Revista Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011
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Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 1 SCRIPTA UNIANDRADE Volume 9 Número 1 Jan. - Jun. 2011 ISSN 1679-5520 Publicação Semestral da Pós-Graduação em Letras UNIANDRADE Reitor: Prof. José Campos de Andrade Vice-Reitora: Prof. Maria Campos de Andrade Pró-Reitora Financeira: Prof. Lázara Campos de Andrade Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão: Prof. M.Sc. José Campos de Andrade Filho Pró-Reitora de Planejamento: Prof. Alice Campos de Andrade Lima Pró-Reitora de Graduação: Prof. M.Sc. Mari Elen Campos de Andrade Pró-Reitor Administrativo: Prof. M.Sc. Anderson José Campos de Andrade Editoras: Brunilda T. Reichmann e Anna Stegh Camati CORPO EDITORIAL Anna Stegh Camati, Brunilda T. Reichmann Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo CONSELHO CONSULTIVO Prof. Dra. Maria Sílvia Betti (USP), Prof. Dra. Anelise Corseuil (UFSC), Prof. Dr. Carlos Dahglian (UNESP), Prof. Dra. Laura Izarra (USP), Prof. Dra. Clarissa Menezes Jordão (UFPR), Prof. Dra. Munira Mutran (USP), Prof. Dr. Miguel Sanches Neto (UEPG), Prof. Dra. Thaïs Flores Nogueira Diniz (UFMG), Prof. Dra. Beatriz Kopschitz Xavier (USP), Prof. Dr. Graham Huggan (Leeds University), Prof. Dra. Solange Ribeiro de Oliveira (UFMG), Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Prof. Dra. Aimara da Cunha Resende (UFMG), Prof. Dra. Célia Arns de Miranda (UFPR), Prof. Dra. Simone Regina Dias (UNIVALI), Prof. Dra. Claus Clüver (Indiana University), Prof. Dra. Helena Bonito Couto Pereira (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Projeto gráfico, capa e diagramação eletrônica: Brunilda T. Reichmann Revisão: Anna S. Camati, Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo, Brunilda T. Reichmann Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 2 Scripta Uniandrade / Brunilda T. Reichmann / Anna Stegh Camati – v. 9 - n. 1 – jan.-jun. 2011 Curitiba: UNIANDRADE, 2011 Publicação semestral ISSN 1679-5520 1. Linguística, Letras e Artes – Periódicos I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE – Programa de Pós-Graduação em Letras Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 3 SUMÁRIO Apresentação 06 DOSSIÊ TEMÁTICO: INTERTEXTOS / INTERARTES / INTERMÍDIAS I Literaturas, artes e mídias: que se entende por arte, hoje? 10 Solange Ribeiro de Oliveira Hipertextualidade x hipermidialidade: a viagem de "O balanço" 28 Thaïs Flores Nogueira Diniz A pele, o corpo, o corte: suporte e temática para literatura, cinema e outras mídias 45 Maria Angélica Amâncio Santos Referências intermidiáticas em Invertendo os papéis, de David Lodge 57 André Soares Vieira O sensível cinemático: notas sobre eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato 68 João Guilherme Dayrell Música e poesia em Mário de Andrade: ainda o caso Paulicéia desvairada 81 Flávio Barbeitas Diálogos interartes na Pauliceia: melopoética e polifonia cultural em Mário de Andrade 96 André Luís Gomes Gravuras prolépticas: um diálogo midiático entre o prólogo e a diegese do filme Os outros 120 Brunilda T. Reichmnann O salto de Alice em transposição intersemiótica e intertextual: das ilustrações de John Tenniel à releitura de Margaret Atwood 142 Sigrid Renaux Texto, performance e filme: uma leitura intermidiática Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 4 de Trono de sangue/Macbeth, de Antunes Filho Da pintura ao texto teatral: discursos intermidiáticos em Quando despertamos de entre os mortos, de Henrik Ibsen 167 Liana de Camargo Leão Mail Marques de Azevedo 187 Anna Stegh Camati Dossiês temáticos das próximas edições 200 Normas para apresentação de trabalhos 201 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 5 Apresentação Este número da Scripta Uniandrade inaugura uma nova fase da revista: de anual passa a ser semestral, com publicação em julho e em dezembro de cada ano. Oferecemos, portanto, aos nossos colaboradores e leitores a primeira da série de revistas semestrais a serem publicadas. O dossiê da Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011, Intertextos / Interartes / Intermídias I, reune contribuições de especialistas que se destacam nessas áreas de saber, assim como artigos de pesquisadores que, fascinados pela hibridização de linguagens em produções plurimidiáticas, voltam-se para esse campo de estudos. O artigo de abertura da revista, intitulado “Literaturas, artes e mídias: o que se entende por arte hoje?”, de Solange Ribeiro de Oliveira, introduz a polêmica sobre a dificuldade de se conceituar arte, sobretudo na contemporaneidade, bem como o embate subjacente ao uso da expressão “Estudos de Intermidialidade” em substituição a “Estudos Interartes”. De acordo com a autora, a nova nomenclatura contorna o problema da definição: pode-se questionar o status artístico de certas manifestações culturais da pós-modernidade, mas não o fato de serem produtos midiáticos, o que comprova o acerto do termo “intermidialidade” para o estudo das relações entre artes e mídias. Nesse sentido, o artigo discute a distinção entre objeto artístico e não-artístico, segundo a proposta do crítico e filósofo Arthur C. Danto. O artigo seguinte, intitulado “Hipertextualidade x hipermidialidade: a viagem de ‘O balanço’”, de Thaïs Flores Nogueira Diniz, amplia o conceito de hipertexto, termo cunhado por Gérard Genette, e se propõe a analisar a cadeia semiótica que une obras pictóricas, literárias e cinematográficas dos séculos XVIII, XIX e XX a uma instalação/escultura contemporânea. Trata-se de um processo de variação sobre um mesmo tema que a autora define como transm(e/i)dialização. O terceiro artigo, que versa sobre intermidialidade em sentido amplo, intitulado “A pele, o corpo, o corte: suporte e temática para literatura, cinema e outras mídias”, de Maria Angélica Amâncio Santos, reflete sobre as diferentes óticas e entrecruzamentos de leitura do corpo e da pele como suporte e tema para as várias mídias, considerando-se desde tatuagens, pergaminhos até obras que levam essa temática ao extremo, como castigos e “dermografias”. O corpus do artigo inclui essencialmente o filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway, e o conto “Les suaires de Véronique”, de Michel Tournier, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 6 além de incluir breves considerações críticas sobre o trabalho da artista plástica Nicola Constantino e os textos A alma encantadora das ruas, de João do Rio, e Na colônia penal, de Franz Kafka. Quatro ensaios discutem criações de textos intermidiáticas na interface dos múltiplos meios de construtividade. O artigo de André Soares Vieira, intitulado “Referências intermidiáticas em Invertendo os papéis, de David Lodge”, explora o entrecruzamento de mídias em um texto, como o emprego de técnicas do cinema e de outros gêneros literários (romance epistolar) e extraliterários (notícias de jornal, panfletos e manifestos). Segundo o autor, o emprego das mais diferentes técnicas oriundas da cultura midiática, aliado ao uso de gêneros já consagrados pela tradição, faz do romance de David Lodge um grande mosaico de referências intermidiáticas. O trabalho objetiva, portanto, mapear o modo como essas referências implicam um cruzamento de fronteiras genéricas e discursivas que descentram o próprio fazer artístico ao permitirem a inserção de ligações e arranjos inesperados entre componentes narrativos distintos. O segundo artigo, de João Guilherme Dayrell, intitulado “O sensível cinemático: notas sobre eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato”, busca delimitar, no romance de Ruffato, o que resta da mediação pelo cinema, das imagens que compõem o sensível contemporâneo. Dayrell atenta para o contexto no qual se insere o referido texto – a cidade de São Paulo no ano de 2000 – para a descrição da vida abjeta e para a composição do texto em 70 fragmentos, que se organizam como um rizoma e que intercalam a abordagem de uma situação social, enunciados recortados de jornal e variados simulacros. O ensaio de Flávio Barbeitas, intitulado “Música e poesia em Mário de Andrade: ainda o caso da Pauliceia desvairada”, demonstra como a música e a noção de musicalidade têm lugar de destaque na teorização poética de Mário de Andrade. Segundo o autor, estudos aprofundados e mais especificamente voltados para a relação entre música e palavra tonaram-se cada vez mais raros na apreciação crítica da obra de Mário de Andrade que, quase sempre, se detêm na descrição das ideias deste autor. Este texto procura ocupar aquela lacuna, buscando, por meio de exemplos colhidos na Paulicéia desvairada, iluminar a poesia de Mário de Andrade com um foco eminentemente musical. O artigo, escrito por Beatriz Lopes e André Luís Gomes, intitulado “Diálogos interartes na Pauliceia: melopoética e polifonia cultural em Mário de Andrade”, voltase, também, para a obra de Mário de Andrade. O estudo objetiva mapear as interações culturais entre a literatura e outras linguagens artísticas, a partir de textos críticos, anotações e crônicas jornalísticas de Mário de Andrade Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 7 que se fundaram não só nas relações entre Cultura e Espaço, ou seja, de sua íntima interação com a cidade de São Paulo e com o processo de modernização no início do século, mas também em sua “escuta aberta” singular e crítica das diversas manifestações artísticas da época, em particular, da música popular brasileira, em suas pesquisas. A interrelação entre narrativas e gravuras é abordada pelos artigos de Brunilda T. Reichmann e Sigrid Renaux. O primeiro, intitulado “Gravuras prolépticas: um diálogo midiático entre o prólogo e a diegese do filme Os outros”, estabelece um diálogo midiático entre a abertura de Os outros (2001), de Alejandro Amenábar, com o desenrolar dos acontecimentos no filme. Segundo a autora, Os outros recria e subverte as características das “histórias de fantasmas”, enquanto capta a ressonância do filme Os inocentes (1961), de Jack Clayton, adaptação da monumental novela A volta do parafuso (1898), de Henry James. Este artigo limita-se, no entanto, a analisar as duas cenas e as oito gravuras da abertura do filme de Amenábar (sobre as quais são projetados os créditos) que prenunciam o desenvolvimento do filme, dialogam com a atmosfera e a diegese e estabelecem uma relação especular com as mesmas. O segundo artigo, de Sigrid Renaux, intitulado “O salto de Alice em transposição intersemiótica e intertextual: das ilustrações de John Tenniel à releitura de Margaret Atwood”, a partir das abordagens teóricas de Clüver, Moser e Genette, apresenta uma leitura intersemiótica do salto de Alice, ao passar do mundo da realidade para dentro do mundo do espelho, como descrito por Carroll e ilustrado por John Tenniel. O artigo também discute a releitura que Margaret Atwood faz do mesmo episódio, em Negotiating with the Dead (2002). Segundo a autora, a contraposição dessas duas artes e visões de mundo confirma a inesgotável politextualidade do texto-fonte e, como o ato de interpretação e reação crítica, é moldado através das respectivas convenções de recepção vigentes. Os dois últimos ensaios tratam de processos intermidiáticos em uma produção cênica e um texto teatral, respectivamente. Liana de Camargo Leão e Mail Marques Azevedo, em “Texto, performance e filme: uma leitura intermidiática de Trono de sangue/Macbeth, de Antunes Filho”, focalizam as relações intermidiáticas entre texto, performance e filme na produção Trono de sangue/Macbeth, levada à cena pelo Centro de Pesquisa Teatral, em 1993, com direção de Antunes Filho. A referência óbvia ao texto-fonte e ao celebrado filme de Akira Kurosawa (e, ulteriormente, ao teatro Noh japonês) sugere a abordagem analítica: examinar o produto de mídias diferentes, com base em determinado trabalho individual, de acordo Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 8 com seus meios específicos (RAJEWSKI, 2006). Estabelecem-se paralelismos entre os três tipos de mídia quanto a técnicas de ambientação (cenários, figurinos e máscaras) e de performance. As autoras enfatizam o estreito relacionamento de Antunes Filho com o cinema e, em particular, com a obra de Kurosawa, fruto de sua admiração pela cultura japonesa. O artigo de Anna Stegh Camati, intitulado “Da pintura ao texto teatral: discursos intermidiáticos em Quando despertarmos de entre os mortos, de Henrik Ibsen”, discute a apropriação, do dramaturgo norueguês, de imagens simbólicas do quadro Esfinge – Três estágios da mulher (1894), de Edvard Munch, para explorar a natureza contraditória das personagens e a dinâmica das relações afetivas entre elas em sua última peça. Segundo a autora, nesse texto, de cunho autobiográfico, Ibsen cria um alter ego, o escultor Arnold Rubek, com o intuito de lançar luz sobre a sua própria procura por linguagens para a representação do novo sujeito da modernidade que emerge no limiar do século XX. Camati explicita como a linguagem visual assume funções estético-temáticas e torna-se o impulso gerador da criação artística. Neste número da revista, procurou-se privilegiar textos representativos sobre os fenômenos da intertextualidade, interartialidade e intermidialidade, observados sob diversas óticas e abordagens, para se repensar os estudos literários na contemporaneidade. No número 2 do volume 9, outros artigos sobre essas áreas de estudo serão publicados. Nesse sentido, espera-se que o espaço de discussão da Scripta Uniandrade estabeleça um frutífero diálogo entre artes, mídias e múltiplos saberes. As editoras Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 9 LITERATURAS, ARTES E MÍDIAS: QUE SE ENTENDE POR ARTE, HOJE? Solange Ribeiro de Oliveira solanger1@uol.com.br Resumo: O texto comenta a dificuldade de se conceituar arte, sobretudo no período contemporâneo, bem como o uso da expressão “Estudos de Intermidialidade” em substituição a “Estudos Interartes”. A nova nomenclatura contorna o problema da definição: pode-se questionar o status artístico de certos produtos culturais da pósmodernidade, mas não o fato de que utilizam mídias, o que demonstra a conveniência do termo “intermidialidade” para o estudo das relações entre artes e mídias. No mesmo sentido, o artigo discute a distinção entre objeto artístico e não-artístico, segundo a proposta do crítico e filósofo Arthur C. Danto. Chegase, finalmente, à sugestão do poeta/ crítico Ferreira Gullar: podemos estar testemunhando o nascimento de uma nova arte que é o cinema. Abstract: The text comments on the difficulty of defining art – especially in the contemporary period – which underlies the substitution of the expression “Studies of Intermediality” for “Interart Studies”. The new nomenclature evades the problem of definition: one can, in fact, question the artistic status of certain postmodern cultural products, but never that they involve the use of media, hence the suitability of the word “intermediality” for the study of the relations between arts and media. In the same line, the paper discusses the distinction between artistic and non-artistic objects, as proposed by the critic and philosopher Arthur C. Danto, and ends up with the suggestion of the Brazilian poet/critic Ferreira Gullar: we may be witnessing the birth of a new art, the cinema. Palavras-chave: Conceito de arte. Estudos Interartes. Estudos de Intermidialidade. Key words: The concept of art. Interart Studies. Studies of Intermediality. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 10 apenas o mesmo ovo de sempre choca o mesmo novo. Paulo Leminski No período contemporâneo a simples enunciação da palavra “arte” representa um desafio, dada a crescente dificuldade em conceituar esse termo. Como decorrência, um número apreciável de teóricos, entre os quais Claus Clüver (1997, p. 37-55), vem adotando a expressão “Estudos de Intermidialidade”, ou “Estudos Intermidiáticos”. Criada para substituir o nome atribuído à área de pesquisa antes denominada “Estudos Interartes”, ou “Literatura e as outras artes”, a nova nomenclatura contorna o problema da definição, substituindo a palavra “arte” pelo termo incontroverso, “mídia”. Isso porque o estudo da intermidialidade privilegia a análise de uma vasta produção – sobretudo a realizada a partir dos anos 1960 – rotineiramente rotulada como “arte”, mas que alguns críticos hesitam em aceitar como tal. Nesse contexto, escreve Clüver (2001, p. 338-339): Enquanto se considerar que a distinção entre “arte” e “não arte” ainda tem alguma função, o melhor será definir uma “obra de arte” como um texto, composto de acordo com um determinado sistema sígnico, que a comunidade interpretativa autoriza ou nos obriga a ler como uma “obra de arte”. Esta concepção é uma aplicação mais ampla da consciência de que o estatuto de “literário” não é inerente a certos textos ou classes de textos verbais, mas lhes é conferido pelos seus leitores. Uma das peças de arte mais discutidas no nosso século é o urinol, datado, “assinado” (com o nome do fabricante) e exibido por Marcel Duchamp em 1917 como Fountain. Depois da fase inicial de ridicularização e rejeição, a discussão em torno do objeto tem sido dominada pela questão do que realmente faz dela uma obra de arte: o próprio objecto exibido, (...) o gesto de seleccionar, assinar e exibir o objecto numa mostra de arte, ou a proposta e aceitação do próprio conceito de “ready-made”. Um discurso sobre (as) arte(s) só pode ser viável e vital se for capaz de acomodar, também, fenômenos contemporâneos. A existência de “textos achados”, oferecidos e aceites como “arte” demonstra como se tornou difícil definir o objecto de tal discurso. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 11 Como se vê, tudo gira em torno da conceituação de arte, hoje mais que nunca problemática1. Nesse sentido, a propósito da produção atual, lembro os comentários pouco lisonjeiros do crítico Jorge Coli, sobre a Bienal de Veneza de 2005: A arte, tal como é concebida hoje, depende das instituições e de um discurso autorizado que, num passe de mágica, podem atribuir a qualquer objeto, gesto, ou mesmo ao nada, a categoria artística. É verdade que, num museu ou numa galeria, tudo isso começa a emitir novos sentidos. A caixa de sabão em pó, a roda de bicicleta, adquirem então poderes misteriosos... (COLI, 2005, p. 4) As palavras de Coli poderiam aplicar-se a um sem número de criações contemporâneas. Elas deixam perplexa boa parte do público, especialmente os amantes da arte criada até o Modernismo. Não são poucos os partidários da opinião de Coli, inclusive o crítico Robert Hughes, para quem a arte existe primordialmente para deliciar os olhos e o espírito. Não seria fácil reconhecer esses objetivos em certos objetos apresentados como artísticos, exemplificados, por exemplo, pela arte abjeta, pela body art, ou por determinadas performances (OLIVEIRA, 2006, p. 143-158). Por mais que seus cultores lhes atribuam funções retóricas relevantes – geralmente a denúncia a aspectos indesejáveis da cultura contemporânea – inúmeras criações atuais continuam desafiando o gosto tradicional. Na literatura, saltam à mente exemplos da arte abjeta, ou da produção voltada para a exploração da dor e da violência. Lembro aqui a poesia de Alexandre O’Neill, autor português, e do brasileiro Glauco Mattoso, auto-intitulado “podólatra”, memorável, entre outras razões, pelo culto à sujeira. Ocorrem-me também títulos sintomáticos, como Monturo, revista paulista na qual colaboram os poetas Tarso de Melo, Kleber Montovani e Fabiano Calixto. Na literatura dramática de expressão inglesa, lembro a produção de Edward Bond, especialmente sua peça Saved, que inclui uma cena de apedrejamento de um bebê. Nas artes visuais mostra-se ainda mais fácil encontrar exemplos de criações duvidosas, às vezes banais. Parece-me ser esse o caso de Little Lights (Luzinhas), de Jac Leirner, artista brasileiro, com obras no MoMa, Guggenheim, Hishorn e Walker Art Center. Exibida na Bienal de 2006, a instalação constava de 4 quilômetros de fio de cobre para acender uma única lâmpada de 100 watts. Não faltam, por outro lado, criações bizarras, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 12 como El cardenal demuestra que es simplemente humano (2000), de Andrés Serrano, representação de um cardeal em pose grotesca, com o manto levantado, em pleno ato de defecar. Lembro ainda certos happenings e performances violentos, envolvendo corpos reais, vivos, visando flagrar ou simbolizar o traumático. Nessa linha, em uma de suas performances, o australiano Stelarc exibiu o próprio corpo nu, suspenso, mantido no ar apenas por enormes anzóis enfiados na pele e atados a fios amarrados no teto de uma galeria de arte. Indubitavelmente, tais obras apresentam aspectos traumatizantes, sem, pelos critérios tradicionais, incluir atributos que poderiam justificá-las como arte: transcender o objeto imediato, atingir o âmago de nossa sensibilidade e conduzir a um conhecimento mais profundo de nossa natureza. Para avaliar essas e outras espécies de criações atuais, negando-lhes ou conferindo-lhes a categoria de arte, há quem recorra ainda ao estético, sujeito a constante redefinição. Entretanto, na pós-modernidade, o estético, tradicionalmente ligado à relevância, à transcendência poética, e ao apuro formal, vem sendo veementemente questionado. A possibilidade de se usarem suportes tecnológicos associa-se ao fim de artesanato nas artes (SANTAELLA, 2003, p. 152). O fato vem suscitando intermináveis debates, como, por exemplo, no curso intitulado Art and Incompetence (Arte e Incompetência) realizado em 2005 na Tate Gallery de Londres. Coordenada pelo músico e escritor Seth Kim-Cohen, a série de palestras discutiu a negação da técnica na arte contemporânea. O site da instituição, indicando a competência, o “saber fazer” artístico, como tema do curso, situou-o na raiz de todas as questões sobre o valor estético: Que acontece quando os artistas dão as costas à técnica e abraçam a incompetência? O curso oferece uma versão da história da arte moderna e das práticas contemporâneas – nas artes visuais, na literatura e no cinema – a qual pode ser lida como uma guerra entre a postura “certa” e a “errada” (...) incluindo a discussão dos pressupostos teóricos subjacentes às abordagens que descartam a necessidade da competência...2 Dispensada a competência, tampouco se requer que o artefato encarne um significado profundo, e, menos ainda, que seja belo, em qualquer sentido desse termo controverso. Para os adeptos da nova arte, chega a ser suspeito esperar que o trabalho fale à emoção ou produza uma espécie de revelação. Segundo certos teóricos, essa visão tradicional tem hoje um significado meramente histórico: a arte, como a conhecemos no passado, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 13 morreu. Já o declarara Hegel em 1817, por julgar que o sentimento e a intuição, então associados à noção de arte, não propiciam acesso ao conhecimento, só alcançável através de conceitos. Um século depois, em 1920, um pôster de autoria de Raoul Hausmann, Hearfield e Gosz retomava a proclamação de Hegel, exibindo os dizeres: “A arte morreu”. A propósito, argumentou-se que decretar a morte da arte foi apenas uma tática de guerra contra a hegemonia da pintura e da escultura. Para os partidários dessa opinião, os seguidores de Hegel pretendiam apenas demonstrar que, considerada outrora a arte visual por excelência, a pintura não vai além de imagem, um dos tipos de mediação possíveis. Para outros, a arte teria morrido, sim, mas por suas próprias mãos, num suicídio cometido pelas vanguardas do início do século XX. Elas abriram caminho para a crise da representação, o fim das posturas e valores estéticos legados pelo Renascimento. Radicalizava-se, desse modo, uma prática antecipada por vários artistas. Na pintura, Van Gogh (1853-1890) já se libertara da fidelidade às cores dos objetos. Em 1918, o quadrado branco sobre fundo branco, pintado por Kasimir Malevich, marca uma espécie de grau zero da pintura, seu fim como arte da representação. Especialmente a partir de 1917, quando Marcel Duchamp apresenta à Sociedade de Artistas Independentes o mictório de bar que denominou Fonte, os ready-mades trazem objetos banais para o mundo da arte. Mais tarde, em meados da década de 80, paradoxalmente, no momento em que a pintura, no seio da neo-vanguarda, ressurgia triunfante graças à explosão do mercado financeiro nos Estados Unidos, Hans Belting dedica um livro inteiro à indagação: O fim da história da arte? (2006). Dez anos depois, como se a pergunta já tivesse sido respondida afirmativamente, Belting publica uma edição ampliada de seu livro e retira o ponto de interrogação do título. Também nos anos 80, Berel Lang organiza uma coletânea com respostas de vários autores a um ensaio denominado “O fim da arte” (1984). O artigo foi assinado por Arthur Danto, filósofo e crítico contemporâneo, autor de trilogia constituída pelos volumes sugestivamente intitulados, The Transfiguration of the Commonplace (A transfiguração do prosaico), After the End of Art (Após o fim da arte) e The Abuse of Beauty (O insulto à beleza). Esses textos discutem o final do modernismo nos anos 60 e a emergência de outra etapa, o pós-modernismo, marcado pela falta de unidade estilística e pela falência de critérios estéticos. Entretanto, decorrido quase um século após o gesto inaugural de Duchamp, não se pode dizer que a pintura e a arte tenham morrido. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 14 Morreram (ou arrefeceram) o paradigma artesanal, a grande narrativa iniciada com a publicação, em 1550, de Vida de pintores, de Giorgio Vasari, que iniciou a história da sucessão de estilos visando a diferentes formas de representação do mundo concebido pelo artista. Fica no ar a pergunta formulada por Benedito Nunes: “É ela [a arte] ainda uma necessidade para nós? Ou um momento já passado do desenvolvimento humano?” (NUNES, 1989, p. 107). O próprio Nunes responde: A nova sociedade burguesa, leiga e moderna, não estimula uma concepção harmoniosa e unificadora do mundo. (...) Nesta sociedade a técnica não só prepondera, como se reconhece em constante e vertiginosa transformação, (...) Porém não me parece razoável, neste contexto de transformação histórica e estética, afirmar a morte da arte, quer entendendo-a como “sucedânea da religião”, como diz Hans Sedlmayr, ou superada por esta, como acredita Hegel. O que é ultrapassado é todo um mundo precedente, talvez harmônico, prenhe de certezas, mas já agora obsoleto para ser vivido. Culturalmente, em nossos dias, fica desacreditada a idéia de uma verdade absoluta, ou de um centro regulador da história. (...) Como diria o poeta, “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar. E que o ar do copo busca ocupar o lugar do vinho”. Talvez não tenhamos mais o vinho da certeza. Em contrapartida estamos mergulhados na embriaguez do mistério, fonte de toda a criação. (NUNES, 1989, p. 188) Vivemos, ademais, um momento de total pluralismo. A arte pode trilhar incontáveis caminhos, nenhum deles privilegiado ou capaz de ser resumido numa definição. Faculta-se ao artista revisitar o passado, usá-lo como repertório apropriável, disponível para infindáveis transcriações. Sob a forma de pastiche ou paródia, estimula-se a utilização de velhos paradigmas, numa tolerância irrestrita, que nada exclui. Exemplar dessa tendência, a obra de Mimmo Paladino, exemplificada pelo óleo Sobre a orla da tarde, e analisada por Ricardo Fabrini (2002, p. 29 ss.), combina, às vezes, num só quadro, diferentes referências à arte do passado, como estilemas de Picasso, de Brancusi e dos expressionistas alemães. Optando pelo caminho oposto, o artista pode explorar formas novas, o vídeo, a holografia, a arte computacional, a instalação, a performance, a body art, o pop e a op art, a land art, a sky art, o minimalismo, a arte concreta e neoconcreta, a arte povera, a arte comportamental e processual, a bioarte, a nova escultura, o conceptualismo, a arte espacial... A respeito do caráter efêmero de algumas dessas formas e de seus corolários artísticos, Haroldo de Campos (1975) comenta: Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 15 A arte contemporânea, emancipada (...) das pressuposições do naturalismo (...) produzida no quadro de uma civilização eminentemente técnica, em constante e vertiginosa transformação, parece ter incorporado o relativo e o transitório como dimensão mesma de seu ser. (...) Este novo paradigma abre espaços (...) para o questionamento da perspectiva e da figuratividade na pintura, o advento da música atonal, o fim da proporção verossímil na escultura, para, na literatura, o surgimento do romance polifônico, a carnavalização dos gêneros, o estilhaçamento do tema e a relativização do tempo, Enfim, a arte questiona seus próprios princípios. ( p. 15, 187) Retomando o tema da morte da arte, Arthur Danto, em After the End of Art (1997), propõe substituí-lo pela ideia de fim, não da arte em si, mas da “Idade da Arte”. Endossando-a, cita a argumentação de Hans Belting. Em seu livro Likeness and Presence: A History of the Image before the Era of Art (1966), Belting sustenta que, de fins do império romano até cerca de 1400 D.C., quando o conceito de arte ainda não emergira na consciência coletiva do ocidente cristão, as imagens sacras hoje encontradas em museus não desempenhavam uma função estética, mas apenas religiosa, a serviço do culto. Só na Renascença, quando A vida dos pintores, de Vasari, inaugura sua história, cristaliza-se a ideia de arte. Isso não significa, é claro, que a era da arte tenha começado abruptamente em 1400, data do texto de Vasari. Nem que se tenham confirmado as profecias a respeito e a arte morrido subitamente em meados dos anos 80 do século XX, quando teóricos radicais começam a falar da morte da pintura. Para Danto, esse é apenas um julgamento crítico. Não desaparece a arte, apenas declinam algumas práticas e certo tipo de discurso sobre ela, já que as grandes narrativas mestras, que definiram a arte tradicional, não se sustentam na contemporaneidade. Diante desse panorama, a conceituação de arte torna-se a tal ponto problemática que, para evitá-la, como já mencionamos, a denominação “Estudos Interartes” vem sendo substituída por “Estudos de Intermidialidade”. Estes não exigem que os textos analisados sejam lidos como obras de arte. Podem ser tomados simplesmente como produtos culturais, desprovidos de atributos intrínsecos, sempre sujeitos a leituras mutáveis, em função da passagem do tempo ou da subjetividade do observador. Refuncionalizados, retirados de seu contexto, artefatos dificilmente distinguíveis dos objetos mais prosaicos exibem-se em galerias de arte, pouco importando os artefatos em si, em favor do processo e dos conceitos a eles associados. Aos readymades de Duchamp sucedem-se, a partir dos anos 1960, as caixas de bombril Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 16 de Andy Warhol e infindáveis obras semelhantes. Em manifesto de 1965, George Maciunas, líder do movimento Fluxus, que postula o fim da distinção entre arte e vida, propõe excluir do conceito de arte quase todos os atributos tradicionais: técnica, originalidade, relevância, inspiração, complexidade, profundidade, permanência... Na música, John Cage busca eliminar a oposição entre ruído e som musical. Na dança, Yvonne Rainer, coreógrafa do Judson Dance Group, rejeita o espetáculo, a virtuosidade, o glamour, a imagem da estrela, o efeito de algo mágico, transformador. No fim da década de 1960, com o advento da arte conceitual, já nem se julga necessária a existência ou permanência de um objeto material. Pois, mesmo quando existe, ele é menos importante que o conceito evocado: pode ser descartável, como em inúmeras instalações, ou até constituir-se apenas de fugazes pontos de luz, fluxos e refluxos instáveis de energia, na arte eletrônica. Em 1969, no artigo “A arte depois da filosofia”, texto básico da arte conceitual, Joseph Kosuth leva ao limite o postulado da dissolução do objeto, ao afirmar que “a arte é a definição da arte”. A arte confunde-se, pois, com sua própria filosofia. A postura está implícita até nos catálogos das exposições, como revela o material oferecido ao público em certos eventos: o catálogo do Show de Informação, realizado em 1970 no Museu de Arte Moderna de Nova York, incluiu uma lista de textos teóricos sobre o pluralismo e a dificuldade de conceituação da produção contemporânea. Eliminados os antigos critérios de avaliação e seleção tradicionais, proliferam situações outrora inimagináveis. A Bienal do Whitney Museum de Nova York, por exemplo, abrigou em 2002 uma performance do grupo Práxis, que oferecia ao público abraços, lava-pés, notas de dólar, fixação de adesivos e beijos. Entre as “obras” mais populares disponibilizou-se uma gravação feita em 1999 com os ruídos do furacão Floyd no exterior do 91º andar da Torre 1 do World Trade Center. Segundo Arthur Danto, essa abertura radical do sentido de “arte”, incluindo “criações” indistinguíveis de atos do cotidiano, poderia qualificar de performance a tentativa de assassinato praticada por Valerie Solanas contra Andy Warhol em 1968. A alegação não seria muito diferente da do compositor Karlheinz Stockhausen, que considerou o ataque terrorista ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, “a maior obra de arte jamais vista”. Atingimos um estágio de frouxidão conceitual compatível com a postura radical de Joseph Beuys. Para o artista alemão (1921-1986), a sociedade constitui um vasto bloco, onde todos somos artistas. Esvaziada a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 17 questão conceitual, pode-se igualmente argumentar que, descartada a especificidade do artista, ninguém o é. É o que conclui Ferreira Gullar: “A arte democratizou-se, isto é, ninguém é artista” (2003, p. 124). Independentemente da qualidade do trabalho, torna-se possível considerar obra de arte qualquer texto que a comunidade artística aceite como tal. Na prática, a aceitação acaba dependendo de um grupo ou instituição socialmente autorizados a validá-la, donde o imenso poder conferido ao curador, sucessor, mutatis mutandis, dos antigos mecenas. Emerge aí a questão do poder, que nunca esteve ausente do mundo da arte, mas cujo eixo se desloca, do trono ou do altar, para as grandes instituições. Paradoxalmente, sendo essas instituições manipuladas pelas elites, desafia-se o princípio aparentemente democrático de que “todo mundo é artista”. Nenhuma dessas considerações elimina os problemas vinculados à existência da nova arte. “Em cada obra de arte que se produz está em jogo o destino da arte; em cada uma delas o artista arrisca-se a matá-la ou fazê-la existir”, afirma Benedito Nunes (1989, p. 120). Resta, sobretudo, a dificuldade de distinguir o objeto artístico do não-artístico. A questão continua a impor-se aos teóricos, entre os quais destaco Arthur Danto. O filósofo rememora o apagamento da distinção entre arte e não-arte, especialmente a partir de 1917, com a apresentação da Fonte de Marcel Duchamp. Não sem razão, em 2004, por ocasião da concessão do prêmio Turner em Londres, um grupo de 500 especialistas elegeu Fonte a obra de arte mais influente de todos os tempos. A partir dela, permanece a possibilidade de se apresentarem como arte os objetos mais variados, às vezes relativos a grupos culturais distintos. Esse tipo de criação é discutido por Danto (1997), que, a respeito, cita o evento denominado Cultura em Ação, realizado em 1993, no Instituto de Arte de Chicago. Nessa ocasião cada grupo, ao reivindicar seu direito à diferença, apresentava sua própria arte (“an art of their own”). Em tais casos, o público mais diretamente visado constitui-se de uma comunidade definida por interesses ligados a questões raciais, econômicas, religiosas, étnicas, nacionais ou de gênero. Por essa razão, a produção artística pode alojar-se num museu de um tipo particular, voltado para um público específico. Assim se apresentam o Jewish Museum (Museu Judaico) de Nova York e o National Museum of Women in the Arts (Museu Nacional de Mulheres Artistas), de Washington. Segundo seus entusiastas, esses espaços opõem-se à instituição tradicional, afinada com as classes dominantes. Não se pode, entretanto, deixar de notar que a existência desses mesmos museus continua dependendo do aval dos detentores do Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 18 poder – um dos paradoxos que sempre rondaram a arte subversiva. Ela não escapa aos esquemas internacionais de galerias de arte, revistas de arte, bienais, envolvendo os mais variados interesses – algo definido por Ferreira Gullar como “concorrência estético-comercial”, responsável pelo que o poeta denomina de “desgovernada carreira vanguardista” (2003, p. 125). Há que considerar aqui outro aspecto da criação contemporânea: diversamente de toda arte criada entre 1400 e o Modernismo, seu espaço, como nas performances, já não é primordialmente o museu, que, alegadamente, não oferece o desejado contato direto e imediato com o público. Um exemplo bem ilustrativo dessa tendência foi a exposição da bienal do Whitney Museum em 1993. Tendo apresentado a obra de apenas sete pintores, foi realizada fora do edifício. Exemplifica-se, assim, uma tripla transformação: na criação do objeto, nas instituições dedicadas à arte e no público-alvo. Continua, entretanto, em suspenso a definição de obra de arte. Contrariando pressupostos de teóricos radicais, Danto (1997) tenta apontar condições mínimas para distinguir o objeto artístico do não-artístico. Contestando os que, como Deleuze, negam a necessidade de um sentido, em favor da pura visualidade do objeto artístico, o filósofo cita a exigência de um conteúdo semântico, encarnado num objeto material, que ligue esse objeto a seu contexto. Assim, o que faz de um texto uma obra de arte é externo a ele. Danto exemplifica sua distinção com Untitled ou Perfect Lovers (Amantes perfeitos), criada em 1991 por Felix Gonzáles-Torres, em memória do amante morto. A obra consiste em dois relógios idênticos (o objeto material), mostrando a mesma hora. São relógios comuns, fabricados em série, semelhantes aos usados em cozinhas ou salas de aula contemporâneas. Chamam a atenção pelo título, “Amantes perfeitos”, que vincula o objeto material a um conteúdo semântico. Segundo Danto, Gonzalez-Torres criou uma espécie de vanitas, que induz uma meditação sobre a brevidade da vida e as inevitáveis perdas trazidas pela morte: tal como dois relógios, mesmo idênticos, provavelmente pararão em momentos diferentes, assim também todos os amantes estão condenados a separar-se, já que um deles precederá o parceiro no enfrentamento do fim. Segundo Danto (1997), Perfect Lovers (1991), em contraste com artefatos banais, define-se como obra de arte em razão desse conteúdo semântico, e também de sua relação com o contexto, a biografia do autor. Danto acrescenta que, pondo em cheque a atemporalidade da arte, postulada no passado, a constituição do objeto depende do contexto histórico: a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 19 vanitas de Gonzalez-Torres seria impossível antes da fabricação do tipo de relógio utilizado e dificilmente interpretável sem conhecimento da vida amorosa do autor. Retomamos, então, a pergunta: morreu a arte, ou apenas assistimos à dissolução dos cânones clássicos, de tal forma que, em vez de objeto de contemplação, o objeto artístico torna-se hoje objeto de pensamento? Por outro lado, não se pode deixar de notar que a definição de obra de arte proposta por Danto (1997) só se distingue de outra bem mais antiga – oferecida pelos formalistas russos – pelo fato de o filósofo acrescentar que o objeto artístico pode, à primeira vista, ser indistinguível de um artefato banal. Sob outros aspectos, não vejo grande diferença entre a conceituação de Danto e a do formalista russo Jan Mukarovsky. Já em seu ensaio “Art as a Semiotic Fact” (“A arte como fato semiótico”), o teórico checo, em outras palavras, aponta traços equivalentes aos definidos pelo filósofo norte-americano. Segundo Mukarovsky, a obra de arte consiste de um objeto material (o signifiant de Saussure), que funciona como símbolo e encarna um significado – o objeto estético – constituído por elementos comuns (estados subjetivos despertados nos membros de uma comunidade), ficando esse significado sujeito a mudanças no espaço e no tempo (MUKAROVSKÝ, 1977, p. 83)3. Como se vê, essa definição apóia-se em elementos igualmente apontados por Danto: um objeto material, um sentido, e um contexto, cuja variação altera igualmente o sentido da obra. Em meio à sua argumentação, Danto (1997) deixa escapar certo desencanto, visível em sua reflexão a respeito da indagação “Mas isso é arte?” Danto formula essa pergunta em relação a The Candy of their Dreams (O bombom de seus sonhos), gigantesco bombom exibido como arte durante o evento Cultura em Ação, realizado em 1993 no Instituto de Arte de Chicago. Danto parte da afirmação de Joseph Beuys (“todo mundo é artista”) para argumentar: (...) um bombom que é obra de arte nem precisa ser especialmente bom. Basta ter sido produzido com a intenção de constituir arte. É fácil verificar que, segundo Beuys, a arte nada tem a ver com qualidade. Aquilo a que almejam as multidões, a que almejamos todos nós, é um sentido – o sentido outrora oferecido pela religião, pela filosofia, ou pela arte. (...) Que o bombom gigante seja arte, e não uma simples barra de chocolate, só é possível após o fim da arte, liberado com esse objetivo por poderosas teorias políticas que surgiram nos anos 1970, segundo as quais tudo pode Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 20 ser obra de arte e todo mundo é artista. Que seja arte comunitária, e não obra de um único indivíduo, é conseqüência de certas teorias políticas libertárias para as quais grupos de indivíduos que supostamente não encontram sentido na arte dos museus não devem ser privados do sentido que a arte poderia conferir a suas vidas. A simples possibilidade disso mais do que justifica colocar o bombom no museu, visando preservar para as gerações futuras a lembrança de todos esses homens e mulheres, distanciados da comunidade artística, a cuja vida esse tipo de arte trouxe sentido. (DANTO, 1997, p. 184-189)4 Como se vê, Danto enfatiza a motivação política por trás da teorização sobre a arte: descartando juízos de valor, fundamenta-se na concepção alegadamente democrática de que todo mundo é artista. Prosseguindo em sua reflexão, o filósofo declara que “estamos para sempre exilados da pátria estética” e, como Umberto Eco, afirma que só como citação, e com ironia, podemos revisitar a arte do passado. Em relação ao presente, Danto lembra a reflexão de Hegel sobre a comédia: Estamos para sempre exilados da pátria estética. Só podemos participar do mundo artístico atual e pintar como Rembrandt se (...) o fizermos como citação, e como piada. (...) Os verdadeiros heróis do período pós histórico são os artistas que dominam todos os estilos sem ter absolutamente qualquer estilo pictórico (…) e cujo temperamento é previsto por Hegel ao discutir a comédia: “[s]ua tônica é o bom humor, a alegria confiante e despreocupada (...), a exuberância e a audácia de uma loucura basicamente feliz...” Não é essencial que a comédia seja engraçada, apenas que seja feliz. É totalmente compatível com o tipo de comédia representada pelo fim da arte o fato de ela poder expressar-se de forma trágica sobre a tragédia, à moda de Gerhardt Richter que, tendo se apropriado de fotos de má qualidade, embaçadas, pinta sobre elas as mortes violentas dos líderes do BaaderMeinhof – pois a comédia reside na forma e não no tema. (...) Com toda essa felicidade, seria ótimo se esta fosse uma Idade de Ouro da arte, mas provavelmente as condições da comédia são a garantia da tragédia se significarem que esta não é uma Idade de Ouro. Não se pode ter tudo! (DANTO, 1997, p. 216-217)5 Descontado esse comentário, Danto assume certo distanciamento da espinhosa questão levantada. Esquiva-se a emitir julgamentos de valor, algo, como lembra Ferreira Gullar, temido pelos críticos, depois que o famoso Salão parisiense de 1872 recusou as primeiras telas dos Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 21 Impressionistas, consagradas pouco tempo depois. Nem todos, entretanto, expressam-se de forma tão ambígua quanto Danto ou tentam evitar julgamentos de valor. Entre as vozes mais veementes, levanta-se a de Robert Hughes, considerado o mais famoso crítico de arte vivo. Autor de textos seminais sobre a arte contemporânea como The Shock of the New (1980, 1991), Hughes, em entrevista concedida em 2007 a Marcelo Martins da revista Veja, em razão de seu ceticismo sobre o valor da criação contemporânea, declara ter se aposentado como crítico: O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito a golpes de marketing (...). Fala-se de um artista não por sua relevância, e sim pelo valor que suas obras atingem – como se fosse o orçamento milionário de um filme. Ou então por sua popularidade – como se fosse o índice de audiência de um programa. (...) [B]ienais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham (...) hoje têm relevância apenas para os negociantes de arte. Por baixo da fachada novidadeira, a maioria desse eventos se transformou em feiras vulgares. (MARTINS, 2007, p. 15) As ácidas observações de Hughes não poupam ícones contemporâneos como Andy Warhol e Marcel Duchamp: Apesar de ter produzido coisas relevantes no início dos anos 60, Warhol tem a reputação mais ridiculamente superestimada do século XX. A influência de Duchamp sobre a arte contemporânea foi libertadora, mas também catastrófica. (...) [S]em ele não haveria as chamadas instalações, essas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos infantis. Ou precisa ler uma bula para entender o que o artista quis dizer. (MARTINS, 2007, p. 14) Ainda na avaliação de Hughes, o caráter revolucionário de artistas contemporâneos não passa de uma falácia; não chega aos pés da real ousadia de artistas do passado: Damien Hirst, o mais incensado artista inglês atual, e outros de sua geração, “fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista como Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele [Hirst] nunca passou nem perto de alcançar”. Nessas circunstâncias, conclui Hugues, “prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para inflar as cotações alheias” (MARTINS, 2007, p. 15). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 22 O panorama aqui esboçado não deixa de retratar uma espécie de vale-tudo: para os adeptos mais fervorosos da crítica cultural, a simples reivindicação da condição de arte parece bastar para validá-la. Além dos autores citados, e de clássicos como Guy Debord em Sociedade do espetáculo (1967), e Adorno em Teoria estética (1970), esse ponto de vista encontra opositores eloquentes. É aqui citação obrigatória a Argumentação contra a morte da arte (2003), de Ferreira Gullar. O autor não nega sua apreciação de criações contemporâneas, como os móbiles de Alexander Calder, mas batese contra o que considera “a liquidação dos gêneros artísticos, das técnicas, dos materiais... todo o métier do pintor, do escultor, do gravador”. Deplora também a substituição da escrita crítica pelo “texto profético, hermético, apologético, para iniciados” (p. 123-4). Contudo, Ferreira Gullar é suficientemente otimista para acreditar que estamos ultrapassando esse momento: “Passou o tempo da grande badalação e do show, de que, aliás, os grandes criadores não participavam. (...) Criam-se condições para que o artista se volte mais detidamente para o seu trabalho, para os problemas complexos da criação artística” (p. 125). Estaríamos, então, prontos para voltar à obra de arte como a concebe Ferreira Gullar, “fruto do apuro formal, de aprofundamento dos significados plásticos e pictóricos, de reflexão e de pesquisa”? (p. 9). Tal retorno já teria ocorrido nas outras artes. A literatura de ficção, afirma o poeta-crítico, não enveredou pelo caminho apontado por Finnegans Wake, escapou à autodestruição implícita nesse texto de Joyce. Possibilitou-se, assim, o aparecimento das obras de William Faulkner, Angel Astúrias, Garcia Marques, Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e tantos outros. Na pintura e nas artes artesanais, estaríamos, pois, como quer Ferreira Gullar (2003, p. 11), “no compasso de espera de uma outra arte, mais ajustada aos novos tempos?” É o que parece pensar outro poetacrítico, Paulo Henriques Britto. Em entrevista ao jornal Estado de Minas, por ocasião do recebimento do Prêmio Portugal Telecom, Britto lamenta a necessidade, vivenciada pelo artista a partir da primeira metade do século XX, de estar o tempo todo rompendo com as tradições, conduzindo a seu isolamento do público. O modelo do rompimento transformou-se numa tradição, resultando em acomodação. Hoje, afirma Britto (2004, p. 5), “estamos ainda deglutindo as experimentações, mas começamos a sair um pouco daquele período de vanguarda. O momento, para a poesia em particular, é de parar para refletir sobre tudo de novo que aconteceu no século XX”. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 23 Não é difícil sugerir que, “no compasso de espera de uma outra arte” (p. 11), como quer Ferreira Gullar, talvez seja uma boa ideia debruçarnos sobre uma segunda pergunta do autor de Poema Sujo: “Nascerá esta nova arte ou ela já nasceu? Não será ela, de fato, o cinema?” (p. 5). Instigante questão. Na tentativa de discuti-la, já se acumulam bibliotecas, exigindo outros e complexos percursos para nossa reflexão. Notas Vale lembrar que já no fim do século XIX e início do XX repetia-se a pergunta “Mas isso é arte?” A propósito, Mônica Sette Lopes (2006, p. 105) rememora o processo judicial Whistler X Ruskin. O objeto do litígio foi estabelecer se o quadro de Whistler, Nocturne in Black and Gold, de 1878, poderia ser considerado arte. No mesmo sentido, a autora lembra o caso de uma escultura de Brancusi, exportada para os Estados Unidos em 1926, quando um funcionário da Alfândega questionou sua condição de obra de arte, isenta de tributação. Transposta para a esfera judicial, a questão foi encerrada com o veredito contrário ao parecer inicial. 