Versão completa da revista - Revista Boitatá

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Versão completa da revista - Revista Boitatá
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
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EXPEDIENTE:
(Assis)
EDITORES:
Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
Profa. Maria das Dores Capitão Vigário Marchi
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra.Maria do Socorro Galvão Simões
Universidade Federal do Pará
ORGANIZADORES:
Dr. Mário Cezar Silva Leite
Universidade Federal de Mato Grosso
Dra. Mauren Pavão Przybylski
Universidade Estadual da Bahia
Dr. Piers Armstrong
University of California (Estados Unidos)
Dra Sylvie Dion
Universidade Federal do Rio Grande
Dr. Sílvio Jorge Renato
Universidade Federal Fluminense
COMISSÃO EDITORIAL:
Dra. Vanderci de Andrade Aguilera
Universidade Estadual de Londrina
Dra. Anna Christina Bentes
Universidade Estadual de Campinas
Profa. Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira
Universidade Federal da Grande Dourados
Dra. Cláudia Neiva de Matos (presidente)
Universidade Federal Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da Bahia
Dra. Eliana Mara de Freitas Chiossi
Universidade Federal da Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da Grande
Dourados
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
(presidente)
Universidade Estadual de Londrina
Dra. Ivete Walty
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais
Dr. J. J. Dias Marques
Universidade do Algarve (Portugal)
Dr. Jorge Carlos Guerrero
University of Ottawa (Canadá)
Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes
Universidade Federal do Pará
Dra. Josebel Akel Fares
Universidade Estadual do Pará
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do Sul
Dr. Luiz Roberto Cairo
Universidade Estadual Paulista
PARECERISTAS DESTE NÚMERO:
Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
Dra. Cláudia Neiva de Matos
Universidade Federal Fluminense
Dra. Edil Silva Costa
Universidade Estadual da Bahia
Dr. Eudes Fernando Leite
Universidade Federal da Grande Dourados
Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes
Universidade Federal do Pará
Dra. Lisana Bertussi
Universidade de Caxias do Sul
Dra. Maria do Socorro Galvão Simões
Universidade Federal do Pará
Dra Mauren Pavão Przybylski
Universidade do Estado da Bahia
Dra Normelia Parise
Universidade Federal do Rio Grande
Dra. Sylvie Dion
Universidade Federal do Rio Grande
Doutoranda Tassia Nascimento
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dra. Vera Lúcia Cardoso Medeiros
Universidade Federal do Pampa
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Boitatá: Vozes da Francofonia : Oralidade e Cultura Popular/ Organizadoras : Mauren
Pavão Przybylski, Sylvie Dion; Editores: Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Frederico Augusto
Garcia Fernandes. – Londrina, n. 17, jan./jul 2014. – 1 v.: il.; p. 295.
Semestral, jan./jul. 2014.
ISSN 1980-4504
1. Literatura – Periódicos. 2. Vozes da Francofonia : Oralidade e Cultura Popular –
Periódicos. I. Przybylski, Mauren Pavão II. Dion, Sylvie, III. Tettamanzy, Ana Lúcia Liberato
IV. Fernandes, Frederico Augusto Garcia. VI. Universidade Estadual de Londrina.
Boitatá, Londrina, n. 17, jan. Jul 2014
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Sumário
Apresentação
Mauren Pavão Przybylski e Sylvie Dion......................................................................... 9
Seção temática: Vozes da francofonia: Oralidade e Cultura Popular
Vozes do Quebec
“Autour de Fred Pellerin”
Bertrand Bergeron............................................................................................................ 13
“A última viagem ao país do Imaginário da América Francesa”
Jean Du Berger................................................................................................................. 26
Vozes d’Haiti
“Vodu: o Ounfò revisitado”
Maximilien Laroche........................................................................................................... 53
“ Literatura e oralidade no Haiti. A poesia em Crioulo de Georges Casteira
Normélia Parise.................................................................................................................. 73
Vozes da África
“A questão da identidade em Alain Mabanckou”
Paula Souza Dias Nogueira............................................................................................... 91
“Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas
contemporâneas”
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Alcione Correa Alves........................................................................................................ 103
“Romance africano de língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional”
Maria Suzana Moreira do Carmo........................................................................................ 118
“ Palavras: denúncia à violência e ecos identitários em Nga Fefa Kajinvunda, de Boaventura
Cardoso”
Maria Aparecida de Barros................................................................................................... 132
Vozes francófonas no Brasil
“Peias e Espartilhos: sátira popular à moda francesa na Primeira República”
Francisco Marques e Esequiel Silva.................................................................................... 147
“historiographies premières : a escritura poética oralizada como lugar de conhecimento”
Ana Rossi............................................................................................................................. 160
Seção livre
“A formação do acervo IFNOPAP: método ou prática?”
Alexandre Ranieri............................................................................................................... 177
“O lugar das poéticas orais”
Danieli dos Santos Pimentel e Josebel Akel Fares.............................................................. 190
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« Vozes poéticas : performance e memória nas narrativas cotidianas do Rio do Engenho
(Ilhéus / Bahia) »
Gisane Sousa Santa e Maria de Lourdes Netto Simões............................................................ 212
“Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho artístico From the
forest/ Da floresta de Luana Costa e Hedi Jaansoo”
Luana Costa................................................................................................................................ 232
“A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nnaordestinos”
Naelza Wanderley........................................................................................................................ 245
“O assassino do aqueduto e sua representação na literatura popular portuguesa”
Nilce Camila de Carvalho............................................................................................................ 267
“Clarice Lispector: oralidade, fabulação e recriação em doze lendas brasileiras”
Samuel Frison.............................................................................................................................. 283
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APRESENTAÇÃO
Este número especial será dedicado às literaturas orais e populares dos países de língua
francesa. Narrativas tradicionais e contemporâneas, patrimônio imaterial e patrimônio vivo,
renovação do conto e das artes da voz, histórias populares e histórias de vida estão dentro das
perspectivas que se pretende contemplar.
O leitor irá se deparar com manifestações literárias advindas de diversos países que têm o
francês como primeira ou segunda língua. O destaque será dado, contudo, a autores quebequenses
convidados a apresentar suas discussões no âmbito das oralidades.
Bertrand Bergeron, etnólogo quebequense, em seu “Autour de Fred Pellerin”, propõe-se não
simplesmente a inventariar a obra do referido escritor, a qual encontra-se em constante evolução,
dada a pouca idade do autor – mas em descrever e analisar a movência social e artística em que ela
se inscreve.
Já Jean Du Berger, etnólogo e professor aposentado da Universidade Laval, em seu artigo
intitulado “A última viagem ao país do imaginário da América francesa”, relata a viagem de seu
ancestral, Jean-Baptiste Du Berger, ocorrida em 19 de novembro de 1764. A reflexão vai retomar a
rota do imaginário da América francesa para revisitar os lugares de fala, saudar os contadores e as
contadoras e assistir ao circuito dos heróis dos contos e das personagens das lendas; o pesquisador
objetiva “retornar ao país da memória para tomar a palavra como se bebe da raiz”.
Do Quebec, passamos ao Haiti. Maximilien Laroche, professor de literatura aposentado da
Universidade Laval, nos traz “Vodu: o Ounfò revisitado”. O autor resume, em seu artigo, uma visita
a uma exposição em Nova Iorque sobre o vodu haitiano e as reflexões suscitadas em relação ao
vodu tal como é entendido no Haiti e além desse país.
Para discutir oralidade e literatura no Haiti, contamos com as reflexões da professora
Normélia Parise. Em “ Literatura e oralidade no Haiti. A poesia em crioulo de Georges Casteira”, a
autora sugere uma aproximação entre oralidade e literatura no Haiti, focando na produção poética
em crioulo de Georges Casteira.
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Das Antilhas viajamos para a África. Paula Souza Dias Nogueira expõe uma reflexão acerca
da questão da identidade na obra Mémoires de porc-épic, do escritor congolês Alain Mabanckou.
Como ponto de partida, a pesquisadora apresenta uma contextualização dos autores francófonos da
segunda geração pós-colonial para, em seguida, examinar as principais características de
Mabanckou.
Em “Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas
contemporâneas”, o professor Alcione Correa Alves propõe-se a analisar o texto de Nimrod "La
nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée", na obra coletiva Pour une littératuremonde (2007), assim como a leitura que Léopold Sédar Senghor apresenta ao Orphée noir, de JeanPaul Sartre.
Ainda em terras africanas, Maria Suzana Moreira do Carmo, em seu “Romance africano de
língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional”, procura, a partir do exame das
matrizes das literaturas africanas, avaliar os elementos da história recente da África ocidental, que
propiciaram o surgimento dos romances africanos de língua francesa.
Maria Aparecida de Barros, em seu artigo “Palavras: denúncia à violência e ecos identitários
em Nga Fefa Kajinvunda, de Boaventura Cardoso”, analisa a obra de contos Dizanga dia Muenhu,
do autor recém-citado, editada em 1977. A autora confere destaque ao fato de o escritor não ter se
disposto a traduzir o título do livro, evento que suscita a hipótese de que cabe ao leitor investigar o
termo em quimbundo, grupo etnolinguístico do povo banto, estética de valoração à cultura de
tradição oral africana.
