o que está em jogo nestes - Observatório das Metrópoles
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o que está em jogo nestes - Observatório das Metrópoles
DOSSIÊ O QUE ESTÁ EM JOGO NESTES JOGOS? Olimpíadas 2016 e a mercantilização da cidade do Rio de Janeiro FICHA TÉCNICA Coordenação Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro Breno Procópio Juciano Martins Rodrigues Pedro Paulo Machado Bastos Revisão Breno Procópio Pedro Paulo Machado Bastos Imagens Pedro Paulo Machado Bastos Edição e Diagramação Thais Velasco Tradução Marcelo Fonseca Anthony Cleaver www.observatoriodasmetropoles.net Avenida Pedro Calmon, 550, sala 537 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro-RJ - CEP: 21941-485 ÍNDICE A gentrificação como estratégia de neoliberalização das cidades brasileiras Orlando Alves dos Santos Jr. Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana Thiago Hoshino e Júlia Franzoni ...........22 Investimentos e Parcerias Público-Privadas: a urbanização neoliberal da Cidade Olímpica Larissa Lacerda, Mariana Werneck, Orlando A.dos Santos Jr. e Patricia Novaes ...........13 MEGAEVENTOS Apresentação ...........04 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL AP ARTIGOS 01 02 03 04 Transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro: uma reflexão sobre a racionalização da frota de ônibus Juciano Martins Rodrigues e Pedro Paulo Machado Bastos ...........33 ...........43 Porto Maravilha: o imaginário da revitalização ...........65 Olimpíadas 2016 e os impactos da "revolução dos transportes" sobre a justiça socioespacial Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro ...........82 ...........71 E 05 06 07 08 Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização ...........56 JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO LIVROS, TESES E DISSERTAÇÕES 09 Olimpíada Rio 2016: para o benefício de quem? Entrevista com Christopher Gaffney ...........89 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro ........104 10 JOGOS OLÍMPICOS RESISTÊNCIA POPULAR E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS ENTREVISTA AP APRESENTAÇÃO D Figura 1 - Praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro: símbolo do Porto Maravilha esde o momento em que foi anunciada a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas, os discursos oficiais enunciados pela classe política e por parte da grande imprensa passaram a destacar a grande oportunidade que o megaevento esportivo iria trazer para a cidade. Com ela, a cidade seria contemplada por investimentos capazes de enfrentar graves problemas, como o da mobilidade urbana e o da recuperação de espaços degradados para a habitação, comércio e turismo, como no caso da região portuária. Dessa maneira, havia nesses discursos a promessa do “legado olímpico” para toda a população, o que estava bem claro no Dossiê de Candidatura da cidade: Os Jogos do Rio 2016 serão fundamentais para antecipar a realização de aspirações de longo prazo do Rio de Janeiro, aprimorando o tecido social, físico e ambiental da cidade, um processo que já está em andamento graças à própria candidatura aos Jogos de 2016. 1 Porém, às vésperas do início dos Jogos Rio 2016, a realidade é outra. No caso da mobilidade, o poder público investiu, por exemplo, R$ 19 bilhões em 16 quilômetros de metrô para atender a menos de 1% da população da cidade – ou seja, cerca de 300 mil pessoas. Só o município do Rio de Janeiro tem 6,4 milhões de pessoas. Já o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que liga o Aeroporto Santos Dumont à Rodoviária Novo Rio, saiu ao custo de R$ 1,5 bilhão, com R$ 600 milhões vindos de recursos públicos. Enquanto isso, a maior concentração da população do Rio está na Zona Oeste (41%) e Norte (36,5%), justo as regiões com o maior gargalo de transporte de massa para o acesso ao Centro da cidade (onde estão concentrados grande parte dos postos de trabalho). 1 Disponível em: <https://www.rio2016.com/sites/default/files/parceiros/dossie_de_ candidatura_v1.pdf>. Acesso em 2 ago. 2016. 5 A Prefeitura do Rio tem argumentado a favor dos investimentos nos corredores de Bus Rapid Transit (BRT) como representativos de uma solução de transporte para as classes populares. No entanto, os fatos e análises têm apontado para problemas frequentes no novo sistema — acidentes e superlotação —, como também para o favorecimento da construção de uma nova centralidade dentro do município, localizada na Barra da Tijuca. As classes populares têm sido estimuladas a irem trabalhar na Barra, servindo de mão de obra barata para uma região que almeja o símbolo de centro de negócios e de empreendedorismo no Brasil. Enquanto isso, as barreiras para o acesso a outras áreas do Rio de Janeiro foi ampliado por meio de um processo de racionalização das linhas de ônibus. No caso da Região Metropolitana do Rio, ao que se sabe, foi esquecida do projeto olímpico. As linhas de trem do Grande Rio, por exemplo, atendem a cerca de 750 mil passageiros por dia e possuem 270 quilômetros de trilhos, com 102 estações. Além disso, estão presentes em 12 municípios, onde há 9 milhões de habitantes. No entanto, não receberam investimentos efetivos para recuperação do seu sistema. As poucas estações reformadas estão todas no entorno de equipamentos olímpicos. Já no caso dos investimentos para recuperação de espaços degradados, o Projeto Porto Maravilha serve como melhor símbolo deste novo ciclo de mercantilização das cidades brasileiras, caracterizado pela estratégia de renovação urbana. Trata-se de uma estratégia capitaneada pela progressiva elitização de certas áreas da cidade marcadas pela centralidade social, política e econômica, e pela simultânea expulsão das classes populares que residiam anteriormente nesses mesmos locais. Tal processo tem sido evidenciado no contexto da realização das Olimpíadas, no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro aparece direta e indiretamente envolvida. Seja atuando na promoção da gentrificação, seja favorecendo a eliminação os obstáculos políticos e econômicos existentes para tal, a Prefeitura do Rio de Janeiro tem tornado possível a realização das Olimpíadas especialmente através do empoderamento dos mecanismos de mercado. Em suma, as profundas transformações em curso na dinâmica urbana da cidade 6 do Rio de Janeiro envolvem, de um lado, novos processos de mercantilização da cidade e, de outro, novos padrões de relação entre o poder público e o setor privado, caracterizados pela subordinação do poder público à lógica do mercado. Para analisar esse processo e subsidiar o debate sobre o “legado real” dos megaeventos esportivos para o Brasil e para o Rio de Janeiro, a Rede INCT Observatório das Metrópoles lança o Dossiê O que está em jogo nestes Jogos? Olimpíadas 2016 e a mercantilização da cidade do Rio de Janeiro. A publicação, em versão bilíngue (português e inglês), é destinada tanto à comunidade científica nacional e internacional como aos jornalistas brasileiros e estrangeiros e à sociedade civil. Na primeira seção, este Dossiê apresenta análises sobre o processo de neoliberalização das cidades brasileiras no contexto dos megaeventos esportivos, e a disputa entre o chamado liberalismo urbano e o ideário do direito à cidade. No artigo A gentrificação como estratégia de neoliberalização das cidades brasileiras, Orlando Alves dos Santos Jr. mostra que o golpe político institucional em curso no Brasil representa uma nova inflexão na política urbana brasileira, desta vez de caráter conservador. O autor tece uma análise histórica das políticas urbanas brasileiras — do modelo inicial de urbanismo segregador, passando pelo período da contrarreforma dos governos Collor de Mello e FHC, baseados na agenda neoliberal, até o período progressista, a partir de 2003, com a criação do Ministério das Cidades — para mostrar que a coalizão conservadora almeja o poder com o propósito de aprofundamento do paradigma da cidade-mercado na política urbana brasileira. A cidade deixa de ser tratada como totalidade, ao passo que a esfera pública também deixa de ser a expressão do interesse coletivo. Já no artigo Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana, Thiago Hoshino e Júlia Franzoni mostram que a financeirização do espaço é uma prática (ou melhor, uma racionalidade prática) associada ao neoliberalismo como “nova razão do mundo”. Segundo os autores, muito do que era o chão de fábrica passa a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos 7 aqueles transformados em máquina de extrair mais-valia. Fruto de uma urbanização segregadora, à cidade tem se somado um conjunto de ameaças legislativas de viés especulativo cujo intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço urbano num ativo financeiro sempre mais rentável. Ainda integram essa parte outros dois artigos relacionados ao tema “Jogos Olímpicos 2016 e a mercantilização do Rio de Janeiro”, cujo foco são as obras e projetos que integram o Projeto Rio Olímpico relacionados à infraestrutura — equipamentos esportivos, transporte e renovação urbana —, e mais a análise dos atores envolvidos no processo, recursos financeiros (matriz financeira), transparência pública e governança urbana. No artigo Investimentos e Parcerias Público-Privadas: a urbanização neoliberal da Cidade Olímpica, Larissa Lacerda, Mariana Werneck, Orlando Alves dos Santos Jr. e Patrícia Novaes analisam os investimentos previstos na preparação dos Jogos Olímpicos. Os autores põem em evidência que a participação pública supera a participação privada nos investimentos realizados para a Olimpíada 2016, contrariando o que vem sendo divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O estudo apresenta ainda de que maneira os investimentos no território estão distribuídos espacialmente, apontando para um processo de reestruturação urbana da cidade que caminha em três direções: no fortalecimento da centralidade da Zona Sul; na revitalização da centralidade, considerada decadente, da Zona Portuária; e na criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca. Segundo os autores, todos os casos apontam para processos de elitização e gentrificação, acompanhados de remoções das classes populares. Ao final, discutem como este tipo de desenvolvimento da reestruturação urbana também estaria sendo acompanhado da adoção e difusão de um novo padrão de governança empreendedorista neoliberal fundada no estabelecimento de Parcerias Público-Privadas (PPPs), que transfere para o setor privado a gestão de equipamentos e espaços públicos. Já no artigo Transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro: uma reflexão sobre a racionalização da frota de ônibus, os pesquisadores Juciano Martins 8 Rodrigues e Pedro Paulo Bastos analisam o plano de reorganização do sistema de ônibus pela Prefeitura do Rio, implantado em 2015. Tendo como foco espacial a Zona Sul carioca, área de alta concentração de renda na metrópole, o plano previa a eliminação de 28 linhas e o seccionamento de 21 itinerários que passassem pelo local. Segundo os autores, a ação de racionalização da frota tem impactado negativamente no cotidiano dos usuários oriundos das regiões mais periféricas, acirrando ainda mais as desigualdades sociais e a segregação urbana. Na segunda seção do Dossiê — Livros, Teses e Dissertações —, apresentamos resultados de pesquisas da Rede INCT Observatório das Metrópoles sobre o tema dos megaeventos esportivos. No estudo Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização, Mariana Werneck demonstra que o projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro se insere em um processo global de financeirização da cidade, marcado, no caso do Porto Maravilha, por um arranjo inédito que combina parcerias públicoprivadas e instrumentos do mercado de capitais. Trata-se, portanto, de um caso que determina um novo padrão de relação entre o poder público e o setor privado, inaugurando, por um lado, um novo modelo de gestão da cidade, e, por outro, acirrando as desigualdades socioespaciais dentro do Rio. Em seguida, a publicação apresenta a resenha do e-book Porto Maravilha: o imaginário da revitalização, do geógrafo Nelson Diniz. O estudo assinala que o Projeto Porto Maravilha, concebido pelo discurso do “imaginário da revitalização” a partir de modelos como o do Porto de Baltimore (EUA) e o de Port Vell (Barcelona), tem grande proximidade com o modelo clássico de renovação urbana, definido pela demolição de imóveis, pelo rompimento com a comunidade local, e pelo uso de recursos públicos para gerar benefícios a investidores privados. Nos discursos oficiais, as transformações urbanas da “Cidade Olímpica” irão gerar impactos positivos para os seus habitantes e para aqueles residentes na Região Metropolitana. Neste contexto, os investimentos em infraestruturas de mobilidade foram os mais importantes, representando 55% dos investimentos realizados tanto 9 para a Copa do Mundo de 2014, como para as Olimpíadas 2016. Em Olimpíadas 2016 e os impactos da “revolução dos transportes” sobre a justiça socioespacial, o pesquisador Jean Legroux apresenta os resultados de sua tese desenvolvida em colaboração acadêmica entre a Université Lyon 2 e o IPPUR/UFRJ, uma contribuição inovadora ao avaliar, através de uma análise multiescalar e multicritério, os impactos dos projetos de transporte sobre a justiça socioespacial no Rio de Janeiro. O trabalho demonstra que os impactos da “revolução dos transportes” provocaram mudanças que não rompem com o modelo de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com as lógicas de segregação da cidade neoliberal. Dando continuidade ao tema da mobilidade, inclui-se a resenha do e-book Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro, do geógrafo Igor Pouchain Matela. A obra toma como ponto de partida o ano de 2010, quando a Prefeitura do Rio realizou pela primeira vez licitação para estabelecer a concessão privada de todo o sistema de transporte de ônibus da cidade. Com isso, Matela procura mostrar que tal ação faz parte do processo de neoliberalização das cidades brasileiras, não representando uma ruptura, mas sim uma transição regulatória para um novo ciclo de acumulação do setor. O Dossiê O que está em jogo nestes Jogos? Olimpíadas 2016 e a mercantilização da cidade do Rio de Janeiro traz, ainda, uma entrevista com o pesquisador estadunidense Christopher Gaffney, quem tem realizado pesquisas no Brasil nos últimos 12 anos, monitorando e avaliando os impactos sociais e urbanos dos megaeventos esportivos no Brasil e no Rio de Janeiro. Entre 2009 e 2014, Gaffney manteve o blog Hunting White Elephants, que narrou as provações e agruras de uma cidade contorcendo-se às exigências do espetáculo. Ele também colaborou com a Rede INCT Observatório das Metrópoles, participando do projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016”. Nessa entrevista, o pesquisador defende que os megaeventos esportivos mundiais, como a Copa do Mundo FIFA e os Jogos Olímpicos, transformaram-se em um modelo de negócio na era globalizada responsável pela atração de fluxos financeiros, pela reestruturação de circuitos de circulação e pela acumulação local. 10 Afirma, também, que os Jogos Olímpicos Rio 2016 representam mais uma etapa desse modelo formado pela coalizão de interesses entre a classe política, a elite econômica local e os fluxos de capital internacional. Em síntese, alega ser um processo com poucos ganhadores e muitos perdedores. Para fechar este Dossiê, a seção intitulada “Resistência Popular” apresenta o outro Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, documento mais completo referente à luta dos movimentos sociais, organizações populares, organizações não governamentais e sociedade civil contra as violações de direitos humanos e os impactos das obras no Rio para a realização dos megaeventos esportivos. Dentre as ações de resistência, um dos destaques é o “Mapa da Exclusão — Rio 2016”, assinalando o verdadeiro legado das Olimpíadas no Rio de Janeiro, reunindo informações sobre as comunidades removidas, as favelas ocupadas, os crimes ambientais e as obras repletas de irregularidades. O mapa aponta, por exemplo, todos os locais onde ocorreram remoções na cidade desde 2009, resultando em um processo de retirada de aproximadamente 77 mil pessoas de suas casas. O “Mapa da Exclusão” mostra também o impacto ambiental dos jogos, denunciando que nenhuma meta de despoluição foi cumprida. Do mesmo modo, aponta o processo de privatização dos equipamentos esportivos; a falta de transparência das grandes obras de intervenções urbanas, como o Porto Maravilha, no qual as empresas do consórcio estão envolvidas em denúncias na operação Lava Jato; e as violações ao trabalho, com a perseguição aos trabalhadores tradicionais de rua — os camelôs — e a morte de 11 pessoas durante as obras dos Jogos desde 2013. Coordenação Breno Procópio Pedro Paulo Machado Bastos Juciano Martins Rodrigues Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro 11 ARTIGOS 01 A gentrificação como estratégia de neoliberalização das cidades brasileiras Orlando Alves dos Santos Junior Sociólogo, Doutor em Planejamento Urbano e Regional, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), pesquisador do Observatório das Metrópoles – CNPq orlando.santosjr@gmail.com Artigo publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil, no dia 2 de junho de 2016. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3227 MEGAEVENTOS E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL O golpe político institucional ocorrido no país com o afastamento ilegítimo da presidenta Dilma Rousseff representa uma nova inflexão na política urbana brasileira, desta vez de caráter conservador. No entanto, ao invés de se considerar o momento de afastamento da presidenta, decorrente da abertura do processo de impeachment, como um evento isolado, há que se considerar o golpe político do bloco conservador como um processo que já vinha sendo arquitetado e implementado no interior do próprio governo Dilma. Isto fica evidente na mudança do posicionamento dos partidos e políticos, considerados “aliados”, no momento da votação no Congresso Nacional. Para entender o golpe político e seus impactos na política urbana, portanto, há que se retroceder um pouco na história recente e identificar as inflexões ocorridas neste processo. No Brasil, o final da década de 1980 e a década de 1990 representaram uma verdadeira guinada contrarreformista. Com o início do governo Collor de Melo (1989), passando pelos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), uma agenda de reformas econômicas estruturais de caráter neoliberal começou a ser implementada com a adoção de políticas de liberalização econômica e a privatização de empresas estatais, marcando um novo ciclo de mercantilização das cidades. Como resultado do modelo de desenvolvimento adotado, as cidades brasileiras chegaram ao ano 2000 marcadas por contradições - que, como sabemos, têm raízes históricas – e caracterizadas por profundas desigualdades nos padrões de qualidade de vida, 14 cidadania e inclusão social. Naquele contexto, as condições de vida nas grandes urbanos se tornavam polos econômicos marcados pela fragmentação, dualização, MEGAEVENTOS violência, poluição e degradação ambiental. As raízes desse processo estão ligadas à modernização excludente do Brasil. Como afirma Ermínia Maricato, “é com o início da República que se afirma o urbanismo modernista segregador” 1. Mas é a partir de 1950, com a intensificação do processo de industrialização, que vamos verificar as mudanças mais profundas no padrão de urbanização brasileira, em um processo que combina um gigantesco processo migratório do campo para as cidades, metropolização, expansão da classe média e assalariamento da mão-de-obra. De fato, “o aparato legal urbano, fundiário e imobiliário, que se desenvolveu na segunda metade do século XX, forneceu base para o início do mercado imobiliário fundado em relações capitalistas e também para a exclusão territorial” (MARICATO, op. cit. p. 38). No entanto, a partir da década de 1990, pode-se verificar mudanças no padrão de urbanização brasileira em grande parte decorrentes das transformações no capitalismo internacional e das formas de inserção do Brasil no processo de globalização, tal como tem indicado a literatura nacional e internacional. De um lado, o aprofundamento da periferização das grandes metrópoles, com o aumento populacional nos municípios da fronteira metropolitana e expansão das favelas e loteamentos irregulares; de outro, o aparecimento de núcleos de classe média e condomínios fechados na periferia, tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo. A questão é que o modelo de produção e gestão das cidades brasileiras adotado neste período foi resultado da combinação de processos de inserção seletiva de regiões e áreas competitivas e dinâmicas integradas aos circuitos internacionais de capitais, concentração populacional em áreas metropolitanas, segregação urbana e exclusão socioeconômica, produzindo uma nova ordem socioespacial dividida entre ricos e pobres, entre cidadãos e não cidadãos. 1 MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Editora Hucitec, 1996, p. 38. 