1 Versão em inglês: “What does it mean when artists turn their backs on technique and embrace incompetence? This course offers a version of the history of modern and contemporary artistic practices – visual art, music, literature and film – which reads as a battle between the ‘right’ way and the ‘wrong’ way. (…) The course also includes discussion of the theoretical underpinnings of approaches which ignore the instruction manual…. Art and Incompetence.” Disponível em: http://www.tate.org.uk/ modern/. Acesso em: 15 set. 2005. (Nessa, como em todas as citações de textos em línguas estrangeiras, a tradução é da autora deste artigo.) 2 Versão em inglês: “The work of art cannot be reduced to this ‘work-thing’ (…) since this work-thing happens to change completely in appearance and internal structure through temporal or spatial shifts (…) The work-thing functions, then, only as an external symbol (the signifiant according to Saussure´s terminology) to which corresponds in the social consciousness a meaning (sometimes called the “aesthetic object”) consisting of what the subjective states of consciousness in the members of a certain collectivity have in common” (Mukarovsky, 1977, p. 83). 3 Versão em inglês: “A candy bar that is a work of art need not be a especially good candy bar. It just has to be a candy bar produced with the intention that it be art (...) It is easy to see that “quality” has nothing to do with being art under Beuysian considerations (…) What [the millions] thirst for (...) what we all thirst for, is meaning: the kind of meaning that religion was capable of providing, or philosophy, or, finally, art (…) That [The Candy of their Dreams] should be a work of art and not a mere bar of chocolate is possible only after the end of art, enfranchised as such by 4 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 24 certain powerful political theories which emerged in the 1970´s to the effect that anything can be a work of art and everyone is an artist. Its being “community based” art rather than the work of a single individual is the achievement of certain enfranchising political theories which held (…) that groups of individuals alleged to find no meaning in the art of museums should not be deprived of the meaning art might confer upon their lives (…) They [people in the future] should be made to think of all those men and women, far from the art world, thinking of what gave meaning to their lives. The mere possibility of that more than justifies putting the work in the museum.” (DANTO, 1997, p. 185-189). Versão em inglês: “We are forever exiled from the aesthetic motherland (…) One can be part of the present art world and paint like Rembrandt only if (…) one does so from the perspective of mention rather than of use, and in the spirit of the joke. (…) The true heroes of the post-historical period are the artists who are masters of every style without having a painterly style at all (...) whose temperament is anticipated by Hegel in his discussion of comedy: ‘The keynote is good humour, assured and careless gaiety, (…) exuberance and the audacity of a fundamentally happy craziness (…)’. It is not essential to comedy that it be funny, only that it be happy. It is wholly consistent that the kind of comedy in which the end of art consists can express itself on tragedy tragically, as Gerhardt Richter does when he paints, in the appropriated blur of bad photographs, the violent deaths of the Baader-Meinhof leaders, for the comedy is in the means, not the subject. (…) With all this happiness, it would be wonderful if this were a Golden Age of art, but probably the conditions of comedy are the guarantee of tragedy, if the latter means that our age is not a Golden Age. You cannot have everything!” (DANTO, 1997, p. 216-217). 5 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Teoria estética. 2. ed. São Paulo: Editora 70, s/d. BELTING, Hans O. The End of the History of Art? Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1987. ________. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ________. Likeness and Presence: A History of the Image before the Era of Art. Trans. Edmund Jephcott. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. BRITTO, Paulo Henriques. Entrevista concedida a Walter Sebastião por ocasião do recebimento do Prêmio Portugal Telecom. Estado de Minas, caderno Cultura, 14 nov. 2004. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 25 CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1975. COLI, Jorge. Oh! This is so contemporary! Folha de São Paulo, suplemento Mais!, 28 ago. 2005, p. 4. CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. 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Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 27 HIPERTEXTUALIDADE X HIPERMIDIALIDADE: A VIAGEM DE “O BALANÇO”∗ Thaïs Flores Nogueira Diniz tfndiniz@terra.com.br Resumo: Ampliando o conceito de hipertexto, este artigo se propõe a analisar a cadeia semiótica que une obras pictóricas, literárias, cinematográficas dos séculos XVIII, XIX e XX a uma instalação/escultura contemporânea, todas com o mesmo tema. Trata-se de um processo aqui definido como transm(e/i)dialização. Abstract: Amplifying the concept of hypertext, this article aims at analysing the semiotic chain that connects some pictorial, literary and cinematographic works from 18th, 19th and 20th Centuries to a contemporary installation/sculpture, all of them bearing on the same theme. The relation between them illustrates the process that can be defined as transmedialization. Palavras-chave: Hipertexto. Hipermidia. Transm(e/i)dialização. Key words: Hypertext. Hypermedia. Transmedialization. ∗ Este texto é resultado parcial do projeto financiado pelo CNPq intitulado “A intermidialidade em produções contemporâneas”. Uma versão reduzida, em inglês, foi apresentada oralmente no Ninth Conference of the Nordic Society for Intermedial Studies, em Aarhus, Dinamarca, em outubro de 2009 e posteriormente, em português, no II Encontro memorial do ICHS, em Mariana, em novembro de 2009. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 28 I Qualquer criança hoje, com acesso a um computador ligado à internet, é capaz de lidar com aquela forma de apresentação no monitor de vídeo, na qual algum elemento (palavra, expressão ou imagem) é destacado e, quando acionado, geralmente mediante um clique do mouse, provoca a exibição de um novo texto – o hipertexto – com informações relativas ao referido elemento. A essa forma de apresentação, ou melhor, a essa espécie de relação entre os textos, damos o nome de hipertextualidade. O termo foi cunhado por Gérard Genette em seu livro Palimpsests: Literature in the Second Degree, no qual ele defende que “o objeto da poética não é o texto (literário) mas sua transcendência textual, suas ligações textuais com outros textos” (PRINCE, 1997, p. ix). Para Genette, a relação transtextual pode se dar de várias maneiras, cada qual constituindo um aspecto da textualidade, ou ainda, um tipo de transtextualidade. Entre esses tipos, destacamos a hipertextualidade, “toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário” (GENETTE, 1997, p. 5)1. Porém, é o próprio Genette que declara não serem estas categorias absolutas, havendo sempre entre elas um contato ou superposição recíproca. Embora se relacionem de muitas e variadas maneiras, alguns textos se apresentam mais hipertextuais do que outros, ou melhor dizendo, são mais visível, massiva e explicitamente hipertextuais. Mas, em cada obra, é possível seguir os ecos – sejam eles locais, fugazes ou parciais – de outra obra, seja ela anterior ou posterior. Como o conceito de texto não se restringe apenas a formas verbais, podemos ainda dizer que, ao nos relacionarmos com um texto, esta relação se dá pela configuração de uma mídia, cuja performance emite signos (configurados por essa mídia). Essa definição expande o nosso conceito de hipertexto, para abranger também textos concebidos em outras mídias. Em analogia, portanto, chegamos a um novo conceito, o de hipermidialidade, definido como a relação que une o texto hipermidiático a um texto anterior, o texto hipomidiático, do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário. Assim, ao considerar textos como algo concebido em qualquer sistema semiótico, podemos dizer que um filme adaptado de uma obra literária ou uma instalação derivada de uma obra pictórica sejam ambos textos hipermidiáticos ou simplesmente hipertextos, já que a intermidialidade é sempre intertextual. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 29 II Intermidialidade é “um termo relativamente recente para um fenômeno encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’” (CLÜVER, 2009, p. 9). Como conceito, intermidialidade implica as interrelações e interações entre as mídias; “intermidiático”, portanto, designaria aquelas configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as mídias e que, por isso, podem ser diferenciadas dos fenômenos intramidiáticos (dentro de uma mesma mídia) e também dos fenômenos transmidiáticos (por exemplo, o aparecimento de um certo motivo, estética ou discurso em uma variedade de mídias diferentes)2. Como ferramenta, intermidialidade pode se definir como uma categoria crítica para a análise concreta de produtos ou configurações de mídias individuais e específicas, uma categoria para a análise concreta de textos ou de outros produtos das mídias, desde que essas configurações manifestem alguma estratégia intermidiática ou elemento ou condição constitutiva. A arte e a literatura contemporâneas estão marcadas por um intenso interesse “intermidial”, havendo uma crescente quantidade de pesquisa neste campo, tendo ou não o termo “intermidiático” atrelado a ela, dentro, fora e nos limites das instituições dedicadas à “arte”. Este tipo de pesquisa vem sendo desenvolvido graças à onda de interesse renovado na mistura de gêneros e mídias. Qualquer estudioso neste campo já aceita o fato de que o tempo das produções artísticas isoladas já passou e também de que não se pode mais separar estudos de arte dos estudos de mídias. Obras literárias, poemas e contos, derivados de obras pictóricas são comuns desde a Antiguidade, haja vista a descrição do escudo de Aquiles, considerada como o primeiro exemplo de ecfrase, definida por Claus Clüver como “uma representação verbal de um texto real ou fictício, composto em um sistema de signos não-verbal”(CLÜVER, 1997, p. 26 ). Mas o que dizer de obras compostas em sistemas não-verbais derivadas de obras literárias? Como seria denominado um filme que fosse transformado em romance? Segundo Irina Rajewsky, este hipertexto (o romance) derivado de um filme (o hipotexto) seria o resultado de um processo denominado de romantização. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 30 As artes icônicas, por serem capazes de, como a linguagem, gerar descrições do mundo ficcional, permitem, segundo Eli Rozik, traduções midiáticas desse mundo, traduzindo-o para uma outra mídia, realizando assim uma transmedialização (ROZIK, 2007, p. 395-396). Já Karin Wenz, em seu artigo “Transmedialization: An Interart Transfer”, define a transmedialização como o processo de transferência de um texto configurado em uma mídia para outra mídia. Para ela, esse processo seria um tipo de “remediação”, termo criado por Bolter e Grusin, para descrever uma transformação que acontece no momento em que uma nova mídia é criada a partir de uma preexistente. Porém, a autora reduz o termo a uma relação mais específica, limitando o processo a determinados textos, mas aceitando também sua contribuição na evolução do texto fonte. Neste trabalho, pretendo analisar algumas obras criadas em diferentes mídias e que podem ser classificadas como hipertextos, derivados de textos anteriores, por meio de transformação ou de imitação3. Como os textos a serem analisados pertencem a diversas mídias, a teoria de Genette será adaptada para servir aos estudos sobre intermidialidade. Os exemplos contidos neste trabalho ilustram casos de transformação interartística, que aqui denominamos transmedialização. Neste texto, uso propositadamente o termo “transm(e/i)dialização”, para definir o processo que envolve tanto o local onde este se realiza (dentro das mídias), como o próprio ato de mediar4 (de um texto para outro). III Muitas pinturas impressionistas sugerem o prazer experimentado por um fim de semana no campo; descrevem passeios de barco, piqueniques, pescarias e tantas outras atividades que corporificariam o desejo dos que anseiam por um descanso. Os quadros Remadores em Chatou, de Pierre Auguste Renoir (Fig. 1); O barco em Giverny, de Claude Monet (Fig. 2) e Desjejum sobre a relva, de Édouard Manet (Fig. 3) descrevem esta realidade. Por isso, tais pinturas poderiam ser categorizadas como um segundo passo de um processo que se iniciou com aquela realidade (a necessidade de lazer) e continua com sua tradução em um outro meio (a pintura). São exemplos de transm(e/i)dialização em seu sentido mais amplo. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 31 Fig. 1 – Remadores em Chatou, de Pierre Auguste Renoir. Fig. 2 – O barco em Giverny, de Claude Monet. Fig. 3 – Desjejum sobre a relva, de Édouard Manet. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 32 Além dos piqueniques na relva e dos passeios de barco, uma jovem a balançar-se caracterizar-se-ia como uma das atividades mais bucólicas de um dia no campo. O balanço, e mais especificamente, uma jovem no balanço, tem sido o tema preferido de artistas, em seu desejo de retratar o lazer. É um tema que aparece em pinturas e estátuas desde a Grécia antiga, porém nunca tão brilhantemente tratado como na França no século XVIII. A pintura de Pierre-Auguste Renoir, O balanço, constitui um bom exemplo da recorrência deste tema (Fig. 4). Renoir tentou retratar, através de luz e cores brilhantes, momentos da vida real. Usando pinceladas multicores, ele evocou, neste quadro, a vibração da atmosfera, o efeito vivo da folhagem e, principalmente, a luminosidade da pele da jovem ao ar livre. Fig. 4 – O balanço, de Pierre-Auguste Renoir. Em 1881, Guy de Maupassant escreveu um conto intitulado “Une Partie de Campagne” (traduzido como “Um passeio ao campo”), cuja história envolve amor, sedução e desilusão. Os Dufour (pai, mãe, avó, a filha Henriette e seu noivo Anatole), uma família burguesa de Paris, decide passar o domingo no campo. Dirigem-se a um local para fazer sua refeição ao ar livre. Dois pescadores/barqueiros, Rodolfo e Henrique, espiam os recém chegados e planejam seduzir as mulheres da família, no que são bem sucedidos. Anos mais tarde, Henrique volta ao local onde ele e Henriette haviam feito amor. Esta, já casada, lá está com marido. Os dois amantes trocam alguns olhares e palavras, e se separam. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 33 Considera-se que o quadro de Pierre-Renoir acima descrito serviu de inspiração para este conto, o que pode ser comprovado pela sugestão contida na ilustração da capa de uma das edições da obra (Fig. 5). Neste sentido, o conto pode ser analisado como um passo adiante no processo de transm(e/i)dialização, uma vez que representa uma tradução, para a literatura, da pintura impressionista, podendo, portanto, ser classificado como uma ecfrase. Fig. 5 – Capa de uma das edições dos contos de Guy de Maupassant. Um pequeno trecho do conto chama nossa atenção: De pé, a rapariga tentava balançar-se sozinha, não conseguindo dar impulso suficiente. Era uma bela moça de dezoito ou vinte anos, uma dessas mulheres que provocam um súbito desejo ao homem que encontram na rua, deixando-o num desassossego vago e de sentidos revoltos todo o dia. Era alta, magra, mas de ancas largas. Tinha a pele muito morena, os olhos muito grandes e os cabelos muito pretos. O vestido desenhava-lhe nitidamente as formas plenas e firmes do corpo, que se acentuavam ainda mais com o movimento de rins que fazia para se elevar. Com os braços tensos, segurava as cordas acima da cabeça, de forma que o peito sobressaía, sem estremecer, a cada impulso. O chapéu tinha caído atrás dela levado por uma rabanada de vento, e o baloiço ia subindo pouco a pouco, revelando-lhe, a cada balanço, as finas pernas até o Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 34 joelho, lançando à cara dos dois homens, que a observavam a rir, o ar perfumado das saias, mais inebriante que os vapores do vinho. (MAUPASSANT, s/d, p. 10-11, minha ênfase) Embora o texto de Guy de Maupassant não seja explicitamente erótico, nesta passagem percebem-se sinais de um certo erotismo (sugerido pelas palavras em negrito), com a ingenuidade da moça servindo de pretexto para os olhares voluptuosos dos dois rapazes. A sensualidade da moça ao balanço é tema de Posner, em artigo que analisa algumas pinturas e gravuras com o tema do balanço. Aludindo ao clima de sensualidade da obra de Maupassant, o cineasta francês, Jean Renoir, em 1936, imortalizou este conto em seu filme, traduzido para o português como Um dia no campo. A capa de uma outra edição do livro, tendo como ilustração um fotograma do filme de Renoir, sugere a ligação entre as duas obras (Fig. 6). O filme se apresenta, pois, como um exemplo de tradução, ou transposição intersemiótica, do texto escrito para o cinema. Alguns episódios da estória foram enfatizados no filme, entre eles, a fuga dos dois casais para a ilha no meio da floresta e a cena de amor entre Henrique e Henriette, ao sabor do canto do rouxinol. Fig. 6 – Capa de uma outra edição do livro de Guy de Maupassant, onde aparecem Sylvia Bataille (Henriette) e Georges D’Arnoux (Henri). Segundo Robert Webster, a realização/produção do filme se caracterizou como uma obra de família: a equipe reunia muitos familiares, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 35 amigos e colaboradores. Como Jean Renoir estava comprometido com outros trabalhos e o roteiro pedia dias ensolarados numa estação em que chovia continuamente, o cineasta o adaptou e filmou o que foi possível, deixando a película inacabada. Mesmo sem a finalização, Um dia no campo foi editado e lançado em 1946 (WEBSTER, 1991, p. 487). Entre as cenas do filme, destacamos aquela em que Rodolfo se pendura na janela como se articulasse o próprio desejo da plateia pela moça no balanço, enquadrada ao fundo em profundidade de foco (Fig. 7). O personagem é o elo de ligação entre a plateia e o objeto de desejo – a moça ao balanço. Ao debruçar-se, ele aproxima os dois grupos de pessoas: a plateia e o grupo familiar. Esta cena nos permite detectar dois aspectos sob os quais a obra desse cineasta pode ser classificada: como um filme popular – que preenche o desejo dos espectadores pelo prazer visual, trazendo gratificação emocional com a narrativa – e como um “filme de arte” – um cinema estruturado para uma plateia que anseia por um cinema sério, com temas importantes e com a revelação do personagem e de suas motivações construída cuidadosamente por meio de detalhes do diálogo e do comportamento dos atores. Na cena, Henriette, ao centro, vai se tornar a fonte do prazer visual e cinético, tanto para os espectadores quanto para os personagens. Já Henrique pertence ao espaço do “filme de arte” pelo modo como seu personagem é construído. Fig. 7 – Um dia no campo, de Jean Renoir (fotograma). A pintura de Renoir, O balanço, anteriormente mencionada, também é frequentemente considerada a origem da cena acima, porém, por diferentes Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 36 razões, uma outra pintura, mais antiga, parece ter se aproximado mais desta cena, quando “traduzida” para o cinema. É o quadro O balanço, também conhecido como O balanço: os acidentes felizes do balanço, de Jean-Honoré de Fragonard (1767) que, de acordo com outros autores, poderia ter inspirado esta cena do filme (Fig. 8). Fig. 8 – O balanço: os acidentes felizes do balanço, de Jean-Honoré de Fragonard. Este e outros quadros5 cujo tema é o balanço são analisados por Posner em seu artigo, “The Swinging Women of Watteau and Fragonard”. Entre as associações sugeridas, estão a inconstância feminina em assuntos do coração; capricho e leviandade no jogo do amor e os sentimentos românticos e, ao mesmo tempo, eróticos. O quadro de Fragonard, cuja análise empreendida por Posner se mostra rica em detalhes e associações, alcançou grande sucesso, não apenas por sua excelente técnica, mas também pelo escândalo que causou. A história por detrás dessa obra já seria uma pista para o erotismo suscitado. O pintor teria sido comissionado para executar uma obra em que um bispo – amante da jovem – seria retratado empurrando a rapariga no balanço, enquanto o jovem da nobreza – também seu amante – colocar-se-ia em uma posição estratégica para se beneficiar da “paisagem” que se descortinaria. Desde então, este quadro se transformou na imagem universal de uma sexualidade Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 37 feliz e descuidada. O tema é o do amor e o da onda de paixão, sugerido pelo grupo na parte central inferior do quadro: os golfinhos, guiados por Cupido, puxando o carro de Vênus, simbolizando o amor impaciente. Bem embaixo da moça, escondido num arbusto, está o jovem amante, suspirando antecipadamente. Neste espaço privado, fechado por uma cerca, o jovem, com o chapéu na mão,6 aprecia a visão que lhe é oferecida. A jovem, deixando à mostra as pernas, entre os babados e rendas da anágua, lança ao ar o sapato, que se perde7. Todas as pistas de sensualidade sugeridas pelo quadro se encontram realizadas tanto no conto de Maupassant como no filme de Renoir. Em 1963, o escritor português Jorge de Sena compôs um poema, explicitamente derivado da pintura de Fragonard, intitulado “‘O Balouço’, de Fragonard”, transcrito abaixo. Como balouça pelos ares no espaço entre arvoredo que tremula e saias que lânguidas esvoaçam indiscretas! Que pernas se entrevêem, e que mais não vê o que indiscreto se reclina no gozo do escondido se mostrar! Que olhar e que sapato pelos ares, na luz difusa como névoa ardente do palpitar de entranhas na folhagem! Como um jardim se empenha de volúpia, torcendo-se nos ramos e nos gestos, nos dedos que se afilam, e nas sombras! Que roupas se demoram e constrangem o sexo e os seios que avolumam presos, e adivinhados na malícia tensa! Que estátuas e que muros se balouçam nessa vertigem de que as cordas são tão córnea a graça de um feliz marido! Como balouça, como adeja, como é galanteio o gesto com que, obsceno, o amante se deleita olhando apenas! Como ele a despe e como ela resiste no olhar que pousa enviezado e arguto sabendo quantas rendas a rasgar! Como do mundo nada importa mais! (SENA, 1988, p. 106-107) Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 38 “‘O balouço’, de Fragonard” é uma representação verbal da pintura, porém, não se propõe a substitui-la. Como no conto e no filme, também aqui encontramos alguns vestígios do erotismo proveniente da pintura de Fragonard, nas várias expressões contidas no texto, desta vez mais explícitas: “rendas a rasgar”, “gesto obsceno”, “jardim de volúpia”, “saias lânguidas e indiscretas”, “roupas constrangindo o sexo e os seios”, etc. “A sensualidade não se cristaliza apenas nas figuras humanas, mas contamina todos os elementos do meio envolvente. [. . .] Assim o jardim luxuriante participa no erotismo da cena e adensa-o. A personificação, ‘palpitar de entranhas na folhagem’ [. . .] e a metáfora ‘Como um jardim se emprenha de volúpia’ dão bem conta disso”(PINTO). É possível que a pintura de Fragonard tenha servido de inspiração para o filme, porém, no poema de Jorge de Sena, a referência é explícita. Segundo Robert Stam, a pintura seria considerada um hipotexto que, transformado, resultaria tanto no conto de Maupassant e no filme de Renoir, como também no poema de Sena, aqui definido como um hipertexto.8 IV Ao analisar as obras acima, somos convidados a nos referir a uma outra que também se deixaria classificar como hipertexto: uma instalação escultural do africano Yinka Shonibare, que também ilustra os processos de tradução/transm(e/i)dialização e de metareferência (Fig. 9). Fig. 9 – O balanço (a partir de Fragonard), de Yinka Shonibare. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 39 Esta obra, O balanço (a partir de Fragonard), também se reveste da atmosfera característica da pintura do artista francês: o erotismo, pois retrata o abandono sensual de uma mulher jovem e rica em seu lazer. A escultura/ instalação é composta por um balanço, uma guirlanda de folhagem artificial e um manequim em tamanho natural, vestido com um tecido de algodão estampado – o batique. A obra imita as roupas e costumes europeus, a partir do quadro europeu do século XVIII que simboliza o espírito frívolo e a moral decadente da aristocracia francesa da época imediatamente anterior à revolução. Mas não se resume a uma paródia do original. A figura humana conserva a vestimenta ornada e a pose do original, mas está isolada e acéfala. Em vez das sedas de cor pastel, seu vestido é composto de pinturas no algodão contrastando com o padrão usado hoje na África, porém alterado para incluir alguns logotipos europeus, como o da Chanel (Fig. 10). Embora a escultura exiba uma jovem comum em seu simples lazer balançando-se, ela levanta questões sobre sua raça, situação econômica e identidade. Fig. 10 – Detalhe do tecido usado por Yinka Shonibare em suas obras. À esquerda e à direita, o logotipo da Chanel. Seu autor, Yinka Shonibare (1962), nasceu em Londres e mudouse para a capital da Nigéria aos 3 anos de idade. Crescendo entre Lagos e Londres, ele se proclamou “um híbrido pós-cultural”(ELIZ). Deste lugar, ele explora, por meio de mídias como a fotografia, a escultura e a instalação, questões de identidade cultural, raça e autenticidade. Joga com esterótipos, subverte-os e identifica tropos culturais ricos e complexos como o batique africano. Ele também se considera verdadeiramente bi-cultural e tenta abrir debates sobre questões políticas, culturais e sociais que dão forma à nossa história e constroem nossas identidades. Tornou-se conhecido por suas Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 40 instalações culturais em que continua a usar os tecidos africanos para subverter as leituras convencionais de identidade cultural como se vê em suas exposições no museu em Rotterdam e em suas performances-solo em Londres. Em O balanço (a partir de Fragonard), suas preocupações parecem tomar como ponto de partida seu background bicultural que sinaliza para o póscolonialismo e apaga os limites entre as Belas Artes ocidentais e a visão tradicional da Arte africana. O artista joga com esses limites ao recriar um célebre quadro europeu do século XVIII: uma jovem, enquanto se balança, mostra as pernas que emergem das anáguas rendadas, e perde um dos sapatos que voa pelos ares. Como espectadores, fazemos o papel de voyeurs, mas a obra claramente oferece muito mais do que uma chance de apreciar a saia que se levanta. Embora o estilo das roupas seja europeu oitocentista, as cores e padrões de seus metros de saia não o são. A relação estabelecida entre classe, raça e estruturas de poder se faz através do batique, tecido muito popular na África e considerado de origem africana, porém, na realidade, uma imitação. Foi criado na Holanda no século XIX e fabricado na Inglaterra para ser vendido à Indonésia (colônia holandesa) mas, não tendo encontrado consumidores aí, devido à alta qualidade do produto local, foi então vendido para a África ocidental. Nesta obra, o corpo é acéfalo – como todas as outras esculturas de Shonibare – e o conjunto formado pela decapitação e profusão de roupas torna o modelo atemporal. O uso de padrões coloridos e do batique funciona como uma metáfora que permite ao artista tratar questões de origem e autenticidade e fazer uma crítica veemente ao excesso e exploração colonial. Para analisar esta obra, é preciso procurar o que há por trás de toda reescrita. Aquele que faz literatura em segundo grau – e, em analogia, aquele que produz arte em segundo grau – o faz com segundas intenções. Shonibare procurou, com este trabalho, mostrar que o acúmulo de riqueza e poder, personificado pelo lazer é, sem dúvida, um produto da exploração do outro. Esta obra contemporânea, portanto, além de se revestir de significados próprios, como a crítica ao colonialismo e as questões de autenticidade, ainda faz referência a outra obra de arte anterior, parodiandoa, o que lhe dá um significado a mais. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 41 V O grande número de obras com o tema do balanço nos remete à noção de hipertexto e de hipermídia. Assim como o artista Shonibare se moveu entre continentes – da Europa para a África e vice-versa – o batique também viajou da Europa para a Ásia e daí para a África, recebendo, a cada momento, um significado diferente. Do mesmo modo, o tema do balanço com suas inúmeras conotações também vem fazendo sua viagem pelo tempo e pelo espaço. A cada concretização, ou melhor, a cada configuração em uma determinada mídia, ele gera um hipotexto que, por meio de operações como imitação, superposição, incorporação, citação e modificação, é subvertido, ampliado e transformado em vários hipertextos. Cada um deles, por sua vez, é configurado em uma outra mídia, tornandose um outro hipertexto que, novamente na função de hipotexto, vai gerar outros hipertextos, e assim indefinidamente. Notas A tradução deste e de alguns outros textos da obra de Genette é de Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho em GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos traduzidos por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006. 1 Um exemplo disto é a estética do futurismo, que foi percebida em diferentes mídias (texto, pintura, escultura) com os meios formais específicos de cada mídia. A realização concreta dessa estética é, em cada caso, necessariamente específica da mídia, mas por si mesma ela não é, contudo, limitada a uma mídia específica. Até certo ponto, ela é possível e realizável de forma transmidiática, isto é, possível e realizável em um cruzamento de fronteiras entre as mídias. De forma similar, alguém pode falar em uma narratologia transmidiática, referindo-se às abordagens narratológicas que podem ser aplicadas a diferentes mídias, ao invés de apenas a uma única mídia. 2 Aqui estou usando a nomenclatura de Genette, que classifica as transformações em transformação simples e imitação. 3 4 Como este termo ainda não está dicionarizado, fica aqui a sugestão. Entre as pinturas e gravuras analisadas por Posner, destacamos The Swing , de Hubert Hughes; The Swing, The Shepherds e The Pleasures of Summer de Jean-Antoine Watteau e The Swing, Blindman’s Buff e The Seesaw, de Jean-Honoré Fragonard. 5 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 42 Um chapéu na imagem erótica do século XVIII servia para cobrir não só a cabeça, mas outra parte do corpo masculino quando fosse exposta inadvertidamente. 6 Um pé descalço e um sapato perdido, no século XVIII, simbolizavam a virgindade perdida. 7 Robert Stam utilizou-se dos termos de Genette – hipotexto e hipertexto – para analisar adaptações fílmicas. Para ele, o hipertexto tem a ver com um texto anterior – o hipotexto – que ele transforma, modifica, elabora e estende. Essa transformação se realiza por meio de operações de seleção, ampliação, concretização e atualização. 8 REFERÊNCIAS ARVIDSON, Jens et al. Changing Borders: Contemporary Positions in Intermediality. 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Thaïs Flores Nogueira DINIZ Doutora em Literatura Comparada pela Univesidade Federal de Minas Gerais/Indiana University, Bloomington, EUA. Professor associado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Financiamento: CNPq e FAPEMIG. Artigo recebido em 06 de novembro de 2010. Aceito em 28 de fevereiro de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 44 A PELE, O CORPO, O CORTE: SUPORTE E TEMÁTICA PARA LITERATURA, CINEMA E OUTRAS MÍDIAS Maria Angélica Amâncio Santos gellyamancio@yahoo.com.br Resumo: O ensaio pretende refletir sobre as diferentes leituras – bem como os entrecruzamentos de leitura – do corpo e da pele como suporte e tema para as várias mídias, pensando-se desde as tatuagens, os pergaminhos até as obras que levam essa temática ao extremo – como em castigos e “dermografias”. O corpus do trabalho inclui essencialmente o filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway, o conto “Les suaires de Véronique”, de Michel Tournier, além da menção a outras experiências, como o trabalho da artista plástica Nicola Constantino e os textos A alma encantadora das ruas, de João do Rio, e Na colônia penal, de Franz Kafka. Abstract: This essay intends to discuss the different interpretations – and also intersections of interpretations – of the body and the skin as materialization and theme for several types of media. The discussion includes tatoos, parchments and works that overdeal with this subject – as in punishments, re-creations and “dermographies”. For this study, we use mainly the film The Pillow Book, directed by Peter Greenaway, and the short story “Les suaires de Véronique”, written by Michel Tournier, besides other experiences, such as the works of the visual artist Nicola Constantino, and texts like A alma encantadora das ruas, by João do Rio, and In der Strafkolonie, by Franz Kafka. Palavras-chave: Intermidialidade. Leituras. Dermografia. Key words: Intermediality. Readings. Dermography. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 45 Na pele “Quer marcar?”, pergunta o jovem tatuador ambulante em crônica de João do Rio, no livro A alma encantadora das ruas. Munido de três agulhas amarradas e um pé de cálix com fuligem, o menino percorre as ruas do Rio de Janeiro no século XX, oferecendo seus serviços aos passantes, que, em muito movidos pelo ócio, acabam optando por marcar o corpo com traços que, em geral, variam entre uma coroa, um coração, um Cristo, um nome próprio. A palavra “tatuagem”, originária da Polinésia (tatou ou to tahou), significa “desenho”. Porém, desde os tempos mais remotos, o termo extrapola a categoria de simples adorno e constitui-se em (...) distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceania, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema na psicologia do atavismo. (RIO, 2007, p. 47) No Rio de Janeiro do cronista, a incidência da tatuagem predominaria entre os negros, os turcos religiosos e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcariam por crime ou por ociosidade. Por meio dela seria possível realizar um estudo de crendices, reconstruir a vida amorosa e social da classe humilde, conhecer suas aspirações, suas horas de ócio e a crença na eternidade dos sentimentos. A tatuagem seria, portanto, “a exteriorização da alma de quem [a] traz” (RIO, 2007, p. 47). Não é por acaso que “os tatuadores” – título da crônica em questão – levassem também o nome de “marcadores”: os traços inseridos na pele – quer por picada, incisão ou queimadura subepidérmica – perdem a inocência do reles “desenho”; tornam-se marcas reais, símbolos, confissões. Ou seja, embora o signo escolhido esteja dotado, evidentemente, de um significado particular para o indivíduo que o carrega, o que intensifica esse valor e o remete à poderosa categoria de “exteriorização da alma” é, em primeiro lugar, a superfície, a pele. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 46 Anne-Marie Christin (2006), ao refletir sobre a origem da escrita, desenvolve um “pensamento de tela” que privilegia, antes de mais nada, o suporte na análise da imagem. Segundo a autora: É preciso reconhecer (...) que se o homem pôde ter a ideia de combinar figuras-símbolos sobre uma superfície, e isto de tal maneira que seu espectador pudesse compreender que elas formavam, em conjunto, um sentido, ele teve necessariamente que conceber previamente, isto é, antes de as escolher e até mesmo de as imaginar, o suporte do qual iria fazê-las surgir e ordenar sua distribuição. (p. 65) De acordo com esse pensamento, o “intervalo” tem a função de estabelecer entre os elementos de uma imagem “efeitos de vizinhança”, diálogos, interrogações, completude; ele é o princípio motor da associação de suas figuras. Imprimindo nelas suas mãos, homens da pré-história homenageavam as paredes inspiradoras sobre as quais pintavam; a experiência fundadora da escrita chinesa seria também a do “vazio” e não a do traço; seriam os suportes – rolos ou livros – os testemunhos da religião cristã e dos fundamentos de sua fé. Assim, o fato de ser a pele humana a superfície da tatuagem muito revela sobre seu significado, especialmente porque a marca invade o suporte, perfura-o, colorindo-o em permanência. A pele é o tecido que cobre todo o corpo humano, escondendo a crueza de seus músculos, ossos e veias. Diferentemente dos outros animais, cuja pele é quase totalmente coberta por penas, escamas ou pelos, a pele humana é consideravelmente mais exposta, sugerindo maior fragilidade. É, sem dúvida, resistente, porém extremamente sensível ao frio e ao calor, ao toque, da violência à carícia. A pele humana é, assim, sincera: manifesta emoções, arrepia-se, adoece, envelhece. É, certamente, por esse caráter tão vivo da pele que as obras da artista plástica argentina, Nicola Constantino, geram tanta polêmica, percorrendo o caminho do fascínio à repulsa. Objetos de material sintético idênticos ao tecido humano revestem acessórios como bolsas e sapatos, assemelhando-se a seios, nádegas, braços. São apenas imitações, mas a simples ideia de se reutilizar a pele alheia, e o gesto de reproduzi-la, perfurála, marcá-la, tudo remete a uma sensação de crueldade, sadismo, abuso. Talvez seja justamente com esse objetivo que, em Na colônia penal, de Franz Kafka – obra que critica o instituto da pena, o despotismo e a justiça Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 47 arbitrária – um antigo oficial desenvolva um instrumento de tortura que escreve lentamente sobre a pele do condenado, com agulhas de vidro, a sentença do crime que, muitas vezes, ele sequer cometeu. A primeira punição é, portanto – e a exemplo dos antigos samurais –, a eterna lembrança, inseparável companheira do criminoso condenado, exposta na pele. À cabeceira, o corpo O castigo é uma das diversas conotações que recebe a escrita sobre o corpo no filme O livro de cabeceira (1996), de Peter Greenaway.1 Em primeiro lugar, é interessante pensar o título: livro de cabeceira é, a priori, aquele do qual não se separa, o livro que se busca todas as noites antes de dormir, o livro diário, que acaba por se tornar a marca de uma personalidade. E é justamente de uma espécie de diário íntimo que parte o cineasta britânico: trata-se de um clássico da literatura japonesa do século X, O livro de cabeceira, de Sei Shonagon. Composto de 164 listas de coisas agradáveis, irritantes, esplêndidas, o livro, precursor de um gênero tipicamente japonês conhecido como zuihitsu (escritos ocasionais), apresenta também observações sobre plantas, pássaros, insetos, etc., em uma prosa ágil, que observa e registra o transitório, o circunstancial. É o que observa Maria Esther Maciel (2004): Pode-se dizer que Greenaway aproveitou toda essa atmosfera em seu filme, não apenas ao inserir a personagem principal, de nome Nagiko (não por acaso o mesmo primeiro nome da escritora japonesa) no mundo up to date das passarelas da moda e dos centros urbanos de Tóquio e Hong Kong no fim do século XX, mas sobretudo ao potencializar visualmente – através de citações de trechos ou páginas inteiras do diário – as listas líricas e insólitas de Shonagon. Os ideogramas da escrita oriental são apresentados na tela como metáforas vivas, corporais, seja através da reprodução do texto sobre/ sob as imagens desdobradas em diferentes planos, seja a partir da exploração da analogia (convertida em imagem concreta) entre corpo e livro, pele e papel. Tudo, com a finalidade de evocar visualmente o que no seu diário Shonagon elege como sendo os dois princípios fundamentais da vida: os prazeres do corpo e os deleites da poesia, experimentados a um só tempo. (p. 213) Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 48 Influenciado pela visualidade ideogramática de Serguei Eisenstein, e pela exploração do tecido sensorial da linguagem (cinemática e literária) experienciada por Alain Robbe-Grillet e Alain Resnais em O ano passado em Marienbad (1961), Greenaway – que sempre se insurgiu contra o que chama de “compulsão ilustrativa do cinema contemporâneo” – utilizou-se de vários recursos tecnológicos para transcriar o texto literário japonês. Utilizando-se da multiplicação de telas e da sobreposição de planos, pela subdivisão estratégica de enquadramentos, nas “janelas” que se abrem em diferentes proporções, o cineasta entrelaça várias linguagens estéticas e referências culturais, explorando ao máximo essa obra transmedial ou de “transposição de arte” que, segundo Leo Hoek (2006), “consiste em passar de um modo de expressão estética a outro” (p. 44). De fato, Greenaway se aproveita dessa possibilidade trans-midiática verificável na arte cinematográfica, e, em especial, no modo como se dá no filme em questão. O cineasta extrai cinematicamente efeitos poéticos da leitura oral de trechos do diário de Shonagon pelas modulações da voz do leitor, em conjunção com as imagens e com a dimensão táctil (pele/tela) em que estão escritas. Ou seja, Peter Greenaway não apenas se utiliza dos aspectos visuais predominantes no cinema, como também explora os outros sentidos na experiência de transposição intersemiótica. (...) faz bastante sentido abordar como transposições intersemióticas os muitos exemplos nos quais os aspectos visuais dos textos verbais têm sido intensificados por operações visuais adicionais. Essas são as obras intermidiáticas nas quais o texto verbal tem sido incorporado ao novo signo. (CLÜVER, 2006, p. 152) Outro fator de destaque em O livro de cabeceira é a escrita ideogramática, que tanto se aproxima da prática da pintura e que explicita a dependência de um contexto, espaço físico, instrumento e superfície. O ideograma “caracterizado por sua flexibilidade visual e verbal, em oposição à escrita alfabética” (ARBEX, 2006, p. 19) amplia ainda mais a intercomunicação e a justaposição das artes nessa obra fílmica que conjuga, em um mesmo espaço, “2000 anos de caligrafia oriental com 10 anos de invenção da visualidade computadorizada e um século de vocabulário cinematográfico” (MACIEL, 2004, p. 215). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 49 Na trama, a menina Nagiko recebe do pai, em todos os seus aniversários, uma inscrição sobre a pele do rosto e da nuca de palavras acerca da criação do homem por Deus, e sobre a importância da escrita para a memorização do nome de cada um dos seres. No quarto aniversário, somam-se a essa experiência a leitura, por sua tia, das primeiras páginas de O livro de cabeceira, de Sei Shonagon, e o flagrante em que seu pai, um escritor, submete-se ao assédio homossexual do editor, em troca da publicação de seus livros. Quando adulta, Nagiko pede a seus amantes que escrevam em seu corpo, procurando conjugar o prazer sexual ao sensorial e ao plástico, tornando-se ao mesmo tempo carne e papel, ou – o que se manifesta pela flexibilidade entre o verbal e o não verbal do ideograma – página e tela. Em uma de suas inúmeras experiências na busca de um habilidoso calígrafo que seja também um habilidoso amante, a protagonista conhece o tradutor Jerome. O nome do personagem é uma referência a São Jerônimo, santo da Igreja Católica, dono de uma das mais célebres bibliotecas do mundo antigo, que transpôs pela primeira vez para o latim o original hebraico do Antigo Testamento. Para isso, foi-lhe necessário recriar uma sintaxe, um estilo, uma língua enfim que fosse tanto nobre quanto popular. Hebraizar o latim, inscrever a diferença no mesmo, reconfigurar uma língua a partir da estranheza da outra, desviar-se da literalidade e arriscarse na interpretação dos sentidos do texto foram algumas das diretrizes da obra de Jerônimo. Como um bom precursor dos modernos, ousou na invenção de neologismos, reimaginou metáforas, recusou as regras e os artifícios da retórica do tempo, experimentou novas dicções, aliou o rigor à transparência do dizer. (...) Como Novalis, ele encontrava no poético a via mais genuína para a expressão do que considerava o mais verdadeiro. (MACIEL, 2004, p. 63) A alusão a São Jerônimo conjuga-se ao caráter babélico do filme – foram usadas sete línguas em registros orais e escritos –, e à homenagem implícita do diretor ao poeta e orientalista inglês Arthur Waley, o primeiro a transpor para a língua inglesa, no início do século XX, os principais clássicos da literatura japonesa, entre eles O livro de cabeceira.2 Tais escolhas vão ao encontro da experiência realizada no filme de uma tradução intersemiótica, que, como qualquer tipo de transmutação, precisa ser preparada para “recriar” o texto-fonte, buscando, para isso, utilizar-se das particularidades da linguagem em que se espera enquadrar o texto-alvo. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 50 Além disso, Greenaway manipula muito bem o que seriam considerações teóricas, referências e homenagens à fluência da história: assim como São Jerônimo e Waley, ao trazerem para o Ocidente a estranheza oriental, interferiram na produção poética ocidental, também o personagem Jerome catalisa decisivas mudanças na vida de Nagiko e em sua relação com a escrita e com a tradição paterna. É ele quem lhe sugere que cubra seu corpo com os ideogramas que lhe são tão caros, que seja também escritora e calígrafa, que seja o pincel e faça dele o seu livro. A princípio, Nagiko se recusa; porém, ao saber das relações entre Jerome e o mesmo editor que publicava as obras de seu pai, a protagonista resolve aceitar a proposta de Jerome, fazendo dele o mensageiro de seus treze livros. Ocorre, contudo, a interferência das paixões, dos ciúmes, do desejo, das inseguranças, do interesse. Quando Nagiko elege outro mensageiro para um de seus livros, Jerome tem um ataque de fúria, em que se queixa: “Ele estava coberto de tinta... A tinta para o meu corpo.” Evidentemente, a tinta a que se refere Jerome difere a princípio daquela utilizada nas tatuagens, não apenas pela substância, mas especialmente pelo instrumento e por seu tipo de contato com a pele. Roland Barthes, em Variações sobre a escrita (1994, p. 238) aponta duas espécies de escrita: a da punção e a do pincel, “a mão que força e a mão que acaricia”. A primeira, cujos modelos são a escrita cuneiforme e a hieroglífica, “ins-creveria” – ou seja, traçaria no “interior” –, sugerindo uma irreversibilidade, uma ordenação sólida; enquanto a segunda, que é essencialmente a escrita ideográfica, seria uma “de-scrição”, da mão deitada, do desenho descido, pousado. “Dois gestos (duas civilizações): penetrar o segredo, racionalizar, ou expor o significante, fazê-lo revir: a eternidade ou o retorno, o singular definitivo ou o plural recorrente” (p. 239). O autor diferencia ainda Ocidente e Oriente, atribuindo à escrita do primeiro a intenção de “domar o corpo (e por conseguinte emancipá-lo)”, e à do segundo o dom de “dominá-lo (e por conseguinte de refinar seu gozo)” (p. 234). A ideia do gozo, do prazer, da sensualidade na leveza do pincel sobre a pele, perpassa todo o filme, está em cada traço, vertical e horizontal, de cada ideograma. Em O livro de cabeceira, pele e papel se misturam, seus aromas são comparados a todo o instante, os prazeres do corpo e os deleites da poesia são experimentados a um só tempo. Mas também as dores e as vilanias. O texto a ser publicado é também o corpo que se submete à vontade do mais forte: o escritor se humilha diante do editor – precisando, antes, para isso, do auxílio de um tradutor/mensageiro – e ora Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 51 se deleita nessa humilhação, ora a repudia, assim como os amantes em suas provocações, traições e preferências. O desfecho da trama é ainda mais visceral: Jerome se suicida, Nagiko escreve sobre o corpo dele “O livro do amante” e o envia ao editor, que, num procedimento cirúrgico, retira a pele do tradutor, de que serão feitas literalmente as páginas do livro. Tal livro será a moeda de troca para os outros escritos de Nagiko e que a conduzirá à aspirada vingança com a morte do editor. Rasgando a pele O ser humano consumido por um ideal doentio de perfeição artística é também o tema de “Les suaires de Véronique” (1978)3, de Michel Tournier. No conto, o narrador-testemunha conhece o casal Hector e Véronique em um encontro internacional de fotografia. Chama-lhe a atenção a beleza mediterrânea do modelo que posa para os fotógrafos, em sua nudez “soberba e generosa”. Mais tarde, ouvindo a conversa do casal, o narrador se interessa por um dente de tigre que o rapaz traz consigo, acreditando tratar-se de um amuleto especialmente eficaz contra a ferocidade e o apetite desses grandes felinos. Um ano depois, o narrador visita o casal, e se surpreende ao encontrar o que ele chama de “sala de operação” ou “quarto de tortura”: um cômodo destinado apenas à prática de atividades físicas, as quais, segundo Véronique, Hector executa intensamente por três horas todos os dias. Aos poucos, a fotógrafa vai revelando o rigoroso programa de exercícios, alimentação, sono a que vem submetendo Hector, a fim de tornálo um modelo ideal para suas fotografias. Ela revela também um estranho fascínio por dissecações, necrotérios, feitiçaria e estudos de anatomia em seres humanos vivos. Antes de se despedir, o narrador pede para ver Hector. Véronique o conduz ao quarto onde ele repousa, um lugar de paredes nuas, branco até na cor das cortinas, semelhante a um ovo – como se ali se gerasse um novo Hector, um novo homem, obra sua: “Véronique pousou sobre ele um olhar possessivo, depois ela me olhou com um ar de triunfo. Era sua obra, uma conquista magnífica, indiscutivelmente, aquela massa escultural e dourada, atirada ao fundo daquela cela ovoide” (TOURNIER, 1978, p. 164). Destaca-se, aqui, uma antiga paixão de Michel Tournier: a fotografia. Ela é colocada no centro da diegese, desde o princípio. A Véronique – Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 52 personagem que, de acordo com Monique Pinthon, é dotada de caráter diabólico e atua em extrema oposição a seu homônimo bíblico, como um “negativo” da Verônica que limpa o rosto de Jesus a caminho da crucificação –, Hector interessa apenas como imagem, corpo e ângulo, para ser fotografado. Toda a obra, aliás – a começar pela escolha do narradortestemunha, que em nada interfere, apenas observa e reproduz – conduz à reflexão acerca do olhar, do icônico, do caráter sagrado e profano no gesto do fotógrafo, na obra fotográfica: “O conto como um todo funciona como metáfora da fotografia, como revelador de sua essência, tão frequentemente ocultada pela sociedade que se dedica, tanto quanto possível, a usá-la de dois modos que parecem opostos, mas que são, contudo, convergentes: sua banalização pela difusão ou seu status de arte” (PINTHON, 1996, p. 147). A protagonista traz à tona um incômodo presente nessa dicotomia, que é o de como encontrar da fotografia a essência, como situá-la em uma posição que a reviva, que não faça dela outro dos tantos clichês da arte. A resposta está, na narrativa, na autenticidade da “dermografia”, a prática final, que envolve o modelo em um tecido fotossensível, de maneira dilaceradamente realista: algum tempo depois da visita do narrador, Hector tenta deixar Véronique, atribuindo a culpa à anormalidade do seu comportamento: ela fizera vinte e duas mil, duzentas e trinta e nove fotografias da imagem dele. Véronique sofre. Porém, cerca de um ano mais tarde, o narrador percorre uma exposição denominada “Les Suaires de Véronique”. Ali, pelas paredes, estão estranhas silhuetas esmagadas, uma projeção plana do corpo de Hector, semelhantes – escrevia Véronique em sua apresentação da obra – “ao que restou, sobre certas paredes de Hiroshima, dos japoneses fulminados e desintegrados pela bomba atômica” (1978, p. 169). Por todos os lados, na sala de exposição, em cima, embaixo, à direita e à esquerda, o espectro de um corpo aplainado, esticado, enrolado, desenrolado, reproduzido em um friso fúnebre, em todas as posições. “Imaginava-se uma série de peles humanas arrancadas, depois estendidas como se tratando de diversos troféus bárbaros” (1978, p. 171), descreve o narrador. Era Hector, sacrificado em um processo denominado “fotografia direta”. Era ele, nos “sudários de Véronique”, exposto em uma igreja, em nova referência ao culto (a Cristo? à fotografia? ao artista?). E ela, ao redor do pescoço, trazia o dente do tigre de Bengala – representando, simbolicamente, o Hector indefeso e desprotegido, a quem como uma espécie de tigresa, havia reduzido à pele exposta naquelas paredes fúnebres. Afinal, a foto mais realista do corpo é a própria pele em tela. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 53 Considerações finais Neste ensaio, procurou-se apresentar uma série de obras que se apropriam do corpo e, mais especificamente da pele, como suporte de criação e recriação, como temática e como possibilidade de entrecruzamentos midiáticos. Tais experiências artísticas extrapolam as leituras tradicionais do corpo – animalizado pelas escolas literárias naturalistas ou erotizado por uma lista infindável de produções –, assim como engendram a reflexão acerca dos mais conhecidos suportes para a pintura e a literatura, a saber, a tela e o papel. Nesse sentido, destaca-se a contribuição de Anne-Marie Christin acerca da origem da escrita, no que chamou de “pensamento de tela”, além das considerações sobre intermidialidade, de teóricos como Leo Hoek e Claus Clüver. Vale ressaltar a habilidade das obras aqui em estudo – especialmente o filme O livro de cabeceira e o conto “Les suaires de Véronique” – de se utilizarem do diálogo com outras mídias não somente na articulação e construção interna de sentido, como também na reflexão acerca dessas mídias em suas relações mais profundas com o homem, com a vida, sob e sobre a pele. A pele: alvo de desejo, fonte de carícia e de calor. O maior órgão do corpo humano. A pele que respira, que se arrepia, que envelhece. A pele que intriga e desconforta nos objetos de Nicola Constantino, que seduz no Livro de cabeceira, que se oferece como suporte para a agulha e a tinta das tatuagens – sejam elas adornos, castigos, recordações. A pele que faz os pergaminhos. Que é sudário e mortalha. A pele que é página e tela, que não poderia deixar de ser pensada, utilizada, recriada nas artes – com toda a beleza e todo o tato. Notas O trecho do ensaio desenvolve ideias já debatidas por Maria Ester Maciel, em “São Jerônimo em tradução: Júlio Bressane, Peter Greenaway e Haroldo de Campos” e “Poesia à flor da tela”. 1 Greenaway admite, em entrevista, que a beleza da tradução feita por Waley muito influiu na composição do filme (GREENAWAY, 1997, p. 81). 2 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 54 A palavra francesa “suaire” pode ser traduzida, em português, como “sudário” ou “mortalha”. As traduções são minhas. 3 REFERÊNCIAS ARBEX, Márcia. “Poéticas do visível: uma breve introdução”. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 17-62. BARTHES, Roland. Variations sur l´écriture. Paris: Seuil, 1994. CHRISTIN, Anne-Marie. “A imagem enformada pela escrita.” In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 63-105. CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 107166. FREUD, Sigmund. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. GREENAWAY, Peter. The Pillow Book. Paris: DisVoir, 1996. GREENAWAY, Peter; CIMENT, Michel. “Une femme émancipéé comme beaucoup de mes heroines – entretien.” Positif, Paris, n. 431, jan. 1997, p. 80-85. HOEK, Leo H. “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática”. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. 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O emprego das mais diferentes técnicas oriundas da cultura midiática, aliado ao uso de gêneros já consagrados pela tradição, faz do romance de David Lodge um grande mosaico de referências intermidiáticas. A partir desse contexto, o presente trabalho objetiva mapear o modo como essas referências implicam um cruzamento de fronteiras genéricas e discursivas que descentram o próprio fazer artístico ao permitirem a inserção de ligações e arranjos inesperados entre componentes narrativos distintos. Résumé: Le roman Changement de décor (Changing Places, 1975), de David Lodge, présente, dans sa technique narrative, le croisement des médias, comme le cinéma, avec d’autres genres littéraires et non littéraires. L’utilisation de différentes techniques provenant de la culture médiatique, combinées avec des genres déjà consacrés par la tradition, comme le récit epistolaire, fait du roman de Lodge une mosaique de références inter-médiatiques. A partir de ce contexte, cet article analyse comment ces références impliquent un croisement de frontières génériques et des discours entre élements narratifs hétérogènes. Palavras-chave: Intermidialidade. Referências intermidiáticas. David Lodge. Mots-clès: Intermédialité. Références intermédiatiques. David Lodge. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 57 Segundo Irina Rajewsky, existem três categorias individuais de intermidialidade. Em primeiro lugar, Rajewsky propõe o conceito de intermidialidade em um sentido mais restrito de transposição midiática (adaptações fílmicas, novelizações, etc.). Estamos perante um modo de criação de um produto, com a transformação de um determinado produto de mídia – texto, filme, etc. – ou de seu substrato, em uma outra mídia. Trata-se, portanto, de uma concepção de intermidialidade voltada para os processos genéticos de produção: o texto ou o filme originais são a fonte do novo produto de mídia, cuja formação é baseada em um processo de transformação específico da mídia e, obrigatoriamente, intermidiático. A segunda categoria proposta por Rajewsky diz respeito à intermidialidade no sentido também estrito de combinação de mídias, como é o caso de óperas, filmes, teatro, performances, instalações em computador, quadrinhos, etc. Com efeito, tais mídias apresentam-se como produtos híbridos ao combinarem mídias diferentes em sua constituição. No caso de um filme, imagem, som e diálogos; em uma ópera, canto, música, teatro; em uma performance, dança, música e teatro; nos quadrinhos, imagem e texto. Estamos, portanto, perante os chamados fenômenos multimídia, mixmídia e intermídia, nos quais a intermidialidade é um conceito semióticocomunicativo, baseado na combinação de, pelo menos, duas formas midiáticas de articulação. No entanto, é a terceira categoria apontada por Rajewsky que aqui será privilegiada para exemplificar alguns dos processos que envolvem a presença da linguagem cinematográfica na composição do romance Invertendo os papéis (1998), de David Lodge. Nessa categoria, teremos a intermidialidade em um sentido restrito de referências intermidiáticas, como é o caso de um texto literário que faz referências a um filme ao evocar e ou imitar procedimentos e técnicas cinematográficas como tomadas em zoom, dissolvências, fades, efeitos de montagem, linguagem do roteiro, etc. Da mesma forma, podemos pensar em fenômenos como a musicalização da literatura, a transposição de arte e as referências a quadros em filmes. O produto dessas referências intermidiáticas se constitui, portanto, em relação à obra ou sistema a que se refere. Aqui teríamos, a rigor, apenas uma mídia, ou seja, a mídia de referência, em oposição à mídia a que se refere, e que está presente materialmente. Em vez de combinar diferentes formas de articulação de mídias, esse produto tematiza, evoca ou ainda imita elementos ou estruturas de outra mídia convencionalmente distinta através do uso de seus próprios meios específicos. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 58 Desta forma, o romance de David Lodge se apresenta como um produto que faz referências a outras mídias ao imitar procedimentos da liguagem do roteiro cinematográfico, além de mimetizar práticas oriundas de outras ordens discursivas ao inserir cartas trocadas entre as personagens e recortes de notícias e panfletos em sua composição. Estamos, portanto, perante uma categoria que se constitui a partir daquilo que Rajewsky denomina de caráter “como se” das referências intermidiáticas, uma vez que uma única mídia – o livro – faz referência a outras mídias como o roteiro de cinema, as cartas e os anúncios e notícias de jornal sem deixar de ser um livro que apresenta uma história em forma de romance. Com efeito, um produto de mídia não pode fazer uso ou reproduzir verdadeiramente elementos ou procedimentos de outro sistema midiático, podendo apenas evocá-los ou imitá-los. É nessa perspectiva que o presente trabalho se configura ao tentar analisar o modo como um romance pode integrar a forma de um roteiro cinematográfico em seu último capítulo. Nesse caso, a noção de intermidialidade se mostra particularmente útil para tentar definir o estatuto do roteiro no romance, uma vez que estamos perante uma obra na qual o conteúdo reflete uma forma de escritura que, desde o começo do último capítulo de Invertendo os papéis, reivindica um conceito preciso, a ideia de um filme. Com o romance de David Lodge estaríamos, então, entre duas concepções de roteiro: de um lado a que o considera como um mero objeto de transição entre o texto e o filme; de outro, a que lhe confere o status de uma obra acabada e autônoma. Um roteiro fictício O romance Invertendo os papéis (Changing Places, A Tale of two Campuses, 1975), do escritor e crítico inglês David Lodge, apresenta uma história simples. Numa espécie de homenagem a um de seus mestres, o autor aqui retoma a ideia desenvolvida por Charles Dickens em Um conto de duas cidades (A Tale of Two Cities) para demonstrar de maneira irônica as diferenças culturais não mais entre Londres e Paris, mas entre dois países, a Inglaterra e os Estados Unidos, mais especificamente entre os campi de duas universidades: a inglesa Rummidge e a americana Euforia. Philip Swallow é um professor de literatura inglesa da fictícia universidade de Rumidge, nos arredores de Londres. Morris Zapp é também professor de literatura inglesa na Universidade de Euforia, na Califórnia. Ambos participam de um Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 59 programa de intercâmbio entre as duas universidades que prevê a troca de seus postos durante seis meses. Deixam, portanto, suas esposas (respectivamente Hilary e Désirée) e partem rumo a seus destinos. Segundo o próprio David Lodge, o romance trata da história dos dois acadêmicos que, depois de trocarem de emprego no ano de 1969, passam a se relacionar com a esposa um do outro. No decorrer da história, trocam diversas outras coisas, como experiências, valores, atitudes e linguagens numa trama altamente simétrica, em que todos os acontecimentos em um lugar têm algum equivalente ou reflexo no outro. O romance é dividido em seis capítulos. O primeiro, chamado de O voo, mostra as viagens dos dois professores: o avião de Philip atravessando o Oceano Atlântico em direção ao leste, enquanto que o de Morris voa para o Oeste. Os dois aviões por pouco não se chocam. Aqui já nos deparamos com uma mudança quase imperceptível: a narrativa passa do tempo presente no capítulo I para o tempo passado no capítulo II, intitulado A adaptação, em que cada um se familiariza com seu novo habitat. O terceiro capítulo, A correspondência, é apresentado como um romance epistolar por meio de uma série de cartas trocadas por Philip e Hilary, de um lado, e por Morris e Désirée, de outro. O capítulo IV, A leitura, consiste de trechos de jornais e de outros documentos lidos pelas personagens: artigos jornalísticos locais que descrevem ou relatam as implicações político-sociais dos dois acadêmicos em seus novos meios de atuação. O capítulo V, A mudança, é escrito segundo um estilo mais tradicional, mas se afasta do padrão de alternância usado nos capítulos anteriores e apresenta as experiências interligadas de Philip com Désirée, esposa de Morris, e de Morris com Hilary, esposa de Phillip. Finalmente, o sexto e último capítulo, O final, surpreende pela forma assumida pela narrativa: a de um roteiro cinematográfico. O capítulo se abre com palavras de natureza codificada, remetendo às didascálias típicas que introduzem um texto roteirístico: Exterior, esquerda para a direita, trilha sonora, enquadrar, plano sobre... Aos poucos, as personagens voltam a aparecer, primeiramente nas indicações de cena e de ação das didascálias, e, em seguida, nas passagens dialogadas agora apresentadas na forma de discurso direto e precedidas por seus nomes em itálico e centralizado. Na verdade, não estamos tão distantes da forma como o capítulo precedente terminou. Ao final do capítulo 5, Hilary recebe um telefonema de Désirée. Ela vai até Morris, que está saindo do banho, e lhe conta o que conversou com sua esposa. Désirée revela que estava tendo um caso com Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 60 Philip, o que faz com que Hilary igualmente lhe diga que ela faz o mesmo com Morris. Em diálogo direto, Hilary comunica então a Morris que, ao saber disso, Désirée havia proposto um encontro dos dois casais para que discutissem a situação. Tal encontro, espécie de conferência, acaba se realizando em Nova York, a meio caminho entre a Califórnia e o Reino Unido, durante o qual os quatro protagonistas deveriam discutir e resolver seus problemas matrimoniais e, por extensão metalinguística, a possível resolução (dénouement) de sua história; ou seja, a história que vem sendo narrada em Invertendo os papéis. Evidentemente, um roteiro não pode ser lido como um romance. No entanto, ao apresentar-se como a continuação do capítulo 5, eminentemente dialogado, o último capítulo de Invertendo os papéis causa menos impacto ao leitor, pois os diálogos lá estarão, sendo novamente trocados pelas personagens do romance. Excetuando-se os diálogos, a diferença entre romance e roteiro mostra-se em seu aspecto formal. Primeiramente, a escrita romanesca permite a descrição exaustiva de uma ação, podendo inclusive exprimir o pensamento de uma ou mais personagens. Já em um roteiro, enunciados como “ele pensa que” tornam-se inconcebíveis. Conforme percebeu Chistophe Gauthier, Se ele (o enunciado) não está inscrito em uma réplica, não tem direito à existência; não tem, por assim dizer, nenhum valor cinematográfico. O roteirista deve então buscar alternativas se quiser expressar o sentimento exterior de uma personagem: pode recorrer à voz em off, ao flashback ou ao flashforward. (GAUTHIER, 1999, p. 42, minha tradução) Em segundo lugar, o formato particular do roteiro, com seu vocabulário técnico, pouco tem a ver com os modos de escritura do romance. Essa é a grande diferença que salta aos olhos do leitor ao se deparar com o último capítulo do romance de Lodge, o que vem a exigir um esforço suplementar de leitura. David Lodge propõe, portanto, ao leitor de seu romance, um texto que remeta a um roteiro de cinema não apenas para concluir sua obra, mas igualmente para discutir a relação entre literatura e cinema, em uma visada declaradamente metalinguística. Dispostos a elaborar roteiros os mais incongruentes para suas próprias vidas, depois dos acontecimentos decisivos que viveram em solo estrangeiro, Morris e Philip tentam, por conseguinte, dar um fim à história do romance. Philip acredita que, em sua geração, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 61 ainda se crê na integridade do “eu”, tal como ensinada pela velha doutrina liberal, base de toda a ficção realista e tema de todos os romances. Na oposição estabelecida entre o público e o privado, responsável pela distância entre as gerações, a vida privada estaria em primeiro plano, com a história retumbando como canhões, ao longe, nos bastidores. O romance, então, estaria morrendo, e com ele, todos nós, pois tratar-se-ia de uma mídia contra a natureza, sobretudo para os alunos, pois nada teria a ver com suas experiências. Para Philip, os jovens vivem um filme, e não um romance: “Escrever um roteiro consiste, para o escritor, em se aproximar simbolicamente do cinema e da imagem, afastando-se, do mesmo modo, do romance. Se o roteiro não faz um filme, faz, pelo menos, pensar em um filme, um filme para ser vivido pelas personagens do roteiro” (GAUTHIER, 1999, p. 45, minha tradução). Reunidos, então, para discutir seus destinos cruzados ao longo dos últimos seis meses, quando cada um dos acadêmicos envolvera-se com a esposa do outro, Morris, Philip, Hilary e Désirée passam a discutir não apenas o destino de suas vidas, como também o desenlace da própria obra. Sintomaticamente denominado de O final, o último capítulo de Invertendo os papéis coloca em confronto o cinema e o romance no que respeita à previsibilidade do fim. Segundo a intepretação de Philip, o leitor prevê com maior facilidade a aproximação do final do livro pelas poucas páginas que se acumulam entre seus dedos da mão direita. Trata-se de uma prova física irrefutável que anunciaria o fim próximo do romance. Algo que remete, portanto, a um caráter espacial. Por sua vez, o filme nada deixa prever ao seu espectador que o mesmo se aproxima do final, a menos, é claro, que tenhamos verificado a duração do mesmo na coluna de programação de cinema de algum jornal ou internet. De um modo geral, no entanto, o realizador cinematográfico encerra sua narrativa de maneira inadvertida, sobre uma imagem qualquer por ele escolhida. É o que ocorre em Invertendo os papéis: o fim do romance, do roteiro e do filme se dá na imagem congelada de Philip dando de ombros após dizer a palavra FIM. Nenhuma decisão é tomada pelas personagens, configurando um final em aberto, característico de filmes sobretudo europeus. Um final cinematográfico para um romance, mas um final que na verdade não conclui. Ou estaríamos diante de um final literário, romanesco para um filme, sem a necessidade de um happy end ou de, pelo menos, um final totalizador/tranquilizador/organizador do caos? Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 62 A ideia de escrever o sexto e último capítulo de seu romance como um roteiro de cinema representou uma altenativa para seu autor equacionar dois problemas que então se lhe apresentavam. Segundo o próprio Lodge, à medida que escrevia o romance, percebia a necessidade de escrever um final satisfatório seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista narrativo. No que dizia respeito especificamente ao ponto de vista narrativo, o autor relutava em tomar uma decisão em favor de um ou de outro casal, o que, implicitamente, determinaria optar também por uma das duas culturas (a inglesa ou a norte-americana). O apelo a um capítulo “roteirizado” parecia, portanto, resolver todos esses impasses de uma só vez: Para começar, o formato preenchia o requisito de subverter o discurso ficcional “normal”. Além do mais, eu, como autor, me via livre da obrigação de julgar e arbitrar as vontades dos quatro protagonistas, pois não há resquícios textuais da voz autoral em um roteiro, uma vez que consiste apenas de diálogos e descrições objetivas e impessoais do comportamento visível das personagens. (LODGE, 2009, p. 235) Com efeito, o uso de procedimentos de apresentação baseados em técnicas de roteirização mostrou-se particularmente eficaz por parte dos chamados escritores do novo romance francês. Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet lançaram mão de expedientes semelhantes com o intuito de neutralizarem a presença do narrador em suas obras literárias. A escrita breve, objetiva do roteiro, que segue de perto a estrutura do texto dramático, mostrou-se muitas vezes eficaz para os experimentos com a linguagem literária. Texto ambíguo e de caráter transitório, o roteiro normalmente foi utilizado por escritores preocupados com a experimentação. Ao mesmo tempo que se aproximava da linguagem do cinema, o roteiro permitia a ilusão de uma narrativa que se contava por si mesma, independente de um narrador, sonho antigo perseguido desde Flaubert. Ao se ficcionalizar, o roteiro perde seu caráter funcional de texto de passagem para o cinema, não mais reivindicando os códigos do teatro ou do romance, mas tão-somente o status de litetatura. Roteiro fictício: jamais se tornará um filme e, no entanto, contenta-se com suas marcas e índices do cinema. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 63 Heterogeneidade génerico-discursiva e referências intermidiáticas O emprego das mais diferentes técnicas oriundas da cultura midiática (cinema, notícias de jornal, panfletos e manifestos), aliado ao uso de gêneros já consagrados pela tradição, como as cartas, faz do romance de David Lodge um grande mosaico que, ao misturar os vários registros e discursos, vem confirmar as ideias de Ítalo Calvino sobre a necessidade em se mapear os processos de produção e de recepção do texto literário como rede de conexões que vê o mundo como um “sistema de sistemas”. É justamente na multiplicidade enquanto valor que cada sistema particular condiciona os demais, ao mesmo tempo em que é condicionado por eles. A simultaneidade dos mais heterogêneos elementos concorre, assim, para a determinação de cada evento, confirmando a tese da literatura como “método de conhecimento e, principalmente, como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (CALVINO, 2002, p. 121). No espaço narrativo de Invertendo os papéis, percebe-se, com efeito, o apelo aos diferentes discursos e gêneros na construção de novas formas de representação de uma realidade multifacetada, fragmentária e múltipla, na qual os registros mais distintos encontram-se emaranhados. Neste processo, vislumbra-se o imbricamento de gêneros e mídias, com a consequente diluição de suas fronteiras. Além disso, cumpre observar que o texto de Lodge descentra o próprio fazer artístico, ao permitir a inserção de ligações e arranjos inesperados entre componentes narrativos distintos. Cada uma das formas assumidas pelo romance de David Lodge (cartas, avisos, notícias de jornal, roteiro) desempenha um papel simbólico e informativo. Sua diversidade, no entanto, não impede que as mesmas sejam “digeridas” pela forma e gênero romanescos. Trata-se, antes, de digressões a que o romance se permite de modo natural. Segundo Gauthier, “a escritura de David Lodge passa de um sistema de signos a outro, mas no interior de um sistema de signos dominante: o romance” (GAUTHIER, 1999, p. 48). A percepção do mundo, bem como suas representações, vêm sendo alteradas com base em uma lógica cultural urbana que enfatiza os processos midiáticos como mediação (vale a redundância) entre o olhar do homem e a realidade. Assim, a apropriação do real passa necessariamente pela tela do cinema, da televisão, da página do jornal ou da internet em uma dinâmica que altera igualmente nossa percepção do mundo através, sobretudo, de simulacros. Como resultado, o real tende a dissolver-se em uma colagem Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 64 de signos, o que vem definir a nova sensibilidade contemporânea, manifesta no modo como o homem se situa frente ao imaginário da cultura midiática. O romance, nesse viés, problematiza a nova ordem de forma contundente ao fazer referências explícitas a outras mídias e discursos. Tais referências são normalmente discutidas e teorizadas a partir do conceito de inter-textualidade. Segundo Irina Rajewsky, existe, de fato, uma relação estreita entre as referências intermidiáticas e intertextuais se pensarmos essa relação em seu sentido restrito, o que inclui as evocações ou imitações de certas técnicas de outras mídias em uma mídia específica. Considerações finais As referências intermidiáticas implicam, por definição, um cruzamento de fronteiras de mídias, propiciando o surgimento do caráter “como se” de tais referências. Assim, ao inserir na estrutura de Invertendo os papéis o roteiro de um filme ou os recortes de jornal e panfletos, David Lodge permanece dentro de sua mídia primeira, o livro, evocando e/ou imitando, no entanto, expedientes formais de apresentação do jornal e do cinema, “como se” fosse o roteiro de um filme ou um texto jornalístico. De fato, uma mídia não pode reproduzir genuinamente elementos ou técnicas de outro sistema midiático através de seus próprios meios específicos de mídia, mas apenas evocá-los ou imitá-los. Além disso, tal diferença midiática pode também fazer surgir uma qualidade específica e capaz de dar forma à ilusão da mídia que é inerente às referências. É precisamente essa ilusão que detém o poder de provocar no leitor do romance de Lodge a sensação de uma presença visual oferecida pelo cinema ou pela leitura de jornais, panfletos ou cartas. Em seu romance, David Lodge apela para um mosaico de signos, passeando com desenvoltura de um sistema sígnico a outro, indo do romance ao cinema e passando pelas cartas, pelo estilo jornalístico, etc. Trata-se, bem entendido, de uma vasta rede de relações não apenas intertextuais e intersemióticas, mas, sobretudo de relações intermidiáticas. Tendo isso em vista, nas referências intermidiáticas, segundo a leitura de Irina Rajewsky, apenas uma mídia distinta participa de sua própria materialidade e midialidade específicas, pois seu aspecto intermidiático definitivo não se refere às manifestações materiais de duas ou mais mídias diferentes. Em obras como Invertendo os papéis, as referências intermidiáticas dizem respeito à própria referência que um produto de mídia (texto, filme, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 65 etc) faz a um produto individual, um sistema ou subsistema de uma mídia diferente. Logo, a significação desse produto da mídia constitui-se em relação ao produto da mídia ou ao sistema ao qual se refere, sendo essa referência de natureza intermidiática. Ainda que o romance de Lodge mantenha-se nos limites de seu aparato verbal, o caráter “como se” de sua estrutura apela para a ilusão referencial moderna, calcada na imitação/evocação de outras mídias e discursos. Ao discorrer sobre as práticas de novelização (adaptações romanceadas de filmes), Jan Baetens afirma que, de um modo geral, as relações entre literatura e cinema não podem mais considerar livros e filmes como pertencendo a dois sistemas culturais distintos e autônomos, com seus códigos e convenções específicos. Cada vez mais temos a impressão de que as práticas artísticas misturam-se entre si. As mídias, em geral – definidas pelo autor como campos relacionais entre três dimensões: o suporte material, um determinado tipo de signo e um conteúdo particular – transformam-se continuamente, mas ao invés de apresentarem-se isoladas, aparecem e funcionam sempre em redes intermidiáticas. Esta pluralidade de mídias, ligadas elas mesmas a outras mídias com as quais estabelecem relações variadas, abrem, assim, novas e diversificadas perspectivas de pesquisa. REFERÊNCIAS BAETENS, Jan. La novellisation contemporaine en langue française. In: « Ce que le cinéma fait à la littérature (et réciproquement) ». Fabula LHT (Littérature, histoire, théorie), n°2, 1 décembre 2006. Disponível em: http://www.fabula.org/lht/2/Baetens.html. Acesso em: 23 abr. 2011. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GAUTHIER, Christophe. Le scénario dans le roman: Changement de décor, de David Lodge. CINéMAS, “Les Scénarios Fictifs”, vol. 9, nº 2-3, printemps, 1999. LODGE, David. Invertendo os papéis. Trad. Lídia Cavalcante-Luther. São Paulo: Scipione, 1998. ______. A arte da ficção. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 66 RAJEWSKY, Irina. Intermediality, Intertextuality and Remediation: A Literary Perspective on Intermediality. In: DESPOIX, Phillipe et SPIELMANN, Yvonne (Orgs). Intermédialités, Rémedier, nº 6, 2005, p. 43-64. André Soares VIEIRA Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Artigo recebido em 30 de maio de 2011. Aceito em 24 de junho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 67 O SENSÍVEL CINEMÁTICO: NOTAS SOBRE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ RUFFATO João Guilherme Dayrell chicodms@gmail.com Resumo: Este artigo busca delimitar em eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, o que resta da mediação pela máquina – que aqui chamamos de cinema – das imagens que compõem o sensível contemporâneo. Atenta-se para o contexto no qual se insere o referido texto, qual seja, a cidade de São Paulo no ano de 2000, para descrição da vida abjeta, e, por fim, para a composição do texto em 70 fragmentos – que não se organizam como uma amálgama, mas como um rizoma – que intercalam a abordagem de uma situação social, enunciados recortados de jornal e variados simulacros. Abstract: This article intends to delimitate in eles eram muitos cavalos, by Luiz Ruffato, what is left of the mediation done by the machine – that here we call cinema – of the images that compose the contemporary sensitive. We must be aware of the context in which the referred text is inserted, which is the city of São Paulo in the year 2000, the description of the abject life, and finally, the composition of the text in 70 fragments – which are not organized as an amalgam, but as a rhizome – that interpose the approach of a social situation, enunciated pieces of newspaper and various simulacra. Palavras-chave: eles eram muitos cavalos. Sensível cinemático. Cinema. Key words: eles eram muitos cavalos. Cinematic sensitive. Cinema. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 68 A começar pelo título: eles eram muitos cavalos (RUFFATO, 2001). O corte desagrega o texto e destaca o contexto, espaço no qual as temporalidades se imbricam, citando e ex-citando (COMPAGNON, 2007) a história: os cavalos que sucumbiram juntos aos cavaleiros da inconfidência mineira, que faz Cecília Meireles (1972) trazer as impossíveis testemunhas da barbárie. A peça de teatro O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade1, que contemporaneamente a Walter Benjamin, anunciava a guerra como ponto mais alto da fusão homem-máquina: os cavalos aqui como encarnação da máquina fascista, carregando Hitler dentro de si, provocando a nostalgia das meninas soviéticas que relembram do tempo em que eram animais dóceis (2005). Do mesmo Oswald, o capítulo denominado “A sociedade da anestesia”, presente na peça A morta2, onde suicidas que, apesar de mortos, instauram um diálogo entre si. O vodu haitiano no ritual dos Loa observado por Alfred Métraux (1958): o homem que monta no cavalo como encarnação, instauração do transe no qual o indivíduo se ausenta de si por meio da montaria (1958). Os cavalos de Clarice Lispector (1992), que subvertem a domesticação com um inesperado safanão com a cabeça. Ou mesmo o momento descrito pela escritora em que todos os cavalos se tornam imóveis com as patas erguidas, configurando “um instante imobilizado como por uma máquina fotográfica que tivesse captado alguma coisa que jamais as palavras dirão” (LISPECTOR, 1992, p. 52). Um sopro indistinto (FÉDIDA, 1996) “de algo que existe sobre um objeto”, como diz Emanuele Coccia (2010), ou seja, uma imagem. Entretanto, antes do desmonte, é preciso montar a história. O tempo, ainda que não seja possível estar absolutamente certo, seria o ano de 2000, o espaço, a cidade de São Paulo. Este é desmontado em setenta fragmentos, a partir dos quais nos é permitido inferir que uma suposta câmera-olho, ao percorrer o espaço citadino, transmitindo-nos momentos triviais – por vezes escatológicos – das vidas abjetas que na metrópole residem, é interrompida, por sua vez, por outras câmeras. Destacamos: o meio usado para “informar” o que se passa na cidade retrata não somente outros “retratos”, vá dizer, outras transmissões, como fragmentos de jornais, de programas televisivos, por exemplo, outrossim toda sorte de objetos discursivos: pedaços de cartas, recados em secretárias eletrônicas, lista de livros, de recomendações para obter sorte na vida, oferendas, serviço meteorológico, entre outros. A inversão da cultura em natureza – mito – que se transforma, no contemporâneo, em pensamento mítico, idioleto (BARTHES, 2004), conjunto de estereótipos; cartazes, anúncios, recortes Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 69 de jornais, textos achados no lixo. Sim, aqui é indiscernível a lógica bífida que Barthes apontava: linguagem interior e conversação, artigo de imprensa e sermão político, romance e imagem publicitária (BARTHES, 2004, p. 80). Contudo, o tempo atual – no qual eles eram muitos cavalos encontra-se imerso – não se descentraliza por completo: o acúmulo perdura como meta, tendo o seu dispêndio canalizado não somente por meio da guerra explícita, mas, também, naquela interiorizada, nomos do contemporâneo (BATAILLE, 1975). À lógica linear pela qual escoa a economia de mercado, ou seja, o tempo concebido como linha reta progressiva sob a tutela messiânica do desenvolvimento econômico se coaduna, por sua vez, a circularidade das mercadorias, a partir da qual tudo é posto como moeda de troca, impossibilitando, finalmente, a dádiva (DERRIDA, 1995). Os tempos, portanto, coexistem no mundo pós-68, que traz, contudo, em seu cerne, a multiplicação infinita dos dispositivos3, o que nos leva a constatar: em eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, a pobreza não é mais da falta, mas, sim, do excesso. Destarte, a contrapartida, na obra, da captura pelos dispositivos – que, no contexto do capitalismo, não visam provocar subjetividade específica, mas somente fazer a economia girar – é a interrupção dos depoimentos das personagens: jesuscristinho (RUFFATO, 2001, p. 18), cujo depoimento é censurado pela verborragia irracional do fragmento, ou Humberto (RUFFATO, 2001, p. 126), da passagem intitulada “noite”, que presencia seu desabafo ser agressivamente interrompido pelos enunciados da cidade, que, por sua vez, emergem repentinamente no corpo da narrativa, ou, por fim, o anônimo do fragmento “trabalho” que “rouba uns trocados da bolsa da esposa e sai de fininho dia inteiro bundando no parque ibirapuera olhando (...) nuvens que se formam e se desmancham, à espera de que o dia se desmorone” (RUFFATO, 2001, p. 46). A narrativa, em eles eram muitos cavalos, abarca o que está fora da linha progressiva composta pelos fatos de grande importância, aqueles que compõem a história oficial, privilegiando, em seu trabalho, o ruído. O iníquo de todo excesso contemporâneo não é decupado, e não se estabelece a saída para as personagens no que concerne à expropriação de seus poderes de decisão e ação, ou seja, de suas respectivas autonomias, como aquela já apontada em relação as estratégias textuais correlativas à captura pelos dispositivos. O anônimo no parque Ibirapuera, ao contrário do estrangeiro do poema de Charles Baudelaire, que fixa sua paixão no devir das nuvens no céu4, só espera que o dia desmorone. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 70 A opção pela leitura citadina por meio de fragmentos numerados até o número 69 – quando o livro é interrompido por páginas negras procedidas de um último flash não numerado –, nos faz evocar a São Paulo experimentada na década de vinte por João Miramar, de Oswald de Andrade, em 163 passagens (ANDRADE, 1973), igualmente disponíveis em ordenação numérica. O estilo telegráfico de Miramar, tal qual destaca Haroldo de Campos (2008), entretanto, é elevado, no texto de Ruffato, ao fuzil cronofotográfico – arma de guerra –, tão adequado ao cinema, como destacava Paul Virilio (2005). Valendo-se da sintaxe analógica do cinema eisensteiniano (CAMPOS, 2008), Oswald propõe uma amálgama – partes que formam um todo – de imagens de um Miramar que é criança, cresce, casa, viaja à Europa, assina suas cartas de despedidas, entre outros. Em eles eram muitos cavalos, as cartas apócrifas interrompem a descrição da barbárie, e como presenciamos no fragmento “a caminho”, o sujeito da condição de direcionamento a um lugar qualquer é o neon, que “vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas seixos, negra nesga na noite negra” (RUFFATO, 2001, p. 11). Como forma mais abrupta de contrapartida da dessubjetivação das vidas, ou seja, da subsunção de suas autonomias e da impossibilidade de se remontar uma subjetividade em uma suposta totalidade – tal qual fazia Oswald com João Miramar –, as personagens centrais do especificado texto de Ruffato passam a ser as máquinas, confluindo na imensa máquina da metrópole. Este, por sua vez, é o espaço no qual se constitui, por excelência, aquilo que Adolf Hitler, trazido por Giorgio Agamben, definia como espaço sem povo, sobre o qual “os povos se transmutam em população e as populações em muçulmanos” (AGAMBEN, 2002, p. 90). A figura do judeu no campo de extermínio que atingia o grau máximo de indiferença em relação à vida, por ser colocado defronte as mais absurdas e extremas experiências físicas e psicológicas, remete-nos ao máximo grau de expropriação da vida no âmbito da soberania, levando a indescibilidade de um não-homem que sobrevive ao homem, ou um homem que sobrevive a um não homem (AGAMBEN, 2008). A cidade, então, nos demarca não apenas a brecha que se abre no tempo entre um projeto e um programa, como coloca Jean-François Lyotard (1997), mas a zona de anomia entre bio e tanato política, molde e modulação, disciplina e controle (DELEUZE, 1992, p. 219). No Brasil, tal configuração encontra sua diferença como retorno do idêntico (DELEUZE, 2006) na barbárie normatizada, nos inumeráveis massacres que compõe a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 71 nossa história: da escravidão à chacina do Carandiru, da Candelária às ruas do centro de São Paulo, por onde a vida matável, porém insacrificável (AGAMBEN, 2002), “em sonhos de crack torrou, carvão indigente” (RUFFATO, 2001, p. 21), tal qual descreve eles eram muitos cavalos. Se o muçulmano resta como testemunha justamente por ser uma testemunha impossível (AGAMBEN, 2008), no referido texto de Ruffato, a partilha da experiência se dá de forma análoga a que descrevia Jean Luc Nancy ao abordar a poesia, ou seja, “segundo as leis de uma incomunicabilidade das suas ordens sensíveis” (NANCY, 2005, p. 40): procedimento que abre a narrativa do campo discursivo para o dialógico (FLUSSER, 2007), como um arquivo aberto ao futuro (DERRIDA, 2001). Os fragmentos aqui passam, então, de uma amálgama para um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2007), o que quer dizer que a possibilidade de se conectarem uns com os outros é a mesma impossibilidade de que um deles se complete e forme um sentido inteiro, totalizante, confortável consigo. O panorama descrito se potencializa pela anomia das personagens, assim como pela pouca explicação acerca das passagens que compõe a obra, tornando a fantasmagoria marca conspícua do texto. De tal sorte, eles eram muitos cavalos nos aparece como uma pletora de gestos anônimos que emergem a partir das inúmeras interrupções que sofrem os relatos, como, por exemplo, o das crianças que dormem ao lado de ratos, que durante a descrição de suas vidas abjetas – lembrando que Júlia Kristeva (1980) apontava o abjeto nem como sujeito nem como objeto, ou seja, a morte do eu – testemunham a sobrevinda de enunciados apócrifos que, por sua vez, impedem, silenciam a exposição (RUFFATO, 2001, p. 20-21). Tal panorama encontra, por fim, seu correlato na experiência do cinema. De acordo com Susan Buck-Morss (2010), um ambiente “tecnologicamente alterado expõe o aparato sensorial humano a choques físicos que tem correspondente em choques psíquicos” (p. 30), expropriando mesmo os traços não-civilizáveis próprios do sensível, tornando-os nulos. De tal forma, os estímulos das “percepções que antes suscitavam reflexos conscientes” se coadunam em “fonte de impulsos de choques dos quais a consciência se deve esquivar” (p. 30). E é por meio do cinema, – ou da câmera, ou melhor, da máquina – que o olho chega onde jamais poderia, assiste a cabeças cortadas e a fantasmagoria de pessoas que não estão mais lá, às mais eróticas provocações e aos mais absurdos atos de violência “e não fazemos nada”, cortando-se “a continuidade entre ação e cognição”, o que produz a “neutralização da sensação, um entorpecimento do sistema Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 72 nervoso que é equivalente a uma anestesia corpórea” (BUCK-MORSS, 1996, p. 14). Tal condição polariza o sensível na matéria obliterando a memória, já que não podemos responder a todos os choques aos quais somos submetidos. A mediação do sensível pelo aparato tecnológico – tão comum na guerra –, tendo em vista que chamamos de sensível as imagens que se formam precisamente entre a matéria e a memória, como coloca Emanuele Coccia (2010), torna aguda a seguinte polarização: de um lado, temos no homem moderno a fascinação, a impressão “narcisista do controle total”, na qual o fascismo faz sua morada, o que apenas intensifica, na outra ponta, a absurda fantasmagoria desta imagem do ego intacto que se reflete no espelho, a fratura radical, ou seja, caráter explícito de sua ilusão, de sua descontinuidade por ser, enfim, uma imagem (BUCK-MORSS, 2010). E, se como anunciava Paul Virílio (2005), “a guerra é o cinema e o cinema é a guerra”, o cinema é absurda fantasmagoria de um real que se torna absurdo, ou seja, que, como afirmava Gilles Deleuze (1985), não é a vida que imita um filme, mas o mundo que se nos apresenta como um filme ruim. Mas o que se joga de forma profícua aqui não é o que é cortado, expropriado, mas, sobretudo, como se corta. Se, para Agamben (2005), montagem se define por corte e repetição, ainda para o autor, existiriam duas formas para este procedimento: uma o corte ele mesmo, ou seja, uma potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para expô-la enquanto tal. A outra é aquela que propõe a expropriação da experiência sem permitir ver que ela fora capturada pela câmera, e aí acredita-se receber uma imagem especular na qual teríamos o tempo cronológico, imagem do inteiro, do totalizável. De tal forma, é com o advento do cinema, assim como da montagem cinemática, que somos bombardeados com a impressão da visualização completa das multidões e das metrópoles, que se tornam tão grandes e monstruosas que Walter Benjamin, no seu trabalho “Passagens” (2009), ou Edgar Allan Poe, no conto “Homem na multidão” (1999), não cansam de ressaltar a sua fantasmagoria. Todavia, a montagem cinemática não se destaca por juntar fragmentos ou por sobrepor imagens, isto a poesia sempre fez. Muito menos por, como afirma Georges Didi-Huberman (2008) e como vemos nos filmes de Andrei Tarkovsky por meio dos longos planos sequência, propor a coexistência de temporalidades heterogêneas em um mesmo espaço, requerendo uma montagem. A literatura já nos fornecia o mesmo. O que a montagem cinematográfica inaugura é um novo estágio do sensível, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 73 em que prefigura um absurdo “ganho” – alucinação? – cognitivo, cujo preço que se paga – tendo em vista que se trata de uma falsa produção de presença – é exatamente aquilo que Guy Debord (1997) chamou de “sociedade do espetáculo”, ou seja, uma seleção das imagens que compõe o sensível. Em consonância com a leitura deleuziana do cinema neo-realista italiano, em eles eram muitos cavalos, as personagens se tornam espectadoras (DELEUZE, 1985). Ou seja, elas apenas assistem, registram imóveis tudo o que se passa tornando inativo o princípio de resposta e ação, causa e efeito. De forma similar presenciamos a revolução impossível como nos trazia Glauber Rocha em Terra em transe, que sabia, bem como nos lembra o próprio Deleuze (1985), que o povo era algo que faltava. Se o diretor baiano produzia um documentário sobre uma ópera, como coloca Ivana Bentes (1997), em eles eram muitos cavalos teríamos um livro de reportagem acerca de um anúncio qualquer de jornal. O transe, a montaria, surge a partir da crença onde o pensamento é arrebatado pela sua exterioridade (BENTES, 1997). Mas o transe, o êxtase, é o momento no qual o sujeito não se coincide consigo, ou seja, ele está lá onde não mais está (AGAMBEN, 2005, p. 91). Daí que o povo em Glauber não está mais onde está, configurando, assim, uma massa por vir, que não, entretanto, chegará um dia, mas que não cessa de chegar. Isto nos chama a atenção para a confluência que se instaura entre biopolítica e cinema. Benjamin dizia: A difusão se torna obrigatória porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. [...] Em 1927 calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria atingir um público de nove milhões de pessoas. (BENJAMIN, 1996, p. 172) Deleuze também notava o dinheiro como principal dispositivo da arte do cinema, declarando que “filmes sobre dinheiro já são, embora implicitamente, filmes dentro do filme ou filmes sobre o filme” (DELEUZE, 1985, p. 98). Porém, como possível forma de desarticulação deste dispositivo, o filósofo citava a película Oito e meio, de Fellini, em que “quando não houver mais dinheiro, o filme acaba” (DELEUZE, 1985), propondo o que o próprio Benjamin já ressaltava, ou seja: a passagem pelos dispositivos. O cinema pressupõe, de tal forma, um povo transfigurado Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 74 em números, população, ou como dizia Buck-Morss (2010), a audiência do cinema não é um conjunto de espectadores individuais, mas um espectador, infinitamente reproduzido. Daí o brusco abandono das personagens de Luiz Ruffato pela própria narrativa como contrapartida da política “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2002). Ou seja, é Humberto que grita por Marina e é interrompido pelos enunciados da cidade (RUFFATO, 2001, p.126), o velho anônimo que habita o “cubículo cevando ódio” (RUFFATO, 2001, p. 68), com suas costelas à mostra, se esvaindo no turbilhão da narrativa, e as demais vidas que surgem em frases esparsas, sempre obliteradas pela máquina. No fragmento de eles eram muitos cavalos intitulado “Slow Motion” (RUFFATO, 2001, p. 117) vemos uma mesma cena – na qual uma latinha de cerveja é arremessada em um jogo de futebol – cambiando em pontos de vistas distintos, fazendo flutuar o foco narrativo em um discurso indireto livre que alterna entre um narrador situado fora da ação e os pensamentos das personagens. A simultaneidade usada para trazer a massa ao estádio de futebol através de algumas personagens anônimas faz, no entanto, com que a voz das protagonistas surja como um sopro, como gestos, que produz nada mais que o destaque do texto ele mesmo (AGAMBEN, 2000). De tal forma, o meio, em eles eram muitos cavalos, é posto enquanto tal. Mas qual o meio? Aqui tudo se joga no ponto em que a linguagem enquanto coisa conscientemente expropriada no ímpeto de se trabalhar sua potência se confunde com a expropriação forçada e centralizadora do poder. Ou seja, se há algo expropriado, a montagem corta para que ele possa ser expropriado no sentido de ser retomado ao uso: um desvio, detournement (DEBORD, 1956). Como as nuvens do Ibirapuera cortam a vida anestesiada no anônimo permitindo que ela possa, talvez, ser vida novamente, ou seja, acaso, devir. A máquina, por fim, se apresenta em seu desmonte: é a latinha de cerveja que vem de algum lugar, alguém que conta sobre seu trajeto, uma voz que emerge, o seu percurso visto de outro ponto de vista (RUFFATO, 2001, p. 117). Ou seja, a exterioridade do dispositivo é filmar o filme. Ao fim de eles eram muitos cavalos, temos as páginas negras que precedem o último fragmento do texto, suspendendo o ordenamento proposto pela enumeração das passagens que, por sua vez, nos remontava à cidade como um inventário, uma coleção. As páginas/telas escuras se colocam como a categoria L, tal qual a emprega Jorge Luís Borges em “O idioma analítico de John Wilkins”: o que está antes do fim da lista, mas acena para o infinito. Como destaca Maria Ester Maciel (2010): o topos por excelência do Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 75 inclassificável e, por extensão, a categoria que falta a todos os sistemas taxonômicos em geral. Alertando para a impossibilidade da classificação, tais páginas instauram o dispêndio infinito do significado, no entanto, abdicando das palavras. Aqui, o texto traz as escuras telas, como fazia Guy Debord nas palavras de Giorgio Agamben (1995), mostrando que por de trás de todo turbilhão não há nada a ser visto, este “sem-imagem”, que insere o objeto no tempo, mostrando que não há nada por detrás da linguagem. Todavia, todo este dispêndio, que nos joga de cara com a morte, aqui se estabelece nos fazendo atentar para outro aspecto. Lembramos do filme O sétimo continente, de Michel Haneke, no momento em que a personagem resolve se matar ingerindo uma dose letal de veneno. A protagonista, com os lábios brancos, o rosto completamente destituído de expressão, prefigurando um estágio indescidível entre vivo e morto, está sentada em frente à televisão. O momento de sua morte é precisamente o alternar de imagens entre seu rosto e a tela da televisão. Sua morte, por fim, é uma TV fora do ar, que perde a conexão. Esta é a redução mais radical que experimenta o sensível no contemporâneo. Em Ruffato, são as imagens de segunda mão que protagonizam a narrativa. A escrita evoca uma imagem, como um fade out de um filme, o escurecer entre a superposição de imagens, para enunciar o fim. É, contudo, uma imagem da TV, do cinema, do jornal, como os anúncios de prostituição no fragmento “na ponta do dedo” (RUFFATO, 2001, p. 137). Ou seja, não se trata no texto de abordar a situação das prostitutas, ele não se ocupa diretamente desta condição. O que temos é antes uma imagem já capturada pela máquina – um estereótipo – que aqui é colocado sem créditos. Ou mesmo o anúncio de vendas em que temos o nome da empresa e o telefone (RUFFATO, 2001), ressaltando que não somente a falsificação aqui prefigura, mas o saque, o roubo, que coloca os enunciados numa zona de indeterminação: tudo ali é falso, tudo ali é verdadeiro. Desta forma o outro entra, ou seja, seu depoimento como a eterna potência do falso de uma imagem, no estranhamento do texto consigo. Isto quer dizer, por outro lado, que não se postula aqui uma exceção que deveria ser contraposta à exceção real que encontramos no Brasil de agora. Somente que se constata que o esvair de uma vida corresponde a uma TV fora do ar, a um pedaço de jornal jogado no lixo, ou seja, o estágio deste sensível expropriado pelos dispositivos. De tal maneira, o que interessa, então, é o que brota no interior desta máquina, ou seja, que a preocupação maior de eles eram muitos cavalos é Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 76 colocar um tamanco de madeira em sua engrenagem e fazê-la inoperar, sabotando-a. Assim, poderíamos trazer as imagens ao uso novamente, profanando-as (AGAMBEN, 2007), instaurando uma montagem infinita: como o já citado anônimo que rouba alguns centavos da bolsa de sua esposa para ir “bundar” no Ibirapuera vendo as nuvens no céu. É a sua possibilidade de trazer o sensível novamente ao uso, pois o desejo, como diz Deleuze e Guattari (1966), não conhece a troca, somente a dádiva e o roubo. Notas 1 ANDRADE, 2005. Texto publicado pela primeira vez em 1934. ANDRADE, 2005. Texto de 1937. Coadunando-se à peça O rei da vela, ambos os texto de Oswald destacados aqui compõe a “Trilogia da devoração”, composta por Oswald para o teatro. 