Fechamos a sessão temática com dois artigos. Primeiro, “Peias e Espartilhos: sátira popular
à moda francesa na Primeira República”, no qual Francisco Marques e Esequiel Silva destacam que,
nas primeiras décadas da República, as ruas das principais capitais brasileiras, sobretudo do Rio de
Janeiro e do Recife, reurbanizadas nos moldes da Paris haussmanniana e bafejadas pela febre de
cosmopolitismo em que investia a Europa, ofereciam-se às mulheres como passarelas onde podiam
exibir seus modelos imitados ou importados, principalmente de Paris.
Em seguida, o artigo de Ana Rossi, expõe uma reflexão relativa ao projeto de escritura a
partir do poema da autora intitulado “historiographies premières” e desenvolve uma reflexão
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epistemológica que, questionando o campo historiográfico, institui a voz e a oralidade como
elementos fundamentais para a construção de um novo tipo de conhecimento a respeito da realidade
brasileira.
Na sessão livre, destacamos textos que se enquadram no escopo da revista: estudos de
oralidade e culturas populares; textos oriundos de abordagens culturais ou multiculturais e que
partam de diferentes campos de estudos, como Literatura, Antropologia, Ciências Sociais,
Psicologia, História e Linguística serão aqui contemplados.
Alexandre Ranieri, em “A formação do acervo IFNOPAP: método ou prática?”,
objetiva tratar do método entrevista do projeto IFNOPAP a partir do documento Achegas para
técnica e ética de coleta, com vistas a analisar os procedimentos adotados à luz tanto de folcloristas
como Renato Almeida (1965) e Oswaldo Cabral (1954) quanto de pesquisadores contemporâneos,
como Maria Inês de Almeida e Sonia Queiroz (2004) e Frederico Fernandes (2003). O artigo faz
parte da tese de doutorado do autor, ainda em andamento e na qual ele faz uso de autores
importantes, a exemplo de Marshall Macluhan (1972), Walter Benjamin (2001) e Paul Zumthor
(2010), dentre outros.
Danieli dos Santos Pimentel e Josebel Akel Fares, em “O lugar das poéticas orais”,
atrelam a escrita do artigo aos seus interesses para com as pesquisas envolvidas com as poéticas
orais. No referido artigo, as autoras se debruçam, sobre a tentativa de refletir a respeito de um tipo
de abordagem observada ao longo do texto e apresentam, de forma didática e teórica, os percursos
trilhados no decorrer da pesquisa.
Das metodologias e aplicabilidades passamos à performance propriamente dita,
enfatizada no texto “Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho
artístico From the forest/ Da floresta, de Luana Costa e Hedi Jaansoo”. Em sua análise, a autora
pretende aprofundar as investigações realizadas durante o processo de criação da obra From the
Forest/Da Floresta, trabalho sonoro e visual criado por ela em conjunto com Hedi Jaansoo
(Bergen) durante a disciplina do curso de Pós-Graduação “Voz, Texto, Coletividade”, ofertada pela
UERJ e ministrada por Ricardo Basbaum, no Brasil, em parceria com Brandon LaBelle, professor
da Academia de Belas-Artes da Noruega.
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Outra forma de performance é retratada por Naelza Wanderley, a partir das rimas e versos
nordestinos. No artigo “A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nordestinos”,
a pesquisadora propõe-se a desenvolver uma leitura comparativa a partir do texto português A
História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, enquanto “mediador” entre a
matéria carolíngea em terras brasileiras e poemas pertencentes à literatura de cordel nordestina.
Nilce Camila de Carvalho, no artigo “O assassino do aqueduto e sua representação na
literatura popular portuguesa”, apresenta a história de Diogo Alves, um célebre bandido português
do século XIX, que ficou conhecido como “O assassino do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa”.
A autora procura, neste artigo, refletir sobre a personagem, seus crimes e sua lenda, discutindo as
suas representações literárias e as explícitas intenções dos autores.
Gisane Santana e Maria de Lourdes Netto Simões, no artigo « Vozes poéticas : performance e
memória nas narrativas cotidianas do Rio do Engenho (Ilhéus / Bahia) », ojetivam analisar as
narrativas orais do Rio do Engenho, que são produzidas no cotidiano da comunidade, nas suas
práticas simbólicas,
a partir de um estudo desenvolvido interdisciplinarmente no espaço da
Literatura Comparada onde são estabelecidas convergências conceituais da teoria e crítica literárias,
da nova história e dos estudos da cultura.
Encerrando a Sessão Livre, Samuel Frison, em “Clarice Lispector: oralidade, fabulação e
recriação em doze lendas brasileiras”, Como nasceram as estrelas, investiga as marcas da oralidade
presentes na literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector. Além disso, o autor pretende recuperar
historicamente a recriação das fábulas contidas no volume Doze Lendas Brasileiras, publicado em
forma de calendário no ano de 1977 e, posteriormente, lançado em forma de livros infantis, com
reedições até a contemporaneidade. Por fim, recupera a face contadora de histórias da escritora, sua
capacidade de fabulação e ligação afetiva com o leitor mirim, bem como inúmeras confluências
culturais na recriação de histórias conhecidas do nosso folclore.
Boa leitura!
Mauren Pavão Przybylski e Sylvie Dion
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Vozes do Québec
AUTOR DE FRED PELLERIN
Bertrand Bergeron1
Resumo: O presente artigo propõe-se menos a listar um inventário da obra de Fred Pellerin - obra em constante
evolução principalmente em razão da idade jovem do autor - que descrever e analisar a esfera social e artística na qual
ela se inscreve, em que ninguém é o fruto de uma geração espontânea. A contribuição original deste contador de
histórias célebre em terras quebequenses será abordada numa perspectiva ao mesmo tempo diacrônica e sincrônica.
Palavras-chave: Fred Pellerin, conto, contador de histórias, lenda, mito, “oratura”, “litoratura”, literatura.
Résumé : L’article que voici se propose moins de dresser un inventaire de l’œuvre de Fred Pellerin — œuvre en
constante évolution en raison notamment du jeune âge de l’auteur — que de décrire et d’analyser la mouvance sociale et
artistique dans laquelle il s’inscrit, personne n’étant le fruit d’une génération spontanée. L’apport original de ce conteur
célébré en terre québécoise sera abordé dans une perspective à la fois diachronique et synchronique.
Mots clés : Fred Pellerin, conte, conteur, légende, mythe, orature, littorature, littérature.
Brève archéologie de la tradition orale québécoise
Bien que découvert officiellement en 1534 (d’un point de vue européen, s’entend), le Canada
n’est l’objet d’une occupation continue qu’à partir de 1608 avec la fondation de Québec par Samuel
de Champlain. Outre leurs maigres bagages, les premiers colons emportèrent avec eux, en plus de
leur langue et de leur foi religieuse, un immensurable héritage fait de traditions tant coutumières
qu’orales, véritables marqueurs de leur identité. Ce legs intemporel avait l’avantage de constituer un
patrimoine immatériel, de sorte qu’il ne risquait pas d’encombrer l’espace exigu des navires de
l’époque. Il était partout où se trouvaient ceux qui le portaient et qui ignoraient, le plus souvent,
qu’ils étaient les fiduciaires d’un tel trésor.
1
Ethnologue. 1151, 8e Rang Nord, Saint-Bruno en Lac-Saint-Jean, Québec, Canada, G0W 2L0, Tél. : 418 343-2880
Courriel : bertrand.bergeron@ymail.com
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Coloniser n’implique pas seulement s’emparer du sol pour s’y établir et s’y développer, il
consiste également en une vaste entreprise d’implantation de sa culture mise en présence et en
concurrence avec celle des indigènes, d’où les inévitables emprunts de part et d’autre. Si le
phénomène de l’acculturation bénéficie aux cultures hégémoniques en la nourrissant d’une sève
neuve, elle appauvrit les cultures minorisées au point de les acculer à la déculturation.
Pour m’en tenir qu’au patrimoine oral des colons français, de quoi était-il constitué? On y
recense avant tout deux grandes catégories qui relèvent du type de mémoire impliquée lors de leur
remémoration, c’est-à-dire lors de leur actualisation : la mémoire du mot à mot et celle des canevas.
Certains récits se rangent sous la rubrique de la littérature fixée au sens où les mots et l’information
appartiennent à la tradition. Le narrateur s’y révèle un passeur lié, entravé, un répétiteur en quelque
sorte. Sa narration est contrôlée et sanctionnée. Se tromperait-il qu’on le reprendrait en le
réprimandant ou en le raillant. Ainsi en va-t-il des proverbes, des dictons, des comptines, des
devinettes et des virelangues. D’une génération à l’autre, ces récits se transmettent
indéfectiblement, rébarbatifs à toute variation. « Pierre qui roule n’amasse pas mousse » se répète
depuis des lustres sans altération.
D’autres récits tolèrent l’intervention personnelle du narrateur sur un canevas fourni par la
tradition. Ce sont les contes et les mythes. Le narrateur est libre quant à la formulation d’une
information qui lui est imposée. Il peut personnaliser à l’envi sa manière de dire pourvu que le dit
respecte le scénario conventionnel. Cette liberté du locuteur n’est pas sans effets sur l’information,
car il s’y glisse inévitablement des variations que la tradition, sous l’impact de la répétition, finit par
intégrer par un phénomène analogue à l’épigenèse.