15 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL cidades, principalmente nas metrópoles, estavam se deteriorando e os centros Ao mesmo tempo, em termos institucionais, a política urbana não era assumida estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS como uma política de Estado. Os sucessivos governos nunca tiveram um projeto no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambiental, e da mobilidade e do transporte público. Sempre de forma fragmentada e subordinada à lógica de favorecimento que caracterizava a relação intergovernamental, as políticas urbanas foram de responsabilidade de diferentes órgãos federais. Tomando como referência a política de habitação, vale a pena registrar que, de 1985 a 2002, esteve sob a responsabilidade de diferentes Ministérios: de 1985 a 1987, do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente; de 1987 a 1988, do Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente; de 1988 a 1990, do Ministério do Bem Estar Social; de 1990 a 1995, do Ministério da Ação Social; de 1995 a 1999, da Secretaria de Política Urbana, vinculada ao Ministério do Planejamento; de 1999 a 2002, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à Presidência da República. Assim, podemos dizer que, em 2003, a política urbana viveu uma nova inflexão, desta vez de caráter progressista, com a eleição do presidente Lula. A criação do Ministério das Cidades representou uma resposta a um vazio institucional, de ausência de uma política nacional de desenvolvimento urbano comprometida com a construção de um novo projeto de cidades sustentáveis e democráticas. Por isso, a criação desse Ministério, teria expressado o reconhecimento por parte do governo federal da questão urbana como uma questão nacional a ser enfrentada por macro políticas públicas. De fato, grande parte da competência em matéria de política urbana está hoje descentralizada, principalmente depois da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que consolidou e fortaleceu o papel dos municípios no planejamento e na gestão das cidades. No entanto, os problemas urbanos – envolvendo a questão habitacional, o saneamento ambiental, a mobilidade e os transportes – têm dimensões que necessitam de tratamento nacional, seja pela sua importância ou pela sua amplitude, nos quais o governo federal continua tendo um papel relevante. Em especial no que se refere às metrópoles, percebe-se a importância de uma intervenção nacional, tanto na definição de diretrizes como no desenvolvimento de planos e projetos, de forma a impulsionar políticas cooperadas e integradas que respondam à complexidade da 16 Analisando em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que tanto a criação do MEGAEVENTOS Ministério das Cidades como a implantação do Conselho das Cidades, ambos em 2003, e a realização das conferências nacionais das cidades, em 2003 e 2005, são conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira que, desde os anos 1980, vem construindo um diagnóstico em torno da produção e gestão das cidades e propondo uma agenda centrada (a) na institucionalização da gestão democrática das cidades; (b) na regulação pública do solo urbano com base no princípio da função social da propriedade imobiliária e da função social da cidade; e (c) na inversão de prioridade no tocante à política de investimentos urbanos, voltado para a promoção da justiça socioespacial. Na perspectiva da agenda da reforma urbana, a realização das conferências nacionais, bem como a implantação e o funcionamento do Conselho das Cidades deveria criar uma nova dinâmica para a gestão das políticas urbanas, com a participação do poder público e dos movimentos populares, organizações nãogovernamentais, segmentos profissionais e empresariais. E, de fato, podemos considerar bastante significativas as políticas aprovadas a partir de 2003: o Plano Nacional de Saneamento Ambiental; o Plano Nacional de Habitação; a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social; da Política Nacional de Mobilidade Urbana; e do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, são exemplos de políticas que visaram desmercantilizar as cidades e promover a função social da propriedade e a função social da cidade. Apesar de a política urbana ser uma atribuição dos municípios, é preciso considerar que este novo arcabouço institucional nacional criava um ambiente propício para a adoção de políticas progressistas no âmbito local. Mas os avanços institucionais são apenas uma das dimensões desse processo, que envolveu contradições e lutas cotidianas. De fato, é possível perceber ao longo deste período uma efervescência dessas lutas, com o incremento das ocupações de terras urbanas e prédios vazios, nas manifestações públicas pelo acesso aos serviços de saneamento ambiental e pelo barateamento do transporte público, nas ações de 17 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL problemática urbana-metropolitana no país. pressão pela melhoria dos serviços de saúde e educação, por lazer e cultura, entre urbanos comuns e maior democracia na gestão das cidades. E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS outras tantas reivindicações e conflitos urbanos em torno da reivindicação de bens A questão é reconhecer que nesse processo que combinou lutas sociais, políticas institucionais e reflexões conceituais se desenvolveu um novo paradigma, ou mais precisamente, as bases de um novo paradigma, identificado com o ideário do direito à cidade, que se pode denominar da cidade-direito, caracterizado pela construção de diagnósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégicas para um projeto alternativo de cidades. No entanto, a efetivação deste novo arcabouço institucional e das políticas urbanas nacionais identificadas com este paradigma encontrou diversas barreiras e muitos entraves, não apenas nos setores conservadores fora do governo, o que já seria esperado, mas na coalizão de poder dentro do governo, configurando as bases para o golpe político institucional de 2016, e para a nova inflexão conservadora na política urbana neste contexto. Este processo tem início exatamente na substituição do ministro Olívio Dutra (PT), em julho de 2005. A partir daí, o Ministério das Cidades seria ocupado pelo PP (Márcio Fortes de Almeida, Mário Negromonte, Aguinaldo Ribeiro e Gilberto Occhi) e pelo PSD (Gilberto Kasab), partidos que votaram pelo afastamento da presidenta Dilma e pela abertura do processo de impeachment, até que o presidente interino Michel Temer entregasse a pasta para o PSDB, que indicou o ministro Bruno Araújo. A partir da captura do Ministério das Cidades pelos setores conservadores, pode-se dizer que a política urbana nacional vem sendo progressivamente marcada por quatro grandes políticas desenvolvidas pelo governo federal: (i) o PAC – programa de Aceleração do Crescimento, lançado em 2007, com grande impacto sobre as intervenções nas cidades, sobretudo no campo da mobilidade, do saneamento e da habitação; (ii) o Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, destinado a promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou a requalificação de imóveis urbanos, para famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00; (iii) o projeto da Copa do Mundo de Futebol 2014 e das Olimpíadas 2016, com intervenções 18 estruturais vinculadas à realização desses megaeventos em 12 cidades brasileiras, Privadas – PPPs para a gestão de equipamentos urbanos, impulsionada em grande MEGAEVENTOS medida pela realização dos megaeventos esportivos, que promoveu a adoção deste modelo de gestão em estádios de futebol, aeroportos, sistemas de mobilidade e gestão de espaços urbanos vinculados à operações urbanas consorciadas. Impulsionado por essas políticas, as cidades brasileiras passaram a ser palco de grandes intervenções com abundância de recursos para obras de infraestrutura e de reestruturação das suas áreas urbanas, em especial das suas áreas centrais, enquanto que os instrumentos de promoção da função social da propriedade previstos no Estatuto da Cidade ficavam praticamente sem efetividade, encontrando diversas barreiras políticas e institucionais na sua implementação. Em especial no caso dos grandes projetos urbanos, constata-se que as intervenções implementadas nas cidades brasileiras, em geral, não são acompanhadas por políticas de promoção e garantia do direito à cidade, especialmente do direito à moradia dos cidadãos situados nas áreas de intervenção desses projetos, que sofrem diretamente seus efeitos perversos. Assim, em que pese a necessidade de reconhecer, durante a primeira década de 2000, avanços gerais no país no que diz respeito à política nacional de habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana, percebe-se também graves situações de violação do direito humano à cidade, expressas, sobretudo, no alto número de remoções vinculados às grandes intervenções urbanas implementadas, em especial, aquelas vinculadas à Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016. A inflexão conservadora já vinha mostrando sua força nestes projetos, e as intervenções urbanas implementadas já expressavam claramente um novo ciclo de mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços mais rentáveis e valorizados à iniciativa privada e transferência da população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco. Neste novo ciclo de mercantilização das cidades, pode-se observar a progressiva adoção da gentrificação como estratégia de renovação urbana, entendida como a progressiva 19 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL em especial no Rio de Janeiro; e (iv) a difusão do modelo das Parcerias Público- elitização de certas áreas da cidade marcadas pela centralidade social, política e mesmas áreas. E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS econômica, e a simultânea expulsão das classes populares que residiam nestas Tal processo é evidenciado no contexto da realização das Olimpíadas, no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro aparece diretamente envolvida na promoção da gentrificação, atuando tanto na retirada dos obstáculos políticos e econômicos existentes, tornando-a possível através dos mecanismos de mercado, como diretamente, promovendo a remoção das comunidades de baixa renda e sua transferência para localidades mais distantes. Nesse sentido, os processos de gentrificação deixam de ser apenas o resultado da lógica do mercado imobiliário, e passam a configurar uma estratégia de classe, da coalizão dominante, envolvendo uma particular interação entre o poder público e os agentes privados, na qual são adotadas políticas e implementadas ações voltadas para a sua promoção em áreas consideradas atraentes para o capital imobiliário e grandes investidores. Mas os setores conservadores não se mostravam satisfeitos com as concessões feitas em nome do direito à cidade e o golpe político institucional cria as novas condições para esta nova inflexão, de aprofundamento do ciclo de mercantilização das cidades. Nas primeiras semanas após o golpe, o governo do presidente interino Michel Temer anunciaria mudanças políticas radicais, com cortes consideráveis nas políticas sociais, entre os quais no programa Bolsa Família, a suspensão do edital do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades (PMCMV-Entidades - programa complementar do Programa Minha Casa Minha Vida voltado para a construção de moradia pelas cooperativas e entidades populares), e a anúncio da criação do Programa de Parcerias de Investimento (PPI), que tem por objetivo promover a privatização e o investimento do setor privado em projetos públicos. Com o golpe, a perspectiva é de aprofundamento do paradigma da cidademercado na política urbana, envolvendo a difusão de estratégias de empresariamento urbano, city marketing, e certos modelos de planejamento estratégico. A política urbana deve ser progressivamente transformada em relações de mercado, no qual ganha quem tem maior poder para impor os lucros e os custos da ação do poder 20 público. Nessa concepção, a participação estaria fundada no reconhecimento dos a construção de uma esfera pública que seja a expressão do interesse coletivo. MEGAEVENTOS A cidade deixa de ser tratada como totalidade e a noção de cidadania perde sua conexão com a ideia de universalidade. Nesse cenário, os avanços decorrentes do ideário do direito à cidade e do paradigma da cidade direito, que foram conquistados através das lutas das classes populares e das políticas institucionais progressistas ao longo dos últimos anos, estão em risco de serem perdidos pela hegemonia do pensamento neoliberal. No contexto das contradições desta inflexão conservadora, cabe avaliar a natureza dos novos conflitos urbanos decorrentes da implementação deste projeto excludente e a capacidade das forças progressistas de se articularem para resistir contra o golpe e lutarem pelo direito à cidade como um bem comum. 21 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL agentes como clientes-consumidores, portadores de interesses privados, impedindo 02 Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização urbana Thiago A. P. Hoshino Associado da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, doutorando em direito do PPGD/UFPR e professor universitário Julia Ávila Franzoni Advogada popular, associada da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, pesquisadora do Indisciplinar-UFMG, doutoranda em direito da UFMG e professora de Direito Urbanístico Texto publicado originalmente em julho de 2016 na Série Especial - O Direito à Cidade em Tempos de Crise, parceria do Le Monde Diplomatique Brasil e do INCT Observatório das Metrópoles. dos pés à cabeça. Da cabeça, mais obviamente, porque se faz imprescindível neste contexto revisitar a vasta tradição teórica que, desde Henri Lefebvre, passando por Milton Santos, tem se debruçado sobre o conceito, politizando a relação entre espaço, estado e cidadania. Dos pés, com grave urgência, porque é a partir dos efeitos mais concretos e nefastos do avanço da precarização e da mercantilização do urbano que a tão afaimada “crise” se instala nos territórios, (de/con)formando o espaço vivido pelos pobres e marginalizados da cidade. Pés e cabeça “metonimizam”, ainda, a necessidade de entrelaçamento da práxis com a teoria, onde o discurso (ou melhor, o contra-discurso) tem a estratégica missão de ecoar as experiências cotidianas de desigualdade socioespacial que eclodem nas lutas travadas nas cidades brasileiras. Em tempos de crise, pés e cabeça devem andar juntos para situar a conjuntura, trazendo-a à terra – afinal, trata-se de uma crise encarnada – dando vez, assim, às vozes silenciadas e aos sujeitos invisibilizados no território. A financeirização do espaço é uma prática, ou melhor, uma racionalidade prática associada ao neoliberalismo como “nova razão do mundo”. E, sob os auspícios de um suposto “fim da história”, a financeirização é a única razão advogada como válida num mundo colonizado pelo mercado. A cartilha, adaptável às diferentes escalas (global, nacional, regional e local), combina um forte discurso legitimador um arcabouço jurídico-político que lhe confere segurança e dispositivos institucionais garantidores 23 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS P ensar e pulsar o direito à cidade em tempos de crise é tarefa de sua efetividade. A ontologia neoliberal financeira no espaço urbano é assim compartilhada (com o mercado). Para combatê-la, no viés do direito à cidade em E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS sumarizável: menos Estado, mais instrumentos jurídicos negociais e governança comum, é necessário, antes de tudo, destrinchar seus modos de operação – ou seja, incidir na casa de máquinas. No nível do discurso, o enredo oficial combina a falência do welfare state com a necessidade de autofinanciamento das políticas públicas urbanas – o velho/novo conto das cidades como global players. E, a isso, no caso das grandes cidades, se adicionam fabulações repletas de propaganda pró-legado, os “novos” extrativismos urbanos do turismo, dos megaeventos eventos esportivos, dos grandes negócios e projetos. Tripudiando sobre a alardeada “crise” (que é, afinal de contas, permanente no capitalismo), expande-se o domínio intensivo do capital – não só extensivo, visto restarem poucas fronteiras geográficas a sucumbir – inclusive “para dentro de si”, onde a forma urbana ganha evidente centralidade no girar a roda de produção e acumulação de riquezas. O salto qualitativo da tecnologia do capital permite que ele se (des/re)territorialize nas cidades e, entre elas, com maior velocidade e flexibilidade, subjetivando-se num particular modo de vida urbano e determinando as principais formas de organização e consumo da vida e da natureza no contexto da financeirização. Sobra para a inventividade jurídica e institucional a função de resolver o descompasso entre o aparato regulatório e as prementes demandas do capital, redesenhando as relações de produção. Muito do que era o chão de fábrica passa a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos que se tornam a máquina de extrair mais-valia. Tudo isso ocorre, mas não sem resistências. Por trás do mote “cidades para as pessoas, não para o capital”, persiste uma tensão entre valor-de-uso e valor-de-troca, dois modos de apropriação do espaço urbano cujos portadores invocam, cada um à sua maneira, certo tipo de direito à cidade: o direito de frui-la coletivamente ou o “direito” de explorá-la cumulativamente. 24 Essa disputa sobre o próprio sentido e sobre os usos estratégicos do(s) direito(s), e as contestações aos retrocessos que assomam no horizonte próximo. À cidade MEGAEVENTOS historicamente limitada - Cidade Ltda. –, fruto de uma urbanização segregadora, soma-se um conjunto de ameaças legislativas de viés especulativo – Direito® – cujo intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço urbano num ativo financeiro sempre mais rentável a despeito dos custos humanos dessa jogada: o Direito à Cidade S/A. CIDADE LTDA. Sustenta a reinvenção corporativa das cidades um discurso corrente de crise fiscal e inchaço estatal que descamba, rápido, para o empresariamento urbano e para o planejamento estratégico (notoriamente market friendly) como panaceia rumo à retomada do desenvolvimento econômico e da competitividade dos municípios (sempre em face e em detrimento de outros municípios, vale lembrar). Enquanto modelo de gestão, são três os pilares dessa fórmula que se quer mágica: parceria público-privada, empreendedorismo e a ênfase na economia política do lugar e não do território integral/integrado. No Brasil, a implementação dessa receita, longe de ampliar o acesso “à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” e de assegurar a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”, tem se mostrado um verdadeiro entrave a essas diretrizes constitucionais e do Estatuto da Cidade. A captura do público pelo privado, com progressiva flexibilização dos pactos participativos esculpidos, por exemplo, no Plano Diretor; a assunção pelo Estado dos riscos e despesas de vultosos empreendimentos, sem a respectiva distribuição de seus ganhos; e o aprofundamento da cisão social por intervenções pontuais que concentram ilhas globais num mar de exclusão são alguns dos efeitos perversos de uma política urbana que responde mais aos vetores da financeirização do que aos da democratização urbana. Financeirização que é, (in)justamente, um dos epicentros 25 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL da(s) cidade(s) e do direito à cidade atravessa as lutas sociais contemporâneas distintivos do capitalismo tardio e implica em novas dinâmicas das “máquinas de MEGAEVENTOS E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL crescimento” que se tornaram as cidades de nossos dias. Mas se a face local do desenvolvimento geográfico desigual passa pelo acirramento dos conflitos fundiários e das remoções em massa, pela privativazação e gentrificação de parcelas expressivas do território, pela desregulação exigida pelos megaeventos e grandes projetos urbanos, quais são, na prática, os instrumentos acionados para tanto? E em que medida a conjuntura política nacional impõe novos desafios e ameaças ao direito à cidade em comum, à cidade das e para as pessoas? Nossa intuição é que os operadores da lei, que também operam a casa de máquinas da financeirização urbana, têm mais a ver com tudo isso do que talvez gostariam de admitir. DIREITO® Produz-se direito como se produz espaço: seletivamente. Mais do que isso, o próprio direito produz e modifica o espaço, sobretudo ao estabelecer, ao menos como virtualidade, os limites do uso e exploração do solo urbano em cada circunstância. Simultaneamente, a lei inventa, neste espaço, valores-de-troca não previstos e, por isso mesmo, é sempre alvo de conflito e contradição. Nesse limiar, e na contramão do que se convencionou chamar a função social da propriedade e da cidade, uma avalanche de funções societárias abriram brechas e forçaram passagem por meio de alterações legais, nos últimos anos. No Brasil, embora não seja novidade, a investida bifronte de desregulação e de privatização de funções e bens públicos em nome da governança urbana ganhou fôlego no marco dos megaeventos esportivos. Nessa toada, a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) autorizou a delimitação de “áreas de restrição”, sintomaticamente apelidadas de “zonas de exclusão”, nas cidades-sede. Dispositivos semelhantes foram replicados na Lei Geral das Olimpíadas (Lei 13.284/2016), que entrou em vigor em maio deste ano, demonstrando a intenção de se aplicar sobre a titularidade do espaço urbano, sobretudo sobre o espaço público, a mesma lógica de copyright dos direitos autorais. Eis o direito à cidade da FIFA, do COI e seus investidores como 26 Para além dos inúmeros impactos urbanísticos e violações de direitos humanos MEGAEVENTOS já denunciados, constam também do legado desses eventos medidas regressivas de caráter mais permanente, aquilo que Ribeiro alcunhou de “reformas institucionais mercantilizadoras”, como o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Instituído pela Lei 12.462/2011, originalmente apenas para os jogos, as alterações do RDC sobre o marco regulatório das licitações expandiram-se para outros programas estatais, alcançando, no ano de 2015, quaisquer “obras e serviços de engenharia, relacionadas a melhorias na mobilidade urbana ou ampliação de infraestrutura logística” (art. 1º, VIII). Não se restringindo, porém, às contratações e obras públicas, a sanha da flexibilização tem-se valido de outros mecanismos jurídicos, como as Operações Urbanas Consorciadas (OUC), hoje na linha de frente do urbanismo neoliberal. A OUC do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e a OUC Água Espraiada, em São Paulo, bem ilustram esse cenário de drástica ruptura do tecido urbano e dos parâmetros urbanísticos, com interesses e procedimentos que vêm sendo questionados pela sociedade civil, pela academia e pelos órgãos de fiscalização. A confecção de planos e índices específicos que desconsideram, via de regra, o zoneamento vigente, também é a tônica de projetos como o do Cais José Estelita, na cidade do Recife, desencadeando controvérsias muitas vezes judicializadas. No caso das OUCs, especialmente, o emprego dos Certificados de Potencial Construtivo (CEPACs), comercializados nas bolsas de valores para aterrizarem como metros quadrados construídos nalguma parte, refletem a sombra financeirizada da cidade que extrapola e sobrepõe-se mesmo ao interesse rentista tradicional dos proprietários da terra. Um novo pool de donos virtuais da cidade está em emergência. Poder-se-ia admitir que o Plano Diretor, levado a sério como ponto de gravitação do ordenamento territorial, fosse um filtro para este tipo de fragmentação, não estivesse ele mesmo em risco com o Projeto de Lei do Senado 667/2015. Em suma, de instrumento básico da política urbana, pretende-se convertê-lo em mero documento de intenções para as políticas setoriais, desnaturando a previsão do art. 182 da 27 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL marca registrada. Constituição de 1988. Isso sem mencionar a Proposta de Emenda à Constituição “celeridade” e “desburocratização”, parece desconsiderar por completo catástrofes E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS nº 65, tiro de misericórdia no licenciamento ambiental que, em nome de supostas (anunciadas, diga-se de passagem) como a de Mariana, município do Estado de Minas Gerais1 , propondo que se autorizem empreendimentos de impacto com a simples apresentação do estudo prévio e antes mesmo de sua análise pelo poder público. Sem embargo, o pacote de retrocessos em curso é ainda mais acachapante. Entre os instrumentos de financeirização da cidade manejados pelos “parceiros da exclusão”, assistimos à ampliação de poderes dos parceiros da desapropriação. Vide a confusão entre interesses públicos e privados da Medida Provisória 700/2015 a qual, conquanto não tenha sido convertida em lei, expressa bem a tendência disseminada de delegação das funções e prerrogativas estatais mais básicas, como o poder expropriatório. Em nada aleatória, ela casa com as demandas dos agentes de mercado por concessões urbanísticas e Parcerias Públicas-Privada (PPPs) em novos ramos de investimento, como o de habitação de interesse social, um dos poucos que ainda sobrevive, parcialmente, sob controle público (muito embora existam já uma infinidade de sociedades de economia mista e agências de diversas naturezas, também neste setor). Outrossim, apesar de seus inegáveis avanços, o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) carreou um dúbio permissivo para OUCs e PPPs de caráter interfederativo. Se não vigiados, estas também poderão tornar-se dínamos de financeirização e de monopolização de serviços em nível regional. Para o maior gozo privatizador, a Medida Provisória 727/2016, um dos atos inaugurais do governo interino – governo de crise –, visa, segundo sua exposição de motivos, “à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada para a viabilização da infraestrutura brasileira”. Quem conta um conto aumenta um ponto: o país estaria “passando por uma das piores crises econômicas de sua história” e “para sair desse ciclo vicioso, o Brasil precisa, em caráter de urgência, 1 Em 5 de novembro de 2015, no município de Mariana (MG), houve o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco no Rio Doce, sendo considerado um dos piores acidentes da mineração brasileira. O rompimento da barragem provocou uma enxurrada de lama que devastou o distrito de Bento Rodrigues, incitando sérios prejuízos materiais e ambientais. 