2 AGAMBEN, 2009, p. 41. Giorgio Agamben nos conceitua o termo: “(...) chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das conseqüências que se seguiram – teve a inconsciência de se deixar capturar. Recapitulando, temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Chamo de sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.” 3 REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1973. ______. Obras completas: panorama do fascismo. O homem e o cavalo. A morta. São Paulo: Editora Globo, 2005. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 77 AGAMBEN, Giorgio. Bataille e o paradoxo da soberania. In: CAPELA, Carlos Eduardo Schmidt e SCRAMIN, Susana. Revista Outra Travessia. A Exceção e o Excesso. Florianópolis, p. 91-94, 2005. _____. Means without End. Trans. by Vicenzo Binetti and Cesare Casarino. Minneapolis: The University of Minnesota, 2000. _____. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. _____. O cinema de Guy Debord. Trad. do francês Antonio Carlos Santos. Conferência em Genève, Nov. 1995. _____. O que resta de Auschwitz. O Arquivo e a Testemunha. 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Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 80 MÚSICA E POESIA EM MÁRIO DE ANDRADE: AINDA O CASO PAULICÉIA DESVAIRADA Flávio Barbeitas flaviobarbeitas@ufmg.br Resumo: A música e a noção de musicalidade têm lugar de destaque na teorização poética de Mário de Andrade, embora um exame aprofundado e mais especificamente voltado para a relação entre música e palavra é praticamente inexistente na apreciação crítica de sua obra que, quase sempre, se detém na descrição das ideias do autor. Etapa preliminar a uma reflexão mais geral sobre a representação da palavra poética, o texto a seguir detecta e procura ocupar essa lacuna, buscando ao mesmo tempo, por meio de exemplos colhidos na Paulicéia desvairada, iluminar a poesia de Mário de Andrade com um foco eminentemente musical. Abstract: The notions of music and musicality have a prominent place in the poetic theory of Mário de Andrade, although a thorough examination of the relationship between music and word is almost inexistent in the critical appreciation of his work which almost always is limited to the mere description of the author’s ideas. As a preliminary step to a more general discussion on the representation of the poetic word, the text then detects and tries to fill this gap by examining examples collected in Paulicéia desvairada in order to illuminate the poetry of Mário de Andrade with an eminently musical focus. Palavras chave: Poética. Música e palavra. Verso melódico. Intermidialidade. Keywords: Poetics. Music and word. Melodic verse. Intermediality. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 81 A proposta deste trabalho é jogar nova luz sobre a noção de música e sua utilização na chamada primeira poética de Mário de Andrade, mais especificamente em Paulicéia desvairada e no ensaio A escrava que não é Isaura. Em que pese a aparente inatualidade do tema, a abordagem que irá se seguir – uma análise crítica da argumentação principal do autor em torno do tema – na realidade prepara o terreno para uma discussão de maior envergadura sobre a questão da representação da palavra poética. Contudo, os limites deste texto me impõem a redução do alcance da discussão para uma etapa intermediária e que diz respeito mais especificamente à própria poesia de Mário de Andrade. Pode-se formulá-la, como indagação, nos seguintes termos: apresentada, a princípio, como mero modelo para uma determinada técnica de versificação, a noção de música pode se revelar útil para ampliar a compreensão da poesia de Mário de Andrade? Pode também alterar, ligeiramente que seja, os juízos críticos já consagrados a seu respeito? Como primeiro passo, retomo brevemente à lição do poeta exposta em seu célebre Prefácio interessantíssimo à Paulicéia desvairada. A sua “engenhosa” teoria pode ser aqui resumida como uma proposta de transporte para o poema do raciocínio harmônico/polifônico da música ocidental que, pelo menos desde a Idade Média, teria superado o procedimento exclusivamente melódico – ou seja, unilinear, sucessivo, horizontal – em proveito da simultaneidade sonora e da noção de verticalidade e plurilinearidade que dela decorrem. Nesse sentido mais geral, a harmonia, para Mário, teria representado um processo de enriquecimento da música ocidental, pois com os acordes, com os contracantos, com a perspectiva polifônica advinda da simultaneidade, aumentaram os recursos e as possibilidades de expressão artística. A hipótese, vista de certo ângulo e a despeito de inegável etnocentrismo, aparenta possuir algum fundamento: uma melodia, ou seja, uma organização sucessiva de sons pode ter seu sentido musical intrínseco radicalmente transformado pelo acompanhamento harmônico ou mesmo pela simples introdução de uma nova e simultânea linha melódica. Em outras palavras, diferentes harmonizações podem agir sobre uma melodia, seja enfatizando um suposto sentido prévio que já lhe seria próprio ou, por outro lado, traindo esse mesmo sentido, frustrando-o, desviando-o para rumos talvez impensados. Para Mário, tudo se passa como se a entrada em cena dos variados processos de harmonização tivesse ampliado a rede potencial de sentido que, antes, era acionada tão somente pela simples melodia. Ora, o que o poeta parece almejar é que um recurso semelhante se instaure na poesia. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 82 Sua luta é contra o império do que ele denomina verso melódico, ou seja, daquele que contém um pensamento inteligível, lógico, capaz de veicular uma significação segura.1 A simples melodia, tanto na música quanto na poesia, é identificada como uma estrutura resistente à ambiguidade, unívoca, objetiva, portadora de uma mensagem indiscutível, ao passo que a introdução da harmonia, de certa maneira, desestabiliza esse efeito já na raiz ao acrescentar outras possibilidades de configuração do sentido.2 No caso do poema, a “harmonização” ou a “polifonia”,3 por abrirem a rede de significação, passam a requisitar, muito mais que na “melodia”, a participação do leitor. Mas não adiantemos. Por ora convém analisar mais detidamente a função que a música, com Mário, desempenha no âmbito da teoria da poesia. Como se sabe, a tradição poética costumava referir-se às influências musicais vislumbrando no horizonte o ritmo, os efeitos fônicos, a instrumentalização sonora do verso. Falar em melodia aplicada ao poema, por exemplo, significava, invariavelmente, a alusão a certo efeito suave e cantante, a um especial enlevo que a música seria capaz de proporcionar; em suma, à melopeia das palavras. Bem outra, como já vimos, é a intenção de Mário de Andrade com a metáfora do “verso melódico”. A questão, aqui, passa ao largo de uma eventual eufonia, de um suposto contorno musical, para visar ao resultado semântico ele mesmo. Mas é fato que o nosso poeta não inova totalmente. Aproximações mais indiretas com a música, sejam metafóricas ou de algum modo alusivas à estruturação da obra, já povoavam a teorização poética de e sobre autores então já consagrados, como Baudelaire, Mallarmé e Poe. É que a comparação com a música permite pensar na poesia moderna como uma espécie de logos do qual, retirada a preponderância imperial do significado da mensagem, resta a força de presença do discurso ele mesmo. Poderíamos ainda dizer de outro modo: permanece o logos, mas sai de cena o valor de uma “visualidade” clara que sempre o caracterizara na metafísica e que se confundia com o plano do significado.4 Em se tratando de palavras, não se consegue nunca, é verdade, transformá-las em puros sons, completamente desvinculados de uma significação; eis aí, talvez, a fronteira infranqueável que permite discernir música e linguagem verbal, pois é também um fato que da pura sonoridade é impossível alcançar aquele específico sentido que só a palavra produz. Seja como for, trata-se de um limiar fugidio, “essencialmente móvel e instável”, e que traduz justamente o desafio acolhido com devoção tanto pela poesia moderna quanto pela chamada “música Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 83 contemporânea”. Em ambas as experiências, a palavra, fruto da voz (phoné semantiké aristotélica), é valorizada mais pelo que tem de sonoro do que de semântico, ainda que no caso da poesia, quando tomada apenas em sua dimensão escrita, o sonoro venha entendido também metaforicamente.5 Assim, uma determinada maneira de conceber-se a separação entre som e palavra consentiu a valorização da música de um modo diverso daquele proposto pela filosofia romântica de um Hegel ou de um Schopenhauer. A música passa a polo de transcendência da poesia, como se representasse uma espécie de dimensão superior à qual naturalmente tenderia a palavra poética. Ou seja: a música supera a palavra não tanto porque, a seu modo, aquela representaria o que esta não consegue revelar; mas porque, desbastada da sua ligação com o real, a palavra reencontra sua vocação sonora e sua própria materialidade. Assim, penso, é possível entender frases como esta de Mallarmé: “a poesia próxima da idéia é música por excelência...” (Citado em NUNES, 1998, p. 79). Ou ainda esta, do compositor alemão Richard Wagner: O arranjo rítmico e o ornato (quase musical) da rima são para o poeta meios de assegurar ao verso, à frase, um poder que cativa como que por encanto e governa à sua vontade o sentimento. Essencial ao poeta, essa tendência o conduz até o limite de sua arte, limite que toca imediatamente a música, e, por conseqüência, a obra mais completa do poeta deveria ser aquela que, no seu último acabamento, fosse uma perfeita música. (Citado em BAUDELAIRE, 1995, p. 922) Ao lado do aspecto formal, ou melhor, imbricado com ele, a noção de musicalidade na poesia moderna compreende um caráter de ambiguidade que deriva da própria quebra do pacto mimético, do descolamento do significante em relação ao significado, do desgaste de um uso apenas contratual e direto da palavra e, portanto, das contínuas experimentações com a linguagem. Se, num sentido geral, a ambiguidade poética se relaciona com a música pelo fato de que esta nada significa de seguro, o processo se torna ainda mais claro por conta de aproximações estruturais e pelo uso deliberado de procedimentos característicos da música na composição do poema. Aqui o exemplo ideal é Mallarmé, cujos recursos inovadores tiveram explícita inspiração musical e, sem dúvida, objetivaram a ruptura da ordem clássica e linear do discurso. Entre eles: a analogia entre palavras Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 84 e sons musicais para fins de tratamento sintático, atenuando a vinculação costumeira entre uma palavra e outra com o intuito de oferecer-lhes maior liberdade; a aproximação dos termos por meio de noções, como sonoridade e colorido, que dão ensejo a relações insólitas e completamente inesperadas. Além desses recursos, vale citar o uso do contraponto, isto é, a presença no texto de um entrelaçamento de duas ou mais linhas diferentes de pensamento, de tal modo que elas possam ressoar simultaneamente. A resultante de uma elaboração como essa é um movimento sintético geral que se sobrepõe a cada linha, tomada individualmente. O contraponto, técnica musical por excelência, é explorado por Mallarmé, nas prosas de Divagations, como identifica Hugo Friedrich (1978, p. 117-118), mas acabou se incorporando, como uma noção genérica, ao repertório de recursos poéticos dos mais variados autores. Reencontramos aqui o raciocínio musical da primeira poética de Mário de Andrade que, contudo, vem alimentado por considerações históricas e estéticas mais pessoais, ainda que ecoasse concepções de certo romantismo. É que na concepção do autor, a música teria alcançado o ideal estético da Arte Pura, desinteressada, e isso muito antes das demais artes. A razão para tal é a de ter se emancipado da palavra e, por conseguinte, do esclarecimento e da inteligibilidade que lhe são inerentes: “Libertada da palavra, [a música] em parte pelo aparecimento da notação medida, em parte pelo desenvolvimento dos instrumentos solistas, conseguiu enfim tornarse MÚSICA PURA, ARTE, nada mais” (ANDRADE, 1972a, p. 157). Já por essas coordenadas, pela associação da música a um campo em que o poder objetivante da palavra é limitado ou nulo e pela indicação de que aí estaria a possibilidade de concretização do ideal artístico, vê-se que Mário trabalha com a ideia de que a referência à realidade objetiva é um caminho pouco promissor para a arte. Acentua essa perspectiva, o fato de o autor explorar a dissociação entre arte e natureza. Em sua teorização, o Belo natural, entendido como “imutável e objetivo”, representa mesmo uma espécie de anti-modelo, algo de que o Belo artístico – arbitrário, convencional, subjetivo – deve se afastar. Nesse sistema, o fato de a música surgir como parâmetro principal tem lógica por tratar-se, em princípio, de uma linguagem não-representativa, sem referentes imediatos, sobretudo se considerada no seu estado puro e autônomo, isto é, dissociada de práticas religiosas, de fins utilitários, de programas ou de textos literários. Distante da natureza e do mundo dos objetos pela incapacidade de a eles referir-se, a música, pensada dentro dos limites impostos por um rígido esquema Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 85 dualista, só poderia mesmo, por exclusão, incorporar-se ao pólo subjetivo e transformar-se em porta-voz de uma idealização livre, potencialmente criadora e insubmissa à defeituosa percepção sensível (ANDRADE, 1972b, p. 20). Velha tese que Mário de Andrade acolhe com grande entusiasmo, mas que reforça por meio de uma reflexão paralela e mais moderna, capaz de identificar o desenvolvimento da fotografia e, principalmente, da emergência do cinema, como fatores que obrigaram a uma mudança de perspectiva nas artes. É que com essas novas técnicas a questão da representação do real teria encontrado uma solução superior a anteriormente dada tanto pela literatura quanto pelas artes plásticas ou pelo teatro. Apenas a música, naquela sua original incapacidade representativa, agora transmutada em sua grande força, teria realizado, muito tempo antes de o cinema evidenciá-lo, esse ideal de arte pura. É assim que a música reluz, na teoria andradeana, como depositária da essência artística, da verdade antes oculta às demais artes: um autêntico refúgio do humano, uma forma de expressão inatingível até para as modernas potencialidades da técnica. Mas, embora parta de uma teorização estética que já estava colocada naqueles moldes desde Schopenhauer, o passo decisivamente moderno de Mário de Andrade na comparação de música e poesia reside numa elaboração que realmente o aproxima de um Poe ou de um Mallarmé: como termo da comparação, a música não mais se reduz ao efeito sonoro nem ao vago deleite, passando a desempenhar relevante papel estrutural, modelo de configuração do sentido poético. A questão, até onde pudemos perceber, não mereceu grande consideração da crítica, muito mais interessada na denúncia do psicologismo tanto na teoria como na prática poética de Mário, um fruto dos resquícios passadistas que marcariam presença em sua obra. Em meio a esse panorama geral, Antonio Manoel dos Santos Silva, num ensaio bastante interessante, parece ser um dos poucos estudiosos a abordar o tema com a profundidade devida (DAGHLIAN, 1985, p. 1548). Apoiando-se na classificação estética de Etienne Souriau – que separa as artes em dois grandes grupos, um reunindo as chamadas artes do primeiro grau (arabesco, arquitetura, pintura pura, música) cuja estrutura assenta-se na organização de seus próprios elementos sensíveis, o outro as artes do segundo grau (desenho, escultura, pintura figurativa, literatura, etc.) que se caracterizam pela projeção ou instauração de seres distintos dos elementos que as formam – o crítico aponta exatamente a diferenciação de Mário frente à tradição. Esta era capaz de relacionar apenas as formas de primeiro grau de ambas as artes, ou seja, o som musical com o som das palavras Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 86 poéticas. Já Mário pretendeu relacionar o que “essencialmente” caracterizaria as duas manifestações: na música, não tanto o som isolado quanto a organização sonora; na poesia, aquilo que é evocado ou projetado (ou ainda, representado) pelo discurso. Dito de outra maneira, o poeta tencionou criar uma “relação entre as formas de conteúdo poético (a construção do sentido) e as formas de sintaxe musical” (DAGHLIAN, 1985, p. 33). Fundamentalmente, com Mário, o aproveitamento da noção de música para a poesia distancia-se da metafísica simbolista – que elegera a arte dos sons como caminho do conhecimento do além das coisas – em benefício de uma investigação sobre como transfigurar artisticamente a realidade concreta. Pouco acima, falei do desacordo de Mário com a preponderância do verso melódico. Não se tratava apenas de uma divergência de gosto estético. O poeta acusava a inadequação do tempo controlado e ditado pelas regras do discurso verbal – sucessivo, linear – com a velocidade das transformações do mundo moderno, com o ritmo apressado dos acontecimentos cotidianos, com a redução das distâncias geográficas, com as mudanças na percepção: A simultaneidade originar-se-ia tanto da vida actual como da observação do nosso ser interior. (Falo de simultaneidade como processo artístico). Por esses dois lados foi descoberta. A vida de hoje torna-nos vivedores simultâneos de todas as terras do universo. A facilidade de locomoção faz com que possamos palmilhar asfaltos de Tóquio, Nova York, Paris e Roma no mesmo Abril. (...) Por seu lado a psicologia verifica a simultaneidade. A sensação complexa que nos dá por exemplo uma sala de baile nada mais é que uma simultaneidade de sensações. (ANDRADE, 1972a, p. 265-267) Se a simultaneidade, consequência da velocidade do mundo e de um sujeito multiplicado, estava na ordem do dia, o que entra em questão é a impermeabilidade do verso tradicional (melódico) a esse estado de coisas, preso que estava a um papel de tradutor fiel do pensamento lógico e inteligível. Mário, em resumo, acusa o descompasso entre a tradicional linguagem poética e a realidade moderna, buscando corrigi-lo ao indicar a música como modelo estético. E não deixa de ser curioso notar que justamente aquela arte que o Ocidente já de há muito considerava abstrata, descolada da realidade pela sua aversão à representação, incapaz de dar a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 87 conhecer pela evasão do circundante que causava no sujeito ouvinte, justamente aquela arte é agora invocada por Mário de Andrade para captar uma espécie de densidade do real que vinha falseada pela organização clássica do discurso verbal. Para o poeta, nos tempos modernos é a própria palavra, quando presa pelas amarras da sintaxe, que se revela vã em sua tarefa representativa. É preciso, então, liberá-la, deixar que irradie todas as suas possíveis significações, permitir-lhe a ambiguidade, pois somente assim ela consegue entrar em consonância com – eu não diria mais expressar e muito menos representar – a realidade polimorfa que a circunda. Do que foi exposto até aqui, pode-se afirmar que o modelo musical andradeano apresenta duas faces aparentemente contraditórias: uma, subjetiva, na medida em que se encontra o mais afastado possível do “Belo Natural” e conduz o sujeito à criação de realidades ideais, as únicas onde germina a beleza artística; outra, objetiva, pelo fato de o modelo musical polifônico ser o mais indicado para a apreensão da justaposição de realidades que caracteriza o mundo moderno. Ora canal de expressão do lirismo, do mundo interior e subjetivo, inconfundível com a realidade externa; ora referencial estético para o trabalho com a linguagem e para o relacionamento com o mundo objetivo – é assim que a música cobre, na teoria de Mário de Andrade, um amplo leque de justificativas para os procedimentos poéticos, podendo credenciar-se como relevante instrumento de interpretação apesar de sua ambiguidade ou, talvez, até mesmo devido a ela. Essa ambiguidade da noção de música, a bem da verdade, soma-se à vacilação do autor frente aos tantos dualismos expressos em sua poética da juventude tais como inconsciente/consciente; lirismo/técnica; psicologia/ estética, vacilação que foi muito tematizada pela crítica literária, a ponto de se produzirem, a respeito, interpretações radicalmente divergentes. Uma parte foi incisiva na denúncia de que o psicologismo assumia no poeta o ponto mais alto da hierarquia e subjugava o trabalho estético, resvalando num desprezo pela própria linguagem6. Os impulsos do subconsciente comandariam as ações da escrita, cabendo à linguagem poética o papel secundário de fornecer um retrato fiel do momento lírico e de expressar os gritos do eu profundo. Em outra direção, alguns estudiosos – como João Luiz Lafetá, em 1930 – A crítica e o modernismo – interpretam a vacilação como fruto da própria tensão implicada naqueles binarismos, a qual, apresentando-se como permanente, impede o surgimento de uma síntese tranquilizadora e sinaliza um caráter apenas provisório à preponderância eventual de um ou outro pólo da relação. Para essa corrente, se por vezes o Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 88 psicologismo ganhava evidência e a elaboração teórica de Mário mirava uma verdade lírica que a poesia deveria apenas registrar, em diversas passagens do Prefácio, e sobretudo da Escrava, o papel da técnica e a consciência da linguagem tornam-se elementos decisivos e não só na correção de eventuais excessos do lirismo, mas na gênese mesma do poema. É então que cabe perguntar: como as menções à música atuam nesse esquema? Constituem-se num elemento relevante para a análise? Corroboram uma ou outra opinião? Como dissemos acima, à exceção do trabalho de Antonio Manoel dos Santos Silva, a referência musical na poética da juventude de Mário de Andrade não mereceu da crítica uma observação correspondente à importância que ela desempenha na argumentação do poeta. Por outro lado, se aquele citado ensaio tem inúmeros méritos, entre eles o de levar a sério a ideia do polifonismo, demonstrando como ela comanda as demais leis estéticas que Mário define para a poesia moderna, ele não representa mais do que um pontapé inicial para a discussão, apontando explicitamente ou não os caminhos pelos quais ela pode seguir. Um deles, me parece, é o exame mais aprofundado da oscilação da música entre o subjetivo e o objetivo, entre ser veículo das livres idealizações do eu lírico e prover uma técnica linguística de apreensão do mundo externo. Em outra oportunidade será importante seguir o fio da estética de Mário de Andrade, a fim de melhor fundamentar a base das suas concepções sobre música. Para o que aqui interessa, porém, prefiro restringir-me à análise de ao menos um dos poemas da Paulicéia desvairada no qual seja possível flagrar, do ponto de vista musical, a ambiguidade já abordada pela crítica literária. Opto por Nocturno que, a seguir, é transcrito na íntegra: Luzes do Cambuci pelas noites de crime... Calor!... E as nuvens baixas muito grossas, feitas de corpos de mariposas, rumorejando na epiderme das árvores... Gingam os bondes como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos, cuspindo um orifício na treva cor de cal... Num perfume de heliotrópios e de poças gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan; e traz olheiras que escurecem almas... Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 89 Fundiu esterlinas entre as unhas roxas nos oscilantes de Ribeirão Preto... – Batat’assat’ô furnn!... Luzes do Cambuci pelas noites de crime!... Calor!... E as nuvens baixas muito grossas, feitas de corpos de mariposas, rumorejando na epiderme das árvores... Um mulato cor de oiro, com uma cabeleira feita de alianças polidas... Violão! “Quando eu morrer...” Um cheiro pesado de baunilhas oscila, tomba e rola no chão... Ondula no ar a nostalgia das Baías... E os bondes passam como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos, ferindo um orifício na treva cor de cal... – Batat’assat’ô furnn!... Calor!... Os diabos andam no ar corpos de nuas carregando... As lassitudes dos sempres imprevistos! e as almas acordando às mão dos enlaçados! Idílios sob os plátanos!... E o ciúme universal às fanfarras gloriosas de saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!... Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos? E que os cães latam nos jardins! Ninguém, ninguém, ninguém se importa! Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura! Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins, enquanto as travessas do Cambuci nos livres da liberdade dos lábios entreabertos!... Arlequinal! Arlequinal! As nuvens baixas muito grossas, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 90 feitas de corpos de mariposas, rumorejando na epiderme das árvores... Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins, o estelário delira em carnagens de luz, e meu céu é todo um rojão de lágrimas!... E os bondes passam como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos, jorrando um orifício na treva cor de cal... – Batat’assat’ô furnn!... A cena noturna da cidade moderna tem como eixo a prostituição. As noites de crime, porém, não roubam a ação, não se sobrepõem a outros eventos, não constituem nenhuma exceção ao cotidiano (“Ninguém se importa!”). Pelo contrário, o meretrício chega mesmo a organizar o vaivem da rua (“as lassitudes dos sempres imprevistos”), a animar o comércio ambulante (“Batat’assat’ô furnn”), a instituir a boêmia (“Violão! “Quando eu morrer...”). Nas noites do Cambuci, pululam as personagens (as “mariposas”/meretrizes, a “flor-do-mal”, “o mulato”, as “Iracemas”), mas nenhuma ascende a protagonista, todas concorrem anonimamente para a montagem de um espetáculo que se apresenta em vários planos. A fim de expressar essa justaposição, o poema procede por cortes, numa técnica que se pode dizer, a princípio, cinematográfica: em cada estrofe praticamente um motivo autônomo. Entretanto isso ainda não basta para caracterizar a simultaneidade. Ela poderia se verificar, no bojo das especulações musicais do autor, também na estrutura interna de algumas estrofes, como, de fato, ocorre na inicial, em que o segundo verso se coloca em contraponto com o precedente. “Calor!...” não dá sequência lógica a “Luzes do Cambuci (...)”, mas amplia-lhe o significado pela sua ambivalência, uma vez que tanto pode inserir-se como um dado a mais da descrição do cenário, quanto, figuradamente, associar-se ao tom geral de erotismo evocado pelo contexto, sobretudo se considerados os versos seguintes. Eis um exemplo do que, mais acima, afirmei ser a participação do leitor na construção do sentido poético. Todavia, apenas a polifonia de “Calor!...”, embora expressiva, não bastaria para tornar Nocturno um caso da musicalidade andradeana na Paulicéia. Em outras situações predomina o verso melódico (“Gingam os bondes Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 91 como um fogo de artifício...”) ou então ocorre de o sentido geral da situação retratada amenizar o choque e a diferença de uma polifonia mais radical (“Idílios sob os plátanos!...”/“E o ciúme universal...”). Somente na sexta estrofe podemos encontrar novo exemplo de versos polifônicos (“Um cheiro pesado de baunilhas”/“oscila, tomba e rola no chão...”/“Ondula no ar a nostalgia das Baías...”), mas também ali o contexto da significação atua no sentido de reduzir bastante as ambiguidades. Ora, é o caso de perguntar, então: se o verso polifônico, principal referência musical trabalhada no Prefácio interessantíssimo, rareia, como falar de musicalidade nesse Nocturno? De duas maneiras, arrisco-me a dizer. Tecnicamente, alargando o procedimento polifônico até encontrar a simultaneidade cinematográfica mencionada pouco atrás. É que no poema não está em jogo apenas o corte de uma cena para outra; há que se levar em conta também a recorrência dos motivos (“Batat’assat’ô furnn!...;” “E os bondes passam...”; “Nuvens baixas muito grossas...”; aparecem três vezes na composição) e sua variação (cite-se o deslocamento de “Calor!...”, e as alusões aos bondes que ora cospem, ora ferem, ora jorram, ora passam, ora gingam), práticas tipicamente musicais que, a seu modo, retomam a ideia de algo que permanece vibrando à espera de um elemento que venha fechar o curso da significação... “e que não vem” (ANDRADE, 1972b, p. 23). Além disso, tal como ocorre em obras musicais polifônicas em que a retomada de um motivo ou tema se dá constantemente em mudança (com alteração do ritmo, da tonalidade etc.), também no caso desse poema não se pode falar numa identidade excessivamente marcada ao estilo de um refrão tradicional. Embora repetido sem alteração, “Batat’assat’ô furnn!...”, por exemplo, certamente não é ouvido da mesma forma da primeira e da última vez: a sua expressividade é outra, modifica-se em virtude do conteúdo das estrofes que o cercam. Nesse sentido, trata-se de um caso muito diferente de Domingo, outro poema da Paulicéia desvairada em que o refrão “Futilidade, civilização...” atua sobre as estrofes com poder de império, como um juízo moralizante à parte das cenas descritas e que, em última análise, impede que o sentido advenha do próprio jogo da linguagem, de dentro do poema, por assim dizer. Naquele caso, o refrão tem o papel explícito de veicular a voz e a interpretação do eu poético. Além do aspecto técnico, a outra maneira de acusar a presença da música no Nocturno faz sentido apenas se tivermos em mente a própria dicotomia sujeito/objeto que a enreda na teoria de Mário de Andrade. Se em virtude da relação que nosso autor traça entre o modelo musical e a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 92 linguagem poética já não era possível querer identificar a presença, por assim dizer, concreta da música no poema, agora a referência musical que podemos apontar adquire uma abstração ainda maior. É que a própria vacilação que Mário tem diante da música, ora tomando-a como canal de expressão da subjetividade, ora como técnica de apreensão da realidade objetiva, está implicitamente tematizada nesse Nocturno; e de tal modo que o pólo “objetivo” assume o pleno domínio. De fato, o eu do poema se confronta com um quadro que ele é incapaz de controlar e que consegue apenas descrever. Nas duas oportunidades em que tenta exprimir-se, o eu vacila e limita-se praticamente a balbuciar, como que reconhecendo a existência de um abismo insuperável que o afasta do mundo. As grades em girândolas de jasmins confessam a condição isolada, pura, abstrata e estática do poeta frente a um real dinâmico, sensualizado, autônomo. De que valem as “idealizações livres e musicais”, a identificação da arte com a subjetividade, se o artista já deixou de ser porta-voz da coletividade, se já não dá conta de oferecer uma síntese crível do real? Uma certa resignação diante dessa questão, sem dúvida acompanhada de melancolia, coloca o Nocturno em contraponto com a quase totalidade da Paulicéia. Se o poeta, ainda que aos gritos, ainda que em delírios, buscara em outros poemas um vínculo tal com a cidade que lhe permitisse a conservação da própria voz, no Nocturno vence definitivamente o silêncio como forma contraditória de expressão. O silêncio do eu permitirá entregar incondicionalmente à linguagem, aqui musicalmente organizada, a tarefa da arte. Todavia, e esse é o ponto capital, não mais uma linguagem representativa no sentido estrito dessa palavra, não mais um simples instrumento de esclarecimento ou de expressão da realidade, mas uma linguagem em consonância com a multiplicidade e por isso mesmo incapaz de chegar à palavra final. Uma linguagem que parece, então, reencontrar com a música uma conexão profunda. Notas 1 O exemplo dado por Mário de Andrade para verso melódico é de Olavo Bilac: “Mnezarete, a divina, a pálida Phrynea/ Comparece ante a austera e rígida assembléia/ Do Areópago supremo...” (ANDRADE, 1972, p. 23). Com um exemplo do próprio autor, vemos que o verso harmônico é formado por palavras que não se ligam diretamente, formando, cada uma, uma frase, um “período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico”: “Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...” 2 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 93 O verso polifônico era definido no Prefácio em termos de uma expansão do verso harmônico: em lugar de palavras isoladas que não se conectavam diretamente, na polifonia haveria frases com aquele mesmo grau de independência. Mas n’A escrava que não é Isaura, Mário de Andrade descarta essa distinção triádica, preferindo reunir os versos harmônico e polifônico sob o rótulo único de Polifonismo. Daqui para frente, adotaremos o mesmo procedimento. 3 4 Sobre a essência visual do logos e sua relação com a constituição da metafísica ocidental, recomendo a leitura de Adriana CAVARERO, Vozes Plurais (detalhes nas referências bibliográficas). São tantos os exemplos de compositores que a partir do século XX exploraram, acima de tudo, a sonoridade e o lado primordialmente musical das palavras que qualquer lista que se dê será extremamente parcial. Pode-se, no entanto, citar o caso de Arnold Schönberg, como exemplo, talvez extremado, do modo como a palavra se transforma para a música dita contemporânea em uma espécie de anotação sonora. O compositor austríaco se dizia estimulado a compor seus Lieder (canções) “pelo som inicial das primeiras palavras do texto”, sem se preocupar minimamente com o significado delas nem com o sentido geral do poema que lhe servia de base (Cf. DAHLHAUS, 2004, p. 47). Some-se a isso o que o próprio Schönberg diz no prefácio ao Pierrot Lunaire, obra vocal marcante para a produção musical do século XX: “Aqui, jamais cabe aos executantes a tarefa de dar forma à disposição e ao caráter de uma peça particular a partir do sentido das palavras, mas sempre exclusivamente a partir da música. Tudo quanto pareceu relevante ao autor para a apresentação plástico-sonora dos acontecimentos ou sensações do texto encontra-se, de resto, na música” (Citado em CAMPOS, 1998, p. 47). 5 É o caso tanto de Luiz Costa Lima, em Lira e antilira, e de Roberto Schwarz, em A sereia e o desconfiado. 6 REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Obra imatura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL, 1972a. ______. Poesias completas. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: INL, 1972b. BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Signos/ Música, 5) Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 94 CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: UFMG, 2011. DAGHLIAN, Carlos (org.). Poesia e música. São Paulo: Perspectiva, 1985. (Debates, 195) DAHLHAUS, Carl; EGGEBRECHT, Hans H. Che cos’è la musica. Bologna: Il Mulino, 2004. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978. LAFETÁ, João Luiz. 1930 – a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. (Coleção Espírito Crítico) LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. NUNES, Benedito. Crivo de papel. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998. SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Flavio BARBEITAS Bacharel e Mestre em Música (UFRJ). Doutor em Estudos Literários (UFMG/UNIBO). Professor da Escola de Música da UFMG. Artigo recebido em 24 de abril de 2011. Aceito em 3 de junho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 95 DIÁLOGOS INTERARTES NA PAULICEIA: MELOPOÉTICA E POLIFONIA CULTURAL EM MÁRIO DE ANDRADE Beatriz Lopes beatrizlopes@ibest.com.br André Luís Gomes andrelg.unb@uol.com.br Resumo: O presente trabalho tem como objetivo o estudo das interações culturais entre a literatura e outras linguagens artísticas, a partir de textos críticos, anotações e crônicas jornalísticas de Mário de Andrade que se fundaram não só nas relações entre Cultura e Espaço, ou seja, de sua íntima interação com a cidade de São Paulo 1 e com o processo de modernização no início do século, bem como em sua “escuta aberta”2, singular e crítica das diversas manifestações artísticas da época, em particular, da música popular brasileira, em suas pesquisas e, sobretudo, em sua vitrola. Para tanto, à luz das contribuições teóricas de Mikhail Bakhtin e de Solange Ribeiro de Oliveira, o recorte em estudo se propõe a identificar e a analisar, nos referidos textos, com base nos possíveis e criativos processos lítero-musicais – a melopoética e a polifonia–, as marcas desses diálogos, que compõem a polifonia cultural em Mário de Andrade. Abstract: This paper aims to study the cultural interactions between literature and other artistic forms, from critical texts, annotations and journalistic chronicles by Mário de Andrade, which originated not only in relations between culture and space of his close interaction with the city of São Paulo and its modernization at the beginning of the century, but also in his unique, critical and “open listening” of the several artistic expressions of the time, particularly Brazilian popular music, in his research and especially in his phonograph. According to this perspective, in light of the theoretical contributions of Mikhail Bakhtin and Solange Ribeiro de Oliveira, the study aims to identify and analyze, in the texts mentioned, based on possible and creative literary-musical processes, such as melopoetics and polyphony, the markers of these dialogues, which constitute Mário de Andrade’s cultural poliphony. Palavras-chave: Interações culturais. Melopoética. Polifonia cultural. Mário de Andrade. Keywords: Cultural interactions. Melopoetics. Cultural polyphony. Mário de Andrade. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 96 Considerações iniciais: um acorde3 teórico-metodológico de um estudo interartes Musicalidade da poesia, poética musical, frase musical, poema sinfônico, música de palavras, texto musical, sintaxe melódica. Vários são os termos que procuram aproximar os dois sistemas de signos: a música e a literatura. Isto parece comprovar que as artes, embora contendo especificidades diferenciadas, comunicam-se e se complementam. As aproximações entre as artes sempre fascinaram os estudiosos do fenômeno estético. Solange Ribeiro de Oliveira, em seu livro Literatura e música, refaz a trajetória do antigo interesse em que, da antiguidade a nossos dias, compêndios e estudos críticos recorrem continuamente a referências mútuas entre as artes. Da necessidade de delinear o campo da melopoética, a autora propõe, a partir da adaptação do esquema de Steven Sher e de outros pesquisadores, três divisões básicas para a melopoética: estudos que contemplam a música e a literatura, criações mistas; estudos focalizando a literatura na música, que utilizam procedimentos da crítica literária na análise musical e, finalmente, estudos músico-literários, de maior interesse para a literatura, também indicados pela expressão música na literatura (OLIVEIRA, 2004). Assim, na abordagem que ora empreendemos, destacamos as referências em que predominam a tipologia descrita pela autora como música na literatura ou melopoética músico-literária, explorando nesse percurso a interface entre a crônica e a crítica literária e musicológica, bem como as instigantes contribuições filosóficas e teóricas de Mikhail Bakhtin aos estudos literários, sobretudo a articulação dialógica como pressuposto básico de qualquer produção cultural e a polifonia, sua força suprema, visto que as categorias presentes na arquitetura do discurso crítico ou literário, tanto enriquecem a análise das relações entre cultura e espaço, bem como potencializam as interações entre a música e a literatura nos textos de Mário de Andrade. Segundo Nicolau Sevcenko, a trajetória da música no séc. XX é das mais surpreendentes e o seu legado para o séc. XXI é sumamente inspirador. O divisor de águas da mudança em relação ao código musical, que sai do tradicionalismo de uma escala temperada para a valorização de ritmos variados, foi a turbulenta sessão inaugural da “Sagração da Primavera” de Stravinski, em Paris, no ano de 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial que, mesmo catalisando mudanças que já estavam em curso, praticamente constituiu um novo ponto de partida nas artes musicais e também na dança. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 97 Entretanto, por mais prodigiosa que tenha sido essa aventura criativa da música no âmbito da cultura das elites, foi na esfera popular que se deu a grande transformação. Ela foi promovida pelo advento da indústria fonográfica, do rádio, do cinema e da TV, os quais propiciaram, pela primeira vez, tanto o acesso direto e irrestrito das pessoas comuns à fruição musical, como o salto das tradições populares para o primeiro plano da cultura, embaralhando irremediavelmente a distinção convencional entre o popular e o erudito. Nesse contexto começam a preponderar os repertórios populares, músicas originadas nas comunidades negras, entre elas, especialmente o jazz e, em nosso caso, o samba (SEVCENCO, 2004). Isto posto, outro aspecto importante a ser destacado é que os benefícios trazidos pela modernidade estavam desigualmente distribuídos pelo conjunto da sociedade, mas eram uma aspiração de todos. Nesse sentido, as classes populares vislumbravam na modernidade algumas brechas que lhes oferecessem oportunidades de ascensão social, e vão, aos poucos, se apercebendo de que é possível dispor de elementos dessa modernidade para reforçar o jogo de reajustamentos constantes em face das novas políticas de controle, segregação e cerceamento das cidades planejadas. Assim, por meio das artes, em especial da música, as classes populares negociam sua inserção na era moderna e na ainda incipiente cultura de massas. Tal processo é marcado pela cisão na sensibilidade estética das elites que as faz oscilarem entre o elogio e o repúdio à cultura popular. Neste jogo de forças desigual e ambíguo, as classes populares ganham espaço, passam a figurar e a ser representadas no cenário artístico e musical, desenvolvendo-se, assim, uma nova forma de sociabilidade entre os atores sociais, cuja moeda de troca é a arte. Para arrematar esse acorde destaquemos as considerações de Mário de Andrade sobre as influências das inovações da modernidade e do experimentalismo estético nas manifestações culturais da época e como esse fenômeno afetava a função social da arte musical. [...] Com a peça sonorizada, Schoenberg criou uma das obras mais importantes da atualidade, o ‘Pierrot Lunaire’ [...] Instrumentos novos tentam aparecer também. Os futuristas lançaram os Barulhadores... [...] o Serrote, sai da mão do serralheiro vai para o jazz, surge nos concertos... [...] Emanuel Moor, lançou um piano com dois teclados... [...] por outro lado Hope Jones modernizou o Órgão [...] Diante dos progressos do Gramofone e das possibilidades reais de expansão, a música tem atualmente nele e na Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 98 Radiofonia dois instrumentos poderosos que já está modificando bastante a manifestação social dela. [...] Interesse ou desinteresse melódico? Interesse ou desinteresse polifônico? Interesse ou desinteresse harmônico, rítmico, formalístico, sinfônico?...A única resposta possível: interesse formidável pela... Música. [...] Todo o derrotismo aparente, de Melodia, Instrumentação, Harmonia, Forma, da fase contemporânea, indica apenas interesse mais completo pela música. Jamais não se inventou tanta música. [...] Mudado o conceito de música, esses vícios modernos se tornam lógicos. E de fato: é a maneira de conceber a música que se modificou talvez profundamente. [...] Existe polifonia, como existe harmonia, como existe tudo na música de agora. É a fusão absoluta disso tudo, ‘a maior intimidade entre a forma e o conteúdo’ pra me utilizar da frase de Wellesz, que implica destruição do espaço e suas principais circunstâncias e fenômenos, e faz da música atual, nas suas manifestações mais características o livre jorro sonoro no tempo que julgo ver nela e por onde a compreendo e quero bem. (ANDRADE, 1987, p. 196-205) Mário de Andrade, um polígrafo de destaque na literatura e na cultura brasileira, possui uma vasta produção crítica e literária que se estende da segunda metade da década de 1910 a fevereiro de 1945. A riqueza e a diversidade de sua obra têm estimulado inesgotáveis possibilidades de investigação. Os textos trazidos à luz nesse estudo foram reunidos nas obras: De São Paulo – cinco crônicas de Mário de Andrade de 1920-1921 e A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, organizadas, respectivamente, por Telê Ancona Lopez e Flávia Camargo Toni. É importante destacar que o presente trabalho se insere no contexto de um estudo interartes, entrelaça o enfoque dialógico mais amplo com as diversas produções culturais e as marcas da melopoética, tanto temática como formal, a fim de identificar e analisar as inter-relações entre as artes como um processo dinâmico ora expresso, ora subjacente, mas sempre pulsante na polifonia cultural de Mário de Andrade. Na cadência4 da cidade: melopoética e polifonia cultural em De São Paulo A obra em estudo reúne textos de uma fase de “amadurecimento” em que ainda se mesclam um estilo atrelado a certa erudição da linguagem com traços reveladores do autor que se consagraria como um dos construtores e líderes do movimento modernista. As crônicas De São Paulo Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 99 são cartas/crônicas escritas para a revista carioca Ilustração Brasileira e evidenciam, já a partir do título e da apresentação, a intensa relação do autor com a cidade, transmitindo os acontecimentos com uma soma de sensações e impressões, por meio da enumeração, o dinamismo urbano que fascina o cronista. São textos de um apaixonado que não ignora os problemas de ordem cultural da cidade e se inserem na intensa militância jornalística do autor que, como cronista do modernismo brasileiro, no contexto de seus primórdios, juntamente com outros intelectuais e artistas, empenha-se em prol da renovação artística da época. Em De São Paulo I, nº 3 da revista, assim como nas demais, a crônica combina o relato irônico com a análise crítica: noticia e narra a história com o objetivo de promover a cidade moderna e as novas ideias. São Paulo toda se agita com a aproximação do Centenário. Germinam monumentos numa floração de gestos heróicos; as alamedas riscam o solo em largas toalhas verdes e os jardins se congregam em formosos jogos florais de poesia e perfume. [...] São Paulo quer tornar-se bela e apreciada. Finalmente, a cidade espertou num desejo de agradar. E era preciso que assim fosse... A urbe de Amador Bueno é agressiva e misteriosa como os seus heróis; suas belezas recônditas; raro o estrangeiro que alcança levantar um pouco o pesado manto de segredo em que se embuça. Num orgulho tradicional ela sempre se guardou rudemente, medievalmente, como certas igrejas da Itália, que sob uma feição esquipática e bisonha ocultam a severa doçura dum Cimabue, dum Piero della Francesca ou dos arco-íres dos mosaicos bizantinos. E no entanto ela é curiosa, viva, singular; e para o paulistano inveterado, que a ama e contempla, tem sugestões inéditas como os versos de Mallarmé. Dizem-na fria... Dizem-na tristonha, escura... Mas no momento em que escrevo, novembro anda lá fora desvairado de odores e colorações. Eu sei de parques em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por que pesadamente bailam os rosais. Eu sei de coisas lindas, singulares, que a Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento hermafrodita [...]