Enfin reste un troisième type de récits où l’information et la formulation appartiennent de
droit au narrateur. Ce privilège est tout de même balisé par la collectivité qui encourage ou évacue
tel ou tel type de discours. Ce sont les légendes, récits libres en apparence, évoluant à l’intérieur du
système de croyances d’une population donnée qui leur accorde un permis de circuler. Une
population d’obédience catholique découragera activement toute propagation de légendes hindoues,
par exemple.
Les colons français cultivaient naturellement ces genres de la tradition orale à l’exclusion du
mythe, domaine réservé à l’Église qui l’avait annexé pour des raisons d’orthodoxie et de magistère,
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et veillait rigoureusement à son intégrité, décourageant par le fait même toute tentative d’émergence
d’une mythologie populaire.
Les seuls mythes populaires en circulation sur le territoire de la Nouvelle-France étaient le fait
des Amérindiens qui trouvaient dans leur narration ce bien-être psychologique qu’apporte une
réponse concrète aux lancinantes questions qui taraudent la conscience de tout être humain : « Qui
suis-je? D’où viens-je? Où vais-je? » Leurs récits se faisaient cosmogonie, anthropogonie ou
théogonie selon les besoins et les urgences.
Cet état de fait perdura, en gros, jusqu’à la fin de la Deuxième Guerre mondiale. Deux
événements majeurs allaient chambouler le paysage bucolique de la tradition orale : la boîte à
images et la Révolution tranquille.
Boîte à images et Révolution tranquille
L’apparition de la télévision au début de la seconde moitié du siècle dernier allait transformer
radicalement la culture populaire et la pratique de ce que l’on pourrait, faute d’un autre mot, appeler
« orature » par opposition à littérature, la dénomination « littérature orale » relevant presque de
l’oxymoron. Faisons l’impasse sur l’irrésistible uniformisation sociale qui en découla — la
métropole (entendez Montréal) donnant le ton au reste de la province —, pour nous concentrer
uniquement sur le conte populaire.
Le conteur traditionnel, qui officiait dans la cuisine ou le salon lors des veillées de famille, dut
brutalement faire face à une concurrence qu’on pourrait qualifier de déloyale. Les moyens mis en
œuvre par le nouveau médium étaient sans commune mesure avec la sobriété et la rusticité de
l’approche technique de son art. Tout médium nouveau a comme contenu un médium ancien, pour
reprendre un aphorisme de Marshall McLuhan. Présentée comme une fenêtre qui ouvrait sur le
monde, la télévision déversait un déluge d’images qui captaient l’attention et instillaient une
dépendance envers le petit écran. Une kyrielle d’émissions pour enfants puisait, dans l’univers du
conte et de la légende, matière à nourrir ce monstre boulimique avide de contenu nouveau parfois
jetable après usage. Ainsi vit-on une poupée, Fanfreluche, s’inspirer de la tradition orale en
endossant le rôle de « trickster » pour intervenir dans la trame narrative afin de la détourner de la
trajectoire conventionnelle pour interroger la pertinence d’un motif comme si les personnages
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acquéraient dans cet exercice une conscience réfléchie qui leur octroyait provisoirement le statut de
personne.
La boîte à images en vint à bâillonner la bouche à images. Le conteur perdit sa pertinence
sociale avec son auditoire captivé ailleurs et fit comme tout un chacun : il s’est assied à son tour
devant le petit écran qui lui avait dérobé sa place et sa fonction. Plus tard, avec l’introduction des
jeux interactifs, le conte fut à nouveau sollicité. La compagnie japonaise Nintendo mit sur le marché
Super Mario Bros qui se répandit à la manière d’une déferlante. Le joueur, à travers une série
d’épreuves et d’obstacles, faisait délivrer par le héros auquel il s’identifiait une princesse présentée
comme récompense ainsi que le prescrit une fonction proppienne issue des recherches formalistes
russes qui alimentèrent la conception de ces jeux.
En septembre 1959, Maurice Duplessis décède. Son successeur prononce le mot qui ouvre sur
tous les possibles : « Désormais », avant de suivre, quelques mois plus tard, son prédécesseur dans
la tombe. Le Québec entrait en effervescence, et cette ébullition sociale trouva un écho dans la
province voisine qui qualifia cette renaissance de « Quiet Revolution », après avoir décrété
longtemps auparavant que la Belle Province était la « priest ridden province » — Paul Claudel
parlait plutôt du « Tibet du catholicisme ». Le régime duplessiste fut baptisé la Grande Noirceur,
notre Moyen Âge à nous selon une vision romantique empruntée à la France du XIX e siècle. Tout
ce qui rappelait cette époque fut honni sans autre forme de procès. On jeta le bébé avec l’eau du
bain. La Révolution tranquille devint une borne temporelle qui avait valeur de point d’origine. La
culture traditionnelle fut suspectée de conservatisme, de passéisme et d’obscurantisme. On la coiffa
du bonnet d’âne. Les conteurs firent le dos rond et se réfugièrent dans leur préhistoire pendant que
les Québécois préparaient dans l’enthousiasme leur grand rendez-vous avec l’Histoire. Rendez-vous
deux fois raté (1980 et 1995), le Québec et Porto-Rico demeurant les deux seules colonies de
peuplement dans les Amériques à avoir refusé leur indépendance.
Le conte nouveau
L’urbanisation accélérée du Québec a dilué jusqu’à les affadir les milieux naturels de
transmission tout en renouvelant radicalement les thèmes. Ce constat est particulièrement
perceptible dans les légendes qui épousent intimement les préoccupations existentielles des
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collectivités où elles circulent. Les références rurales n’interpellant plus l’imaginaire des citadins,
on a qualifié d’« urbains » ces récits qui scénarisent les angoissent de ceux qui les colportent alors
qu’il faudrait surtout parler de légendes contemporaines. Grosso modo, elles se concentrent autour
de trois axes générateurs d’insécurité — la nourriture, le sexe et la peur de l’autre — tout en
recyclant certains thèmes traditionnels afin de les remettre au goût du jour. La peur des fantômes
ressortit à ce cas de figure. Les médias de masse sont devenus leur milieu naturel de transmission de
sorte qu’on pourrait ranger ces récits de croyance sous la rubrique de légendes de masse, car elles
appartiennent d’emblée à la culture de masse elle-même fabriquée et mise en marché par l’industrie
culturelle. Leur dissémination pénètre jusqu’aux plus fines nervures de la Toile.
Le conte a pris une autre voie pour resurgir avec une vitalité nouvelle. Contrairement à la
légende qui ressortit aux arts de la conversation et préfère pour cette raison les échanges personnels,
le conte appartient d’emblée aux arts du spectacle. Plus intime dans sa version traditionnelle, il
élargit son public dans son actualisation contemporaine. Son évolution l’a conduit de « l’âtre au
théâtre », pour reprendre la belle formule de Christian-Marie Pons dans un article éponyme qu’il a
livré à la revue Jeu2. Il fait désormais partie de l’offre des arts de la scène. Le feu de camp ou la
cuisine qui l’ont vu naître n’évoquent plus qu’un lointain souvenir, une époque édénique hors
d’atteinte. La mue qu’il a subie l’a souvent rendu méconnaissable.
Au Québec, il est généralement admis que l’on doit à Yves Bienvenue3 et Stéphane F. Jacques
(à la salle Biscuit en 1991) cette métamorphose qui a transmuté le conte traditionnel en conte urbain
ou contemporain, serait-il plus juste de dire. Sa thématique est prévisible : le sexe, la drogue et le
béton. Mais à la différence des légendes contemporaines dans lesquelles les narrateurs se
cantonnent dans un anonymat de bon aloi et ne sont mentionnés qu’à titre d’« un ami d’un ami »
(un adua), les néo-conteurs recherchent frénétiquement la publicité qui les fera connaître comme
des créateurs à part entière. Sauf de notables exceptions (Michel Faubert, André Lemelin, Jocelyn
Bérubé pour ne retenir que ceux-là), ils produisent des œuvres signées qu’ils livrent sur la scène
devant des centaines de spectateurs anonymes confondus dans l’obscurité en une masse
impersonnelle. Ils font appel aux mêmes techniques que le théâtre : mise en scène du corps se
2
«De l’âtre au théâtre», dans Jeu 131, Contes et conteurs. Montréal, Cahiers de théâtre Jeu inc., 2009, p. 68-72.
3
Jean-Marc Massie. Petit manifeste à l’usage du conteur contemporain, Montréal, Planète Rebelle, 2001, p. 65.
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déplaçant dans l’espace, gestuelle et modulation de la voix, éclairage, décors, bruits de fond,
musique. Il arrive qu’on ne sache plus trop faire la différence entre un conteur disant son conte ou
un comédien endossant le personnage du conteur le temps de sa prestation. La ligne est ténue qui
sépare les deux rôles et il n’est pas interdit qu’elle soit franchie dans un sens comme dans l’autre. À
cette posture en équilibre fragile sur cette indécise ligne de démarcation s’ajoute le mélange des
genres qui répond à un idéal social occidental : le métissage. Dans un spectacle où se produisent des
néo-conteurs, le spectateur est exposé au conte à l’appellation d’origine contrôlée ou contemporain,
à la légende traditionnelle ou contemporaine, au récit de vie, à la nouvelle sans qu’il lui soit signalé
où loge tel ou tel récit. Le « je » est souvent de rigueur. Ce n’est plus la matière qui dira le genre,
mais la manière indéniablement empruntée au conteur.