28 implementar medidas que estimulem o crescimento da economia”. Quais seriam concessões federais, com apoio de fundo específico e administração por conselho MEGAEVENTOS bastante restrito (sem cadeira para o Ministério das Cidades, por exemplo) que vai de encontro frontal à gestão democrática. Sobremaneira preocupante, no diploma, o rito especial para “liberação de empreendimentos” do PPI, em regime “prioritário nacional”. Estaríamos diante, tão somente, de uma pauta neodesenvolvimentista? Ou, como parece ser o caso, haveria mais coisas entre o Estado e o mercado do que supõe nossa vã analogia? Os impactos desses novos direitos® são incomensuráveis e recuam vários passos atrás na luta pela reforma urbana brasileira. DIREITO À CIDADE S/A A confecção sob encomenda dessa juridicidade experimental combinada a produtos financeiros criativos tendentes a abocanhar e disciplinar a produção do espaço desde a lógica da rentabilidade vem sendo objeto de destaque da literatura contemporânea. Como observa Raquel Rolnik , a “colonização da terra e da moradia na era das finanças” submete-se a um complexo imobiliário-financeiro que, em sua versão brasileira, implica numa simbiose também com fundos públicos, como os de pensão dos trabalhadores. A mesma voracidade neoliberal que pretende converter toda a natureza num grande ativo financeiro – vide os prodígios da nova economia verde, veiculados no PL 312/2015 –, fazendo do meio ambiente não um direito, mas um serviço a merecer contraprestação econômica e créditos (de carbono), age sobre o meio urbano. Se antes o planejamento urbano fora a tática de Estado para dotar o país das condições gerais de industrialização/modernização, atualmente, os planos de exceção são a regra a comandar o processo de territorialização da crise no espaço urbano sob o apanágio das inevitáveis parcerias público-privadas. Numa imagem agambeniana, a cidade de exceção é o modelo urbano vigente e os novos arranjos de “governança” que alinham Estado e mercado, o seu soberano. Não se trata da crise de um paradigma, mas o paradigma da crise. 29 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL elas? A modelagem de um Programa de Parcerias de Investimentos destinado às Não é por outra razão que os principais exemplos de criatividade pleiteada pelo urbanístico: as Concessões Urbanísticas e as Operações Urbanas figuram como as E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS “novo direito administrativo” no âmbito da gestão pública são oriundos do direito protagonistas do giro negocial/contratual pós-reforma administrativa do Estado. Os caminhos adotados pela política urbana brasileira, nesse flanco, têm pervertido o processo de abertura cooperativa da gestão do interesse público – público para além da administração e da burocracia –, para submetê-lo à gestão corporativa – em que o público é irredutivelmente capturado pelo privado. Ao longo dos últimos anos, acompanha-se uma confluência perversa entre as promessas populares da redemocratização – tão flagrantes na pulsão das ruas porque ainda não cumpridas – e o protagonismo empreendedor defendido pela agenda neoliberal. O resultado é uma governança seletiva, que compartilha os processos decisórios com os parceiros do mercado e, quando muito, conduz instâncias pro forma de participação social. E o conceito indiscriminado de “sociedade civil”, que no mesmo balaio coloca desde movimentos sociais a empresários, não contribui para dirimir essa confusão, antes a potencializa. Uma caricatura do urbanismo neoliberal, a empresa PBH Ativos S/A, ilustra o novo tipo de institucionalidade liminar que desponta. O município de Belo Horizonte, em franco processo de empresariamento, institui uma sociedade anônima para administrar Parcerias Público-Privadas associadas à prestação de serviços e, ainda, para gerir os futuros CEPACs da tão aguardada Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Leste-Oeste, a primeira no município. Não bastasse o regime jurídico sui generis, a criação da empresa foi viabilizada pela substancial transferência de patrimônio municipal para o ente privado – imóveis, créditos tributários e outras espécies doados como integralização de capital. A Cidade Limitada (Ltda), experimentada pela maioria da população como espaço de exercício desigual de direitos e obstáculos de acesso aos recursos e oportunidades de vida urbana corre o risco de transformar-se, também, na Cidade Anônima (Cidade S/A), onde os bens comuns que deveriam atender às necessidades sociais são titularizados pelos impenetráveis gabinetes empresariais. Quem governa toda essa 30 (des)governança? A queda de braço com essa tomada de assalto do “comum-urbano” urbanas e nas assembleias populares que reivindicam soberania sobre os espaços MEGAEVENTOS comuns – praças, viadutos, prédios vazios e/ou subutilizados –, nas jornadas de manifestações e protestos que impulsionam mudanças, ainda que provisórias, ainda que heterotópicas, na rota unidirecional da privatização. POR UM DIREITO À CIDADE EM COMUM Os conflitos associados à cidade não escancaram apenas os problemas imediatos de efetivação de direitos básicos: mobilidade, moradia, saneamento público, educação, lazer, saúde. Falam, antes de mais nada, do clamor, nas palavras de Peter Marcuse , por “um direito num plano moral superior que reivindica um sistema melhor no qual os potenciais benefícios da vida urbana possam ser plenamente concretizados.” O direito não apenas de consumir, mas de produzir o espaço urbano e de ser nele protagonista. Cada uma dessas lutas situadas, às vezes inadvertidamente, soma-se à luta contra a colonização do mundo pelo valor-de-troca, troca essa, agora, que se processa nos circuitos financeiros. Disputar e, possivelmente, exceder a trincheira local, exige exercitar a transescalaridade da ação política que desenterra e expõe as raízes da “crise”. Diante do cenário que se esboça, como fica ou para onde vai o direito à cidade? Em contraponto ao direito à cidade do capital, um direito à cidade do comum, à cidade em comum é uma (res/a)posta que vem sendo construída em várias partes. Primaveras políticas para enfrentar o inverno dos direitos? É verdade que existem riscos e armadilhas também no processo de institucionalização desse direito à cidade. Até que ponto, por exemplo, ele será a tônica da consolidação de uma Nova Agenda Urbana, alavancada para a Conferência Habitat III das Nações Unidas, é algo que só a disputa de forças dirá. A radicalidade que a pauta merece apenas será contemplada numa agenda que supere a dinâmica liberal dos direitos subjetivos como individuais e desponte no paradigma dos direitos intersubjetivos, coletivos e comuns. Recuperar a sério o direito à cidade, atualizando-o e percorrendo as redes já não do mercado globalizado, mas da resistência conectada e multitudinária da metrópole biopolítica, 31 E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL vem das ruas, na forma de autogestão para construção das moradias, nas ocupações pode ajudar a forjar, parafraseando M. Foucault, dentro da caixinha de nossas na casa de máquinas da financeirização urbana. E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL MEGAEVENTOS ferramentas teóricas, dispositivos práticos ousados para promover um curto circuito 32 03 Investimentos e Parcerias Público-Privadas: a urbanização neoliberal da Cidade Olímpica Larissa Gdynia Lacerda Mestranda em planejamento urbano e regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Mariana da Gama e Silva Werneck Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Orlando Alves dos Santos Junior Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles Patrícia Ramos Novaes Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles T endo como foco central a análise dos investimentos realizados, o argumento central deste ensaio é de que a realização das Olimpíadas têm servido como veículo para promoção de um novo ciclo de mercantilização neoliberal da cidade do Rio de Janeiro expresso em um projeto de reestruturação urbana de JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO certas áreas e na promoção de novos arranjos institucionais de gestão fundados nas Parcerias Público-Privadas - PPPs. Para travar esta discussão, o artigo está organizado em três itens. No primeiro, busca-se fazer uma análise dos investimentos previstos na preparação dos Jogos Olímpicos, evidenciando-se que a participação pública nos investimentos realizados E para as Olimpíadas de 2016 superam a participação privada, contrariando o que vem sendo divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Em seguida, analisam-se como os investimentos estão distribuídos espacialmente, apontando para um processo de reestruturação urbana da cidade que caminha em três direções: no fortalecimento da centralidade da Zona Sul; na revitalização da centralidade, considerada decadente, da Zona Portuária; e na criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca. Em todos os casos, estar-se-ia diante de processos de elitização e gentrificação, acompanhado de remoções das classes populares. Por fim, discute-se como este processo de reestruturação urbana também estaria sendo acompanhado da adoção e difusão de um novo padrão de governança empreendedorista neoliberal, fundada no estabelecimento de Parcerias Público34 Privadas (PPPs), que transfere para o setor privado a gestão de equipamentos e espaços públicos. 1. O orçamento das Olimpíadas no Rio de Janeiro O orçamento olímpico, segundo as autoridades públicas, é dividido em três grupos: a Matriz de Responsabilidade; o Plano de Políticas Públicas; e os gastos do Comitê Organizador1. Já em sua terceira versão, a Matriz de Responsabilidade dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, divulgada pela Autoridade Pública Olímpica (APO) em 21 de agosto de 2015, previu investimentos de R$ 6,67 bilhões para o custeio de itens essenciais à sua realização, como a construção e manutenção de arenas esportivas. Além disso, também foram previstos R$ 24,6 bilhões para o Plano de Políticas Públicas, também chamado de “Legado”, e outros R$ 7,4 bilhões em gastos do Comitê Organizador. Assim, o orçamento atual da Olimpíada Rio 2016 JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO alcançaria o valor de RS 38,7 bilhões de reais, superando em mais de R$ 10 bilhões o orçamento da Copa do Mundo de 2014. Segundo a Prefeitura, aproximadamente 60% desses gastos são custeados pela iniciativa privada. Esse resultado, que surge como uma verdadeira alquimia, no entanto, foi alcançada por meio de alguns artifícios. Em primeiro lugar, a omissão de custos E públicos vinculados ao evento, os quais envolvem: a construção de arquibancadas temporárias para o Estádio Nilton Santos (Engenhão); a compra de móveis para a Vila dos Atletas e de Mídia; o custeio de órgãos criados para os Jogos: e a indenização dos moradores da Vila Autódromo. Somadas, tais despesas custam cerca de R$ 409 milhões aos cofres públicos2. Além disso, dissimulou-se na Matriz de Responsabilidade o valor das contraprestações públicas vinculadas à PPP do Parque Olímpico. Indicados como gasto privado, o contrato prevê, na verdade, que o governo municipal desembolse em favor do consórcio aproximadamente R$ 1,352 bilhão – sendo R$ 850 milhões 1 Disponível em: <https://br.fsc.org/sobre-o-comit-organizador-rio-2016.311.htm>. Acesso em 20 jul. 2016. 2 Ver jornal “Governos omitem mais de R$ 400 milhões do gasto da Olimpíada”. Folha de S. Paulo, 21 ago. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2015/08/1671753-governosomitem-r-450-milhoes-de-documento-de-gasto-da-olimpiada.shtml>. Acesso em 20 jul. 2016. 35 decorrentes da transferência do terreno municipal do Parque Olímpico, antigo Autódromo de Jacarepaguá, para o consórcio, conforme a avaliação presente no edital de licitação produzido em 2011. Com a transferência concluída somente após a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 e depois da retirada de todos os equipamentos olímpicos provisórios, o consórcio privado receberá o terreno valorizado, que chegava a R$ 2,7 bilhões em setembro de 20153, para futura exploração imobiliária. O Plano de Políticas Públicas, por sua vez, não contabilizou os custos municipais relativos à PPP do VLT, indicando apenas o financiamento federal, que dispôs de R$ 532 milhões por meio do PAC Mobilidade. Os pagamentos do município ao consórcio, apresentados mais uma vez como investimentos privados, oneram, todavia, o município em, no mínimo, R$ 1,6 bilhão pagos ao longo de 25 anos4. O Plano de Legado também subestima a participação do município na PPP do Porto Maravilha, JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO uma vez que nove termos aditivos ao contrato, firmados até janeiro de 2016, somam R$ 667,4 milhões, contra os R$ 592 milhões declarados pelo poder público. Os outros 7,609 bilhões, que correspondem ao valor original do contrato, são custeados pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), fundo público formado pela poupança dos trabalhadores, que, não obstante, é contabilizado como investimento E privado. As isenções e renúncias fiscais do Governo Federal, as quais chegam a R$ 3 bilhões segundo a Associação Contas Abertas (http://www.contasabertas.com.br/ website/arquivos/11861), também não são computadas. Na contramão, entra na conta olímpica o orçamento do Comitê Organizador5. Apesar de aumentar o montante de recursos, ampliando a proporção de investimentos privados, o orçamento do Comitê 3 O valor, apresentado no Dossiê do ComitêoPopular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2015, foi calculado a partir do custo médio de terrenos na Barra da Tijuca, de R$ 3.381,00 por m²ino mês de setembro de 2015, conforme http://www.agenteimovel.com.br/mercado-imobiliario/ a-venda/barra-da-tijuca,rio-de-janeiro,rj/tipo_terreno/preco_medio_m2/, acessado em outubro de 2015. 4 O contrato ainda prevêvpagamentos adicionais, por parte do município, nos meses em que a arrecadação do Sistema VLT for inferior à receita tarifária mensal apresentada na proposta econômica do Consórcio VLT Carioca. Desse modo, o município cobre eventuais prejuízos do ente privado. 5 Não incluímos aqui as isenções fiscais municipais, previstas, por exemplo, na lei municipal n°s5.230/2010. 36 Organizador, como bem indica o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro (2015, p. 146)6, “se referem a gastos e receitas privados, sem qualquer controle público e que se esgotam na própria realização do megaevento [...] fortalecendo [no entanto] o falso argumento de que a maioria dos gastos da Olimpíada seria privado”. De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, quando se exclui o orçamento do Comitê Organizador e passase a considerar os itens não incluídos nos cálculos oficiais – sem contabilizar o investimento do FGTS no Porto Maravilha –, ocorre uma inversão nas participações do poder público e da iniciativa privada: contra os dados divulgados pelo governo, que apresentam uma participação pública de 42,6% e uma participação privada de 57,4%; a participação pública passa a valer nada menos que 63,19%, ao passo que a participação privada decai para 36,81%. O volume total de gastos apresenta ligeiro JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO aumento quando comparado aos dados oficiais: de R$ 38,6 para R$ 40,23 bilhões. 2. Os investimentos olímpicos e o projeto de cidade A partir dos projetos incluídos na Matriz de Responsabilidade – os quais reúnem, como esclarecido previamente, os projetos diretamente relacionados com a realização dos Jogos Olímpicos – observa-se que a concentração geográfica dos equipamentos E esportivos e dos recursos se localiza na macrorregião da Barra da Tijuca, ocupada majoritariamente pelas elites da cidade. Por seu turno, ao analisarmos o Plano de Políticas Públicas, encontram-se 27 projetos previstos ou em desenvolvimento que são considerados oficialmente parte do legado olímpico, e que estão discursivamente vinculados aos Jogos Olímpicos. Do total, 13 projetos, os quais somam R$ 13,76 bilhões dos R$ 24,6 bilhões previstos pelo Plano de Legado, estão localizados na macrozona da Barra da Tijuca, privilegiando, mais uma vez, esta região da cidade. Dentre eles, destacam-se: a implantação da Linha Quatro do metrô; a construção dos corredores de Bus Rapid Transit (BRT) Transolímpica e Transoeste; a duplicação do Elevado do Joá; a realização do viário do Parque Olímpico, com a duplicação da Avenida Salvador Allende; e a recuperação do 6 Disponível em: <http://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_issuu_01>. Acesso em 20 jul. 2016. 37 complexo lagunar da Baixada de Jacarepaguá, entre outras obras de esgotamento e saneamento. Em seguida, vem a região central, com R$ 9.388,75 bilhões, referentes à execução do projeto de requalificação urbana da área portuária, o Porto Maravilha, e à implantação do VLT. Desse modo, os investimentos encontram-se massivamente concentrados espacialmente, visando a criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca e a promoção da revitalização da centralidade, considerada decadente, da Zona Portuária. Por centralidade, consideram-se os núcleos de negócios e de relevância econômica, que exercem uma influência sobre um determinado entorno, que pode ser considerado como sua periferia. Nesse sentido, a centralidade remete a um papel de comando sobre os processos de acumulação de capital e de reprodução social, estando associada à intensidade de fluxos de dinheiro, mercadorias e pessoas. Além disso, as áreas centrais se distinguem por sua multifuncionalidade, concentrando, JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO entre outros, centros de comércio e de negócios, atividades de gestão pública e privada, redes de escolas e universidades, instituições de saúde, serviços de transportes, áreas turísticas e centros culturais, e áreas residenciais de alta renda (CORRÊA, 1995; GLUSZEVICZ; MARTINS, 2013). Apesar dos investimentos realizados na Zona Sul serem de pequeno porte E quando comparado aos demais, é possível afirmar que as intervenções previstas, que incluem as obras do Estádio de Remo da Lagoa, fortalecem uma área já consolidada e dotada de ampla infraestrutura – especialmente, quando comparada às demais regiões da cidade. Nestas três áreas observam-se processos de destruição criativa que podem ser caracterizas como urbanização neoliberal (THEODORE, PECK, BRENNER, 2009). De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, as intervenções urbanas, em especial aquelas vinculadas aos novos sistemas de mobilidade urbana, foram responsáveis pela remoção de mais de 4.100 famílias nessas áreas. Só para a construção do BRT Transoeste, destacam-se as remoções de comunidades inteiras, tais como Restinga, Vila Harmonia, Recreio II, Notredame e Vila da Amoedo, totalizando aproximadamente 400 famílias removidas. 38 3. A difusão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) no projeto olímpico No processo de renovação urbana promovido no contexto das Olimpíadas, percebe-se a criação de novos arranjos de gestão de serviços e equipamentos públicos e dos próprios espaços urbanos reconfigurados, sobretudo por meio da instituição de Parcerias Público-Privadas. Como destaca Hackworth (2007, p. 61), “um dos fundamentos da governança neoliberal a nível local é a cooperação público-privada. Estas alianças podem variar consideravelmente na forma, mas crescentemente espera-se que os governos municipais sirvam como facilitadores do mercado, em vez de atuar nas falhas dos mercados”. No caso do Rio de Janeiro, constata-se o estabelecimento de quatro grandes contratos de PPPs7 pelo governo municipal, descritos sinteticamente a seguir. 1.Porto Maravilha – firmado em novembro de 2010 entre o Consórcio Porto JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Novo, formado pelas empreiteiras Odebrecht, OAS e Carioca Christiani-Nielsen, e a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto, empresa criada pela Lei Complementar nº 102/2009 e controlada unicamente pelo município. Com valor inicial de R$ 7,609 bilhões e previsão de 15 anos, é responsável por realizar grandes obras na área portuária, como a derrubada do Elevado da Perimetral, e uma gama ampla de E serviços em toda área portuária, como limpeza urbana e coleta de lixo, operação do tráfego e manutenção de infraestruturas, ruas, praças e áreas verdes; 2.Parque Olímpico – celebrado em abril de 2012 entre o município e o Consórcio Rio Mais, formado por Odebrecht, Andrade Gutierrez, Carvalho Hosken e AG Participações. O contrato, de valor igual a R$ 1,352 bilhão e previsão de 15 anos, prevê: (a) construção e manutenção dos equipamentos olímpicos e da infraestrutura da área do Parque Olímpico; (b) a construção da infraestrutura da Vila Olímpica e Paralímpica; (c) a prestação dos serviços de manutenção e operação na área do Parque Olímpico; e (d) a remoção do Centro Esportivo de Ultraleve; 3.Transolímpica – também de abril de 2012, tendo como vencedor o Consórcio 7 A PPP do Maracanã, realizada pelo governo do Estado, está diretamente associada àiMatriz de Responsabilidade da Copa do Mundo de 2014. 39 Rio Olímpico, formado pelas empresas Invepar, Odebrecht e CCR, que conta com participação da Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e do grupo Soares Penido. Firmada com o município por aproximadamente R$ 1,9 bilhão, responde à construção do BRT Transolímpica. Além disso, o consórcio poderá explorar a concessão por 35 anos8; 4.VLT – assinado em junho de 2013 entre o município e o Consórcio VLT Carioca, formada pela CCR Actua (do grupo CCR), Invepar (criada pela OAS junto ao fundo de pensão do Banco do Brasil, Previ); Odebrecht Transport (do grupo Odebrecht); RIOPAR; Benito Roggio e RAPT do Brasil, as duas últimas, de origem, respectivamente, argentina e francês, constituindo parcerias técnicas. Com um contrato que soma pouco mais de R$ 1,6 bilhão e tem vigência de pelo menos 25 anos, a PPP do VLT diz E JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO respeito à implantação e à gestão do modal de transporte. Figura 2. O Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), na estação Parada dos Museus, Boulevard Olímpico da Zona Portuária carioca. Esses contratos de Parcerias Público-Privadas (PPPs) revelam duas questões importantes. A primeira é a mudança no padrão de atuação das empresas privadas que passam de executoras de grandes obras a gestão de equipamentos públicos. O 8 Ver “Consórcio da CCR assume a Transolímpica” (Jornal O Globo, 20 abr. 2012), Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/transito/consorcio-da-ccr-assume-transolimpica-4694935>. Acesso em 20 jul. 2016. 