. Procurarei desvendar-lhe aspectos, gestos, para que a observem e entendam. Talvez não muito consiga. Ponho-me a pensar que a minha terra é como as estrelas de Olavo... difícil de entender... (ANDRADE citado em LOPEZ 2004, p. 73) Ancorado na alusão dos sugestivos versos de Mallarmé – poeta simbolista francês, renovador da linguagem, cuja conferência, presente em Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 100 sua estante – “La musique et les lettres, Mário teria encontrado matéria grata ao forte vínculo entre a poesia e a música que cultiva e cultivará em toda sua poesia” (LOPEZ, 2004, p. 73), o cronista associa diversos recursos sinestésicos de odores, cores, sons que se mesclam à imagem poética, pictórica e musical da cidade. Polissemicamente desvairada sua poética deságua na metáfora musical “em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por que pesadamente bailam os rosais”, explora a melopoética revelada no lirismo de contemplação amorosa da enigmática cidade que se entrelaça polifonicamente com a voz de Olavo, paródia dos versos de Bilac, do soneto Via Láctea, em que seu empenho amoroso consolida o grande tema da literatura do início do século XX: a cidade. Para Mário, a gênese de sua Pauliceia desvairada. Com efeito, no decorrer da crônica se manifestam os entrelaçados vínculos entre cultura e espaço na construção dos diálogos interartes entre literatura e pintura, escultura, arquitetura; diálogos do poeta, do ficcionista, do cronista, enfim, de todos os rumos que esse nosso polígrafo tomou, materializados na múltipla polifonia estética e sociocultural, identificadas não só nas interações pessoais e artísticas do autor com vários intelectuais e artistas de seu tempo e de diversas épocas e lugares, mas, sobretudo, quando retrata e analisa as fragilidades e as grandezas da diversidade sociocultural da cidade e de suas expressões artísticas, referendando-as no próprio fazer literário em que se mesclam o crítico e o artista em pleno domínio de seus recursos de estilo. Assim é que evidenciando embasado conhecimento da arte, do pensamento renascentista e da arte contemporânea, ironiza, na arquitetura da cidade, as influências importadas do decorativismo ultrapassado de seus monumentos contrapondo a isso o trunfo dos modernistas, o escultor ítalo-paulistano Victor Brecheret e seu Monumento às bandeiras, projeto valorizado em prosa e verso pelos modernistas, além de bem evidenciar a polifonia cultural em comparações estéticas de épocas e artistas diferentes – ao vincular os escultores do barroco brasileiro a expoentes da escultura moderna: o francês Émile Antoine Bouderlle, o alemão Wilhelm Lembruck, o sueco Carl Millès e o iuguslavo Ivan Mestrovisc. Forma inteligente de enaltecer as riquezas artísticas de nossa tradição cultural e suas potencialidades de renovação. Em De São Paulo II, nº 4 da revista, de forma bem humorada, o cronista lida com acontecimentos da cidade filtrados pelas impressões, para persuadir, fazer propaganda paulistana, pregar a renovação das artes e da literatura como um compromisso explícito. Nesse contexto, a Paulicéia, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 101 antropomorfizada, reverbera vozes e comportamentos de seus habitantes; se constitui não só um locus sociocultural em que o cronista se propõe a mostrar a diversidade de sua cultura e de sua gente, mas, sobretudo, é ponto de referência de uma trajetória evolutiva de sua visão sobre a metrópole que lhe coube viver em seu deslumbramento com o século XX, “modernolatria” cheia de orgulho paulista, metáfora e lugar de contemplação (LOPEZ, 2004). [...] A cidade palpita um esto incessante de progresso e civilização. Nela formiga um povo multifário, internacional. Tudo são contrastes e neologismos. Os habitantes movem-se ágeis, a língua é mole, saboreada. Audácias e pasmaceiras... Pauliceia é como brasileirinha nascida nessa idade– média em que uma parte de Minas adormeceu: alonga os babados da saia escura para fechar no segredo a volta sensual do tornozelo, mas traz nos lábios a rosa provocante das espanholas. [...] Em literatura, em arte há tradicionalistas a covejar agouros, como há futuristas em fúria. (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 81-82) Sua postura irônica, aludindo à critica da sociedade, vai se delineando em suas observações a respeito de uma cidade que se moderniza desvairadamente quando na interface entre a literatura e as artes visuais, liga o jovem desenhista a Rops e Toulouse-Lautrec e distingue a representação estilizada da morte, do macabro, assim como o filão da sátira e do grotesco, marcas do ilustrador e caricaturista Di Cavalcanti em que nos Fantoches da meia-noite retrata as vidas reificadas e a alienação, em meio às efervescências da urbe (LOPEZ, 2004). [...] agora é Di Cavalcanti que mostra os seus Fantoches, onde como um novo Rops ou Lautrec, irônico e brutal observa o dia dos que vivem ... de noite (os passeístas berram) [...] Já se sente que de novo a cidade gera ideias e escolas, reatando uma tradição quase murcha, quase ofuscada pelo brilho do Rio. [...] Mas, no meio de tanta efervescência, Pauliceia tiritou de frio. Depois do verão florido em que se escancarou na última quinzena de outubro, novamente se regalava com a abertura do mês da República. Pleno inverno. (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 83-87) Ora, se aceitarmos a ideia, que se tornou consenso, de que a cidade se tornou lugar privilegiado da polifonia, temos a considerar que do ponto Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 102 de vista do dialogismo, essa polifonia resulta de gêneros discursivos (da cultura letrada, dos discursos do cotidiano, verbais, não-verbais, imagens, sonoridades) num contexto enunciativo que acolhe uma diversidade muito ampla de manifestações, inclusive as interações artísticas. Da mesma forma como a cultura é atravessada por deslocamentos e transformações, as formas discursivas também são suscetíveis de modificações. As possibilidades discursivas num diálogo são tão infinitas quanto as possibilidades comunicativas do uso da língua. Os gêneros discursivos criam elos entre os elementos heterogêneos. Nesse sentido, Bakhtin afirma: A riqueza e diversidade dos gêneros dos discursos são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 2010 p. 262) É possível, então, analisar as crônicas dessa série como gênero discursivo que, expressando a polifonia da cidade, ecoa a polifonia cultural resultante não só do diálogo interartes no discurso crítico e literário do cronista como artista, bem como no diálogo mais amplo entre diversas culturas que reverberam em sua atividade como intelectual. A respeito da polifonia, interessante destacar, ainda, é que na mesma época em que Bakhtin desenvolvia seus estudos e postulados sobre o romance polifônico, Mário de Andrade desenvolvia aqui um conceito análogo, através da metáfora musical de “polifonia”, evocando uma situação de “harmonia complexa” nas artes: justaposição, contraponto, variação, simultaneidade, enfim, uma interação no âmbito das ideias, dos estilos e da renovação artística. É na arte que De São Paulo seleciona seu instrumento de combate e de interatividade com o público, articulando o diálogo entre as artes, vinculado à natureza multifacetada de seu tempo-espaço, e à realidade sociocultural circundante. Assim, na gênese de uma polifonia poética mais elaborada em obras posteriores – Pauliceia Desvairada, Losango Cáqui e Clã do Jabuti – avulta-se nas crônicas, definidas como “cartas” para a Ilustração Brasileira, o que se pode chamar de polifonia cultural fundada não só nas interrelações entre as artes como tema, bem como em associações intersemióticas (combinação e fusão de códigos, ekphrasis, melopoética, metáforas musicais Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 103 e pictóricas) em sua expressão crítica e literária. Incorporando-se a esse processo de criação tem-se o entrelaçar de informações, estudos, interações culturais com diversos grupos sociais, com diversos artistas e intelectuais, em variados espaços da cidade, notícias que apresentam para “este larguíssimo Brasil”, através da revista carioca, o seu propósito de “explicar a enigmática cidade” e o que nela se produz de cultura, na difusão do movimento modernista que pretende expandir por todo o Brasil. Enquanto narração epistolar dos acontecimentos, essas cartas paulistanas encerram o desejo de ampliar o alcance das mensagens, de provocar outras mensagens, de interagir por meio dos diálogos filosóficos, artísticos e socioculturais que as atravessam e as constituem. Em fevereiro de 1921, nº 6 da revista, De São Paulos III, o texto de Mário se reconhece como crônica e, paralelamente, usa a carta como veículo de uma reflexão sobre a arquitetura brasileira, aproveitando acontecimento da cidade para reiterar ideias externadas em “A arte religiosa no Brasil” e sua adesão pelo estilo neocolonial, lançada por Ricardo Severo para o Brasil: a arquitetura neocolonial. Mas o que há de mais glorioso para nós é o novo estilo neocolonial, que um grupo de arquitetos nacionais e portugueses, com o Sr. Ricardo Severo à frente, procura lançar. [...] O neocolonial que aqui se discute é infinitamente mais audaz e de maior alcance. [...] São Paulo será fonte dum estilo brasileiro. Estou convencido de que não, mas creio firme e gostosamente que sim. [...] Quero crer que São Paulo será o berço duma fórmula de arte brasileira porque é bom acreditar em alguma coisa. Não sou crítico, nem filósofo: sou cronista. Ah! Deixem-me sonhar. Deixem-me crer que, embora perturbado pela diversidade das raças que nele avultam, pela facilidade de comunicação com os outros povos, pela vontade de ser atual, europeu e futurista, o meu estado vai dar um estilo arquitetônico ao meu Brasil. Ah! Deixem-me sonhar! (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 95-98) Em seu admirável estilo de cronista crítico, Mário, esse inquieto pensador, narra os acontecimentos da cidade, noticia os eventos culturais, fala dos amigos da Paulicéia, Menotti, Di Cavalcante, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade; e, como um flâneur percorre os espaços da cidade moderna, destacando com admiração e crítica as ambivalências que a compõem: o Trianon, “lugar de serenatas inconfessáveis” e que também, “É o cardápio, e como todos os cardápios, desilusório da ágape social da cidade”, e a Villa Kyrial “como contraponto a tanta indigência, é magnífico” Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 104 “no salão que Freitas Vale preside [...] há vida, há lutas, há discussões, há estímulos e rivalidades”. Com efeito, nessas duas crônicas finais, as múltiplas relações entre cultura e espaço, potencializam dialogicamente não só o viés crítico do cronista, como também vão configurar a gestação do movimento modernista que se articula em diálogos interartes, em diálogos culturais, para catalisar a interação criativa dos vários discursos artísticos veiculados na polifonia cultural, metáfora da polifonia musical, tão íntima e afim nas concepções artísticas de Mário de Andrade. Em De São Paulo IV, nº 7 da série, a crônica reporta-se ao lançamento, em almoço no Trianon, da edição de luxo de As máscaras, prosa poética de Menotti Del Picchia. O banquete entroniza o retrato do poeta – Máscara –, obra de Brecheret em bronze, e no decurso da festa, a surpresa: o lançamento público do modernismo. A saudação de Oswald de Andrade ao homenageado, conhecida como Manifesto do Trianon (LOPEZ, 2004). No recente processo de modernização da cidade, o Trianon, de mirante isolado em meio ao parque, passara a restaurante da moda. Há certos edifícios, certos passeios, às vezes mesmo certas portas, árvores, bancos, lugares enfim que são perseguidos por uma felicidade muito especial. [...] Haja vista o Trianon. A princípio nada mais era que um terraço onde um ou outro passeante da Avenida Paulista iria empoeirar os cotovelos em parapeitos desertos [...] Lugar de serenatas inconfessáveis... Comovidamente ousaram fazer do local habitações de pombos mais que simbólicos.. Mas logo abrolhou a idéia dum restaurante... [...] É que todas as urbs progressistas e que se orgulham de o ser almejam proporcionar, não écoglas, mas... paraísos artificiais. Fez-se o restaurante. [...] O Trianon é hoje uma instituição. É o cardápio e, como todos os cardápios, desilusório do ágape social da cidade. (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 101-102) Isto é, o Trianon é um importante espaço público de interação. À luz do que nos oferece a abordagem de Bakhtin, do ponto de vista da esfera comunicativa, dialógica da cultura, tudo reverbera em tudo, uma vez que nela as formas culturais vivem sob fronteiras: “lugar de serenatas inconfessáveis”. Assim destacam-se também as formulações fora dos limites [do romance], nos espaços públicos, os parques, a rua, a praça, a feira, os espetáculos, as festas, o jornalismo, a arte. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 105 Bakhtin nos chama a atenção à construção de enunciações em que a linguagem é explorada em função da performance vocal, visual, gestual e do próprio espaço; diríamos que o ambiente é a condição sem a qual o diálogo simplesmente não acontece. A dialogia de um performer numa feira, numa festa, ou como no caso, num banquete de homenagem num restaurante em meio ao parque da cidade, acontece entre signos que ele, o regente das vozes, manipula para interagir com seus interlocutores ou espectadores, que por mais silenciosos que estejam, estão produzindo respostas que por sua vez, alimentam o circuito da respondibilidade: a polifonia se realiza. Quer dizer que do ponto de vista do dialogismo, essa polifonia resulta de gêneros discursivos num contexto enunciativo que acolhe uma diversidade muito ampla de manifestações (BAKHTIN, 2010). Além da comunicação visual primeira – a área do parque primitiva, “um terraço onde um ou outro raro passeante da avenida Paulista ia empoeirar os cotovelos em parapeitos diversos”, outras esferas do discurso urbano foram introduzidas “logo abrolhou a idéia de um restaurante [...] porque todas as urbs progressistas e que se orgulham de o ser almejam proporcionar, não écoglas, mas paraísos artificiais. Fez-se o restaurante”, evidenciando que as múltiplas relações entre cultura e espaço desdobram-se em diálogos e polifonias socialmente determinados. E, inserindo-os no pressuposto bakhtiniano de que “a literatura não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época” (BAKHTIN, 2010, p. 360), podemos compreender melhor os limites e os desafios dos vanguardistas da Paulicéia. Enaltecendo o anfitrião, o cronista permeia com a própria crítica (por justaposição das ideias) o senso crítico do amigo, capta as contradições na diversidade dos convidados, salientando o grotesco da festa. Na linguagem, a irreverência, a frase telegráfica ainda se aliam com vocábulos preciosos e com a altissonância no torneio das frases, marcas de um tempo de transição (LOPES, 2004). A convivência dessa linguagem contrastante como expressão de um tempo de amadurecimento reflete a índole inacabável do dialogo polifônico, visto que o dialogismo, no sentido mais amplo, opera em qualquer produção cultural, seja ela da tradição literária ou de enunciados convencionalmente não-modelares; se refere a todas as práticas discursivas de uma cultura, toda matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado (BAKHTIN, 2010). Mário que, em sua estratégia de modernista, procede à louvação do correligionário, compraz-se em trabalhar a musicalidade das palavras, explorar a melopoética em sua crônica não só no elogio ao poeta Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 106 homenageado, como também no recurso de sua escrita aliterativa e musical. Nesse sentido, as palavras se ligam umas às outras menos pelo sentido do que pela sonoridade. Isto tudo gera uma harmonia, pois o som de uma palavra fica reverberando na outra: um efeito pouco comum, já que não são possíveis sons simultâneos na escrita [poética], porém, a técnica possibilita quase que uma verticalização sonora (na música nomeia-se este elemento de harmonia). Menotti Del Picchia respondeu a cada um dos inúmeros oradores, como era de esperar a bondade acolhedora do seu espírito. E disse coisas lindas também, num prosar músico de raríssimo fulgor. Estou que o artista do Moisés maneja com maior perfeição a prosa do que o verso [...] Sai-lhe a frase em melodia flexuosa. Coroa-a de finais que espraiam largos, lentos, lânguidos como as maretas nas marés mortas de janeiro... E um ritmo estonteante, sempre vário, sempre original... É na sua prosa que Menotti cantou os seus melhores versos – aqueles que sua poética não permitiu ainda, enclausurada na prisão das regras alexandrinas. (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 105) Ampliando um pouco mais a análise, reveladoras, ainda, nos parecem as observações postuladas por Bakhtin quanto à prosificação da cultura, em tudo semelhante à concepção da estética modernista à época, quando defende a aproximação entre a linguagem literária, especialmente a da poesia, e a linguagem da prosa, do falar prosaico do cotidiano, presentes já nessas crônicas de Mário que na transição em que vive deixa as marcas da “modernidade alardeada, a irreverência, frases telegráficas, frases sem verbos abertas nas reticências, a descoberta da fala brasileira [...]” (LOPEZ, 2004, p. 30). Para Bakhtin, a variedade e a mobilidade discursivas da comunicação interativa em suas combinações favoreceram o avanço da cultura prosaica de valorização das ações cotidianas dos homens comuns e de suas enunciações ordinárias, e promoveram a prosificação da cultura. A prosa tanto está na voz, na poesia, quanto na littera. Na verdade, a prosa é uma potencialidade manifesta como fenômeno de mediação, que age por contaminação, migrando de uma dimensão a outra. Assim, para ele a prosificação da cultura letrada pode ser considerada um processo altamente transgressor, de desestabilização de uma ordem cultural que parecia inabalável. Trata-se da instauração de um campo de luta, da arena discursiva onde é possível Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 107 discutir ideias e construir pontos de vistas sobre o mundo, inclusive códigos culturais emergentes (BAKHTIN, 2010). Ora, não seria esta uma das bandeiras da renovação modernista desfraldada por Mário de Andrade? A última crônica, De São Paulo V, nº 9 da revista, retrata o ciclo de conferências do salão de Freitas Vale, Villa Kyrial, um espaço de grande importância sociocultural, ponto de encontro da intelectualidade da época. Aqui, como em tantos outros escritos de Mário, as relações entre cultura e espaço estimulam as interações sociais, amálgama do diálogo polifônico. O relato, antecedido de uma forte sátira à futilidade no lazer da burguesia da cidade, alheio às manifestações culturais e a conversas mais consistentes, retrata bem os hábitos sociais das metrópoles no início do século e a mania das conferências. O tom satírico contrapõe-se ao apologético que o sucede, para valorizar a burguesia culta assídua no único salão literário e artístico paulistano, no qual o mecenas José de Freitas Vale, que é também o poeta simbolista Jacques d’Avray, organiza ciclos de conferências. Assim, o jovem crítico, ávido de bons frutos do pensamento, através da escuta apurada dos temas, de sua escuta aberta às “forças poderosas da cultura”, ainda que, neste caso, de uma cultura da elite intelectual, traz à luz em sua crônica, a convivência das diversas correntes artísticas nesse oásis polifônico para os sedentos do saber. Põe-se, então, no historiar da crônica, a divulgar a programação eclética de Freitas Vale. Mesmo omitindo sua própria participação que, segundo registros em seu arquivo, fez a quinta conferência – “Debussy e o impressionismo” –, evidencia a interface entre o cronista, o crítico de arte e o musicólogo (LOPES, 2004). E encerra a crônica, louvando o empreendimento cultural no estilo musical e sonoro da melopoética simbolista, em metáfora musical, combinando aliteração e assonância. E, por último, um pormenor sublime: dança-se na Villa Kyrial! Entre os artistas gesticulantes e entusiasmados há sílfides que vivem valsando a valsa maravilhosa da inteligência e da graça... [...] E, com a imaculada paz de seu espírito silencioso, a rainha de tantos feudatários, a senhorinha Leilah de Freitas Vale – que é como um som longínquo e longo de trompa numa tarde lenta, muito lenta... (ANDRADE citado em LOPEZ, 2004, p. 115) Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 108 Com efeito, nas crônicas da série De São Paulo para a Ilustração Brasileira o cronista evidencia os espaços da Paulicéia como espaços de uma cidade que se moderniza, como espaços artísticos e socioculturais, lugares privilegiados tanto de fruição estética e intelectual como de projeção identitária de um movimento de renovação cultural. Na Pauliceia de Mário, as confluências entre a literatura e as outras artes revelam que os valores artísticos dialogam sempre e estão em constante interação com os substratos culturais implícitos na dimensão simbólica e alegórica tanto da linguagem do cotidiano como nas linguagens artísticas da literatura, da música, das artes plásticas, enfim, da cultura. A melopoética e a polifonia cultural na vitrola de Mário de Andrade Mário de Andrade amava a Música. Vivia a Música. Amava a Literatura. Vivia a Literatura. Amava a Cultura. Vivia a Cultura. Com efeito, talvez possa parecer redundante falar das relações entre a Música e a Literatura, a melopoética, em suas obras; identificar o dinamismo e a profundidade de suas concepções sobre Cultura, sobre Cultura brasileira, a polifonia cultural, transbordante em suas produções críticas ou artísticas, inseparáveis em sua essência, mas o fato que se avulta nas leituras é que sua obra ainda é fonte de ensinamentos e surpresas. E como diz sabiamente José Ramos Tinhorão, “quando se trata de estudos de cultura popular no Brasil, por mais que se saiba, sempre há o que aprender com o pioneiro Mário de Andrade” (citado em TONI, 2004, p. 11). A obra, A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, organizada por Flávia Camargo Toni, está inserida no conjunto de pesquisas que investiga e revela ao púbico as riquezas inesgotáveis do acervo de Mário de Andrade: objetos de arte, documentos, anotações, registros, esboços e obras que ainda surpreendem estudiosos e deleitam os amantes da cultura e das artes em geral, tal é a fecundidade do escritor, do artista, do crítico, do intelectual, enfim, de um dos maiores pensadores brasileiros do século XX. Segundo José Ramos Tinhorão, em sua apresentação da referida obra, a ideia de organizar, em livro, o catálogo dos 161 discos de música popular brasileira da coleção pessoal de Mário de Andrade, acompanhados das anotações encontradas nas capas de “cartolina lisa” que os revestiam, resulta na comprovação do pioneirismo do grande estudioso no uso de produtos da indústria do lazer internacional como documento para o estudo do processo cultural brasileiro. E para nós, nesse pequeno estudo, mais Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 109 uma prova do caráter polifônico, antropofágico (o artista de uma cultura dominada não pode ignorar a presença estrangeira; é preciso que dialogue com ela, que a engula e a recicle de acordo com os objetivos nacionais) e renovador do grande pesquisador brasileiro que, com sua “escuta aberta” e seu “ouvido crítico”, se apropria desse recurso para consolidar sua posição teórico-nacionalista nos estudos da cultura popular brasileira. A opção metodológica da organizadora, utilizada para a seleção dos 161 discos dentre os 544 colecionados por Mário de Andrade5, se motiva pela forma, escolhida pelo colecionador, de ouvir e contemplar a produção nacional popular-urbana e folclórica, anotando nas capas dos discos suas impressões de audição das obras e dos intérpretes. Além disso, o interesse por esse recorte se amplia em face dos desdobramentos desse processo que, fruto de suas análises, vão permear certos artigos e ensaios, na interface entre a literatura, a crítica e a musicologia, isto é, um diálogo interartes: Mário de Andrade escutava de tudo – das milongas ao jazz, de Francisco Mignone a Arnold Schoenberg –, embora aqui estejam apenas os discos de musica popular brasileira. [...] a capa dos discos eram incômodas para o fichamento. Logo substitui os invólucros que vinham com as propagandas das fábricas, sem fichas técnicas, por outros de cartolina lisa que mandava fazer e, nessas novas capas, com letra miúda, a lápis ou tinta, escrevia à vontade. Essas notas muitas vezes foram rascunhos ou primeiros manuscritos da redação de críticas jornalísticas e ensaios (TONI, 2004, p. 13-14) As anotações do autor nas capas dos discos e as referências na literatura musical de Mário de Andrade refletem em tudo um diálogo íntimo entre o escritor e o musicólogo, como bem aponta Flávia Camargo Toni: “pontos que unem a literatura e a música, fios que tecem um só Mário de Andrade” (2004, p. 22), observação na qual parece ecoar as considerações de Bakhtin quando questiona a tendência de se dar particular atenção à especificidade da literatura, sem estabelecer o vínculo mais estreito com a história da cultura, relegando suas potencialidades dialógicas como produção cultural: Em função do envolvimento com especificações, ignoravam-se as questões da relação mútua e da interdependência entre os diversos campos da cultura; esquecia-se frequentemente que as fronteiras desses campos não são absolutas, que variam em diferentes épocas, não se levava em conta que a vida mais intensa e produtiva da cultura transcorre precisamente nas fronteiras Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 110 de campos particulares dela e não onde e quando essas fronteiras se fecham em sua especificidade [...]. (2010, p. 361) Ancorados, então, nessas observações, podemos identificar que a relação de Mário de Andrade com a “discação nacional” se manifesta sob três aspectos: como criação literária, fonte de pesquisa ou, apenas, fruição pessoal. Como criação literária, nas imagens poéticas (melopoéticas) que se realizam em seus escritos; como fonte de pesquisa que vai alimentar seus artigos, conferências e crônicas críticas (também fonte de melopoética); e como deleite pessoal do musicólogo. Os discos mais antigos do arquivo de Mário de Andrade, segundo registros, pertencem à fase da gravação elétrica, iniciada no Brasil em 1927, e incluem discos lançados ou gravados entre 1927 e 1945. Também a referência mais antiga ao conteúdo de um disco, em texto de próprio punho, deve datar de 1927, como afirma Flávia C. Toni: Cronologicamente, a referência mais antiga de Mário de Andrade ao conteúdo de um disco, em texto de própiro punho, deve datar também de 1927, quando organiza os dados que Pixinguinha lhe oferecera sobre a macumba do Rio de Janeiro [...] As informações obtidas são transcritas em folhas destacadas de uma caderneta de bolso e confrontada como os versos de Dona Clara, ao analisar as cantorias do culto. (TONI, 2004, p. 27) Essas informações de Pixinguinha e a música de Donga, Dona Clara, segundo diversos registros, deságuam no capítulo “Macumba” de Macunaíma e na conferência literária Música de feitiçaria no Brasil, escrita para a Associação Brasileira de Música e posteriormente, junto com outros documentos afins fará parte da obra homônima, organizada por Oneyda Alvarenga. Assim, sua audição crítica e suas anotações sobre as músicas e os intérpretes, nas capas, não só vão motivar outros estudos críticos como também vão rechear suas criações literárias e os temas de sua extensa correspondência pessoal. A “discação nacional” como fonte de criação artística em Mário de Andrade A internacionalização, industrialização e comercialização de bens culturais foram sem dúvida aspectos que instigaram a criação artística modernista. Na “escuta aberta”, singular e critica em que sempre se pautou Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 111 a postura intelectual de Mário de Andrade, não se tem notícia precisa de quando o musicólogo começa a colecionar discos e ampliar, com a música mecânica, seu conhecimento musical. A música popular registrada em discos, assim como outras obras da música universal, constituíram um grande foco de sua atenção como estudioso da nossa cultura. Os discos eram valorizados por ele não só para fruição, mas também como instrumento de trabalho, suporte para suas pesquisas. Em seu acervo discográfico registra-se uma variedade de música popular e de concerto de nossa cultura musical e, em seus artigos na imprensa e nas conferências que realiza, aconselha, além das edições de partituras, a leitura dos catálogos da Colúmbia, Odeon e Vitor que já ouvira em sua vitrola. Em suas colaborações tanto para a imprensa nacional como para a estrangeira, elenca discos representativos de cururu, cateretê, toré, samba, jongo, macumba, batuque, modinha, moda e embolada (TONI, 2004). Considerando os limites do presente estudo, da seção “Catálogo” do livro organizado por Flávia Camargo Toni, dentre o rico material da “discação” de Mário, destacamos duas referências a fim de identificar e analisar os processos da melopoética como forma de diálogos interartes na polifonia cultural em Mário de Andrade. Discos lançados ou gravados em 1929 LADO A PRAZERES, Heitor dos. Vai mesmo: Samba. Mário Reis com Orquestra Pan American LADO B SILVA, J. B. da (Sinhô). Carga de burro. Samba. Mário Reis com Orquestra Pan American DISCO ODEON 10387 Notas de Mário de Andrade Na capa 289= O. B.10387 “O Samba de Sinhô foi célebre um tempo. Aqui, está realizado num ambiente orquestral muito influenciado de rumba.” Referência na Literatura Musical de Mário de Andrade Sobre Sinhô6: “Sinhô é poeta e músico. Do Brasil? Me dá uma angústia atualmente imaginar em Brasil... É uma entidade creio que simbólica este Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 112 país. Realidade, não me parece que seja não e, quanto mais estudo e viajo as manifestações concretas do mito, mais me desnorteio e, entristecer, não posso garantir que me entristeço: me assombro. Na verdade, na verdade este nosso país inda pode dar esperança de si... Mas é simplesmente porque arromba toda concepção que a gente faça dele. Porém, Sinhô, senão é brasileiro, é carioca. Pouco me incomoda de saber onde nasceu. Sinhô é carioca na música e na poesia dele. Possui nos textos incomensuráveis que inventa aquela safadice pura com que o carioca fala em “catedrais do amor” Agora já estou querendo me afastar do assunto mais uma vez porque minha experiência está gritando aqui dentro: – O carioca não existe ou é o Brasil! Essas maneiras sintéticas da experiência gritar são as mais das vezes muito falsificadoras. De fato o carioca existe como entidade psicológica, muito embora de fato, sejam no geral muito menos cariocas os seres nascidos no Distrito Federal, que os brasileiros e estrangeiros atraídos pelo Rio de Janeiro. São estes os que deixaram a consciência e o caráter e tudo na ilha de Marapatá, os que fazem a entidade psicológica bem merecedora do qualitativo ‘carioca’ [...]”. (ANDRADE citado em TONI, 2004, p. 80-81) Como se pode observar, Mário de Andrade faz referência, na crônica acima, a uma das figuras mais emblemáticas do samba carioca: J. B. Silva, conhecido como Sinhô, inspiradora de admiração e mote para muitos cronistas modernos. Pode-se constatar que, na relação entre disco, música e crônica, realizam-se diversas metáforas e alusões musicais, a melopoética. Afinal, como ouvinte da música e como crítico, Mário fala de suas impressões do disco, tece pequena consideração sobre o músico, suas qualidades musicais e, extrapolando pelo processo de transposição para linguagem literária, deságua nas reflexões sobre a identidade do “mito” Brasil, na gênese do jeito e do estilo carioca. Assim, polifonia entra na arquitetura do texto quando estabelece o embate entre a sua “experiência que grita aqui dentro” e outros sujeitos, ecos de diversas “consciências” que perpassam a visão critica do autor. É interessante observar, também, a conexão crítica entre o sintético registro do musicólogo sobre o disco, feito na capa, destacando a influência nociva do estrangeirismo no ambiente orquestral numa composição de um músico popular: “Aqui, está realizado num ambiente orquestral muito influenciado de rumba”. Além disso, há uma crítica cultural na medida em que Mário questiona a ambiguidade da identidade nacional, ao afirmar que Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 113 “pouco me incomodo de saber onde ele [Sinhô] nasceu” e concluir, exclamando, que “o carioca não existe ou é o Brasil!”. Assim, os efeitos do entrelaçamento entre a melopoética e a polifonia, por sua índole dialógica, vão se desdobrar em um fenômeno mais amplo nas produções critica, literária e musical de Mário de Andrade, ou seja, a polifonia cultural. Outra referência de destaque nas apreciações musicais da discação de Mário de Andrade é o músico popular Pixinguinha e sua mestria como instrumentista e, embora não tenha dedicado a ele nenhum estudo específico, as informações dadas pelo músico sobre a Macumba no Rio de Janeiro vão servir como fonte de criação para o escritor. Discos lançados ou gravados em 1929 LADO A VIANA, Alfredo. Vem cá! Não vou!: Choro orquestral. Orquestra Victor Brasileira. LADO B VIANA, Alfredo. Urubatã: Choro orquestral. Orquestra Victor Brasileira DISCO VICTOR nº 33.204 NOTAS DE MÁRIO DE ANDRADE Na capa “26= V.33204” “Disco admirável. Riqueza e beleza de combinações instrumentais. Alfredo Viana é o próprio Pixinguinha. O titulo Urubatã é digno de nota. Urubatã é um deus do Catimbó, cuja melodia registrei no nordeste. Pixinguinha, macumbeiro contumaz carioca, denominando uma obra sua com nome de Catimbó... A melodia recolhida por mim é completamente outra.” Referências na Literatura Musical de Mário de Andrade Informações sobre a macumba, no Rio de Janeiro, transmitida a Mário de Andrade por Pixinguinha.7 Cerimônias de Macumba (Pixinguinha) Pais-de-santo são os feiticeiros-mores, em cujas casas se realizam as macumbas. São obrigados a realizá-las nos dias exatos, como por exemplo 8 de dezembro, dia de Inhançã, N. S. da Conceição. Também são obrigados Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 114 conforme o dia do santo a matar um carneiro, um caritó, um porco, etc. Não perguntei se os macumbeiros comem toda essa carne gostosa. Naturalmente. Às vezes a fama de certos pais – de santo se espalha. Uma das mais recentes mães-de-santo (pois que podem ser também mulheres) famosas foi tia Ciata, mulher também turuna da música dizem [...]. Também se evoca o diabo sob a denominação de Exu. Aliás, um maxixe do Donga o prova quando diz: ‘Fui em Dona Clara – numa macumba – com Exu falar, fazer um feitiço – pra cima de ti, pra você me deixar.’ O canto inicial das macumbas é o salvamento dos santos e expulsão de Exu. É uã melopéia monótona, verdadeira litania em que repete infindavelmente o coro: “Vamo saravá” [....] O informante crente pio me confessou margurado que é uma vergonha certas macumbas de porcaria em que santo aparece por dá cá aquela palha. O anúncio de que o santo vai chegar dá um frêmito de terror adorante nos assistentes. A pessoa em que o santo vai entrar se torna atenção de todos. De repente, ele começa a puxar um canto a que todos os assistentes fazem coro. O santo chegou. [...] Canta a pessoa em que o santo entrou, já inteiramente possessa e o coro faz adoração ao santo. Depois então principiam os pedidos pro santo, que os dá ou não. [...] O canto dos santos encarnados são na infinita maioria incompreensíveis pros negros do Brasil. Ou em línguas africanas ou puramente mágicos em palavras onomatopaicas ou não, porém de sentido oculto. Ou nenhum sentido...[...] No maxixe ‘Não te quero mais’ que citei o macumbeiro pede ao diabo pra que uã amante o deixe. E... ‘Uma nega velha/ De cachimbo torto/ Que tinha na boca/ etc/ Pegou três pauzinhos,/ jogou para o alto/ Fez encruzilhada./ Nhonhô vai-se embora/ Me disse em segredo,/ A mulher está amarrada/ Feitiço não te pegar/ Os santos vão te amarrar/etc. E diz na estrofe seguinte: Vou pedir a Ogum/ Pra falar com Xangô/ Pra você sofrer’ [...]. (ANDRADE citado em TONI, 2004, p. 87-90) Para Mário, Pixinguinha era uma fonte ligada às manifestações afro– brasileiras, o “informante” e o “fadista de profissão” que o levou às pesquisas, que redundaram na conferência Música de feitiçaria e no capítulo “Macumba”, de Macunaíma. Nesse capítulo, observa-se a mobilidade como processo constitutivo da criação literária, na medida em que, a partir das informações dadas pelo músico, o narrador descreve o ritual e constrói a representação de Pixinguinha como Ogã, o “Ogum Bexiguento”, além de inserir Tia Ciata e Polaca no capítulo. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 115 Em “Macumba” a liberdade da linguagem literária (alegoria) e o contexto ficcional permitem a Mário de Andrade explorar a melopoética na alusão às formas musicais, por meio de formas populares de composição, como suíte e variação8 e da obra como rapsódia9, bem como representar e, de certa forma, questionar os vários elementos que surgiam e se perdiam no ambiente sonoro da cultura popular. Desse modo, graças a sua “ordenada sistematização musical”, Mário de Andrade encontrava na coleção de discos elementos que o ajudavam a buscar variantes e constâncias melódicas brasileiras, atentando sempre para o ruído da influência internacional, como bem aponta Mauricio de Carvalho Teixeira: Naquele projeto estético, era a partir da quebra desses limites, pesquisada entre as sociedades ágrafas, que se deveriam multiplicar as músicas modernas. A composição de Macunaíma escrito como se fosse música, quis dar um exemplo de realização criativa dessa nova arte baseada numa identidade étnica da nação e na contramão das modas internacionais. (citado em TONI, 2004, p. 69) A ironia dirigida por Mário a Pixinguinha por nomear a música deste de Urubatã, um deus do Catimbó, cuja melodia era bem diferente do seu choro orquestral, ritmo essencialmente urbano, reforça a premissa de que o ruído da influência internacional contaminava a cultura popular. Considerações finais Como se pôde observar pelos recortes apresentados, a estética de Mário de Andrade é engendrada através de um processo altamente dialógico, em que artistas e teóricos das Letras, da Música e da Pintura são resgatados ou apresentados e compõem, simultaneamente, as interações com seu tempo-espaço, agregando valores estéticos, sociais e culturais ao seu fazer artístico, tanto da tradição como das vanguardas. Essas marcas dialógicas servem à legitimação de suas concepções como intelectual que, inserido nos dilemas da modernidade, estava sempre preocupado em propor caminhos para o estudo do processo cultural brasileiro e para uma produção artística ao mesmo tempo modernista e nacional. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 116 Neste sentido, a polifonia cultural e os inumeráveis diálogos inteartes que se estabelecem na produção crítica e literária de Mário de Andrade constituem, na verdade, parte de um processo criativo e intelectual socialmente determinado de sua orquestração polifônica em que gêneros e estilos, marcas estéticas, sociais e culturais iluminam-se mutuamente, relativizandose uns aos outros. Essa polifonia cultural implica, ao mesmo tempo, um confronto entre práticas e discursos sociais mais amplos e, é, através desse confronto, que o autor exprime as contradições da época, mas não se fecha nelas, pois “a literatura como unidade diferenciada da cultura de uma época é uma unidade aberta, sua plenitude só se revela no grande tempo” (BAKHTIN, 2010, p. 365). Notas Essas relações serão analisadas a partir das indicações e textos presentes nos livros De São Paulo – cinco crônicas de Mário de Andrade de 1920-1921, organizado por Telê Ancona Lopes, e A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade, organizado por Flávia Camargo Toni. 1 A escuta como um fenômeno psicossocial vem sendo estudada por diversas áreas do conhecimento, tais como a acústica, a fenomenologia e antropologia sonora. A expressão “escuta aberta” é utilizada aqui, por transposição para os estudos literários, como uma postura estética, uma forma criativa e inovadora de agregar sentidos ao processo de criação artística, a partir de experiências diversas, sonoras ou não, considerando que a escuta não se reduz a uma capacidade fisiológica e não se dá num vácuo social. O crítico Theodor W. Adorno foi um dos primeiros autores a discutir a escuta moderna em trabalhos como “Sobre jazz” (1936) “Sobre o caráter fetichista da música e a regressão da audição” (1938) e “Sobre música popular” (1940-1941). Além de Adorno, Murray Shafer em O ouvido pensante (1991) denomina de “paisagem sonora” o que, em certo sentido, seria o substrato a partir do qual se desenvolvem os imaginários sonoros de diferentes épocas e sociedades. Virgínia de Almeida Bessa, na introdução da obra A escuta singular de Pixinguinha: história e música popular dos anos 1920-1930 faz interessantes considerações sobre o tema. 2 Combinação de duas ou mais notas que soam simultaneamente (ANDRADE, 1989, p. 8). 3 Cadência – Procedimento harmônico de encadeamento de acordes para a finalização de uma obra, seção ou frase (ANDRADE, 1989, p. 79). 4 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 117 A coleção de discos do escritor integra, hoje, seu Arquivo como patrimônio do IEB/USP. 5 6 Mário de Andrade, “Sinhô”, em Taxi e crônicas no Diário Nacional, p.103 Informações recriadas literariamente no capítulo “Macumba” de Macunaíma, p. 7382, e reproduzidas em parte na Conferência Literária : Música de feitiçaria no Brasil, lida na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, em outubro de 1933, provavelmente no dia 3, segundo registros encontrados por Oneyda Alvarenga, e acolhidas na obra homônima Música de feitiçaria no Brasil, p. 154-156. 7 Suíte – forma musical composta por uma sequência de diferentes danças escritas na mesma tonalidade e para o mesmo instrumento ou conjunto instrumental. Segundo Mário de Andrade, “a suíte é antiguíssima e a gente encontra a base dela na música popular. É muito comum, no povo, a união de peças musicais distintas, todas de caráter coreográfico, para formar obras complexas e maiores (ANDRADE, 1989, p. 490) Variação – O princípio da variação consiste em repetir uma melodia dada, mudando, a cada repetição, um ou mais elementos constitutivos dela, de forma que apresentando uma fisionomia nova , ela permaneça sempre reconhecível na sua personalidade (ANDRADE, 1989, p. 550). 8 Rapsódia – Forma livre de composição musical, peça característica, sem conteúdo programático (ANDRADE, 1989, p. 427). 9 REFERÊNCIAS Obras de Mário de Andrade ANDRADE, Mário. Macunaíma. São Paulo: Livraria Martins, 1976. ______. A música de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL, 1983. ______. Pequena história da música. São Paulo: Editora Itatiaia, 1987 ______. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga e Flávia Camargo Toni. Editora Itatiaia Limitada, 1989. ______. De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921. Organização, introdução e notas de Tele Ancona Lopez. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 118 TONI, Flávia Camargo (org.). A música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. Obras sobre Estudos Interartes BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e musica. São Paulo: Perspectiva, 2002. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanharussa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Beatriz LOPES Mestranda do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). André Luís GOMES Professor Doutor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). Artigo recebido em 31 de maio de 2011. Aceito em 30 de junho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 119 GRAVURAS PROLÉPTICAS: UM DIÁLOGO MIDIÁTICO ENTRE O PRÓLOGO E A DIEGESE DO FILME OS OUTROS Brunilda T. Reichmann brunilda9977@gmail.com Resumo: Este artigo promove um diálogo midiático entre o prólogo e o desenrolar dos acontecimentos em Os outros (2001), de Alejandro Amenábar. O filme recria e subverte as características das “histórias de fantasmas”, enquanto capta a ressonância de Os inocentes (1961), de Jack Clayton, adaptação fílmica da novela fantástica A volta do parafuso (1898), de Henry James. Este trabalho limita-se, no entanto, a analisar as duas cenas e as oito gravuras da abertura do filme de Amenábar, sobre as quais são projetados os créditos, que prenunciam o desenvolvimento da narrativa, dialogam com a atmosfera e estabelecem uma relação especular com a diegese do filme. Abstract: This article presents a mediatic dialogue between the prologue and the events in The Others (2001), by Alejandro Amenábar. The film recreates and subverts “ghost stories”, while capturing the resonance of The Innocents (1961), by Jack Clayton, filmic adaptation of the fantastic narrative The Turn of the Screw (1898), by Henry James. This paper, however, limits itself to the analysis of the two scenes and the eight drawings of the opening of the film by Amenábar, on which the credits are projected, that foreshadow the development of the narrative, dialogue with the atmosphere and establish a mirror relationship with the diegesis of the film. Palavras-chave: Amenábar. Histórias de fantasmas. Gravuras. Relação midiática. Key words: Amenábar. Ghost stories. Drawings. Mediatic relation. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 120 Introdução Com The Others (2001) [Os outros], primeiro filme em língua inglesa de Alejandro Amenábar, nascido no Chile em 1972 e radicado na Espanha desde a infância, o cineasta espanhol projeta-se universalmente como um dos grandes artistas da contemporaneidade. Amenábar já havia atraído a atenção de um grande número de espectadores com seus dois primeiros longa metragens. O primeiro, intitulado Tese, (1996) [Thesis: morte ao vivo], é um filme de suspense e assassinato; Abre los ojos (1999) [Preso na escuridão], o segundo, trata de assuntos polêmicos como a realidade virtual e a criogênese. O quarto filme, dirigido depois de Os outros, é a sensível produção sobre a eutanásia Mar adentro (2005) [Mar adentro], vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005, de dois prêmios no European Film Awards (2004) e de 14 prêmios no Goya em 2005. Essa breve descrição dos filmes de Amenábar deixa claro que sua preferência recai sobre assuntos polêmicos, que vão desde o suspense hitchcockiano até os limites das controvertidas tecnologia e ciência contemporâneas. Filme com história, ambientação, atmosfera e tensão semelhantes, Os outros estabelece um diálogo “intertextual” com The Innocents (1961) [Os inocentes], adaptação fílmica da novela de Henry James (1843-1916), The Turn of the Screw (1898) [A volta do parafuso]. Os dois filmes – Os inocentes e Os outros – possuem características góticas marcantes: subvertem a noção de realidade empírica ao introduzirem a possibilidade de um mundo sobrenatural; as histórias são ambientadas em local isolado; em cada história há duas crianças com capacidade de entrar em contato com o mundo dos “outros”; as protagonistas femininas vivem situações limítrofes e seus comportamentos beiram a histeria; a expressão dos olhos dessas protagonistas é objeto de constante focalização. Em Os outros há, no entanto, uma potencialização da subversão no que diz respeito ao suspense e ao final do filme. Essa e outras características serão mencionadas à medida que as duas cenas e as gravuras usadas como pano de fundo para a abertura do filme forem discutidas. O prólogo ou incipit insere o espectador imediatamente na diegese do filme Os outros, pois a “câmera subjetiva” sugere um espectador primeiro acompanhando, com a câmera na mão, uma mulher que sobe os degraus Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 121 da escada de uma maneira determinada, cortando para a segunda cena na qual as personagens estão aparentemente posando para uma foto, e depois, com uma vela na mão, iluminando e observando minuciosamente as gravuras, sob o bruxulear da chama, em um ambiente totalmente envolvido pela escuridão. Recriação e subversão A leitura das “histórias de fantasmas” (expressão usada por Todorov), criadas por Henry James, sugere uma imagem complexa e de difícil captação. De 1868 a 1908, o romancista dedica-se a narrativas fantásticas: a primeira sendo De Grey: A Romance (1868) e a última The Jolly Corner (1908). A volta do parafuso (1898) permanece, no entanto, como uma das mais instigantes, “onde a ambiguidade é mantida ao longo de todo o texto e onde ela representa um papel dominante” (TODOROV, 2003, p. 185). Essa manutenção da ambiguidade traz o leitor de volta ao texto repetidas vezes em uma tentativa frustrada de “resolver” o mistério que permeia a narrativa. Nelson de Oliveira (2008), colunista do Jornal de Literatura do Brasil, assim descreve a ambiguidade em Henry James Aí está o fantástico clássico: entre o mundo real e o mundo sobrenatural. Ele se fundamenta na hesitação do narrador e do leitor, que não sabem, nem têm como saber, qual seria a verdadeira explicação dos acontecimentos que vão passando diante de seus olhos. Quando as evidências parecem apontar para determinada direção – o plano de uma mente criminosa ou a loucura do protagonista ou o mundo sobrenatural – novos acontecimentos vêm mudar o rumo da história e confundir o narrador e o leitor. É o que acontece, por exemplo, no romance A volta do parafuso, de Henry James, no qual até mesmo no desenlace o discurso do narrador não permite que o leitor saiba se os fantasmas existem mesmo ou se tudo não passa de alucinações da protagonista. Aí a ambigüidade jamais desaparece. Ao escrever narrativas “de fantasmas”, Henry James transgride as leis da realidade empírica e abre espaço para outras esferas de existência cujos habitantes não são seres “reais”. Essas narrativas transgressoras abordam assuntos que transcendem nossa realidade empírica. Com Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 122 Amenábar essa transgressão – a presença de mortos ou fantasmas – é elevada à segunda potência no filme Os outros, pois o mistério e a existência de seres sobrenaturais sofrem um revés no final do filme, intensificando o suspense e introduzindo um elemento surpresa contundente. A crença na possibilidade da existência de fantasmas vai aos poucos tomando corpo no filme, principalmente pelo acesso da menina Anne [Alakina Mann] e da governanta, Sra. Mills [Fionnula Flanagan], aos dois mundos e posteriormente pelo acesso ao mundo dos mortos pela própria mãe, Grace [Nicole Kidman]. A grande subversão, no entanto, dá-se mais para o final. Desestabilizado ao longo do filme pela instabilidade emocional da protagonista, pela tensão e suspense criados pela atmosfera, o espectador tem suas expectativas, não frustradas, mas novamente intensificadas ao descobrir que os protagonistas e os empregados da casa, personagens que atuaram o tempo todo como pessoas da nossa “realidade”, são fantasmas. O espectador, neste momento de impacto, necessita refazer sua trajetória de leitura e restabelecer seu vínculo com a “realidade” do filme, pois esta acaba de escapar-lhe. O medo infantil é o fio condutor de Amenábar, ao conceber a produção, como revelado nas Notas de Produção do filme (DVD 2): Sobre Os outros, [Amenábar] diz que “sempre quis fazer um filme repleto de corredores longos e escuros, um tributo a estes seres sempre mascarados que assombram dos meus pesadelos de infância.” “Minha infância foi povoada por diversos medos – medo do escuro, medo de portas entreabertas, medo de armários, e de uma maneira mais geral, medo de qualquer coisa que pudesse esconder alguém ou alguma coisa,” recorda. “Sendo assim, não é nenhuma surpresa o fato de eu ser avidamente dedicado ao cinema do oculto.” A percepção que estamos em um mundo que dá abertura a outros mundos começa a delinear-se de modo muito sutil e sem efeitos artificiais ou superficiais. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 123 O diálogo entre o prólogo e o filme O prólogo ou incipit, como mencionado, contém duas cenas e e oito gravuras filmadas. A primeira cena, com uma montagem que remete a Eisenstein, estabelece o conflito: linhas verticais cortam um fundo criado por linhas horizontais. Os degraus da escada, definidos por marcante luz e sombra, são cortados pelas pernas de uma mulher, com vestido escuro e austero e sapatos pretos, com gáspea alta e tacões pesados, que sobe a escada. O som dos passos assemelha-se a estampidos que conduzem o espectador escada acima, quando uma nova cena nos introduz a um mundo onde seres “estranhos” entre pessoas de uma aparente realidade empírica encaram a câmera – que supostamente está sendo segurada pelo espectador – como se estivessem posando para uma foto, estabelecendo assim um diálogo com as fotos dos mortos encontradas na mansão. Essas duas cenas curtas nos remetem a um dos temas do filme: a existência de mundos paralelos – o natural e o sobrenatural. Logo após essas tomadas, tendo como fundo uma tela totalmente escura, escuta-se, em voice-over, uma breve história sobre a criação do mundo, baseada no relato bíblico, narrada por voz de mulher. Ela diz: Muito bem, crianças, estão sentadas confortavelmente? Então vou começar. “Esta história começou a milhares de anos, mas acabou em sete dias. Há muito tempo, nenhuma das coisas que vemos agora... o sol, a lua, as estrelas, a terra, os animais e as plantas... nada disso existia. Só Deus existia e só Ele poderia tê-las criado. E Ele as criou.” (0:20-0:50) À medida que a narradora conta essa história, a ilustração da criação do mundo, com o sol no centro vai sendo filmada, tendo como iluminação a luz de vela. A chama incide primeiro na parte central da ilustração, a que está sendo focada, como se o espectador a estivesse iluminando com uma vela na mão. Eliminando-se o espaço onde a luz incide, o resto da tela é escuridão. A seguir outras gravuras, estáticas, todas em PB, com traços complexos e ângulos normais, são filmadas e compõem o pano de fundo do incipit do filme. Após essas duas cenas iniciais e o início da história da versão bíblica da criação do mundo, as oito gravuras1 são filmadas e dialogam com a atmosfera e a diegese do filme. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 124 Primeira gravura (Figs. 1, 2 e 3): Para falarmos sobre esta gravura (e algumas outras que seguem), temos que fragmentá-la, pois a iluminação se desloca para diferentes pontos da gravura, mostrando imagens distintas. O desenho como um todo parece mostrar a criação do mundo, possivelmente remetendo à narrativa da Sra. Mills, a governanta. No início uma luz tênue ilumina o centro, um nascer do sol. Os detalhes laterais da gravura não podem ser observados pelo espectador porque a iluminação não os alcança. A iluminação passa então para o lado direito da gravura onde vemos animais, seguido de um travelling da câmera para o lado esquerdo no qual se vê um menino e uma menina de costas, de mãos dadas, observando o que se encontra à frente, o nascer do sol. As crianças remetem aos dois personagens do filme, Anne e Nicholas [James Bentley], observando as imagens da história da criação do mundo que lhes é narrada pela Sra. Mills. Os nomes da atriz principal – Nicole Kidman – e dos demais participantes e realizadores do filme são projetados sobre as gravuras escuras usadas como pano de fundo dos créditos. Fig. 1 – Primeira parte da primeira gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 125 Fig. 2 – Segunda parte da primeira gravura. Fig. 3 – Terceira parte da primeira gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 126 Segunda gravura (Figs. 4 e 5): O movimento da luz e do travelling é diferente nesta segunda gravura. A tomada tem início nos primeiros degraus da escada, seguida de movimento ascendente, acompanhando a curvatura onde se encontram duas crianças sentadas nos degraus lado a lado; elas observam o que acontece abaixo, por entre os balaústres. À semelhança da primeira gravura, duas crianças estão presentes, remetendo novamente às personagens infantis do filme, Anne e a Nicholas. Esta referência é ainda mais incisiva, pois o desenho da escada assemelha-se à escada da mansão onde moram. A escada passa a representar o entre-lugar. Um lugar ironicamente de proteção entre duas ameaças: as crises da mãe no andar de baixo e os seres sobrenaturais no andar de cima, ou pelo menos é isso que o espectador imagina no início do filme. O movimento ascendente parece indicar que um dia as personagens terão que enfrentar os “moradores” do andar de cima. No momento, entretanto, as crianças refugiam-se, juntas, do inferno abaixo e do inferno acima. Como na primeira gravura, não temos a visão do todo, temos que acompanhar a luz que ilumina partes das gravuras e o travelling ascendente da câmera. Em várias ocasiões durante o filme as crianças refugiam-se na escada, mas, além de ser um lugar de refúgio, é também o espaço onde Anne tem que cumprir os castigos impetrados pela mãe, devido, segundo ela, ao caráter “fantasioso” da imaginação e ao comportamento agressivo da filha. O espectador começa a entender, ao ouvir a afirmação de Anne de que ela sabe o que aconteceu “aquele dia”, que a história deles esconde algo sinistro. No final do filme, saber-se-á qual a gravidade do comportamento da mãe, sua causa, justificável ou não, e as consequências de suas ações para os filhos. A austeridade da mãe, a ausência do marido, a dificuldade de criar duas crianças fotossensíveis, a solidão e o desespero que vivencia com o abandono dos antigos criados, de certa forma explicam a atrocidade que a personagem é levada a cometer contra seus filhos. O “desconhecimento” de Grace e do espectador sobre o ato cometido por ela, não faz com que a filha o ignore e deixe de mencionar, com amargura, a expressão “naquele dia” várias vezes ao longo do filme. Os empregados atuais, devido ao caráter especial de suas existências, sentem-se na obrigação de fazer a “dona da casa” reconhecer a ignorância da situação em que vive. Eles aparentemente vêm trabalhar na casa para fazê-la reconhecer seu estado e conduta lastimáveis. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 127 Fig. 4 – Primeira parte da segunda gravura. Fig. 5 – Segunda parte da segunda gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 128 Terceira gravura (Figs. 6 e 7): um menino brincando no chão ao lado esquerdo de uma poltrona onde uma senhora está sentada com um livro aberto no colo. Ela conversa com uma menina à direita. Esta posição do menino, aparentemente alheio ao que está sendo feito ou dito, encontra desdobramento ao longo do filme. Nicholas é muito jovem, frágil e amedrontado, cercado por mulheres fortes, inclusive sua própria irmã, apenas alguns anos mais velha do que ele, mas amadurecida pelas circunstâncias da vida e ciente do que acontece ao seu redor. Nicholas, apesar de parecer alheio aos acontecimentos, é influenciado pelos relatos da irmã sobre Victor [Alexander Vince], o suposto menino-fantasma que assombra a casa, e pelo conhecimento, aventado pela irmã, que a mãe é responsável por algo terrível que aconteceu no passado. Repetidas vezes Anne afirma que Victor não é um fantasma porque não está coberto por lençol branco nem arrasta correntes. Estas afirmações, aparentemente ingênuas, remetem à revelação final do filme. Entre seu amor e temor pelas duas mulheres, e depois também pela Sra. Mills, Nicholas é uma criança atormentada e perturbada. O lado direito da gravura mostra um diálogo entre uma menina e a senhora e remete à relação que se estabelece entre Anne e a Sra. Mills no filme. Elas se reconhecem como seres que têm acesso a outro plano de existência, veementemente negado pela mãe, uma religiosa fervorosa e austera. Na ausência do pai, Anne recorre a Sra. Mills quando é assolada por medos e dúvidas, mas encara a existência de Victor com destemor. Anne vê, além de Victor, vários seres perambulando pela mansão, principalmente no andar de cima. Mais tarde, quando a mãe não pode mais ignorar a existência de “intrusos” na casa, Anne desenha os seres que viu e escreve o número de vezes que os viu. Quando o pai “retorna” para casa, a filha revela o seu sofrimento e do irmão a ele, demonstrando assim sua afinidade com o pai. A conversa entre eles enfurece a mãe que a culpa pelo distanciamento do seu marido. A gravura pode resgatar também o momento em que a Sra. Mills conta para as crianças a história da criação do mundo. Este seria um momento de pausa na narrativa, pois ela descansa o livro no colo e conversa com a menina que está ao seu lado. As duas estabelecem uma cumplicidade cada vez mais profunda, intensificando a atmosfera de mistério. Assim o espectador será mantido sob suspense do início ao final do filme, pois nada é claro, nada é explícito, nada é falado abertamente, nada é revelado. No final, o espectador possivelmente fica estupefato diante da ingenuidade de sua leitura do filme. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 129 Fig. 6 – Primeira parte da terceira gravura. Fig. 7 – Segunda parte da terceira gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 130 Quarta gravura: (Figs. 8 e 9) mão direita segura um castiçal tosco com uma vela acesa, mão esquerda prestes a introduzir uma chave em uma fechadura. No filme, este é um dos turning points da diegese e antecipa um momento de grande suspense na narrativa. Grace, a mãe, escuta, durante a noite, sons que vêm do piano no andar de baixo da mansão. Todos da casa estão proibidos de tocar piano ou mesmo de tocar nas teclas do piano devido à enxaqueca de Grace. Durante a noite, ela escuta o som do piano, pega uma vela e uma espingarda, desce as escadas e introduz a chave na fechadura da sala de música, destrancando assim a fechadura que sempre mantém chaveada, mas quando abre a porta não vê ninguém nem escuta qualquer som. Fecha então o piano à chave e coloca a mesma no bolso do seu penhoar, em uma tentativa de impossibilitar que alguém abra novamente o piano. Assim que se afasta da sala, não é apenas jogada ao chão pela violenta batida da porta, como ao entrar novamente na sala vê o piano aberto. Com esses acontecimentos, o suspense e mistério vão se intensificando, pois Grace, totalmente religiosa e avessa a “fantasias”, expressão que usa para qualificar as visões de Anne, realmente começa a acreditar que a casa está sendo invadida por “intrusos” que ela não consegue ver. Ela se desespera e diz que, se durante a guerra, ela foi capaz de manter os invasores à distância, não seria agora que permitiria que pessoas estranhas invadissem o lugar. Não lhe passa pela cabeça, no entanto, acreditar na existência de “fantasmas”, mas abre-se à perspectiva de questionar a filha, na cena seguinte, sobre os estranhos que tem visto. Lembremo-nos do fato de que quando Grace escuta Anne falar sobre a existência de pessoas estranhas na casa, Grace a castiga por ter uma “imaginação fantasiosa”. O castigo imposto a Anne, é a leitura da Bíblia em voz alta na escada até que ela se retrate. Por três dias Anne é punida. Sentada na escada durante o dia, ela lê a Bíblia, no entanto, não muda sua versão de que há seres estranhos na mansão. Depois da noite do piano, Grace pela primeira vez conversa com a filha e, ao lhe ser mostrado um desenho no qual estão retratados os seres que a filha viu e os números indicando quantas vezes os viu, a mãe encaminha-se ao sótão com uma espingarda em busca deles entre os móveis e estátuas cobertos por lençóis brancos. O uso da espingarda deixa claro que, para Grace, os estranhos são seres humanos que devem ser expulsos à bala. Ao procurar pelos invasores, Grace puxa histericamente os lençóis brancos que cobrem os objetos. A busca, no entanto, é infrutífera. Ela não encontra qualquer intruso no sótão. Segundo conversa entre a Sra. Mills e Anne, Grace ainda não está pronta para lidar com a “verdade”. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 131 Fig. 8 – Primeira parte da quarta gravura. Fig. 9 – Segunda parte da quarta gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 132 Quinta gravura (Fig. 10): menina sentada na escada indica com a mão um espaço acima à sua direita; mulher de costas segurando, com a mão direita, o castiçal com a vela acesa, fala com a menina. Esta gravura é contígua à anterior. Grace já sabe da existência de estranhos na casa, porém ainda não sabe quem e quantos são. Quando questiona Anne sobre onde estariam, Anne aponta para o sótão e mostra o papel com vários desenhos de pessoas: um menino, uma velha, um homem e uma mulher. Ao lado de cada uma dessas figuras ela tinha anotado o número de vezes que ela os vira. Mãe e filha nesse momento conectam-se pela primeira vez, o que leva Grace, naquela noite, a aproximar-se da filha na cama e pedir-lhe desculpas por não ter-lhe dado ouvidos e pelos castigos aplicados. Anne finge dormir para não ter que interagir com a mãe. Ela pode ter conversado com a mãe algum tempo antes, mas isso não implica que a tenha perdoado pelo que “acontecera naquele dia” e pela falta de credibilidade demonstrada. O rancor de Anne não será facilmente aplacado. Fig. 10 – Quinta gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 133 Sexta gravura (Figs. 11 e 12): vulto alongado na janela estende a mão para um menino com expressão apavorada, deitado na cama com o rosto sobre o travesseiro. Nicholas, o personagem mais jovem, sensível e dependente, supostamente o menino que aparece nas gravuras, é incluído nas mesmas sempre em posição inferior aos outros, quer seja em relação à governanta e à irmã, quer seja em relação ao aparente fantasma ou à pessoa cuja mão manipula a marionete. Na terceira ilustração, um menino, possivelmente Nicholas, está ajoelhado, absorto, brincando de trenzinho no chão ao lado da Sra. Mills e da irmã. Na sétima, está pendurado pelos fios como se fosse uma marionete. Nesta sexta gravura, o menino está deitado na cama, de costas para a janela, apavorado com a sombra de alguém que estende a mão para agarrá-lo. Percebemos, ao assistir o filme, que Nicholas é o único personagem inocente e puro na narrativa. Grace, a mãe, carrega um fardo insuportável com a ausência do marido, a falta de ajudantes e a doença dos filhos, e tem atitudes extremas ao recriminar, punir e libertar-se do fardo que carrega de modo violento. Anne, perspicaz e madura para sua idade, cerca de nove anos, tem consciência do que a mãe fez no passado e, por causa disso, a hostiliza, recrimina e agride. Anne é a criança-adulta que vive entre os dois mundos – o mundo dos vivos e o dos mortos. A Sra. Mills e os outros dois empregados não pertencem ao mundo dos vivos, mas isso só é revelado quando Grace acha uma foto dos três empregados mortos. Alguns dias antes de ver a foto, ao encontrar outras fotos estranhas, Grace pergunta à Sra. Mills do que se trata, e esta explica que era costume fotografarse os mortos tempos atrás. Os empregados mortos vêm até a casa para que Grace possa tomar consciência de seu estado. Nicholas vive entre as três “mulheres”: Anne, a menina que já deixara de ser criança e diversas vezes relata ao irmão sobre presença de seres estranhos na casa; a mãe que, de forma histérica, repressora e assassina, há muito deixara de ser a pessoa cristã que pretende ser e vive em um mundo repleto de regras, recriminações e punições; e a Sra. Mills, que tem consciência de tudo que está acontecendo e acontecera na casa. Mais do que qualquer outro residente da casa, a ela demonstra uma compreensão e aceitação da vida como ela é e da morte como uma extensão da vida. Acordar Grace para essa consciência parece ser seu grande objetivo ao voltar à casa onde trabalhara tempos atrás, quando falecera. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 134 Fig. 11 – Primeira parte da sexta gravura. Fig. 12 – Segunda parte da sexta gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 135 Sétima gravura (Figs. 13 e 14): mão de alguém segura a guia da marionete: um “menino” de pele clara e cabelos escuros, com a asas de anjo. A penúltima ilustração é uma das mais intrigantes da abertura, pois a marionete – esse “menino” com asas de anjo e com a cabeça caída para o lado, semelhante a um enforcado –, novamente remete a Nicholas. Essa gravura parece sugerir que a preservação da inocência não é possível em um mundo onde as crianças são marionetes nas mãos dos adultos ou os seres humanos, nas mãos do Criador. A sugestão parece bem clara, a vida de Nicholas é de certa forma manipulada por todos os outros personagens, até pela “aparição”, como vimos na gravura anterior. Sua tenra idade, sua personalidade sensível e seu receio, associado ao fato de que, como a irmã, não pode se expor à luz do dia, faz dele uma criança tímida, medrosa e instável. Marionetes são bastante enfatizadas no filme, pois há um teatro de “bonecos” no quarto das crianças. Além disso, em um momento crítico do filme, quando Grace retorna, depois de ter permitido que Anne ficasse um pouco mais de tempo com o vestido branco da primeira comunhão que está provando, a mãe nota que a filha, agora de costas para ela, está brincando com marionetes, mas a mão que segura a guia é envelhecida. Ao aproximarse, não vê a filha, mas uma velha com mãos deformadas e rosto assustador. A mãe tem uma crise, agarra a velha pelos ombros e a sacode, enquanto chama pela filha. Grace é trazida de volta à realidade ao ouvir os gritos de Anne, que diz que a mãe a está machucando. Este incidente intensifica o rancor que Anne sente pela mãe, pois sabe que Grace praticara um ato violento “naquele dia”. A velha é uma das figuras no desenho que Anne mostra à mãe quando ela lhe pergunta sobre os intrusos, depois do incidente do piano. Nesse desenho, Anne deixa claro que a velha era o ser que mais aparecera. Há uma anotação ao lado da figura: “8” [vezes]. A cena da marionete parece sugerir que a velha encontra na menina um “veículo” para meterializar-se. O final do filme, no entanto, esclarece que elas compartilham o mesmo espaço e que nenhuma delas pertence ao mundo da matéria. Mas o desenho da velha pode, por outro lado, remeter também à médium cega do final do filme, personagem que faz com que Grace reconheça seu estado, conhecimento que será negado logo a seguir. No final, o espectador fica estarrecido ao reconhecer que Victor, o suposto fantasma, é um menino “real”, assim como seus pais, os donos da mansão. Outros são os outros. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 136 Fig. 13 – Primeira parte da sétima gravura. Fig. 14 – Segunda parte da sétima gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 137 Oitava e última gravura (Fig. 15): a mansão e seu reflexo no lago à frente. Essa ilustração é uma vista panorâmica da casa onde moram Grace, a mãe, Anne, a filha mais velha, e Nicholas, o filho com cerca de sete anos. Lê-se na tela: Jersey, the Channel Islands, 1945. No início do filme, estes são os únicos personagens que vivem na mansão, além dos seres vistos apenas por Anne. Com a chegada de três pessoas procurando por trabalho, entre elas a Sra. Mills, a mansão passa a ter seis habitantes, aparentemente “reais”. A imagem da mansão e seu reflexo invertido no lago são sugestivos dos mundos paralelos que iremos encontrar no filme. O espectador, a princípio, estaria inclinado a associar a mansão com o mundo dos “vivos”, mas esse mundo mostrar-se-á ilusório e irreal. Aqueles que à primeira vista parecem pertencer a um mundo sobrenatural (como Victor e outras personagens) – o mundo do andar de cima – seria representado pelo reflexo invertido. No final do filme sabemos, no entanto, que o andar de cima é habitado por seres reais (a mansão na gravura), enquanto que os seres que habitam a parte de baixo da mansão são seres sobrenaturais (o reflexo invertido). O que parece ser real é irreal e pertence ao sobrenatural, o que parece ser irreal é parte da realidade empírica. O equívoco ao interpretar as aparições como parte do mundo sobrenatural resulta principalmente de nossa ingenuidade em acreditar que o que vemos é “real”. Fig. 15 – Oitava gravura. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 138 Há ainda alguns detalhes importantes a serem observados nessas ilustrações. Com relação ao movimento da câmera, apenas a primeira e a última têm a iluminação centrada nas gravuras, seguido de zoom-out ou distanciamento entre a câmera e o objeto. Nas outras ilustrações, o movimento é sempre em diagonal. O travelling em diagonal cria uma sensação de instabilidade e desequilíbrio. A luz bruxuleante da vela intensifica a instabilidade provocada pelo mistério e pelo desejo de desvendá-lo, sentimento que prevalecerá até o final do filme. Já neste primeiro momento, o uso da luz da vela abre espaço para a já mencionada inversão ou subversão trabalhada no filme. Outros aspectos são comuns a algumas gravuras: quando a gravura inclui a escada da casa, o movimento da câmera é sempre ascendente. Esse movimento ascendente vem ao encontro de outras posições de agressão por seres que estão acima (fantasmas) e abaixo das crianças (a mãe). Voltando-nos para os estudos da intermidialidade, parece que existe mais de uma relação entre as mídias no filme: à primeira vista, se falarmos apenas nas gravuras de abertura, haveria “a relação que Rajewsky denomina intramidiática, isto é, relação entre elementos de uma mesma mídia, no caso, o cinema” (OLIVEIRA, texto inédito) ou, em outras palavras, podemos perceber a relação como intramidiática, pois apesar de serem manifestações de mídias diferentes elas coexistem no filme: as gravuras são filmadas como qualquer outro objeto. Existe também uma relação de “intermidialidade oculta ou coberta” (Claus Clüver) ou “intermidialidade grau zero” (Brunilda Reichmann) com a narrativa A volta do parafuso, de Henry James, e sua adaptação fílmica Os inocentes, de Jack Clayton. Ela só pode ser percebida se o texto e o filme fizerem parte do “léxico cultural” (Umberto Eco) do espectador. Terceiro, há ainda uma relação multimidial entre as gravuras e os outros componentes da abertura do filme, quando a fusão (entre a imagem e a história da criação do mundo por Deus) não se realiza necessariamente, podendo cada um dos elementos existir separadamente sem perda substancial. A relação mais significativa, no entanto, parece acontecer entre as gravuras e o que existe antes e fora do filme – o imaginário infantil, povoado de mistérios e segredos, de longos corredores escuros, de portas trancadas, de fantasmas e monstros. O incipit estabelece essa relação, ao colocar o espectador diante de ilustrações semelhantes às de livros infantis de histórias de terror. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 139 Considerações finais Do diálogo entre as gravuras e o filme, parece prevalecer, primeiro, um alerta para o olhar. Na tentativa de acompanharmos um trajeto iluminado pela chama trêmula da vela, na maioria das vezes traçando uma linha oblíqua, Amenábar possivelmente esteja querendo alertar o leitor/espectador sobre a importância desse olhar e sobre a percepção de que ao iluminarmos e focarmos um trajeto não perceberemos nada que se encontra ao redor. Mesmo o próprio trajeto é mal iluminado, impossibilitando uma visão nítida e segura do que está à nossa frente. Pouco nos é dado conhecer além de uma realidade “mal iluminada”. A segunda, e possivelmente a mais importante, levando em consideração a citação de Amenábar nos Extras do DVD, é a de levar o espectador de volta ao universo dos medos e pavores infantis, preparando-o emocionalmente, através da estética do impacto, para adentrar o universo de suspense do filme. Instala-se um grande desconforto e estranhamento com a filmagem das gravuras semelhantes às de livros infantis que evocam mistérios e uma pletora de medos no espectador. REFERÊNCIAS AMENÁBAR, Alejandro. The Others (2001). Miramax Internacional/Dimension Films. ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006. CLAYTON, Jack. The Innocents (1961). Twentieth Century Fox Film Corporation. CLÜVER, Claus. Estudos interartes: introdução crítica. Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada. Ed. Helena Buescu, João Ferreira Duarte, e Manuel Gusmão. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 333- 362. HOEK, Leo H. A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 167-189. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 140 JAMES, Henry. A volta do parafuso. Trad. Francisco Carlos Lopes. São Paulo : Editora Landmark, 2004. OLIVEIRA, Nelson. « Fantasmas, fantoches, fantasias. Disponível em : <http://rascunho.rpc. com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=1082& semlimite=todos>. Acesso : 7 jun. 2008. Brunilda T. REICHMANN PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade de Nebraska em Lincoln (UNL). Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR – aposentada). Professora do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (Uniandrade). Fundadora e editora da revista Scripta Uniandrade. Artigo recebido em 27 de maio de 2011. Aceito em 21 de junho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 141 O SALTO DE ALICE EM TRANSPOSIÇÃO INTERSEMIÓTICA E INTERTEXTUAL: DAS ILUSTRAÇÕES DE JOHN TENNIEL À RELEITURA DE MARGARET ATWOOD Sigrid Renaux sigridrenaux@terra.com.br Resumo: A obra Through the Looking Glass (1871), de Lewis Carroll, foi e continua sendo passível de recepção em várias mídias: versões musicais, teatrais, fílmicas, além de ópera e televisão. Partindo das teorias de Clüver, Moser e Genette, este artigo apresenta uma leitura intersemiótica do salto de Alice, ao ela passar do mundo da realidade para dentro do mundo do espelho, como descrito por Carroll e ilustrado por John Tenniel; complementando, discute a releitura que Margaret Atwood faz do mesmo episódio, em Negociando com os mortos (2004). A contraposição dessas duas artes e visões de mundo confirma a inesgotável politextualidade do textofonte e como o ato de interpretação e reação crítica é moldado através das respectivas convenções de recepção vigentes. Abstract: Lewis Carroll’s Through the Looking Glass (1871) continues to be open to cross-media transfer: musicals, drama, film, besides opera and television. Based on Clüver’s, Moser’s and Genette’s theories, this work presents an intersemiotic reading of Alice’s jump, as she passes from the world of reality into the world of the mirror, as described by Carroll and illustrated by John Tenniel; it then discusses Margaret Atwood’s rereading of the same episode, in Negotiating with the Dead (2002). The counterposing of these two distinct arts and world views confirms the endless politextuality of the original text, and how the act of interpretation and critical reaction is shaped by current reception conventions. Palavras-chave: Lewis Carroll. John Tenniel. Margaret Atwood. Intermidialidade Key words: Lewis Carroll. John Tenniel. Margaret Atwood. Intermediality. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 142 A abordagem fundamental e predominantemente estética na análise de qualquer arte não pode ser substituída por nenhuma outra, a menos que se prive a arte de seu próprio caráter. (...) Ela deve ser completada por aquilo que alguns chamaram de Geistesgeschichte, ou “História das Idéias”, se se quiser entender os problemas estéticos. Hatzfeld Introdução Ao debruçar-se sobre o ato de escrever, no cap. II de Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos, Margaret Atwood discute a duplicidade do escritor como escritor, perguntando-se, ao longo do texto: “Qual é a relação entre as duas entidades que juntamos sob um nome, o do ‘escritor’?”; “De onde vem esta idéia de que o eu escritor (...) não é o mesmo que o de carne e osso?”; “E quem é o ‘Eu’ que escreve? Uma mão precisa segurar a caneta ou digitar, mas quem controla aquela mão no momento da escrita?”; “Qual é a natureza do momento crítico – o momento em que a escrita ocorre?” (2004, p. 65-86, minha ênfase). Atwood conclui o capítulo retornando a Through the Looking-Glass, “sempre tão útil em questões de construção de mundos alternativos”, a fim de dar sua versão de “quem faz o quê no que concerne à escrita em si”: No início da história, Alice está de um lado do espelho – o lado da “vida” (...) – e a anti-Alice, sua imagem e duplo reverso, está do outro lado, ou o da “arte”. (...) Alice gosta de se mirar no espelho: o lado da “vida” está olhando para dentro; o da “arte”, para fora. Mas, em vez de (...) descartar o lado da “arte” e escolher o da “vida”, duro e iluminado, condenando assim o lado da “arte” a morrer, Alice faz o contrário. Atravessa o espelho, e então há apenas uma Alice, ou apenas uma a quem podemos seguir. Em lugar de destruir o seu duplo, a Alice “real” se funde à outra Alice – a Alice imaginária, a Alice sonhada, a Alice que não existe em parte alguma. E quando o lado da “vida” de Alice retorna ao mundo que está acordado, ela leva consigo a história do mundo do espelho e começa a contá-la ao gato. (2004, p. 87-88, minha ênfase) Como a escritora prossegue – e é este o ponto que desejamos enfatizar –, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 143 Claro que isto é uma falsa analogia, porque Alice não é a escritora da história sobre ela. Contudo vou dar o meu palpite sobre escritores e seus duplos esquivos e a questão de quem faz o quê no que concerne à escrita em si. O ato de escrever ocorre no momento em que Alice atravessa o espelho. Neste exato instante, a barreira de vidro entre os duplos se dissolve e Alice não está nem aqui nem lá, nem arte nem vida, nem uma coisa nem outra, embora ao mesmo tempo ela seja tudo isso de uma só vez. Naquele momento o próprio tempo pára, e também se alonga, e ambos, o escritor e o leitor, têm todo o tempo fora do mundo. (2004, p. 88) Nossa pesquisa inicia-se, portanto, a partir desta argumentação, pois é este instante mágico – a imagem de Alice atravessando o espelho e saltando para dentro de um mundo alternativo – que Atwood conseguiu captar e interpretar como o momento em que ocorre o ato de escrever, que pretendemos explorar. Primeiramente, retornando ao texto-fonte de Lewis Carroll – Through the Looking Glass, and What Alice Found There (1875) – pois se trata aqui da “primazia do texto” que se encontra na origem da imagem (HOEK, 2006, p. 177). Concomitantemente, contrapondo ao texto as ilustrações de John Tenniel, encomendadas pelo próprio Carroll, para verificar: – quais detalhes do texto-fonte foram transpostos e reconstituídos nas ilustrações (CLÜVER, 2006, p. 146) e, – considerando-se que “a relação de uma ilustração com o seu texto-fonte verbal pode ser tão variada quanto a relação de um poema ekfrástico com a obra visual que ele evoca” (CLÜVER, 2006, p. 140), que relações podem ser estabelecidas entre o texto verbal e o não verbal? Lembrando-nos de que as “ilustrações de livro são feitas para serem publicadas ao lado de seus textos fontes”, essas ilustrações, realizadas no interior de uma só obra, seriam “simples traduções intersemióticas” ou viriam a ser “transposições intersemióticas autônomas”? (HOEK, 2006, p.146 e 178). Em seguida, comparamos o texto-fonte com a leitura intertextual de Atwood, a fim de investigar qual a função das relações transtextuais genettianas estabelecidas. Finalmente, contrastando a leitura intersemiótica de Tenniel com a intertextual de Atwood, a fim de verificar como um ilustrador vitoriano trabalhando em conjunto com o autor, e uma escritora inserida na pós- Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 144 modernidade, com linguagens e visões de mundo distintas e, portanto, com concepções diferentes de arte e literatura, visualizaram e transpuseram a passagem de um mundo “real” para um mundo alternativo. Pois é exatamente o fato de, em ambos os casos, não termos “intenções expressivas comparáveis e poéticas comparáveis, de par com meios técnicos correlatos” (PRAZ, 1982, p. 19) que nos estimula a investigar o assunto, e assim, talvez, conseguir mostrar como Tenniel e Atwood ultrapassaram os limites da advertência de Lessing, de “ser o espaço o campo da pintura e o tempo o da poesia” (citado em PRAZ, 1982, p. 23). Esta contraposição daria uma nova dimensão ao significado e fascínio que a travessia de Alice ainda mantém no mundo atual, pois, como objeto estético, a obra também foi e continua sendo passível de recepção em várias mídias, através de traduções para numerosos idiomas e múltiplas adaptações e transposições em versões musicais, teatrais, fílmicas, além de ópera e televisão, tanto isoladamente1 como em conjunto com Alice’s Adventures in Wonderland. Do texto-fonte de Lewis Carroll às ilustrações de John Tenniel Como é de conhecimento geral, o versátil Lewis Carroll (18321898), além de escritor, foi também matemático, lógico, diácono anglicano e fotógrafo. Como professor de matemática em Christ Church, futura Universidade de Oxford, tornou-se muito próximo das filhas do diácono Liddel, principalmente de Alice. A partir de uma história contada às meninas Liddel, quando Alice tinha quatro anos, Carroll escreveu Alice’s Adventures in Wonderland (1865) e, em seguida, Through the Looking-Glass, and What Alice Found There (1871). Apaixonado por crianças, Carroll elaborou as duas narrativas como um contraponto às histórias edificantes e moralistas que eram lidas para as crianças na Inglaterra vitoriana. Ambas demonstraram, entretanto, ser muito mais do que histórias infantis, pois são obras-primas da literatura universal, para leitores de todas as idades. Apesar de Carroll ter sido o primeiro ilustrador de Alice’s Adventures in Wonderland, sua ineptidão artistica, além de outros problemas, atrasaram a publicação da obra. Como Carroll já conhecia a obra de John Tenniel como ilustrador da revista Punch, ele o procurou e Tenniel, após conversar longamente com Carroll, ilustrou a primeira edição da obra. Em seguida, ilustrou Through the Looking-Glass. No total, Tenniel fez noventa e duas ilustrações em preto e branco para ambos os livros – gravadas em blocos Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 145 de madeira pelos irmãos Dalziel, para serem impressas em xilografia.2 Foi apenas em 1911, portanto, mais de quarenta anos após as originais, que Tenniel colore à mão oito das primeiras ilustrações de Alice: loura, com vestido azul e avental branco com debrum vermelho.3 Este visual foi o que se tornou clássico e foi o adotado em adaptações posteriores. Segundo Gil Stoker, novas ilustrações nunca pararam de aparecer, mas é significativo que elas não conseguiram superar as ilustrações de Tenniel, que nunca deixaram de ser publicadas e continuam constando até hoje entre as mais famosas ilustrações literárias já feitas não apenas por sua combinação mágica de fantasia e desenho, mas também pela constante fonte de inspiração que a história e sua iconografia proporcionaram, e ainda proporcionam, a novos artistas.4 Concentrando, doravante, a análise no capítulo I de Through the Looking-Glass, no qual ocorre a travessia do mundo real para o fantástico, levantaremos as seguintes questões: que elementos do texto de Carroll antecedem e portanto preparam o leitor para travessia de Alice? De que modo esses elementos também já antecipam alguns dos objetos que serão vistos no mundo do espelho? Como Carroll manipulou imagens, ações e falas para criar um clima propício à entrada num mundo fantástico? Lembrando-nos que “a indefinição significativa é a marca dos símbolos” (VRIES, 1976, s/p) que associações simbólicas contribuem para esta transição? Through the Looking-Glass principia com um poema de Carroll dedicado a Alice, no qual ele menciona diversas vezes tratar-se de um “conto de fadas”, deste modo já colocando o leitor no mundo da fantasia. A narrativa propriamente dita inicia-se no capítulo “Looking-Glass House”: estamos na sala de visitas da casa de Alice – o termo “(with)drawing-room” denotando o local para onde as senhoras se retiram após o jantar. É numa sala, portanto, com conotações simbólicas5 de individualidade, privacidade de corpo e pensamento, isolamento – complementando o sentido de withdraw –, que iremos achar Alice, como que se preparando, em sua “privacidade de corpo e pensamento”, para as aventuras imaginárias na Casa do Espelho. As associações da casa como abrigo e segurança, ainda confirmam e ampliam o significado desta sala. O mundo da fantasia se inicia com Dinah, a gata de Alice, cuidando de um de seus filhotes – Snowdrop, a gatinha branca – enquanto Alice estava aconchegada numa poltrona, falando consigo mesma e meio Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 146 adormecida. O outro filhote – a gatinha preta, Kitty – aproveita a ocasião para brincar e emaranhar um novelo com lã que Alice estivera tentando enrolar e o espalha no tapete em frente à lareira: “But the black kitten had been finished with earlier in the afternoon, and so, while Alice was sitting curled up in a corner of the great arm-chair, half talking to herself and half asleep, the kitten had been having a grand game of romps with the ball of worsted” (CARROLL, 1975, p. 175-6). Aparentemente apenas lúdica, esta cena na realidade já se torna significativa para a travessia a um mundo alternativo pelas conotações simbólicas do gato com liberdade e travessuras, concretizadas nos atos de Kitty, que aproveita sua liberdade para desenrolar o novelo de lã. Lembrando a expressão “to spin a yarn”, o novelo corrobora as conotações simbólicas do estambre como uma história comprida de aventuras, invencionice, reforçando uma vez mais a relação que se estabelece entre esses dois elementos da história – o gato e o novelo de lã – como antecipadores e propiciadores da travessia de Alice, pois sugerem que a história que irá se desenrolar será também “livre” e cheia de travessuras (Fig. 1). Fig. 1 – O gato e o novelo de lã. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 147 A primeira ilustração de Tenniel ao texto concretiza exatamente esse momento antecipador: Kitty brincando com o novelo de lã. O fato de tocá-lo com a patinha como se pudesse manejá-lo, desenrolando-o e enredando-se nele, confirma a relação entre as associações simbólicas do gato e do novelo de lã – liberdade e travessuras numa longa história inventada. No canto esquerdo observam-se ainda as iniciais do ilustrador, John Tenniel e, no meio, a assinatura dos irmãos Dalziel, os gravadores da madeira. O fato de Alice estar aconchegada numa grande cadeira de braços estofada – a cadeira simbolizando pausa, descanso – contribui igualmente para enfatizar o estado de sonolência em que ela se encontra. E, pelas associações da cadeira de braços com trono e autoridade, ela é assim configurada para ressaltar o tom autoritário, mesmo que brincalhão, com que Alice conversa com a gatinha. Além disso, é subindo numa cadeira de braços que Alice irá alcançar o consolo da lareira, mesmo que não soubesse como chegou lá, como afirma o narrador onisciente intruso. A ilustração desta cena por Tenniel (Fig. 2) – retratando Alice na cadeira de braços, com a gatinha ao colo tentando ajudar a menina a enrolar novamente o novelo de lã – confirma a intimidade entre ambas e a atmosfera lúdica em que Alice e a gata se encontram, fatores que também propiciam o diálogo que Alice mantém com a gatinha e o mundo do faz-de-conta que ela cria. O tamanho da cadeira de braços – pertencente ao mundo dos adultos – além de acentuar a delicadeza da figura de Alice, bem como a pequenez da gatinha, também põe em evidência, pela posição frontal em relação ao espectador, o uso sutil que Tenniel faz de técnicas de emoldurar.6 Esta posição ressalta, por sua vez, não só o fato de Alice estar como que emoldurada pelo mundo “real” dos adultos, mas também sua postura oblíqua na cadeira, prestes a adormecer, como que em desacordo com as normas de etiqueta para crianças e, portanto, também, prestes a deixar as normas de realidade dos adultos. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 148 Fig. 2 – Alice na cadeira de braços, com a gatinha ao colo. O estado de sonolência de Alice, por sua vez, nos prepara para a travessia da menina, ao nos remeter às associações simbólicas do sono. Primeiramente como fornecedor de sonhos proféticos, visto que, após suas aventuras no mundo do espelho e no capítulo final da história “Which Dreamed It?”, Alice acorda e diz para a gatinha, após esfregar os olhos: “You woke me out of oh! such a nice dream. And you’ve been along with me, Kitty – all through the Looking-Glass world. Did you know it, dear?”(p. 341). A afirmação “You woke me out of oh! such a nice dream” também intensifica as conotações simbólicas do sonho, pois no sonho a alma está ausente, trabalha ou vê coisas longe de onde o corpo está no momento. A própria etimologia de “to dream” (trügen = enganar), confirma o fato de que as aventuras de Alice na Casa do Espelho não aconteceram na realidade: no cap. XI “Waking” – que se resume a um comentário do narrador: “ – and it really was a kitten, after all” – Alice acorda segurando a gatinha preta. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 149 O sonho também está relacionado com fadas e anões, o que consolida a atmosfera de “contos de fadas” da história que será contada, anunciada no poema inicial. Em segundo lugar, o sono é simbólico de criatividade, ou seja, do estado sagrado em que se encontra Alice, prestes a iniciar uma aventura imaginária. É, também, um estado perigoso, pois se durante o sono a alma deixa o corpo para caminhar fora – retomando o simbolismo do sonho –, Alice estaria exposta aos perigos que suas aventuras poderiam lhe ocasionar. Alice continua conversando longamente com Kitty, repetindo diversas vezes sua “frase favorita”: “Let’s pretend”. Esta frase, que já sugere não haver separação entre o mundo real e o da fantasia para a menina, será a grande propiciadora para entrar no mundo de faz-de-conta do espelho. Pois é no instante em que Alice, segurando a gatinha em frente ao espelho, ameaça colocá-la dentro dele, que chegamos finalmente à menção do Espelho e da Casa do Espelho, a grande metáfora que levará à transposição da menina do mundo da realidade ao mundo da fantasia: “So, to punish it, she held it up to the Looking-glass, that it might see how sulky it was – and if you’re not good directly,’ she added, ‘I’ll put you through into Lookingglass House. How would you like that?’” (p. 180). A partir do próprio título do livro, portanto, o espelho é o elemento-chave da história de Carroll, como o será também das duas ilustrações de Tenniel, nas quais ele retrata esta transposição. O espelho é objeto decorativo tradicional da sala de visitas vitoriana (Fig. 3) – como pode ser visto no quadro a guache de Henry Treffry Dunn mostrando Dante Gabriel Rossetti lendo provas impressas dos Sonnets and Ballads para Theodore Watts Dunton (Londres, 1882): neste quadro, o espelho pode ser observado com outros elementos que fazem parte da composição de um drawing-room, como a lareira acesa, as cadeiras de braços, o relógio, os quadros, todos descritos por Carroll, facilitando assim nossa visualização da sala na qual Alice se encontra. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 150 Fig. 3 – PAINTING: Dante Gabriel Rossetti reading proofs of Sonnets and Ballads to Theodore Watts Dunton in the drawing room at 16 Cheyne Walk, London; gouache 1882. O título, entretanto, já sugere um paradoxo: através do espelho, visto que o espelho, como vidro polido e estanhado que reflete a imagem dos objetos, seria impermeável. De que modo Carroll trabalha este paradoxo e aproveita o motivo do reflexo no espelho para criar um conto de fadas? O Espelho, como símbolo, tem as mesmas características do espelho como reflexo do mundo real: é símbolo da imaginação em sua capacidade de refletir a realidade formal do mundo visível; está relacionado com o pensamento como instrumento de auto-contemplação e também como reflexo do universo. Desde os tempos primitivos, o espelho é visto como ambivalente: é uma superfície que reproduz imagens e também as contém e absorve. Nas lendas e folclore, está investido com uma qualidade mágica: serve para invocar aparições ou anular distâncias. Às vezes, o espelho toma a forma mítica de uma porta através da qual a alma pode se libertar “passando” ao outro lado, ideia reproduzida por Carroll em Through the Looking Glass. O simbolismo do espelho, portanto, condiz com o do sono e do sonho, pois é através desse estado sagrado, como fornecedor de sonhos proféticos e criatividade, que Alice consegue transpor as barreiras da realidade. A expressão cunhada por Alice – Looking-Glass House – demonstra o quanto a menina já devia ter refletido sobre o assunto, para apresentá-lo com tanta naturalidade à gatinha. “House” confirma o fato de que Alice, na Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 151 sala de visitas de sua casa, veria de qualquer maneira esta sala ao contrário, quando olhasse para dentro do espelho, a mesma reversão devendo acontecer com as associações da casa com segurança e abrigo, pois ela estará exposta a aventuras inconcebíveis ao penetrar no mundo da fantasia. Assim, como numa antecipação da narrativa que irá se “desenrolar” dentro do mundo do espelho, Alice conta à gatinha tudo que imaginava a respeito dessa Casa do Espelho: Now, if you’ll only attend, Kitty, and not talk so much, I’ll tell you all my ideas about Looking-glass House. First, there’s the room you can see through the glass – that’s just the same as our drawing room, only the things go the other way. I can see all of it when I get upon a chair – all but the bit behind the fireplace. Oh! I do so wish I could see that bit! I want so much to know whether they’ve a fire in the winter: you never can tell, you know, unless our fire smokes, and then smoke comes up in that room too – but that may be only pretence, just to make it look as if they had a fire. Well then, the books are something like our books, only the words go the wrong way; I know that, because I’ve held up one of our books to the glass, and then they hold up one in the other room. (p. 180-181) As ideias expostas por Alice já demonstram sua criatividade ao mencionar que a sala que se vê através do vidro é a mesma da sala de visitas em que está, mas as coisas estão ao contrário.7 O vidro, simbólico de abstração e de revelação, confirma o simbolismo do espelho, pois está também sujeito a se tornar uma abstração ao perder sua solidez, como será visto. A lareira, como o local mais sagrado de uma casa, tem suas associações simbólicas de lar, vida, hospitalidade, santuário, ainda confirmadas pelo simbolismo do fogo. Como essência da vida e energia espiritual, o fogo está relacionado com a lareira como centro do lar e com o inverno (estação em que ocorre a história), enquanto suas associações com as “línguas ardentes” da inspiração, como mediador entre formas que aparecem e desaparecem, novamente aproximam a lareira acesa não só à travessia de Alice como também à interpretação de Atwood de a travessia ser o momento em que ocorre o ato de escrever. O fato de o fogo, na sala do espelho, estar “blazing away as brightly as the one she had left behind”, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 152 reforça todas essas conotações simbólicas. Além disso, a preocupação de Alice em saber se na sala do espelho haveria um fogo aceso no inverno, pois “you never can tell, you know, unless our fire smokes, and then smoke comes up in that room too” – (p. 181), acrescenta ainda ao fogo o simbolismo da fumaça – evanescência, a alma deixando o corpo – e confirma a transitoriedade da aventura e da passagem de um estado a outro. O último item mencionado por Alice são os livros. Relacionados com sabedoria, conhecimento esotérico e exotérico, memória, mágica, esses livros terão sua significação alterada no momento em que Alice confia à gatinha que as palavras vão no sentido contrário. Ela própria já o havia testado, ao segurar um de seus livros em frente ao espelho e “alguém” mostrar um livro na outra sala. Se lembrarmos que a “palavra”, como Logos, simboliza emanação criativa e destrutiva de uma deidade suprema, uma razão imanente no mundo e que geralmente as palavras numa língua são representadas como um todo orgânico, esta razão é invertida no mundo do espelho, o que novamente antecipa os estranhos acontecimentos, personagens e falas que irão compor as aventuras de Alice na Casa do Espelho. Ao perguntar à gatinha se ela gostaria de morar na Casa do Espelho, Alice percebe de repente, no espelho, uma passagem que permite vislumbrar a Casa do Espelho se a porta da sala de visitas ficasse bem aberta: How would you like to live in Looking-glass House, Kitty? I wonder if they’d give you milk in there? (…) – But oh, Kitty! now we come to the passage. You can just see a little peep of the passage in Looking-glass House, if you leave the door of our drawing-room wide open: and it’s very like our passage as far as you can see, only you know it may be quite different on beyond. (p. 181) É esta porta – associada à ideia de casa, pátria, mundo, simbolizando, como o umbral, aquilo que leva de um estado ao outro, o que condiz com o simbolismo do espelho como porta – que permite a Alice vislumbrar este outro “estado” de ser, pois se a porta fechada é uma barreira ao mistério, o fato de a porta da sala de visitas estar bem aberta faz com que ela se torne um umbral, revelando a passagem para este outro mundo, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 153 muito semelhante à passagem da sala de visitas do mundo real, mas que pode se tornar “bem diferente”, ao penetrarmos nela. Surge então, para a menina, a ideia de transpor o espelho e penetrar na casa, atraída como está pela suposta beleza do mundo imaginário que a aguarda: “Oh, Kitty! how nice it would be if we could only get through into Looking-glass House! I’m sure it’s got, oh! such beautiful things in it!” (p. 181). E a frase preferida de Alice, “Let’s pretend” – que nos remete ao ato de escrever ficção, também um faz-de-conta, antecipando assim a interpretação de Atwood –, age como uma fórmula mágica de penetração neste mundo encantado: ‘Let’s pretend there’s a way of getting through into it, somehow, Kitty. Let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can get through.’ Why, it’s turning into a sort of mist now, I declare! It’ll be easy enough to get through – She was up on the chimney-piece while she said this, though she hardly knew how she had got there. And certainly the glass was beginning to melt away, just like a bright silvery mist. (p. 181-182) Pois, ao repetir “let’s pretend there’s a way of getting through into it, somehow”, “let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can get through”, o vidro amolece como gaze, como névoa fina (gauze = gaze). Assim, ao dizer “Why, it’s turning into a sort of mist, I declare!”, a gaze já se transformou em névoa. Simbólica de coisas indeterminadas e do apagamento dos contornos, a névoa como processo de indeterminação inicia assim a transição para um outro mundo, pois Alice percebe que “It’ll be easy to get through” (repetida três vezes, além de remeter ao título). O narrador ainda compara a liquefação/desintegração do espelho a “a bright silvery mist” – explicada pela condensação da umidade do ar na superfície fria do vidro, propiciada pelo calor do fogo –, acrescentando assim a cor brilhante da prata a essa indeterminação da névoa, o que explicao espanto de Alice diante dessa transformação (turning into) do vidro em névoa prateada e brilhante. Assim, ao subir no consolo da lareira, Alice já está impregnada pelo simbolismo do fogo, da lareira e da névoa brilhante e prateada em que se transformou o espelho, sugerindo que o mundo do fantástico está Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 154 penetrável. Como consequência, Alice atravessa o vidro e salta suavemente para dentro da sala do espelho, completando assim seu movimento ascensional ao subir na cadeira com um movimento descensional ao saltar para dentro da sala do espelho: “In another moment Alice was through the glass, and had jumped lightly down into the Looking-glass room” (p. 181-184). Esta travessia será transposta por Tenniel em duas ilustrações: a primeira mostrando Alice na iminência de atravessar o espelho (Fig. 4); a segunda, retratando Alice ao surgir do outro lado do espelho, após ter atravessado o vidro (Fig. 5). Ao compararmos as duas ilustrações, perceberemos que as ambas são uma o reverso da outra. Como confirma Gill Stoker, as duas ilustrações aparecem em lados opostos da mesma página de modo que a ilusão de sua transferência de um mundo para outro é criada ao se virar a página (se bem que a paginação nem sempre é seguida em edições posteriores). Como toque realista, e também como brincadeira visual, Tenniel acrescentou suas iniciais ao contrário na segunda ilustração, sugerindo que ele também está dentro do mundo do espelho, mas não inverteu a assinatura dos irmãos Dalziel.8 Fig. 4 – Alice na iminência de atravessar o espelho Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 Fig. 5 – Alice ao surgir do outro lado do espelho. 155 Na primeira ilustração, Tenniel recriou, através de elementos espaciais, todas as características fornecidas por Carroll da sala vitoriana em que Alice se encontra: o espelho, a lareira com o consolo enfeitado com uma faixa de berloques, os quadros, o relógio e o vaso. Em primeiro plano, Alice, de costas, ajoelhada sobre uma perna no consolo da lareira, com o braço direito apoiado sobre a superfície do espelho. Este braço, iluminado e bem visível, será apenas sugerido na ilustração seguinte, na qual o braço oculto irá aparecer iluminado, enquanto que a perna sobre a qual está ajoelhada será ocultada na seguinte. Significativamente, o rosto de Alice, oculto na primeira ilustração por estar de costas, tornar-se-á visível apenas na segunda, sugerindo ser ela agora uma figura dentro do mundo do espelho, ou da “arte”. A mesma reversão irá acontecer com os objetos que a ladeiam: em cima do consolo, um relógio e um vaso de flores, ambos dentro de campânulas de vidro, e, na parede do lado esquerdo, um quadro, enquanto do lado direito está outro quadro, já refletido dentro do espelho. Deste modo, Alice se encontra emoldurada na ilustração tanto por objetos pertencentes ao mundo “real”, como por um objeto já dentro do mundo da “arte” – como Atwood o denomina –, apontando para a travessia. A sombra de Alice, refletida no espelho, também sugere e confirma a permeabilidade do mesmo. O monograma de Tenniel, por sua vez, está bem visível do lado direito da ilustração e a dos irmãos Dalziel, do lado esquerdo da lareira. O único detalhe acrescentado por Tenniel que não consta em Carroll é o vaso de flores artificiais na lareira. Como comenta Martin Gardner, era costume vitoriano colocar flores artificiais e também relógios sob campânulas de vidro em cima da lareira (GARDNER, 1975, p. 186) e, portanto, o vaso de flores está condizente com o ambiente, além de complementar visualmente o relógio, ambos emoldurando Alice. O ato de atravessar o espelho nos remete primeiramente ao simbolismo da travessia, que, como o passo e a peregrinação, são formas diversas de expressar o mesmo – o avanço de um estado natural a um estado de consciência por meio de uma etapa em que a travessia simboliza justamente o esforço de superação e a consciência que o acompanha – confirmando assim o esforço criativo da imaginação de Alice ao repetir “Vamos fazer de conta”, a fim de poder entrar no mundo imaginário do espelho. Ao mesmo tempo, confirma “o palpite” de Atwood de que “o ato de escrever ocorre no momento em que Alice atravessa o espelho”, quando as duas entidades, o homem e o escritor, se fundem neste esforço de superação consciente. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 156 Esta travessia também está relacionada com o simbolismo da viagem, pois a viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço, mas a expressão de um desejo urgente de descoberta e mudança que subjaz à experiência real de viajar. Assim, estudar, inquirir, procurar ou viver com intensidade através de novas e profundas experiências são todos modos de viajar, ou equivalentes espirituais e simbólicos da viagem. Os heróis são sempre viajantes, pelo fato de serem espíritos inquietos. Voar, nadar e correr são outras atividades que igualam a viagem como também sonhar, sonhar acordado e imaginar. Percebemos então que Alice, como heroina, a partir do início do livro, irá encarnar as características deste herói: ao repetir “vamos fazer-deconta” já revela seu desejo de descoberta e mudança, que a leva a imaginar o mundo alternativo que a aguarda do outro lado do espelho. O fato de ter sonhado todas essas experiências pelas quais passou durante a viagem pela casa do espelho, apenas confirma a travessia não ser apenas uma passagem através do espaço do mundo do espelho, mas ser simultaneamente a realização do desejo de descobertas e mudanças. É este também o momento que Atwood recontextualizou, ao comparar a travessia de Alice com o (já citado) ato de escrever, “que ocorre no momento em que Alice atravessa o espelho. Nesse exato instante, a barreira de vidro entre os duplos se dissolve e Alice não está nem aqui nem lá, nem arte nem vida, nem uma coisa nem outra embora ao mesmo tempo ela seja tudo isso de uma só vez”. Esta recontextualização joga uma nova luz sobre o texto de Carroll, pois confirma, de nossa perspectiva do século XXI, a atualidade dessa experiência e a procura incessante dos escritores em captar esse momento de transição entre realidade e fantasia, fazendo seus limites se tornarem cada vez mais flexíveis e/ou permeáveis. O fato de Alice saltar para dentro da sala do espelho, além de confirmar as conotações simbólicas da travessia, acrescenta a elas as do salto: façanha guerreira entre os celtas, fazendo parte dos jogos que o herói é capaz de executar, para escapar do adversário ou para abatê-lo. Portanto, mesmo estando num mundo lúdico, o salto de Alice ainda retém esta qualidade de façanha, pois ela escapou do mundo da realidade e penetrou num mundo imaginário, em busca de novas aventuras. Igualmente, o salto de Alice antecipa os obstáculos que terá de sobrepujar, como no jogo de xadrês que subjaz à ação do livro. Na segunda ilustração, já dentro da casa do espelho, versão refletida de sua própria casa, ela percebe, pelo fato de ter atravessado o vidro, que Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 157 os outros podem vê-la, mas não alcançá-la: – “Oh, what fun it’ll be, when they see me through the glass in here, and can’t get at me!”, descoberta que demonstra como o imaginário infantil, o faz-de-conta, não pode ser tocado, mas apenas vislumbrado pelo mundo adulto, assim como Alice vislumbrou o mundo do espelho através da passagem refletida no vidro. Percebe, também, que os quadros perto da lareira “parecem” estar vivos e que até o relógio da lareira adquiriu o rosto risonho de um velho. Isto é, os objetos que na vida real não têm vida, no mundo da arte adquirem vida, concedida pela imaginação do artista: o mundo da arte, onde se encontra Alice, é portanto “tão diferente quanto possível” do mundo da realidade: Then she began looking about, and noticed that what could be seen from the old room was quite common and uninteresting, but that all the rest was a different as possible. For instance, the pictures on the wall next the fire seemed to be all alive, and the very clock on the chimney-piece (you know you can only see the back of it in the Looking-glass) had got the face of a little old man, and grinned at her. (p. 185-186) Esses quadros, ao se tornarem animados, prefiguram a antropomorfização e animação do relógio, do vaso e dos outros objetos com os quais Alice irá interagir. Por sua vez, o velhinho que ri para Alice no lado de trás do relógio – como o narrador enfatiza, no espelho só podemos ver este lado do relógio –, parodia a figura de Father Time, pois o Pai Tempo é representado como um velho barbudo, com um manto e carregando uma foice ou ampulheta apontando a passagem do tempo, enquanto a figura representada no relógio lembra a de um clown. O fato de o relógio simbolizar a existência cíclica do homem, a escravidão do homem em relação ao tempo e ao destino, nos faz perceber como no mundo do espelho também essas conotações são invertidas: o rosto risonho do velhinho sugere a inversão da ordem normal do tempo, ou seja, Alice está fora do tempo cronológico. Deste modo, poderíamos sugerir que Tenniel também conseguiu, através do expediente do relógio invertido, ultrapassar os limites da advertência de Lessing, citada acima, de ser o espaço o campo da pintura e o tempo o da poesia, ao retratar conforme o texto-fonte de Carroll. Como Atwood também intuiu e enfatizou, em relação a nós, leitores: “Naquele momento [da travessia de Alice] o próprio tempo pára, e também se alonga, e ambos, o escritor e o leitor, têm todo o tempo fora do mundo.” Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 158 Alice, após ter observado que a sala do espelho não estava tão “bem arrumada” quanto a da vida real – indicando, talvez, que o mundo da arte tem sua própria organização, que não corresponde necessariamente à da vida real – e que as peças de xadrez entre as cinzas da lareira se locomoviam em pares, como reflexos num espelho, ela própria, ao contrário dos objetos que adquirem vida no mundo do espelho, percebe que está ficando não apenas invisível, mas também que não podem ouvi-la. Por sua vez, o livro que Alice acha na mesa tem a impressão ao contrário e, portanto, ela só o consegue lê-lo se o segurar diante do espelho: “Why, it’s a Looking-glass book, of course! And, if I hold it up to a glass, the words will all go the right way again” (p. 191). Como comenta Gardner, o fato de a impressão aparecer ao contrário para Alice é evidência de que ela própria não foi revertida ao passar através do espelho (GARDNER, 1975, p. 190). Ou seja, dentro da analogia de Atwood, o escritor continua sendo o que é – não vira personagem. Em seguida, após ter lido o poema “Jabberwocky” e refletido sobre a dificuldade em entendê-lo, Alice, receosa de ter de voltar através do espelho antes de ter visto o resto da casa, decide dar uma olhada no jardim. É portanto a partir do capítulo II que se iniciam suas aventuras no mundo do espelho. Retomando portanto as questões propostas no início, percebemos que em relação aos elementos do texto de Carroll que antecedem e preparam o leitor para a travessia, as associações simbólicas da própria sala de visitas em que Alice se encontra, da cadeira de braços na qual está aconchegada, da gatinha brincando com o novelo de lã, o fato de Alice estar sonolenta, falando consigo mesma e com a gatinha, criam um clima propício para a entrada num mundo de fantasia; simultaneamente, esta atmosfera lúdica, complementada com a frase “vamos fazer de conta”, quase como uma fórmula mágica, corroboram este clima propício e a facilidade com que irá atravessar o vidro, além de antecipar o que irá encontrar no mundo do espelho: a mesma sala de visitas, mas com os objetos funcionando ao contrário, isto é, os quadros estão vivos, o tempo cronológico está abolido, as peças de xadrez caminham, os livros estão escritos ao contrário e Alice, uma personagem “real”, torna-se invisível e inaudível para as personagens que irá encontrar. Lembrando-nos que as ilustrações de Tenniel foram feitas em colaboração estreita com Carroll, para quem, como mencionado, “nenhum detalhe era insignificante demais para sua crítica minuciosa”, as relações heteroplásmicas entre o texto-fonte e as quatro ilustrações analisadas parecem ser simples traduções intersemióticas, pelo fato de Tenniel ter reproduzido Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 159 fielmente o texto verbal. Como argumenta Hoeck, “a leitura do texto ilustrado é indispensável para compreender a significação da imagem que o ilustra”, e, na transposição intersemiótica, o “discurso primário” – o texto de Carroll – “funciona (...) com frequência, injustamente, como norma de avaliação absoluta em relação ao discurso secundário”, já que “o leitor tem uma tendência natural a julgar a ilustração a partir da sua fidelidade ao texto”. Assim, “quanto mais o discurso secundário se aproxima do discurso primário, mais ele corre o risco de ser considerado uma simples tradução intersemiótica, e não uma transposição intersemiótica autônoma” (HOECK, 2006, p. 178). Entretanto, essas ilustrações, com as imagens colocadas fora do texto e, portanto, numa superfície dividida, por mais límpidas, claras e fiéis em seu diálogo com o original – mantendo, para o leitor juvenil, o componente lúdico das imagens e confirmando, para o adulto, o ambiente típico de uma sala vitoriana (visualizada no quadro de Henry Treffry Dunn) – carregam consigo toda a carga simbólica que os objetos e cenas descritos no texto-fonte contêm: desde a gatinha brincando com o novelo, Alice na cadeira de braços com a gatinha e o novelo e, em seguida, no ato de atravessar o espelho, em duas ilustrações, nas quais a primeira já antecipa a segunda e a segunda por ser o reverso exato da primeira, criando-se assim visualmente a ilusão do ato de atravessar o vidro. Acreditamos, portanto, que, juntamente com os detalhes invertidos e antropomorfizados do relógio e do vaso e da inversão do monograma de Tenniel na Casa do Espelho, o ilustrador tenha se aproximado do que poderia ser considerado uma “transposição intersemiótica autônoma”. Do texto-fonte de Carroll à releitura de Atwood Ao retornarmos ao texto atwoodiano citado, e, em especial, ao “palpite” de Atwood de que “ o ato de escrever ocorre no momento em que Alice atravessa o espelho”, passamos da transposição intersemiótica à intertextual. Partindo da definição de Gérard Genette, de que o objeto da poética não é a arquitextualidade, mas a transtextualidade ou transcendência textual do texto: “tudo o que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” – fica evidente que, no caso de Atwood, a transcendência textual de Through the Looking Glass é manifesta, tanto através da intertextualidade, com a presença efetiva do texto de Carroll em Atwood, como também da metatextualidade, da relação de comentário que une um texto ao outro de que ele fala. Esta relação crítica se apresenta em dois momentos consecutivos: Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 160 1. O primeiro, no qual Atwood relê o texto de Carroll em si mesmo, ou seja, Alice como personagem: no início da história ela está do lado da “vida”, olhando para dentro do espelho, onde mira sua imagem ou duplo reverso, que está do lado da “arte”. O fato de mencionar que o lado da “vida” está olhando para “dentro” e o lado da “arte” para “fora” torna-se assim já emblemático do olhar interior do artista ao sonhar com/ imaginar um mundo alternativo – como as conotações simbólicas do sonho confirmam: no sonho, a alma está ausente, trabalha ou vê coisas longe de onde o corpo está no momento. Por outro lado, o olhar da arte para “fora”, torna-se emblemático da mimese ou do vínculo necessário com a vida, ao refletir as convenções da realidade do mundo no qual foi criada, seja a do século XIX ou XXI, para que a obra de arte seja reconhecida pelo leitor/apreciador. O “salto” de Atwood inicia-se exatamente aqui, ao afirmar que Alice – assim como o escritor, na “falsa” analogia que Atwood irá propor – em vez de descartar o lado da arte, como os não-artistas fazem, pois preferimos o lado “ duro e iluminado” da vida, Alice irá atravessar a barreira de vidro que separa a realidade da fantasia e irá se “fundir” à outra Alice, à Alice imaginada, ou seja: o escritor se funde com seu “duplo esquivo” artístico tornando-se um só ser. Esta travessia, propiciada pela tripla repetição da “fórmula mágica” de Alice, mesmo que não citada por Atwood, subjaz à sua interpretação, pois “let’s pretend”, é, por extensão, o que o escritor faz com o leitor, quando escreve, como o texto de Atwood deixa entrever. 2. O segundo momento, preparado pelo primeiro, no qual Atwood, com sua “falsa” analogia, interpreta a travessia de Alice como metafórica do próprio ato de escrever, ou seja, no instante da travessia – o termo through do título, tão simbólico do esforço de superação e da consciência que o acompanha – é que se dá o ato de escrever no qual vida e arte se fundem, assim como o tempo pára e se alonga –, a fim de dar ao escritor e ao leitor, “todo o tempo fora do mundo”. E é no momento em que Alice retorna ao mundo da “vida”, trazendo consigo a história do mundo do espelho, que percebemos a missão/função do escritor/artista, ao devolver ao lado da “vida” o mundo da “arte” que sua obra criou. Fica evidente, portanto, que Atwood, de sua perspectiva contemporânea, encontrou significados novos na “construção de mundos alternativos” proposta pelo texto de Carroll: 1. Em relação ao primeiro momento, ao interpretar o mundo “real” de Alice como o mundo da vida e o mundo dentro do espelho Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 161 como o mundo da arte, em vez de simplesmente um mundo fantástico, deste modo opondo, mas também justapondo e fundindo ambos, ao Alice se fundir com a “anti-Alice”. 2. Em relação ao segundo momento, ao interpretar o ato de escrever como ocorrendo no momento em que Alice atravessa o espelho, ou seja, o momento de transição entre realidade/vida e fantasia/arte, o escritor levando o lado da “vida” consigo, ao atravessar o umbral, a fim de se fundir com seu duplo esquivo, no lado da arte. Sua volta, porém, como a de Alice, será imprescindível, a fim de que o leitor possa igualmente usufruir desse tempo alongado que o escritor criou, enquanto estava do lado da “arte”. Considerações finais Retomando os pontos principais de nossa argumentação, ao passarmos da “primazia do texto” de Carroll para as ilustrações de Tenniel, destacamos, primeiramente, alguns dados contextuais da relação escritorilustrador, a fim de podermos avaliar melhor este diálogo que se criou entre duas artes diferentes e verificar que detalhes do texto verbal foram transpostos e reconstituídos nas ilustrações e que relações intermidiáticas foram estabelecidas entre o texto-fonte e as ilustrações. Considerando-se que – partindo do texto atwoodiano – nosso principal “objeto de percepção” (CLÜVER, 2006, p. 148) seria Alice no ato de atravessar o espelho, instante que Tenniel apresenta por meio de duas ilustrações, não podíamos deixar de examinar, também, as duas ilustrações que antecedem as da travessia, pois elas preparam o leitor para a transição, antecipam alguns dos objetos que serão vistos, e criam, por suas associações simbólicas, uma atmosfera propícia à entrada num mundo fantástico. As conexões pictóricas que se podem estabelecer entre as quatro primeiras ilustrações da obra demonstram como há uma continuidade ficcional entre elas, a partir da gatinha brincando com o novelo e Alice na cadeira de braços segurando o novelo com a gatinha no colo, ambas as gravuras antecipando as duas principais – Alice diante do espelho e no ato de atravessar o espelho, esta última já visualizada pelo leitor como se ele estivesse também dentro da casa do espelho. Assim, mesmo mantendo a simplicidade das ilustrações, tornando-as acessíveis às crianças, a arte de Tenniel consegue transcender esta cristalinidade lúdica ao captar, seguindo Carroll, a atmosfera de faz-de-conta que permite e favorece a transposição do mundo ficcional real para o mundo ficcional imaginário sonhado por Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 162 Alice. Simultaneamente, os detalhes dessas ilustrações refletem as características do mundo vitoriano em que viveram e atuaram autor e ilustrador como também a personagem Alice, com seu vestido tipicamente vitoriano. Igualmente, em relação à interpretação do salto de Alice por Atwood, sua “falsa analogia” não deixa de ser extremamente criativa, ao nos fazer visualizar o momento em que ocorre o ato de escrever, ou seja, o da criação artística, em que o escritor em vez de se despojar de sua realidade, a traz consigo para dentro do mundo imaginário, atemporal e utópico da arte. Como ela própria ainda comenta, ao considerar “a natureza do público” em relação ao romancista e ao contador de histórias, “um livro pode sobreviver a seu autor, e viaja também, e pode-se dizer que também muda – mas não o modo de narrar. Muda o modo de ler. Como observaram muitos comentaristas, as obras literárias são recriadas a cada geração de leitores, que as renovam encontrando nelas novos significados. (...) A leitura de um texto é como executar uma música e ao mesmo tempo ouvi-la e o leitor torna-se o seu intérprete” (ATWOOD, 2004, p. 81). Deste modo, o comentário de Praz sobre a relação entre literatura e artes visuais Toda estimativa estética representa o encontro de duas sensibilidades, a sensibilidade do autor da obra de arte e a do intérprete. Aquilo a que chamamos interpretação é, por outras palavras, o resultado da filtragem da expressão de outrem pela nossa própria personalidade. (...) Pelo fato de a interpretação de uma obra de arte consistir de dois elementos, o original propiciado pelo artista do passado e o outro que lhe é acrescentado pelo intérprete ulterior, tem-se de esperar até que este último elemento pertença também ao passado a fim de poder vê-lo aflorar (...). Os contemporâneos, via de regra, não se dão conta desse elemento sobreposto, porque é a maneira comum de sentir da época (...). Mas deixem-se passar alguns anos (...) e o ponto de vista muda (...) a investigação histórica e filológica altera os dados de um problema (...). (1982, p. 33) se aplica não apenas ao diálogo intermidiático estabelecido entre Carroll e Tenniel, e ao fato de que este último filtrou a expressão de Carroll pelo viés de sua própria personalidade, mesmo que ambos tenham vivido num mesmo contexto cultural. Aplica-se, também, ao diálogo metatextual estabelecido entre Carroll e Atwood, ao esta recriar o texto de Carroll em sua época, renovando-o assim para nós, para fazer-nos vislumbrar, no salto Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 163 de Alice, uma nova interpretação criativa já latente no texto de Carroll, mas que precisava vir à tona através da sensibilidade da interpretação atwoodiana. Notas As adaptações de No mundo do espelho incluem musicais ao vivo e televisivos, além de versões animadas: o filme mudo dirigido por Walter Lang, Alice Through the Looking Glass, 1928; as versões musicais incluem o TV musical de 1966, com canções de Moose Charlap, e Judi Rolin no papel de Alice; uma adaptação multimedia natalina de 2007, dirigida por Andy Burden, e a ópera Through the Looking Glass, de Alan John, de 2008. As versões televisivas incluem um filme de TV da BBC Through the Looking Glass, de 1974, com Sarah Sutton no papel de Alice; um filme soviético de 1982, dirigido por Yefrem Pruzhanskiy; um filme de TV animado de 1987, e um filme do Canal 4, de 1988, com Kate Beckinsale no papel de Alice. 1 Processo e técnica de gravura em relevo sobre madeira que permite a impressão tipográfica de figura(s) ou texto(s), cujos caracteres (não móveis) são entalhados na prancha de suporte. 2 Em todos seus livros, Dodgson era meticuloso a respeito da diagramação do texto e das ilustrações e esmerava-se para garantir as melhores combinações possíveis. Em relação a Looking-Glass, algumas mudanças ocorreram durante a preparação: cinco ilustrações retratando Alice com a Rainha foram alteradas porque Dodgson não gostara do estilo de vestido que Tenniel havia dado a ela. Como comenta Collingwood: “O Sr. Dodgson não era pessoa fácil de se lidar: nenhum detalhe era insignificante demais para sua crítica minuciosa. ‘Não ponha tanta crinolina na Alice’ ele escrevia, ou ‘O cavaleiro branco não pode ter costeletas; ele não pode parecer velho’ – eram ordens que ele dava constantemente.” Tenniel então redesenhou Alice num vestido tipicamente vitoriano para senhoritas, o que obviamente agradou a Dodgson. Disponível em: <http://www.squidoo.com/john Tenniel>. Acesso em: 21 set. 2010. 3 4 Disponível em: www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010. Todas as conotações simbólicas apresentadas provêm dos dicionários citados nas referências bibliográficas. 5 6 Disponível em: http://www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010. Segundo Martin Gardner, o tema do espelho parece ter sido um acréscimo posterior à história, segundo depoimento da própria Alice Liddel. Num espelho, todos os objetos assimétricos vão para o outro lado. Há muitas referências no livro a tais 7 Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 164 reversões esquerda-direita. Se estendermos o tema do reflexo no espelho para incluir a inversão de qualquer relação assimétrica, tocamos num ponto que domina toda a história. Por ex.: para se aproximar da Rainha, Alice caminha para trás. O mundo habitual está virado de cabeça para baixo e de trás para diante; torna-se um mundo no qual as coisas vão numa direção qualquer menos na direção em que deveriam ir. Os temas da inversão ocorrem em todas as obras “nonsense” de Carroll. Na vida real Carroll explorava a noção de inversões o quanto podia para divertir suas amigas crianças. Escrevia cartas em frente ao espelho que precisavam ser lidas em frente ao espelho, e ou cartas que tinham de ser lidas começando com a última palavra e daí ler até a primeira, etc. Mesmo nos momentos sérios a mente de Carroll parecia funcionar melhor quando via as coisas de cabeça para baixo. Intimamente relacionado com seu humor de inversão é seu humor de contradição lógica. Ex.: Alice corre quanto pode para ficar no mesmo lugar (GARDNER, 1975, p. 180-83). 8 STOKER. Disponível em: www.alice-in-wonderland.net. Acesso em: 21 set. 2010. REFERÊNCIAS ATWOOD, Margaret. Negociando com os mortos: a escritora fala sobre seus escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. CARROLL, Lewis. The Annotated Alice. Ed. GARDNER, Martin. Harmondsworth: Penguin Books, 1975. CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles. 4 vols. Paris: Seghers, 1973. CIRLOT, Juan Eduardo. Diccionario de símbolos. Barcelona: Editorial Labor, 1969. CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, Marcia. Org. Poéticas do visível. Belo Horizonte: UFMG, 2006. GENETTE, Gérard. Palimpsests. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. HOECK, Leo. “A transposição intersemiótica”. In: ARBEX, Marcia (org.). Poéticas do visível. Belo Horizonte: UFMG, 2006. PRAZ, Mario. Literatura e artes visuais. 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Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 166 TEXTO, PERFORMANCE E FILME: UMA LEITURA INTERMIDIÁTICA DE TRONO DE SANGUE/MACBETH, DE ANTUNES FILHO* Liana de Camargo Leão lianaleao@hotmail.com Mail Marques de Azevedo mail_marques@uol.com.br Resumo: Este artigo focaliza as relações intermidiáticas entre texto, performance e filme na produção Trono de sangue/ Macbeth, levada à cena no Centro de Pesquisa Teatral, em 1993, pelo diretor Antunes Filho. A referência óbvia ao texto-fonte e ao celebrado filme de Akira Kurosawa – e, ulteriormente, ao teatro Noh japonês – sugeriu a abordagem analítica: examinar o produto de mídias diferentes, com base em determinado trabalho individual, de acordo com seus meios específicos (RAJEWSKY, 2006). Estabelecem-se paralelismos entre os três tipos de mídia quanto a técnicas de ambientação – cenários, figurinos e máscaras – e de performance. Enfatiza-se o estreito relacionamento de Antunes Filho com o cinema e, em particular, com a obra de Kurosawa, fruto de sua admiração pela cultura japonesa. Abstract: This article examines the intermedial relationship among text, performance and film in the production Trono de sangue/Macbeth, staged by the Brazilian director Antunes Filho, at the Centro de Pesquisa Teatral, in 1993. The obvious reference to the Shakespearean source-text and to Akira Kurosawa’s celebrated film – and ultimately to the Japanese Noh theater – have suggested the analytical approach: the study of the results produced by different media based on an individual work, using their own media-specific means (RAJEWSKY, 2006). Parallelisms among the three types of media are focused on details of setting – scenery, costumes, and masks – and performance. Special notice is given to the director’s close relationship with cinema and, specifically, with Kurosawa’s work, due to his admiration for Japanese culture. Palavras-chave: Intermidialidade. Kurosawa. Antunes Filho. Keywords: Intermediality. Kurosawa. Antunes Filho. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 167 Shakespeare´s plays, with their inherently flexible structure and openness of style, positively invite distinctive re-interpretation on performance. John Russell Brown Trono de sangue/Macbeth, o título dado pelo diretor Antunes Filho à sua montagem da tragédia shakespeariana, faz referência explícita ao filme de Akira Kurosawa – um clássico para aficionados –, o que põe em relevo o caráter intermidiático da sua leitura. Vem de longa data a devoção de Antunes ao cinema, evidente no trabalho de estruturação do CPT, – Centro de Pesquisa Teatral –, onde a peça foi produzida em 1993. A atuação do diretor paulista à frente do CPT incutiu no grupo o espírito de pesquisa extensiva na estética do espetáculo, o que Antunes reputa indispensável para a formação de atores, dramaturgos, desenhistas e de todo o pessoal ligado à performance teatral, nos cursos oferecidos pelo Centro. Assim, o uso do filme como fonte tornou-se prática costumeira no CPT. Decorre daí o objetivo deste trabalho: estudar na encenação de Trono de sangue/Macbeth, dirigida por Antunes Filho, as referências ao filme de Kurosawa, especificamente a utilização de técnicas fílmicas de ambientação – cenários, figurino e máscaras – e de performance que, por sua vez, estabelecem relações intermidiáticas com o teatro Noh japonês. A análise desses elementos é precedida de um breve retrospecto da carreira variegada do diretor no teatro e da discussão de como “o produto da mídia usa seus meios específicos para se referir a um determinado trabalho individual produzido em meio diferente” (RAJEWSKY, 2006, p. 44). A metamorfose de José Alves – nome artístico do aspirante a ator – em Antunes Filho, o metteur-en-scène, deve ter sido recebida com alegria por críticos e plateias teatrais, que puderam trocar um performer medíocre pelo hoje internacionalmente famoso “poeta da cena”. Ligado desde o princípio a novas tendências artísticas, a atitude predominante de Antunes Filho sempre foi de rebeldia e liberdade de criação. Desrespeito a leis e regras não é nada de novo na vida de Antunes Filho, o menino familiarizado com as ruas de uma São Paulo provinciana, envolvido em brigas e disputas, suportando sem pestanejar olhos roxos e ossos quebrados. E que – segundo nos informa Sebastião Milaré – adorava cinema quase tanto quanto futebol; era apaixonado pelo circo e, influenciado pela mãe, desenvolveu paixão de uma vida inteira por tudo o que se relaciona com textos dramáticos e performance teatral (MILARÉ, 2011). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 168 Um primeiro emprego na prefeitura, onde veio a conhecer Osmar Rodrigues Cruz, tornou-se um trampolim para o mergulho no mundo do teatro. A recepção fria de sua atuação em Adeus, mocidade, dirigida por Cruz no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, despertou-lhe dúvidas sobre sua capacidade de representar, mas não abateu em nada seu entusiasmo pelo teatro. Tinha encontrado sua verdadeira vocação. São Paulo, na época, fervilhava com atividades teatrais amadoras, tais como o Grupo Experimental de Alfredo Mesquita; o Grupo da Universidade, fundado por Décio de Almeida Prado, na Universidade de São Paulo, e o Grupo de Artistas Amadores de Paulo Autran. A criação do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, em 1948, como sede dos três grupos, foi um primeiro passo rumo à profissionalização, impulsionada pela contratação dos diretores italianos Luciano Salce, Adolfo Celi, Flamínio Bollini Cerri, Ruggero Jacobbi, além do renomado diretor polonês Zigbiniew Ziembinski. O jovem José Alves esteve sempre em contato muito próximo com todos esses movimentos e tendências. Empolgado pela pujança do cenário teatral, faz mais uma tentativa de se tornar ator, mas não tem sucesso: é rejeitado na seleção para o elenco da peça Nossa cidade, a ser dirigida pelo amigo Osmar Cruz (o que deu origem a muitas brincadeiras no meio teatral) e volta-se definitivamente para a carreira de diretor. Toda a força da energia e coragem da juventude é, então, canalizada para a realização de seus objetivos artísticos na montagem teatral. Começou de maneira modesta com a fundação de grupos amadores que, no entanto, chamaram atenção para o seu trabalho e o levaram para o TBC como diretor-assistente dos mestres italianos. A partir daí seu currículo foi marcado por sucessos retumbantes (apesar de alguns fracassos igualmente rumorosos), como resultado de sua determinação “de tentar algo de ambição e envergadura”, mesmo que se expusesse à rejeição de crítica e de público. Sua versão de A megera domada, em 1965, faz uma reflexão sobre o conhecimento da vida social acumulado ao logo dos séculos – a emancipação da mulher, o novo papel do homem mais como provedor financeiro do que pater famílias – e põe em evidência sua compreensão dos personagens de Shakespeare como protótipos do homem moderno. A introdução de detalhes do contemporâneo, como garrafas de Coca-Cola, um jogo de rugby e um coro de canções dos Beatles contribuiu, evidentemente, para o tremendo sucesso da peça. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 169 Em contraste, a produção de Júlio César foi uma pedra de tropeço na ascensão do prestígio do diretor. Local inapropriado, falta de unidade na representação e outras circunstâncias, como a visão chocante de um Júlio César nu, em um caixão no palco, receberam vaias e apupos das galerias e da plateia, apesar dos nomes famosos no elenco. As tentativas seguintes de Antunes Filho no teatro comercial, no cinema e na TV foram degraus de acesso à criação de um curso para atores que deu origem à produção de Macunaíma, de Mário de Andrade, e que levou à instituição do CPT. O artesão voltara ao material básico de sua arte – o espírito humano –, mas levando na bagagem ideias e experiências valiosas colhidas ao longo do caminho. A escolha do título Trono de sangue/Macbeth, além de fazer referência explícita ao filme de Akira Kurosawa, ilustra a devoção de Antunes Filho pelo cinema: “Oh, essas duas coisas, teatro e cinema. A expressão dramática sempre me impressionou. A aventura humana sempre me tocou profundamente” (ANTUNES, 1996). “Expressão dramática” no teatro difere necessariamente de expressão dramática na tela e a análise de uma relação intermidiática entre ambas, estabelecida por artistas que gozam de trânsito livre em ambos os meios, é desafiadora. Seguindo em princípio a percepção de Irina Rajewsky sobre intermidialidade como categoria para a análise concreta de textos ou de outros tipos de produtos da mídia, este artigo se estrutura em linhas bastante convencionais: basicamente a análise de tema, espaço cênico, ritmo da ação e performance dos atores, contra um fundo de diálogo entre artes, especificamente a encenação de Antunes Filho (1993) e o filme de Kurosawa (1957), referidos a partir deste ponto como Trono de sangue e The Castle of the Spider´s Web, respectivamente. O termo “re-mediação”, como utilizado por Rajewsky, descreve com propriedade a relação intermidiática entre as versões de Kurosawa e de Antunes Filho de Macbeth, bem como entre suas referências a outras artes. Embora separadas por quase meio século, as leituras cinemática e teatral da tragédia shakespeariana têm características surpreendentemente semelhantes. O estudo extensivo das atividades artísticas de Antunes Filho, desenvolvidos por Sebastião Milaré, ressaltam dois aspectos de especial relevância para esta análise: a empatia do encenador com a cultura japonesa e a utilização de fontes literárias para suas produções. Estas são, na realidade, recriação mais que adaptação pura e simples. A apropriação de Macbeth, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 170 por exemplo, não é mera transposição, mas encenação dramática mediada pela cultura japonesa, mais especificamente pelo filme de Akira Kurosawa The Castle of the Spider´s Web, em si uma transescritura da tragédia de Shakespeare. A influência japonesa na concepção de Trono de sangue/Macbeth, – homenagem à genialidade de Kurosawa – confere simultaneamente à peça um senso do exótico e do universal, por não ser a produção brasileira cópia do filme japonês nem montagem pseudobritânica, mas sim um retrabalhar de influências e tradições. Não é objetivo deste trabalho explorar os paralelos óbvios entre The Castle of the Spider´s Web e o teatro Noh, objeto de centenas de comentaristas abalizados. Apenas alguns aspectos da adaptação de Kurosawa são analisados em contraponto com a leitura de Antunes. Enquanto Kurosawa evita a linguagem verbal em favor de imagens e da ação propriamente dita – imagens visuais, ação, gestos e rituais do teatro Noh substituem os famosos diálogos e solilóquios de Shakespeare – o texto de Macbeth retém lugar proeminente na produção brasileira. A autoria da tragédia é destacada no programa, sem referência a um possível tradutor do texto. O projeto como um todo faz menções recorrentes a Shakespeare, e estabelece Antunes como o responsável pela adaptação. Além disso, é inegável que a encenação do drama conta a conhecida história de Macbeth e de seus personagens, reconhecíveis ao espectador, apesar da condensação radical do texto – o tempo da encenação ultrapassa em pouco uma hora e quarenta minutos. Antunes provavelmente valeu-se de várias traduções brasileiras para construir seu texto, todo ele em prosa. Reconhecer o filme de Kurosawa como adaptação da tragédia Macbeth, a menos que explicitamente apresentado nos créditos, no entanto, requer conhecimento da fábula da peça, uma vez que os personagens recebem nomes diferentes, de acordo com o background histórico e a tradição cultural japonesa. Já no inicio da narrativa fílmica, no entanto, temas semelhantes aos que inspiram Macbeth vêm à tona, basicamente os efeitos maléficos da ambição pelo poder até mesmo sobre o mais nobre e bravo dos homens, adaptado à situação de guerra civil no Japão medieval. A possibilidade de se encaixar à perfeição o texto shakespeariano em diversas circunstâncias da história da humanidade diz de sua vocação política inerente. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 171 Vocação política de Macbeth Macbeth é a única peça escocesa de Shakespeare, encenada pela primeira vez em Hampton Court, diante do também único rei escocês a ocupar o trono inglês – Jaime IV da Escócia e Jaime I da Inglaterra – ele próprio patrono do grupo de atores, The King´s Men. Há referências sobre acontecimentos contemporâneos no texto: os julgamentos de mulheres acusadas de feitiçaria, o tratado sobre Demonologia escrito pelo rei (1597); a conspiração de Guy Fawkes; a genealogia dos reis descendentes de Banquo e a isenção da culpa desse último que, de cúmplice de Macbeth no assassinato de Duncan nos relatos históricos, passa a ser inimigo mortal do protagonista na peça, recurso certamente utilizado por Shakespeare com a intenção de agradar a Jaime I. A vocação política da peça vem-se afirmando em séculos de adaptações que retratam o panorama político de diferentes países e estados. O background da produção de Orson Welles para o palco, em 1936, por exemplo, é a revolução no Caribe; já na versão do diretor para o cinema, em 1948, não é o Haiti, mas o fascismo a chave política do filme. A versão fílmica de Roman Polanski (1970) é associada à violência da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Kurosawa transfere a ação para um Japão medieval assolado pela guerra civil no século XVI. Trono de sangue/Macbeth lança luz sobre a realidade política brasileira nos anos 90, quando a esperança do povo por democracia e o desejo da intelligentsia por liberdade de expressão foram rudemente abalados pela corrupção do governo de Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente a ser eleito diretamente pelo povo, depois de vinte anos de domínio militar. Collor foi forçado a renunciar à presidência em agosto de 1992, formalmente acusado de crimes e contravenções. Não se trata de uma produção tópica, embora o espectador atento aos acontecimentos possa facilmente traçar paralelos entre a peça e o cenário político brasileiro: se um povo consegue emergir de um sombrio período de ditadura, ao eleger seu Presidente, pode muito bem produzir um drama que condena um tirano. O bem e o mal “Oráculos ambíguos que, por se realizarem literalmente, enganam os que neles confiam” fazem com que Macbeth se enrede “nos laços armados no inferno”. Os comentários críticos de Samuel Coleridge, porém, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 172 ignoram a inexorabilidade do destino como princípio propulsor da tragédia de Shakespeare. A seu ver, “o poeta deseja mostrar que o conflito entre o bem e o mal, neste mundo, acontece apenas com a permissão da Providência, que converte a maldição, que o indivíduo mortal faz cair sobre a própria cabeça, em benção para os demais” (COLERIDGE citado em STAUNTON, 1972, p. 2049). Qualquer que seja a interpretação atribuída à transformação de Macbeth, de guerreiro valoroso em assassino cruel, é a insana luta interior entre o bem e o mal que fornece as linhas mestras da caracterização do herói e comanda o dénouement de sua tragédia. Em que pese seu tormento, entretanto, fica evidente que a ambição prevalece e a decisão de assassinar Duncan é um ato de livre arbítrio. A encenação de Antunes Filho enfatiza a queda compulsiva de Macbeth em um mundo de sombras e escuridão, a começar do momento em que presta ouvidos às profecias das bruxas até a morte nas mãos de Macduff. Como no texto de Shakespeare, Macbeth trava uma batalha perdida contra a escuridão interior, feita de remorso pelo assassinato do rei e do propósito cruel de trair, enganar e matar quem lhe frustrar a ânsia pelo poder. Reflexões sobre o bem e o mal não são um tópico isolado na produção cênica de Antunes. No livro Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho (2010), Sebastião Milaré inclui uma análise de Trono de sangue, no capítulo intitulado “Sinergia do mal”, em que agrupa a peça com duas outras produções do diretor – Velha nova estória e Vereda da salvação – que exploram a centralidade do mal. Milaré vê a continuidade dessa fase na produção de Gilgamesh e Drácula e outros vampiros, centradas na poética da imortalidade e que se utilizam do mito da árvore da vida. Em conjunto, as cinco peças representam uma meditação sobre a condição humana como percebida no final do século XX. A familiaridade de Antunes com filosofias orientais, que vêem os conceitos de bem e mal como complementares – o bem não existe sem o mal e o mal não existe sem o bem – acrescenta outro ponto em comum com a leitura feita por Kurosawa do texto de Shakespeare. É tarefa do homem aprender a lidar tanto com o bem como com o mal. Coerente com esses princípios, o propósito de Antunes é “discutir o homem em seus limites” na encenação de Macbeth. [...] “O grande mal, o grande bem ...” [...] e especialmente estar consciente da sedução, “temer a sedução; toda sedução é perigosa, particularmente a sedução da política” (ANTUNES, 1996). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 173 “Discutir o homem em seus limites” é a preocupação central do diretor e o motivo por que valoriza o ator como eixo da encenação. Máscaras Na produção de The Castle of the Spider´s Web, Kurosawa não reproduz a linguagem verbal de Shakespeare, nem mesmo para ajudar seus atores a construir personagens. Ao invés disso, utiliza-se de máscaras Noh como modelo, a fim de causar impacto sobre os atores e levá-los a expressar sentimentos contraditórios de medo e raiva, exaltação e desespero, que ameaçam destroçar corpo e alma. Para a composição de Lord Washizu, Kurosawa apresentou a Toshiro Mifune, ator principal de seus filmes, a máscara de Heida, o guerreiro; a atriz que desempenha o papel de Lady Asaji foi apresentada à máscara de Shakumi, uma linda mulher, já madura, à beira da loucura; para compor o Espírito do Mal, utilizou a máscara Yamanba; para compor Mik, a máscara de Chujô, o nobre (KUROSAWA citado em CARDULLO, 2008, p. 65, 103). O esquema abaixo ajuda a visualização da estratégia de Kurosawa: Fig. 1– Máscaras tradicionais do teatro Noh e seus correspondentes em The Castle of the Spider´s Web. A barba negra e a expressão selvagem de Toshiro Mifune acrescentam calor e vida à reprodução extremamente fiel da máscara Noh, na encarnação do guerreiro selvagem, Lord Washizu. A simbiose completa de Isuzu Yamada Sakaji – Lady Asaji – é mais uma evidência da habilidade do diretor japonês. A frieza imperturbável de Lady Asaji (Lady Macbeth), Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 174 construída por Yamada, contrasta com a performance apaixonada e intensa de Mifune e enfatiza o impacto dramático da influência da mulher sobre o guerreiro. Percebem-se referências às máscaras Noh, na produção de Antunes, na maquiagem pesada de Luiz Melo: os bigodes e as sobrancelhas negras e marcadas, os cabelos longos cobertos pelo elmo ou pela coroa que se assemelham aos traços de seu correspondente no filme, um samurai no Japão feudal. Na composição de Lady Macbeth, – a brancura doentia da pele em contraste com as sobrancelhas grossas e negras –, Samantha Monteiro está ainda mais próxima da concepção de Kurosawa das personagens shakespearianas. Nos comentários à produção de Antunes, Lilian Lopondo dá destaque especial à performance de Samantha Monteiro: “Caminhando lentamente como no teatro Noh, sem gestos, a imobilidade do rosto de Lady Macbeth encobre seu espírito determinado, manifesto no poder e impacto da voz, que parece jorrar-lhe das entranhas” (LOPONDO, 1993). De fato, a caracterização de Lady Macbeth em Trono de sangue é exemplo modelar dos métodos do diretor, centrados principalmente no trabalho com o ator. Exige deste consciência absoluta do espaço, não somente da mise-en-scène física concreta, mas da peça como um todo, tanto no aspecto externo visível da progressão dramática como no significado profundo. Ademais, procura levar o ator à percepção do personagem através de seu próprio corpo e de suas próprias emoções. Sebastião Milaré vê o ator como o veículo de que Antunes se utiliza para sondar a natureza do teatro. No que diz respeito ao espaço físico da performance, o palco é o domínio do ator e a consciência desse espaço, o fator determinante da geometria de seus movimentos. Assim, a função-chave dos detalhes concretos de cenário, iluminação e figurino é fornecer suporte ao trabalho do ator, que se utiliza do concreto para atingir a transcendência. Como mencionado anteriormente, as referências intermidiáticas ao filme de Kurosawa, em Trono de sangue, têm a ver primariamente com detalhes de ambientação – cenário, figurino e máscaras – e a influência decorrente sobre a performance dos atores. O figurino é um aspecto especialmente proeminente como uma das “estratégias constituintes que contribuem para o significado amplo do produto da mídia”, no caso em que “o produto da mídia se serve de seus próprios meios Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 175 específicos [...] para fazer referência a um trabalho individual específico produzido em outro meio” (RAJEWSKY, 2006, p. 52). Figurino Desenhados pelo artista Romero Lima, os trajes são feitos de retalhos recortados de cortinas de veludo; o uso de espadas e capacetes dos samurais confirma o cunho japonês da produção. Como “estratégias constituintes”, trajes e atitudes dos personagens têm significado especial em Trono de sangue. O mensageiro vestido de trapos, portador de más notícias, ajoelhado em atitude subserviente diante de Macbeth, escapa por um fio de ser estrangulado, na explosão de ira do chefe. Em outra cena, a posição igualmente servil de um soldado vestido com o traje completo dos samurais, – flechas se destacando das costas da armadura –, ressoa fortemente na recriação peculiar do texto de Shakespeare, pois na terra dos thanes escoceses não existe lugar para o servilismo. Atores, como também espectadores, são levados a buscar o significado de tais discrepâncias, o que de fato constitui o objetivo principal da mise-en-scène de Antunes Filho, bem como de toda a sua concepção de Trono de sangue. Figs. 2 e 3: Detalhes de figurino, na tela e no palco. O trabalho de Lima é descrito pela historiadora e figurinista Luciana Buarque como “nem roupas nem props, são figuras completas, esculturas vivas que parecem saídas de antigos livros de fábulas, fórmulas religiosas, cartas de tarô”. Buarque sugere, ainda, que os personagens criados por Rogério Lima “não são tipos, mas arquétipos. Macbeth não é um Rei, mas todos os Reis com todo o peso e a sedução trazidos pelo poder. Lady Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 176 Macbeth não é apenas uma Rainha má, ela é a serpente do Paraíso, a Medusa” (BUARQUE, 1993, p. 25). Na composição de Lady Macbeth por Samantha Monteiro, como a serpente que tenta o herói, os longos cabelos trançados da atriz – também referência intermidiática à cultura japonesa e ao filme de Kurosawa – se tornam ícone visual da perfídia da serpente. Figs. 4 e 5 – Samantha Monteiro como a serpente traiçoeira na montagem de Antunes Filho. Isuzu Yamada Sakaji como Lady Asaji, a Lady Macbeth de Kurosawa. A semelhança marcante entre as imagens da interpretação teatral e fílmica de Lady Macbeth acrescenta outras evidências da relação intermidiática entre a peça de Antunes Filho e o filme de Kurosawa. Espaço cênico O espaço cênico em Trono de sangue foi concebido por um dos cenógrafos mais influentes do Brasil, J. C. Serroni, cuja ideia básica foi a de “um palco livre para os atores” e “uma moldura cenográfica”, um espaço limitado por grossas paredes que têm a função de sugerir um clima de opressão e encarceramento – seres humanos presos como animais em uma jaula e, como tais, privados de racionalidade. Ao invés de um local particular reproduzido fielmente, Serroni pretendia criar um espaço múltiplo e ambíguo, que convidasse o público a imaginar universos variados. Esta é exatamente a grande realização do desenho cênico de Serroni, que lembra a forma de um castelo medieval japonês, como no filme de Kurosawa: pesadas portas dão acesso a grandes espaços vazios de forma quadrangular. As duas figuras abaixo ilustram a semelhança notável entre o castelo senhorial no filme de Kurosawa (Fig. 6) e o cenário de Serroni (Fig. 7). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 177 Figs. 6 e 7 – Há semelhanças evidentes entre as habitações senhoriais no filme de Kurosawa e na montagem de Antunes Filho. Além da referência intermidiática ao filme de Kurosawa e, consequentemente, ao cenário despojado do teatro Noh, Serroni presta tributo ao teatro do tempo de Shakespeare ao reproduzir traços da arquitetura dos inn-yards e do teatro elisabetano propriamente dito. As referências múltiplas a outras palcos, espaços e épocas livram a peça de qualquer especificidade cultural e liberam a imaginação do espectador, por imprimir cunho universal à ação. O palco vazio permite rápidas mudanças de cena e confere flexibilidade à peça: pessoas entram e saem quase que simultaneamente, através de portas à direita e à esquerda do palco, e de uma porta central. Uma versão ampliada do balcão shakespeariano fornece dois outros meios para entrar e sair, através de portas que ladeiam quatro grandes janelas, de frente para a plateia. Estas funcionam como molduras para a intervenção de aparições sobrenaturais assustadoras que lembram a Macbeth os seus pecados. À direita, uma escada de mão dá acesso ao piso superior. Em dois momentos cruciais da ação, o ator que faz o papel de Macbeth desce até o chão por uma corda pendente do teto. Depois do assassinato de Duncan, o palco nu, de paredes cinzentas depojadas, funciona como prisão invisível, ou, referindo-se especificamente à imagem criada por Kurosawa, como labirinto impenetrável, onde Lady Macbeth e, particularmente, Macbeth, perseguidos por pensamentos aterrorizantes, correm de parede a parede como em um pesadelo. O piso do palco, pintado de vermelho, é a única mancha de cor em todo o cenário, em contraste violento com as paredes acinzentadas. O vermelho, obviamente, se refere ao título da peça, mas também sublinha o motivo do sangue: as batalhas que abrem e fecham a peça e o assassinato Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 178 violento do Rei Duncan, seguidos do massacre impiedoso de quem se interpusesse entre Macbeth e o trono. Iluminação Inegávelmente, The Castle of the Spider´s Web possui caráter pictórico. É de conhecimento comum que, na juventude, Kurosawa aspirava a se tornar pintor e, mais tarde, como diretor cinematográfico, utilizou-se de técnicas da pintura, equilibrando cenas como composição pictórica demonstrativa de grande compreensão de contrastes. O designer do filme, Yoshiro Muraki, revela que neblina e névoa foram usadas para contrastar com as muralhas negras fortificadas e com o escuro solo vulcânico, tudo contribuindo para o efeito suiboku-ga ou sumi-e (MURAKI citado em RICHIE, 1991, nossa tradução). Em sua avaliação, Richard Prince faz igualmente conexão da estética do filme com o sumi-e: “o vazio notável dos espaços – os céus, a neblina densa que encobre montanhas e planícies – é uma representação cinemática da composição sumi-e. Como valor positivo, esse vazio pictórico é posto em contraste com o mundo humano de vaidade, ambição e violência” (PRINCE, 2003, nossa tradução). A justaposição de luz e sombra como elemento básico na montagem de Antunes segue ainda o modelo de Kurosawa: cenografia, figurino, maquiagem e iluminação imprimem à produção brasileira a percepção em preto e branco do espetáculo, com exceção única do piso vermelho, símbolo visual do caráter sangrento da tragédia. Via de regra, introduz-se cor em cenas com seres sobrenaturais, a exemplo da luz verde e da luz das velas, na cena do banquete, que destacam o fantasma de Banquo. Na segunda cena das bruxas, uma luz azul difusa forma um halo à volta das três feiticeiras, enquanto fachos de luz verde destacam fantasmas e aparições, emoldurados nas janelas do balcão. A concepção das três irmãs fantasmagóricas é tomada de empréstimo à mitologia grega, em que as três Moiras ou Fados, – as Parcas na mitologia latina – Cloto, Láquesis e Átropos, mulheres lúgubres, de longas vestes brancas, comandam o destino dos seres humanos. Tecem constantemente o fio do destino, que é cortado por Átropos quando a vida humana chega ao término. Antunes faz com que as bruxas desçam dos céus em um mecano para anunciar a sina que aguarda Macbeth. Dois atores fazem o papel das irmãs, sendo a terceira representada por um boneco que, à primeira vista, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 179 dificilmente se distingue dos atores em carne e osso. Como recurso técnico, evita-se sobrecarga ao elenco, a que se acrescenta a referência implícita à função da terceira irmã de fazer calar o homem. Ao enfatizar o aspecto agressivamente masculino dos atores que encarnam as feiticeiras, Antunes se curva à prática do teatro elisabetano, em que homens fazem papéis femininos e, talvez prioritariamente, concretiza a descrição que Banquo faz das feiticeiras: [...] Tão secas e tão loucas no vestir, Que não parecem habitar a terra Mas ’stão aqui. ’Stão vivas? São capazes De responder? Parecem compreender. Pelo gesto que fazem com os dedinhos Nos lábios secos. Parecem mulheres, Mas as barbas proíbem que eu afirme Que o são. (SHAKESPEARE, 2004, p. 26) Kurosawa condensa as três irmãs da mitologia numa só imagem, a de uma velha fiandeira que gira incessantemente a roca, tecendo o destino de Lord Washizu como futuro senhor do “Castelo da Teia de Aranha”. A ambiguidade de gênero do espírito maléfico da floresta, que também se encaixa na descrição de Banquo, é posta em relevo no filme pelo tom masculino de sua voz computadorizada. Fig. 8 – Imagem da velha fiandeira em Kurosawa. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 180 Fig. 9 – Imagem das três bruxas de Antunes Filho. Intermidialidade e performance Robert Stam aponta que enquanto “o instrumento de expressão da literatura são as palavras, e apenas as palavras, a linguagem do cinema é múltipla, em virtude de seus meios de expressão diversos e, assim, ‘herda’ todas as formas de arte associadas com esses meios de expressão” (2000, p. 35). A narrativa fílmica tem, de fato, a capacidade de absorver qualquer tipo de discurso ou expressão pré-existente. A riqueza da arte altamente valorizada de Kurosawa está precisamente na exploração do cinema como mídia de caminhos múltiplos. Assim, sua transposição do texto de Shakespeare para a tela não é mera tradução, mas profunda transformação do texto-fonte no mundo selvagem do Japão medieval. A alternância entre cenas épicas de batalhas, próprias do cinema, e momentos intimistas, província das grandes performances teatrais, forma um todo coerente, que Antunes Filho consegue igualmente atingir em Trono de sangue/Macbeth, pela hábil manipulação dos recursos específicos da encenação teatral. Para concluir, a análise de duas passagens do texto de Shakespeare, no dénouement da tragédia, justapostas à encenação de Antunes Filho e ao filme de Kurosawa, recupera os traços característicos das três mídias. Na última cena, Macduff apresenta a cabeça de Macbeth a Malcolm e seu exército vitorioso: Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 181 Macduff: Salve, Rei, pois o sois. Olhai aqui A cabeça maldita do tirano: O tempo agora é livre. E eu vos vejo Cercado pelas pérolas do reino – De cuja saudação eu sou a voz: Mas cujas vozes quero junto à minha Pra gritar alto “Salve, Rei da Escócia”! (SHAKESPEARE, 2004, p. 142-43) A palavra impressa, “a matéria de expressão da literatura” é um meio abstrato flexível que abre caminhos para a significação. Assim, a palavra “pérola” pode ser a representação metafórica da nobreza da Escócia, ou o termo metonímico para “coroa”. De qualquer forma, o poeta escolhe palavras que indicam a restauração da ordem política. O filme de Kurosawa, ao contrário, não traz solução definitiva para a instabilidade política reinante. Um ciclo interminável de violência seguir-se-á, sem dúvida, ao assassinato de Washizu, no interior do castelo, por seus próprios homens, ato que subverte diametralmente a ordem social. Com a obliteração das distinções definidoras da cultura pelo desrespeito às fronteiras que separam o rei de seus vassalos, uma teia de desconfiança, traição e violência virá substituir a vida harmoniosa do grupo social. Assim, o trono, como símbolo do poder, está irremediavelmente manchado de sangue. A figura abaixo, que mostra Toshiro Mifune atingido por “cerca de uma centena de flechas”, traduz o impacto visual da cena, duplamente impactante do filme, em virtude do acompanhamento sonoro da chuva de flechas sibilantes. São necessários todos os recursos do cinema como meio artístico, – movimento, som sincronizado, close-ups e tomadas panorâmicas –, para construir efetivamente a imagem da derrota irremediável e humilhante do temido guerreiro. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 182 Fig. 10 – Cena final da derrota de Lord Washizu. Na encenação de Antunes Filho, a plateia acompanha os movimentos espásticos de Macbeth, encarnado por Luís Melo, na agonia cruel que antecede a morte. O corpo do protagonista é arrastado no palco por uma corda, à semelhança de uma vítima sacrificial. O som estridente e áspero da banda heavy-metal, Kreator, acompanha o arremedo de ritual. O mal ainda está à solta, como indelével mancha de sangue no próprio Estado e, como indica o título da montagem, sobre seu símbolo, o trono, agora permanentemente manchado de sangue. Nota *Este artigo é o resultado da aproximação entre professores universitários e a prática teatral. Tomamos como ponto de partida cuidadosa análise do vídeo da encenação de Trono de sangue/Macbeth (Arquivo Digital Brasileiro, MIT), das notas contidas no programa do espetáculo e das críticas sobre a montagem, generosamente fornecidas por Rodrigo Audi, do CTP, a quem devemos agradecimentos. Devemos especial penhor de gratidão a Sebastião Milaré por ter colocado à nossa disposição partes de sua pesquisa sobre Antunes Filho, ainda não publicada, bem como partilhado ideias e comentários valiosos sobre a encenação de Trono de sangue/Macbeth. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 183 REFERÊNCIAS ANTUNES FILHO. Entrevista do encenador ao Diário de São Paulo, 04 dez. 1973 ______. Entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, 14 ag. 1996. BROWN, John Russell. “Shakespeare, Theatre Production, and Cultural Politics.” Shakespeare Survey, Vol. 48: Shakespeare and Cultural Exchange. Ed. Stanley Wells. Cambridge University Press, 1995. p. 13-22. CARDULLO, Bert (ed.). Akira Kurosawa: Interviews. Mississipi: University Press of Mississipi, 2008. LOPONDO, Lilian. Trono de sangue/Macbeth. Artigo publicado no Theatre Journal, vol. 45, n. 4, Dec. 1993. Disponível em http://www.jstor.org/pss/3209023. Acesso em: 24 jan. 2011. MANVELL, Roger. Shakespeare and the Film. New York: Littlehampton Book Services Ltd, 1971. MILARÉ, Sebastião. Antunes Filho e a dimensão utópica. São Paulo: Perspectiva, 1994. ______. “Convergência Brasil-Japão no teatro”. Dossiê Brasil/Japão, n. 27. Revista USP, set./nov. 1995. p. 152-63. ______. Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2010. ______. “Primeiros tempos” In: ______. Poeta da cena (2011, no prelo). 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Tóquio: Kurosowa films, 1960. DVD, 151 minutos, preto e branco. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fig. 1 – Máscaras tradicionais do teatro Noh e seus correspondentes em Trono de sangue. Disponível em: http://thestuffyougottawatch.com/tblood.html. Fig. 2 – Detalhes de figurino na tela. Disponível em: http://cantarapeledelontra. blogspot.com/2010/02/galeria-akira-kurosawa-trono-manchado_26.html . Fig. 3 – Detalhes de figurino no palco. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/ sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11. Fig. 4 – Samantha Monteiro como a serpente traiçoeira. Disponível em: http:// stephenesherman.com/discussions/throne-of-blood.html. Fig. 5 – Isuzu Yamada Sakaji-Lady Asaji, a Lady Macbeth de Kurosawa. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11. Fig. 6 – Habitações senhoriais. Imagem do filme. Disponível em: http:// stephenesherman.com/discussions/throne-of-blood.html. Fig. 7 – Habitações senhoriais. Imagem da montagem. Disponível em: http:// www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11. Fig. 8 – Imagem da velha fiandeira em Kurosawa. Disponível em: http:// www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11. Fig. 9 – Imagem das três bruxas de Antunes. Disponível em: http:// www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=4&esp=11. Fig. 10 – Cena final da derrota de Lord Washizu. Disponível em: http:// www.culturalprofiles.net/japan/Directories/Japan_Cultural_Profile/-13243.html. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 185 Liana de Camargo LEÃO Pós-Doutora pela UFMG. Doutora em Literatura Comparada pela USP. Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh) e da International Shakespeare Association (ISA). Mail Marques de AZEVEDO Doutora em Estudos Linguísticos e literários em Inglês pela USP. Professora da UFPR (aposentada). Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Artigo recebido em 31 de maio de 2011. Aceito em 07 de julho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 186 DA PINTURA AO TEXTO TEATRAL: DISCURSOS INTERMIDIÁTICOS EM QUANDO DESPERTARMOS DE ENTRE OS MORTOS, DE HENRIK IBSEN Anna Stegh Camati anniesc@bol.com.br Resumo: A produção literária de Henrik Ibsen (1828-1906) foi uma das fontes de inspiração do pintor simbolista Edvard Munch (1863-1944), precursor da arte expressionista. Por outro lado, diversas peças de Ibsen incorporam marcadores que remetem às artes plásticas. Em seu epílogo dramático, Quando despertarmos de entre os mortos (1899), o dramaturgo norueguês se apropria de imagens simbólicas do quadro Esfinge – Três estágios da mulher (1894), de Munch, para explorar a natureza contraditória das personagens e a dinâmica das relações afetivas entre elas. Nesse texto, de cunho autobiográfico, Ibsen cria um alter-ego, o escultor Arnold Rubek, com o intuito de lançar luz sobre a sua própria procura por linguagens para a representação do novo sujeito da modernidade que emerge no limiar do século XX. A linguagem visual assume funções estético-temáticas e torna-se o impulso gerador da criação artística. Os discursos intermidiáticos e ecfrásticos que permeiam a peça serão discutidos à luz das considerações críticas de Claus Clüver, Liliane Louvel, Peter Wagner e outros. Abstract: The literary output of Henrik Ibsen (1828-1906) inspired the symbolist painter Edvard Munch (1863-1944), forerunner of expressionistic art. Conversely, several plays by Ibsen include markers that evoke the visual arts. In his dramatic epilogue, When We Dead Awaken (1899), the Norwegian playwright appropriates symbolic images from the painting Sphinx – Three Stages of Woman (1894), by Munch, to explore the contradictory nature of the characters and the dynamics of their relationship. In this text, which displays autobiographical traces, Ibsen creates an alter-ego, the sculptor Arnold Rubek, aiming at highlighting his own search for strategies to represent the new subject of modernity emerging at the turn of the 20th century. Visual language assumes aesthetic and thematic functions and constitutes the generative impulse for artistic creation. The intermedial and ekphrastic discourses that permeate the text will be discussed in the light of the critical perspectives by Claus Clüver, Liliane Louvel, Peter Wagner and others. Palavras-chave: Henrik Ibsen. Nova subjetividade. Artes plásticas. Simbolismo. Intermidialidade. Key words: Henrik Ibsen. New subjectivity. Visual arts. Symbolism. Intermediality. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 187 RUBEK: Não tens uma idéia clara do que seja um artista por dentro. MAJA: (sorrindo e meneando a cabeça) Pois se nem mesmo sei o que sou... vista por dentro, como dizes. Henrik Ibsen Introdução Além de ser considerado o pai do drama moderno e ter renovado as artes cênicas, Henrik Ibsen (1828-1906) foi apontado, por Malcolm Bradbury (1989, p. 61), como sendo “o dramaturgo que, mais do que qualquer outro escritor, dominou o início do movimento modernista”. Na modernidade, a representação de diferentes formas de subjetivação tornase uma das principais fronteiras expressivas e, nesse sentido, Ibsen promove uma reflexão sobre a nova subjetividade que aflora no limiar do século XX. Com o intuito de revelar, no espaço da escritura dramática, a paisagem interna das personagens que se deparam com anseios e desejos que, muitas vezes, elas mesmas não compreendem, Ibsen se envolveu com todos os movimentos artísticos de seu tempo, desde o simbolismo até o expressionismo e surrealismo, cujos representantes investigavam as profundezas da psique a partir de ideias difundidas por Kierkegaard, Nietzsche e Freud. Em sua fase simbolista (1890-1899), Ibsen explora a natureza ambígua e contraditória da subjetividade humana por meio de referências psicoanalíticas, pictóricas e míticas, destacando-se na representação de aspectos difíceis de serem traduzidos em palavras. Nesse sentido, a linguagem visual configura-se em importante subtexto para a revelação das subjetividades das personagens. Em sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos (1899), Ibsen rompe totalmente com as convenções dramáticas da peça-bemconstruída ou peça de intriga, criando um drama inspirado em mitos gregos e imagens simbólicas. A ação é substituída pela revelação das subjetividades das personagens que “não são pessoas reais do mundo cotidiano”, mas podem ser consideradas arquétipos ou “símbolos da visão poética do dramaturgo” (MENEZES, 2006, p. 63), seres que tentam entender e nomear Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 188 os afetos que os movem. A peça também pode ser lida como o retrato do artista em sua desenfreada busca por novas linguagens para expressar o novo Zeitgeist em efervescência na virada do século XX. Este ensaio propõe-se a discutir as descrições ecfrásticas de duas esculturas, enunciadas por Arnold Rubek, que aludem ao seu afastamento da fase juvenil romântica para se tornar um artista moderno, e investigar a produção de sentido gerada pela manipulação de referências pictóricas simbolistas que remetem ao quadro de Edvard Munch, Esfinge – Três estágios da mulher (1894), principalmente em relação às três personagens femininas Irene, Maja e a Diaconisa e/ou às três fases da vida de Irene, a musa inspiradora do escultor. 1 Considerações teóricas sobre as relações entre a literatura e a pintura A comparação entre as artes se insere em uma longa tradição que, segundo Platão, remontaria a Simônides de Ceos que empreendeu reflexões sobre a maneira como as artes se relacionam ao sentido da visão ou da audição. Esses postulados teóricos foram retomados por Horácio que, no século I, em sua Epístola aos Pisãos, discute e compara as impressões visuais e auditivas. O mote de Horácio, retomado pelos teóricos do Renascimento, está na origem da doutrina do ut pictura poesis. Na frase de Horácio, ut pictura poesis erit, “um poema existe tal como um quadro”, a pintura constitui o referencial da comparação, sugerindo assim a superioridade da imagem sobre a linguagem. Os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem. A enunciação de Horácio passou a ser entendida como ut poesis pictura, “a pintura é como um poema”, e essa inversão de sentido prevaleceu e disseminou-se através dos séculos até ser questionada e reconfigurada, no século XVIII, por Gotthold Ephraim Lessing (LICHTENSTEIN, 2004, p. 9-11). A mudança de entendimento da máxima de Horácio, por outro lado, foi um dos meios que modificou o estatuto da pintura, conferindolhe a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de artes irmãs, relacionadas em múltiplos Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 189 aspectos: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 13). A comparação entre as artes que, desde o início, se estabeleceu na forma de uma controvérsia que discutia a superioridade da linguagem ou da imagem, foi retomada sob perspectivas diferentes no século XVIII. Em 1766, em Laokoon, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Lessing propõe-se a discutir a poesia e a pintura, tomando como base a midialidade específica dessas artes ao invés da estética, ou seja, a materialidade ou meio físico, que é determinante no momento da criação, resultando em diferentes modalidades representativas, podendo produzir ou não o mesmo efeito (MOSER, 2007, p. 44-45). A teoria de Lessing sobre as diferentes especificidades das duas artes, a espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura, lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade. Sabe-se, hoje, que a heterogeneidade, produzida no processo de transmidialização, é inevitável por se tratar de mídias com especificidades diferentes. Liliane Louvel, por exemplo, no ensaio “A descrição ‘pictural’: por uma poética do iconotexto”, postula que no deslocamento de um substrato narrativo, de um suporte para outro, a relação de identidade é impossível, mesmo porque, nesse jogo intermidiático, toda espécie de manipulação é permitida: A relação de analogia não se reduz jamais a uma relação de identidade. Estabeleçamos que uma descrição será dita ‘pictural’ quando a predominância de ‘marcadores’ da picturalidade, aquilo que faz com que a imagem seja artística, seja um artefato, seja irrefutável [...] Pelo menos, teremos uma emulsão, jamais uma fusão total, seja um iconotexto. Haverá sempre um traço, o vestígio de um no outro. [...] Falaremos de ‘tradução’ ou, antes, de ‘translação’, como a ação de passar de um lugar a outro, de uma linguagem a outra, de um código semiológico a outro. Tratar-se-á de observar os modos de funcionamento desta ‘translação’, de recuperar os traços de heterogeneidade causada pela presença de um medium estranho no medium suporte, graças a marcadores textuais. (LOUVEL, 2006, p. 195-96) Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 190 A definição restritiva de ecfrase1, que nasceu sob os auspícios do ut pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade e teve seu âmbito ampliado. Laura M. Sager Eidt, em Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film, investiga o tratamento ecfrástico ao qual são submetidos quadros específicos em diversos textos narrativos e filmes, ressaltando que “enquanto a tradição restringia a ecfrase a poemas que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio” (EIDT, 2008, p. 9, minha tradução)2, além do cinema, o objeto de estudo da pesquisadora na obra mencionada. Em um ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal Texts”, Claus Clüver também se manifesta a favor da expansão do conceito de ecfrase, quando inclui em seu âmbito não apenas textos visuais que abarcam as artes plásticas, mas também textos não visuais como danças e composições musicais. Em seu conceito ampliado, Clüver não faz distinção entre obras de arte reais ou imaginárias, postulando que as verbalizações de textos visuais completamente fictícios e/ou não identificados pelos críticos, mas passíveis de existir, são tão válidas quanto aquelas baseadas em textualidades de existência comprovada (CLÜVER, 2009, p. 26)3. 2 O diálogo intermidiático entre o quadro de Munch e a peça de Ibsen As relações dialógicas entre a arte simbolista do pintor norueguês Edvard Munch e a dramaturgia de Henrik Ibsen têm sido objeto de muita especulação e controvérsia. Sem dúvida, o universo imaginativo de Ibsen foi uma das principais fontes de inspiração de Munch na produção de mais de 500 gravuras, desenhos e pinturas que podem ser consideradas leituras das peças de Ibsen ou ilustrações de cenários para montagens, como os desenhos de Peer Gynt, as pinturas a óleo de Fantasmas e John Gabriel Borkman, dentre outros. Por outro lado, o predomínio da linguagem visual que se configura em importante subtexto para a revelação das subjetividades, e a inserção de personagens pintores e escultores na tessitura dramática, atestam o pendor de Ibsen pelas artes plásticas. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 191 No entanto, há divergências a respeito da suposta influência direta do quadro Esfinge – Três estágios da mulher (1894), de Munch, sobre Quando despertarmos de entre os mortos (1899), a última obra escrita por Ibsen. Sobre essa questão, a opinião da crítica se divide em vozes contraditórias. Enquanto Daniel Haakonsen (citado em LANGSLET, 2007) acredita que Ibsen se inspirou na pintura de Munch, porque há diversas correspondências entre o quadro e a peça, Joan Templeton (2000) argumenta tratar-se de um mito nascido de conjeturas diversas geradas a partir de afirmações de Munch. Vale mencionar que Munch não escondia sua predileção por motivos literários – sua representação pictórica do amor, do sentido da vida e da morte tem parentesco não somente com Ibsen, mas também com o ideário estético de Maurice Maeterlinck (1862-1949), expoente do movimento simbolista francês. A água, por exemplo, símbolo recorrente utilizado por Munch na representação das mulheres e do amor, apresenta ligações misteriosas com as heroínas Rebecca West (Rosmersholm – 1886) e Ellida (A dama do mar – 1888) de Ibsen, e com Mélisande (Pélleas et Mélisande – 1892), de Maeterlinck (PRIDEAUX, 2007, p. 159). Segundo Munch, a pintura Esfinge – Três estágios da mulher, cujo título alude à natureza misteriosa do feminino e faz parte de um conjunto de quadros denominado Frisa da vida (Frieze of Life)4, exerceu particular fascínio sobre Ibsen, quando este último visitou uma das exposições do pintor em Cristiania, onde teria se demorado longamente na contemplação dessa obra. Na ocasião, Munch teria feito breves comentários sobre as referências simbólicas tematizadas no quadro, tais como: a mulher com vestes escuras entre as árvores é a freira, ou seja, uma sombra de mulher que representa a dor e a morte; a mulher nua é a encarnação da alegria de viver e, ao lado delas, a mulher loira, de cabelos longos, vestida de branco que caminha em direção ao mar é a virgem, a mulher cheia de sonhos. Na extrema direita, quase encoberto pelos troncos das árvores, se encontra um homem perplexo e em estado de sofrimento por sua incapacidade de compreender as mulheres (PRIDEAUX, 2007, p. 158). Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 192 Fig. 1 – Esfinge – Três estágios da mulher (1894)5 Munch tinha convicção de que Ibsen inspirou-se nessa pintura (Fig. 1) para a criação das três personagens femininas de sua última peça: Irene, vestida de branco, sonhando com o amor; Maja, a mulher sensual que representa as pulsões e os desejos; e a Diaconisa, uma espécie de sombra de Irene, vestida de preto e silenciosa. Acredito, no entanto, que o simbolismo evocado no quadro de Munch, transcriado na peça de Ibsen, também pode ser lido como uma representação de três fases da vida da mesma mulher, ou seja: Irene, apaixonada e sonhadora na primeira fase, quando posou como modelo para Rubek; desiludida e revoltada, entregando seu corpo a muitos homens na segunda fase; e uma sombra ou morta-viva na terceira fase, quando reencontra o escultor que não consegue compreender o discurso enigmático de sua musa inspiradora. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 193 3 A representação do artista em busca de novas linguagens Em seu epílogo dramático, Ibsen cria uma espécie de alter-ego, o escultor Arnold Rubek que após ter vivido muitos anos no exílio, retorna à Noruega, onde passa o verão em uma estação balneária com sua esposa Maja, uma mulher que não o satisfaz por não ter sensibilidade artística. Quando Rubek a acusa de ser incapaz de ter “uma idéia clara do que seja um artista por dentro” (IBSEN, s/d, p. 428), Maja, com espantosa lucidez, responde não ter clareza nem mesmo sobre seus próprios sentimentos e afetos, conforme diálogo transcrito em epígrafe. Apesar da fama e do sucesso alcançado, Rubek sente uma enorme frustração. Chega à conclusão que, ao abrir mão do amor e da vida, acabou traindo a sua arte. Imbuído do sentimento trágico de ter sacrificado tudo em nome de um ideal, reencontra Irene, a mulher que lhe serviu de modelo e inspiração para a criação de uma escultura que batizou de O dia da ressurreição, considerada uma obra prima pelos críticos. Após a conclusão desse trabalho, Irene se afasta de Rubek por não sentir-se correspondida em sua afeição que havia nascido ao desnudar o corpo e a alma para ele. A partir da ausência de Irene, Rubek se desespera, porque acredita ter perdido seu dom, a criatividade artística. Quando Rubek reencontra Irene na estação balneária, ela o acusa de ter roubado sua alma e sugado sua energia vital. Argumenta que as palavras proferidas pelo escultor ao término de sua obra prima, “Obrigado! Irene. Do fundo do coração, obrigado! Isso foi, para mim, um episódio bendito” (IBSEN, s/d, p. 434), foram fatais para ela: a partir desse momento tornou-se uma morta-viva. Rubek tenta justificar-se; relata que seu idealismo juvenil não permitiu que se envolvesse fisicamente com ela – ele temia profanar a sua arte: RUBEK: Eu era artista, Irene. [...] Artista antes de tudo... Doente pelo desejo de criar a grande obra de minha vida... (Mergulha nas próprias recordações.) Devia chamar-se “O Dia da Ressurreição” e revestir o aspecto de uma mulher moça que desperta do sono da morte. [...] E essa mulher que se despertava devia reunir em si tudo que há de nobre, de altivo, de ideal sobre a terra... Encontrei-te. Tinhas tudo do que precisava. E te prestaste tão completamente, tão alegremente às minhas intenções! E abandonaste a Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 194 família, o lar, para seguir-me! [...] Era exatamente isso que te tornava tão preciosa para mim... Preciosa e única!... A meus olhos te tornaste uma criatura sagrada que não se devia tocar, nem de leve a não ser pelo pensamento... e com unção. Nesse tempo, eu era moço Irene. E habitavame a idéia supersticiosa de que o menor desejo sensual que sentisse por ti, profanaria minha alma e me impediria alcançar o fim sonhado... [...] Graças a ti, Irene!... Sim. Realizei meu ideal. Eu queria criar a mulher pura, tal como ela devia despertar no dia da Ressurreição; não intranqüila pelo pressentimento de coisas novas, imprecisas, desconhecidas... mas serena... depois de um longo sono sem sonhos, na santa alegria de tornar a encontrarse em sua pureza original. [...] não eras um modelo para mim: eras a própria fonte da minha criação. (IBSEN, s/d, p. 421) As falas de Rubek, transcritas acima, são descrições ecfrásticas. Em termos de construtividade textual, trata-se de uma escultura fictícia imaginada por Ibsen, inspirada (ou não) na figura da mulher virgem do quadro de Munch. No segundo ato da peça, quando encontra Irene perto de uma fonte e ela quer saber mais detalhes sobre como estaria representada na escultura, Rubek, após uma breve rememoração de seu ideal romântico, inicia uma descrição ecfrástica de como, a partir de uma nova ótica e novas impressões a respeito da vida, transformou O dia da ressurreição em uma obra de arte moderna: RUBEK: Eu era moço, ignorava a vida, pensava que não se pudesse dar à Ressurreição uma aparência mais bela, mais radiosa do que a de uma moça intacta – Virgem das coisas da Terra – despertando para a luz, para a alegria triunfal, sem ter de despojar-se de qualquer fealdade, de qualquer impureza que fosse. IRENE: (com vivacidade) Sim...? E é assim que eu apareço na nossa obra? RUBEK: (hesitante) Não completamente, Irene. [...] Aprendi a conhecer a vida durante os anos que se seguiram à tua partida, Irene. “O Dia da Ressurreição” tornou-se, no meu espírito, uma coisa mais... complicada. O pequeno pedestal sobre o qual se erguia a tua imagem esbelta e solitária, esse pedestal não bastava mais para sustentar o meu novo sonho. [...] Era um sonho feito do que me impressionava os olhos, no mundo que me cercava. Eu precisava, Irene, introduzir essas impressões na minha obra. Não podia me abster disso... Amplei o pedestal. Ficou com uma vasta superfície, sobre a qual coloquei um fragmento do globo, inflado e entreabrindo-se. Pelas Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 195 fissuras dessa terra em gestação, vêem-se agora surgir miríades de seres, homens e mulheres, com feições de animais dissimuladas por trás das máscaras, tais como a vida me as havia mostrado. (IBSEN, s/d, p. 432-433) Quando Irene indaga que lugar a sua figura ocupou nessa trasformação da escultura, ele confessa que ficou convencido da necessidade de deslocar a imagem da “virgem imaculada” do centro, em virtude do efeito de conjunto, e que ela havia se tornado uma espécie de “figura intermediária”. Diante da decepção de Irene, Rubek revela como idealizou a representação de si mesmo: [...] Mas ouve, como eu me representei, a mim mesmo, no grupo. No primeiro plano está um homem sentado junto a uma fonte como estou neste momento: curvado ao peso de uma falta, não se pode desprender da crosta terrestre. Chamo esta figura “Arrependimento de uma vida destruída”. Ele alí está, mergulhando os dedos na água que corre, a fim de lavar a nódoa... torturado pela certeza de que jamais o conseguirá. E a eternidade vai passando sem que ele atinja plenamente a ressurreição, sem que se possa desprender do inferno onde está fixado. (IBSEN, s/d, p. 433) O conjunto de falas de Rubek, transcritas acima, evidenciam o tratamento ecfrástico que Ibsen utilizou em seu texto para representar verbalmente duas esculturas fictícias que ilustram a transformação da escultura de Rubek, inicialmente de configuração romântica, em uma obra de arte moderna. Este aspecto temático levou muitos críticos a lerem a peça como uma reflexão autobiográfica de Ibsen sobre sua própria produção artística que também passa por fases diversas: do romantismo juvenil ao realismo e simbolismo. Considerações finais Inúmeras técnicas são utilizadas na mediação de substratos narrativos de uma mídia para outra. O empréstimo de motivos, códigos e convenções das artes plásticas para fins temáticos e estéticos em textos literários (poesia, ficção, drama, etc.) é uma prática recorrente que constitui importante impulso gerador para a caracterização de personagens, descrição da ambientação, Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 196 configuração da narrativa, dentre outros. Evidentemente, nesse processo de inserção pictural, o texto verbal assume diferentes contornos e feições, visto que toda espécie de transformação e manipulação é permitida, conforme postulam Clüver, Louvel e outros críticos. O texto Quando despertarmos de entre os mortos, de Ibsen, enriquecido com descrições de duas esculturas que, apesar de fictícias, podem ser consideradas ecfrásticas, no entanto, não é uma construção ecfrástica se examinado como um todo, ou seja, não é uma descrição ou representação do quadro de Munch por meio de signos verbais. Trata-se de um processo de apropriação e reconfiguração da temática simbolista do quadro Esfinge – Três estágios da mulher, utilizada como matéria ou substrato para a representação das três mulheres ou para a criação de Irene em três fases de sua vida ou, ainda, para a caracterização de Rubek que não consegue compreender as atitudes enigmáticas das mulheres. Como argumenta Claus Clüver, para detectar a permutação de ideias ou motivos (Stoff) de uma mídia para outra, é preciso que o leitor esteja familiarizado com o modelo, caso contrário as referências intermidiáticas não serão detectadas (CLÜVER, 2006, p. 142-143). Evidentemente, não podemos saber se Ibsen de fato inspirou-se no quadro do jovem pintor norueguês para criar as personagens femininas e suas relações com o escultor Rubek em sua última peça. Sabemos que, na juventude, o dramaturgo visitou inúmeras galerias de arte em suas andanças pela Europa, porque ambicionava tornar-se um pintor e que o rico simbolismo que permeia seus textos evidencia sua familiaridade com as artes plásticas. No entanto, em face da profusão de marcadores picturais que remetem a esse quadro específico de Munch, encontrados na caracterização das mulheres ou, segundo a minha leitura, na representação de Irene em diversas fases de sua vida, é válido considerar ambas as hipóteses dignas de nota – a que afirma e a que nega a influência de Munch sobre Ibsen. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 197 Notas Segundo Peter Wagner, ecfrase é um recurso poético ou retórico antigo que está sendo retomado e redefinido pelos críticos da contemporaneidade. O vocábulo é formado pelo prefixo “ek” ou “ec” que significa “originário de” ou “dentre”, e a raiz phrasis, um sinônimo do grego lexis ou hermeneia, e do latim dictio e elocutio (o verbo phrazein significa “contar, declarar, pronunciar”). Originariamente, o termo significava “uma descrição completa e vívida” e apareceu, pela primeira vez, nos escritos retóricos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso, tornando-se, em seguida, um exercício retórico praticado nas escolas (WAGNER, 1996, p. 11-12, minha tradução). 1 Na versão em inglês: “Whereas traditionally ekphrasis was confined to poems that describe or analyze works of art, it is now generally accepted and used as a term that applies to all literary genres, that is, novel, drama, as well as essay”. 2 Dois dos mais famosos exemplos de ecfrase literária que descreve objetos fictícios ou pinturas imaginárias são a descrição do escudo de Aquiles, no 18º livro da Ilíada e o retrato metamórfico de Dorian Gray, da obra ficcional de Oscar Wilde, intitulada O retrato de Dorian Gray. 3 Na última década do século XIX, Munch pintou uma série de quadros com motivos recorrentes, tais como representações da vida, do amor e da morte, ou seja, múltiplos olhares sobre os mesmos temas à maneira das frisas pintadas nas paredes de antigos templos e palácios. 4 Disponível em: < http://www.abcgallery.com/M/munch/munch29.html> Acesso em: 6 maio 2011. 5 REFERÊNCIAS BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno. Dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CLÜVER, Claus. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 107-166. ______. Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representation of Non-Verbal Texts. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans; HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p. 19-33. EIDT, Laura M. Sager. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film. Amsterdam and New York, Rodopi, 2008. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 198 IBSEN, Henrik. Quando despertarmos de entre os mortos. In: ______. Ibsen, seus dramas. Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo: Ediouro, s.d., p. 409-444. LANGSLET, Lars Roar. Ibsen Stage Company (2007): Henrik Ibsen and Edvard Munch. Trans. Patrick Nigel Chaffey. Disponível em: http://www.ibsenstage.com/ article-003.php. Acesso em: 03 maio 2011. LICHTENSTEIN, Jacqueline. O paralelo das artes. In: ___. (org.). A pintura – O paralelo entre as artes. Vol. 7. Coordenação da trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 9-16. LOUVEL, Liliane. A descrição ‘pictural’: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 191-220. MENEZES, Tereza. Ibsen e o novo sujeito da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2006. MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade. Aletria: Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, v. 6, 1998-1999, p. 42-65. PRIDEAUX, Sue. Edvard Munch: Behind the Scream. New Haven: Yale University Press, 2007. TEMPLETON, Joan. The Munch-Ibsen Connection: Exposing a Critical Myth (2000). Disponível em: http://depts.washington.edu/scand/isa/review/138/The_MunchIbsen_Connection_Exposing_a_Critical_Myth. Acesso em: 06 maio 2011. Anna Stegh CAMATI Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Editora da revista Scripta Uniandrade. Artigo recebido em 31 de maio de 2011. Aceito em 30 de junho de 2011. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 199 DOSSIÊS TEMÁTICOS DAS PRÓXIMAS EDIÇÕES 2012, v. 10, n. 1: Escrituras femininas brasileiras 2012, v. 10, n. 2: Escrituras femininas de expressão inglesa 2013, v. 11, n. 1: Representações do sujeito pós-moderno 2013, v. 11, n. 2: Representações de alteridades 2014, v. 12, n. 1: Textualidades memorialísticas 2014, v. 12, n. 2: Releituras contemporâneas do gótico Datas de submissão de trabalhos número 1: 30 de maio número 2: 30 de setembro Endereços eletrônicos para envio de trabalhos brunilda9977@gmail.com anniesc@bol.com.br Endereço para correspondência Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE Cidade Universitária Mestrado em Teoria Literária Scripta Uniandrade Rua João Scuissiato, n. 1, Santa Quitéria 80310-310 Curitiba, PR Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 200 NORMAS DA REVISTA 1 · · · · · · · · · · Os trabalhos entregues para apreciação e possível publicação na revista Scripta Uniandrade do Centro Universitário Campos de Andrade – Uniandrade – deverão seguir os seguintes parâmetros: Ser preferencialmente inéditos, de autores ou co-autores mestres, doutores e pós-doutores vinculados à uma IES. Ser redigidos em português, espanhol, francês ou inglês. Ter no mínimo 10 páginas (cerca de 4000 palavras) e no máximo 20 páginas (cerca de 8000 palavras). Incluir dois resumos (de 100 a 120 palavras cada um), antes do início do texto, um em português e outro em língua estrangeira. Incluir, após os resumos, palavras-chave (de três a seis) em português e na língua estrangeira. Ser digitados em folha A4, com espaçamento 1,5, fonte Arial, 11. Incluir no corpo do trabalho, entre aspas, citações de até três linhas. Citações com mais linhas devem ser destacadas do texto, alinhadas pela margem de parágrafo, digitadas com espaçamento simples, fonte Arial, 10, e não conter aspas. Não possuir notas (nem de rodapé nem de final de texto). Incluir referências às citações no próprio texto, entre parênteses. Exemplo: (MILLER, 2003, p. 45-47). As notas explicativas devem ser incluídas no final do texto. Seguir as normas da ABNT quanto à digitação das referências a serem incluídas depois da conclusão do texto. · Para livros, a entrada deverá ter o seguinte formato: GOMES, C. Metodologia científica. 2. ed. São Paulo: Atlântica, 2002. · Para artigos publicados em revistas e periódicos, a entrada deverá ter o seguinte formato: ALMEIDA, R. Notas sobre redação. A palavra, 2. série, Rio de Janeiro, v. 1, n. 4, p. 101-124, abr. 2003. · Para citação eletrônica, a entrada deverá ter o seguinte formato: LIMA, G. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: http://www.format.com.br. Acesso em: 21 set. 2006. · Ser enviadas aos editores, como anexo, via e-mail, sem identificação. A identificação deve ser enviada em outro anexo e conter o título do trabalho, o nome do autor, a titulação, a instituição da titulação, a instituição à qual está vinculado, o cargo que ocupa, o e-mail e o número do telefone. 2 Os autores deverão encaminhar parecer do Comitê de Ética de sua Instituição ou submeter seu trabalho ao Comitê de Ética da Uniandrade, se o Conselho Editorial achar necessário. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 201 3 O Conselho Editorial poderá recusar trabalhos que não atendam às normas incluídas acima. 4 Depois de aceitos pelo Conselho Editorial, os trabalhos de pesquisa serão submetidos ao Conselho Consultivo para leitura, análise e parecer. 5 Por via eletrônica, o Conselho Editorial comunicará ao autor a avaliação feita por membros do Conselho Consultivo. 6 Os artigos aprovados com restrições serão encaminhados para a correção dos autores. Nestes casos, a Comissão Editorial se reserva o direito de recusar o artigo, caso as alterações neles introduzidas não atendam às solicitações dos consultores. 7 O direito de cópia referente aos artigos publicados pertence a Uniandrade. 8 O envio do artigo para publicação implica a aceitação das condições acima citadas. Voltar para o Sumário Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, jan.-jun. 2011 202