Mais ce conteur, ce n’est plus cet artisan populaire qui a appris sur le tas à l’école des autres
conteurs, c’est un artiste de plein droit formé dans des institutions, souvent guidé par un metteur en
scène. Ses textes sont écrits par lui-même ou par d’autres, alors que dans la civilisation
traditionnelle les auditeurs étaient confrontés à une narration sans texte, le conteur produisant sous
leurs yeux à l’usage de leurs oreilles un récit qui naissait et mourait au fur et à mesure de sa
profération. Un récit ponctuel, en somme, en équilibre entre deux silences : il en naissait pour
mieux y retourner.
Un engouement qui ne se dément pas
Dès lors, comment expliquer l’engouement actuel pour le conte? Une précision s’impose : il
est indéniable que la situation québécoise participe d’un mouvement occidental et, sous bénéfice
d’inventaire, peut-être même planétaire. Pour ma part, je suis tenté d’y voir une double cause.
D’abord, une curiosité tardive de la part de la génération dite des « baby-boomers », bénéficiaire
plus qu’instigatrice de la Révolution tranquille, de la culture de leurs parents et de leurs grandsparents. L’âge venant, ce passé encore accessible dont ils pensent avoir fait table rase et lui avoir
réglé son compte, revient les hanter à la manière d’un fantôme inconsolé. Une sourde culpabilité
alimentée par des espoirs souvent déçus les amène à revisiter cette époque qui n’était peut-être pas
aussi étouffante qu’on a voulu le faire croire et ils se demandent comment leurs ancêtres vivaient,
quelles réponses ils ont trouvées pour juguler leurs angoisses existentielles, quelle était leur vision
19
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du monde. Les ayant précédés dans la vie, ces gens les ont précédés aussi dans la mort, peut-être
ont-ils quelque chose à leur apprendre sur la façon d’affronter les vicissitudes inhérentes au métier
de vivre. En récusant tout modèle, ils se sont privés de modèles. Quand il leur faut élire une
manifestation exemplaire de la culture populaire, ils choisissent celle qui ressortissait par le prestige
et le souvenir durable qu’elle a laissés. La narration des contes s’imposait d’emblée comme la plus
haute et la plus noble l’expression de cette oralité qui articulait alors les composantes de la vie
sociale et ne participait pas de cette ignorance dont elle avait été affublée avec condescendance.
À cela, il convient d’ajouter la nostalgie, ce sentiment d’avoir perdu en cours de route quelque
chose d’essentiel qui humanise la vie. Je parle ici de cette forme de nostalgie qui ébarbe les
souvenirs de ses aspects revêches et irritants. Ce faisant, un passé proche acquiert une dimension
aurorale, devient une valeur refuge où il fait bon se blottir pour se remettre d’un réel plus décevant
que gratifiant. Le conte permet cette évasion et ce dépaysement. Dans une société fortement
urbanisée, ces valeurs renvoient au monde rural devenu, pour l’occasion, le conservatoire de cette
convivialité et de cette empathie associée à la vie paysanne. La jeune génération, plus bardée de
gadgets électroniques que Neil Armstrong débarquant sur la Lune, l’a aussi compris et s’associe à
cette quête pour échapper à ses contacts sociaux hypermédiatisés. Il y a dans ce renouveau du conte
une incontestable quête d’authenticité, une authentique aspiration à une vie simple.
Le conteur, par sa présence charnelle, réunit devant sa personne des auditeurs désireux de
prendre congé d’eux-mêmes pour une aventure susceptible de rénover leur vie. Guidés par une
seule parole, ils font un rêve commun qui se décline toutefois selon l’expérience et l’imagination de
chacun. Une soirée de contes abolit la distance défiante qui s’est installée entre les êtres pour les
souder en une communauté narrative. Des individus qui protègent jalousement leur intimité dans un
anonymat distant découvrent les bienfaits de la vie unanime qui les apaisent comme un baume.
Art temporel s’il en est puisque les paroles ne se succèdent qu’en vertu du passage du temps,
le conte abolit ce temps pourtant nécessaire à sa réalisation en favorisant cette échappée d’euxmêmes que vivent les auditeurs afin de les conduire dans des contrées de nulle part. Alors que la
légende s’infiltre parmi les choses de la vie, le conte protège farouchement son extraterritorialité.
« Si Peau d’âne m’était conté », écrit le fabuliste4. Voici une formule rituelle qui ouvre sur tous les
4Jean
202.
de La Fontaine. «Le pouvoir des fables», dans Fables de La Fontaine, Montréal, Sélection du Reader’s Digest, 2010, p.
20
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possibles. Le conteur raconte comme ayant eu lieu des événements n’ayant jamais eu lieu. Le temps
passé est garant de la vérité de sa menterie. C’est dans ce contexte à la fois social et psychologique
qu’est apparu Fred Pellerin.
Fred Pellerin
Natif de Saint-Élie-de-Caxton, petit village du centre du Québec, Fred Pellerin a engrangé, au
cours de son enfance et de son adolescence, quantité d’anecdotes villageoises. Elles se sont
agglomérées au fil des ans pour former cet humus fertile qui nourrit son art savoureux. D’entrée de
jeu, il s’est placé sous le haut patronage d’une mère-grand (Bernadette Pellerin) au verbe coloré qui
mastiquait ses récits avec un dentier taillé dans du bois d’érable, héritage transmis de mère en fille
pour faciliter cette « manducation de la parole » célébrée par Marcel Jousse5.
Intronisé par un si haut parentage, Fred Pellerin s’inscrit en toute légitimité dans cette lignée
indéfectible de conteurs de cuisine qui ont assuré la pérennité du conte en disant le monde après
l’avoir cuvé dans leur imagination. Dans mon village, il y a belle Lurette6 contient en germe ce qui
deviendra une œuvre sans commune mesure — sa grand-mère aurait préféré « dépareillée » — dans
le paysage médiatique et littéraire québécois. Il est délicat de définir la place exacte qu’il occupe sur
la scène artistique : conteur, humoriste, écrivain, monologuiste, chanteur, scénariste? Empruntant à
l’un et à l’autre, il est un peu de tout cela et plus encore comme nous le verrons plus loin. Artiste
célébré, chacune de ses productions lui vaut sa moisson de récompenses.
Sur les scènes occupées à 75 % par des humoristes qui saucissonnent des tranches de vie au
grand plaisir du tout riant, Fred Pellerin se démarque radicalement. Il ne recourt pas à une armée de
scripteurs pour pimenter ses spectacles de lignes bien senties, son univers étant trop familier et trop
marqué par sa personnalité pour être recréé par un tiers. Ce qu’il livre au public et aux lecteurs,
c’est un univers-monde à la fois réel dans son irréalité et irréel dans sa réalité. Saint-Élie-de-Caxton
existe de deux manières intimement interpénétrées. Il relève d’abord de la géographie avant
d’accéder à l’imaginaire. Le village en entier devient le matériau de sa propre fabulation, la réalité
alimentant la fiction qui la nourrit par un juste retour des choses. Dans les récits de Fred Pellerin,
5
Marcel Jousse. La Manducation de la Parole, Paris, Gallimard, 1975, 287 p.
6
Fred Pellerin. Dans mon village, il y a belle Lurette, Montréal, Planète Rebelle, 2001, 141 p.
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son village s’irréalise pour exister davantage dans la réalité au point de faire accourir des vagues de
touristes qui veulent mettre leurs pieds dans les pas d’êtres imaginaires qui n’ont jamais arpenté les
rues et discuter avec des êtres réels qui surabondent d’existence depuis qu’ils font parler d’eux.
Ceux qui visitent cette « mini-cipalité7 » comme la définit le conteur, déambulent dans un
univers en instance de prodiges. Une affiche signalétique les avertit qu’à tel endroit se trouve un
passage à lutins. Ces petits bonshommes occuperaient donc une partie invisible du territoire et
peuvent apparaître à tout moment par une sorte de pirouette spatio-temporelle qui rend possible le
passage d’une dimension à l’autre? Ainsi donc, ce panneau signalétique borne-t-il l’indécise
frontière qui sépare le conte de la légende. Aussi longtemps qu’un lutin n’aura pas été signalé par
un quelconque témoin qui jurera l’avoir vu de ses deux yeux vu, son existence problématique relève
du conte et enchante ceux qui souhaitent s’égarer un jour dans des dimensions parallèles. Si
l’occurrence advient et qu’un lutin pointe le bout de son nez, Saint-Élie-de-Caxton fermera son
grand livre de contes pour s’ancrer solidement dans celui des légendes dans lequel s’interpénètrent
le quotidien et le surnaturel. Ce panneau sert un avertissement : le marcheur arrive à une croisée de
chemins symbolique et doit choisir sa voie : celle du conte ou celle de la légende.
C’est cette faculté d’ajouter au réel sa part de merveilleux, de doser avec justesse réalité et
fiction pour engendrer du réalisme fantastique qui fascine ceux qui assistent à ses spectacles ou qui
lisent ses livres. Cette magie opère sans ces effets spéciaux qui alourdissent les manifestations du
merveilleux en les ravalant au rang de prouesses techniques comme on le constate trop souvent au
cinéma. Tout passe par la parole parce que sa fantaisie est habitable. Les contes de Fred Pellerin
offrent un terrain fertile aux analyses stylistiques. L’« Orifice de la langue française8 », comme il
s’est plu à rebaptiser l’organisme, n’en a pas fini de traquer ses métamorphoses langagières. Le
conteur déploie une inventivité qui rappelle Rabelais. Et suprême hommage au maître, son célèbre
contrepet — « femme folle à la messe » — nous est ramené de la manière la plus inattendue.