40 segundo diz respeito à subordinação da gestão de equipamentos e espaços públicos à lógica do mercado, tendo em vista que as empresas gestoras destes equipamentos e espaços públicos passam a tomar decisões vinculadas à eficácia econômica e à maximização do lucro de seus investimentos. No caso do Porto Maravilha e do Parque Olímpico há que se ressaltar que a gestão privada diz respeito a grandes espaços urbanos da cidade do Rio de Janeiro. Considerações Finais A realização de um megaevento tal como os Jogos Olímpicos envolve um vultoso montante de recursos com intervenções de grande impacto para a cidade. Não obstante, as decisões relativas a tais investimentos não passam por uma ampla discussão democrática que envolva todos os segmentos sociais e coloque em pauta o projeto de cidade que está sendo construído. Tal padrão autoritário de intervenção JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO pública, além de contrariar as diretrizes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/2001) – que, em seu segundo artigo, estabelece o direito à participação da população na definição de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano –, instaurou perigosos precedentes, ganhando contornos mais críticos com a recente decretação de calamidade pública9 por parte do Estado do Rio de Janeiro. E Neste sentido pode-se dizer que as profundas transformações em curso na dinâmica urbana da cidade do Rio de Janeiro envolvem, de um lado, novos processos de mercantilização da cidade, expressas na elitização de certas áreas e no risco de processos de segregação urbana das classes populares, e de outro, novos padrões de relação entre o Estado e os agentes econômicos, caracterizados pela subordinação do interesse público à lógica do mercado e à adoção de padrões de gestão marcados pela exceção e pela ausência de transparência e democracia. 9 Ver “Governo do RJ decreta estado de calamidade pública devido à crise”. G1, 17 jun. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-do-rj-decreta-estado-decalamidade-publica-devido-crise.html>. Acesso em 20 jul. 2016. 41 Referências COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Dossiê: Megaeventos e Violação de Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Novembro de 2015. Disponível em: <http://rio.portalpopulardacopa.org.br/?page_id=2972>. Acessado em junho de 2016. CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Editora Ática, 1995. EICK, Volker. Secure Our Profits! The Fifatm in Germany 2006. In: BENNETT, C. and HAGGERTY, K. (eds.), Security Games: Surveillance and Control at Mega-Events, Routledge, New York, 2011 p. 87-102. GLUSZEVICZ, Ana Cristina; MARTINS, Solismar Fraga. Conceito de Centralidade Urbana: estudo no Município de Pelotas, RS. Trabalho apresentado no II SEURB - JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Simpósio de Estudos Urbanos: a dinâmica das cidades e a produção do espaço. 19 a 21 de agosto de 2013. HACKWORTH, Jason. The Neoliberal City: governance, ideology, and development in American Urbanism. New York: Cornell University Press, 2007. SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; NOVAES, Patrícia Ramos. “O projeto olímpico E da cidade do Rio de Janeiro: investimentos públicos e participação do setor privado”. In: CASTRO, Demian Garcia; GAFFNEY, Christopher; NOVAES, Patrícia Ramos, SANTOS, Carolina Pereira; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Rio de Janeiro: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2015, p. 41-62. 42 04 Transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro: uma reflexão sobre a racionalização da frota de ônibus Juciano Martins Rodrigues Bolsista do Programa de Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ no IPPUR/UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles Pedro Paulo Machado Bastos Mestrando em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles D esde o fim da operação dos bondes na década de 1960, o transporte público coletivo na cidade do Rio de Janeiro é dominado pelos ônibus. Atualmente, aproximadamente 100 milhões de viagens são realizadas mensalmente, somando o transporte através dos ônibus convencionais e daqueles JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO vinculados ao Bus Rapid Transit (BRT). A preponderância desse modal e a menor presença do transporte sobre trilhos torna a metrópole de 12 milhões de habitantes altamente dependente deles. Os ônibus transportam, por exemplo, cinco vezes mais passageiros que o metrô, representando 77% dos deslocamentos na região E metropolitana1. Essa dependência foi construída ao longo das últimas décadas e se consolida, principalmente, em função do poder político e econômico das empresas prestadoras do serviço. Assim, o sistema de mobilidade da metrópole do Rio de Janeiro apresenta como um dos seus principais aspectos o desequilíbrio entre a oferta de modais caracterizado, em primeiro lugar, por essa alta dependência e, em segundo, pelo peso crescente da motorização individual junto à implantação de grandes projetos de infraestrutura viária. Assim sendo, há por um lado um sistema de mobilidade extremamente desequilibrado em favor de um só modal de transporte coletivo, os ônibus, e por outro 1 Dados preliminares do Plano Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro citados por Igor Matela (2014). 44 a presença cada vez maior de carros e motos. Esse cenário dá contorno ao que tem sido denominado de crise da mobilidade urbana2, que se adiciona de ingredientes ainda mais trágicos como os acidentes – tanto os que envolvem o transporte individual quanto o transporte coletivo –, e o enorme tempo que a população passa nos deslocamentos diários. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013 o tempo médio no deslocamento casa-trabalho no Rio de Janeiro era de 50,7 minutos contra, por exemplo, 47,2 minutos de São Paulo. No contexto dessa crise, a ação do poder público no campo do transporte inclui a implementação de grandes projetos viários e a reorganização do sistema de ônibus municipais. Essas ações têm sido colocadas – pelo menos no campo das promessas – como a solução para a crise da mobilidade e, por serem obras relacionadas à realização da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos, também são listadas JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO como legados sociais desses eventos. Contudo, como alega Christopher Gaffney (2014), esses grandes projetos “negam as necessidades, carências e demandas da cidade e atende unicamente às demandas geradas pelo projeto”. Neste sentido, pode-se supor que a iniciativa de reorganização do sistema de ônibus municipais na cidade do Rio de Janeiro não esteja fora dessa lógica. Vale E destacar a importante investigação realizada por Igor Matela sobre as mudanças indicadas pelo novo marco regulatório do serviço. Dentre as mudanças, podemos citar a implantação de uma política de integração física e tarifária, o estabelecimento de contrato com atribuições definidas entre ambas as partes (Prefeitura e consórcios) e, especialmente, o fim da disputa territorial entre itinerários nas áreas mais rentáveis da cidade. Uma dessas áreas consideradas “rentáveis”, a Zona Sul do Rio de Janeiro, vem sendo objeto espacial dessa nova política desde 2011. A implantação dos corredores 2 Tal expressão tem sido frequentemente utilizada para se referir ao conjunto dos graves problemas de transporte urbano existentes hoje no país e que, por sua vez, impactam diretamente no bem-estar individual e coletivo, representariam barreiras à superação das desigualdades sociais e que poderiam também inviabilizar economicamente as cidades (SCARINGELLA, 2001; ROLNIK; KLINTOWITZ et al, 2010; RODRIGUES; LEGROUX, 2015). 45 viários Bus Rapid System (BRS), por exemplo, deu-se pioneiramente naquela região, induzindo as primeiras reformas efetivas na exclusão e no encurtamento de itinerários das linhas de ônibus municipais. A segunda etapa desse plano foi implantada em outubro de 2015 mediante um arsenal de argumentos técnicos ancorados, centralmente, numa suposta otimização do sistema. Nessa etapa, instituiu-se um sistema de baldeações (a partir da extinção e do seccionamento de outros itinerários, especialmente das linhas oriundas da Zona Norte), além de um remodelamento visual da frota circulante entre a Zona Sul e o Centro e entre aquela e a Barra da Tijuca, que desponta desde os anos 1980 como uma nova centralidade urbana no Rio de Janeiro. Em que pese o processo ainda em andamento, visto que muitos ajustes vêm sendo JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO realizados amiúde, consideramos que um plano objetivado a reorganizar o sistema de ônibus tendo como enfoque a área mais rica da metrópole já pode ser merecedor de observação mais profunda do ponto de vista de seus efeitos sociais. A nosso ver, isso se justifica de certo modo porque temos um Estado que atua historicamente na promoção das desigualdades (RIBEIRO, 1985; ABREU, 2008), seja pela promoção de políticas públicas que induzem a fragmentação socioespacial, seja pela expulsão E de população pobre das vizinhanças mais abastadas. A partir dessas considerações, é importante refletir sobre essas ações do Estado e como elas podem porventura impactar no acirramento das desigualdades e da segregação urbana. Isto porque o sistema de mobilidade urbana se apresenta como um aspecto central da organização social do território, contribuindo diretamente com as condições de vida, de reprodução e interação social. Em segundo lugar, Maurício de Almeida Abreu (2008) já afirmava, nos anos 1980, que “o modelo segregador do espaço carioca teria sido estruturado principalmente a partir dos interesses do capital, sendo legitimado e consolidado indiretamente pelo Estado” (p. 11). 46 JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Figura 3. Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio: Troncal 8, uma das novas linhas com itinerário otimizado entre a Zona Sul e o Centro proposta pelo plano de racionalização. A arqueologia do plano Após quatro anos desde a instalação dos corredores Bus Rapid System (BRS) E em vias importantes da Zona Sul, como a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Visconde de Pirajá, a Prefeitura do Rio de Janeiro colocou em prática o que seria a segunda parte do plano de reorganização do seu sistema de ônibus naquele recorte espacial. Ao todo, foi prevista a eliminação de 28 linhas até o final de 2015, enquanto outras 21 teriam seu trajeto seccionado. A principal justificativa era a de solucionar o problema de sobreposição de itinerários, que fazia com que ônibus de determinadas linhas circulassem vazios mesmo em horário de pico. Conforme o relatório operacional divulgado no site Transparência da Mobilidade, em maio de 2015, o sistema de transporte por ônibus tinha 467 linhas, que transportavam 92,5 milhões de passageiros por mês. Somando, portanto, as linhas eliminadas e encurtadas, aproximadamente 10% delas seriam alteradas, com um 47 percentual equivalente ao número de passageiros que seriam atingidos. No processo de divulgação do plano, a Secretaria Municipal de Transportes procurava mostrar que o projeto de racionalização da frota traria mais eficiência para o sistema, principalmente por gerar impactos positivos no trânsito dos corredores BRS. Segundo o órgão, para eliminar a sobreposição das linhas, a disputa por passageiros nos pontos e, com isso, garantir mais fluidez no trânsito e menos tempo de viagem, 70% das linhas que trafegavam pela Zona Sul seriam aglutinadas. De acordo com o Jornal O Globo (07 mar. 2015), o número de ônibus que deixaria de circular correspondia a 35% de todos que passavam ou tinham como destino e/ou origem a Zona Sul da cidade. Região com alta concentração de renda, a paisagem da Zona Sul é popularmente representada pelos cartões postais, sendo ainda um lugar JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO que exerce forte centralidade urbana. Todas as mudanças foram anunciadas como produto de mensurações técnicas que, por sua vez, apontavam a necessidade da racionalização para melhor fluidez do tráfego e para maior otimização do serviço oferecido. No entanto, essas informações não foram divulgadas em nenhum momento, excluindo qualquer possibilidade de E controle social. Ademais, é essencial considerar o que a extinção e o encurtamento de itinerários de linhas de ônibus, dentro de uma cidade cuja circulação depende exageradamente delas, pode acarretar no cotidiano dos usuários. Tratando-se ainda de linhas que ligavam diretamente a Zona Norte (região tradicionalmente periférica) ao Centro (lugar do emprego) e à Zona Sul (lugar da praia e do lazer, mas que também concentra muitos postos de trabalho), tal medida pode ser preocupante do ponto de vista de suas consequências sociais. Sendo uma proposta que abrangia um número considerável de linhas – algumas com largo alcance territorial –, é fundamental indagar quais os seus impactos sobre a segregação urbana ao tratarmos de uma cidade onde a organização do território espelha a sua própria desigualdade social. Existem separações físicas e simbólicas 48 muito fortes no Rio de Janeiro, engendrando processos que dificultam e bloqueiam a interação social. Além disso, são separações que tendem a acirrar a inferiorização de certos segmentos sociais, sobretudo o dos moradores de favelas e das periferias. Os primeiros impactos do plano Curiosamente, 11 das 21 linhas que seriam encurtadas faziam a ligação entre as Zona Sul e a região da Zona Norte suburbana, opostas em termos de renda e demais indicadores sociais. Dessas 11, seis tinham os bairros do Leblon e de Ipanema como origem ou como destino, justamente as áreas mais ricas da cidade. De quatro linhas que conectavam a região da Zona Norte suburbana ao bairro do Leblon, uma deixaria de existir, e duas seriam encurtadas. Com isso, apenas uma linha, a 476 (MéierLeblon), continuaria chegando até o bairro, de acordo com os anúncios preliminares. JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Já no caso de Ipanema, as mudanças implicariam na extinção completa de qualquer ligação direta entre a Zona Norte suburbana e o bairro, com o encurtamento de três E linhas e a exclusão de uma. Figura 4. Exemplo da metodologia de seccionamento de itinerários entre a Zona Norte e a Zona Sul. (Elaboração: Observatório das Metrópoles). Contudo, em dezembro de 2015, o panorama das linhas seccionadas já mostrava se mostrava mais intrigante. Das nove linhas que restaram ligando a região da Zona 49 Norte suburbana à Zona Sul, quatro haviam tido seus itinerários encurtados ou alterados. Já nos bairros mais ricos da Zona Norte, e geograficamente mais próximos da Zona Sul, o impacto foi mais brando. Na área da Tijuca, das 16 linhas de ônibus que ligavam a região à Zona Sul, apenas três delas tiveram seu itinerário reduzido. Em São Cristóvão, de seis linhas, apenas uma teve sua rota diminuída. Uma hipótese a ser cogitada quanto às modificações efetuadas nos itinerários entre a Zona Norte e a Zona Sul pode ter referência aos polêmicos episódios de revista de passageiros em algumas linhas de ônibus oriundas daquela região em setembro de 2015. Em diversas ocasiões, linhas como a 472 (Triagem-Leme) e, especialmente, a 474 (Jacaré-Jardim de Alah)3, que interligam regiões próximas a favelas do subúrbio carioca com a orla oceânica da Zona Sul, foram abordadas pela Polícia Militar após denúncias de vandalismo e agressões registradas tanto pelos passageiros desses JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO coletivos, como por quem estava de fora. Os “arrastões” ocorridos em Copacabana no dia 20 de setembro de 2015, por exemplo, foram indiretamente responsabilizados pelos usuários dessas linhas, reforçando, e até mesmo legitimando4, a revista policial dentro dos veículos que operam tais itinerários. Tais medidas ganharam considerável repercussão na imprensa E e nas redes sociais, dividindo opiniões quanto à motivação principal da Prefeitura em propor a “reorganização” das linhas de ônibus que circulam entre a Zona Norte e a Zona Sul. Assim sendo, durante a fase inicial, o plano parecia estar realmente focado em ajustes técnicos com vistas a “enxugar” os excessos do sistema, favorecendo, por um lado, o serviço de itinerários mais otimizados, e, por outro, a fluidez do tráfego – 3 O portal R7 Notícias, em 23 de setembro de 2015, apelidou a linha 474 de “O inferno do Rio”. Ver mais em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/ameacas-violencia-e-vandalismo-conheca-arotina-da-linha-474-o-inferno-do-rio-23092015>. Acesso em 4 dez 2015. 4 Em 22 de setembro de 2015, o governador do Estado do Rio de Janeiro Luiz Fernando Pezão (PMDB) recomendou às autoridades policiais que não recuassem no esquema de segurança que previa revistas em ônibus vindos do subúrbio em direção às praias da zona sul. Ver mais em: <http:// noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/09/22/pezao-defende-revistas-em-onibuse-apreensoes-preventivas-de-jovens.htm>. Acesso em 4 dez 2015. 50 inclusive de veículos particulares - em algumas vias importantes. . Com isso, surge outra hipótese importante relacionada a essas mudanças. Ou seja, podemos interpretar também que, ao implementar uma política focada na retirada de veículos do transporte coletivo, a racionalização da frota visa atender paralelamente o usuário do transporte individual, sobretudo moradores da Zona Sul da cidade. Hoje, o Rio de Janeiro tem um dos piores trânsitos do mundo; o tempo médio de deslocamento aumenta ano após ano. Essa situação é resultado, além da desorganização do sistema de transporte público, de um aumento extraordinário na frota de veículos particulares. Como destacamos inicialmente, nos últimos anos, o número de automóveis na cidade aumentou em mais de 70%. No principal foco espacial desse plano, a Zona Sul (bairros das Regiões JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Administrativas de Botafogo, Lagoa e Copacabana), a população corresponde a 9% de toda a cidade, enquanto concentra 13% dos domicílios que possuem automóvel. Assim sendo, parece também tratar-se de um plano que pretende solucionar parte da crise da mobilidade urbana que atinge a alta classe média, atendendo a demanda por mobilidade daqueles que usam exclusivamente o automóvel particular para seus deslocamentos. No mesmo contexto, não podemos esquecer que existem projetos E viários de alto custo sendo realizados na cidade, como a construção de uma nova pista do Elevado do Joá, enorme viaduto que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca e as diversas intervenções viárias na operação urbana executada na Zona Portuária. Essa ideia parece estar em consonância com as percepções da mudança por parte dos moradores da Zona Sul, como nessa fala de um morador reproduzida em matéria jornalística: “Eu acho que vai ser melhor, porque vai diminuir o número de ônibus que passam pela Zona Sul. Tem muito ônibus e eu acho que o trânsito vai melhorar” (Nelson, morador do Flamengo, Portal de Notícias G1-Rio). Ainda em relação à racionalização, embora quantitativamente o impacto pareça pequeno, a exclusão e o encurtamento dos trajetos restringe claramente a capacidade 51 de circulação de uma parcela da população. Não há dúvidas de que tomar dois ônibus (mesmo com integração tarifária) é mais dispendioso do que realizar o trajeto em um itinerário direto. Além disso, não há informações claras sobre o papel e quando entrarão em operação os terminais que seriam utilizados para a integração, a exemplo de um no bairro do Maracanã, na Zona Norte, como havia sido noticiado no início de 2015. Se por um lado há uma expectativa positiva por parte dos adeptos de veículos particulares (como fica evidenciado na fala acima reproduzida), até agora as mudanças indicam um prejuízo em termos de tempo de deslocamento para usuários do transporte coletivo. Em declaração reproduzida pelo portal de notícias G1, a usuária de uma das linhas encurtadas dizia: JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO “Eu pego o primeiro ônibus em Olaria, depois tenho que descer em Copacabana e depois pegar outro para a General Osório, em Ipanema. Complicou porque eu ando com peso e agora eu também tenho que pagar mais. Agora eu tenho que pagar duas passagens. E eu também não vi nenhuma melhora no trânsito. Eu levava, em média, 45 minutos. Agora eu levo quase duas horas” (Portal de Notícias G1-Rio, 28 nov. 2015).5 Considerações finais E Muitos ajustes ainda vêm sendo realizados na operação desse novo sistema, fato que instabiliza a manutenção das ações implementadas. Vale destacar os frequentes dissensos a respeito de quais linhas teriam seus itinerários extintos ou seccionados, especialmente aqueles das linhas circulantes entre a Zona Norte e a Zona Sul diante de sua polêmica. Mesmo hoje em dia, não há precisão sobre o número exato de linhas (e quais) que deixou de acessar determinados espaços da Zona Sul considerados críticos pela Prefeitura, segundo as razões mostradas neste texto. De todo modo, é preocupante que parte do viés restritivo dessas medidas tenha um alvo bem claro: a população mais pobre. Por outro lado, coincidentemente, tais medidas atendem os moradores de bairros onde há muitos anos se deseja ficar livres 5 Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/passageiros-se-dizemconfusos-com-mudancas-nos-onibus-do-rio.html>. 52 das externalidades negativas provocadas pelos ônibus, como o trânsito e as poluições sonoras e do ar. Em outras palavras, essas medidas parecem ir em caminho contrário à imperiosa necessidade de se promover a integração dos espaços historicamente apartados da cidade, ao mesmo tempo em que se torna um mecanismo para reforçar a autossegregação da elite, garantindo amenidades dos territórios da alta classe média. A exclusão de algumas linhas de fato pode se justificar pela sobreposição e falta de passageiros, o que faz com que alguns ônibus circulassem praticamente vazios. No entanto, como se justifica o encurtamento de linhas cujos itinerários contavam com grande demanda? Essa contradição deixa dúvidas se a racionalização das linhas de ônibus, ao mesmo tempo sustentada por uma base técnica, não serviria também de JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO pretexto para tornar os bairros mais ricos ainda mais isolados do restante da cidade. Por isso, consideramos que um olhar atento e crítico para os possíveis impactos das mudanças que até agora continuam sendo anunciadas no sistema de ônibus do Rio sobre as condições de mobilidade da população nos parece fundamental. Dadas as intervenções realizadas recentemente, não existem garantias de que esses investimentos e as operações de racionalização estejam sendo capazes de reverter E imediatamente o caos decorrente dos anos de ausência de ações no campo da mobilidade urbana, em especial do transporte público de massa. Além disso, esses investimentos e operações também parecem não reverter a estrutura extremamente fragmentada do tecido social carioca. Ao contrário; elas podem acabar reafirmando a estrutura fragmentada e a ampliação de barreiras sociais historicamente construídas na cidade. 53 Referências ABREU, M. A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008. GAFFNEY, C. “Fronteiras, Barreiras e Mobilidades: problematizando o Projeto Olímpico no Rio de Janeiro”. In: SANTOS, A. S. P; SANT’ANNA, M. J. G. Transformações territoriais no Rio de Janeiro do século XXI. Rio de Janeiro: Gramma, 2014. MATELA, Igor Pouchain. Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Acumulação Urbana e a Cidade: reflexões sobre os impasses atuais da Política Urbana. In: Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 19., 1985. Anais... Caxambu: ANPOCS,1985. JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO RODRIGUES, J. M., LEGROUX, J. “A questão da mobilidade urbana na Região Metropolitana do Rio de Janeiro: reflexões a partir dos projetos de infraestrutura para os megaeventos esportivos (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016)”. In: Rio de Janeiro: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olímpiadas 2016. Letra Capital: Rio de Janeiro, 2015. E ROLNIK, R.; KLINTOWITZ, D. (I)Mobilidade na cidade de São Paulo. Estudos Avançados. São Paulo, v 25 n 71. SCARINGELLA, R. S. A crise da mobilidade urbana em São Paulo. São Paulo Perspec., v. 15, n. 1, São Paulo, jan./mar. 2001. 54 LIVROS, TESES e DISSERTAÇÕES 05 Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização Texto adaptado por Breno Procópio (assessor de imprensa do Observatório das Metrópoles) com base na versão publicada no Boletim Semanal do Observatório das Metrópoles, 31 de abril de 2016. C omo se deu o processo de produção social do Porto Maravilha? Quais os seus agentes e as negociações que lhe deram corpo e o arranjo financeiro e institucional sobre o qual a operação urbana está sustentada? No estudo “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”, JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Mariana Werneck1 mostra que o projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro se insere em um processo global de financeirização da cidade, marcado, no caso do Porto Maravilha, por um arranjo inédito que combina parcerias públicoprivadas e instrumentos do mercado de capitais. Um processo que determina um novo padrão de relação entre o poder público e o setor privado, inaugurando, por um E lado, um novo modelo de gestão da cidade, e, por outro, acirrando as desigualdades socioespaciais do Rio. A dissertação “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”2 joga luz sobre o processo de construção do projeto Porto Maravilha, lançado oficialmente em apenas seis meses de gestão do prefeito Eduardo Paes – um processo impulsionado pela inclusão do projeto no rol das instalações olímpicas dos Jogos Olímpicos de 2016. Mas, diante da herança de entraves e descompassos 1 Mariana Werneck é graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2011; e é mestre pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Atualmente é pesquisadora da Rede INCT Observatório das Metrópoles, na qual acompanha as transformações no Rio de Janeiro, em especial, na área portuária da cidade. E-mail: marianagsw88@gmail.com 2 A dissertação “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”, de autoria de Mariana da Gama e Silva Werneck, foi defendida em março de 2016 no âmbito do Programa de PósGraduação em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ. Orientado por Orlando Alves dos Santos Júnior, o trabalho é mais um resultado da Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles. 57 enfrentados ao longo de 30 anos para a revitalização da área portuária, como Eduardo Paes conseguiu tirar o projeto do papel? Quais interesses foram arregimentados para a viabilização desse projeto? “A pesquisa procura debruçar-se sobre o complexo arranjo financeiro e institucional, cuja conformação viabilizou e sustenta o conjunto de intervenções executadas para a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, analisando seus instrumentos e reconstituindo as negociações que lhe deram corpo. Ainda nessa perspectiva, a análise empenha-se em refletir sobre os agentes e sua expressão institucional na gestão do Porto Maravilha, o que pode contribuir para a compreensão de uma parcela importante da coalizão de poder que põe em marcha significativas transformações em toda a cidade do Rio de Janeiro”, explica Mariana Werneck. O Projeto Porto Maravilha JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO De aproximadamente 5 milhões de metros quadrados, a operação urbana do Porto Maravilha inclui os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e as favelas da Providência, Pedra Lisa, Moreira Pinto e São Diogo, além de trechos de São Cristóvão, Centro, Caju e Cidade Nova; e prevê uma longa lista de intervenções urbanas e de obras de infraestrutura, como a reestruturação das redes de abastecimento de água, E de esgotamento sanitário e de telecomunicações, que têm conclusão prevista para este ano. O grande destaque é dado ao novo conceito de mobilidade proposto para a área central da cidade, que engloba a demolição do Elevado da Perimetral, realizada entre 2013 e 2014, e a implantação de um novo sistema de transporte público, o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Segundo Mariana Werneck, o projeto é inspirado em experiências internacionais de renovação do waterfront portuário que se multiplicam desde os anos 1960, objetivando, assim, inserir o Rio de Janeiro ao movimento de cidades mundiais que transformaram, nas palavras de Eduardo Paes, “suas centenárias e decadentes áreas portuárias – tornadas obsoletas pela velocidade da evolução das técnicas e dos processos de produção de riqueza – em dinâmicos centros irradiadores de desenvolvimento econômico, social e cultural”. 58 Considerado fundamental para o reposicionamento da cidade na economia dos serviços e do turismo, o Porto Maravilha já havia sido incluído na primeira versão do novo plano estratégico da cidade, Pós 2016: o Rio mais integrado e competitivo, apresentado em dezembro de 2009 – e, posteriormente, revisado e mais uma vez publicado em abril de 2012. Com a conquista da cidade como sede das Olimpíadas, considerada por Paes como “uma boa desculpa para a gente fazer coisa que há muito tempo a cidade demandava e não conseguia realizar”, o prefeito apressou-se para incluir a área portuária no rol das instalações olímpicas – contrariando o dossiê de candidatura do Rio de Janeiro, cujo projeto inicial previa a concentração de todos os equipamentos na Barra da Tijuca. Após insistir na mudança, que recebeu finalmente o aval do Comitê Olímpico Internacional em maio de 2010, o Porto Maravilha, símbolo da reinvenção da cidade, passou a ser marco do legado olímpico, congregando em torno de si a atenção dos JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO três níveis de governo. “A boa relação junto aos governos federal e estadual seria indispensável para a implantação do projeto de revitalização, dadas a predominância de terrenos da União naquela área e a necessidade de implementação de uma política de segurança capaz de combater a violência do passado”, explica Mariana Werneck. A pesquisa mostra que, fora o cenário político favorável, Eduardo Paes E instaurou mudanças institucionais no corpo da prefeitura com vistas a acelerar os projetos prioritários de sua gestão. Logo no primeiro ano de mandato, foi instituída na Secretaria Municipal de Urbanismo, sob orientação do próprio prefeito, uma gerência especializada para agilizar os licenciamentos de obras relacionados à Copa do Mundo e às Olimpíadas. Também foram criadas duas secretarias: a Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP), encarregada de pôr em prática a operação Choque de Ordem para atacar a desordem urbana, uma de suas principais promessas de campanha; e a Secretaria Extraordinária de Desenvolvimento (SEDE), incumbida de atrair novos negócios para a cidade – esta última foi entregue a Felipe Goes. Ex-sócio da consultoria McKinsey, Felipe Goes, uma vez integrado à equipe da prefeitura, acumulou ainda as presidências do Instituto Pereira Passos e do Conselho 59 Municipal de Desenvolvimento Econômico. Considerado por Paes o “vendedor do Rio”, Goes assumiu a tarefa de desenvolver a modelagem econômica da revitalização da área portuária e idealizou – inspirado na inglesa Think London e na colombiana Invest Bogotá – a Rio Negócios, agência criada em 2010 por meio de uma parceria com a Associação Comercial do Rio de Janeiro para angariar e apoiar empresários interessados em investir na cidade (PAES ANUNCIA..., 2008; PREFEITURA..., 2010). Além delas, a gestão municipal instituiu por meio de lei complementar a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP). Concebida para coordenar a implantação do projeto de revitalização da área portuária da cidade, a CDURP foi confiada a Jorge Arraes, ex-diretor imobiliário do fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal, a Fundação dos Economiários Federais (FUNCEF). Alçado ao cargo de secretário municipal após a criação da Secretaria Especial de Concessões e Parcerias Público- Privadas (SECPAR) em JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO 2014, já no segundo mandato de Eduardo Paes, Arraes não deixaria de acompanhar o andamento do Porto Maravilha, agora vinculado diretamente à nova secretaria. “As reformas institucionais e as inovações normativas buscavam, assim, instaurar uma administração pautada na interlocução entre o poder público e as empresas privadas, e o Porto Maravilha expressava essa inflexão. Além de ser instituído por E meio de uma operação urbana consorciada, o projeto de revitalização sinalizava para a contratação de uma Parceria Público-Privada (PPP) responsável pela execução das obras e prestação dos serviços – a primeira da cidade e a maior já realizada no país, lavrada em outubro de 2010 no valor global de R$ 7,6 bilhões, distribuídos ao longo de 15 anos. Dessa forma, o Porto Maravilha representava a construção de um novo paradigma no desenvolvimento do Rio. Remoções forçadas De acordo com Mariana Werneck, o projeto também soma, por outro lado, severas críticas, que ressaltam, sobretudo, as remoções forçadas, arrefecidas na área portuária desde o lançamento da operação urbana. Enquanto o Fórum Comunitário do Porto denunciava, em maio de 2011, as ameaças de remoção de até 800 famílias 60 no Morro da Providência por conta do programa municipal de reurbanização de favelas Morar Carioca, apresentado pelas autoridades em março de 2010 como iniciativa complementar ao Porto Maravilha (FCP, 2011). O Comitê Popular da Copa e das Olímpiadas do Rio de Janeiro indicava em março de 2013 o despejo de 430 famílias que viviam em ocupações irregulares na zona portuária desde 2009. Logo após as grandes manifestações de 2013, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), deu destaque ao caso da Providência em seu relatório anual, contabilizando a expulsão de 196 famílias da comunidade até novembro daquele ano (CDDHC, 2013, p. 44). As organizações enfatizam ainda a ausência de informação acerca dos projetos implementados, assim como a falta de participação da população na definição das intervenções prioritárias JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO e na discussão de alternativas habitacionais. Mariana Werneck também apresentou na pesquisa o que tem sido produzido no campo acadêmico a fim de compreender o processo de remoções e o significado do Porto Maravilha. “Um grupo de pesquisadores engajados têm produzido análises que, em linhas gerais, vislumbram no projeto de revitalização da área portuária do Rio a subordinação do direito à moradia aos interesses pela valorização da terra e E à mercantilização da cidade, nele salientando o papel do Estado e dos fundos públicos no enriquecimento de investidores privados e na produção de um novo padrão de segregação”, aponta a pesquisadora e completa: “Alguns autores chamam atenção para as doações de campanha do então candidato a prefeito Eduardo Paes, liderados por empresas dos setores imobiliário e da construção civil, evidenciando ainda o papel do planejamento estratégico na transformação da cidade”. O setor financeiro no Porto Maravilha Mariana Werneck destaca o emprego de fundos de investimento imobiliário e a participação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) na aquisição dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) da operação 61 urbana, de acordo com a arquitetura institucional-financeira desenhada para a operação urbana. Enquanto o fundo, cujo princípio é a rentabilidade, expressaria a conversão da terra em um ativo financeiro, a transferência de recursos do FGTS significaria “uma redução de riscos para os investidores privados que passam a ter, desde já, um cenário favorável aos investimentos mediante a aceleração das obras”. Mas a entrada de fundos públicos não elimina os riscos da operação por completo, uma vez que “os recursos vindos do FGTS para a compra dos CEPACs, 3,5 bilhões de reais, garantem alguns anos de obras e serviços previstos no contrato de PPP, mas não a sua totalidade. “Alguns autores mostram que recursos públicos e especulação, somados ao descumprimento da função social da propriedade, levam a afirmar que o Porto JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Maravilha é uma das expressões mais acabadas da cidade como uma máquina de crescimento urbano”, aponta Werneck e complementa: “Dessa maneira, a cidade – impulsionada por uma coalizão de interesses que reúne proprietários fundiários, empresários, empreendedores, imobiliários, políticos locais, agências de serviço público, setores sindicais, instituições culturais, enfim, E todos aqueles que têm algo a ganhar com o crescimento da cidade – funcionaria como uma organização empresarial devotada ao aumento do volume da renda agregada por meio da intensificação do uso do solo urbano”. Nesse sentido, o estudo de Mariana Werneck busca captar dinâmicas em torno da execução do Porto Maravilha, aludindo à apropriação desigual das transformações realizadas na área portuária. “As denúncias acerca da implementação violenta de uma nova política de remoções e a retração da esfera pública visibilizam a existência de um grupo que, mais que negligenciado, é deliberadamente excluído dos benefícios prometidos pelo projeto de revitalização. Mas, passados quase sete anos de implantação do projeto de revitalização, pouco sabemos sobre a concertação de agentes capaz de finalmente implementar um projeto idealizado desde os anos 1980, assim como seu envolvimento institucional, suas atribuições e contrapartidas ou seu 62 modo de ação permanecem indeterminadas”, explica a autora. Falta de reflexão crítica do processo Mariana Werneck argumenta que os instrumentos utilizados para a viabilização da arquitetura institucional-financeira praticada no Porto Maravilha são pouco conhecidos, impondo barreiras à compreensão de seu modo de funcionamento e à formulação de uma reflexão crítica ao projeto. Apesar de haver acúmulo em torno das premissas do plano estratégico, instrumentos tais como PPPs e fundos de investimento imobiliário são ainda pouco explorados, e mesmo operações urbanas e CEPACs, analisados em profundidade por autores como Mariana Fix (2004, 2007), compõem, no Porto Maravilha, uma arquitetura bastante particular, inédita – potencializada pelas mudanças institucionais em curso. JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Conclusões A pesquisa de Mariana Werneck aponta que se antes a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro era prioritariamente um projeto urbanístico, agora o Porto Maravilha é um arranjo institucional-financeiro de gestão do território capaz de compatibilizar interesses – eis o passe de mágica de Eduardo Paes, sob a cortina de E fumaça dos Jogos Olímpicos. “Após a entrada do novo prefeito e a conformação de um alinhamento político nas três esferas de governo, deflagrado pela aliança PT-PMDB, foram articuladas junto ao governo federal a participação da SPU e da Casa Civil, esvaziando a ingerência do Ministério das Cidades sobre o projeto, e, como parecem apontar as investigações da Operação Lava Jato, coordenando a entrada do FGTS e da CEF enquanto seu agente operador. Valendo-se de uma legislação preexistente, mas também produzindo por processos de destruição criativa novos aparatos normativos e institucionais, essa arregimentação política pôde então compor interesses e viabilizar o Porto Maravilha”, explica a pesquisadora. Como estratégias de reestruturação, as inovações puderam conformar o arranjo institucional-financeiro, mas as aspirações dos agentes não poderiam se desvencilhar 63 das expectativas do mercado. “Se é verdade que as massas de capital de origem brasileira e internacional encontram no porto do Rio de Janeiro uma oportunidade para absorver lucros mais elevados, dadas as perspectivas de valorização imobiliária do porto, também é certo que a sua conversão em produtos imobiliários é peça fundamental para sustentar a operação financeiramente e promover a ocupação da área portuária, criando demanda às novas infraestruturas e aos serviços prestados por um consórcio privado. Mesmo os empreendimentos lançados por empreiteiras que participam dos Consórcios do arranjo institucional-financeiro não são capazes de desencadear a transformação da AEIU da Região do Porto, uma área de 5 milhões de metros quadrados”, aponta Mariana Werneck, e conclui: “A reintegração da área portuária após longos anos de desinvestimento, seja pelos efeitos da expulsão dos moradores dessas áreas, seja pela repressão ao uso dos espaços para sua reprodução social, poderia ser interpretada como um processo JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO de espoliação urbana, o que Harvey denominou acumulação por espoliação. O projeto de revitalização supõe a transformação das terras, majoritariamente públicas, da área portuária em valor de troca, abrindo uma nova fronteira para sua integração aos circuitos de valorização imobiliária promovidos pelo capital, ao mesmo tempo que destitui as classes populares que delas se utilizam como valor de uso, e assim podem E praticar, ainda que precariamente, o direito à cidade. O acirramento dos conflitos urbanos clama pela cidade como espaço de disputa”, finaliza. 64 06 Porto Maravilha: o imaginário da revitalização Texto adaptado por Breno Procópio com base na versão publicada no Boletim Semanal do Observatório das Metrópoles, 12 jun. 2014. C oncebido pelo discurso do “imaginário da revitalização” a partir de modelos como o do Porto de Baltimore (EUA) e Port Vell (Barcelona), o Projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro mostra que, na prática, se aproxima mais de um modelo clássico de renovação urbana com a demolição de imóveis, JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO o rompimento com a comunidade local, e o uso de recursos públicos para gerar benefícios a investidores privados. Essas são algumas das conclusões do e-book “Porto Maravilha: antecedentes e perspectivas da revitalização da região portuária do Rio de Janeiro” (Editora Letra Capital, 2014), do geógrafo Nelson Diniz1 , produzido no âmbito da Rede INCT Observatório das Metrópoles E No Prefácio do livro, o professor Orlando Alves dos Santos Jr. afirma que a obra é um convite à reflexão sobre as políticas de revitalização urbana no contexto de difusão do empreendedorismo neoliberal. “Nelson Diniz propõe compreender este projeto à luz da teoria urbana crítica. Assim, debruçando-se sobre o processo de transformação da região portuária e sobre os diferentes projetos de renovação desse espaço, o autor empreende uma análise em torno da 1 Nelson Diniz é Graduado em Geografia pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Atualmente é professor do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II e Doutorando no IPPUR/UFRJ. E-mail: nelsondiniz@hotmail.com 66 construção social do discurso da revitalização das áreas centrais das cidades, no caso em questão, da área portuária da cidade do Rio de Janeiro”. Mas o que fundamenta discursivamente o Porto Maravilha? Nelson Diniz aponta que o Projeto Porto Maravilha se baseia em termos da construção social do discurso no “imaginário da revitalização”. Quando o Brasil e o Rio de Janeiro são escolhidos, respectivamente, para sediar a Mundial FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 delineia-se um momento oportuno – aliado à conjuntura de crescimento econômico do país – para realizar o chamado “milagre carioca” do qual emergiu uma coalizão urbana envolvendo os diferentes níveis de governo e os tradicionais e novos atores da economia da cidade. Todos praticando um novo modelo de governança empreendedora a fim de transformar o Rio em uma global city. O Porto Maravilha se insere nesse processo. O modelo que o fundamenta são JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO experiências internacionais “bem-sucedidas” como as de Boston e de Baltimore (EUA); de Puerto Madero, em Buenos Aires (Argentina); de Kop van Zuid, em Roterdã (Holanda); e especialmente Port Vell, em Barcelona (Espanha). Nelson Diniz cita no livro o discurso do próprio prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (2011), em que enaltece o modelo de Barcelona: E Como preparar o Rio para receber o maior evento esportivo do planeta e aproveitar essa oportunidade para transformar as condições de vida dos cariocas? Estamos seguindo à risca o que me disse Pascal Maragal, prefeito de Barcelona à época das Olimpíadas de 1992 e cujo modelo de organização é uma inspiração. (p.77). Mas quais as diferenças entre revitalização e renovação urbana? Diniz mostra, citando Del Rio (1991; 2001; 2010), que a revitalização caracteriza-se, entre outros aspectos, pela conservação do patrimônio, a contextualização, o estímulo aos usos mistos e as formas “flexíveis” de gestão e planejamento. Por sua vez, os princípios de ordem, normatização e funcionalidade caracterizariam as políticas de renovação urbana, assim como o desprezo pelas tradições e particularidades culturais, históricas e ambientais. Tais argumentos fundamentam-se num maniqueísmo que opõe renovação/modernidade e revitalização/pós-modernidade. “A partir de Boston e Baltimore, a revitalização de regiões portuárias tornou-se 67 um modelo difundido e reproduzido em diversas cidades do mundo. A revitalização urbana contrastaria com as práticas de renovação, de demolição-reconstrução, inspiradas no ideário do movimento modernista”, afirma Nelson. No caso do Rio de Janeiro, porém, a opção discursiva pela revitalização urbana não eliminou o eventual recurso à demolição-reconstrução e seus efeitos. “No Porto Maravilha, destacam-se a demolição do Elevado da Perimetral e de antigas edificações que abrigam ocupações populares. Apesar das controvérsias sobre a destruição da principal ligação viária das zonas Sul e Norte do Rio de Janeiro, o que dizer da remoção dos moradores das ocupações, além daqueles do Morro da Providência?”, questiona Nelson e conclui: “Ao analisar na prática o Projeto Porto Maravilha e o seu modo de implementação, fica claro que se aproxima mais de um conceito clássico de renovação urbana JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO caracterizado por romper ligações comunitárias, favorecer a formação de centros de negócios de luxo e por permitir, com a ajuda de recursos públicos, benefícios a investidores e proprietários”. Percurso histórico: projetos sucessivos de renovação do porto No livro, Nelson Diniz investiga os vários projetos elaborados para o Porto do Rio E de Janeiro desde a década de 1980 com o objetivo de demonstrar que o ideário de revitalização da zona portuária é antigo, mas sempre esbarrou nos entraves