo e a lírica do período arcaico, em grande medida, são um resultado de todo esse processo de transformações e também nos fornecem muitos testemunhos ‘literários’ sobre essa época. Entre os fragmentos de Arquíloco, Semônides e Mimnermo, por exemplo, encontramos passagens em que os autores tratam de situações ligadas aos movimentos de colonização e fundação de novas cidades. Em Calino, Tirteu, Alceu, Sólon e Teógnis lemos uma poesia intimamente ligada aos problemas da cidade, seja em forma de referência às lutas que uma comunidade estaria movendo contra uma outra (Calino e Tirteu), seja na forma de comentários às disputas internas entre grupos de uma mesma unidade política (Alceu, Sólon e Teógnis). Desse modo, esse tipo de poesia não servia apenas como diversão e fonte de deleite. Nessa época, o canto tinha muitas funções dentro da cultura grega, dentre elas a de meio pelo qual eram discutidas questões morais e debatidas questões políticas candentes. Nesse sentido, é preciso lembrar que esse tipo de produção, hoje chamamos de ‘literária’, não era composta para ser transmitida através de um texto e para ser lida em silêncio por indivíduos isolados. Toda poesia grega arcaica era feita para ser apresentada para um público, que muitas vezes determinava o caráter que a obra deveria ter. Sendo assim, é impróprio e anacrônico tratar a produção poética daquela época da mesma maneira como tratamos a poesia escrita desde o período romântico (século XIX) até os nossos dias. A poesia grega arcaica não hexamétrica, para usar um termo mais abrangente, era completamente diferente da nossa poesia de hoje em dia. Em primeiro lugar, boa parte dela, a elegia e a lírica, era cantada com o acompanhamento de um instrumento musical. Por isso, os gramáticos alexandrinos chamaram, uma parte dela, de ‘lírica’, em referência à lira ou a instrumentos de corda semelhantes a ela, como a cítara e o bárbito, que eram usados pelos poetas. Além disso, desde os estudos de Milman Parry e Albert Lord, sabemos da importância da oralidade dentro Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 677 da cultura grega, seja na poesia homérica seja em outros tipos de poesia como a elegia, o jambo e a lírica. Sendo produzida num contexto de dominante oralidade, a poesia arcaica deve ter sido composta de maneira improvisada, de um modo comparável ao utilizado pelos aedos que recitavam poesia épica. Isso é interessante, porque nos faz pensar sobre o papel da tradição nesse tipo de poesia. Como já disse, os poetas improvisavam. Mas improvisar não quer dizer criar a partir do nada ou a partir simplesmente das motivações do indivíduo. Nesse tipo de cultura, para improvisar era necessário conhecer a tradição poética, todo o repositório de mitos, os metros e as fórmulas utilizados nesse tipo de atividade. Desse modo, havia uma intensa conversa com o passado, muitas vezes remoto, e, em específico, com a poesia de Homero e Hesíodo. Porém, é preciso dizer, havia espaço para inovações também. E esse é um aspecto marcante da cultura grega antiga. Por isso, mesmo quando autores como Safo, Íbico e Anacreonte, conhecidos pelo tom altamente ‘pessoal’ de suas composições, usam fórmulas tomadas da tradição, atualizando uma linguagem já usada por outros poetas, até mesmo de gêneros diferentes dos praticados por eles, mesmo assim havia espaço para a invenção de novos epítetos e de novos adjetivos compostos ou para uma maneira nova de usar um qualificativo de uma maneira como Homero, por exemplo, não tinha usado. Ou seja, mesmo num tipo de criação literária que, provavelmente, era altamente codificada, como os poemas de Álcman, Estesícoro e Simônides, era possível renovar a tradição e contribuir para a sobrevivência da cultura. Por todos esses motivos, aqui brevemente expostos, a poesia arcaica grega tem um alto valor intrínseco e, por isso, ela influenciou todos os grandes poetas que vieram depois como os alexandrinos Calímaco e Teócrito, que influenciaram os romanos Catulo, Virgílio, Horácio, Ovídio, Propércio e Tibulo, que, por sua vez, influenciaram os poetas do Renascimento. Desde o século XV da nossa era a elegia, o jambo e a lírica arcaicos foram lidos, imitados, citados e estudados pelos grandes autores da literatura Ocidental e as marcas dessa influência estão presentes por toda parte. Principalmente, na retomada de temas e de lugares comuns encontrados pela primeira vez na poesia grega arcaica: as dores do amor, o sofrimento causado pela passagem do tempo e pelo envelhecimento, a imprevisibilidade da vida etc. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 678 Como consequência disso, é sempre importante lembrar que a poesia grega arcaica está muito distante das concepções românticas acerca da criação poética. No século XIX, como já disse antes, pensadores e literatos germânicos criaram uma série de teorias acerca da atividade poética e sobre a finalidade da poesia bastante diferente das concepções helênicas. O problema é que esse paradigma romântico, segundo o qual o poeta expressa seus sentimentos através dos seus versos e cria algo novo como um indivíduo que se volta contra a tradição literária que vem do passado, durante muito tempo foi usado nas interpretações que eram feitas da poesia grega arcaica. Hoje em dia, esse tipo de abordagem caiu em descrédito, mas ainda persiste uma certa ideia de que Safo, por exemplo, na verdade, estava se confessando, abrindo seu coração, escancarando sua alma para o seu público. Eu diria que pensar dessa maneira talvez seja quase inevitável quando lemos um poema como o chamado ‘Hino a Afrodite’, fragmento 1Voigt, cuja tradução apresento aqui: De polícromo trono107 imortal Afrodite, filha de Zeus, tramadolos108, suplico-te, não domes com dores nem com aflições, senhora, meu coração, mas vem aqui, se jamais noutra vez a minha voz ouvindo de longe escutaste, e deixaste a dourada morada do pai e vieste depois de atrelar o carro. Belos conduziam-te velozes pardais109 em torno à terra negra turbilhonando compactas asas desde o céu pelo meio do éter: e logo chegaram. Mas tu, ó venturosa, sorrindo em tua face imortal, perguntaste por que de novo eu sofro e por que de novo eu te chamo e o que eu sobretudo quero ter 107 O adjetivo composto πο]ικιλόθρο[ν(ε) pode ser traduzido também como ‘de variegada coroa de flores’ (comparar com Il. 22, 441), mas essa não é a interpretação mais aceita. Ver Gentili, 2007: 126. 108 Esse adjetivo aparece também em Teógnis, 1386 e em Simônides, 541PMG, verso 9. 109 Os pardais são pássaros tradicionalmente associados a Afrodite por causa da sua constante disposição para a cópula. Seus ovos inclusive eram considerados alimentos afrodisíacos. E a palavra ‘pardal’ era um tipo de gíria para designar o pênis. É possível que o pardal nos poemas 2 e 3, de Catulo, seja uma referência ao órgão sexual masculino. Mas outros pássaros também são associados a Afrodite, como o pombo e o cisne. Cf. Gentili, 2007: 127. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 679 em meu louco coração. “Quem de novo devo convencer e conduzir para o teu amor? Quem, ó Safo, te ofende? Pois se foge, rápido seguirá; se não aceita presentes, logo os dará; se não ama, rápido amará, mesmo ela não querendo”. Vem a mim agora também, e liberta-me dos duros cuidados, o que meu coração deseja para mim realizar, realiza, e tu própria sê minha aliada. Durante muito tempo esse poema foi interpretado como um testemunho de que Safo seria uma mulher de intensos sentimentos e inclinada a se apaixonar facilmente. Porém, estudos recentes, como o de Gregory Nagy (2009: 24-41), demonstram que, nesse poema, por exemplo, há uma série de convenções que vêm da tradição e que indicam que Safo não estava cantando para si própria, para desafogar seu coração, mas estava, por outro lado, na verdade, cantando para a comunidade na qual ela vivia em Lesbos. À primeira vista, o poema parece ter um caráter pessoal, porém, de acordo com a interessante interpretação de Nagy, é possível que esse poema tenha sido cantado por um coro de jovens, tendo a própria Safo como líder desse coro, num festival em honra de Afrodite. Lendo o poema dessa maneira, nossa abordagem muda completamente e somos levados a repensar o papel da poesia na sociedade grega do período arcaico. Por isso, acredito ser tão importante valorizar o estudo da performance da poesia na Grécia Antiga. Nesse sentido, ultimamente, tenho sido levado a concordar com Herington (1985: 3-4) quando ele trata da cultura grega como uma ‘cultura da canção’. Segundo o autor, nesse tipo de cultura, a canção era o meio principal para a expressão e a comunicação dos sentimentos e das ideias mais importantes. Quando os gregos antigos precisavam divulgar ideias políticas, morais e sociais, ideias que, mais tarde, seriam apresentadas através de gêneros específicos como a história, a filosofia ou a ciência, eles faziam isso através da poesia, recitada ou cantada. Assim, gostaria de falar um pouco sobre a importância da arte das melodias para cultura grega antiga. A música estava presente em todos os momentos da vida do homem grego antigo. Todas as atividades do cotidiano eram executadas com o acompanhamento de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 680 música. Aristides Quintiliano (De Musica, II, 4.23-30) nos ensina que os hinos sagrados e as oferendas eram adornados com música; banquetes particulares e as assembleias festivas das cidades se alegravam com ela; guerras e marchas eram levadas a cabo e ordenadas através dela; e até mesmo a navegação e outros trabalhos manuais tornavam-se menos penosos ao som da música. Os antigos gregos eram um povo eminentemente musical e testemunho disso também nos dá Ateneu (XIV, 632c) quando diz que A antiga sabedoria dos gregos em seu conjunto parece estar dedicada principalmente à música. E, por isso, julgavam que o mais musical e mais sábio dentre os deuses era Apolo, e dentre os semideuses, Orfeu. Desse modo esses dois autores do período imperial romano demonstram que a música tinha uma presença marcante na cultura grega. Como afirma Henderson (1957:385), para os antigos gregos, a música funcionava como uma segunda língua, capaz de expressar todo tipo de pensamentos e de sentimentos. Por isso, não surpreende o fato de alguns filósofos dedicarem boa parte de suas obras a reflexões acerca do papel da música na sociedade e na formação da alma humana. Embora a quantidade de documentos estritamente musicais que chegaram até nós seja numericamente pequena e seu estado atual seja bastante fragmentário, podemos acessar importantes informações acerca da música grega antiga através da leitura de textos de autores que não eram ‘especialistas’ em música, mas que, ao pensarem sobre a cultura grega, acabaram debruçando-se também sobre a arte dos sons e todos os aspectos que estavam ligados a ela. Entre os gregos antigos a palavra mousiké, ‘a arte das Musas’, (com a palavra tékhne, ‘arte’, estando subentendida), não designava somente a arte dos sons, como a entendemos hoje em dia, mas significava a união de poesia, música e dança. O texto poético, de modo geral, vinha acompanhado de melodia e de uma coreografia executada por dançarinos. O ritmo e a música se desenvolviam em estreita relação com o texto e acompanhavam os movimentos da dança (Gentili, 2006: 48-56. Ver também Barker, 1989: 54). Por isso o estudo da música grega, além é claro do valor intrínseco que apresenta, funciona como um complemento indispensável às pesquisas sobre a literatura, o teatro, a religião e as relações sociais na Grécia Antiga. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 681 A importância da música entre os helenos torna-se flagrante na República (4, 424c), onde Platão diz que não se poderia mudar os modos musicais (harmoníai) sem mudar as leis fundamentais do Estado. Lembremos também a importante função social que desempenhavam ilustres poetas-compositores da idade arcaica nas comunidades em que exerciam sua arte. Plutarco (Vida de Licurgo, 4) cita o caso de Tales de Gortina, cujas composições poéticas eram verdadeiras exortações à concórdia e instrumentos determinantes para a manutenção da ordem social. Em Esparta, Tebas e Mantinéia, música e política estavam tão ligadas que uma legislação específica foi criada para regulamentar a educação e a prática musical (Bélis, 1996:352). Píndaro, na sua primeira Pítica, demonstra que o poeta-compositor tinha consciência do poder da música e, como podemos depreender de muitas passagens de suas odes, também dos aspectos éticos inerentes aos modos e aos instrumentos musicais, quando define a melodia dórica como a mais solene e majestosa das melodias (fr. 67 Sn.-Maehl.) e o instrumento de corda, o bárbito, como próprio para aplacar o ânimo nas reuniões simposiais (fr. 124d Sn.-Maehl.) (Cf. Gentili e Pretagostini, 1988:vi-vii). Platão e os Pitagóricos também recomendavam o emprego do modo dórico por causa de sua virilidade e austeridade e a execução, preferencialmente, de um instrumento de cordas, no caso a lýra (Bélis, 1996:364). Assim, a mousiké estava presente em todas as ocasiões da vida: nos banquetes e nos festivais, nos rituais religiosos e mesmo nas terapias médicas (Cf. West, 1992:14ss). Seja como arte, seja como ciência, a música sempre desempenhou um papel destacado na vida dos antigos gregos e a quantidade de documentos que atestam essa importância é grande: desde reflexões filosóficas sobre o papel pedagógico da música na formação do caráter do cidadão (Platão e Aristóteles) a tratados específicos sobre a música em si (Aristóxeno, Plutarco, Aristides Quintiliano, Cláudio Ptolomeu, por exemplo), além de cerca de 60 restos de documentos musicais (‘partituras’) que chegaram até nós em papiros, manuscritos medievais e inscrições. Desse modo, acredito que minha exposição demonstra que não se pode estudar a chamada ‘literatura’ grega arcaica sem a consciência de que, na origem, esses textos eram compostos, provavelmente, no momento da sua apresentação e, se havia alguma interferência da escrita nesse processo, ela era limitada e não era importante no momento da performance. Isso que chamamos ‘poesia’, na verdade, era somente uma parte daquilo que poderíamos Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 682 chamar de melos, em alguns casos, ou mousiké, em outros casos, de maneira mais abrangente, abarcando palavra, melodia e movimento corporal, ou seja, o que para nós seria poesia, música e dança. Tendo isso em mente, o estudo da literatura grega do período arcaico se torna mais desafiador e mais interessante, mais aberto aos exercícios da imaginação, é verdade, mas também mais musical. É preciso aceitar esse desafio. Bibliografia BARKER, A. (1984) Greek Musical Writings, vol. I (The Musician and his Art), Cambridge: Cambridge University Press. BARKER, A. (1989) Greek Musical Writings, vol. II (Harmonic and Acoustic Theory), Cambridge: Cambridge University Press. BÉLIS, A. (1996) ‘Harmonique’, em Le Savoir Grec. Dictionaire Critique, Paris: Flammarion, pp. 352-367. GENTILI, B. e Pretagostini, R. (eds.)(1988) La Musica in Grecia, Roma-Bari: Laterza. GENTILI, B. (2006) Poesia e pubblico nella Grécia ântica. Da Omero al V secolo, Milão: Feltrinelli. GENTILI, B. e Catenacci, C. (2007) Polinnia. Poesia Greca Arcaica. Roma: D’Anna. HENDERSON, I. (1957) ‘Ancient Greek Music’, em Wellesz, E. (ed.) The New Oxford History of Music, Vol I, Londres-Oxford. HENDERSON, J. (1985) Poetry into Drama. Berkeley: University of California Press. NAGY, G. (2009) ‘Lyric and Greek Myth’, em Woodard, R. D. (ed.) The Cambridge Encyclopedia of Classical Mythology, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 19-51. WEST, M. L. (1992) Ancient Greek Music, Oxford: Clarendon Press. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 683 ACENTUAÇÃO CORPORAL DA PALAVRA Sandra Parra Furlanete110 (Profa. Ma.-UEL) Esta comunicação apresenta resultados de pesquisa empírica realizados dentro da ação “Palavra como Objeto/Imagem”, orientada pela Prof. Sandra Parra, dentro do grupo de pesquisa “Identidade, Jogo Cênico e o Objeto/Imagem”, coordenado Prof. Dr. Fernando Stratico, ligado ao curso de Artes Cênicas da UEL. A ação, composta por oito alunos-pesquisadores mais professor orientador, iniciou suas atividades em agosto de 2009. Seu objetivo é pesquisar o trabalho com a palavra como objeto/imagem na construção da tessitura cênica, partindo do princípio de que, para ter domínio e desenvolver maturidade sobre a criação cênica, é fundamental que o ator, antes de tudo, se exercite na produção de imagens endógenas. Esta produção de imagens deverá ser desenvolvida no sentido da máxima complexidade, envolvendo camadas diversas de significados e diferentes tipos de coerências, inclusive as não-lógicas. Sendo a palavra um dos elementos básicos e fundamentais do trabalho do ator, exploramos seu potencial imagético tanto endógeno quanto exógeno (na medida em que a palavra falada gera imagens para quem a ouve), e a construção de imagens significantes surgidas a partir de encadeamentos de palavras, coerentes sintaticamente ou não. Para chegarmos ao trabalho com a palavra, foi feito primeiramente um trabalho de expansão da autopercepção, através de exercícios que coordenassem voz, movimento corporal e todos os sentidos do corpo: audição, tato, visão, gustação, paladar, equilíbrio e propriocepção. A intenção deste caminho de trabalho é que a capacidade de gerar imagens endógenas – ou imaginação – seja ampliada a ponto de afetar a potência criadora do ator e, conseqüentemente, a recepção do espectador. Imaginação é, basicamente, a capacidade que temos de criar imagens. No senso comum (aquele traduzido, em geral, pelas gramáticas e dicionários, e que permeia nosso entendimento das coisas), entende-se que ela é “a faculdade que possui o espírito de representar imagens” (HOUAISS, 2001:vb. Imaginação – grifo nosso). Para espírito encontramos, dentre suas muitas acepções: “a parte imaterial do ser humano; alma”; 110 sandraparra44@yahoo.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 684 “substância imaterial, incorpórea, inteligente, consciente de si, onde se situam os processos psíquicos, a vontade, os princípios morais”; “mente, pensamento, cabeça”. Para mente, encontramos como acepções principais “sistema organizado no ser humano referente ao conjunto de seus processos cognitivos e atividades psicológicas”; “parte incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; espírito, pensamento, entendimento” (HOUAISS, 2001:vb. Espírito; Mente). A imbricação desses significados nos indica que a imaginação é considerada, comumente, como algo impalpável (embora não imperceptível), da ordem do não-material, do não-físico – ou seja, incorpóreo. No entanto, os estudos contemporâneos de neurociência atestam que a imaginação é sim um processo físico, totalmente co-dependente e interligado ao corpo. Para entender essa questão, é preciso primeiro procurarmos entender alguns aspectos dos processos mentais de onde se origina a imaginação. Nossos pensamentos são formados por imagens – um tecido de imagens perceptivas: visuais, sonoras, olfativas, gustativas, somatossensoriais etc., sendo o pensamento a capacidade que um organismo vivo tem de representar essas imagens. Até as palavras ou símbolos abstratos que passam pela nossa mente são, antes de tudo, imagens visuais ou auditivas; mesmo os símbolos matemáticos, representantes do máximo de abstração de que o pensamento humano é capaz, se não fossem imagináveis – ou seja, passíveis de serem representados mentalmente em forma de imagem – não poderiam ser conhecidos e manipulados por nós conscientemente. Assim, podemos afirmar que só conhecemos aquilo que podemos imaginar (DAMÁSIO, 1996:116; 135). Damásio descreve as imagens mentais como sendo de dois tipos: perceptivas ou evocadas (DAMÁSIO, 1996:123-124). As imagens perceptivas são imagens oriundas de diferentes “modalidades sensoriais”, ou seja, são aquelas formadas por nossas experiências no mundo: ouvir música, tocar uma superfície, ler um livro etc. Qualquer um dos pensamentos formados a partir dessas informações sensoriais é constituído por imagens, sejam elas cores, formas, movimentos, sons, palavras etc. Quando essas imagens surgem a partir da evocação de cenas do passado, ou então da construção de projeções do futuro, são chamadas de imagens evocadas. Assim, vemos que as construções imagéticas que formam o pensamento, no tipo perceptivo, são reguladas pelo corpo e pelo ambiente que o cerca; nas evocações e Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 685 imaginações, são dirigidas pelo interior do cérebro – sendo que, em algum momento, elas se constituíram como imagens perceptivas, já que toda evocação é a reconstrução de uma experiência anterior. O que nos leva a um ponto de extrema importância: imaginação e percepção são dois aspectos totalmente interligados. Seguindo essa linha de raciocínio, o primeiro trabalho realizado com os pesquisadores do grupo foi o de ampliar a autopercepção do próprio aparelho fonador, em ordem de buscar a construção – mas também a sensação da construção – da palavra falada. Nossa intenção, antes de tudo, era descobrir o que é “palavra” – o que é a palavra, sem nos atermos a uma definição que derivasse somente de sua função ou de seu uso. Uma palavra, o que é? O que faz com que uma palavra exista, e o que faz com nós a compreendamos como tal? Algumas instâncias, ou níveis dessa “construção sensível/corpórea da palavra” foram nomeadas pelos próprios pesquisadores, como segue: - silêncio; - ruídos; - fonemas; - sílabas; - palavra. E partimos para o trabalho com cada uma delas, uma conduzindo à outra. Com exceção do silêncio, com o qual não poderíamos trabalhar de antemão, antes da construção das palavras, pois o silêncio está ou se faz, e só conseguimos apreendê-lo em referência a algo que nele esteja; não é possível construí-lo mecanicamente, aprioristicamente. O segundo item, o ruído, foi o que demandou o trabalho mais longo e mais duro dos pesquisadores, embora nunca desprazeroso – muito pelo contrário. A intenção primeira dessa fase foi resgatar – antes ainda da oralidade – o caráter lúdico da sonorização. A referência dada para a experimentação foi a de bebês na fase da primeira fonação; os atores teriam de resgatar, reconstituir ou vivenciar o prazer sensorial (para não dizer sensual) da descoberta dos sons, envolvendo aí não só os sons em si mas também todo o mecanismo cinético envolvido em sua produção. Quando digo que esse foi o trabalho mais duro, foi porque, antes de chegarem a sentir prazer com a experiência da sonorização, os atores tiveram de vencer duas coisas: a vergonha, ou o medo do ridículo e do grotesco; e o sedentarismo de toda a complexa e Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 686 delicada musculatura exigida pela fonação, principalmente aquela envolvida na produção de sons que não são explorados pela fala cotidiana. Os exercícios utilizados nessa fase foram baseados principalmente em:experimentação individual dos ruídos; ampliação da cinética da produção dos ruídos, até o ponto de se tornarem amplas caretas; “jogo de espelho” com os ruídos – e suas respectivas “caretas” – para que cada um deles fosse obrigado a explorar e trabalhar também sons e movimentos que fossem naturais e orgânicos para outro, mas não para ele mesmo. Depois disso, o caminho percorrido foi se desenhando de maneira bastante orgânica: os ruídos passaram a ser tratados como fonemas – pediu-se aos pesquisadores que se reunissem em dois grupos e cada grupo selecionasse dezoito deles, criando uma grafia para cada ruído/fonema. Desses dezoito fonemas, três foram selecionados, aleatoriamente, para cumprirem a função de “vogais”; daí, eles passaram a compor sílabas, pela combinação de fonemas “consoantes” e fonemas “vogais”. Essas sílabas foram então combinadas para formarem palavras. Para evitar que as palavras criadas derivassem para um caráter ilustrativo ou onomatopéico do seu significado, foi imposta uma regra arbitrária: que elas fossem construídas com o mesmo número de sílabas da palavra equivalente em português, e com a mesma tonicidade. Aqui surgiu um problema de execução. Dada a complexidade e falta de habilidade dos pesquisadores com as próprias palavras criadas, eles tendiam a sempre pausar a emissão sonora logo antes ou logo após a sílaba tônica da dita palavra. E, sem a continuidade sonora, estes sons deixavam de se caracterizar como palavra – com a integridade sonora que a palavra exige – e se decompunham em fonemas novamente (não diferente da experiência de pessoas em fase de letramento que começam a ler seus primeiros textos em voz alta). Para que os pesquisadores pudessem compreender melhor a questão do fluxo do som exigido por uma palavra, solicitei a eles um exercício que faria com que o fluxo do movimento corporal – já bastante compreendido e explorado por eles, pelos seus estudos em Artes Cênicas – se transferisse para a fala. Assim, eles teriam de, para cada palavra, criar uma partitura de movimentos, com fluxo, ênfase e conclusão coincidentes com essa palavra. Nesse exercício ficou clara a existência de uma curva melódica, inerente e necessária à existência de cada palavra. Em teatro, costuma-se lidar muito com a curva Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 687 melódica de uma frase, ou mesmo de uma fala inteira (composta em si por várias frases reunidas). Aqui, pudemos perceber a importância de considerar não só o acento tônico, mas a curva melódica da palavra, para que ela possa se caracterizar como tal, ser reconhecida como tal pelo ouvinte, e então, a partir daí, poder carregar em si, carrear de si, seu potencial imagético, seu sentido não só semântico, construtor do entendimento poético. Caminhos de futuro da nossa ação de pesquisa. Bibliografia DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. FURLANETE, Sandra Parra. Estudos para integração voz.movimento corporal no trabalho do ator contemporâneo. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2007. HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O Cérebro Nosso de Cada Dia: descobertas da neurociência sobre a vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2002. HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Instituto Antônio Houaiss/ Editora Objetiva, dezembro de 2001. KRISTEVA, Julia. “A Linguagem, a Língua, a Fala, o Discurso”. in: A Lógica da Lógica. vol. 1. Centro de Extensão e Pesquisa da FCH-FUMEC, 1983. LE HUCHE, François; ALLALI, André. A Voz – Anatomia e fisiologia dos órgãos da fala. Porto Alegre: Artmed, 2005. vol 1. SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte – sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ZEMLIN, Willard R. Princípios de Anatomia e Fisiologia em Fonoaudiologia. Porto Alegre: Artmed, 2000. ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec/Educ, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 688 ORALIDADE E VOCALIDADE: DIFERENTES POSSIBILIDADES DO CONCEITO DE VOZ NA POESIA CONTEMPORÂNEA DE LÍNGUA INGLESA Sílvia Regina Gomes Miho (Profa. Dra.-UFGD) Introdução A poem understood as a performative event and not merely as a textual entity refuses the originality of the written document in favor of the plural event of the work, to use a phrase from Andrew Benjamin´s [...] to speak of the poem as a performance is, then, to overthrow the idea of the poem as a fixed, stable, finite linguistic object, it is to deny the poem its self-presence and its unity. Thus, while performance emphasizes the material presence of the poem, and of the performer, it at the same time denies the unitary presence of the poem, which is to say its metaphysical unit. 1 (BERNSTEIN, 1998, p.09). Sabemos que nossa missão deve ser realizada, sempre e de qualquer maneira, na linguagem transmitida pela voz, que tem a dupla acepção, oral e vocal. Nesse binômio é que se concentra toda a pesquisa da poesia sonora. (Minarelli, 2005, p.200). Entre a oralidade e a vocalidade, a poesia sonora constrói suas experimentações, que podem conter maior ou menor grau de oralidade e ou de vocalidade, dependendo de cada composição e das pesquisas que informam seus autores. Minarelli adota o nome “vocoral” para sua poesia, pois a oralidade e a vocalidade ocupam espaços e tempos nitidamente distintos em sua obra (Minarelli, 2010, p. 34). Há, também, como já apontavam os futuristas, a possibilidade de se adotar elementos eletroacústicos, máquinas e equipamentos de som e de imagem para colaborar na performance, mas a voz humana em contato físico com outros corpos e vozes humanas é primordial para diversos tipos de poesia. Ao tratarmos da poesia enquanto performance, estamos tratando de uma questão que envolve os dois aspectos de um acontecimento estético: o texto escrito e o texto que existe no momento de sua leitura ou performance. Em ambos os casos, a questão da voz se impõe, porém de modos diferenciados. Esta duplicidade ou pluralidade da voz em poesia confere a este gênero textual, e por que não dizer, a esta manifestação fenomenológica da Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 689 existência, sua riqueza, seu mistério e sua própria materialidade, ela mesma um jogo de tensões entre o escrito e o cantado ou vocalizado. Neste artigo, abordar-se-á duas das possibilidades do conceito de voz na poesia contemporânea: a oralidade e a auralidade ou vocalidade. Não tomaremos a voz poética no sentido de eu lírico, algo abstrato, mas partiremos de uma idéia mais material da voz, elemento físico e sensorial, seguindo as propostas de poetas Objetivistas como Zukofsky e Williams, e dos conceitos desenvolvidos por Olson em seu manifesto denominadoVerso Projetivo. Sabinson (2005, p.135) afirma que: “O objetivismo identifica a poesia com ambas a experiência do corpo humano e o material musical, cujas produções sonoras não são traduzíveis”. Para Olson, o ritmo do poema está em conexão direta com o corpo, relacionado ao fôlego do poeta . Deste modo, a prosódia por ele criada é uma extensão da sua própria respiração: a linha se quebra onde a respiração daquele que escreve faz uma pausa. Escreve Olson no seu “Projective Verse”: a CABEÇA, por meio do OUVIDO, para a sílaba o CORAÇÃO, por meio do FÔLEGO, para a linha 111 (2003, p.1059) Valendo-se dos recursos que o corpo oferece, a voz pode ser trabalhada através da fala, do discurso organizado cujos referenciais são conhecidos do público, gerando poéticas da oralidade ou, por outro lado, valer-se dos elementos linguísticos pré-discursivos como os fonemas, os lexemas, a entonação. A primeira proposta procura comunicar e partilhar idéias e identidades. Tomamos como exemplo deste tipo de poéticas obras dos poetas Beats, ao passo que a segunda investe no elemento não semântico ou não referencial da linguagem, como exemplificam os poemas sonoros de Steve McCaffery. Ambas as propostas são, de certa forma, um retorno às próprias origens da linguagem e da poesia. Em O grau zero da escritura Barthes faz a seguinte pergunta: “Há alguma linguagem poética?” Para responder a questão, o autor afirma que a diferença entre prosa e poesia é uma questão de quantidade, e não de essência e, para exemplificar seu ponto passa a comparar características da poesia clássica e da poesia moderna. Uma delas é a de que a 111 the HEAD, by way of the EAR, to the SYLLABLE / line.”(OLSON, 2003, p.1059) the HEART, by way of the BREATH,to the Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 690 poesia clássica é relacional, ou seja, seu objetivo é estabelecer e ressaltar as relações e não as palavras. Seu objetivo não é inventar, mas expressar, utilizando padrões e imagens reconhecíveis dentro de dado repertório, uma vez que visa à comunicação, o fluxo de conceitos e idéias. Originariamente oral, a poesia clássica é um ato social regulada pelo grupo na qual é criada e consumida. Para Barthes (2009, p.48), a poesia moderna, deve ser diferenciada da poesia clássica e de qualquer tipo de prosa porque destrói espontaneamente a natureza funcional da linguagem, deixando em pé apenas suas bases lexicais, uma vez que procura eliminar a intenção de estabelecer relações e em vez disso, pretende produzir uma explosão de palavras. Deste modo, a poesia moderna é composta de objetos inesperados, insólitos, ou, como escreve Barthes “uma caixa de Pandora da qual emergem todas as potencialidades da linguagem [...] a poesia moderna é uma poesia de objetos.” (p.50) Partindo desta concepção de poesia moderna sugerida por Barthes, passamos a discutir as possibilidades da voz em na poesia contemporânea. Oralidade e vocalidade: revolução contemporânea ou volta às raízes? “Contemporariness inscribes itself in the present by marking it above all as archaic.” (Agamben, 2009, p.50) A oralidade, a parte musical ou sonora dos textos poéticos é um dos pontos fundamentais não apenas deste gênero literário, mas também da literatura e da cultura como um todo. Se considerarmos as várias culturas ágrafas que conservam seu imaginário, suas tradições e valores através da palavra ritmada e cantada, publicamente, mantendo vivas as tradições, culturas e comunidades, logo perceberemos que este é um dos pontos cruciais da performance em poesia: seu caráter público, partilhado, construtivo e constitutivo de subjetividades que somente acontece através voz e e da performance. A oralidade, no sentido acima indicado, é marcada pela presença do corpo da voz do sujeito que canta ou enuncia oralmente o poema, canto ou narrativa com uma clara intenção comunicativa: a de estabelecer e manter ativo um canal de comunicação através do ritmo, das palavras e das imagens. Pode-se dizer que um dos pontos altos da oralidade reside na expressão significados, conceitos e comportamentos que são compartilhados. Imaginemos Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 691 um ritual religioso, por exemplo, em que a palavra cantada ou falada estabelece certo estado de atenção diferenciado daquele do cotidiano: o tempo do cotidiano cede a outro ritmo, algumas vezes encantatório, outras vezes hipnótico, ou simplesmente mais lento ou mais contemplativo, que torna o público mais receptivo a determinados estímulos proporcionados pela voz. Não seria descabido afirmar que este tipo de oralidade tem raízes ancestrais, sendo um traço comum a todas ou quase todas as culturas humanas, traço este que foi explorado e utilizado de diversas maneiras e com diferentes funções e intenções no decorrer dos tempos e em diferentes sociedades, tais como religião, educação, prazer estético. Em todos esses usos, a oralidade na poesia caracteriza-se por ser um bem cultural comum: referências, nomes, datas, deuses, são de conhecimento de todos. O antigo aedo, ao declamar os feitos heróicos dos grandes épicos, não acrescenta informações ou dados desconhecidos ou estranhos à tradição da comunidade que partilha aquela narrativa de formação. A partir do período romântico, entretanto, a expressão de um “eu”, de uma voz interior e única passa a concentrar os esforços e atenções dos poetas e, essa individualidade, que pode ser considerada uma das linhas de força da poesia até os dias atuais, busca expressar um estado de espírito ou state of mind peculiar e único daquele que fala e que se procura em sua própria voz. Há uma identificação com algumas tradições e valores, ao mesmo tempo em que outras tradições e valores precisam ser questionados. O meio escrito, mais acessível que em épocas anteriores, torna-se, então, uma das vias mais fortes da expressão poética, inclusive pelo fato de permitir uma relação mais introspectiva e íntima daquele que fala/escreve com sua voz interior e seu texto , assim como privilegia a intimidade da leitura, feita, muitas vezes, de maneira solitária e silenciosa. A presença marcante da voz na poesia contemporânea torna evidente a necessidade de se retormar o contato entre poeta e seu público, trazendo-a de volta a suas raízes coletivas. De acordo com Kristeva: A poesia é constituída dialogicamente através do reconhecomento e da troca com um público de parceiros, na qual o poeta não está encenando para leitores ou ouvinte invisíveis, mas para participantes ativos” (Kristeva,1984, apud Bernstein,1998, p. 23). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 692 A oralidade e os poetas Beats As poéticas dos norte-americanos Anne Waldman e Allen Gisnberg avançam na trilha aberta pelas tradições dos xamãs, aedos, bardos e visionários que povoam a poesia universal. Seus poemas e performances fazem da oralidade uma de suas principais forças de reação e de oposição a seus contextos imediatos. Michael Mclure, um dos poetas Beat descreve da seguinte forma o contexto do qual emergiram as poéticas do grupo: Os anos cinqüenta não foram como algumas pessoas imaginam hoje em dia, adorável, retro, sentimental, encantador, que as pessoas dançavam de uma certa maneira e a televisão estava surgindo em preto e branco como um presente. A verdade é que aquele tempo era sério. Era a Guerra fria, o tempo do comitê das atividades anti-americanas no senado, o tempo de Joe McCarthy, o tempo da guerra da Coréia.[...] Os cidadãos eram tremendamente oprimidos por usa necessidade de conformidade depois de terem passado pela Segunda Guerra, celebrada e homicida, e depois de terem sido criados pela “máquina educacional” do sistema propaganda militarindustrial que foi criado pela Segunda Guerra Mundial”. ( McClure,1999, in Waldman & Wright, 2009, p.15) No cenário literário ou poético descrito por McClure, havia, ainda, um tipo de molde ou padrão para a poesia, um padrão advindo da poesia do alto modernismo, um tanto quanto hermética em sua conquistada autonomia Acadêmica, difícil e cheia de referências que, para a maioria dos cidadãos daquela época tensa, não faziam parte nem de seus vocabulários nem de suas realidades, sendo portanto, distante e sem sentido ou sem função para os não iniciados.Uma das propostas subjacentes à poética Beat, assim como várias outras tendências da poesia contemporânea de língua inglesa a partir da década de 50, ( a poesia do pós-guerra ou New American Poetry) é a de se tirar a poesia da página impressa e trazê-la para uma relação mais física, corporal e espacial, em suma, trazer a poesia para a experiência social mais ampla da qual ela emerge e que lhe suscita respostas no tempo presente e vivenciado, concreto e material. A poesia da geração Beat, rebelde, viva, forte, como toda poesia vinda de uma legítima experiência que encontra sua voz, encontra também as suas raízes. Longe de ser algo desprovido de pesquisas, conhecimentos e reflexões, seus poemas são frutos de escolhas que Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 693 ao se concretizarem de maneira individual, na voz de cada poeta, injetam oxigênio e nutrientes em uma tradição poética. Esta tradição tem ramificações mais próximas e outras mais distantes. Tratando de dois poetas especificamente, Ginsberg e Waldman, podemos traçar estas tradições mais próximas no modernismo norte-americano: William Carlos Williams e Charles Olson. Porém, outras fontes também nutrem este ramo da poesia contemporânea: Whitman, Blake, poemas religiosos, cânticos e rituais de culturas orientais e indígenas. Mas o que todas essas fontes teriam em comum? Ritmo e poesia: voz, fôlego, respiração, corpo. Mais do que algo abstrato, sentimental ou espiritual, a poesia corre nas veias, nos pulmões, na boca, nos ouvidos. Michael Davidson (in BEACH, 2005, p.75) afirma que, assim como a pintura das décadas de 50 e 60, a poesia também era formada por gestos, por atividade muscular e não meramente discursiva. Como exemplos ele menciona as pinturas de Pollock e as performances e leituras de poemas de Olson e de Ginsberg. A poesia, assim como a pintura não descreve, mas cria e encena o sentido. Toda essa genealogia poética baseia-se na oralidade, na comunicação de subjetividades e identidades. Ginsberg, (2003,p.1075) comenta sua leitura de Howl e afirma que aquela composição não tinha a finalidade de chegar aos ouvidos de todos, mas somente para poucos amigos, pois na verdade, ele falava consigo mesmo. Era a sua voz para si. Por sorte, a composição se tornou não somente pública, mas um hino ou um símbolo de toda uma geração. No áudio disponível em: http://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Ginsberg/SFSU-1956/Ginsberg-Allen_PoetryReading_SFSU_10-25-56.mp3, pode-se notar a forte presença do fôlego e da respiração, do corpo do poeta, guiando a leitura e o ritmo da percepção pelos ouvintes. Ritmo de desabafo, de necessidade de falar e conseqüentemente deixar fluir tensões, medos, ansiedades e temores que se estendem por longos períodos. Suas leituras ou performances, todavia, diferem das de Waldman em vários pontos. Ginsberg se move no limite entre poesia e fala, enquanto Waldman transita no limiar entre poesia e o ritual. Anne Waldman, em um ensaio denominado “I is another”: Dissipative Structure, afirma a respeito de sua própria poesia: Poetry is not a closed structure [...] I am interested in the power language has, and particularly in how to use it out of this female body and awareness Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 694 to change my own consciousness and that of other people around me. I enact language ritual as open-ended survival […] This enactment results in a public poetry, in a communal poetry” (1996, p.129-130) A posição de Waldman a respeito do uso ritual da linguagem é explícita em seus poemas, ensaios, palestras e aulas sobre o tema. Nos arquivos de áudio, vídeo e textos mantidos pelo Naropa Institute, onde Waldman atua como pesquisadora e professora, suas palestras sobre poéticas xamânicas, poéticas de vanguarda, entre outros temas, pode-se perceber sensívelmente o que ela quer dizer com ritual. Pesquisadora da poesia oral de índios nativos das Américas do Norte e do Sul, Waldman realmente acredita no poder da voz ritualística como elemento de comunicação especial, mais profundo. Sugiro a audição, mesmo que breve, de sua performance/leitura do poema "Fast Speaking Woman”, disponível no endereço: http://mediamogul.seas.upenn.edu/pennsound/authors/Waldman/Battery/WaldmanAnne_01_Fast-Speaking-Woman_Battery_1974.mp3. O ritmo encantatório no qual ela desenvolve a leitura revela o seu próprio engajamento físico e psíquico (as entonações, vibrações, modulação de voz, respiração, movimentos de corpo) abrem e mantém um canal perceptivo envolvente trazendo a tona pulsões através dos elementos rítmicos e não necessariamente semânticos do texto. A estrutura repetitiva dos versos (I _+verbo de ligação + predicativo do sujeito + a palavra woman) faz referências a inúmeros tipos de mulheres que a poeta afirma ser, ressaltando todas as diferenças e todas as igualdades entre suas condições. Essas referências são percebidas como diferenças por suas relações semânticas e discursivas. Ao mesmo tempo, a força rítmica da voz em performance parece hipnotizar, ou, pelo menos, aproximar-se de um estado de transe em que as diferenças discursivas tendem a apagar-se. Essa tensão torna a performance deste e de outros poemas um elemento simultaneamente organizador e desorganizador da linearidade discursiva, ao propor ritmo e tempos distintos do aqui-agora das sociedades de massa.. Enquanto a poesia que privilegia a oralidade é marcada pela presença e pelo engajamento, tanto do poeta/performer quanto do público, atuando de modo discursivo, a poesia sonora emprega a voz em um nível cognitivo diferente, enfatizando os sons não discursivos da linguagem, os sons da fala, mas de maneira aparentemente desarticulada. Suas composições buscam recursos diferenciados que, ao invés de absorver, imediatamente, o Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 695 público/leitor em seu discurso, oferece-lhe textos que repelem essa absorção por usar os sons dispersos “entre o corpo e a linguagem” (McCaffery, ....., p. 163), em que o significante impõe-se sobre o significado. Auralidade opaca: a não transparência da poesia sonora. Julia Kristeva (1984) desenvolve conceitos fundamentais ao estudo de poesia contemporânea. Dois dos pontos essenciais discutidos por ela são os campos simbólicos e semânticos da linguagem em suas várias possibilidades, mais especificamente na linguagem poética. Resumidamente, pode-se dizer que tais campos ou níveis são indissociáveis, mas cada um tem suas próprias características e funções na constituição da fala, da subjetividade e das manifestações discursivas em geral. O campo simbólico da linguagem é organizado, e procura a transparência na comunicação de idéias. O exemplo utilizado por ela é o do discurso científico. Já o nível semiótico é um nível pré-discursivo, não organizado linearmente, mas repleto de pulsões, de desejos e de energias que nutrem o nível simbólico e o tornam ativo. Na comunicação diária, através do uso da linguagem de maneira utilitária, o nível simbólico prevalece em nossas interações comunicativas. Por outro lado, na linguagem poética o nível semiótico ganha maior espaço e força. O nível semiótico constitui-se no chora, espaço em que o sentido é produzido. Caracterizado por movimentos espontâneos de pulsões ou desejos numa totalidade não expressiva, próxima, portanto, do inconsciente, o chora é descrito por Kristeva como o estágio de desenvolvimento de uma criança em que ela ainda não sabe usar a linguagem para se referir às coisas ou, então, como o estado psicótico, no qual a linguagem não é usada de maneira inteligível. Ali se formam as vocalizações, as glossolalias, os ritmos e entonações da fala. A revolução da linguagem poética, sugerida por Kristeva, reforça a importância do nível semiótico na criação verbal, mais especificamente pelas poéticas de vanguarda. A linguagem poética estilhaça e desestabiliza a totalidade do discurso. Escreve ela que: Because of its specific isolation within discursive totality o four time, this shattering of discourse reveals that linguistic changes constitute changes in Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 696 the status of the subject – his relation to the body, to others, and to objects, and also reveals that normalized language is Just one of the ways of articulating the signifying process that encompasses the body, the material referent and the language itself. (1984, p. 15-16). A poesia sonora apresenta, através da voz e da performance, esse estilhaçamento do discurso, libertando a fala do sentido, da obrigatoriedade de um referente claro e direto, pois situa-se no espaço em que a possibilidade de falar e de fazer referências encontra-se, ainda , em formação e movimento, instável e opaca, em suma, glossolalias. Segundo Michel de Certau: “O que a utopia é para o espaço social, a glossolalia é para a comunicação oral; ela incorpora aos simulacros lingüísticos tudo que não é linguagem, mas que vem da voz falante”. (1996, p.30,31). Há um rumor polifônico que se vale dos fonemas como unidades lúdicas de composição, que divide e desmancha a palavra falada e, por conseguinte, destrói as bases da língua em que existe, tornando-se ininteligível, irreconhecível, semelhante a rumores ou ruídos. Mas qual seria a finalidade de uma poesia assim, que insiste na vocalização e no significante com maior intensidade, colocando em segundo plano ou até mesmo excluindo o significado? A resposta está na experimentação sonora e nas pesquisas a respeito dos usos da linguagem, da construção de sentidos e na proposta de se romper com um uso exclusivamente utilitário e transparente da linguagem. Wittgenstein afirma que “A poesia é feita com a mesma linguagem da informação. Mas seu objetivo não é a transmissão de informação”. Ou seja, a sua finalidade não é informar, mas sim chamar atenção para o material que a compõe e como seus elementos podem ser organizados. Enfim, propõe um jogo de linguagem como o objetivo de frear o ritmo da informação, propor um ritmo diferenciado daquele da linearidade e da imediaticidade. Esses são os efeitos estéticos primordiais para a poesia sonora, propor uma percepção diferente através do estranhamento que a materialidade da composição causa. Por que não prestar atenção nos sons da língua e usá-los como elementos composicionais, ou, como escreve Bernstein, como artifícios que deixam explícita sua artificialidade? Esta questão, além de apontar para aspectos estritamente ligados à composição e seus métodos, também põe em evidência uma posição ideológica e política de questionamento de padrões e comportamentos que estão presentes nos usos cotidianos e nos usos poéticos da linguagem. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 697 A constância desses padrões acaba por usar de artifícios que tornam determinados tipos de discursos transparentemente realistas. O público, as pessoas, os leitores, enfim, são absorvidos pelas composições, mesmo sem perceber. È o caso dos gêneros discursivos usados diariamente: a mídia televisiva e jornalística, as novelas e séries de TV, a linguagem das mensagens instantâneas e das redes sociais online passam a fazer parte da linguagem e, portanto, dos seres que nela vivem, que a usam e são usados por ela. Os gêneros literários e musicais tradicionais também podem, de certa forma, contribuir para que se preste menos atenção ao material das composições e se espere por um conteúdo parafraseável ao final da leitura, pois a expectativa criada pelos Gêneros textuais geram estratégias e passos interpretativos distintos uns dos outros. Misturar gêneros textuais, fundi-los, extrapolando suas bordas faz parte do experimentalismo literário de dos poetas do grupo L=A=N=G=U=A=G=E. Muitas de suas composições apagam os limites entre ensaio e poema, como “Artífice of Absorption” e “Dysgraphism”, de Charles Bernstein. Este grupo exerce a reflexão critica e criadora, autocrítica, aplicando e discutindo conceitos advindos do pensamento crítico francês, da filosofia nas suas escrituras e em suas performances, dramatizando o processo de articulação do pensamento no texto e do texto. O poeta sonoro Steve McCaffery, participante do grupo afirma que poesia essencialmente pesquisa. Ao longo dos anos, os interesses deste poeta-pesquisador percorreram vários caminhos dos estudos da linguagem: estudos filológicos, fonéticos, Old English, dialetos de sua terra natal e outros, teoria critica, desconstrução, psicanálise. O foco de suas pesquisas é a investigação formal, material das línguas. Clint Burnham (1996, p. 17) divide a obra de McCaffery em quatro fases não cronológicas e que se sobrepõem. A primeira fase, na década de 1970 é considerada o seu período concreto ortodoxo, culminando com a série Carnival (1973 e 1979). O Segundo período é um período de transição através de livros construtivistas, como Panopticon (1984). O terceiro período envolve trabalhos líricos e póslíricos (Intimate Distortions, de 1973 e Evoba , de 1987 . O quarto período, no qual McCaffery ainda trabalha, é denominado teoria-ficção e inclui North of Intention (1986), Rational Geomancy (1992) e Theory of Sediment (1991). Sua obra é extensa e bastante heterogênea. Tomemos apenas dois exemplos de como seus poemas e pesquisas se concretizam. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 698 O primeiro exemplo é a sua tradução para o dialeto de Yorkshire, do Manifesto comunista de Karl Marx e F. Engles. McCaffery, em entrevista a C. Bernstein, afirma que as traduções inglesas daquele texto traem a intenção comunicativa do autor, uma vez que o texto é dirigido aos proletários, mas, nas versões inglesas emprega-se uma linguagem excessivamente vitoriana para os ouvidos dos trabalhadores. Por isso, ele compôs uma versão do texto grafada como se pronuncia, no dialeto de Yorkshire, pelos trabalhadores locais. Abaixo, um pequeno trecho do texto. Para ouvi-lo e obter o texto completo, acessar http://writing.upenn.edu/pennsound/x/McCaffery.php e buscar o link: http://mediamogul.seas.upenn.edu/pennsound/authors/McCaffery/MccafferySteve_Kummunist-Manifesto_c1990.mp3 Steve McCaffery The Kommunist Manifesto or Wot We Wukkerz Want Bi Charley Marx un Fred Engels Redacted un traduced intuht‚Äô dialect uht‚Äô west riding er Yorkshuh bi Steve McCaffery, eh son of that shire. Transcribed in Calgary 25 November to 3 December 1977 un dedicated entirely to Messoors Robert Filliou and George Brecht uv wooz original idea this is a reullizayshun. Nan sithi, thuzzer booergy-mister mouchin un botherin awl oer place--unnits booergy-mister uh kommunism. Allt gaffers errawl Ewerup‚ Äôs gorrawl churchified t‚Äôbooititaht: thuzimmint mekkers, unt jerry plain cloouz boobiz. Nah then--can thar tell me any oppuhzishun thurrent been calder kommy bithem thuts runnint show? Urrunoppuhzishun thurrent chuckt middinful on themuzintfrunt un themuzintback unawl? Nahthuzzuh coupler points ahm goointer chuckaht frum awl thisseer stuffidge: Wun: Thadeelin wear reight proper biggun inthiseer kommunizum. Too: It‚Äôs abaht bluddy time thut kommunizum spoouk its orn mind, unwarritsehbaht, un edder reight set-too we awl this youngunz stuff ehbaht booergy-misters, wee uh bitter straight tawkin onnitsoowun. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 699 Uma das características da poesia sonora de McCaffery, na análise de Bernstein (1992) é ser “antiabsortiva”. Afastado da transparência realista, o poema/performance reforça sua “artificialidade”, sua existência como um artefato lingüístico. O lugar, ou melhor, o entrelugar do texto escrito e de sua vocalização, da linguagem e do referencial do ser que fala/vocaliza e do ser que escuta é o espaço e que se inserem sua pesquisas e suas criação. O que está em jogo, neste jogo de linguagem, é um deslocamento da linguagem e do texto enquanto veículos inquestionáveis de uma experiência ( exemplo: realismo/naturalismo) para uma crítica desses veículos empregados não apenas para a comunicação da experiência X ou Y, mas também como construtores de identidades, ideologias e poemas. Kommunist Manifesto joga com as possibilidades de vocalização de uma oralidade não reconhecível por comunidades não falantes daquele dialeto. Sons, então, passam a fazer parte do sentido, integralmente, tornando-o inusitado e estranho, dotado de musicalidade e ritmo próprios, recurso que dramatiza e concretiza o texto e a performance dele, pois o “sentido’ ou o reconhecimento do tema ou assunto tratado reside mais no som que na grafia. Charles Bernstein afirma que: As the poem seems/ overtly self-conscious, as opposed internally/incantatory or psycgcally/ actual,/ it may produce/ self-consciousness in the reader/ destroying his or her absorption by theatricalizing/ or coneptualizing the text, removing/ it from the/ realm of an experience engendered/ to that of a technique/ exhibited./ This is the subject of much of my work. (Bernstein, 1992, p.53) Composições de poesia sonora jogam com a possibilidade da não absorção, com o estranho e absurdo fato de se usar os sons da língua, associados às potencialidades da voz do poeta ou performer para não comunicar algo parafraseável, para gerar no público a sensação de falta ou de ausência, ou melhor, os fonemas, letras ou sílabas dissociadas de uma correlação com o “sentido” usual. Em Kommunist Manifesto, as experimentações e técnicas exibidas pelo poema refletem suas pesquisas com a sonoridade e as propriedades fonéticas da língua inglesa, não conhecidas ou não reconhecidas pela maioria dos falantes da língua. Como adentrar nesse contexto lingüístico? Qual expectativa tem o leitor/ouvinte em relação Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 700 ao texto? A quebra de expectativas interpretativas convencionais não impede o texto de ser algo lúdico e interessante em duas frentes: a primeira, e principal delas, a performance, cuja potencialidade semiótica realmente faz do texto vocalizado algo totalmente diferenciado do aspecto gráfico. Seu aspecto de entretenimento ( Bernstein, 1992, p.65) atinge o público que busca algum tipo de ruptura com o entretenimento convencional; a segunda frente é a da leitura do texto, tentando vocalizá-lo. Apostando propositadamente na impressão de non-sense, trabalhos deste tipo são, na verdade, resultado de constante pesquisa e de metodológica experimentação. Não se trata de um amontoado de sons, mas da seleção meticulosa de elementos sonoros e vocais quase que irreproduzíveis por outra pessoa que não seja seu compositor. Não ha transcrições comuns a vários performers para as vocalizações de fonemas e/ou outros sons produzidos pelo aparelho fonador humano. Steve McCaffery menciona um experimento feito por ele no qual outra pessoa tenta vocalizar um de seus poemas sonoros. A idéia não funciona, pois a reprodução vocalizada obtida não se iguala à sua, gerando assim, outra peça. A aparente falta de sentido fica ainda mais pujante quando McCaffery lê um de seus poemas sonoros, intitulado “Midnight Piece” (ou seria Midgnight Peace?), num primeiro momento vocalizando o texto escrito e, em seguida, lendo o texto sem vocalizá-lo. Como se trata de poemas sonoros, a audição se faz necessária para que possamos tecer outros comentários. Os poemas acima mencionados estão disponíveis em: http://media.sas.upenn.edu/pennsound/groups/LINEbreak/McCaffery/McCafferySteve_LINEbreak1_Buffalo_1995.mp3. Trata-se de uma entrevista concedida a um programa de rádio. A leitura vocalizada encontra-se aos 24 minutos e 12 segundos. A leitura não vocalizada, aos 27mininutos e 30 segundos d entrevista com duração total de 29 minutos. Sem escutar o áudio da performance, mesmo que gravada, torna-se impossível saber exatamente do que se trata. Ao ouvir, porém, as diferenças aparecem de maneira inconfundível. A poesia sonora e a leitura vocalizada de poemas fazem da voz em cena, em ação, um importante elemento semiótico que gera sentidos conectando corpo, linguagem, afeto e comunidade num momento de interação. Tais poemas podem ter um caráter que repila uma interpretação linear ou tradicional, mas a performance proporcionada por eles traz outra possibilidade de Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 701 interpretação e de entretenimento, na qual o participante ativo se engaja e constrói os significados do evento do qual está participando. Não há poesia sonora sem performance. Pois, de acordo com McCaffery: “Sound poetry materializes an ideology by grounding social identity in non-discursive vocalization”. (1998, p.) e a vocalização necessita do diálogo e da polifonia efêmera de cada performance. A questão teórico-crítica subjacente aos poemas e ensaios de McCaffery tem sólidas conexões com o pensamento de Derrida e de Kristeva, principalmente no que se refere às potencialidades de articulação e explosão de sentidos que existem além do nível simbólico e monofônico da correlação som-sentido. A exploração dos elementos fonéticos sugerida por Kristeva (1974, p. 34) fica bastante clara nas composições de McCaffery. Cito: [..] phonetic particularities which have no distinctive value but which, depending on their articulation base, imply different impulsional (pulsional) investiments[…] and though they have no immediate semantic value, do acquire such value through displacement and condensation. (Kristeva, p. 34) e: […] when the phonematic distinction is thus overburdened with new economies (drives, alliterations, repetitions, displacements, condensations, etc.) the univocal character of every lexical character is lost. (idem, p.36). A revolução da linguagem poética de que fala Kristeva ecoa nas propostas de McCaffery, de Bernstein e outros. Baseados na idéia de que a prática literária é inseparável da prática política - uma vez que ambas acontecem no mesmo elemento fundador, a linguagem – eles uma noção de texto para o qual o sujeito traz para aquilo que o outro apresentou para a sociedade. A identidade e a formação de subjetividades e sentidos, individuais ou coletivos, que parte de elementos rejeitados pela sociedade moderna, como as formas consideradas não produtivas (vocalizações, glossolálias) ou não semânticas reflete a importância do Outro na linguagem. Fonemas deixam de ser unidades mínimas significativas em função de um sentido e tornam-se gestos verbais conectados com o Outro da linguagem, o outro que se esconde nos níveis inconscientes ou semióticos e que servem como estruturas fortes, porém invisíveis, de nossa psiqué e de nossa ação enquanto seres participantes de comunidades . As pulsões, os Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 702 desejos, as sensações físicas concretizadas em vocalizações de poemas, longe de serem meros grunhidos ou sons desarticulados, procuram, na verdade, articular forças sempre presentes, mas quase nunca desejáveis ou produtivas, no sentido capitalista do termo. De acordo com Kristeva (1984, p.17), a linguagem poética tem a ver com o nosso ser no mundo, individual e coletivamente, pois ela traz consigo infinitas possibilidades de linguagem sejam elas conscientes ou inconscientes. Ao estilhaçar o discurso, a linguagem poética põe à mostra a base produtiva das formações de significados sociais e ideológicos, deixando ver que o que hoje julgamos esquizofrênico já foi considerado, por sociedades primitivas, como algo sagrado. McCaffery menciona Barthes e Kristeva em seu ensaio The Unreadable Text (1983) e sugere que uma das alternativas à abordagem de produção semântica está na exploração do ritmos e sons que “constitute the radical other of the linguistic interiorized and repressed with all manifestations of signifying process.” (McCaffery, 1983, p.67) Finalizando este artigo, coloco novamente a pergunta: Oralidade e vocalidade: revolução poética ou volta às raízes? Acreditamos que o princípio mesmo da linguagem poética é revolucionário por natureza, por trazer, sempre, a possibilidade do Outro na linguagem. Por isso mantém uma conexão forte e pulsante com elementos essenciais e ancestrais, primitivos e arcaicos nos quais - seja pelas vias discursivas da poesia oral ou pelas vias vocalizantes da poesia sonora- as vanguardas e a contemporaneidade buscam refúgio, ar fresco e energias revigorantes para exercer seu ser no mundo, sua contemporaneidade. Isso não significa que se trata de um simples retorno ao ancestral, mas sim de um modo de ser e de estar no presente de maneira questionadora e crítica. Para Gertrude Stein, e também para Agamben, o contemporâneo parece estar sempre um tanto quanto deslocado, não se encaixa perfeitamente aos moldes do seu tempo, por ter com ele uma relação de disjunção de anacronismo inclusive porque, deste modo, pode ter uma visão e uma compreensão de seu tempo diferenciada, mais crítica. Os exemplos comentados por este artigo – Anne Waldman, Allen Ginsberg e Steve McCaffery – ilustram de maneira breve, como essa relação entre contemporâneo, vanguardista e arcaico podem se construir a partir de diferentes objetivos e métodos, mas com pontos em comum: a valorização e o questionamento de processos existenciais, estéticos e Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 703 políticos concretizados pela palavra falada, vocalizada que aponta para as possibilidades do ser a partir dos usos e concepções de voz postas em ação. Bibliografia AGAMBEN, G. What is Contemporary. In: What is Apparatus and Other Essays. Trad.: D. Kishk e S. Pedatella. Stanford : Stanford, 2009. BARTHES, R. A Barthes Reader. Ed. E introdução de Susan Sontag. New York: Barnes and Nobles, 2009 BERNSTEIN, C. A POETICS. Cambridge, Mass .: Harvard University Press, 1992 . ______. ( Ed.) Close Listening: Poetry and the Performed Word. New York/ Oxford : Oxford University Press, 1998 BURNHAM, C. Steve McCaffery: Life and Works.Toronto, Ontário: ECW Press, s/d. DAVIDSON, M. Skewed by Design: from Act to Speech in Language Writing. In: BEACH, C. Artifice and Indeterminacy: an Anthology of New Poetics. Tuscaloosa: Alabama University Press, 1998, pp. 70-77. DE CERTAU, M. Vocal Utopias: Glossolalias.in:Representations. 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North Atlantic Books, 1983, p 64-77 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 704 ______. Voice in Extremis, in: BERNSTEIN, C. Close Listening: Poetry and the Performed Word. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1998, pp.162-178. ______. Arquivos de áudio disponíveis em: http://media.sas.upenn.edu/pennsound/groups/LINEbreak/McCaffery/McCafferySteve_LINEbreak1_Buffalo_1995.mp3. ______. Uncollected Texts 1968-2000.Toronto: Coach House Books, 2002 McLURE. M. The First Reading of the Environmental Movement: The Six Gallery Reading. In: WALDMAN, A. & WRIGHT, L. (Eds) Beats at Naropa- an Anthology. Minneapólis: Coffe House Press, 2009, pp.15-19 MINARELLI, E. A voz como instrumento de criação: dos futuristas à poesia sonora. In: Sibila – Revista de poesia e cultura. Ano 4, n. 8-9, 2005, pp. 178-217 ______. 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ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 705 POÉTICA DA VOZ: PALAVRA E PERFORMANCE NA CANTORIA DE VIOLA Simone Oliveira de Castro112 (Profa. Dra.-IFCE) Em geral eloquentes, os cantadores e cantadoras são de fato homens e mulheres da palavra, seja ela cantada, improvisada, falada. A força de sua arte inscreve-se exatamente no espaço primordial em que a voz/palavra ocupa um lugar de destaque caracterizando, assim, um poder simbólico, o poder da palavra determinado pela “crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia”.113 A cantoria configura-se, em seu fazer, notadamente a partir do poder da palavra e da voz. Sendo arte performática, na troca em presença de vários outros é que se revela como um ritual nas pulsões de corpos, que se animam e se comunicam através de um repertório de sentimentos, imagens e memórias revividas, experimentadas toda vez que um cantador toca no pinho e, soltando sua voz roufenha, transforma palavras em poesia. Para o cantador Louro Branco “a cantoria é um trabalho muito difícil. Cantar repente de improviso... é aquela coisa, o mistério está mais na letra do que na música”. 114 Como sugere o poeta, o mistério está na letra, que neste caso, é antes de tudo palavra cantada, improvisada e que consegue alcançar o interior do ouvinte. Ao falar da poesia oral, Paul Zumthor esclarece: A enunciação da palavra ganha em si mesma valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga, sem outra mediação, duas existências. 115 A cantoria se insinua para cantadores e ouvintes como esse ato simbólico. Ato de conquista. Conquista do outro, o público, através da palavra criadora, rebelde e doce, 112 113 simone@ifce.edu.br BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6ª. ed. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 15. 114 Entrevista realizada pela autora em 17/09/2004 em Fortaleza/CE. 115 ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad.: Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: HUCITEC, 1997, p.15. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 706 agressiva e esperançosa. Arte que se constrói como palavra-discurso porque consegue enredar, no mesmo tecido social, vidas que se assemelham e se reconhecem. É, sobretudo, a força da palavra improvisada o motor que dá continuidade a essa arte. Os ouvintes buscam palavras que criem, através das vozes dos cantadores e cantadoras, um mundo que diga respeito à sua própria existência. É uma poesia que traduz e recria, em seus diferentes gêneros, o cotidiano das vidas que se unem em torno de um vínculo coletivo e que dá significado aos fragmentos de memórias e histórias vividas por seus ouvintes em espaços e temporalidades diversas. Através dessas palavras eles podem reviver um sertão que ficou para trás ou imaginar uma cidade que trouxesse todas as benesses que a “vida moderna” pudesse oferecer. Como no exemplo trazido por Moacir Laurentino e Sebastião da Silva: 116 SS: SS: A cidade é ambiente Precisamos na cidade Do povo que pensa bem De algo que o campo cria E todos os graus de ensino Se o campo não produzisse É na cidade que tem A cidade não comia Sertão não tem faculdade Se a cidade não comprasse Que dê diploma a ninguém O campo nada vendia ML: (...) ML: Porém na cidade tem Entre a tecnologia Barulho que me faz medo E o trabalhador do eito No sertão os passarinhos Cada qual faz sua parte Cantando nos arvoredo Cada um é do seu jeito Alegrando as alvoradas Ambos são filhos de Deus Pra gente acordar mais cedo Merecem o mesmo direito (...) 116 Moacir Laurentino & Sebastião da Silva. Os Grandes Repentistas do Nordeste. Vol. 11. 5ª. Faixa. Sextilhas: O sertão e a cidade. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 707 Os cantadores, neste sentido, representam um universo de vozes e palavras que consegue, de forma primorosa, cantar o contínuo intercâmbio entre o sertão e a cidade, entre o urbano e o rural, entre o oral e o escrito, compondo, assim, uma instância de identificação entre os ouvintes. Esses poetas, em diferentes espaços e temporalidades, aglutinam essas coletividades dispersas que estão em busca de comunicação com o mundo no qual se vêem inseridos, que procuram compreender os percursos aos quais foram impelidos nos inúmeros processos migratórios. Migração não apenas no âmbito sertão-cidade, mas também subjetiva, entre os modos de viver, de sentir e apreender os novos significados advindos desse processo. A cantoria atrai exatamente por essa capacidade que homens e mulheres, muitas vezes apenas alfabetizados, têm de transformar a realidade vivida em metáforas, em imagens que revelam uma sabedoria incomum que encanta e faz despertar no outro emoções, sensações, sentimentos que dormiam no corpo/memória e que o cantador traz à tona no momento da performance. Para o ouvinte José Francisco Maia: O que motiva é a sabedoria dos cantadores, né? Além da sabedoria, conseguir encaixar nos versos o que sabem e rimado e rimar de repente esse saber. É exatamente o que atrai esse público é a forma como ele improvisa e o saber dele (...). Ele expressar esse saber nesses versos porque tem (...) tem gente que é muito sabida, mas não faz nenhum verso muito menos de repente. 117 Essa sabedoria dá autoridade aos cantadores. Esse poder de transformar, de repente, palavras, idéias, sonhos, angústias, medos tudo em poesia, e obedecendo a regras bem definidas, faz com que essa arte permaneça existindo. Não é apenas o que eles dizem e sabem, mas também o modo como conseguem transmitir esse saber o que os torna tão admirados e respeitados pelo seu público. Essas vozes e palavras simbolizam, para além da técnica, a emergência de um modo de ser e de viver que consegue sua expressão plena nessa poesia. Os ouvintes encontram no cantador um interlocutor capaz de traduzir o que muitos sentem necessidade de dizer, mas não conseguem e, indo além, também o não vivido, o algo novo, nunca ouvido nem experimentado. São sentimentos que, antes dispersos, passam a fazer parte de um repertório 117 Entrevista realizada pela autora em 03/03/2007 em Limoeiro do Norte/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 708 comum em cuja memória as diversas gerações mantêm-no vivo e atual. É um (re)conhecimento. Zumthor explica: O conhecimento ao qual eu dou forma ao falar e de que, pela via do ouvido, você se apodera, se inscreve num modelo ao qual ele faz referência: ele é reconhecimento. Ele se predispõe a dar justificativas habituais e se desenvolve em uma trama de crenças, de hábitos mentais interiorizados, constituindo a mitologia do grupo, qualquer que seja ele. 118 Os ouvintes sentem-se representados nessa poesia porque ela expressa uma memória emotiva de algo vivido pela maioria nos sertões, e, devido a inúmeros deslocamentos rumo às cidades, sentem necessidades de rememorar um passado que se torna presente toda vez que um cantador consegue evocar esse sentimento de saudade, esse cheiro de infância ou, até mesmo, as marcas desses deslocamentos e as novas formas de viver em outro espaço social. Entretanto, essa poesia pode expressar a dimensão de algo maior, algo que se insinua na criação de uma experiência não vivida anteriormente. A voz nomeia e transforma a emoção vivida através da palavra e, ao mesmo tempo, sugere novas emoções e a possibilidade de transcendência do cotidiano. E essa vozpalavra encontra eco na coletividade cujo horizonte de expectativas é satisfeito quando o cantador atende ao pedido da platéia. Quando canta um tema, um assunto, um mote que, mesmo sorteados, toca-lhe profundamente por dizer algo de sua existência. O apologista José Moreira de Alencar, mas conhecido como Zé de Aurélio - em referência ao nome do seu pai - já foi um grande promovedor de cantoria no Vale do Jaguaribe, hoje, com vários problemas de saúde, apenas vai a algumas cantorias e festivais organizados por outros apologistas e, mesmo assim, só quando se sente mais disposto. Para ele a cantoria improvisada é uma das artes mais difíceis de fazer. Sua admiração é tão grande que ao relembrar o cantador Pedro Bandeira emociona-se e declara: (...) Pra mim foi uma coisa medonha, cantando sertão, natureza, mexendo no coração da gente, que o cantador ele mexe no coração da pessoa que sente que é poeta. Eu não sou poeta, mas sinto que eu... quando eu vejo o verso, eu fico emocionado, eu sinto meus cabelos arrupiar com o verso. 