Tel Hugo qui se piquait d’avoir mis « un bonnet rouge au dictionnaire », Pellerin peut se
targuer d’avoir prouvé qu’en faisant leur entrée dans le Petit Robert, les « bobettes » ont réalisé le
tour de force de permettre au Petit Robert lui-même d’entrer dans son dictionnaire. Sa
7
Idem, p. 12.
8
Idem, p. 17.
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démonstration est limpide comme l’œuf de Colomb : « bobette » est le diminutif de « bob » qui
signifie Robert. Simple, certes, mais encore fallait-il y penser! Économie des moyens, maximisation
de l’effet.
Faisant fi avec un souverain dédain des diktats des censeurs de la langue, il reformule les mots
avec cette verdeur et cette liberté que s’est toujours octroyées le parler populaire. La langue de
Pellerin relève de la parlure. L’imagination devient de l’imaginance : tout le monde saisit le sens et
accepte la métamorphose qui rajeunit la chose. L’imaginance, c’est de l’imagination avec un
surcroît de fantaisie. Une rapide recension des procédés stylistiques de l’auteur rassemble à foison
le calembour, le contrepet, le faux proverbe (« […] tout allait pour le monde dans le meilleur des
mieux9»), l’homophonie, la paronymie. L’hyperbole occupe une place non négligeable. À cet égard,
la description d’Ésimésac constitue un morceau de bravoure qui rappelle la chanson de Tex Lecor :
Le dernier des vrais. Onésime-Isaac Gélinas « était l’homme fort de mon village : un colosse pesant
aux alentours dans les huit cents livres de muscles — sans compter ni les os, ni la peau! —.
Tellement grand, le bonhomme, qu’il devait acheter de la colonne vertébrale en rouleau de quinze
pieds. Avec ça, attachés aux épaules, des bras qui traînaient à terre, puis des mains plus grandes que
des rames10». L’exagération est un trait familier de la jactance populaire.
Qui lit ou entend Pellerin lors d’un spectacle se retrouve enseveli sous un amas de perles
langagières qui sortent à profusion de la bouche du conteur à l‘instar de cette jeune fille, dans Les
Fées de Perrault, qui répandait des diamants en guise de discours. Qu’on en juge plutôt sur pièce :
« Oui! Du temps, de reste, pour toujours. Toujours, puis même un peu plus après. Ça fait
longtemps, ça! Aujourd’hui, ti-gars, avec les cadrans qui tic-taquent à batterie, l’éternité a refoulé
d’un bon bout. Par les temps qui courent, ça marche plus. Garrochés pour travailler, manger puis
dormir, on se grouille même quand vient le moment de l’agrément. C’est rendu qu’il faut éjaculer à
la première précocité pour sauver des minutes. C’est rendu que même le poulet puis le jambon sont
pressés11».
9
Idem, p. 13.
10
Idem, p. 27.
11
Idem, p. 11.
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Puis que chaque auteur crée ses prédécesseurs comme l’écrivait Borges, Fred Pellerin s’inscrit
dans une longue lignée d’écrivains qui ont fait de la langue un matériau docile à leurs explorations
littéraires. Outre Rabelais déjà mentionné, on pourrait mentionner Prévert, Queneau et bien d’autres
dans le champ de la littérature française. Pour nous en tenir au Québec, mentionnons Yvon
Deschamps, illustre ancêtre dans sa version urbaine, Marc Favreau dont le personnage de Sol
s’amusait à pétrir la matière sonore pour en tirer des mots nouveaux où se reconnaissaient encore
ceux d’origine afin de donner à réfléchir sur l’état du monde.
La filiation qui me paraît la plus prometteuse, à titre comparatif, nous oriente vers ClaudeHenri Grignon, auteur immensément connu pour son roman Un homme et son péché qui donna lieu
à un feuilleton radiophonique éponyme pour être finalement adapté pour la télévision sous le titre
évocateur Les Belles Histoires des pays d’en haut. De prime abord, tout devrait séparer ces deux
créateurs. Mais en y regardant de plus près, leurs ressemblances sont plus notables que leurs
différences. Grignon situe son œuvre dans son village natal, Sainte-Adèle. Il mêle habilement
personnages fictifs (Séraphin Poudrier, Alexis Labranche) et personnes bien réelles dont certaines
ont une dimension nationale (le curé Antoine Labelle et Arthur Buies) dans une trame narrative qui
emprunte au réalisme. Son protagoniste s’est acquis une telle renommée qu’il est devenu, par
antonomase, le prototype québécois de l’avare mesquin au point que Grignon s’est vanté d’en avoir
tué le nom, aucun parent québécois ne désirant prénommer Séraphin l’un de ses enfants.
À l’exemple de Grignon, Fred Pellerin a hissé son village natal au rang de lieu mythique de la
province. Là où il semble se démarquer de son illustre prédécesseur tout en s’inscrivant dans sa
trajectoire narrative, c’est dans cet amalgame de réalité et de merveilleux où personnages réels et
fictifs se croisent sans s’étonner de se retrouver dans la même trame narrative qu’on peut assimiler
au réalisme fantastique.
Cette parenté plus spontanée que revendiquée renvoie son œuvre écrite comme ses prestations
publiques à la chronique. De même que Grignon écrivait la chronique de Sainte-Adèle, Pellerin se
fait l’historiographe inventif de Saint-Élie-de-Caxton. En sa personne se consomme l’union intime
du conteur au verbe coloré et du chroniqueur attentif à la vie secrète de son village. La manière de
l’un rejaillit sur la matière de l’autre.
Au confluent de l’orature et de la littérature, n’emprunte-t-il pas la voie mitoyenne de la
« littorature »? Ce dernier terme m’a été suggéré par l’écrivain André Gervais dans un échange de
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courriels portant sur l’orature. « Quant à la littérature orale, soutenait l’auteur, (ou à la littorature :
l’oral, ici, est au sein de l’écrit, de l’écrit littéraire, du texte), eh bien, c’est tel corpus accumulé, plus
ou moins bien transcrit, actuellement publié ou non. Il peut alors être confronté à toutes les
tentatives de création, dans une œuvre littéraire par exemple, d’une parole populaire plutôt
folklorique ou plutôt moderne12. » Il est clair, dans l’esprit de Gervais, que c’est la littérature qui
demeure l’aboutissement de toute tentative d’oralisation de la parole vivante dans une écriture à
destination esthétique. Je lui concédai ce point avec la nuance que, pour l’ethnologue, le recours à la
transcription n’était qu’un moyen provisoire pour figer et mettre à distance les récits de l’orature
afin de les analyser pour mieux les y retourner. Dans cet échange, je percevais la littorature comme
un point d’appui pour mieux rebondir vers le genre initial, alors que Gervais en faisait un genre
transitoire.
Pour ma part, je rapprocherais Fred Pellerin du funambule qui avance sur un fil d’acier en
trouvant un équilibre dynamique grâce à un balancier dont l’un des bouts pèse son poids d’orature
et l’autre celui de la littérature.
Ses chroniques orales de Saint-Élie-de-Caxton s’expriment dans un parler qu’on pourrait
nommer parlure qui, à mon humble avis, hausse le parler populaire québécois vers un sommet
indépassable où elle brille de mille feux avant de disparaître. Car le milieu de vie qui la permettait,
c’est-à-dire une certaine culture populaire rurale et villageoise, disparaît progressivement sous la
poussée irrésistible d’une modernité citadine. Aussi est-on en droit de s’interroger sur l’avenir de
cette œuvre éminemment poétique. Fred Pellerin sera toujours lu? La qualité esthétique de ses écrits
est garante de sa pérennité. Mais sera-t-il toujours entendu? La réponse est moins tranchée. Tout est
ici affaire d’oreille.
Le chroniqueur-conteur possède une façon bien à lui de faire sonner la langue, de la faire
chanter pour notre enchantement. Il est probable qu’on ne retiendra de ses spectacles que cette
musique subtile et envoûtante d’une parlure en perte de terrain devant une urbanité conquérante. Ce
qui pose une question connexe : à l’instar des conteurs traditionnels qui ajoutaient leur maillon à
une longue chaîne de transmission, Fred Pellerin engendrera-t-il une filiation ou demeurera-t-il un
créateur solitaire, c’est-à-dire unique dans son créneau? Ici, il faut revenir sur le sens même du
12
Courriel reçu le 6 mars 2013.
25
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conte traditionnel. Ce dernier n’a pas d’auteur et n’est pas un texte. Sans auteur et sans texte, il
n’existe que dans l’instant de sa narration. Sa survie est assurée par des générations de conteurs
anonymes qui l’ont bénévolement transmis à travers les âges. Ils ne se considéraient jamais comme
des créateurs. Le rôle de passeur leur convenait et ils s’en honoraient. La transformation de la
civilisation traditionnelle en civilisation contemporaine s’est accompagnée du passage de la société
de participation à la société de représentation qui discrimine les consommateurs de culture des
créateurs. Contrairement au conteur traditionnel, le conteur contemporain aspire à la renommée
individuelle qui lui permettra de vivre de son art. Le nirvana de la tradition ne lui convient pas. Il
veut bien s’en inspirer à la condition d’y laisser une trace repérable dans l’espace et dans le temps.