políticos e conflitos de interesse. De acordo com o pesquisador, as primeiras propostas de revitalização da região portuária, elaboradas pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e por outros atores da iniciativa privada, surgiram no contexto da crise econômica do país, do estado e da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1980. Resistências das autoridades portuárias, dos Governos Municipal e Federal e mobilizações comunitárias pela conservação das características históricas dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, inviabilizaram os projetos. Já nos anos 1990, às ações da ACRJ e dos órgãos da administração portuária 68 acrescentaram-se aquelas dos Governos Municipal e Federal. “A Lei de Modernização dos Portos, de 1993, estabeleceu as bases jurídicas da revitalização de áreas portuárias no Brasil, implicando em complexas negociações entre as autoridades portuárias, a iniciativa privada e as esferas de governo. As relações entre esses atores manifestaram ora tendências à cooperação, ora conflitos de interesses. No caso do Rio de Janeiro, divergências entre os atores envolvidos comprometeram a realização dos diversos projetos”, explica. No início dos anos 2000, a elaboração do “Porto do Rio: Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro” marcou a retomada dos debates. O livro mostra que pela primeira vez, desde os anos 1980, construíram-se grandes equipamentos urbanos: a Vila Olímpica da Gamboa e a Cidade do Samba. Ao mesmo tempo, controvérsias acerca da instalação de uma filial do Museu Guggenheim no JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Píer Mauá impediram a continuidade das ações. Somente no final da década de 2000, e em estreita relação com as propostas que o antecederam, o Projeto Porto Maravilha foi instituído pela Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de novembro de 2009. “Trata-se de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), numa área de aproximadamente 5 milhões de metros quadrados. A Lei nº 101/2009 alterou os parâmetros de uso e ocupação do solo da região E portuária, estabeleceu intervenções prioritárias de infraestrutura e transporte, assim como mecanismos público-privados de gestão e financiamento”, afirma. Projeto Porto Maravilha, renovação urbana e gentrificação Nelson Diniz aponta também a expansão da área central da cidade e a produção dos chamados marcos de distinção; além de tendências à gentrificação da região portuária da cidade. Segundo o autor, em 2010 as moradias de 671 famílias do Morro da Providência foram marcadas para demolição no âmbito do projeto Morar Carioca, programa municipal de urbanização de favelas. “Embora o Morar Carioca não tenha sido objeto das reflexões do meu estudo, pode-se dizer que suas intervenções, assim como a UPP, complementam as do Porto Maravilha. Dentre elas, sobressai a construção de 69 um teleférico conectando a Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas, o Morro da Providência e a Cidade do Samba, o que coincide com os princípios e diretrizes da Lei nº 101/2009 sobre a expansão da Área Central da cidade”, argumenta. Diniz afirma que esses projetos (Morar Carioca, UPPs, Porto Maravilha e Porto Olímpico) fazem parte de um projeto maior de inserção do Rio de Janeiro na lista das global cities e, também, simbolizam um aparato para receber a comunidade internacional durante os grandes eventos esportivos. Sobre o processo de gentrificação, o autor mostra que o discurso da Prefeitura do Rio de Janeiro prevê um adensamento demográfico na região. Sérgio Dias, atual Secretário de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro, afirmou em 2010: JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Espera-se que a população atual de 22 mil habitantes, distribuída basicamente em seis bairros vizinhos – Centro, Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Cidade Nova e São Cristóvão –, chegue, numa primeira etapa, a 100 mil pessoas. Como ocorreu em outras cidades que fizeram a reconversão da região portuária, a ideia é ter edificações não apenas residenciais, mas que mesclem habitações com outras funções de cunho comercial, empresarial, cultural etc. Porém, no que se refere aos usos residenciais, destacam-se os correspondentes às classes médias. “O projeto da Prefeitura é atrair a classe média e, num segundo momento, as classes populares. O que se verifica até agora é que ações de promoção de moradia de interesse social e de regularização fundiária são residuais, o que E coloca em questão a base social do crescimento demográfico esperado para a região portuária”, afirma Diniz e conclui: “O Porto Maravilha não é simplesmente o resultado de um novo momento do Rio de Janeiro, associado à realização de megaeventos na cidade e à conjuntura política e econômica recente do Brasil. Na verdade, o projeto realiza, sob novas e velhas formas, o que foi transformado em consenso ao longo do debate sobre a revitalização da região portuária. Por último, em que pese ser temerário afirmar desde já a gentrificação da região portuária, o que exige o desenvolvimento de pesquisas posteriores, estão dadas as condições para a reconquista do centro da cidade por setores sociais afluentes. Resta saber se eles realmente virão”, reflete Diniz. 70 07 Olimpíadas 2016 e os impactos da “revolução dos transportes” sobre a justiça socioespacial Texto adaptado por Breno Procópio com base na versão publicada no Boletim Semanal do Observatório das Metrópoles nº 442, 30 jun. 2016. É possível que a revolução dos transportes anunciada pelo Governo do Rio de Janeiro no contexto dos preparativos para os Jogos Olímpicos de 2016 consiga reverter a grave crise de mobilidade enfrentada em seu território? Guiado por esse questionamento, o pesquisador Jean Legroux1 desenvolveu JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO em sua tese de doutorado uma contribuição inovadora ao avaliar os impactos dos projetos de transporte sobre a justiça socioespacial no Rio de Janeiro por uma ótica multiescalar e multicritério. Titulada “A acolhida da copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016 e os impactos da ‘revolução dos transportes’ sobre a justiça socioespacial: mudar tudo para que E nada mude?”, a tese foi produto de uma colaboração acadêmica da Université Lyon 2 e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Em seus resultados, Legroux mostrou que os impactos da “revolução dos transportes” provocaram mudanças que não rompem com o modelo de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com as lógicas de segregação da cidade neoliberal. Nesta ótica, Legroux assinala que a estratégia de “cidade atrativa”, no Rio de Janeiro, corresponde a um estágio avançado da neoliberalização e mercantilização do seu espaço urbano baseada no trinômio formado pelos megaeventos (estratégia consagrada com a realização da Copa do Mundo 2014 e das Olímpiadas 2016), pelo 1 Jean Legroux é pesquisador do Laboratoire d’économie des transports (LET) – ENTPE/ Université Lyon 2/CNRS, e do Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ. 72 contexto econômico favorável e pelo alinhamento conjuntural entre os três níveis de governo. Segundo o pesquisador, esta política de construção e de governança neoliberal do espaço urbano – que implica uma reconfiguração das coalizões de atores historicamente presentes no circuito da acumulação urbana – funda-se na requalificação urbanística da cidade do Rio de Janeiro para duas finalidades: inserila na competição internacional das cidades, de modo com que a cidade escape, no plano nacional, da sua trajetória de decadência econômica e política percebida especialmente a partir da década de 1980. Nos discursos oficiais, as transformações urbanas em curso responderam às necessidades da “Cidade Olímpica” e geraram impactos positivos para os seus habitantes e aqueles da Região Metropolitana. Neste contexto, os investimentos em infraestruturas de mobilidade foram os mais importantes, representando 55% dos investimentos realizados tanto para a Copa do Mundo de 2014, como para as JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Olimpíadas 2016. “Além do valor investido, os impactos dos projetos de transporte são certamente os mais significativos sobre o espaço urbano, levando os poderes públicos a falarem de uma ‘revolução dos transportes’ capaz de solucionar a crise da mobilidade urbana claramente vinculada aos processos de segregação e exclusão urbana. De fato, este E contexto de construção da cidade atrativa permite uma concentração histórica de investimentos em transporte coletivo com uma ‘rede estruturante’ de BRT com quatro corredores (o Transoeste, o Transcarioca, o Transolímpica, o Transbrasil), de mais de 150 quilômetros; um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) na Zona Portuária, que passa por uma revitalização completa através do projeto Porto Maravilha; a construção da Linha 4 do metrô ligando a Zona Sul (bairro de Ipanema) à zona da Barra da Tijuca; a renovação e extensão da rede de trens; e a construção de três teleféricos em favelas ou conjunto de favelas”, descreve Jean Legroux. Segundo o pesquisador, os principais projetos de transporte da “revolução dos transportes” conectam entre si os clusters olímpicos (Barra da Tijuca, Deodoro, Maracanã e a Zona Sul), beneficiando especialmente as zonas da Barra de Tijuca e de Jacarepaguá, que recebem três das quatro linhas de BRT previstas e a Linha 4 do 73 metrô. “A revolução dos transportes - salvo as promessas de renovação do sistema de trens que servem à Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) – concentra-se, portanto, no território do município do Rio de Janeiro. Ela se faz acompanhar também de uma reforma político-institucional do sistema de transporte por ônibus, que implica esforços em termos de integração física e tarifária no sistema de transporte coletivo como um todo”, afirma o pesquisador. A tese mostra que essas mudanças no cenário do transporte coletivo no Rio de Janeiro seriam capazes, segundo os discursos oficiais, de reverter o quadro da crise da mobilidade urbana. Na RMRJ, o transporte coletivo representa 71% das viagens motorizadas, contra 29% pelo transporte individual, o que faz desta crise da mobilidade uma crise do transporte coletivo, principalmente do transporte por ônibus (que representa mais de 75% das viagens quotidianas realizadas na RMRJ, em 2014). “O abandono dos sistemas metroviários e ferroviários durante décadas JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - correlativamente à expansão dos sistemas de ônibus (desde os anos 1950) e ao crescimento exponencial das frotas de automóveis e de motocicletas (especialmente a partir dos anos 2000) – são fatores que explicam a crise da mobilidade urbana no Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que esta crise da mobilidade atinge todas as categorias sociais (embora de forma desigual), na medida em que os congestionamentos E crescentes atingem tanto aos usuários de ônibus, quanto aos motoristas de carros particulares”, aponta Legroux. Desse modo, a revolução dos transportes seria capaz de reverter a crise da mobilidade no Rio de Janeiro? Esse é ponto de partida da tese que busca avaliar, através de uma análise multi-escalar (incluindo as dimensões metropolitana, municipal e intraurbana), os diversos impactos dos projetos de transporte sobre a justiça socioespacial no Rio de Janeiro. Em outras palavras, mesmo que se observem impactos positivos para a população, eles serão repartidos de forma justa entre os diferentes grupos sociais do espaço urbano do Rio? “A escolha do paradigma da justiça para compreender os impactos diferenciados da ‘revolução dos transportes’ tem como objetivo resolver concretamente esse tipo de dilema: uma infraestrutura de transporte é justa, se, ao mesmo tempo em que permite 74 a 200.000 pessoas de baixa renda melhorar a sua mobilidade justifica a expropriação de centenas de famílias pobres realocadas em periferias distantes?”, provoca Jean Legroux. Uma das primeiras hipóteses do trabalho de pesquisa é que a justiça socioespacial, em qualidade de ferramenta teórica e analítica, é pertinente para o estudo dos processos de exclusão e de diferenciação socioespacial decorrente dos megaeventos e dos projetos de transportes. “De fato, mesmo dada a existência de uma legado dos megaeventos para a cidade em termos de infraestruturas urbanas, os projetos não beneficiam da mesma forma a todos os habitantes e suscitam diversas formas de injustiças. O marco multicritério da justiça tem o objetivo de enxergar onde, como e por que os impactos da construção da “cidade atrativa” e da “revolução dos transportes” são injustos ou poderiam ser menos injustos do ponto de vista socioespacial”, afirma JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO o pesquisador. Outra hipótese do trabalho postula que os impactos e desafios próprios aos processos de metropolização e, particularmente aos processos de fragmentação do espaço urbano – cujo cunho é um modelo de organização social do território fortemente marcado pela segregação residencial –, são exacerbados com a organização de megaeventos. Isso significa que o desafio da mobilidade urbana, no seio dos E processos de metropolização, é também um fator fundamental da organização de um megaevento. Assim, os projetos de infraestruturas de transporte, no contexto da cidade, seriam capazes de atender simultaneamente aos objetivos de curto prazo (os eventos em si, os interesses turísticos, comerciais, midiáticos e imobiliários do poder econômico e financeiro local, nacional e internacional, por exemplo) e à uma dinâmica de planejamento urbano de médio e longo prazo voltada às necessidades da população? Nessa ótica, a problemática geral da tese é: detrás dos discursos oficiais e do marketing urbano, quais são os impactos das políticas e dos projetos de transporte – no contexto da cidade atrativa no Rio de Janeiro – sobre a justiça socioespacial? Baseada em diversos critérios de justiça, reunidos em categorias chamadas de 75 “qualidades éticas”, o arcabouço analítico multicritério da justiça permite avaliar: a) os impactos dos projetos de transporte sobre a satisfação da demanda, em termos da capacidade e da qualidade; b) a capacidade da “revolução dos transportes” em reverter o quadro da crise da mobilidade; c) os efeitos sobre outros processos, tais como as expropriações e a especulação imobiliária. A metodologia qualitativa (entrevistas semi-direcionadas e observação de campo), junto com o referencial multicritério de justiça, permite identificar os diversos grupos de atores em conflito na construção da “cidade atrativa” e, dentre estes, aqueles que “ganham” e aqueles que “perdem”. De acordo com Jean Legroux, os resultados da investigação indicam que os impactos da “revolução dos transportes” na cidade do Rio de Janeiro, neste contexto de construção da “cidade atrativa”, provocam mudanças que não rompem com o modelo de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com as lógicas de segregação JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO da cidade neoliberal. “Mudar tudo para que nada mude?”, provoca o pesquisador. A tese analisa a construção da “cidade atrativa” no Rio de Janeiro em um contexto de metropolização e de competição internacional das cidades, onde elas transformam os seus espaços urbanos graças à atração de capitais internacionais e de investimentos nacionais (maioritariamente públicos). Nesse sentido, a análise dos projetos de transporte relacionada às dinâmicas imobiliárias e às políticas E habitacionais constitui uma ferramenta privilegiada para compreender os impactos e contradições da justiça socioespacial na estratégia neoliberal de construção de uma “cidade atrativa”. Além disso, os projetos de transporte tiveram impactos diretos sobre as remoções de famílias e comunidades de baixa renda. A interação entre processos da “cidade atrativa” e os impactos de “revolução dos transportes” mostrou-se evidente. “Este trabalho não se limitou à realização de um diagnóstico geral da ‘revolução dos transportes’ — isto é, as conclusões sobre a capacidade, a qualidade e a pertinência de cada modo de transporte, individualmente ou como um todo — mas tratou de avaliar as consequências, de forma geral, de um modelo neoliberal de governança e transformação urbana – necessariamente contraditório. De fato, como sugerido por Gotham, o contexto de acolhida de megaeventos costuma revelar as tensões latentes da sociedade”, explica Jean Legroux. 76 Metodologia A metodologia da tese baseou-se na Geografia atual, em que a espacialidade das injustiças urbanas é sumamente importante, compreendendo também a cidade através do paradigma da justiça socioespacial. Seguindo esta lógica, a análise geográfica do espaço urbano instaura um diálogo entre diferentes conceitos éticos da justiça advindos de diversos paradigmas de filosofia política. “Baseada em diferentes qualidades éticas, a confrontação de diversos critérios de justiça foi útil para deslocar a análise entre as diversas escalas urbanas, compreendendo simultaneamente a dimensão conflitual das transformações urbanas. Os resultados da aplicação da metodologia possibilitaram a identificação de alianças urbanas, a oposição de diversos interesses em jogo e a definição de vencedores e perdedores”, explica Legroux. O trabalho mostra, por exemplo, que existe uma aliança urbana “dominante” JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO composta pelos governos locais (e o Governo Federal), as empresas concessionárias de transporte coletivo, de marketing e publicidade, os patrocinadores oficiais das competições, as grandes empresas de construção civil e de incorporação imobiliária. Esta aliança urbana age, ao mesmo tempo, a serviço das classes médias e altas, das elites locais, dos setores econômicos e financeiros envolvidos nesta transformação urbana de grande porte, e da chamada world class (investidores estrangeiros, turistas, E atletas, etc.). Por outro lado, as populações de baixa renda, a maioria moradores de favelas e comunidades de habitação precária, foram excluídas dos benefícios da construção da “cidade atrativa” e da “revolução dos transportes”: “As entrevistas realizadas com habitantes de favelas neste trabalho correspondem à analise de várias zonas e comunidades urbanas afetadas direta ou indiretamente pela cidade atrativa. Sem reduzir a compreensão dos habitantes de favelas como um grupo homogêneo em termos de interesse, de desejos e de condição material de vida, a identificação de coalizões de interesses permitiu identificar grandes tendências, sempre tratando de ficar atento à descrição e distinção dos diversos casos de estudos e/ou atores entrevistados. O mesmo vale para os outros grupos 77 de afinidades utilizados neste trabalho. Este tipo de classificação em dois grandes grupos possui evidentemente matizes, oposições e conflitos internos, porém, permite traçar tendências e fazer algumas generalizações”, argumenta o pesquisador. JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Figura 5. O mapa das remoções, por Lucas Faulhaber e Lena Azevedo (SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, Mórula Editorial, 2015). Remoções Do ponto de vista das comunidades de baixa renda, algumas conclusões gerais são apontadas na tese: a maioria das comunidades removidas no contexto de megaeventos não teve direito a dialogar com os poderes públicos. Uma grande E maioria dos removidos foi realojada (sobretudo pelo programa Minha Casa Minha Vida - MCMV) ou obrigada a reassentar-se em periferias distantes da cidade; outra boa parte dos removidos e/ou ameaçados de remoção transmitiu um sentimento de injustiça e de desclassificação social. Já na aliança formada pelos governos, pelo setor privado e pelas elites urbanas, Jean Legroux afirma que foi observada uma tendência a minimizar os impactos dos projetos de transporte e de renovação urbana em termos de remoções. “A maioria dos discursos deste grupo aborda os impactos positivos anunciados e raramente considera qualquer caráter injusto (segundo diversos critérios de justiça) dos processos em curso para as populações de baixa renda. Um terceiro grupo de pessoas entrevistadas, professores, pesquisadores e membros de associações de classe, aportou elementos fundamentais à análise”. 78 Conclusões Segundo Jean Legroux, o marco teórico construído em torno da noção de justiça permitiu um diálogo entre as diferentes teorias da justiça (advindas da filosofia política), aplicadas à analise do espaço urbano na Geografia. Este diálogo se superpôs à analise empírica, isto é, aos discursos e opiniões sobre os impactos da “revolução dos transportes”. “A qualidade ética da ‘propriedade/eficiência’, que representa o pensamento de justiça em termos de eficiência e de utilitarismo, foi fundamental para compreender a lógica de uma aliança com poder de decisão e interesse nas transformações urbanas. Com relação à rede de BRT, o argumento econômico foi fortemente utilizado em termos de racionalidade da escolha (a relação custo/eficiência, por exemplo) dados os limites em termos de financiamento da extensão das redes de metrô e de trem. A JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO lógica de cunho utilitarista preocupa-se com a eficiência, amplitude e imagem dos investimentos, mais do que com a repartição dos benefícios aportados por estes”, afirma o pesquisador. Já a qualidade ética da “equidade” foi dividida em quatro critérios de justiça. Os dois primeiros critérios são os de “equidade territorial” (que se traduz num princípio E de acessibilidade, pelo qual todos os indivíduos devem ter acesso às mesmas amenidades urbanas, por exemplo) e de “equidade horizontal” (pelo qual uma infraestrutura urbana é justa se não beneficia mais a uns indivíduos do que a outros). “Estes dois critérios voltam a atenção aos fatores de localização geográfica dos habitantes de baixa renda, de concentração e de déficit estrutural de infraestruturas de transporte coletivo, permitindo concluir que não existe qualquer forma de igualdade de acesso ao transporte coletivo (e privado) no Rio de Janeiro. Além disso, a universalidade de acessibilidade é prejudicada pelos aumentos sucessivos das passagens de transporte. A ‘revolução dos transportes’ não tem se preocupado com a igualdade de acesso ou de uso dos diferentes meios de locomoção – o que corresponderia à realização do critério de equidade horizontal”, analisa Legroux. Na tese o terceiro princípio é de equidade vertical, correspondendo ao maximin 79 rawlsiano, que permitiu concluir que a “revolução dos transportes” e a cidade atrativa em geral, não são justas se considerarmos que os indivíduos menos favorizados deveriam ter recebido o máximo de vantagens possíveis. Segundo este critério de equidade, as populações mais vulneráveis deveriam ter recebido mais do que as outras, porque isto teria significado uma redução de uma diferença injusta (o fato de pertencer a uma camada social de baixa renda, por exemplo). “Se a compensação fosse superior à perda, poderíamos considerar que uma expropriação não é necessariamente injusta em si. Nos terrenos urbanos estudados no Rio de Janeiro, as remoções são injustas segundo o critério de equidade vertical, pelas seguintes razões: 1) as populações removidas à força já estavam desfavorecidos na estrutura socioespacial carioca; 2) as indenizações não contemplaram nem as expetativas dos habitantes (de maneira geral, salvo exceções), nem a realidade do preço do solo dos terrenos, tendo em vista as situações habituais de ausência de JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO indenização ou indenizações irrisórias, remoções violentas e substituição por moradia social em regiões muito distantes à área anteriormente ocupada (às vezes, 30, 40 ou 50 quilômetros)”, defende o pesquisador. O quarto princípio, de equidade “real”, que se preocupa com as realizações concretas, levou a compreender, por exemplo, a prática concreta de um novo modo E de transporte instalado. O BRT Transoeste transporta aproximadamente 200.000 pessoas, mas em que condições? A preocupação da equidade “real” permitiu concluir que a rede de BRT, mas também os teleféricos, não aportam mudanças positivas significativas na qualidade da mobilidade dos usuários – isto vale também para o sistema de trens de subúrbios. A “revolução dos transportes”: a permanência do modelo rodoviarista de mobilidade e dos processos de segregação socioespacial. A tese mostra ainda que a “revolução dos transportes” é uma reviravolta, em termos de amplitude financeira e territorial, dos investimentos e de avanços na integração tarifária - por exemplo, no sistema de transporte coletivo da cidade do Rio de Janeiro. Ela não se inscreve, porém, em um contexto de mudança de paradigma. 