119 118 119 ZUMTHOR, P. Op. Cit., 35. Entrevista realizada pela autora em 04/03/2007 em Limoeiro do Norte/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 709 Como Zé de Aurélio, muitos amantes da cantoria se sentem “mexidos”, ficam “arrepiados” quando estão em presença de um cantador. Quando sua poesia se faz “medonha” e consegue retratar imagens que despertam emoções guardadas no íntimo, quando, naquele momento, o ouvinte sente-se à vontade para compartilhar sentimentos com vários outros que se encontram também representados nessa emoção. Tais sentimentos, que são vividos e sentidos também pelos poetas, fazem-nos ficar cada vez mais inspirados na hora de sua criação, exatamente pela beleza desse compartilhar. Um alimenta o outro. Nessa troca surge a força da palavra que comunica, que emociona e encanta. Como sugerem as sextilhas improvisadas pelos cantadores Raulino Silva e Rogério Meneses: 120 RS: RS: De onde a beleza vem Neste instante uma mensagem Eu vou descobrir agora Abstrata é recebida Transformar sonho em imagem Em uma imagem sem pixels Palavra em onda sonora A mensagem é transmitida E atirar-me sem destino Não dá pra ser avistada Pelo universo afora Mas dá para ser sentida (...) RM: (...) RM: Vou saciar com poesia Eu falo a vós com franqueza Cada coração faminto Aqui estou por prazer Nas galerias da noite São esses momentos bons Exponho quadros que pinto Que fazem à vida valer Fazendo o povo sentir Os esforços permanentes A mesma emoção qu’eu sinto Que a gente faz pra viver (...) (...) Os poetas Raulino Silva e Rogério Meneses estavam diante de uma platéia de amantes da cantoria. Seus corações e mentes estavam afinados com os sentimentos daqueles 120 Sextilha gravada pela autora em 29/05/2008 em apresentação no Teatro Emiliano Queiroz/ SESC. Fortaleza/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 710 que se encontravam ali no Teatro Emiliano Queiroz para ouvir suas vozes transformar palavras em poesia no calor do momento. Para sentirem a mensagem e vê-la transformar sonho em imagem, compartilharem o prazer daquele encontro e continuarem juntos na mesma caminhada os esforços permanentes para viver e dar vida à cantoria. Assim essa poesia que é voz e palavra vai sendo construída e vivida por cantadores e ouvintes. Cantadores e ouvintes que são as duas faces de uma arte que é coletiva na medida em que agrega diferentes vozes para traduzir em um mesmo discurso os anseios, os sonhos e desejos dessa coletividade. O cantador utiliza uma linguagem que se faz compreendida e apreendida por seu público e isto é um elemento importante de motivação, como afirma o ouvinte e promovedor de cantoria Tarcísio Barros: “Você sabe que eles falam com conhecimento e falam uma língua pra toda... classe. (...) Então a qualidade do que é feito na cantoria, o que eles cantam eu acho que é o que mantém o público”. 121 A qualidade da poesia e a linguagem utilizada dão primazia a esta arte. O ouvinte percebe que o cantador se empenha em oferecer o que de melhor ele pode criar e, em troca, tornar-se um amante fiel, atento e empolgado. Sua empolgação alimenta a criatividade do poeta e, assim, essa poesia vai sendo sempre recriada, primando pela qualidade que é reflexo do próprio público. Para muitos cantadores, quem faz a qualidade da cantoria é o ouvinte. Para o cantador Antônio Fernandes “a qualidade da cantoria depende muito do público. Quem faz a qualidade da cantoria é o público. (...) Se faz a qualidade na cantoria conforme o público”.122 Portanto, podemos considerar que com o público está a chave da criatividade que anima o cantador a criar poesia que encante e emocione. Que diga algo significativo a quem a ouve, pois essa poesia é um reflexo da interação do cantador com seu público. Complementando esse pensamento, o cantador Pedro Bandeira considera que: O público é quem faz o cantador cantar mal ou bem. (...) Então, quem faz o cantador cantar bem é o público especial, o público poético e poetisado e poeta. O público que já aplaude, que escuta, que sente, que se emociona, que 121 122 Entrevista realizada pela autora em 01/03/2007 em Fortaleza/CE. Entrevista realizada pela autora em 07/10/2006 em Limoeiro do Norte/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 711 chora, que grita, que ri, que aplaude o cantador. Então, o público é tudo por isso.123 Como um turbilhão de emoções, assim o público funciona para acionar a capacidade criativa e poética do cantador. É uma troca que se realiza plenamente quando há o encontro da palavra cantada, ritmada, direcionada ao ouvinte com sua recepção calorosa. O que é dito, e como é dito, influi sobremaneira tanto na criação como na recepção da poesia. É durante a performance, portanto, que ela assume seu caráter existencial e concretiza-se de maneira única na memória dos seus protagonistas. Dessa forma, o cantador se realiza diante do seu público. Suas palavras vão sendo proferidas, cantadas e elas saem “prenhes” de significados que fazem com que o ouvinte se emocione, que chore, que grite, que ria, que aplauda. E essas palavras têm força porque nomeiam o que dizem, codificam sentimentos no breve fazer do repente e assumem uma autoridade, pois regem-se segundo regras e normas estabelecidas por uma tradição seguida por diferentes gerações de ouvintes e cantadores. Para o repentista Sebastião da Silva a mensagem transmitida pelo cantador é fundamental para a manutenção dessa arte, ela é a principal responsável por cativar o público: Ouvir dois cantadores bons (Pausa curta) é muito gostoso. Gente que saiba cantar, né? (...) o cantador de dom acentuado, que é aplicado, que é criativo, que é inovador, que é... é um mensageiro é muito bom se ouvir. E é uma coisa sempre nova. (...) o bom cantador ele tem mensagem boa toda noite se for ouvir. Toda noite você... toda hora que você for ouvir ele tem sempre uma coisa nova, uma coisa diferente. Sempre tem! Então, essa novidade, essa criatividade, essa coisa diferente é que faz sustentar o público fiel à cantoria. Não é nem pra entender porque poesia não é pra se entender. Poesia é pra se sentir. Poesia é como o amor, a gente não entende o amor, a gente sente o amor, né?124 A mensagem na cantoria é sempre imbuída de uma novidade que diz respeito a cada nova performance, e não importa se ela é vivida pelo mesmo cantador ou por outro. Não importa se ele cantará o mesmo tema, assunto ou mote, a mensagem que será traduzida em poesia é sempre outra, carregada do espírito que anima aquele momento. E essa mensagem, como sugere Sebastião, é para ser sentida, muito mais do que entendida. 123 124 Entrevista realizada pela autora em 11/11/2006 em Juazeiro do Norte/CE. Entrevista realizada pela autora em 30/06/2007 em Fortaleza/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 712 Na poesia oral as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou aquilo com que o homem os representa). A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo: o objeto a ser fabricado não basta mais, trata-se de suscitar um sujeito outro, externo, observando e julgando aquele que age aqui e agora. 125 O cantador Valdir Teles, por exemplo, sugere em um improviso que o público é a fonte de inspiração que o acompanha até o próximo encontro. E a lembrança da satisfação vivida em sua presença simboliza um presente de amigo. Vou levar vocês no meu coração Vou descer do palco, falar com o povo Sem saber o dia que volto de novo Pra tocar viola e pra cantar baião Mas no céu da mente, da inspiração Eu levo esse povo que é exemplar Vou voltar sorrindo para o meu lugar Mas vou levar Patos sorrindo comigo Vocês deram a mim um presente de amigo Nos dez de galope na beira do mar126 Valdir acentua, ainda, que o povo que leva em seu coração, é exemplar, portanto, faz referência a um público que sente a mensagem, que apreende seus significados, envolvendo-se inteiramente na performance vivida. Os desdobramentos dessa poesia ressoarão nesses ouvintes durante longo período, fixando no corpo/memória um repertório que acionará a satisfação desse encontro toda vez que o ouvinte reproduzir quer seja uma estrofe, quer seja um verso ou uma palavra desse improviso feito em sua presença. Em conversas com diferentes ouvintes testemunhei exemplos do que acabo de afirmar. Muitos amantes dessa arte desenvolvem uma capacidade invejável de decorar os versos, o verbo aqui utilizado em sua acepção etimológica: aprender de cor, ou seja, de coração. Fazem questão de declamá-los, mesmo depois de ter passado muito tempo. E, em declamando-os, deixam transparecer grande emoção, como revivessem o instante da 125 ZUMTHOR, P. Op. Cit., p. 157. Improviso feito no gênero Galope à beira-mar e retirado do DVD do XXXV FESTIVAL TRADICIONAL DE REPENTISTAS DE CAJAZEIRAS – 12/08/2006. 126 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 713 declamação com toda a energia e satisfação experimentadas na presença do cantador. Eles reinventam, numa performance própria, os momentos mais significativos, perpetuando, assim, um saber contínuo que alcança as demais gerações. Benjamin acrescenta que “para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução.” 127 E, certamente, essa possibilidade da reprodução, não só por meios mecânicos e eletrônicos, hoje tão abundantes, mas, sobretudo, pela memória desses ouvintes, faz com que essa arte se perpetue no seu próprio fazer, pois recriar o vivido é emprestar-lhe algo de seu. E toda vez que um ouvinte reproduz uma estrofe, um verso de uma cantoria, apropria-se dessa poesia e ambos passam a fazer parte um do outro, garantindo a continuidade de uma história, renovada exatamente em e por essa criação que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Viola: a outra face do cantador Nesta obra coletiva nada é mais instigante, na performance do cantador, do que sua companheira inseparável: a viola. Relação que na maioria das vezes passa despercebida pelos próprios poetas. Esse instrumento está tão presente em suas vidas que dificilmente é lembrado como essencial, embora quando indagados de sua importância sejam inúmeras as declarações de amor. Como esta feita por Sebastião Dias: “A viola é minha cara metade. (Risos) É. A viola é muito importante. A viola é a outra, né... é a outra minha face porque sem ela eu não cantaria, né? Então, eu tenho a viola como um... uma riqueza e minha companheira de estrada porque tudo roda em torno dela”.128 A viola simboliza uma extensão do próprio cantador, internalizada como parte de seu corpo. Ela é a cara metade, uma espécie de outra face que, mesmo estando sempre à mostra, parece oculta no conjunto da obra poética que supõe a majestade da palavra, da voz sobre a melodia, que acompanha as toadas em cada gênero improvisado. Há uma espécie de ritual, um pacto com a viola que acompanha o desenvolvimento dos violeiros repentistas. Em geral, eles consideram pobre a musicalidade que acompanha a cantoria, quase insignificante, como declarou Zé Cardoso: 127 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7ª. ed. Trad.: Sergio Paulo Rounaet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 210. 128 Entrevista realizada pela autora em 26/04/2007 em Fortaleza/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 714 (...) precária porque ela não... porque vem desde da criação da cantoria que vem aquela mesma música. Os cantadores mudam de toada, aquele negócio, mas a música é uma mesma, o baião da viola é o mesmo . Não tem essa melodia, não tem essa coisa... o que tem o que prende o público da cantoria é a criatividade do cantador. Se ele não tiver cantando... se tiver cantando e não tiver criatividade ele não prende o público. 129 Mas ao falar do instrumento que produz essa musicalidade expressa a força que essa arma possui para seu desempenho: A viola é uma arma. É como você ir pra guerra desarmado, você não tem como enfrentar porque na hora que o cantador toca na viola ele já sente o sangue correr nas veias, né? (Riso) É interessante que bom... às vezes você está até cochilando num canto, na hora que chama para cantar você pega na viola, toca na viola você já sente o corpo parece que passa para o sangue aquilo ali. Você se sente armado pra... pra ir pra luta. A viola é tudo, é tanto que se o cantador for cantar sem viola ele não consegue cantar como ele canta com a viola.130 A viola funciona como um motor, um meio utilizado pelo cantador que, consciente ou inconscientemente, ativa seu corpo, avisa ao seu cérebro que a peleja vai começar, que é hora de empunhar seu instrumento e deixar vir à tona centenas de palavras nascidas no curto espaço da melodia que precisam ser rimadas, metrificadas, ser poéticas. Precisam ainda acertar em cheio o coração da platéia, cativá-la, torná-la prisioneira do seu encantamento. Por isso a viola é tudo! É interessante observar que para a maioria dos cantadores é aceitável que a viola seja imprescindível na hora da performance. Entretanto sua musicalidade é considerada como algo em segundo plano para a cantoria. O cantador Moacir Laurentino, neste sentido, faz uma declaração importante ao considerar que a “cantoria é pobre de música”: A cantoria é pobre porque é... é... seria uma fortuna muito grande Deus entregar um dom de tanta facilidade, tanta grandeza no improviso. Tem lá quem saiba quantos versos grandes sai numa cantoria. Não há quem saiba! E 129 130 Entrevista realizada pela autora em 07/10/2006 em Limoeiro do Norte/CE. Idem. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 715 Deus entregar o dom de músico a ele, um grande músico. Assim Ele ia entregar tudo a ele.131 Percebe-se a partir da narração de Moacir que seria algo muito grandioso se o cantador, além de possuir o dom de ser poeta e dominar toda a técnica que envolve a criação do repente, ainda tivesse a habilidade e virtuosismo como músico. Por outro lado, podemos ainda pensar que para uma arte na qual a voz e a palavra precisam ser ouvidas naquele momento único para que a poesia alcance devidamente o espírito do outro, a complexidade da música poderia dificultar, de alguma maneira, sua perfeita recepção pelo ouvinte, o que ocorre em muitas outras linguagens que utilizam a palavra. No caso da cantoria, para que a palavra esteja em primeiro plano, é necessário que a melodia ceda lugar. Na história da cantoria tivemos cantadores que utilizaram outros instrumentos, especialmente a rabeca, o caso de Cego Aderaldo, mas a viola reina dominante entre os cantadores. A maioria deles gosta de enfeitá-la com detalhes em metal e com partes brancas, como vemos na foto: Figura 1 – Cantadores Zé Cardoso e Geraldo Amâncio 131 Entrevista realizada pela autora em 11/06/2008 em Fortaleza/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 716 Geraldo Amâncio fala que ela era de doze cordas, hoje é sete, oito cordas, mudou um pouco.132 Em décadas passadas, segundo relatam alguns cantadores, era comum amarrar fitas coloridas que simbolizavam as vitórias obtidas ao longo da carreira. O amor ao instrumento, no entanto, é unânime: A viola é o tudo do cantador. O cantador quando... pode tá sem inspiração, quando pega na viola chega tudo pra ele. É a arma principal. É a coisa mais sublime pra o cantador se chama a viola. (Antônio Fernandes, 07/10/2006) É o símbolo maior do cantador é a viola. Muitas vezes o cantador nem afina a viola bem, nem toca viola, nem toca baião gostoso e sonoroso e... e repenicado. Eu, por exemplo, sou um cantador que toco pouco a viola, não caminhei não me esmerei por isso, devia ter me esmerado porque é bonito cantar a viola, é bonito tocar a viola, é bonito cantar canção, é bonito cantar poema bem acompanhado, mas eu não... Eu toco apenas o baião de cantador e faço minhas cantorias. (Pedro Bandeira, 11/11/2006) A viola é a ferramenta do cantador, Simone. A viola é a verdadeira inspiração pra o cantador. É realmente a cruz que o cantador abraça e carrega sem se maldizer e sem cansar. É o caminho, é a bússola do repente, da inspiração, do mundo da cantoria é a viola. (Zé Viola, 03/03/2007) Uma coisa interessante, Simone, a viola parece que não é só aquele baião que ela toca, não é só aquele som em cima da voz. Parece que não é só a... a... a... aquele cartão postal do povo. Eu acredito até que aquele apoio. Se a gente for cantar sem a viola... olhe, a coisa fica sem jeito, como um pote sem água, uma carne sem caldo. Interessante, né? (...) A viola significa muito, ela... além de dar aquele pouco de som, é mais uma presença ao povo e até aquele apoio e parece que a gente, parece não, pelo costume você quando pega na viola parece como pegou uma arma, não sabe? Sem ela é mesmo que ser um guerreiro desarmado. É uma coisa muito bonita. (Louro Branco, 20/04/2007) Tudo. O cantador sem viola é como a vaca sem chocalho, você vê que tá faltando uma coisa. Cantador não tem inspiração nenhuma cantando sem a viola. É a arma de tudo é a viola. É a companheira eterna. (João Paraibano, 26/04/2007) A viola significa a ferramenta de tra... trabalho e... e psico... logicamente a gente põe nela um corpo físico de carne, imaginário. A gente chama ela de irmã, de amiga, de compa... panheira e de minha esposa e tal, de minha arma. Chama ela de tudo. Então, ela é como o tudo na profissão. Você ama a... a viola. Você... cria versos pra ela. (Zilmar do Horizonte, 11/06/2008) 132 Entrevista realizada pela autora em 08/02/2006 em Fortaleza/CE. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 717 Ah! A viola é a companheira dileta, né? É a sofredora, a amiga. A musa que inspira, que ajuda, que vai. É... a viola é... é assim como que seja o pulmão pra poder o ar entrar e sair e a gente respirar, né? Então, a viola... ela tem a sua... a sua grande colaboração, a sua grande parcela de colaboração com a arte da cantoria. (Sebastião da Silva, 30/06/2007) A viola tem algo de sublime, fonte de inspiração. Detém algo misterioso que não é só aquele som em cima da voz, é um apoio, é a arma do guerreiro, é a bússola que orienta o cantador na sua criação poética. Anima o corpo e a mente em um entusiasmo fecundo que convida o público a fazer parte da performance. É a ferramenta com a qual o poeta constrói cada verso, cada rima, cada métrica como um artesão da palavra. Ela mereceu muitas homenagens, sempre há versos improvisados que enaltecem sua importância, como esse “mote em sete” feito por Zilmar do Horizonte, durante nossa entrevista: 133 Meu pai não quis aceitar Foi feita numa oficina Quando eu saí da escola De fabricar instrumento E comprei uma viola Não esqueço um momento Pra começar a cantar Da viola nordestina Mas papai vai escutar Esse baião me domina Cantoria a noite inteira Tira o sono e a canseira Diz no meio da brincadeira E de levar sol e poeira Meu filho é cantor sabido O corpo vive encardido Essa viola tem sido Essa viola tem sido Minha fiel companheira Minha fiel companheira Cantador, viola e público fazem parte de um mesmo e único instante. Estão intrinsecamente unidos, compondo uma melodiosa poesia cantada que encontra em vozes e sons, provavelmente ancestrais, a força de sua permanência. Elba Braga Ramalho lembra que “a imbricação entre música e poesia representa a memória viva do canto recitado, encontrado em todas as culturas, numa fase em que o idioma falado ainda não tirara do homem a possibilidade de sentir e viver cotidianamente essa arte elementar”.134 133 Entrevista realizada pela autora em 11/06/2008 em Fortaleza/CE. RAMALHO, Elba Braga. Cantoria Nordestina: música e palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000, p. 76. 134 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 718 A viola do cantador produz um som que o identifica com o público. Há uma melodia específica que lhe toca e faz dele um amante do todo, e não apenas de uma parte que seria as palavras improvisadas. Embora o improviso seja a força de atração tanto de cantadores quanto de ouvintes, como percebi em vários depoimentos, de maneira nenhuma ele prescinde da toada. O ouvinte gosta das toadas sonorizadas pela viola e incomoda-se quando a cantoria vem acompanhada por outros instrumentos, como no caso de algumas gravações feitas pelos cantadores. Como exemplificou Louro Branco: (...) Já aconteceu de uma pessoa me comprar uma fita, Simone, e ser acompanhada com órgão, sanfona. Aí ele chega, ô Louro, não tem uma tocando viola, não? Quer dizer, a viola tocada mais simples com poucos sons, faltando acompanhamentos, mas ele acha o som da viola mais bonitinho. (...) Porque é aquilo que eu falei, o povo da viola quer a viola, o povo do cantador quer o cantador. Interessante, né! É aquilo que eu falei: é um povo pouco, um público pequeno, mas fiel. 135 Não importa se a viola é tocada de forma mais simples, para o público, assim como para o repentista, ela e o som que dela ecoa são indissociáveis da cantoria. De fato, como esclarece Zumthor ao falar da performance cantada, “o instrumento de cordas, o mais abstrato de todos, encontra-se assim privilegiado: lugar de concentração de uma carga simbólica; meio de reinserção da vocalidade humana entre os ritmos universais que a dominam”. 136 No envolvimento de corpos e instrumentos, com a voz ao ritmo da música, a performance do cantador se realiza. O público capta seus gestos, atribui-lhes sentidos, envolve-se na magia que emana da palavra cantada, ritmada; prende-se ao ritual, ao mesmo tempo que se emociona com a beleza ali traduzida. A palavra e a música, assim carregadas de memória, unem-se à melodia, dando ao público uma sensação de estar participando de um encontro onde todos se reconhecem. Em sua performance, o cantador cola a viola ao peito como que para ouvir as batidas do coração. A mente põe em ação um turbilhão de informações que precisam acompanhar o ritmo da música inscrita no corpo, que precisa criar, no menor tempo possível, o improviso oportuno capaz de traduzir em poética as questões e as vidas ali compartilhadas. 135 136 Entrevista realizada pela autora em 20/04/2007 em Fortaleza. ZUMTHOR, P. Op. Cit., p. 235. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 719 Percebo que a viola é um suporte do corpo, da memória. O som por ela criado anima a mente e a voz do cantador, que, pela força do grito, faz nascer o improviso prenhe dessa musicalidade. A viola estará sempre presente, companheira inseparável, porque também ela é razão de ser dessa criação. A música inscrita no corpo ativa uma série de informações que juntamente com o ritmo dão vida ao repente, que sairá metrificado, rimado, pois tem como suporte o movimento do corpo articulado ao do instrumento. Os movimentos das mãos e dos braços que sustentam o ritmo da viola são partes do corpo e se imbricam a palavra improvisada, cantada. A agilidade dos dedos já está culturalmente presente no corpo e na mente do cantador, não sendo mais percebida. Juntos dão forma, cor e vida ao improviso. Viola e cantador tornam-se um só corpo. Podemos pensar na viola como uma extensão das mãos, um suporte do corpo e da memória dos cantadores. Memória que se transmite e se renova através de suas vozes que ao buscarem o som da viola, reproduzem as mesmas melodias dos antepassados aglutinando, assim, passado e presente no momento da performance, a qual pude perceber como ritual. Um ritual que se dá em dupla quando cada cantador pega sua viola e cola ao peito, impondo antes uma postura que a melodia. Essa virá, depois, carregada de mistérios, sons ancestrais que dizem respeito a uma arte que pulsa nos corações da viola, do cantador e do público. Quando começa o improviso, as mãos apenas tocam no instrumento, a melodia ouvida vem da viola do companheiro que está ao lado, compondo a melodia que ajudará a voz, de maneiras diversas, a romper o silêncio, trazendo à tona o repente perfeitamente metrificado, rimado, poético. Fica a impressão de que o cantador nesse momento não tem consciência da música que a viola do companheiro produz, envolvido que está na sua criação, momento em que seu corpo é todo mente, trabalhando de forma frenética e urgente para, na rapidez do pensamento, unir beleza e técnica, voz e palavra numa só poesia. Suponho, então, diante das declarações de cantadores e ouvintes que possuir o dom, a habilidade de improvisar já é uma tarefa para eles demasiado grandiosa e que seria muito complicado ter habilidade mental para o improviso, métrica e rima da poesia e ainda preocupar-se com a melodia e com o ritmo da música. Isso, de forma nenhuma impede que o ritmo, a melodia, as toadas estejam presentes em cada gênero - embora ignorados por muitos. É o ritmo da música embutida no corpo/memória que faz o improviso vir à tona. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 720 Talvez por isso o cantador traga em sua fala o paradoxo da musicalidade na cantoria. A música é vista como algo inferior, aparece pobre de melodia, mas o instrumento que lhe dá musicalidade é enaltecido com paixão, com alegria. Sem dúvida a viola é a arma para esses guerreiros e encontra-se sempre colada ao peito. Eles sentem que sem ela não há como ganhar a peleja, mas não sabem explicar de onde vem essa força. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7ª. ed. Trad.: Sergio Paulo Rounaet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6ª. ed. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores: folclore poético do sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. ______. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Global, 2000. CASTRO, Simone Oliveira de. Na Poética da Cantoria: sertão e cidade no improviso de Ivanildo Vila Nova. (Dissertação em História Social - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) São Paulo: 2003. ELIAS, Nobert. Mozart, sociologia de um gênio. Trad.: Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1976. ______. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1976. ______. Sertão Alegre: poesia e linguagem do sertão nordestino. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1976. RAMALHO, Elba Braga. Cantoria Nordestina: Música e Palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “literatura medieval”. Trad.: Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ______. Introdução à poesia oral. Trad.: Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: HUCITEC, 1997. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 721 ______. Tradição e Esquecimento. Trad.: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: HUCITEC, 1997. ______. Performance, Recepção, Leitura. Trad.: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 722 POLIPOESIA E RECUPERAÇÃO DA PERFORMANCE DA VOZ Vinícius Silva de Lima137 (PG-UEL) No Manifesto da Polipoesia, publicado em 1987, em Valência, Enzo Minarelli defende a idéia de uma poesia gerada pela fusão de diversos meios técnicos diferentes. Esta nova poesia tem por objetivo proporcionar aos ouvintes uma experiência única em níveis sensoriais. Seja através dos sons vocais, música, ruídos, mímica, performance, artes visuais (pintura, vídeo) entre outros elementos. Dentre todos este itens, um recebe atenção especial por Minarelli: a performance. No último tópico que constitui o Manifesto, é colocado que: A polipoesia é concebida e realizada para o espetáculo ao vivo, entrega-se à poesia sonora como prima dona ou ponto de partida para relacionar-se com a musicalidade (acompanhamento, linha rítmica), a mímica, o gesto, a dança (interpretação, ampliação, integração do poema sonoro), a imagem (de TV, diapositiva, enquanto associação, explicação, redundância, alternativa), a luz, o espaço, os costumes, os objetos (MINARELLI, 2005, p.210). A Polipoesia nasce, portanto, para ser executada diante do público, “precisa dele, exige-o – e nisso é dialógica e pretende um público ativo, aberto, interativo” (MINARELLI, 2005, p. 211). Verificando estas características de valorização da presença do poeta diante de seu ouvinte, podemos dizer que a Polipoesia tem por mérito a recuperação da performance da voz, e como conseqüência, a redescoberta de uma oralidade que há muito havia se perdido das práticas poéticas, em decorrência da sedimentação da cultura escrita nos países ocidentais. O Manifesto da polipoesia aparece pela primeira vez no catálogo Tramesa d`Art, em Valência, no ano de 1987, porém, as idéias básicas já se faziam evidentes no ensaio Polipoesia, da leitura a performance da Poesia Sonora, redigido por Minarelli e publicado na revista italiana Visoni, Violazioni, Vivisezioni em 1983. Tendo como influências as vanguardas históricas européias, o projeto da Polipoesia amplifica o que já havia sido trabalhado pela Poesia Concreta, Futurismo (italiano e russo) e Dadaísmo, sem deixar de ser 137 viniciusslima@zipmail.com.br Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 723 fiel as propostas destas poéticas experimentais. Desta forma, ela abre novas possibilidades para a arte puramente literária e escrita. Muitos são os poetas, ao redor do mundo, que praticam a Polipoesia e cujo dispositivo teórico vem sendo discutido, ao longo dos anos, por críticos como Paul Zumthor, Renato Barilli, Clemente Padin e pelo próprio Enzo Minarelli. Cada polipoeta desenvolve seu estilo, ou marca pessoal, ao interpretar a poesia através dos filtros vocais, teatrais, audiovisuais, musicais ou tecnológicos. Deste modo, as possibilidades de difusão e encontro com o espectador de poesia são múltiplas. Dentre estes poetas, alguns se destacam pelo trabalho que desempenham no campo da polipoesia, no contexto mundial, são eles: Américo Rodrigues, Serge Pey, Jaap Blonk, Xavier Sabater, Xavier Canals, Tracy Splinter, Bartomeu Ferrando, Lydia Lunch, Rafael Metlikovec, Clemente Padin, e Enzo Minarelli. Como constatou Philadelpho Menezes, na introdução do livro Poesia Sonora: Poéticas Experimentais da Voz no Século XX, a busca pela “poesia total” surge como uma opção para o esgotamento da Poesia Sonora e do caráter revolucionário das vanguardas. A fusão tecnológica das formas expressivas, o produto estético dirigido exclusivamente a sensorialidade redentora e apaziguadora, o poema como efeito óptico ou acústico nas atuais poéticas visuais e sonoras, que extravasa seus limites para uma arte do corpo e do espaço, são respostas para essa nova situação em que experimentar, nesse âmbito é a norma e a expectativa e não mais o desvio e o estranhamento (MENEZES, 1992, p.15). Ainda no sexto e último tópico do Manifesto da Polipoesia, Minarelli elege como ponto de partida, ou “prima dona” desta interação entre as diversas manifestações artísticas, a Poesia Sonora. 1- A voz experimental As experimentações com a linguagem e com o aparelho fonador, e conseqüentemente com a voz, sempre foram preocupações dos homens ao longo dos tempos. O ritmo e musicalidade são elementos que acompanham a poesia desde sua raiz. O uso de onomatopéias, repetições, jogos de palavras e experimentos com fonemas não são tão recentes assim na arte literária. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 724 A mais antiga manifestação deste tipo encontra-se nos Annales (ca. 201 – 168 A.C), fragmento 109, Quintus Ennius (239 – 168 A.C), publicado em Remains of Old Latin (1967), de Warmington: “O Tite, tute, tati, tibi tanta tyranne tulisti!” O mais importante neste verso não é o significado, mas sim a sonoridade empregada pelo autor. Em uma espécie de “brincadeira”, trocam-se as vogais e são mantidas fixas as consoantes. Este uso semelhante do som na construção do poema, de forma a causar estranhamento no leitor, pode ser encontrado também em As Rãs, de Aristófanes (século IV A.C): “Brekk Kekk Koax Koax”. Mais recente temos as experiências com a “palavra-valise”, desenvolvidas por Lewis Carrol, os experimentos lingüísticos de Joyce, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, César Vallejo e o retorno ao coloquialismo, dos poetas norte-americanos da chamada beat generation. Dentre estas manifestações experimentais modernas, a poesia sonora é a primeira que se aproxima de um projeto de busca de uma poética apoiada no suporte da voz. Esta modalidade de poesia é fruto de uma evolução das vanguardas poéticas do início do século XX. As experiências desenvolvidas pelos futuristas italianos, cubo futuristas russos e dadaístas foram de vital importância para o surgimento da poesia sonora. No caso dos futuristas italianos, temos como principal articulador e agitador do movimento, o poeta Marinetti, que em 1916 lança A Declamação Dinâmica e Sinótica, Manifesto Futurista, que tinha como principal proposta, “desbloquear o corpo do poeta até então paralisado, torná-lo vivo, móvel, contrariando a imobilidade das pernas do declamador passadista” (MINARELLI, 2005, p. 178). Segundo Enzo Minarelli, encontramos também neste manifesto uma preocupação com o caráter multimídia da obra poética futurista, o que a aproximaria da polipoesia. Igualmente evidente é o tratamento multimidial dado, ao introduzir uma série de objetos a serviço do som (martelos, tabuinhas de madeira, buzinas de carros, bombos, tamboretes, serras, campainhas elétricas) e, sobretudo, ao deslocar pela sala duas ou três lousas, onde o declamador “devia desenhar rapidamente teoremas, equações e tábua sinóticas de valores líricos”. Portanto, a própria imagem sob a forma de escritura, de desenho, de fórmula matemática como suporte da mensagem, e mais não podia haver naquele longínquo começo de século (MINARELLI, 2005, p. 179). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 725 No Dadaísmo temos a presença das recitações nonsense e encantatórias de Hugo Ball no Cabaret Voltaire, de Zurique em 1916, e a experiência óptico-fonética de Raoul Hausmann. É visível neste período o desejo de destruição da significação através do humor e ironia. Os futuristas russos contribuem com a Poesia Zaum, denominação do setor mais radical do futurismo russo, que “recupera a linguagem dos loucos e dos folclores dialetais, procurando fixar a partir daí sua transracionalidade” (MENEZES, 1992, p. 13). Já o projeto dadaísta se baseia na linguagem das crianças e busca uma comunicação em nível prégramatical . Em 1950, com a modernização dos estúdios sonoros, ocorre uma revolução nas poéticas de vanguarda. Os poetas, denominados então sonoros, ligam-se aos músicos eletroacústicos, criando um movimento iconoclasta: A Poesia Sonora, que tem como principal mentor o francês Henri Chopin. De acordo com Paul Zumthor: A Poesia Sonora está hereditariamente marcada por dois desejos aparentemente contraditórios, mas de fato complementares, que lhe deram origem: o desejo do retorno ao oral, no âmbito dos poetas; o desejo de retorno ao falado, no âmbito dos músicos (ZUMTHOR, 1992, p. 139). No entanto, a euforia criada ao redor da tecnologia dos estúdios não foi suficiente para evitar o esgotamento e fim da Poesia Sonora dos anos 50. Para Philadelpho Menezes: Restou a impressão de que todo avanço técnico que se conquistava aceleradamente apenas facilitava a produção dos mesmos efeitos sonoros de sempre e já rotinizados. Restou a idéia de uma poética vocal definitivamente colocada em contato com invenções tecnológicas, mas também a constatação de que a confecção de efeitos técnico-sensoriais fora de uma organização compositiva que lhes dê função se esgota no próprio nascedouro (MENEZES, 1992, p. 14). Hoje em dia, assisti-se, portanto, a uma revisão do uso destes aparatos tecnológicos na elaboração desta poética, pois apesar de potencializar os efeitos sonoros e ampliar os horizontes da voz, a poesia sonora “deve se subordinar a um projeto poemático que escape dos meros efeitos eletroacústicos, reponha em jogo o corpo da voz em suas possibilidades expressivas e tenha em vista a complexidade semântica da comunicação poética” (PENA, 2005, p. 04). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 726 Nos dias atuais, o termo poesia sonora é usado para designar toda manifestação poética experimental baseada nas possibilidades expressivas da voz humana. Desta forma, é dada primazia à voz e às características rítmicas, fônicas e plásticas dos sons emitidos pela boca do poeta ou performer. 2- Polipoesia: a voz em performance Partindo do conceito de que performance é “antes de tudo uma expressão cênica” (COHEN, 1989, p.28), podemos entender a performance como um teatro, uma encenação que incorpora diversas manifestações artísticas em um único projeto de arte integrada, uma arte total. É o que propõe Enzo Minarelli com seu Manifesto da Polipoesia, que defende uma arte multimídia, com a incorporação da tecnologia, amparada por um projeto maior que consiste na valorização e recuperação da voz e suas potencialidades. No artigo Poesia e Corpo em Tutu Performático, do livro Mediações Performáticas Latino-Americanas, Alain Garcia Diniz propõe que o corpo seja visto como um suporte simbólico e que a combinação deste corpo com uma oralidade são suportes alternativos para a prática da poesia e da literatura. Desta forma, a poesia sonora “constitui uma busca de revalorização da cultura oral, no momento em que a literatura ‘aprisionou’ as manifestações poéticas nas formas escritas” (TOSIN, 2004, p.03). A performance seria, portanto, responsável por uma dilatação do espaço literário através do corpo e da voz. Voz esta que se localiza entre o corpo e o discurso. A relação do homem com a voz é iniciada ainda na infância pré-fala, quando o bebê tem os primeiros contatos com os sons emitidos pela mãe. Por uma perspectiva psicanalítica, é nesta fase que ocorre a formação psicológica da criança a partir de um “espelho sonoro” que reflete a voz materna e possibilita que a criança tenha suas primeiras experiências emocionais. Segundo Didier Anzieu, no livro O eu-pele: Antes que o olhar e o sorriso da mãe que amamenta transmitam à criança uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que ela interioriza para reforçar seu self (soi) e esboçar seu eu, o banho melódico (a voz da mãe, suas canções, a música que ela faz escutar) coloca à sua disposição um Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 727 primeiro espelho sonoro que ela usa inicialmente através de seus gritos (que a voz maternal apazigua em resposta) e finalmente através de seus jogos de articulação fonemática (apud EL HAOULI 2002, p.66). É este desejo de retorno ao primitivo, muito característico na arte moderna, e a idéia de que a “fala emerge de um contínuo vasto de vibrações sonoras que inclui todas as formas do choro, do sufoco, do riso e do grito” (PORTELA, 2003, p. 246), que motivam os poetas sonoros a produzirem suas peças poéticas experimentais apoiadas numa revalorização do aparelho fonador humano. Nesta recuperação do instrumental da boca, realizada por estes poetas, Enzo Minarelli afirma que: O instrumento príncipe é a boca, com todos seus atributos anatômicos, sendo, portanto evidente o fato que seu fluxo seja vocoral. Desse ponto de vista, a velha intuição letrista – e antes dela dadaísta e futurista – confirmase como vencedora. A novidade consiste em não se colocarem limites para a expansão do som (MINARELLI, 2005, p. 201). Para Paul Zumthor, a performance “é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas num conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio) que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido”. (ZUMTHOR, 2005, p. 87). A busca por uma “arte total” e multimídia sempre foi uma preocupação dos músicos modernos, entre eles Luciano Bério, Giorgy Ligeti e Maurício Kagel. Mas antes destes, Richard Wagner já havia trabalhado com o mesmo conceito na ópera Tristão e Isolda, o que o coloca como um dos primeiros a desenvolverem uma arte performativa. Para Giusepe Di Stefano: Entre todas as óperas de Wagner, o Tristão é a que exerce a sugestão mais intensa, logo advertida como uma ópera-limite, difícil de ser superada por ter-se arrojado, como nenhuma antes dela, até o extremo confim do exprimível, dando voz ao mundo noturno e ao inconsciente. No grande dueto de amor do segundo ato, é representado em cena o dissolver-se da palavra em puro som: as palavras perdem seus contornos semânticos afinando-se cada vez mais até reduzirem-se a puros fonemas, a balbucio indistinto, a gritos ininteligíveis (apud MINARELLI 2005, p. 187-188). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 728 3- Meios eletrônicos e performance Com relação ao impacto dos meios eletrônicos sobre a performance da voz, Zumthor compara estas mídias à escrita, pois excluem a presença de quem detêm a voz, eliminam o “puro presente cronológico” (ZUMTHOR, 2000, p.17) da voz e tendem a apagar, pelas diversas manipulações a que submetem o som, as características de uma voz em estado vivo, tornando-a artificial e midiatizada. É fato que as mídias fixam a voz e imagem, mas por outro lado, temos uma manifestação diferente da escrita, que exige uma participação auditiva do receptor, através de uma escuta criativa e problematizada. Um outro tratamento é dado pelos músicos contemporâneos com relação à presença da voz acoplada aos meios eletrônicos. A partir da década de 60, vêm sendo introduzidos no universo da música alguns elementos que contribuem na evolução da arte. Entre estes procedimentos temos a inclusão de expressões vocais não lingüísticas como os gritos, os sussurros, choro, riso, entre outros. É visível a contribuição que as vanguardas poéticas, e em especial a Poesia Sonora de Henri Chopin, deram à arte musical. No caso do projeto da Polipoesia desenvolvido por Enzo Minarelli, e outras formas poéticas em estado de ação que se utilizam da intermídia para se comunicarem, a presença do poeta é fundamental. Sobre este caráter multimídia, Fernando Aguiar, em seu ensaio Poesia: ou a Intervenção Viva, afirma: Numa perspectiva de complementaridade e de totalidade da percepção, e visto que cada meio “traduz” a mensagem segundo características técnicas e tecnológicas (M. McLuhan), o poema veiculado por um conjunto de meios possibilitará uma visão diferenciada e diversificada de si mesmo, e poderá ser mais facilmente apreendido em sua globalidade (AGUIAR, 1992, p. 145146). Desta forma, a presença do poeta em cena funciona como um centro norteador de toda performance. A presença do ouvinte também é essencial. Sem ele, a performance não existiria. No entanto, segundo Zumthor, raramente o ouvinte não está presente. “Pense na tirolesa, esse canto de pastor de que existem variantes em todos os países de montanhas altas. Um pastor canta sozinho. Não tem um ouvinte ao seu lado. No entanto, na verdade, ele tem um ouvinte: a própria montanha, cuja beleza o canto exalta” (ZUMTHOR, 2005, p. 92). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 729 Outro meio eletrônico que traz a oralidade de volta em um nível muito semelhante ao da performance poética é o rádio. Sendo este um veículo que transmite a performance da notícia em tempo real, ou seja, no momento em que o fato está acontecendo, incorpora tanto características da oralidade, quanto da escrita. Como a maioria dos programas de rádio são apresentados ao vivo, é bem provável que este tente reproduzir o formato da conversa cotidiana, característica esta que o aproxima da performance. Para que um texto radiofônico seja inteligível e eficiente, é necessário, portanto, que seja feito um bom uso da voz, do ritmo, da expressão, modulação e inflexão, além da utilização dos efeitos sonoros, da música e do silêncio. Com base no grande poder de comunicação do rádio, esta acaba sendo uma mídia extremamente importante, e se realmente fosse usada de forma criativa, talvez sua potencialidade pudesse ser muito melhor aproveitada. É o que pensam os defensores da “rádio arte”, praticada por pesquisadores e artistas que se dedicam à experimentação sonora e radiofônica, no qual os conteúdos artísticos e as tecnologias empregadas na veiculação radiofônica acabam sendo usados como matéria prima. Sendo assim, “a arte não é transmitida num programa de rádio, pois o programa é a própria arte” (FIGUEIREDO, 2003, p. 01). 4- Poesia sonora e performance no brasil A poesia brasileira é bastante conhecida internacionalmente, principalmente através do movimento da Poesia Concreta dos anos 50. Sendo o concretismo ligado preferencialmente à poesia visual, o projeto da poesia sonora ficou em segundo plano e se deu tardiamente em nosso País. Um dos primeiros estudos sobre poesia sonora no Brasil foi o de Philadelpho Menezes, que em 1992 lança o livro Poesia Sonora: poéticas Experimentais da Voz. Esta coletânea de textos e manifestos escritos por autores do mundo inteiro representa um verdadeiro marco histórico nos estudos da poesia vocal experimental no Brasil. Antes desta obra algumas tentativas de poesia sonora já haviam sido realizadas por Caetano Veloso em seu disco Araçá Azul, de 1973, e por Walter Franco com a polêmica música Cabeça, do álbum Ou Não, que bravamente foi indicada por Júlio Medaglia, Décio Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 730 Pignatari e Rogério Duprat, integrantes do júri que foi destituído pela direção porque ousou indicar o nome de Walter Franco como vencedor do Festival da Globo, em 1972. No ano de 1993, Menezes funda o Laboratório de Linguagens Sonoras, na PUC de São Paulo, e conta com a participação de poetas e alunos de pós-graduação, que se preocupam em criar uma poesia sonora brasileira. Desta movimentação surgem dois CDs de poesia sonora lançados por este laboratório. O primeiro, Poesia Sonora - do fonetismo às poéticas contemporâneas da voz, de 1996, contém poemas produzidos pelo próprio grupo de alunos e professores. O segundo CD, Poesia Sonora Hoje – Uma Antologia Internacional, de 1998, traz as gravações dos mais importantes poetas sonoros do mundo, com o objetivo de apresentar e fixar a importância que tem esta prática de poética experimental na cena internacional. Em 1993, o poeta Arnaldo Antunes produz e lança um livro acompanhado de vídeo e CD intitulado Nome. Esta obra é importante para o cenário poético brasileiro, pois é um dos primeiros registros de poesia multimídia neste País. A Rádio Cultura de São Paulo, em 1994, realiza uma série de quatro programas da série “Poesia Sonora”. Também em 94 é lançada a fita K7 Sonemas, de Alex Hamburger, com poemas sonoros. O poeta é também, nos anos 80, um dos grandes difundidores das performances experimentais no Brasil. Em 1997, Élson Fróes lança o poema Sus, acompanhado por um sintetizador. Cláudio Daniel realiza no mesmo ano os poemas Zunai e Kundra. Arnaldo Antunes publica, também em 97, o livro 02 ou + corpos no mesmo espaço, acompanhado por um CD, no qual faz leituras de seus poemas, dando ênfase ao aspecto sonoro, aproximando-se da estética da poesia sonora. O poeta Arnaldo Antunes, em particular, tem uma trajetória ímpar dentro da história da poesia brasileira. Desenvolve trabalhos na área das artes visuais, instalações, poesia concreta, visual e, principalmente da performance, o que permite que as apresentações do poeta se desenvolvam em um nível polipoético. Esta qualidade de simultaneidade de mídias e, portanto, de significados, é a principal característica da poesia contemporânea e tem na figura do performer seu mais fiel porta-voz. Levando em conta o avanço tecnológico e a introdução da informática e da internet nos dias atuais, Enzo Minarelli afirma que esta poética que tem na interação de meios sua principal representação, ou seja, a Polipoesia, “apresenta-se no alvorecer do novo milênio Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 731 como uma das possibilidades experimentais ainda passível de ser percorrida, sem correr o risco de parecer superada se o diálogo com as mídias for levado na devida consideração” (MINARELLI, 2005, p. 195). Bibliografia AGUIAR, Fernando. Poesia: ou a intervenção viva. . In: Poesia Sonora – Poéticas Experimentais da Voz no Século XX. São Paulo: EDUC, 1992. p. 145 – 150. COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: EDUSP, 1989. DINIZ, A.G. Poesia & corpo em tutu performático. In: Carreira, A.L.A.N.; Villar-Queiroz, F; Grammont, G. de; Ravetti,G. ; Rojo, S.. (Org.). Mediações performáticas latino-americanas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2003, v., p. 9-21. EL HAOULI, Janete. Demétrio Stratos – em busca da voz-música. Londrina, 2002. FIGUEIREDO, Guilherme Gitahy de. Rádio Arte e a Morte da Mídia. Centro de Mídia Independente. Campinas, São Paulo. 2003. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/11/268504.shtml>. Acesso em: 10 jan 2005. MENEZES, Philadelpho. Da Poesia Fonética à Poesia Sonora (Introdução). In: Poesia Sonora – Poéticas Experimentais da Voz no Século XX. São Paulo: EDUC, 1992. p. 09-18. MINARELLI, Enzo. A Voz Instrumento de Criação dos Futuristas à Poesia Sonora. Sibila – Revista de Poesia e Cultura, Cotia, SP, n. 08-09, p. 178-215, set. 2005. ______. Manifesto della Polipoesia. Valência, Espanha, Catálogo Tramesa d`Art, 1987. Disponível em: http://www.3vitre.it/saggi/imanif.htm. Acesso em 20 jun. 2006. PENA, Brenda Marques. A Performance como Local de Significação da Poesia Sonora. In: Seminário de Literatura e outras Artes: teatro latino-americano. Belo Horizonte. 2005. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=35529 . Acesso em 22 jun. 2006. PORTELA, Manuel. O Som do Corpo com o Som Corpo: Recensão de Escatologia (CD2003), de Américo Rodrigues. In: Inimigo rumor, Rio de Janeiro, n. 15, p. 246-251, segundo semestre de 2003. TOSIN, Giuliano. A Poesia Sonora no Brasil e no Mundo. In: Revista Intellectus, São Paulo. V. 2, n.2. , jan-jul 2004. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 732 ZUMTHOR. Paul. Escritura e Nomadismo. A Presença da Voz. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. ______. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000. ______. Poesia do Espaço. In: Poesia Sonora – Poéticas Experimentais da Voz no Século XX. São Paulo: EDUC, 1992. p. 138-144. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 733 O UMBIGO DE ADÃO: O OLHAR CRÍTICO DE MEDEIROS E ALBUQUERQUE (1867-1934) EM CONFERÊNCIAS Vitor Celso Salvador138 (PG-UNESP/Assis/CAPES) José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque foi jornalista, funcionário público, professor, político, contista, poeta, romancista, orador, ensaísta, teatrólogo, memorialista, conferencista e crítico. Nasceu em Recife em 4 de setembro de 1867 e faleceu no Rio de Janeiro em 9 de junho de 1934. Era filho do doutor José Joaquim de Campos Medeiros e Albuquerque. Posteriormente ao fato de sua mãe ter lhe ensinado as primeiras letras, Medeiros estudou no famoso Colégio Pedro II. Participou da Academia Brasileira de Letras, fundando a cadeira de número 22, cujo patrono é José Bonifácio, o Moço. Ocupou a Secretaria geral da Academia de 1899 a 1917 e a presidência em 1924. Em 1896 e 1897, compareceu frequentemente às sessões de instalação dela. Foi autor da primeira reforma ortográfica promovida, em 1907, na Academia e também acabou respondendo ao escritor Graça Aranha, quando Aranha cortou relações com ela. Desse modo, Medeiros e Albuquerque sempre mostrou interesse grande nos assuntos que envolvem a Academia Brasileira de Letras, afinal de contas, foi o seu membro fundador. Medeiros e Albuquerque, que no princípio da sua carreira literária estimava Portugal, onde fez parte de sua educação, depois nem sempre tratou os portugueses do mesmo jeito. A reforma ortográfica que em Portugal se fez no ano de 1911, sugeriu-lhe, em especial, fortes críticas, contudo ele fosse adepto da simplificação ortográfica. O seu radicalismo e a sua obstinação entraram em choque com o espírito conciliador dos reformistas de 1911, só acalmando com o acordo ortográfico de 1931, que a Constituinte anulou em 1934, restabelecendo a ortografia que vigorava em 1891. Empenhou-se assiduamente nos usuais debates travados a respeito da simplificação ortográfica. Medeiros era um grande defensor da idéia da simplificação, e sua 138 vitorcelso@hotmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 734 última reportagem publicada exatamente no dia de seu falecimento na Gazeta de São Paulo, tratou sobre esse tema específico. Medeiros e Albuquerque foi autor do Hino da Proclamação da República e também fez parte do grupo republicano. Quando a República estava prestes a ser proclamada, viajou a São Paulo a trabalho juntamente a Campos Sales. Pelo fato da República ter vencido, ele recebeu nomeação secretário do Ministro Aristides Lobo pelo até então ministro da época Aristides Lobo. Ademais, foi nomeado vice-diretor do ginásio nacional por Benjamin Constant, no ano de 1892. De início, trabalhou como professor primário auxiliar, conhecendo diversos poetas e escritores famosos da época, tais como: Pardal Mallet e Paula Ney. Desde 1890, Medeiros e Albuquerque foi também educador da Escola de Belas Artes; além de ter lecionado em escolas de segundo grau entre 1890 a 1897 e ter sido também presidente e vogal do Conservatório Dramático entre 1890 a 1892. Em 1894, foi eleito deputado federal por Pernambuco, visto que “como político, que também foi, desenvolveu importante missão na Propaganda da República e foi deputado federal e senador pelo seu estado natal” (CARPEAUX, 1964, p. 16). Ele também conseguiu a votação para a lei referente aos direitos autorais. Além disso, Medeiros e Albuquerque recebeu nomeação à direção geral da Instrução Pública do Distrito Federal, em 1897. Como estava em oposição ao presidente Prudente de Moraes, foi obrigado a pedir ajuda à embaixada chilena. De forma que foi demitido de sua função, ousadamente, resolveu subir aos tribunais para defender verbalmente seus direitos e, como consequência, foi reintegrado com êxito. Ademais, retornou à Câmara dos deputados, constituindo o grupo rival a Hermes da Fonseca. Residiu em Paris de 1912 a 1916. Quando retornou ao território nacional, defendeu a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), contribuindo para a ruptura de ligações brasileiras com a polêmica Alemanha. Medeiros e Albuquerque permaneceu aliado a Washington Luís, no episódio da campanha da Aliança Geral. Devido ao fato da Revolução de 30 ter vencido, Medeiros e Albuquerque teve de pedir auxílio à Embaixada peruana. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 735 Juntamente às atividades do funcionarismo público, Medeiros trabalhava também como jornalista. Na época florianista, ele teve a direção d’O Fígaro. Foi nesse periódico que teve oportunidade de denunciar a deposição que se planejava do governo Barbosa em seu estado natal, Pernambuco. Em 1888, Medeiros e Albuquerque trabalhou no Jornal Novidades, em companhia de Alcindo Guanabara. Embora tivesse um entusiasmo inicial pela tendência decadentista, não tomou parte na propaganda simbolista. Dedicou-se às atividades de colaboração diária da Gazeta de São Paulo e de diversos outros periódicos cariocas e aos seus variados atos na Academia, onde participava da Comissão do Dicionário e exercia a redação da Revista, no período de 1930 até 1934. No decorrer de sua vida, Medeiros escreveu livros de diversos gêneros de obras que marcaram a história da literatura brasileira como, por exemplo, O regime presidencial do Brasil (1914), A arte de conquistar as mulheres (1925), Hipnotismo (1921), Minha vida (1934), Quando eu falava de amor (1933), Parlamentarismo e presidencialismo no Brasil (1932), Se eu fosse Sherlock Holmes (1932), Contos escolhidos (1907), Mãe tapuia (1900), Um homem prático (1898), O Remorso (1889), Segredo conjugal (1934), Pontos de vistas (1913), O mistério (1921), Teatro meu e dos outros (1923), O escândalo (1910), Fim (1922), Páginas de crítica (1920), Laura (1933), Graves e fúteis (1922), Por alheias terras (1931), O umbigo de Adão (1932), O silêncio é de ouro (1912), Poemas sem versos (1924), Em voz alta (1909), Marta (1920), Quando era vivo (1942), Poesias (1904), O assassinato do general (1926) e Homens e coisas da Academia Brasileira (1934). Medeiros e Albuquerque estreou na literatura em 1889 com dois livros de poesia intitulados Pecados e Canções da decadência. Nesse mesmo ano, publicou O remorso (carta em versos à princesa D.Isabel), revelando certo conhecimento da estética simbolista. No volume Pecados, ele fez a “Proclamação Decadente”, que foi o texto precursor do poema-manifesto “A Arte”, de Cruz e Souza. Apesar disso, percebe-se, em seu trabalho, apenas uma certa influência simbolista da qual, posteriormente, acabou em parte se desvinculando. Contudo, Medeiros e Albuquerque ao escrever seus livros, de forma bastante natural, deixava também transparecer suas sensações nos argumentos, diferentemente do Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 736 método científico do seu professor particular, que apreciava muito mais o mundo das certezas e não o mundo de hipóteses, como preferiam os impressionistas. Desse modo, Medeiros, ao dar espaço à sensibilidade, não parecia ter como objetivo principal apontar provas nas suas obras. Tudo isso porque ele parecia ter grande afinidade com o método impressionista crítico, que passou a ser hegemônico no mundo literário, pois as impressões começaram a ser elucidadas e argumentadas, não mais segundo um método crítico tradicional (tendo Romero como exemplo típico), que apenas tinha o intuito de criticar, parecendo não exigir sensibilidade dos críticos, além de revelar uma certa distância entre estes e as obras. Esse método teve uma permanente aspiração na vida nacional além de que, de fato, foi uma configuração decisiva na linguagem crítica, em que também os elementos do passado, da tradição, foram utilizados sob um enfoque mais sensível e contemporâneo, ao passo que “a interpretação e o julgamento se completam na crítica literária” (MARTINS, 1983, p.37). Com isso, o impressionismo crítico desligava-se dos traços tradicionais de análise literária, com influência da crítica impressionista francesa. Os críticos impressionistas como, por exemplo, Medeiros e Albuquerque, José Veríssimo e Nestor Vitor, utilizavam a linguagem como resultante de uma solicitação de época, em que os escritores brasileiros, marginalizados pela evolução histórica e social, registravam suas críticas nos trabalhos, mostrando suas opiniões, mas não deixando de se sensibilizar com as matérias enfocadas, assumindo, consequentemente, “a posição ‘superior’ da ironia e do ceticismo” (BARBOSA, 1974, p.202). Ademais, Medeiros e Albuquerque, sempre quando escrevia, revelava suas convicções íntimas aos leitores, de forma a estabelecer e fortalecer os laços de intimidade com eles. De fato, fazendo isso, ele mostrava saber que “a impressão pessoal é o alicerce do trabalho crítico” (MARTINS, 1983, p.99). Por ora, com sua peculiar sensibilidade, Medeiros revelou-se um conferencista de renome, visto que sabia como ninguém manipular as emoções da platéia por meio de seus textos bastante elegantes, que possuíam um estilo exuberante e com frequentes conceitos exatos. Desse modo, suas conferências tornaram-se famosas no Rio de Janeiro da época. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 737 No decorrer da vida, Medeiros e Albuquerque escreveu 3 livros de conferência: O umbigo de Adão, Em voz alta e O silêncio é de ouro, sendo que destes, o mais famoso e o mais envolvente, sem sombra de dúvida, é O umbigo de Adão. Ao escrever O umbigo de Adão (1932), uma obra composta por 5 conferências literárias, Medeiros e Albuquerque utilizou uma tendência usual em seus textos, que é preferência por temas simples para, dessa forma, desenvolvê-los de forma bastante elaborada, contudo. Essa estratégia o diferenciava de muitos conferencistas importantes da época como, por exemplo, Coelho Neto, que preferia abordar temas mais eruditos. Em relação à conferência “Faceirices” do livro, o conferencista a começa discorrendo sobre a Constituição Federal, afirmando: “ Todos os cidadãos têm o direito de só fazer o que por lei lhes fôr determinado” (ALBUQUERQUE, 1932, p.51). Em seguida, ele revela ironia, sua marca registrada, opinando: “Agora, porém, tenho a certeza de que ele não vale nada” (ALBUQUERQUE, 1932, p.51). Um recurso retórico bastante usado não somente em suas conferências, como também no restante de sua produção, é o fato de Medeiros negar o valor dos seus feitos literários, subestimando-os de forma a transpor certo fingimento no discurso. Esse fato é comprovado quando relata: “Conferência não é bem o nome” (ALBUQUERQUE, 1932, p.52). Dessa maneira, apresentando-se com humildade ao público, Medeiros e Albuquerque, como um bom conferencista que foi, sabe que a intimidade com os receptores tenderá a ser muito mais fácil de ser alcançada, além é claro, do fato de se desculpar, mesmo de forma implícita, de possíveis deslizes que naturalmente mesmo um experiente conferencista pode provocar em textos orais, afinal de contas, conferência é um gênero de obra altamente eloqüente e, como tal, está mais próximo da oralidade, que é utilizada pelos falantes sempre com bastante naturalidade. De fato, no final de “Faceirices”, o conferencista chega a agradecer o público e de forma subtendida procura manter a intimidade com os ouvintes, declamando o seguinte fragmento retórico: “E si, por exemplo, agora, vós quizerdes me dar a ilusão de que eu não vos enfadei muito, mesmo sabendo que buscais enganar-me, eu vos agradecerei essa generosa, essa misericordiosa intenção” (ALBUQUERQUE, 1932, p.68). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 738 Em uma outra conferência declamada no Instituto Nacional de Música, ele desculpou-se afirmando: “E aqui eu termino. Termino, pedindo-vos perdão pela desiluzão que vos inflinjí. Terão todos verificado que havia uma excelente conferência a fazer: exatamente a que esperavam; exatamente a que eu não fiz...” (ALBUQUERQUE, 1913, p.118). Ao informar que o tema da conferência “Faceirices” será o “embelezamento das mulheres”, Medeiros e Albuquerque diz que parece ser fútil, mas, em seguida, esclarece que são “futilidades –não pelo assunto, mas pelo modo por que eu o tratarei” (ALBUQUERQUE, 1932, p.52), com o intuito principal de não perder a intimidade com os ouvintes, além, é claro, de prender a atenção deles. O embelezamento aqui é visto como o desejo de enfeitar-se, isto é, de envaidecer. Segundo o texto dessa conferência, a durabilidade da humanidade é devido à mulher, que a conserva pelo amor. Portanto, “o amor é a base de todas as ciencias, a ciencia fundamental; a base de todas as artes, a arte fundamental” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 53). Portanto, a faceirice é um encaminhamento para a conservação do amor e, consequentemente, tem de ser tratada com seriedade. Ademais, outra técnica bastante freqüente nas conferências de Medeiros e Albuquerque é o levantamento de informações históricas, que passam a dialogar tranquilamente com o respectivo tempo da conferência. Entre as várias informações históricas que o conferencista dá, em “Faceirices”, é a que, falando ainda sobre o embelezamento, diz: “um fato digno de nota é que nos povos primitivos em geral os homens que mais se enfeitam” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 55), em contraposição com os anos 30, em que a mulher é a que “corre maior risco de passar uma existencia solitaria” (ALBUQUERQUE, 1932, p.56) e, por isso, ela é a que mais se enfeita. Feito isso, o conferencista transcende o tema “faceirice”, visto que agora passa a ser visto não apenas como manifestação de uma arte específica, como também de todas as artes de conhecimento, pois “a faceirice feminina é pintura, é escultura, é literatura... é tudo enfim” (ALBUQUERQUE, 1932, p.56). Desse modo, ele abre faz a seguinte pergunta retórica: “por que considerá-la uma cousa futil e risível?” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 67). Em relação à conferência “Salomé”, que foi feita em um curso de declamação, Medeiros e Albuquerque já afirma que a fez por pedido da diretora. Como ela afirmou ser um grande desejo, o conferencista resolveu satisfazê-lo. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 739 Prosseguindo o texto, ironicamente, ele aborda o assunto religioso, ao mencionar especificamente Deus. Vale registrar que Medeiros e Albuquerque sempre foi um ateu convicto, chegando até mesmo a criticar os católicos por sua convicção que ele julgava essencialmente dogmatizada. Em muitos de seus livros, isso fica bastante evidente, tal como, por exemplo, quando ele afirma o seguinte: “Ninguém deve respeitar crenças, que lhe pareçam falsas. Está, não no seu direito, mas no seu dever, combatê-las. O que se deve sempre respeitar é o direito de cada um crer no que quiser” (ALBUQUERQUE, 1942, p.331). Ademais, Medeiros sempre achou que os católicos são bastante autorizados, como ele mesmo falou “Não protestam só com argumentos: reclamam que se faça calar quem as ataca” (ALBUQUERQUE, 1942, p.331). Para ele, “o ridículo não é de tal ou qual episódio: é em conjunto, o do catolicismo todo inteiro” (ALBUQUERQUE, 1942, p.333). Medeiros e Albuquerque aborda a construção do mundo de forma altamente contraditória e ironicamente, ao argumentar: “Deveras, porém, creio que só daria a Deus um conselho: que ele não fizesse o mundo. Para que?! Pois si ele tinha vivido tão quietinho até ali, para que comprar complicações? “ (ALBUQUERQUE, 1932, p.69). Segundo a sua concepção na conferência “Salomé”, Deus foi muito ingênuo e precipitado em fazer o mundo, chegando até mesmo, ousadamente a aconselhá-lo a não fazer suas criações, em “Não faça nada, Padre Eterno! Você não imagina como é facil, em vez de fabricar um universo ruim e mal acabado, não fazer nada, nada, absolutamente nada!” (ALBUQUERQUE, 1932, p.70). Desse modo, o conferencista chegou até mesmo a chamá-lo de teimoso, em “Não sei si ele me atenderia... Não creio, porque ele é teimoso e, já podendo ter acabado com tudo isto” (ALBUQUERQUE, 1932, p.70). Aliás, essa ousadia é característica de Medeiros e Albuquerque, visto que ele sempre soube argumentar com muita coragem, parecendo não possuir medo de nada e muito menos de ninguém. De fato, em suas obras, ele chegou a criticar nomes importantes da literatura brasileira, tais como: Cruz e Sousa e Silvio Romero. Quando criticou Cruz e Sousa, ele sempre mencionou achar o poeta simbolista muito infantil para fazer poesias, além de relatar que ele seus versos apenas transmitem musicalidade. Já em relação a Sílvio Romero, seu professor, ele afirma: “Os livros de Silvio Romero não são bem escritos. Mas são luminosamente claros” (ALBUQUERQUE, 1942, p.51). Todavia, ele não deixou de registrar Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 740 que Sílvio, professor, era um expositor excelente, pois suas lições “dialogadas foram e serão sempre o método ideal para o ensino de filosofia” (ALBUQUERQUE, 1942, p. 51). Outro dado interessante é que Medeiros e Albuquerque chegou a criticar de forma ousada até mesmo nomes importantes da História nacional, como, por exemplo, o imperador Dom Pedro II, ao afirmar: “o imperador sempre fez versos errados, banais, de uma indigência de ideias e de uma imperfeição de forma tais que se recusariam a assiná-los até os mais incorretos principiantes” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 10). Posteriormente, ele relata que “Pedro II não exibiu jamais trabalho nenhum, de natureza nenhuma” (ALBUQUERQUE, 1932, p.15). Quando criticou o presidente Campos Sales, teceu comentários bastante negativos a ele, como: “ Campos Sales foi o presidente mais nefasto de quantos houve em nossa terra” (ALBUQUERQUE, 1934, p.26). Além disso, ousadamente, informa que Sales saiu do regime político da época “relativamente honesto, e começou a subvencionar os jornais que o defendiam. Gastou mais de sete mil com isso” (ALBUQUERQUE, 1934, p.27). Prosseguindo basicamente a conferência “Salomé”, Medeiros e Albuquerque, ironicamente, ainda ao falar de Deus, diz que se o pai celestial perguntasse a ele se gostaria de ser mulher, enfatizando que mesmo se antes do seu nascimento, se ainda sim Deus perguntasse, ele responderia que não, argumentando: “Mas, como mulher (e sobretudo si fosse uma mulher bonita), eu me desmoralizaria, em muito pouco tempo” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 70). Depois, ainda explica: “Com a deploravel tendencia a aceder a tudo o que me pedem, os homens me pediriam muitas cousas –sei lá o que eles pediriam!- e eu lhes iria fazendo as mais inconvenientes concessões” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 70). Medeiros e Albuquerque, utilizando de um estilo peculiar bastante leve, em “Salomé”, fala dos médicos e seu trabalho, em “Todos sabem que os medicos, embora adstritos ao segredo profissional, reconhecem que diante de certas doenças muito graves, muito perigosas, o segredo cessa e é dever chegar á notificação compulsoria” (ALBUQUERQUE, 1932, p.71). De fato, a preocupação do autor pelos problemas envolvendo a saúde pública da época era bastante comum em seus trabalhos, ao passo que ele se preocupava muito com as transformações desenfreadas em que o século XIX passava, sobretudo conhecido como Belle Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 741 Époque tropical. Nesse tempo, o Rio de Janeiro estava se transformando socialmente e culturalmente, seguindo a influência da capital francesa, entretanto, essas mudanças só eram usufruídas por uma minoria elitizada, descartando as classes médias e baixas nacionais, que sofriam com a questão das habitações coletivas e, sobretudo, os cortiços, que eram vistos como “rede de proteção a escravos fugidos” (CHALHOUB, 1996, p.7). Ademais, os cortiços eram vistos como lugares perigosos de transmissão de epidemias e, como estas poderiam abalar o progresso da Capital Federal do Brasil, eles, portanto, deviam ser eliminados do cenário nacional. Outro dado bastante relevante que aparece em “Salomé” é o fingimento literário que Medeiros mostrou possuir ao escrever esse texto, ao dizer: “A conferencia, em si mesma, nem merecia esse nome, seria apenas um fio, no qual se ensartariam missangas grosseiras e perolas finas” (ALBUQUERQUE, 1932, p.72). Evidentemente, trata-se claramente de um recurso retórico para proporcionar maior intimidade com o público ouvinte, pois se Medeiros achasse que suas conferências não fossem boas, ele, sem dúvida, procuraria alterá-las, visto que ele sempre foi um escritor bastante cauteloso e exigente. Em seguida, em “Salomé”, ele começa a revelar aspectos da vida de Salomé, no fragmento “Salomé é uma pobre rapariga em ultima analise, obscura, porque, apesar de princeza, só se sabe dela um pequeno episodio: que, certa noite, dansou diante do padrasto, este ficou entusiasmo e disse-lhe que pedisse o que quisesse” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 73). Medeiros não deixa de registrar a importância dessa famosa figura que, chegando até nós, consequentemente, está sendo recordada por ele naquele momento. Para o conferencista, Salomé devia ser um pouco ingênua, pois em uma oferta oferecida para ela por João Batista, ficou tão assustada com ela que nem soube o que pedir, “saiu da sala e foi consultar a mãe” (ALBUQUERQUE, 1932, p.74). Como a mãe tinha muitos rancores por João Batista, pois este sempre falou mal da senhora, “insinuou por isso, á filha que pedisse a cabeça do maldizente. E Salomé, obediente, assim o fez” (ALBUQUERQUE, 1932, p.74). Desse modo, Salomé fez o que a mãe queria e pediu que entregassem a cabeça de João a ela. Por ora, Medeiros e Albuquerque registra a sua opinião sobre a estória, dizendo que a vingança da mãe de Salomé era legítima, afinal de contas, “S. João Batista não precisava andar falando mal daquela senhora” (ALBUQUERQUE, 1932, p.75). E ainda revela Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 742 mais uma vez sua ironia usual, em “para que ocupar-se com a vida alheia? “ (ALBUQUERQUE, 1932, p. 75). Ademais, o conferencista traz para a atualidade essa estória, de forma a mostrar grande leveza em seus comentários, em “por fim, houve mais quem lucrasse com essa transação domestica e familiar: fomos nós” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 75), pois os escritores atuais ainda conhecem a estória de Salomé. Para exemplificar, Medeiros e Albuquerque cita nomes como Flaubert, Fagundes Varela, Araújo Filho, D’Annunzio, Henri Robert, Louis Payen, Albert Samain, Oscar Wilde, Eugênio de Castro, Gomes Leite, Emile Hinzelin, Catulle Mendes e Shakespeare. Ironicamente, Medeiros ainda escreve que não compreende o fato de Salomé, depois, passar a amar João Batista, ao passo que este “devia feder a suor e a poeira” (ALBUQUERQUE, 1932, p.92). Além de opinar sobre o caso: “Ora, eu admito sem dificuldade amor e feialdade; mas amor e fedor, embora rimem, parecem-me cousas inconciliaveis” (ALBUQUERQUE, 1932, p.92). Em relação à conferência “Água e sabão” do livro O umbigo de Adão, Medeiros e Albuquerque começa o seu discurso pedindo desculpas por relatar assuntos destituídos de poesia, fazendo alusão a temas “cuja vista ou cujo contacto nos desagradaria” (ALBUQUERQUE, 1932, p.97). Portanto, ele introduz o assunto “água e sabão”. Naturalmente, o gasto excessivo com o sabão é o índice do respeito que as pessoas têm a si mesmas, ao passo que despesas nunca são bem vistas socialmente, originando grande falta de respeito e solidariedade. Prosseguindo a conferência, Medeiros e Albuquerque argumenta ser falsa aquela estória de achar que os povos selvagens “despidos, afrontam facilmente a agua e tanto apanham a de chuva que os lava, sem que eles pensem nisso, como procuram gostosamente lagos, rios, e quédas de agua para se banharem alegremente” (ALBUQUERQUE, 1932, p.98). Na concepção do conferencista, isso não é verídico, afinal de contas, muitos dos povos selvagens não iguais aos índios brasileiros, em geral, que tinham o hábito de se banhar frequentemente, sendo que “os povos primitivos eram quasi sempre asseiados” (ALBUQUERQUE, 1932, p.98). De fato, “muitos povos primitivos são mais limpos de roupas que de péle” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 98), em muitas situações, justificando-se pelo clima, como acontece exatamente com os Mongóes e também com os Esquimós. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 743 Todavia, existem alguns exemplos bastante antitéticos em relação aos povos primitivos, parecendo para os seres humanos civilizados algo bastante deplorável; um ato imundo. Naturalmente, os Dinkas da África mostram-se relativamente bastante preocupados com a higiene, mas surpreendentemente, utilizam a urina da vaca com o intuito de limpeza. Aliás, Medeiros não se esquece de informar que a lavagem com a urina é justificada de certa forma, “quando nós queremos lavar bem as mãos ou mesmo o corpo, não deixamos de usar o amoniaco” (ALBUQUERQUE, 1932, p.99), apesar desta substância usada ser altamente tratada, mas, todavia, o princípio pode ser visto da mesma forma. Na concepção de Medeiros, é muito mais fácil encontrar animais mais higiênicos do que seres humanos. Um bom exemplo é o felino, mais especificamente o gato. Apesar de ele não usar nem água, muito menos sabão, visto que “tudo se faz com a lingua –uma língua que é quasi uma lixa, excessivamente rugosa- e a saliva natural” (ALBUQUERQUE, 1932, p.100). O felino, de forma a se limpar com a sua saliva habitual, sempre se limpa minuciosamente, pois, assim, ele passa a se sentir muito mais confortável consigo mesmo. Segundo Medeiros, o porco, que é um animal tão criticado pelas pessoas, “é um animal limpo, a que os homens dão, ás vezes, habitos de porcaria” (ALBUQUERQUE, 1932, p.100). Prosseguindo a leitura da conferência “Água e sabão”, Medeiros aborda mais outro animal: a raposa. Evidentemente, as raposas parecem tomar banho para afugentar as pulgas e outros parasitas que as incomodam, mas, contudo, utilizam para isso de uma estratégia bastante interessante. Ele explica que elas “começam por procurar um tufo de musgo seco, que metem na boca. Depois, aproximando-se da agua, voltam-se de costas para enfiar nela a ponta da cauda” (ALBUQUERQUE, 1932, p.100). Por ora, naturalmente, as pulgas, tentando rapidamente a fuga, sobem pela cauda da raposa, que mergulha cada vez mais rapidamente. Com isso, as pulgas vão também subindo. Posteriormente, “a raposa entra na agua com a parte posterior do corpo, vai imergindo este pouco a pouco até que fica de fóra apenas o focinho, segurando o tufo de musgo seco” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 100). Com isso, ela se livra de suas inconvenientes pulgas. No entanto, Medeiros e Albuquerque não deixa de registrar que há duas religiões essencialmente limpas: a dos bramanes e a dos maometanos, sendo que “uma que é mais Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 744 antiga de quantas o mundo conhece e outra que é a mais moderna” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 102). Desse modo, ele fala também de Alah, que é o mais recente de todos os deuses existentes. Outro dado interessante em “Água e sabão” é quando o conferencista afirma que na Bíblia, “são as abluções dos pés as que primeiro aparecem: Abraão, lavando os pés dos visitantes que os procuravam e que eram, aliás, anjos” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 103). Todavia, quando os calçados se fazem de maneira a controlar cada vez mais a poeira, aquele hábito possivelmente passará a diminuir, mesmo entre grandes viajantes constituindo um povo específico. Medeiros e Albuquerque também não deixou de informar uma lenda, que envolve a cultura dos Mongóes. Ela diz que um raio matará uma pessoa que, ousadamente, tomar banho em algum dia da sua vida. De fato, “os santos catolicos que ofereceram a Deus a agradavel penitencia de suprimir os banhos são tão numerosos” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 104). Ironicamente, o conferencista diz que “de um modo geral, notai, portanto, que o uso da agua e sabão –o uso salutar do banho- encontrou no seu caminho imensos obstaculos, até de ordem teologica” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 108). Os religiosos, em muitos casos evitam tomar banho; em outras situações, tomam banhos frequentemente. Para tanto, Medeiros informa alguns indivíduos religiosos importantes que deram consistência ao seu discurso retórico. Dentre eles, abordou Santo Agostinho, ao afirmar: “dos banhos parciais, apenas o dos pés, com que Santo Agostinho embirrava, é não só o que primeiro aparece na Bíblia, como o que mais frequentemente se pratica” (ALBUQUERQUE, 1932, p.108). Ademais, mencionou Job, opinando: “Job, querendo falar na epoca em que era rico, diz que nesse tempo ele lavava os pés com manteiga. Idéa bem extravagante!” (ALBUQUERQUE, 1932, p.108). Vale registrar que o conferencista também abordou Adão e Eva, ao informar ao público o seguinte: “Quando se admite a verdade da narração biblica não há tradição mais antiga que a de Adão e Eva. Altos fóros de nobreza teria, portanto, o banho si fosse possivel demonstrar que os nossos mais remotos avós já o praticavam” (ALBUQUERQUE, 1932, p.109). Realmente, o estilo de Medeiros e Albuquerque é altamente leve, descontraído e bem- Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 745 humorado, visto que assim, sem dúvida, ele procurava cativar mais facilmente os seus ouvintes. De fato, usando uma linguagem bastante acessível (tanto que ela pode ser entendida até os dias atuais), o conferencista procura atingir uma intimidade maior com o público, de forma até mesmo a produzir um clima bastante familiar. No fragmento “não está provado ... Não é mesmo provavel... Mas sejamos generosos. Não estragamos a poesia de nossa remota progenitora, supondo-lhe esquecimentos que hoje pelo menos seriam imperdoaveis” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 109). As reticências possibilitam deduzir que o locutor estava refletindo cautelosamente em relação ao uso do léxico que ele julga adequado ao contexto. Além disso, esse recurso também possibilita maior naturalidade na narrativa, pois se percebe que Medeiros, pensando normalmente o que ia dizer, acabava escrevendo, consequentemente. Outra informação relevante é quando Medeiros e Albuquerque menciona, na conferência “Água e sabão”, as profissões de barbeiro e médico e possíveis práticas profissionais, em: “Ainda ha, de fato, barbearias –muito raras, é certo- com cartazes anunciando: ‘aplicam-se bichas e ventosas’. E’ uma sobrevivencia” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 115). Esse fato revela bem, embora de forma um pouco concisa, o cenário urbano da época em que ele discursou tal conferência. Em relação à conferência “Mães” de O umbigo de Adão, Medeiros e Albuquerque, de início, opina tratar-se de um tema já bastante explorado, “daí provém que ha a respeito dele todo um stock de frases feitas” (ALBUQUERQUE, 1932, p.131). Para exemplificar, cita o poeta francês Legouvé e Luis Guimarães Junior, que falaram de mães amorosamente em produções literárias. Todavia, distorcendo essa tradicional figura materna, o conferencista relata alguns episódios em que mães foram maltratadas, como nos clássicos da História, que revelam casos de filhos que atacaram suas genitoras, desrespeitando-as e até mesmo matando-as. Ademais, não há necessidade de se ir muito longe, pois a simples leitura de periódicos revela usualmente “fatos de mães maltratadas pelos filhos ou de filhos maltratados barbaramente pelas mães e que, nessa hipótese, provavelmente, e com toda a razão, as detestam” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 132). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 746 Por ora, não faltaram pessoas que fizeram votos para matar os pais e outras pessoas que até mesmo conseguiram isso em parte. Todavia, como mesmo lembra Medeiros e Albuquerque, “mas o que ninguem propoz ate hoje foi a supressão das mães” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 135). Prosseguindo a conferência, o enfoque vai mais especificamente ao mundo da mitologia, sobretudo, Minerva, a Deusa da Sabedoria, que teve origem do cérebro de Júpiter. De fato, por Minerva ser uma filha sem a figura materna, dá certa idéia de que a ciência é algo essencialmente objetivo, frio e rígido. Como se sabe, o domínio acima citado, o mitológico, é muito diferente da história real dos povos, que não compreendem fenômenos naturais sem mães. Desse modo, “e’assim que os nossos selvagens falam da Mãe do Ouro. Em lugares em que ha este metal em abundancia, a Mãe do Ouro vela para que não o descubram e pune os que querem fazer essa descoberta” (ALBUQUERQUE, 1932, p.136). Aliás, Medeiros sempre se mostrou muito interessado por assuntos da mitologia, sendo que algumas poesias dele mostravam esse tema, principalmente as que se encontram na obra Poemas sem versos. Naturalmente, o conferencista menciona também que uma das tradições mais comuns dos índios brasileiros é a da Mãe da Água, sendo que, na maioria dos casos, “não é pelo canto que a Mãe da Agua atrai: atrai apenas pela beleza física” (ALBUQUERQUE, 1932, p.137). Ela aparece do fundo dos lagos, chamando os indivíduos que se detêm á beira deles, contudo. Em relação ao cristianismo, Medeiros e Albuquerque discorre que para diversos grupos cristãos do passado, a Santíssima Trindade era composta de 3 elementos, que são: Deus Pai, do Filho e do Espírito-Santo, que, antigamente, era “a Mãe celeste do Filho” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 138). Desse modo, como o conferencista explica, “A Virgem Maria era para essas seitas apenas a mãi, por assim dizer, aparente, a mãi terrestre” (ALBUQUERQUE, 1932, p.138). Evidentemente, mesmo a Santíssima Trindade cristã reclamava a presença de uma figura materna. Nessa conferência, Medeiros e Albuquerque aborda também a História, sobretudo, enfocando o matriarcado, ou seja, do reconhecimento primitivo da maternidade, “precedendo de muitos seculos o da paternidade, derivou uma das primeiras fases da civilização, que eles Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 747 chamam o matriarcado” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 138). Nesse tipo de civilização, os filhos, em muitas situações, até mesmo ignoravam que tinham pais, pois o importante mesmo era o lado materno para eles. Ademais, há ainda, em alguns povos asiáticos, resquícios desse regime. Desse modo, ali, “são as moças que fazem a côrte aos homens e que os pedem em casamento. São tambem elas que têm o direito de impôr o divorcio ao marido, despachando-o para a casa da respectiva mãe” (ALBUQUERQUE, 1932, p.139). Como se vê, bem diferente da sociedade do século XXI, as mulheres pareciam ter mais voz na sociedade e, para isso, usufruíam frequentemente de seus direitos. No entanto, mesmo assim, são as mulheres que, na atualidade, conquistam mais facilmente seus objetivos. Ironicamente, para manter certa intimidade com os seus ouvintes, Medeiros e Albuquerque até diz, em uma linguagem bastante leve, que “quando um homem garante que seduziu uma mulher, foi quasi sempre o oposto que sucedeu” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 139). Aliás, essa leveza de estilo é uma grande característica desse autor, tanto é que seus textos (não somente as conferências) podem ser compreendidos até hoje facilmente pelos leitores, de forma que se mantêm sempre atuais. Prosseguindo a conferência “Mães”, o autor ainda diz, por meio de ironia, que diferentemente daqueles povos, cujas mulheres “remetem sumariamente os maridos para a casa das mãis deles” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 139), já na sociedade atual, “quando a mulher briga com o marido ameaça-o de voltar ‘para a casa de mamãe’”(ALBUQUERQUE, 1932, p.139). Com isso, Medeiros revela o machismo reinante da sociedade dos anos 30, que não permitia nem sequer que os casais se separassem, ao passo que o divórcio não era legalizado ainda. Sendo assim, as esposas pareciam ser obrigadas à união eterna aos maridos, embora o casamento estivesse já desfeito matrimonialmente. Em relação à conferência “O nariz de Cleópatra” do livro O umbigo de Adão, Medeiros e Albuquerque inicialmente informa que o texto foi discursado no Teatro Trianon, em 20 de julho de 1917. Em seguida, discute o emprego do título, no fragmento: “a ideia de que entre o titulo de um livro ou de uma conferencia e o conteudo de um ou da outra deve haver uma estrita correlação, ideia que a muitos parece absolutamente logica, é no emtanto, inteiramente absurda” (ALBUQUERQUE, 1932, p.5). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 748 Ademais, o conferencista opina que os títulos muitas vezes não indicam especificamente os conteúdos dos textos, ao passo que, eles podem indicar coisas abstratas, sem nenhuma referência com os assuntos. Portanto, Medeiros mesmo questiona o seguinte: “por que, si é tudo assim, uma conferencia intitulada o Nariz de Cleopatra precisaria tratar de qualquer Cleopatra ou de qualquer nariz? Não ha razão alguma” (ALBUQUERQUE, 1932, p.5). Evidentemente, ele revela a possível escolha de O Umbigo de Adão, mas no lugar do próprio nome dessa conferência “O nariz de Cleópatra”, discorrendo o seguinte comentário: “sobre o Umbigo de Adão havia a vantagem de não se poder dizer nada, atendendo a que, segundo narram graves teologos, Adão foi o unico homem que não teve umbigo” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 5). Portanto, tentar entender o conteúdo dessa conferência apenas pelo título não possibilita grandes facilidades, pois parece bastante vago. Ironicamente, Medeiros e Albuquerque até julga ser o umbigo uma parte bastante fútil do corpo humano, além de sua posição ser bastante discreta, afirmando que “E aliás logo se deveria ver como seria dificil encher uma hora, falando de qualquer umbigo quando essa é a parte mais inutil e esteril do corpo. Só os cirurgiões a apreciam, porque lhes fornece frequentemente hérnias umbilicais para operar” (ALBUQUERQUE, 1932, p.6). Todavia, muitos outros autores utilizaram dessa parte do corpo em suas produções como, por exemplo, Edmond Haraucourt, Paul de Saint Victor e Miguel Ângelo, o que demonstra que esse tema não é tão raro de se encontrar na arte. Consequentemente, o tema do respectivo livro então não dá nenhuma idéia do que realmente o Medeiros e Albuquerque vai abordar no seu discurso, como ele mesmo diz: “ora, como Adão não teve jamais umbigo e como, se tivesse, não havia no seu tempo nem poetas para lhe fazer versos, nem velas, a que pudesse servir de castiçal, uma conferência intitulada O Umbigo de Adão” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 6). Contudo, o título “O nariz de Cleópatra” dá uma idéia mais concreta, afinal de contas, Cleópatra é uma figura famosa e, naturalmente, ela tem nariz. Portanto, como mesmo opina Medeiros, “ao nariz de Cleopatra –de que aliás eu não me vou ocupar- sempre se podem fazer algumas alusões” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 6). Ela teve, sem dúvida, um nariz, como todo ser humano normal teve. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 749 Ademais, o nariz dessa personagem chegou mesmo a ser célebre, graças a uma famosa frase inventada por Pascal, que dizia o seguinte, segundo a concepção de Medeiros e Albuquerque, “Pascal disse, de fato, que, si o nariz de Cleopatra tivesse sido um pouco maior ou um pouco menor, a situação atual do mundo seria diversa” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 7). Naturalmente, se ela tivesse nascido sem beleza, não conseguiria seduzir Antonio e, portanto, a civilização romana progrediria de uma forma altamente diversa. Como se vê, mais uma vez Medeiros e Albuquerque mostrou apreço pela História, que dá consistência a sua narrativa, sobretudo, quando, nessa conferência, ele fala do desenvolvimento de Roma. De fato, ele mencionou César, opinando: “ Cesar foi mandado pelos Romanos, na qualidade –diríamos nós hoje- de interventor. Ele parecia mais propenso ao irmão que á irmã” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 7). Personagens importantes de Roma são relembrados por esse conferencista e fortalecem “O nariz de Cleópatra”. Prosseguindo a conferência, Medeiros e Albuquerque, de forma bastante irreverente, brinca com o fato de uma mulher, tal como Cleópatra, ser bonita, quando diz o seguinte: “No fim de contas, a verdade é que nós não pedimos ás mulheres que sejam bonitas: pedimos que nos agradem. Ha feias irresistiveis e bonitas insuportaveis. Com maior ou menor nariz, Cleopatra talvez fizesse exatamente o que fez” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 9). Enfocando as partes do corpo feminino, Medeiros diz que com os narizes sucedem algo interessante, pois quando se tem o interesse de prestar elogios a alguma mulher, o enfoque não é o nariz. Em geral, os olhos, as mãos, os pés, o cabelo e até as mãos recebem comentários positivos, mas o nariz nunca é valorizado, ao passo que “correi os romances, as poesias, e notareis este fato interessante: os autores fogem á dificuldade de descrever os narizes de suas heroinas” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 10). Mesmo o nariz de Cleópatra, uma linda mulher, não recebe elogios dos autores, em geral. Bibliografia ALBUQUERQUE, Medeiros e. Quando era vivo. Rio de Janeiro: Leite & Maurillo, 1942. ______. O umbigo de Adão. Rio de Janeiro: Flores & Mano, 1932. ______. Em voz alta. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1913. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 750 ______. Minha vida. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934. BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse. São Paulo: Ática, 1974. CARPEAUX, Otto Maria. Pequena Bibliografia crítica de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Letras e Artes, 1964. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 1996. MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. São Paulo: Cultrix, 1983. Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 751 ARTE E LOUCURA: FERNANDO PESSOA(S)? Vivian Karina da Silva139 (G-UEL) As divergentes concepções de Loucura “TENHO UM SEGREDO que nem eu próprio conheço... Data de almas minhas anteriores à actual... Outras paisagens sugerem-se através das janelas E a hora visível recua até o fundo Do meu ser e intercala-se Uma idéia de mim entre mim e a realidade.” Fernando Pessoa, 13/04/1916, p. 366. Pensar sobre a temática loucura requer análises de vários fatores sociais, culturais e teóricos. Do que se trata a loucura? E, antes, qual é o significado social da palavra loucura? Discutir loucura é primeiro, discutir categorização. Se existe o louco é em contraste com o sujeito normal. E quem é o sujeito normal? Há padrões? Quais? Em meio a tais questões, surge o pensador Foucault que critica toda a normalidade social no qual estamos imersos: Exclusão: o lugar mais fundo da sujeição. É para lá que Foucault nos conduz; é de lá que Foucault fala. É deste fundo que se podem reconstituir os processos insidiosos de estigmatização, discriminação, marginalização, patologização e confinamento, operando ao nível da percepção social, do espaço social, das instituições sociais, do senso comum, do aparelho judiciário, da família, do Estado, do saber médico. De qualquer maneira, o resultado é o mesmo: o silêncio dos sujeitados, silêncio que é o primeiro e mais forte componente da situação de exclusão, a marca mais forte da impossibilidade de se considerar sujeito àquele a quem a fala é de antemão desfigurada ou negada. História da Loucura e Vigiar e Punir constituem assim incursões por entre esses espaços extremos da exclusão, manicômio e prisão, com o objetivo de desentranhar a lógica da produção do silêncio de seus habitantes sem rosto. (BRUNI, 1989, v.1, p.2). Por meio das várias perspectivas, tem-se a visão biologicista/médica, no qual o sujeito é então definido como doente mental, sendo aquele que demanda cuidados médicos, remédios e controle sobre o delírio, ou seja, há um controle do biopoder, este do saber médico, no qual os sujeitos ao transitarem de identidade de normal para louco perdem por sua vez, sua autonomia de ser, de escolha, de sujeitos de seus próprios corpos. Perdem a 139 tuca_ka@hotmail.com Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 752 autonomia para outro saber, o médico, e ganham uma nova identidade: o doente mental, alienado, que nada sabe de si, que não tem controle sobre seus instintos, sobre seu EU. Outra forma de controle social da loucura se deu por meio das visões religiosas ocidentais, em que algumas das definições da loucura eram como possessões demoníacas ou de espíritos. Segundo Bruni (1989), quando cita Foucault: Em meio ao mundo sereno da doença mental, o homem moderno não comunica mais com o louco; há de um lado o homem de razão que delega o médico para a loucura, autorizando assim a relação apenas por meio da universalidade abstrata da doença; há por outro lado, o homem da loucura que comunica com o outro somente pelo intermediário de uma razão completamente abstrata, que é ordem, coerção física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade. Linguagem comum não há; ou melhor, não há mais; a constituição da loucura como doença mental, no fim do século XVIII, comprova o diálogo rompido, dá a separação como já adquirida, e afunda no esquecimento todas essas palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um pouco balbuciantes, nas quais se fazia a troca da loucura e da razão. A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, só pôde se estabelecer sobre tal silêncio. Não quis fazer a história dessa linguagem, mas sim a arqueologia desse silêncio (BRUNI, 1989, v.1, p.2, apud FOUCAULT, 1961, p. 9). Há também entre as correntes teóricas diversas da psicologia, da filosofia e da psicanálise, divergências entre si, no entanto, aproximam-se ao apontarem que o delírio é uma forma de comunicação importante e que por meio desse delírio é que o sujeito pode elaborar suas questões, ou então, o delírio é uma forma de mostrar-se, ou seja, mostrar as multiplicidades do que é ser “ser humano”. A loucura vista pela perspectiva foucaultiana, segundo os autores Maria Thereza e Naomar de Almeida (2003) foi criada como modo de aprisionamento dos corpos, entendendo corpo como uma dimensão além do biológico, como já discutido acima, no qual o autor debate o tema por meio da discussão normativa: Quanto à dimensão normativa da saúde, de acordo com Foucault (1980/1987), trata-se de uma invenção da modernidade (...) a medicina do século XIX se apoiava na análise de um funcionamento regular, normal, para detectar onde o indivíduo se desviou. Ela era normativa. De acordo com a hipótese foucaultiana, a modernidade se caracteriza pela invenção política da saúde como a maior riqueza das nações; já que concebida como fonte das demais riquezas. A promoção da saúde das populações pela via da normalização dos corpos seria a estratégia política primordial da medicina, por meio de um discurso essencialmente valorativo. (p. 104). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 753 Tendo em vista, portanto, a longa história da loucura, segundo Silveira (2009), desde como era vista na civilização grega, com teóricos que iniciaram questionamentos, como Platão que propõe a harmonia verdadeira através da razão governando as paixões, no caso, a não-razão, como também, na civilização romana que entendia a loucura sobre uma perspectiva médica, revalorizando a relação médico-paciente. Um importante pensador dessa época foi Cícero, que relatou a primeira descrição detalhada da paixão e usou a primeira vez a palavra libido, num sentido psicológico. Nota-se um retrocesso da visão de loucura no tempo, no período da Idade Média, no qual a loucura era vista como uma possessão demoníaca, sendo que só Deus poderia livrar tais pessoas dessa enfermidade. Esse quadro muda, na renascença e com os ideais da revolução francesa, “liberdade, igualdade, fraternidade”. O iluminismo assegurou a fé dos gregos na razão. Robert Burlon elucidou as causas psicológicas e sociais da loucura como, ciúme, solidão, medo, pobreza, amor não retribuído, religiosidade excessiva. Espinoza preparou a base para a integração de fenômenos físicos, psicológicos e morais. No final do séc.XIX e início do séc.XX, a medicina se seculariza , mantendo-se a concepção do homem como um ser que sofre e demanda angústias, medos. Surgem abordagens como a psicanálise, a medicina antropológica, a psiquiatria, a medicina psicossomática e a psicologia como um entendimento desse novo ser social. Numa análise histórica, houve uma ruptura na descontinuidade, uma reconstrução e alteração do devir. Por meio de questionamentos do que é a loucura e onde está o sujeito dentro dessa loucura, Silveira (2009) nos aponta Hegel quando afirma que a “loucura é uma dimensão humana necessária e que em última análise só é homem aquele que tem a virtualidade da loucura, aquele que pode transcender a si mesmo, conflitar-se consigo mesmo e até descolarse de si mesmo através da linguagem”. A loucura, desde então, assume o caráter de doença/sofrimento, nesse trecho de Hegel, notamos uma tentativa de reconstruir, ou melhor, desconstruir essa imagem do “doente mental” com um ser passivo, que sofre, precisa de cuidados médicos, é, portanto, institucionalizado. Como no poema de Pessoa, acima mencionado, “uma idéia de mim entre mim e a realidade”, então, qual seria essa realidade? Será que não existem diferentes realidades? Qual era a realidade de Fernando Pessoa? Todas as pessoas possuem a mesma Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 754 realidade? Esses questionamentos dão aberturas para se refletir o que é a loucura atravessada pelo tempo, pelas diversas culturas em diversos momentos históricos. Em suma, o presente trabalho, tem como um dos objetivos, indicar como a arte, nesse caso, como a literatura está intimamente ligada sobre os aspectos psíquicos, sociais e culturais em relação à concepção libertária sobre loucura. O artista escolhido, Fernando Pessoa, chocou e ainda hoje, choca seus leitores. Quem é Fernando Pessoa? Quem são seus heterônimos? Qual o sentido em viver novas personalidades, do anseio e da busca de se sentir completo buscando novas formas de existir? Seria ele um louco? Esquizofrênico? Um gênio? Ou simplesmente estaria ele fazendo uma estratégia de marketing? Há ainda, uma questão maior do que todas essas. Com o cuidado de não parecer pretensão desse trabalho, Fernando Pessoa nos mostra que experenciou, fantasmagoricamente a vida de outras pessoas na sua própria, criando novas identidades desse ser que se expande além do Eu afim de encontrar Outros, ou até mesmo Eus. Essas multiplicidades de identidades apontam para o conceito de devir de Deleuze. São os devires-heterônimos de Fernando Pessoa que nos mostram como transcender a idéia de existência de uma única persona, de uma única existência em um só corpo, um ego simplesmente. Sem dúvida, ele nos ensina a ver que não há somente um em todos os seus escritos: Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro afora. (In: Poemas Completos de Alberto Caeiro, p. 13, 2006.) Devir criança: o artista arteiro? “Eis-me aqui em Portugal, Nas terras onde eu nasci, Por muito que goste delas, Ainda gosto mais de ti.” Fernando “menino”Pessoa, p.2 Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 755 Nesse título, brinca-se com as palavras artista e arteiro, ambas vindas da palavra arte. Segundo o dicionário online Michaelis, várias são as definições das duas palavras; arteiro: “que tem arte; astuto, fino, manhoso, que faz travessuras; peralta, traquinas”; artista: “aplicador da arte, engenhoso, astucioso, manhoso, indivíduo que se dedica às belas-artes, aquele que faz da arte meio de vida, o que revela sentimento artístico”. Nesse poema feito por Fernando Pessoa, ele ainda criança, não se sabe exatamente sua idade, mas sabe-se que foi quando tinha menos de oito anos de idade, segundo António Manuel Ferreira em seu artigo “Fernando, o menino Pessoa”, conta a história de vida do poeta que nasce no dia 13 de junho de 1888, em Lisboa. A vida de Pessoa foi um tanto quanto conturbada, aos cinco anos ele perde o pai, e aos seis o irmão. Após o falecimento do pai e do irmão Pessoa cria seu primeiro heterônimo, Chevalier de Pas. Sua mãe se casa novamente e parte pra África, em Durban. Pessoa reside então com uma tia. E escreve com a mais singela delicadeza de uma criança o poema acima mencionado à sua mãe. Após dois anos, parte para África em encontro com a mãe. Lá ingressa na escola e se torna o primeiro aluno da turma. Cria então, o seu segundo heterônimo, Alexander Search, e a partir de 1901 começa a escrever seus primeiros poemas em inglês. Muda-se de novo a Portugal e logo após retorna novamente à África, continua seus estudos e a escrever seus poemas em inglês. Retorna definitivamente a Portugal e ingressa na faculdade de letras, mas logo desiste. Começa a trabalhar como correspondente estrangeiro em escritórios comerciais. E em 1910 escreve poesias e prosas em português, inglês e francês. Impressiona-se, sobretudo com os sermões de Padre Antônio Vieira e, particularmente com a obra de Cesário Verde. Segundo Simões (1973), especialista em Fernando Pessoa, cita que em 1931 em uma página do “Livro do Desassossego”, onde o poeta escreveu sobre o nascimento do seu amor pela língua, pela escrita, desde a infância: Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me tem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez, numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei de Salomão. “Fabricou Salomão um palácio...” E fui lendo até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água por há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 756 toldou de instinto como uma grande emoção política. E disse: chorei; hoje, relembrando, ainda choro...Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. (p.85). Boêmio, encontra-se com amigos em cafés, para discutir literatura. Em 1912, conhece o poeta Mário de Sá- Carneiro e se tornam grandes amigos. É nesse período também que Pessoa estréia como crítico literário, provocando polêmicas junto à intelectualidade portuguesa. E em 1916, o poeta Mário de Sá-Carneiro se suicida após escrever cartas angustiadas a Fernando Pessoa. O marco do modernismo em Portugal foi representado pela revista Orpheu, fundada por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro antes de sua morte em 1915. Mas é em 1914, um pouco antes da criação da revista e da morte de seu grande amigo que Pessoa cria seus mais famosos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, e as suas mais conhecidas obras, os poemas O Guardador de Rebanhos e também o Livro do Desassossego. Em 1920 conhece Ophélia, seu amor, e logo após passa por uma grande depressão, que o leva a pensar em se internar numa casa de saúde, por crises neurastênicas. Em 1934 publica, tomando dinheiro emprestado, o livro Mensagem. E em 1925, no dia 30 de novembro morre com cirrose hepática. Segundo o poeta: Do ponto de vista humano, sou um histeroneurasténico com a predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurastênico na inteligência e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). (SIMÕES, 1973, p.141 apud PESSOA, 1931). E, ainda, complementando, o poeta segue afirmando sua auto-imagem, de uma forma, como diz Simões (1973), “poucos homens em Portugal terão sido, tão simultaneamente lúcidos e cegos acerca de si próprios”, quando o autor menciona outra citação do poeta sobre as características da teoria freudiana sobre a construção do psiquismo, em relação à categorização das neuroses (histérica e obsessiva): O Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgarmos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgarmos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade, pois nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atômica. (SIMÕES, p.141, apud PESSOA). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 757 Nessa escrito, o poeta também além de criticar Freud, critica a si mesmo, quando se determinou “histeroneurasténico”, porém segundo Simões (1973), Fernando Pessoa “pensava-se a si mesmo, como um Descartes pensava o homem. Um espírito crítico-analítico não se pensa – auto-analisa-se.” Fernando: vários Pessoas “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na natureza não é porque sabia o que ela é. Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem por que ama, nem o que é amar...” Alberto Caeiro (1889/1915, p.14). “Acima da verdade estão os deuses. Nossa ciência é uma falhada cópia Da certeza com que eles Sabem que há o Universo.” Ricardo Reis (1887/1935?, p.17). “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Álvaro de Campos (1890/1935?, p.18). “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.” Fernando Pessoa, ele mesmo.(p.19). A obra e a vida de Fernando Pessoa estão intimamente interligadas, descrição essa de um dos críticos da obra de Pessoa, Octavio Paz (2006, p. 11), no qual ele afirma: “Poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Atentemo-nos em um primeiro momento ao primeiro heterônimo criado por Pessoa, um francês, Chevalier de Pas, seu novo amigo fantasmagórico com quem trocava correspondências. Pode-se supor certa ligação inconsciente com sua mãe, que era uma grande conhecedora da língua francesa e que apreciava a arte. A Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 758 partir disso, Pessoa não abandonará nunca essa língua, mostrando um apreço muito grande até pela cultura francesa. A morte de seu pai e de seu irmão ainda bebê, tornam as relações afetivas do poeta mais frágeis. Sua tia, Maria Xavier que ajudara na sua criação após a morte de seu pai, exerce ai uma influência muito reveladora na vida poética de Pessoa, pois ela era uma poetiza. Quando se muda para África, estuda na escola dirigida por freiras irlandesas, tendo, portanto, uma educação muito rígida. Fernando Pessoa, por ser primeiramente educado pela língua inglesa, apesar de ter aprendido latim, adquire o gosto refinado pela poesia de Milton, Byron, Shelley, Edgar Allan Poe e outros poetas ingleses. Assim, seguiu seus escritos, com as geniais criações de seus heterônimos. Como escreveu Simões (1973): Mas quem era Fernando Pessoa? Não devemos admirar-nos de que se pergunte tal coisa. Fernando Pessoa é ainda um poeta mal conhecido em Portugal. Primeiro, porque sua obra ainda não foi toda recolhida das revistas por onde está dispersa; segundo, porque Fernando Pessoa foi um inimigo da popularidade. (p.166). Sem dúvida, no ano de 2006, surge o livro “Poesia” com mais de 200 poemas inéditos do poeta. Nesse livro, não se sabe se era de autoria de Fernando Pessoa somente, ou de seus heterônimos. E sobre seus heterônimos e seus surgimentos, resta-nos a seguinte questão: Qual o papel que seus heterônimos representavam no “drama”, assim chamado pelo próprio poeta e pelo autor Simões (1973), de Fernando Pessoa? Sobre tal reflexão, têm-se as várias interpretações de Pessoa sobre si mesmo e sobre seus devires. É o próprio Fernando Pessoa quem nos diz que “desde criança (teve) a tendência para criar em torno (de si) um mundo fictício, de (se) cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. Quem conhece a obra de Fernando Pessoa sabe que ele se rodeou de um grupo de amigos que nunca existiram e que se chamaram Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Estes seus amigos eram mais do que seus amigos: eram desdobramentos dele próprio. (SIMÕES, 1973, p.166-167, apud PESSOA). Abordando essa definição mostrada pelo autor por meio dos escritos do poeta, percebe-se uma analogia com as várias formas de se posicionar no mundo, na vida, atravessando sua subjetividade e nos mostrando o quão complexo foi a existência de seus Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 759 heterônimos e de como a criação deles surgiu. Várias são as opiniões sobre a pessoa de Fernando Pessoa, e a pretensão desse estudo é transmitir que essa criação de seus heterônimos foi de extrema intimidade com a teoria deleuziana sobre o devir, pois “desdobrar-se” de si mesmo é criar e viver as várias facetas das multiplicidades. Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. [...]. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra a natureza. As núpcias são o contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal etc. (DELEUZE, 1998, p.10). Esse processo da criação artística dos heterônimos de Fernando Pessoa está ligado, de certa forma, a questão do pensar colocada por Deleuze, no qual “pensar é criar conceitos que possam produzir uma violenta onda de forças que nos faça refletir” (Oliveira; Souza; Silva, 2009, p.33 apud Vasconcellos, 2007). Ou seja, criar uma obra de arte é antes de tudo fazer o novo por meio dos processos subjetivos, no qual também está relacionado diretamente com o social, é transcender as regras, como na citação acima “questão-resposta, masculino-feminino”. Fernando Pessoa, portanto, com as profundas reflexões sobre a existência, Deus, natureza, amor, morte, suas temáticas principais, passa por o processo do devir, da criação artística extremamente inovadora de seus personagens fictícios, e ao mesmo tempo é uma invenção real do seu inconsciente, ou seja, da sua fantasia. Esta “tendência para criar em torno de (de si) um outro mundo, igual a este, mas com outra gente”, diz Fernando Pessoa “que nunca (lhe) saiu da imaginação”. Concedamos-lhe a palavra: “Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontâneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo...E tenho saudades deles.” (SIMÕES, 1973, p. 167, apud PESSOA). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 760 Nessa explicação do poeta, percebe-se que esses amigos que nunca e sempre existiram, dos quais Pessoa se cercou, sentindo, ouvindo e vendo, representavam um papel de suma relevância em sua vida de artista/poeta. Foi por meio de seus heterônimos que Fernando Pessoa revelou muito de si próprio, de sua subjetividade, ou melhor, de suas subjetividades, pois certamente sua obra além de singular (única), foi também plural. Seus deviresheterônimos foram seus intérpretes, o que nos permitiu nos aproximarmos mais de seus Eus, de seus pensamentos, de seus devires de existência. E segundo Simões (1973), no qual relata os discursos do próprio Fernando Pessoa: “Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”. Como foi dito antes, o autor Simões (1973) fazer referência a Pessoa e sua história como um drama. Mas o que seria esse drama? E por que o autor se refere dessa forma ao abordar a vida do poeta? Para o autor, “toda a existência humana pode ser encarada como um acontecimento dramático” (p. 168). No entanto, Simões revela que não é nesse sentido que ele se refere a Fernando Pessoa, mas no sentido de que o poeta era um conjunto de indivíduos, ou seja, não como uma existência individual, e sim, que correspondia um papel e assim sendo, para o autor o jogo de todos esses indivíduos ou personagens constituiria um drama: ora Ricardo Reis, ora Álvaro de Campos, ora Alberto Caeiro e o próprio Fernando Pessoa, pois ele também realizava um papel nesse drama que ele era igualmente como nas definições de Deleuze sobre os devires e as multiplicidades do ser, da existência. Afinal, somos as nossas relações e é por meio delas que nos tornamos o que somos e diante disso também estamos em constantes mudanças e transformações. Deleuze (1998), quando escreve sobre devir afirma: “A questão o que você está se tornando? É particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna muda tanto quanto ele próprio”. (p.10). Quer dizer: Fernando Pessoa assemelhava-se a uma pessoa colectiva, como se diz em direito comercial, de personalidade distinta das personalidades dos seus associados, embora todos eles fossem sua própria personalidade. Fernando Pessoa era simultâneamente o palco – o lugar cênico – em que se desenrolava o drama entre as personalidades-desdobramentos-dele-próprio e o criador, actor e encenador do drama que em si mesmo se desenrolava. (SIMÕES, 1973, p.168-169). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 761 Mas como alguém pode ser ele e outros ao mesmo tempo???? Foi essa a façanha que o poeta teve e realizou muito bem, durante sua vida/obra de arte. Como afirma Simões (1973) se um dramaturgo pode escrever seus personagens e dar-lhes vida, com sentimentos, afetos, sensações, por que não um poeta não posso fazer o mesmo, ou melhor, por que não um poeta que fala sobre as vozes de vários outros poetas com sentimentos, idéias, afetos, sensações no mesmo poeta de formas particulares e distintas entre si? Sim, foi essa idéia genial que Fernando Pessoa teve e realizou! “Cada um dos nomes de que Fernando Pessoa se serviu delimita um conteúdo psicológico particular”. (SIMÕES, 1973, p. 169). Por isso Fernando Pessoa pode dizer, referindo-se aos seus vários heterônimos: “... pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. Isto é: tal como faria um dramaturgo, Fernando Pessoa, quando se exprime em nome de Alberto Caeiro, fá-lo como se estivesse a fazer falar uma personagem caracterizada por uma completa ausência de sentido dramático da vida; quando se exprime em nome de Ricardo Reis, fá-lo como se estivesse a fazer falar uma personagem caracterizada por um grande amor das formas lapidares e perfeitas; e quando se exprime em nome de Álvaro de Campos fá-lo como se estivesse a fazer falar caracterizada por uma força de emoção avassaladora. (SIMÕES, 1973. p. 169). No entanto, diferentemente de um dramaturgo, que pensa nas características dos personagens e dá sentido à peça por meio da interação de todos eles, para que seja elaborada enfim, o drama, a obra de arte, para o poeta Fernando Pessoa não basta disseminar individualmente para seus vários personagens/devires, aquilo que ele pensa, sente ou imagina simplesmente, ele “precisa de saber ser diferente daquilo que ele próprio é exactamente quando é preciso ser-se aquilo que de facto se é.” (Simões, 1973, p.170). No que tange às suas criações heterônimas, Fernando Pessoa destina uma carta a seu amigo Mário de Sá-Carneiro, no qual o poeta tentou inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, entretanto, nada conseguiu. E foi então, segundo relatos seus, quando tivera desistido de tentar criá-lo, que repentinamente, começou a escrever e não parou, dando um total de: Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 762 [...] trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título O Guardador de Rebanhos. E o que se viu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (SIMÕES, 1973, p.172, apud PESSOA). Esta confidencia do poeta nos mostra a gênese do seu processo de criação, sendo, portanto, algo de muito valor para entender a arte literária de Pessoa. São dele as palavras que nos diz que sua tentativa de imaginar uma nova personalidade foi em vão e somente aconteceu quando surgiu de forma natural, ou seja, partiu do próprio desdobramento da sua subjetividade. “A poesia não se imagina, não se inventa, não se compõe – impôe-se-nos. Alberto Caeiro impôs-se a Fernando Pessoa.” (Simões, 1973, p. 172). Assim como surgiu ao poeta seu devir-heterônimo Alberto Caeiro, surgiram também tantos outros, uns mais conhecidos, já citados acima (Ricardo Reis, Álvaro de Campos) e seus mais, desde a idade da terna infância. O que Fernando Pessoa fez foi notar a sensibilidade que tinha e as catalogar, dando vida, história e personalidade. Como Simões (1973) traduziu, o que o poeta aflorou em si foi a “utilização da sensibilidade pela inteligência”, ou seja, segundo Fernando Pessoa isso se dá de três maneiras: processo clássico (suprimir dos sentimentos tudo o que é individual, mostrando o que é universal); processo romântico (passar sensação nítida e que seja aceita como uma coisa sensível pelo leitor); processo metafísico (dar a cada emoção um prolongamento metafísico ou racional). Um exemplo disso dito pelo próprio poeta, que nos ensina a fazer arte literária, que criou seu modo de escrever e passar seus tantos poemas, a nós, leitores: Suponhamos que tenho uma aversão íntima pela cor verde, e que quero transformar essa aversão, que é uma sensação, em expressão artística. Pelo processo clássico, procederei da seguinte maneira: (1) Lembrar-me-ei que a aversão pela cor verde é puramente individual, que, portanto, a não posso transmitir a outrem, tal qual é; (2) deduzirei que, assim como tenho aversão pela cor verde, outros terão aversão por outras cores; (3) traduzirei a minha aversão pelo verde em aversão por “certa cor”, e cada um que leia verá na aversão assim traduzida a cor particular com que ele tem aversão. Pelo processo romântico, buscarei pôr tal horror nas frases com que exprimo o meu horror pelo verde que o leitor fique presa da expressão do horror, esquecendo precisamente em que se fundamenta [...] Pelo terceiro processo, porei nitidamente a minha aversão pelo verde, e acrescentarei, por exemplo, “é a cor das coisas nitidamente vivas que hão-de tão depressa morrer”. O Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 763 leitor, embora não colabore comigo na minha aversão pelo verde, compreenderá que se odeie o verde por aquela razão. (SIMÕES, 1973, p.173-174, apud PESSOA). A seguir, têm-se o poema criado pelo poeta por meio de sua teorização sobre a criação da escrita literária, Simões (1973, p.174-175, apud Pessoa). Há uma cor que me persegue e que eu odeio, Há uma cor que se insinua no meu medo. Porque é que as cores têm força De persistir na nossa alma, Como Fantasmas? Há uma cor que me persegue e hora a hora A sua cor se torna a cor que é a minha alma. O verde! O horror do verde! A opressão angustiosa até ao estômago, A náusea de todo o universo na garganta Só por causa do verde, Só porque o verde me tolda a vista, E a própria luz é verde, um relâmpago parado de verde... Odeio o verde. O verde é a cor das coisas jovens - Campos, esperanças, E as coisas jovens hão-de todas morrer. O verde é o prenúncio da velhice. Porque toda a mocidade é o prenúncio da velhice. Uma cor me persegue na lembrança, E, qual se fora um ente, me submete A sua permanência. Quanto pode um pedaço sobreposto Pela luz à matéria escura encher-me De tédio ao amplo mundo! Esse exemplo nos mostra com clareza a constituição de seus principais heterônimos, com o clássico Ricardo Reis, o romântico Álvaro de Campos e o metafísico Alberto Caeiro. “O desdobramento de Pessoa pelos seus vários fantasmas fez-se sobre uma base que assenta até certo ponto numa concepção tripartida da arte: clássica, romântica e metafísica.” (Simões, 1973, p.175). Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 764 Em síntese, o poeta cria uma espécie de teorização da arte literária, que é extremamente particular e nova, e coloca em prática em seus devires existenciais, na criação de seus personagens Pessoas, no qual, segundo o poeta são seus amigos, sendo que cada um tem sua história de vida e mesmo o próprio Fernando Pessoa confessa não saber quem são seus heterônimos, somente sabe que eles existem. “Olhe Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos 35,36,37,38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior...” “Mas isso são só números”, protestou o meu mestre Caeiro. E depois acresccentou, olhando-me com uma formidável infância: “O que é o 34 na Realidade?”. Em: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Álvaro de Campos: Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, p. 180. Bibliografia BRUNI, J. C. 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Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina. ISBN: 978-85-7846-101-0 ___________________________________________ 765 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. 3 volumes. São Paulo: Edições Loyola, 1995. OLIVEIRA, M. B., SOUZA, P. S., SILVA, V. K. . Gênero, arte e subjetividade: o olhar ético-estético da Psicologia Social. Revista de Psicologia da UNESP, 8(2), 31-38, 2009. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/revpsico/index.php/revista/article/viewFile/132/158. Acessado em: 15/09/10. PESSOA, F. (1888-1935). Poemas Completos de Aberto Caeiro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. PESSOA, F. (1888-1935). Poesia: 1902-1917/ Fernando Pessoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SIMÕES, J. G. Heteropsicografia de Fernando Pessoa. Inova, 1973, 18o volume da coleção: Civilização Portuguesa. SILVEIRA, L. Fazer falar a loucura. Mnemosine, Vol. 5, No 2 (2009). 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