Il entend bien laisser derrière lui un imaginaire qui échappera à l’oubli. Aux œuvres anonymes, il
oppose ses textes signés.
Personne ne peut contester l’originalité et l’inventivité de Fred Pellerin. Il a marqué
l’imaginaire des Québécois et le marquera encore pour longtemps. Ses écrits et ses spectacles sont
si intimement associés à sa personnalité qu’ils transcendent le destin collectif pour imposer leur
originalité. À ce titre et contrairement au conteur traditionnel, il ne s’inscrit pas dans une chaine de
transmission pas plus qu’il n’en sera le premier maillon. Privilège du créateur, il n’aura pas de
continuateur. D’aucuns s’essaieront peut-être à l’imiter, mais en vain.
Sans continuateur ni imitateur, Fred Pellerin signe une œuvre durable qui ne rendra compte
qu’à elle-même. S’il est vrai, comme l’écrit Patrice de La Tour du Pin, dans le « Prélude » à La
Quête de joie, que « Tous les pays qui n’ont plus de légende/Seront condamnés à mourir de
froid13… », alors Saint-Élie-de-Caxton et le Québec en son entier coulent des jours heureux bien au
chaud dans son imaginaire solaire.
13
Patrice de La Tour du Pin. La Quête de joie, Paris, Gallimard, 1967, p. 25.
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ÚLTIMA VIAGEM AO PAÍS DO IMAGINÁRIO DA AMÉRICA FRANCESA
Jean Du Berger1
Resumo: Este artigo nos propõe uma viagem pelo imaginário da América Francesa, vasto território espiritual e
imaterial, e nos apresenta os contos, as lendas e os seres fantásticos que acompanharam sua chegada ao continente.
Palavras – chave: Contos, lendas, imaginário, América Francesa.
Résumé: Cet article nous propose un voyage à travers l’imaginaire de l’Amérique française, vaste territoire spirituel et
immatériel et nous présente les contes, les légendes et les êtres fantatisques qui ont accompagnés les premiers arrivant
sur le continent.
Mots-clés: Contes, légendes, imaginaire, Amérique française.
No dia 19 de novembro de 1764, meu ancestral, Jean-Baptiste Du Berger, atravessava o rio
Detroit para assistir, na condição de testemunha, ao casamento de Charles Bernier e Marie-Louise
Gaudet, celebrado pelo padre Potier, da paróquia da Assunção. No dia 07 de janeiro de 1765, no
mesmo lugar, André Bénéteau também testemunhara um casamento: o de Charles-Dominique
Janson e Marie-Anne Bineau. 237 anos mais tarde, a convite de Marcel Bénéteau, eis que caminho
nos passos de meu ancestral, em Windsor, na ocasião do colóquio comemorativo do tricentenário da
fundação de Detroit.
Nessa ocasião, mais uma vez, a última talvez, eu retomo a rota do imaginário da América
francesa para rever os lugares de fala, saudar os contadores e as contadoras e assistir ao circuito dos
heróis dos contos e das personagens das lendas. Retorno ao país de memória para tomar a palavra
como se bebe da raiz.
1
Jean Du Berger é professor aposentado de literatura quebequense e de etnologia da Universidade de Laval. Suas
principais áreas de pesquisa são os contos e as lendas da América francesa, assim como as memórias urbanas e
rurais. Suas publicações versaram sobre a história dos estudos do folclore no Canadá, a literatura oral e as memórias
urbanas. Título original: Dernier voyage au pays de l´imaginaire da América francesa, publicado em Le passage du
Détroit, 300 ans de présence francofone, dirigido por Marcel Bénéteau, University of Windsor, 2003, p. 193-216.
Texto traduzido por Rosa Rockenbach.
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Trilhar o país
No pano de fundo, um continente. Grande terra da América de neve e de gelo e do brotar
da vegetação na primavera; do verão luminoso e do outono flamejante. Depois, há a caminhada
dos homens sobre a Grande terra da América, esta lenta marcha dos homens e das mulheres
vindos da Ásia, esta paciente caminhada pelos rios e lagos e afluentes. Conquista da grande terra
pelos vales, montanhas, através de florestas profundas e de intermináveis pradarias até as terras
secas do sul, e mais, sempre mais longe, até a Terra do Fogo. Pescadores, caçadores, negociantes
de peles, agricultores, de oeste a leste, eles se fixaram, adaptando-se à terra abundante em peixes,
caças e frutas.
Vamos nomeá-los. Na costa do Pacífico, Haïdas, Kootenays, Salish, Tsimshians,
Wakashan, Tlinkits. De Rochosas ao rio Mackenzie, até a baía de Hudson, Athapascans e
Chipewyans. E os Cris das planícies e os Cris das florestas. Do Atlântico aos Grandes Lagos,
Micmacs, Abénaquis, Etchemins, Montagnais, Naskapis, Algonquins, Népissingues, Outaouais,
Ojibways, Pieds-Noirs. E também Wendats, Ériés, Pétuns e Iroquois das Cinco Nações. Na ilha
de Terra-Nova, Beothuk. Enfim, nos vastos espaços do norte, Inuit. E na sombra, circulamos
personagens que vivem nas antigas
narrativas: Wisakketkak ou Whiskey Jack, Carcajou,
Tshakapesh, Gluskap, Mahtigwess e principalmente o grande Nenabojo.
Mais tarde, virão da Europa vikings, portugueses, espanhóis. E Giovanni Caboto e Gaspar
Corte-Real e Giovanni da Verrazano... E pescadores bascos e bretões que pescavam no Grande
Banco de Terra Nova. Depois, em 1534, Jacques Cartier e, em sua trilha, lentamente, aqueles e
aquelas cujos nomes ainda encontramos em terra americana; garimpeiros e comerciantes de pele
que sonhavam com ricos reinos de jade e seda.
De Tadoussac, da ilha de Sainte-Croix, de Port-Royal, de Quebec, depois de Montreal,
eles retomaram as longas rotas dos rios das Primeiras Nações. Samuel de Champlain foi à baía
Georgienne; Étienne Brûlé, em Sault Sainte-Marie; Jean Nicollet de Belle Borne ao lago
Michigan; Médard Chouart Des Groseillers e Pierre-Esprit Radisson ao lago Superior e ao Alto
Mississipi; o padre Claude Allouez ao lago Nipigon. René-Robert Cavlier de La Salle atinge o
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Ohio e o Illinois; Louis Jolliet e o padre Jacques Marquette, ao Alto Mississipi; René-Robert
Cavelier de La Salle, mais uma vez, à embocadura do Mississipi. Entre o lago Superior e o lago
des Bois, Jacques de Noyon tomou o caminho do Grand Portage, Antoine Laumet, conhecido
como Lamothe, senhor de Cadillac, estabeleceu o forte do Detroit e Jean-Baptiste Le Moyne de
Bienville foi até a baía de la Mobile, depois a Nova-Orléans. Pierre Gaultier de Varennes da
Vérendrye, passando pelo lago La Pluie e o lago des Bois, subiu o rio Vermelho e o Assiniboine,
passando pelo lago Winnipegosis e pelo rio Saskatchewan.
Os viajantes subiram outros rios. Fort de Chartres, Fort Crèvecoeur e Vincennes na
confluente do Wabash e do Ohio e Kaskaskia lembram a passagem deles. Graças a esses
viajantes dos Pays d’en haut, Alexander Mackenzie chegou ao rio que leva seu nome, e Simon
Fraser desceu outro rio que também leva seu nome. François Larocque foi ao país dos Mandanes
e Gabriel Franchére, após ter contornado o cabo Horn, chegou à embocadura do rio Columba, de
onde retorna a Montreal por via terrestre.
A fala viva
E todos esses passos e todas essas remadas definiram um espaço da terra da América. Ao longo
dos rios percorridos pelas canoas dos coureurs de bois 2e as rabaskas3 dos viajantes, nos fortes e
postos de comércio, mais tarde na casa das velhas paróquias em vigília, assim como nas cabanas
dos países de colonização, homens e mulheres cantaram; homens e mulheres contaram. Eles
trouxeram da Normandia, da Bretanha, da Île-de-France e do Poitou contos e lendas e canções
que eles retomaram do Forte Sainte-Anne em Arcadie ao Forte Vancouver, às margens do
Pacífico, do Forte Sept-Île ao Grande Lago des Esclaves, de Lachine ao Grand-Portage. Em seu
ato de contar e de cantar, emergia a fala contadora, jorrava a fala cantadora, efêmera performance
que, no tempo do conto ou da canção, oferecia aos olhos e aos ouvidos obras por vezes antigas e
novas, conservadas na memória dos portadores e portadoras da tradição. De boca a orelha, as
“Historicamente, a expressão coureur des bois foi utilizada durante o período colonial canadense para designar
nômades, comerciantes de pele que viajaram em comunidades autóctones, no início da colonização francesa no
Canadá, até as primeiras décadas do século XIX”. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário de figuras e mitos literários
das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial / Editora da UFRGS, 2007, p. 154.
3
Grandes canoas, feitas de casca de tronco, utilizadas principalmente por ameríndios.