80 “Em efeito, a ‘revolução dos transportes’, por ter nascido em um contexto de governança neoliberal do espaço urbano, reforça os processos de segregação socioespacial. Em outras palavras, reforça a ação das políticas públicas habitacionais e da produção privada de moradias, tendo como consequência a intensificação da produção de áreas urbanas supervalorizadas e a localização cada vez mais distante de zonas habitacionais de populações de baixa renda”, explica o pesquisador. De acordo ainda com Legroux, atrás da mudança político-institucional do modelo de transporte por ônibus, que aporta um avanço em termos de integração tarifária (que beneficia mais as empresas de ônibus que aos usuários), a “revolução dos transportes” continua sendo posta a serviço da exclusão socioespacial das populações de baixa renda e das lógicas de especulação imobiliária que acompanham a instalação e consolidação das classes médias e das classes altas nas zonas urbanas em curso de valorização. O contexto de urgência gerido pela acolhida de megaeventos, que JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO se caracteriza por uma flexibilização dos regimes jurídicos, econômicos, financeiros etc., constitui uma aceleração dos processos de exclusão, tendo sérios impactos no E desenvolvimento urbano de longo prazo. 81 08 Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro Resenha de Breno Procópio sobre no livro "Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro", disponível para download no site do Observatório das Metrópoles: <http://goo.gl/17KzaE> N o ano de 2010, pela primeira vez na história, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro realizou uma licitação pública para a concessão privada de todo o sistema de transporte por ônibus. Tal medida foi justificada porque no Rio de Janeiro, o modelo vigente há décadas, de permissões para as empresas JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO operarem linhas de ônibus, tem prejudicado a organização e a racionalização do sistema e estimulado a concorrência predatória entre os diversos modos de transporte que operam na cidade, em detrimento da integração”. Para isso, a cidade foi dividida em cinco regiões, chamadas de Redes de Transportes E Regionais (RTRs).Cada uma delas foi concedida a um consórcio diferente. Ao garantir uma área delimitada – e exclusiva – para a atuação de cada consórcio vencedor da licitação, pretendiase acabar com a competição territorial entre as empresas de ônibus. A racionalização das linhas (entendida como adequação entre a demanda de passageiros e a oferta de ônibus) contribuiria para diminuir o custo das empresas e, consequentemente, o valor da tarifa. Os consórcios vencedores da licitação também viriam a operar os futuros corredores expressos de ônibus (Bus Rapid Transit - BRT) entre Barra da Tijuca e o 83 Aeroporto Internacional do Galeão (TransCarioca); entre Barra da Tijuca e Santa Cruz (TransOeste); entre Recreio dos Bandeirantes e Deodoro (TransOlímpica) e entre Deodoro e o Aeroporto Santos Dumont (TransBrasil). A concessão abrangente do sistema de transporte por ônibus, com a relação entre a Prefeitura e as empresas de ônibus regidas por um contrato público e com prazo determinado sinalizaria uma importante mudança na política de transportes do Rio de Janeiro. Importância diretamente relacionada à predominância deste modal no contexto geral do transporte coletivo na metrópole fluminense. Neste trabalho, buscamos analisar em que medida o processo de reorganização do transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro se vincula com as transformações mais gerais da ordem urbana em curso na cidade e como a redefinição de uma coalizão de interesses em torno da acumulação urbana implica em mudanças/continuidades JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO da política municipal de transportes. Ao analisar a trajetória histórica dos transportes urbanos do Rio de Janeiro ao longo do século XX, identificamos ciclos de desenvolvimento no setor que repetem padrões, incorporando algumas mudanças em função das novas condições institucionais, políticas etc. As mudanças atuais seriam parte integrante de um processo composto E por ciclos de crises, reestruturações e reorganizações sobre novas bases e novas condições. Resumidamente, o período do Estado Novo (1930-1945) foi marcado por um controle mais centralizado sobre os transportes públicos. Caracterizou-se pelo predomínio do transporte ferroviário organizado diretamente pelo Estado, no caso dos trens, e pela Light, empresa de capital internacional que monopolizou a operação dos bondes, via concessão. Os ônibus tinham uma função complementar e a regulação estatal restringia a proliferação de empresas. A crise do setor ao longo da Segunda Guerra Mundial em função do aumento do custo dos combustíveis e da dificuldade de importação de peças e materiais de transporte ajudou a criar condições para uma reestruturação a partir de 1945. O fim da guerra marca uma mudança política com viés liberalizante para o setor. O novo 84 governo estimula a expansão da oferta de transportes e o serviço cresce de forma exponencial e pulverizada, principalmente pelo avanço das lotações, caracterizando um período de forte concorrência direta entre os modais (bondes, Trens, ônibus, lotações). As lotações acabam por se sobressair e desestruturam o modelo anterior de controle centralizado. Além disso, impulsionam a transição para o modelo rodoviário no transporte coletivo. Este modelo de competição aberta volta a ser reestruturado pelo Estado no período 1958-1967 por meio de medidas que forçaram a concentração do capital, promoveram o surgimento de novas empresas de ônibus e criaram as bases para uma nova organização do setor, entre o final dos anos 1960 até a concessão de 2010. Esta nova organização que se consolida no período está baseada no padrão rodoviário, no estatuto jurídico das permissões e em empresas de ônibus maiores, organizadas num JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO sindicato patronal (Fetranspor) crescentemente mais forte politicamente. A regulação do setor se fundamenta através da concessão de privilégios, numa relação patrimonialista com o Estado: a garantia de rentabilidade, via mecanismos de acumulação por espoliação, e a reserva de espaços de acumulação, através do bloqueio à entrada de novos operadores. E Na segunda metade dos anos 1990, este modelo de organização do setor começa a apresentar sinais de esgotamento. O avanço do transporte informal e o grande aumento do transporte individual levam a quedas constantes na demanda de passageiros para as empresas de ônibus. A perspectiva que prevalece, de corte liberal, diagnostica este momento de crise como resultado da falta de eficiência e competitividade que caracterizariam o setor. O protecionismo estatal impedira o desenvolvimento de um ambiente competitivo entre as empresas de transporte, prejudicando sua modernização. Portanto, uma nova organização deveria ser buscada. As soluções deveriam vir da introdução de elementos de competitividade no setor, passando necessariamente por uma nova relação e redefinição das competências entre o poder público e as empresas para que estas pudessem organizar suas 85 operações de acordo com as circunstâncias dinâmicas do mercado (ou seja, maior capacidade de planejamento e de organização privadas do transporte). Aqui se inserem as mudanças regulatórias do início do século XXI, que têm seu marco na concessão abrangente do sistema de transporte por ônibus implementada em 2010. A partir desta perspectiva, este trabalho destaca as mudanças e continuidades na emergência de um novo ciclo de desenvolvimento do setor. Dentre as continuidades, destacam-se: a) espaços de acumulação reservados – as mesmas empresas que já atuavam no transporte por ônibus na cidade saíram como vencedoras da licitação, que definiu um longo prazo de concessão (20 anos prorrogáveis por mais 20); b) acumulação por espoliação – as formas de espoliação são readaptadas, mas continuam baseadas na garantia estatal, via mecanismos “pervertidos”, de uma rentabilidade superior a que o setor poderia auferir JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO exclusivamente da atividade econômica; c) controle das informações – as empresas de ônibus reforçam o controle sobre as informações do sistema de transporte, restringindo o acesso e a fiscalização da sociedade civil e do poder público em suas diferentes esferas; d) estrutura empresarial – a concentração do capital em poucos grupos empresariais dominantes é outro aspecto que permanece no novo modelo de E operação por consórcios. Já entre as principais tendências de mudança estão: a) o fortalecimento dos grupos dominantes – no sentido de uma maior centralização do poder de decisões e de controle da política e do sistema de transportes municipal, especificamente por meio da Fetranspor; b) a modernização do negócio – o BRT aparece como um novo modo de transporte, mais racionalizado, que permite uma modernização operacional e organizacional para o negócio do transporte por ônibus; c) a expansão para outros meios de transporte – a criação de holdings direcionadas aos negócios relacionados ao transporte (administração de terminais, publicidade, bilhetagem eletrônica) e participações acionárias em outras concessões (Barcas, VLT), indicam uma estratégia de expansão do capital destes grupos, que passam a atuar em uma série de negócios vinculados ao transporte coletivo de passageiros. 86 Assim, procuramos pensar as mudanças do modelo historicamente privado de ônibus no contexto da neoliberalização. Várias formas de capital coexistem no mesmo espaço e se apóiam mutuamente. O velho capital mercantil das empresas de ônibus se articula com as novas formas de acumulação urbana dos capitais nacionais e transnacionais. O que se presencia é uma reconfiguração e modernização conservadora do modelo. A concessão não é a transição em si, mas parte importante deste processo. Por meio da concessão, o Estado cria as bases institucionais e organizacionais a partir das quais as empresas poderão imprimir seu ritmo e dinâmica de modernização e transição. O controle do processo está nas mãos da iniciativa privada e de sua lógica, condicionado pelos imperativos organizacionais e estratégias empresariais. Esta reestruturação estaria ajustando o setor e criando uma nova E JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO organização para as condições de um novo ciclo de acumulação/desenvolvimento. 87 ENTREVISTA 09 Olimpíada Rio 2016: para o benefício de quem? Entrevista com Christopher Gaffney Entrevista concedida a Breno Procópio, assessor de imprensa do INCT Observatório das Metrópoles. Publicada originalmente no Boletim Semanal Observatório das Metrópoles n. 444, 14 jul. 2016. O s megaeventos esportivos mundiais, como a Copa do Mundo FIFA e os Jogos Olímpicos, transformaram-se em um modelo de negócio na era globalizada responsável pela atração de fluxos financeiros, reestruturação de circuitos de circulação e acumulação local. Em entrevista para o INCT Observatório JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO das Metrópoles, o pesquisador estadunidense Christopher Gaffney mostrou como os Jogos Olímpicos Rio 2016 representam mais uma etapa desse modelo formado pela coalizão de interesses entre a classe política, a elite econômica local e os fluxos de capital internacional. Em síntese, um processo com poucos ganhadores e muitos perdedores. E “O legado que o ‘Rio Olímpico’ deixará para a sua população é de endividamento do Estado e da Cidade; falência do sistema de educação e saúde; uma polícia mais militarizada e menos treinada; e muitos casos de violações dos direitos humanos,com mais de 77 mil pessoas removidas de suas casas”, aponta o pesquisador. Christopher Gaffney possui mestrado em geografia na University of Massachusetts at Amherst e doutorado em geografia na University of Texas at Austin. Atualmente leciona na Universidade de Zurich, na Suíça. Ele tem realizado pesquisas no Brasil nos últimos 12 anos, monitorando e avaliando os impactos sociais e urbanos dos megaeventos esportivos no Brasil e no Rio de Janeiro, tratando de questões como segurança pública, transporte, habitação e gentrificação, economia, culturas esportivas e infraestruturas desportivas. 90 Entre 2009-2014, Gaffney manteve o blog Hunting White Elephants, que narrou as provações e agruras de uma cidade contorcendo-se às exigências do espetáculo. Ele também colaborou com a Rede INCT Observatório das Metrópoles, participando do projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO das Olimpíadas 2016”. E Figura 6. Christopher Gaffney (Divulgação). OBSERVATÓRIO. Você tem apontado que os megaeventos esportivos transformaram-se em um novo modelo de negócio na era global. Como ocorre esse processo? CRISTOPHER GAFFNEY. Pensando os megaeventos esportivos como negócio faz toda uma diferença em termos de análise. Normalmente, pensamos os Jogos Olímpicos, por exemplo, como recordes, esporte de autorrendimento, dopings e outras questões; ou seja, um esporte despolitizado. Mas, e quando pensamos o megaevento no seu viés político e nos perguntamos por que é importante para um país ou uma 91 cidade atrair esse tipo de evento? Ou quais coalizões de políticos e capitais locais se arregimentam para atrair o megaevento esportivo? Vemos que há muitos outros interesses por trás. Vemos que há o interesse pelo poder — de capital político para exercer influência local; mas, também há um processo de acumulação econômica de recursos local e globalmente, o que é fundamental para a manutenção de eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Para acumular é necessário ter um mecanismo de acumulação; um padrão de acumulação que deve estar atrelado ao padrão de política econômica global. Então, temos visto o mesmo tipo de resultado em todas as cidades que receberam megaeventos esportivos, como Londres, Vancouver, Seul, Atena, Atlanta; e isso desde a década de 1980. Ou seja, podemos dizer que os Jogos Olímpicos em particular — e também a Copa do Mundo de outra forma — JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO representam um modelo de business globalizado. OBSERVATÓRIO. Você fala que esse modelo de negócio global ocorre a partir de mecanismos como fluxo, circulação e acumulação. Como isso se dá? C.G. Para estimular a acumulação de poder e de dinheiro, é necessário estimular a geração de novos fluxos para uma cidade ou local. Quer dizer, colocar uma cidade E no mapa global é fazer com que os fluxos internacionais financeiros conheçam aquela cidade, entendam seu funcionamento e saibam que terão portas abertas para negócios. Esse processo atrai investimentos e mais fluxo de dinheiro para determinado local – turismo, eventos, negócios e empresas, e por aí vai. Logo, quando uma cidade se candidata para receber os Jogos Olímpicos, isso funciona com um sinal de aviso internacional: “estamos aqui abertos para negócios”, ou seja, a cidade está à venda, seu solo, seus espaços estão à venda ou podem ser alugados. Nesse sentido, os cidadãos também estão à venda, porque também participam desse processo. Esse sinal tem várias direções; é um marco para os fluxos financeiros internacionais, como também para os capitais regionais e locais interessados em participar do negócio. Em seguida, quando a cidade é escolhida para sediar os jogos — como aconteceu com o Rio de Janeiro em 2009 — ocorre um aumento do fluxo 92 financeiro que vem de todas as direções interessados em realizar mais negócios. Porém, para que esses fluxos se tornem em acumulação e, em decorrência, poder, é necessário colocá-los em um circuito de circulação, seja através de informação em redes de fibra óptica, seja em centros de mídia internacional e/ou em grandes estádios capazes de receber os turistas endinheirados do mundo. Outro exemplo de circuitos de circulação são novos sistemas de transporte que reafirmam ou apontam novas centralidades econômicas e políticas no território. Então, esse processo de remanejar o sistema de circulação de uma cidade gera implicações na sua economia política e na forma de acumulação da sua população. Essa é uma questão central no Rio de Janeiro, já que todo o transporte público é privatizado — está nas mãos de empresas privadas. E é notório os casos de corrupção e máfia das empresas de ônibus, como os processos licitatórios não transparentes JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO como o caso da Linha Quatro do metrô. Esse triângulo — que em certo sentido é lefebvriano e dialético — mostra que no centro está o poder. O passo seguinte é estimular os fluxos e, em seguida, direcionar os circuitos de circulação para locais já dimensionados com o arranjo da economia local já preexistente. Ou seja, a coalizão é feita para que os meus ganhadores continuem ganhando. Nesse sentido, os atores locais podem acumular mais ao exercerem poder E no território para gerarem mais fluxos, circulação e acumulação. OBSERVATÓRIO. Podemos dizer que conceitos como global city e cidades criativas, usados pelo Rio de Janeiro para se vender para o mundo ao longo dos últimos anos, fazem parte dessa estratégia de atração de fluxos para a geração de negócios globais? C.G. O Governo do Rio de Janeiro falava que a cidade era a capital de investimentos no Brasil, ou seja, queria dizer que o Rio era o estado mais inserido nos fluxos globais de capital. Nesse sentido, cidade global significa que é a cidade mais conectada com esses fluxos, mais aberta para circulação e acumulação de capital tanto para o investidor estrangeiro como para o local. 93 No contexto local, por exemplo, o objetivo é ampliar novas formas de acumulação de capital pelo estímulo de circulação de fluxos. Nesse caso podemos pensar as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) como a entrada do Estado na favela e a possibilidade também do capital nacional entrar nesses territórios, e, é claro, a possibilidade dos turistas de acessá-las. As UPPs derrubaram as barreiras físicas dessas favelas onde o Estado não entrava, e onde o capital também não. Quem dominava os fluxos e a circulação nas favelas era o traficante ou, nos últimos tempos, as milícias. A UPP representou também essa abertura. É claro que na proposta inicial o Estado iria oferecer serviços sociais, mas isso parece que não aconteceu de fato. OBSERVATÓRIO. Os megaeventos esportivos nem sempre representaram um modelo de negócio global, não é? Como foi a transição para essa modelo? Barcelona JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO 1992 é um marco neste novo processo global de fluxos de acumulação? C.G. Acho que esse processo acontece um pouco antes. Em 1976 em Montreal, por exemplo, ocorreu o endividamento total da cidade, com dívida a ser paga nos próximos 30 anos. Daí ninguém no Canadá quis saber mais daquele modelo de evento esportivo. Nos jogos de 1984 só tinha uma candidata que era Los Angeles; E mas é claro que a cidade norte-americana podia dizer ao COI o modo como ia realizar o megaevento. Daí, os jogos de Los Angeles foram os mais comercializados/ mercantilizados na história dos jogos. Já em 1988 nos jogos de Seul, foram removidas cerca de 200 mil pessoas de suas casas, e as manifestações de estudantes pelos seus direitos foram reprimidas duramente. Aquele período marca a saída da Coreia do Sul da ditadura, então os jogos olímpicos de 1988 foram utilizados como propaganda das empresas coreanas para o resto do mundo — Hyundai, entre outras marcas —, sendo também o nascimento do tigre asiático nessa época. Em 1992 já temos o fim da Guerra Fria. É uma nova época com a experimentação de novos modelos, e a intensificação do processo de globalização, ou seja, não havia mais a luta do capitalismo contra o comunismo. Então, vemos a Espanha e Barcelona se inserindo em uma nova rota do turismo internacional, com a explosão dos novos 94 meios de comunicação. Podemos dizer que Barcelona se tornou o novo modelo de negócio nesse momento da globalização internacional. E o Rio de Janeiro já está interessado nesse modelo desde a década de 1990. Após os Jogos Olímpicos de Barcelona, o prefeito da época, César Maia, contratou os catalães para a construção de um novo plano estratégico para a cidade. Quer dizer, o Rio está buscando este modelo de circuito financeiro e turístico global há mais de 25 anos. Quando os políticos cariocas dizem que é o Rio é a capital do investimento, significa que a cidade está aberta aos fluxos financeiros internacionais. É um modelo de coalizão local para a geração de fluxo e acumulação. A questão é que são poucos os ganhadores. OBSERVATÓRIO. Quando o Rio de Janeiro foi escolhido em 2009 para ser sede JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO dos Jogos Olímpicos de 2016, os atores políticos e a grande imprensa comemoraram a escolha como a possibilidade de retomada da cidade; e, sobretudo, de construção de um legado olímpico para a sua população. Nas vésperas de começar os jogos, o carioca pode comemorar esse legado? C.G. Primeiro temos que recuperar o significado de legado, que pode ser tanto E positivo quanto negativo. É óbvio que os legados para a cidade do Rio de Janeiro são negativos ao extremo: endividamento do Estado e da Cidade; falência do sistema de educação e saúde; trânsito pior do que nunca etc. E são vários os culpados nesse processo. Embora possamos notar no caso dos megaeventos esportivos o chamado “vácuo de responsabilidade”, ou seja, o COI pode dizer que a cidade é responsável pela infraestrutura; e a cidade dizer que o COI demanda certa coisas. Na Copa do Mundo de 2014 foi a mesma coisa — governo federal, governo estadual, cidade-sede ou FIFA, ninguém era responsável por nada, ninguém queria assumir a culpa. É o famoso jogo de empurra. E o resultado são vários “elefantes brancos” andando pelo país todo. Sobre a questão do legado, vemos que para o carioca o que fica é negativo. O cidadão tem menos opção de transporte; ou tem opções afuniladas para determinados 95 locais — como a Barra da Tijuca; e/ou superlotados — temos várias reportagens mostrando a superlotação das linhas de BRTs e