2
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comunidades falantes e cantantes assim transmitiram lentamente as obras de tradição oral, que se
espalharam como águas subterrâneas, irrigando o imaginário tradicional.
Definir-se pela escritura
Esta tradição apareceu progressivamente na escrita. No ano do início dos "conflitos" no BasCanadá, em 1837, um rapaz (de 23 anos), Philippe-Ignace-François Aubert de Gaspé, publicou, na
editora William Cowan, no Quebec, L’influence d’un livre: roman historique. Trata-se do primeiro
romance do país que traz “lendas”, tais como a do “Diable beau danseur”. A tormenta política
prosseguiu. 1838: nova insurreição, duramente reprimida. Doze patriotas foram executados; outros,
exilados. John George Lambton, conhecido por Lord Duham, veio pesquisar sobre os "conflitos e,
em seu relatório, lê-se: “Não se pode de forma alguma conceber nacionalidade mais desprovida de
tudo aquilo que pode vivificar e elevar um povo do que os descendentes dos franceses no BasCanadá, pelo fato de terem mantido a língua e seus costumes "particulares". É um povo sem história
e sem Literatura”.
Em 1845, na Histoire du Canada depuis sa découverte jusqu’à nos jours, François-Xavier
Garneau proferirá abertamente a história dessa “nacionalidade a mais desprovida de tudo”. E uma
geração de escritores dará forma a uma literatura que brotou dos contos e das lendas. Em Paris, no
ano de 1853, James Huston publicou uma antologia, Légendes canadiennes; na sequência,
coletâneas e romances se sucederam: Légendes canadiennes, do abade Henri-Raymond Casgrain e
“Voyage autour de l’Île d’Orléans”, do doutor Hubert La Rue, em 1861; Les Anciens Canadiens, de
Philippe-Joseph Aubert de Gaspé, assim como “Forestiers et voyageurs; étude de moeurs”, de
Joseph-Charles Taché, em 1863. No final do século, Honoré Beaugrand lançou em Montreal La
Chasse-galerie: légendes canadiennes. Essas obras transformavam as performances orais em objetos
literários, eco do ato narrativo original, tradução, por assim dizer, da narrativa viva. O recurso à
pesquisa de campo permitirá ouvir, de certa forma, os contadores e contadoras.
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Os portadores da tradição: contadores e contadoras, cantores e cantoras
É com Alcée Fortier que uma das primeiras pesquisas de campo será desenvolvida em
Vacherie, na Luisiana, ou seja, na América francesa. A publicação da coletânea Louisiana FolkTales in French Dialect and English Translation, em 1895, abria perspectivas relativas aos
contadores e às contadoras. No Canadá, Marius Barbeau, antropólogo na Comissão de Geologia em
Ottawa, encontrava, em abril, o abade Prosper Vincent, depois outros informantes de Wyandotte e
de Seneca Reservation, em Oklahoma, de Seneca no Missouri, de Amherstburg em Ontário e de
Lorette no Quebec. Barbeau reuniu os mitos e contos de grandes testemunhas da tradição oral dos
Wendats, como Catherine Johnson e seu filho Allen, B.N.O. Walker, Star Hiram Young, Smith
Nicols e Mary Mckee e, na subida, uma contadora influente, Kitty Greyeyes.
Em Nova Iorque, em janeiro de 1914, na ocasião do encontro anual da American Folklore
Society, Franz Boas perguntou a Marius Barbeau:
“Existem, no Canadá, contos antigos, tais como os contos de fada de outrora?” Barbeau evocou os
contos de Louis Fréchette e de certos escritores do século XIX e mencionou contos da família Sioui
de Lorette: “La Princesse des Sept-Montagnes-Vertes”, L’eau de la Fontaine de Paris”, “Le Corpssans-âme”4, contos que lhe causaram uma “profunda impressão”, mas que ele não coletou “porque
eram franceses demais e de uma aparência excessivamente literária”. Franz Boas incentivou o
jovem pesquisador a se interessar por esse repertório para compreender a presença de temas
europeus no “corpus” ameríndio.
Barbeau retomou a pesquisa junto a Prudent Sioui e sua esposa, seus primeiros contadores.
Esse primeiro contato com a arte dos contadores lhe fez descobrir uma tradição viva, ameaçada de
desaparecer, da qual era necessário fazer, indiscutivelmente, o inventário científico. O etnólogo iria
alargar seu campo de pesquisa, descobrindo, assim, sua própria tradição. Já em Lorette lhe haviam
dito: “Senhor, em nenhum outro além daqui você poderá encontrar contadores ou cantores como
4
A princesa das sete montanhas verdes, A água da fonte de Paris, O corpo sem alma.
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nas montanhas, do outro lado do Cabo Tourmente”. Tratava-se da região de Charlevoix, país dos
serões animados não somente pelos moradores, mas também por esses “mendigos peregrinos” nos
quais Barbeau reconheceu os últimos trovadores.
No município de Les Éboulements, a senhora Gédéon Bouchard, de 76 anos, possuía um
repertório de 52 contos que aprendeu em Saint-Fabien: “Em nossa casa, eles se reuniam à noite.
Aqueles que não sabiam nenhum conto cantavam e os que não sabiam cantar, contavam contos”.
Eram reuniões de inverno. “Nós nos reuníamos com frequência”. Outros contadores de Charlevoix
se fizeram ouvir. Havia Jean-François Bouchard, o velho Joseph Mailloux, Marcel Tremblay e
principalmente Louis “L’Aveugle” Simard. Babeau descreveu-o da seguinte forma: “L’Aveugle,
sempre espontâneo, desenvolto, misturava as réplicas e as graçolas em suas canções, acompanhadas
habitualmente de seu violino, como os trovadores medievais; assim que lhe dirigiam a palavra, ele
replicava: “Um buraco, uma cavilha!”, como ele mesmo dizia. Às vezes lhe faziam piadas um tanto
licenciosas, e ele respondia no mesmo tom, pois também conhecia o sal de seus ancestrais”.
Vinte anos mais tarde, a descoberta do patrimônio dos contadores e contadoras continua com
Luc Lacourcière e Félix-Antoine Savard no âmbito dos Arquivos de Folclore da Université Laval.
Com a Irmã Marie-Ursule, cuja tese orientava, Luc Lacourcière encontrou em Sainte-Brigitte de
Laval a senhora Édouard Sanschagrin. Depois, em Charlevoix, com Félix-Antoine Savard, outros
contadores e contadoras vieram testemunhar com eloquência da vitalidade da tradição oral. Estavam
todos presentes, respondendo ao chamado, muitas vezes “ao final da vida”. Em Clermont, Médéric
Bouchard; em Saint-Irénée, Joseph “Palémon” Gauthier; em Saint-Siméon, Charles-Édouard
Bouchard; em Port-au-Persil, Thomas Dallaire e em Les Éboulements, Pierre Pilotte. Em
Shippagan, Octave Chiasson e Uldéric Hébert. Em Saint-Raphaël de Bellechasse, Cléophas
Fradette.
No coração de Ontário, na região de Sudbury, o padre Germain Lemieux descobriu a
tradição narrativa de Maurice, George e Nelson Prud’homme e seu filho Joseph. Grandes
contadores e contadoras ao redor do padre Lemieux: Gédéon e Philéas e Toussaint e Reina Savarie,
Émile Roy, o “jongleur du billochet”5 em pessoa, Jean-Baptiste Lavoie e muitos outros que, através
5
Literalmente: Trovador do banco. O billochet é um banco rústico feito com tronco de árvore, usado na campanha
pelos contadores de histórias.
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do tempo e do espaço, entravam na roda dos contadores e contadoras, cantores e cantoras, artesãos e
artesãs.
No país dos contos: os animais
Comecemos a viagem tomando o caminho dos contos, estas narrativas fora do espaçotempo, nas quais não se crê e que possuem uma função lúdica. Os contos revelam a astúcia da
pequena Raposa, como no conto “Le conte du vol de nourriture par feinte mort”. Uma carroça
carregada de peixe chega. Sempre faminta, a Raposa deita-se na estrada, fazendo-se de morta. O
carroceiro para, recolhe-a e a joga sobre a carga de peixes. Discretamente, a Raposa deixa cair os
peixes, um a um, pelo caminho, depois salta da carroça e come, come, come. Ao Urso, que também
está faminto, a raposa se gaba de sua proeza. O Urso deita na estrada, mas a carroça passa por cima
dele. Machucado, fraco, ele se queixa à Raposa, que lhe sugere mergulhar sua longa cola no buraco
feito por pescadores no gelo de um lago. Ele só terá que se levantar rápido quando um peixe morder
a cola, comê-lo e recomeçar, até que não tenha mais fome. O Urso se instala, espera pacientemente
e pouco a pouco a água congela até que sua cola esteja solidamente presa ao gelo. Os pescadores,
informados pela Raposa, aparecem para caçar o Urso, que acaba perdendo sua cola ao fugir.
E os contos precipitam-se no imaginário. Raposa ladra, Raposa enganadora e Urso logrado.