os problemas frequentes. A cidade tem agora também uma polícia mais militarizada e equipada, e menos treinada. Podemos ter o contexto no qual um novo policial vende seu armamento no mercado negro — e ganha muito mais do que o seu salário. Isso pode ocorrer. Isso ocorre no Rio. Ou seja, todo o contexto de discurso positivo de legado para a cidade e sua população foi agora perdido. Não pode ser provado e tampouco experimentado. Não é a cidade do dia a dia. E podemos ver o poder público dizer que, por exemplo, o Parque Madureira é um legado, já que não teria sido feito sem o contexto dos megaeventos. Mas por que não? Quer dizer, cada coisa que a Prefeitura do Rio fez nos últimos 8 anos vai dizer que foi por causa dos Jogos Olímpicos, que é resultado dos jogos. Mas isso é uma maquiagem discursiva. Ainda mais se notarmos que tudo que dá errado JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO na cidade o prefeito Eduardo Paes diz que é culpa do Estado do Rio ou do Governo Federal, sempre jogando a culpa para longe dele. Enfim, é um discurso que devia ter sido desconstruído na época da candidatura e/ou indicação do Rio para ser sede dos jogos. Por isso, acho que o debate deve ser politizado ou polemizado, já que os Jogos Olímpicos 2016 devem ser vistos, sim, não E como uma oportunidade de retomada da cidade ou de construção de legado, mas (numa análise mais realista) como um modelo de negócio local e global, uma grande oportunidade, sim, de consolidar o poder da elite carioca pelos próximos 50 anos. Muito dinheiro foi roubado, desviado ou mal aplicado nesse processo. E, ainda assim, a elite econômica carioca conseguiu remanejar e deslocar os circuitos de circulação, impedindo que as pessoas possam circular facilmente pela cidade para perseguir as suas possibilidades de acumulação. E os meios de circulação na cidade, de dinheiro, informação e mobilidade, estão nas mãos privadas de sempre. Então a consolidação desse poder da elite local sobre os circuitos de circulação vai refletir nos processos de acumulação da cidade pelos próximos 50 anos. 96 OBSERVATÓRIO. É por isso que podemos perguntar: Jogos Olímpicos 2016 — para o benefício de quem? C.G. Acho importante perguntar para quem, onde, como e por quanto tempo. É lógico que podemos apontar questões graves como a as remoções de milhares de pessoas; a revitalização da região portuária, que vai beneficiar a especulação imobiliária e os grandes negócios, enquanto promove um processo de gentrificação e expulsão da população local; a construção da Linha Quatro do metrô, que está custando bilhões de reais e foi criticada por muitos engenheiros e especialistas na área; a falta de transparência nos contratos públicos para as obras estruturais — o que faz reafirmar a suspeita de casos de influência e corrupção. A Operação Lava Jato, por exemplo, já está mostrando que as grandes empreiteiras envolvidas com as obras do projeto Porto Maravilha estão imersas em casos de corrupção com a elite JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO política do Estado do Rio de Janeiro. O processo todo mostra, acima de tudo, que quem se beneficiou com os Jogos Olímpicos no Rio é quem já estava na posição de se beneficiar antes. A coalizão nacional formada para a realização dos jogos teve como objetivo, desde o início, captar os recursos públicos para acumulação privada. Enfim, é um jogo de cartas E marcadas — e a população está excluída dele. E, infelizmente, podemos dizer que o Rio de Janeiro vai demorar a ter um contexto econômico tão favorável como foi na última década para receber tantos investimentos — decorrentes de fatores como petróleo, fluxos financeiros etc. Nesse sentido, o que foi feito em termos estruturais nos preparativos para os megaeventos esportivos é algo que seria aportado ao longo de 50 anos, ou seja, esses investimentos deveriam dar condições para a cidade pelas próximas décadas. E a questão estrutural é aquela que dá condições à população da cidade de buscar acumular de maneira mais igualitária. E isso não aconteceu no Rio. OBSERVATÓRIO. A Prefeitura do Rio de Janeiro sempre faz propaganda da “revolução dos transportes” na cidade por conta dos investimentos dos megaeventos 97 esportivos. Como você avalia essa questão? C.G. É uma revolução entre aspas. Pode-se dizer que seja uma revolução revoltante. Só isso. O BRT, por exemplo, não é uma nova tecnologia – é algo já usado há tempos por outras cidades. Além disso, esse tipo de modal abre espaço para o carro, incentiva continuamente o uso do transporte individual, já que uma linha é exclusiva para o ônibus, logo ele se deslocará mais rápido enquanto sobram duas ou três faixas para os carros. Quem está sendo estimulado nesse cálculo? Além disso, o BRT está sendo feito pelas mesmas empresas que já dominam o transporte de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, é manutenção de um mesmo sistema, com os mesmos donos e as mesmas regras. Além do mais, as linhas de BRTs vão todas em direção à Barra da Tijuca, isto é, vê-se a construção de uma nova “centralidade” ou de um polo econômico definido a partir de cima. As linhas JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO de BRTs levam a população pobre para trabalhar na Barra da Tijuca – é isso que as linhas estão estimulando: de Santa Cruz para a Barra, da Zona Norte para a Barra. A população se desloca em ônibus superlotados para fazer trabalhos de mão de obra e/ ou trabalhos precarizados na Barra da Tijuca, como jardineiros, cozinheiros, garçons, serventes, faxineiras etc. E Portanto, quando eu falo sobre a limitação das possibilidades de acumulação da população, ela é bem representada por essa “revolução de transportes”. Áreas com trabalhos formais — como o Centro e a Zona Sul, e o interior da Zona Norte – estão sendo menos estimulados pelos novos modais. O poder público define a área que a população deve chegar para trabalhar. Além do mais, o sistema de transporte do Rio é muito falho. Os pontos de ônibus, por exemplo, não têm itinerário e mapas. Uma pessoa que não conhece a cidade, não consegue pegar um ônibus com facilidade. E houve ainda um remanejamento das linhas de ônibus. Com qual interesse? Racionalização das linhas de ônibus é uma maneira autoritária de remanejar as circulações na cidade. É uma forma de limitar as possibilidades de acumulação (busca por trabalho) e também de lazer. A população da Zona Norte, por exemplo, está mais limitada para ir à praia na Zona Sul. E agora 98 escutei que o Estado do Rio quer fazer cortes do Bilhete Único. Essa é a revolução que temos. OBSERVATÓRIO. Você monitorou durante os preparativos para a Copa do Mundo 2014 as obras e os incentivos ao esporte nas cidades-sedes brasileiras. O que você diz sobre o Rio Olímpico em tempos de estímulo ao esporte? O que a cidade do Rio fez em termos de investimento ao esporte? E o que a cidade deixará como legado esportivo para a sua população? C.G. Tem vários tipos de cidadãos no Rio de Janeiro. As pessoas que moram na Zona Norte não praticam esporte, porque não tem espaços para a prática — praças, quadras públicas etc. O cidadão que habita as áreas periféricas gasta ainda em média duas a três horas no ônibus para voltar para casa; quando chega, já está esgotado e JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO sem energia para o lazer e a prática esportiva. O chamado “Rio esportivo e do lazer” se concentra no Centro e na orla da Zona Sul, indo até a Barra da Tijuca. Nessas regiões, as pessoas praticam esporte ao ar livre, fazem uso das quadras do Aterro do Flamengo e têm acesso a modalidades esportivas diversas. Nesse sentido, o acesso à prática do esporte no Rio de Janeiro é E algo completamente desigual e segregado. E podemos dizer que nos últimos anos até piorou, já que os remanejamentos das linhas de ônibus e a piora do trânsito dificultou a chegada das pessoas à orla da Zona Sul e às praias. Ademais, vemos que há uma carência de equipamentos esportivos descentralizados — nos bairros da Zona Norte e Oeste, nas escolas etc. Existe, ainda, a oferta desigual. No Rio existem quatro quadras públicas para a prática do tênis para 6 milhões de pessoas. E para os Jogos Olímpicos, a Prefeitura construiu um Centro Internacional de Tênis, no valor de 200 milhões de reais, na Barra da Tijuca — local repleto de condomínios fechados que possuem suas quadras privativas de tênis. Então, é um modelo de oferta e acesso que se espalha no Rio de Janeiro e também no Brasil. Uma oferta para a prática do esporte que atende a quem 99 já tem condições de acesso. É claro que, no contexto dos jogos, o Rio investiu no esporte de autorrendimento — que é um negócio internacional. Se o Brasil vai ganhar ou não ganhar medalhas, isso não importa, já que o país não tem tradição nessas competições — e não tem tradição porque não tem investimento. Outro debate importante é o que liga o esporte à saúde, porque a cada 1 real investido em esporte, o poder público economiza 3 reais em saúde. É a oferta de lazer que gera saúde. E isso tem a ver com planejamento urbano e política pública. Acho que o Rio de Janeiro segue na contramão dessa noção, com uma política do espaço urbano extremamente mercantilizadora e de exploração do valor de uso. Além disso, vejo uma certa perversidade em investimentos de bilhões e bilhões de reais em equipamentos esportivos de autorrendimento, enquanto o estádio do JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Maracanã, por exemplo, símbolo da cultura carioca, perdeu suas características, tendo sido transformado para atender um conceito internacional de cidade global para o consumo. E OBSERVATÓRIO. Você tem pesquisado e refletido sobre esse processo de gentrificação do esporte. C.G. Acho que o estádio de futebol, numa cultura como a brasileira, é um reflexo da cidade e de seu povo, socialmente e culturalmente. O Maracanã, antes da chegada do circuito de investimentos dos megaeventos esportivos, refletia muito bem a cidade do Rio de Janeiro e seu povo: era aberto, decadente, caindo aos pedaços, mas era vivo, diverso. Havia violência, mas também tinha uma cultura bastante particular, e era um lugar que dava o tom do funcionamento da cultura carioca. O Maracanã está localizado perto do centro, recebia pessoas de todas as áreas da cidade. Porém, nos últimos 15 anos, a população foi expulsa de lá. O lugar foi transformado e gentrificado para ser o símbolo de um novo Brasil que queria se expor ao mundo, apto a receber negócios e a ser global. O Maracanã foi privatizado uma vez; e agora 100 deve ser privatizado de novo. Houve uma bagunça institucional envolvendo Estado e Prefeitura do Rio. O estádio foi usado com moeda política também. Enfim, o Maracanã foi útil para os políticos e fantástico para a elite carioca, que tem condições de pagar 100 reais para assistir a um jogo de futebol com 8 mil espectadores. Essa elite acha interessante essas condições, porque tem mais conforto e, portanto, mais adequado aos padrões de comodidade de suas famílias. As classes alta e média cariocas gostam dessa ideia. Mas elas não são a maioria da população. OBSERVATÓRIO. Para finalizar a conversa, gostaria que você comentasse o papel de resistência dos movimentos populares no contexto dos megaeventos esportivos no Rio de Janeiro. Qual a relevância dessas ações? C.G. Se houve algo realmente positivo nesses últimos 10 anos no Brasil e no Rio JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO de Janeiro que marcam os preparativos para os megaeventos esportivos, acho que foram os movimentos de resistência. Especialmente os Comitês Populares e o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, e mais os outros movimentos, que resistiram e lutaram em defesa dos direitos humanos, do esporte mais democrático, da transparência do uso do dinheiro público. E esses movimentos lutaram contra forças enormes, como os E governos, as grandes empresas e as corporações. Creio que um dos resultados desses movimentos de resistência foi o de mudar a opinião internacional sobre os megaeventos esportivos no Brasil. Vemos agora várias cidades ao redor do mundo e suas populações compreendendo o processo que se dá aqui; isto é, estrangeiros que estão acompanhando desde 2013 as lutas dos comitês populares e entendendo as graves violações de direitos que ocorreram aqui — como as remoções de milhares de pessoas de suas casas. Parte da comunidade internacional está entendendo que a realização dos megaeventos esportivos se dá sempre à custa (e nas costas) das populações locais. A mensagem que a resistência brasileira passou foi essa. E vejo que a realização dos Jogos Olímpicos 2016 representou um momento central para a história dos movimentos de resistência brasileiro, movimentos da sociedade civil engajados no 101 debate sobre o desenvolvimento social e pela democracia brasileira. A resistência aqui será levada como modelo para outros grupos nos próximos jogos. OBSERVATÓRIO. O que o Rio vai deixar de olímpico para a sua população? C.G. Olimpíadas sempre têm vencedores e perdedores. Nos jogos sempre são três vencedores em cada modalidade. No Rio de Janeiro, sabemos exatamente quem são: os grandes empreiteiros de construção civil — parte deles envolvida com a Operação Lava Jato; a especulação imobiliária — que ganhou muito nos últimos anos; e a classe política e elite local — que conseguiu construir uma rede de poder que vai durar pelos próximos 50 anos. Nos jogos, quem fica em quarto ou em quinto lugar não é lembrado. Não importa. O espírito olímpico é isso: vencedores e perdedores. E E JOGOS OLÍMPICOS 2016 A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO a população carioca faz parte dos que estão sendo esquecidos. 102 RESISTÊNCIA POPULAR 10 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro O Dossiê Megaeventos e Direitos Humanos no Rio de Janeiro está disponível para download em: Versão português: <https://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_issuu_01> Versão inglês: <https://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_eng_issuu> A coalização de forças políticas somada aos interesses de grandes empreiteiras acelerou a “limpeza social” de áreas valorizadas da cidade, e de áreas periféricas, convertidas em novas frentes lucrativas para empreendimentos de classe média e alta renda. A atualização dos dados reforça o que já vinha se demonstrando nos Dossiês anteriores. Trata-se de uma política de relocalização dos pobres na cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de negócios, acompanhado de ações violentas e ilegais. | Moradia, p.19. O Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro lançou a quarta versão do Dossiê Megaeventos e Direitos Humanos no Rio de Janeiro. O dossiê é o documento mais completo da luta dos movimentos sociais, organizações populares, organizações não governamentais e sociedade civil contra as violações de direitos humanos e os impactos das obras de preparação da capital fluminense para a realização dos megaeventos esportivos. Esta versão do Dossiê traz novas e atualizadas informações, abrangendo as seguintes temáticas: moradia, mobilidade, trabalho, esportes, meio ambiente, segurança pública, gênero, criança e adolescente, e informações e orçamento. Além disto, são registradas as ações de resistência do Comitê Popular e as propostas alternativas para um projeto de cidade includente, com democracia e justiça social, e JOGOS OLÍMPICOS acontecimentos na cidade do Rio de Janeiro. De forma especial, merecem ser destacadas quatro questões trazidas por este Dossiê, que se contrapõem ao discurso oficial do Comitê Olímpico Internacional, dos Governos federal e estadual e, principalmente, da Prefeitura do Rio de Janeiro e 105 E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS boxes contendo diversos casos de violações que ilustram a gravidade dos revelam o sentido das transformações em curso na cidade. Em primeiro lugar, diferentemente do discurso da Prefeitura, que tenta negar e mascarar as causas das remoções que estão sendo promovidas, este relatório demonstra que as remoções vinculadas à Olimpíada prosseguem atingindo ou ameaçando milhares de famílias, por meio da coação e da violência institucional, violando gravemente os direitos humanos, em especial o direito à moradia. Em segundo lugar, destaca-se o capítulo de esportes, construído com base em visitas às instalações esportivas e conversas com atletas, usuários e ativistas. Nesta seção, fica evidenciada a ausência de um legado esportivo que beneficie o conjunto da cidade do Rio de Janeiro, democratizando o acesso da população aos equipamentos esportivos. Pelo contrário, legitimado pelo discurso da Olimpíada, o que se verifica é um conjunto de violações associadas à privatização do espaço público, ao desrespeito à legislação ambiental, e ao fechamento de equipamentos esportivos utilizados por atletas e pela população. Em terceiro lugar, observa-se a crescente militarização da cidade, no âmbito de uma política de segurança belicista e racista, que atinge especialmente os jovens negros moradores de favelas e periferias, que são diariamente assassinados pela polícia. Mas todos e todas são atingidos por esta política que é baseada no medo, por meio da criação de muros visíveis e invisíveis que promovem a segregação socioespacial da cidade, e pela crescente criminalização dos movimentos sociais. Por fim, vale destacar a violação ao direito à informação e à transparência da gestão pública. Omitindo informações, a Prefeitura difunde a ideia de que os gastos públicos são inferiores aos gastos privados na preparação da Olimpíada 2016. Este relatório desmascara a falácia desta informação, e demonstra que os custos da contrapartida pública bem superior aos gastos privados. Mais do que isso, por meio E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS JOGOS OLÍMPICOS Olimpíada, além de serem superiores aos divulgados oficialmente, têm uma das parcerias púbico-privadas e da concentração de contratos com algumas grandes empreiteiras, pode-se dizer que a Olimpíada expressa a transferência de recursos públicos para o setor privado, subordinando o interesse público à lógica do mercado. 106 Infelizmente, no entanto, os impactos não se resumem a estes destaques, mas envolvem o conjunto de temas deste Dossiê, envolvendo um projeto de mobilidade subordinado aos interesses imobiliários, à repressão ao trabalho de camelôs e prostitutas, e à violação dos direitos de crianças e adolescentes. Desde o momento em que foi anunciada a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016, a grande imprensa, políticos e diversos analistas têm ressaltado as oportunidades provenientes da ampliação dos investimentos na cidade, destacando as possibilidades de enfrentamento dos grandes problemas, como o da mobilidade urbana e o da recuperação de espaços degradados para a habitação, comércio e turismo, como no caso da região portuária. Entretanto, a população da cidade já se deu conta de que o projeto Rio Cidade Olímpica, que agrega as obras para a Copa 2014, para os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, e grandes projetos como o Porto Maravilha, não trará os benefícios prometidos. As remoções são a ponta de um projeto de transformação profunda na dinâmica urbana do Rio de Janeiro, envolvendo, de um lado, novos processos de elitização e mercantilização da cidade, e de outro, novos padrões de relação entre o Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de exceção. As violações dos direitos, em especial dos mais pobres, não começou com os megaeventos esportivos, mas como demostrado, se agravou. As intervenções na cidade por meio de grandes projetos urbanos foram acelereradas com as leis de exceção e com o direcionamento de volumosos recursos públicos, aumentando a escala e alcance desse modelo. JOGOS OLÍMPICOS possível afirmar, com decepção, que a Olimpíada Rio 2016 são os jogos da exclusão! O Dossiê é também um convite aos movimentos populares, sindicatos, organizações da sociedade civil, defensores dos direitos humanos, cidadãos e cidadãs comprometidos com a justiça social e ambiental a se somarem ao Comitê 107 E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Desta forma, ao olhar o processo de preparação da cidade para a Olimpíada é Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro na luta por um outro projeto de cidade. Um projeto resultante do debate público e democrático, com a garantia de permanência de todas as comunidades e bairros populares situados nas áreas de intervenção em curso. Um projeto que respeite o direito ao trabalho, de modo que os trabalhadores não sejam punidos por comercializarem no espaço público. Um projeto em que o meio ambiente seja efetivamente preservado. E, principalmente, que a cidadania esteja acima dos interesses de grandes grupos econômicos. Sobre o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro O Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro é uma articulação que reúne organizações populares, sindicais, organizações não governamentais, pesquisadores, estudantes, atingidos pelas intervenções da Copa e das Olimpíadas e pessoas diversas comprometidas com a luta pela justiça social e pelo direito à cidade. A missão do Comitê é mobilizar uma ampla rede de organizações sociais, movimentos populares, sindicatos, órgãos de defesa de direitos e controle do orçamento público, universidade, com protagonismo das comunidades direta e indiretamente afetadas, para monitorar as intervenções públicas e privadas relacionadas aos megaeventos esportivos no Rio de Janeiro. O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro atua desde 2010, promovendo reuniões e debates públicos, produzindo documentos e dossiês de denúncias sobre as violações de direitos humanos, organizando atos públicos e disseminando informações, tendo como perspectiva a construção de uma visão crítica sobre os megaeventos esportivos. Rio 2016 e o Mapa da Exclusão O Comitê Popular produziu também o “Mapa da Exclusão — Rio 2016” com o verdadeiro legado das Olimpíadas no Rio de Janeiro, reunindo informações sobre repletas de irregularidades. O mapa aponta, por exemplo, todos os locais onde E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS JOGOS OLÍMPICOS as comunidades removidas, as favelas ocupadas, os crimes ambientais e as obras ocorreram remoções na cidade desde 2009 — ano em que o Rio foi escolhido como cidade-sede dos jogos —, resultando em um processo de retirada de aproximadamente 77 mil pessoas de suas casas. 108 Figura 7. Mapa da Exclusão. Disponível em: <https://goo.gl/YXMxJh>. O “mapa da exclusão” mostra também o impacto ambiental dos jogos, denunciando que nenhuma meta de despoluição foi cumprida; aponta o processo de privatização dos equipamentos esportivos; a falta de transparência das grandes obras de intervenções urbanas, como o Porto Maravilha, no qual as empresas do consórcio estão envolvidas em denúncias na operação Lava Jato; e mais as violações ao trabalho, com a perseguição aos trabalhadores tradicionais de rua — os camelôs — e a morte de 11 pessoas durante as obras dos Jogos desde 2013. O objetivo do “Mapa da Exclusão — Rio 2016” é deixar claro o alto custo desse megaevento esportivo para a cidade, não apenas financeiro, mas principalmente social. O legado que ficará para a população carioca é de uma cidade segregada e JOGOS OLÍMPICOS 109 E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS militarizada, marcada por uma série de violações de direitos humanos. www.observatoriodasmetropoles.net