No conto “Renard Parrain”, a Raposa diz ao Urso que ele deve se ausentar para ser padrinho. Às
escondidas, a Raposa volta para comer a manteiga que havia armazenada na casa do Urso. Ao
voltar do batizado, o Urso lhe pergunta o nome do afilhado; a raposa responde “Mivide”
[Meiovazio]. Haverá dois outros batizados e os nomes extravagantes refletem o estado das
provisões: “Bien commencé” [Começou bem], “À moitié” [Pela metade]... O Urso acaba
descobrindo os furtos e eles brigam. Enquanto o Urso dorme, a Raposa lhe cobre de manteiga e
prova ser ele, o Urso, o ladrão.
Em outro conto, aparece o Lobo. Jovens cabritos, deixados sozinhos em sua casa, recebem a
ordem de não deixar o Lobo entrar. Por várias vezes, os pequenos reprimem seus ataques.
Cobrindo-se de tinta ou enfarinhando suas patas, o Lobo convence-os de que é a própria mãe deles
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que bate à porta, consegue entrar e os devora. No retorno da verdadeira mãe, abre-se o ventre do
Lobo e dele saem os pequenos cabritos vivos.
No país dos contos: as maravilhas
Passemos ao país dos contos maravilhosos como o da “La Bête à sept têtes”6, que se passa
nos tempos em que os dragões ainda aterrorizavam reinos distantes, exigindo a cada ano o sacrifício
de uma jovem. Um rapaz, que partiu para se aventurar, chega à capital de um reino cuja maldição
do sacrifício tinha recaído sobre a filha do Rei. O Rei havia prometido a mão de sua filha e metade
de seu reinado para aquele que conseguisse matar o dragão. Relutante, o rapaz é obrigado a
acompanhar a jovem vítima até a caverna do dragão. O combate inicia. Com a ajuda de seus cães, o
rapaz sai vitorioso, mas o camarista do rei o faz beber “uma água sonífera” e o herói mergulha em
uma espécie de torpor. O traidor aproveita para dirigir-se ao castelo com a princesa, ameaçando-a
de morte caso revele a verdade. Ele anuncia ao Rei que matou o Monstro de Sete Cabeças e reclama
a mão da Princesa assim como a metade do reino. O Rei, então, ordena que o casamento de sua filha
e do camarista seja celebrado. Mas eis que, lá na caverna, o herói desperta e se vê sozinho.
Partiram: a princesa e o camarista! As línguas do Monstro de Sete Cabeças, provas da vitória,
haviam desaparecido. O tempo urge. Seu cavalo voa. No momento em que a princesa, de braços
com seu pai, caminhava em direção ao altar da capela real, o herói chega de surpresa com seus cães,
que avançam no camarista. Apavorado, o traidor rapidamente confessa e é preso. O herói casará
com a princesa. Mas suas aventuras estão apenas começando. E seria longo demais prosseguir aqui
com essa estória.
Pois Juan do Urso avança. Concebido após o rapto de sua mãe por um urso, o rapaz é
muito forte. Ele esmaga em suas mãos grossas tudo o que pega e massacra todo aquele que ouse
brigar com ele. Com todo o ferro da forja, ele fabrica uma bengala e pega a estrada com
camaradas “dotados” de uma visão apurada, de uma audição prodigiosa ou de pernas rápidas. Os
6
"O Bicho de Sete Cabeças"
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viajantes se instalam em uma casa no meio de uma floresta e montam guarda, revezando-se entre
si. Um monstro sai da terra e os rapta, um após o outro. No terceiro dia, Juan do Urso se lança na
perseguição do monstro, desce na terra pela extensão de um cabo e, com fortes golpes de sua
bengala de ferro, mata o monstro. Ele descobre, então, três princesas que a fera havia raptado e
encontra seus camaradas. Todos voltam à superfície, mas quando chega a vez de Juan do Urso,
seus camaradas retiram o cabo e o abandonam. O herói será salvo por uma águia que o carrega
no dorso. Aqui, a história também continua. Os camaradas vão desposar as princesas? O que fará
Juan do Urso? Devo prosseguir o caminho.
No conto “A fuga mágica”, de fato, as desgraças vão recair sobre o Belo Príncipe, o
jovem herói. Por duas vezes ele ganha no jogo de dados do Boné Vermelho, o Diabo em pessoa,
e exige que ele erga o castelo de seu pai com correntes de ouro, tão logo tenha encilhado seus
cavalos com ouro e prata. Quando Boné Vermelho ganha a terceira partida, ordena ao Belo
Príncipe o seguinte: “eu quero que tu venhas me encontrar a setecentas léguas no outro lado do
sol, em um ano e um dia”. E o herói deve pegar a estrada. Um dia, às margens de um lago, ele
percebe três moças que se banham. Então, esconde a jarreteira verde da mais bela, que
evidentemente é a filha do tal Boné Vermelho, o qual espera Belo Príncipe a sete léguas do outro
lado do sol. A filha do Diabo lhe comunica que ele deverá cumprir três tarefas, à primeira vista,
impossíveis, mas que ela o ajudará. Belo Príncipe esvaziará, então, a água de um rio, construirá
uma ponte sobre o rio seco e uma granja recoberta de plumas “de todos os pássaros do universo”.
Cumpridas as tarefas, ele foge com aquela que ama após ter enganado a vigilância do Boné
Vermelho, graças a um autômato, mas o Diabo os persegue. Ao perceber seu terrível pai, a jovem
deixa cair uma escova de aço, que se transforma em uma “grande montanha de pinheiros”, a qual
força Boné Vermelho a voltar atrás. Segunda perseguição de Boné Vermelho. Sua filha lança
uma barra de sabão, que se transforma em uma grande montanha de aço: “com alfinetes e
machados e todo esse tipo de coisa”. Na terceira vez, é a mulher do Diabo que parte, carregando
um pequeno saco de trigo. Desta vez é uma garrafa d’água que salva o Belo Príncipe e sua Bela
JarreteiraVerde a água espalhada na terra cria um lago e os dois jovens, transformados em patos,
nadam em mar aberto. A mulher do Diabo lança grãos de trigo na direção dos dois e a pata, às
bicadas, afasta o pato da margem. Aqui termina a perseguição, mas o casal precisa se separar por
um certo tempo, mas não sem que a jovem tenha prevenido o Belo Príncipe de não beijar
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ninguém até se reencontrarem. A tia do jovem rapaz o beija enquanto ele dorme e ele acaba
sofrendo de amnésia. Tendo esquecido tudo, corteja outra moça e a pede em casamento. No dia
do casamento, uma senhora aparece para apresentar um espetáculo no qual um pequeno galo e
uma galinha “falantes” interpretam a história do Belo Príncipe e da Bela Jarreteira Verde, cujas
peripécias fazem, pouco a pouco, emergir as lembranças do herói. A filha do Diabo é reconhecida
e os apaixonados poderão finalmente se casar.
E há também o conto do “Pequeno Polegar” e das crianças abandonadas na floresta por
seus pais e que encontram seu caminho graças a retalhos de roupa ou pequenas pedras; a terceira
vez, eles não conseguem encontrar o caminho, pois os pássaros haviam comido as migalhas de
pão deixadas por eles pelo chão. Eles se refugiam na casa de um Ogro! Todos conhecem a
continuação da história. O Ogro sente o cheiro de carne fresca e descobre as crianças. O Pequeno
Polegar troca os bonés à noite; o Ogro mata seus próprios filhos. E o Pequeno Polegar, que ouve
tudo, vê tudo e salva pra sempre seus irmãos.
Depois, vamos ouvir o conto do “Homem em busca de sua esposa desaparecida”. TitJean7 liberta uma princesa raptada por uma fada terrível. Feliz por encontrar sua filha, o Rei
decide, contudo, que o casamento só será realizado em um ano e um dia. Companhias duvidosas.
A cada encontros dos jovens, o herói é entorpecido por soníferos que uma criada, sob ordens do
Rei, o faz tomar. Após o sexto encontro, a Princesa entrega a Tit-Jean um lenço “no qual seu
nome está bordado em ouro” e uma caixa de rapé; em seguida, parte em viagem. O Rei espera
que assim encontrará “belos príncipes” e que esquecerá Tit-Jean. Ao acordar, o herói lamenta ver
se afastar aquela que ele ama, na forma de uma “nuvem branca”. Uma fada o aconselha a pedir
ajuda a suas irmãs e ele parte em busca da Princesa. Longa busca, junto das fadas-irmãs, que
termina junto da “mestre de todos os pássaros”, quando uma velha águia lhe informa que a
Princesa está “nas Sete Montanhas Verdes”. A águia aceita transportá-lo em seu dorso. O tempo
urge, pois a Princesa está prestes a se casar com um príncipe. Na sexta montanha, a águia está
exausta; como não lhe resta mais carne para se alimentar durante o voo, Tit-Jean “pega sua faca,
tira um pedaço de sua carne da coxa esquerda e dá ao pássaro”. Eles chegam enfim ao castelo,
7
Juanzinho
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onde Tit-Jean oferece seus serviços de cozinheiro. O lenço bordado em ouro e a caixa de rapé
identificam-no, mas os apaixonados se separam curiosamente “sem reconhecerem um ao outro”.
Vestido com “uma roupa de príncipe”, Tit-Jean ocupa o lugar à direita da Princesa, o que
contraria o Príncipe, seu noivo. Antes da cerimônia do casamento, a Princesa toma a palavra:
“Eis que há um ano e um dia, eu tinha uma velha chave. Essa chave me foi muito útil e eu não
precisava de outras chaves pra todas as minhas fechaduras. Mas eu a perdi e estou indecisa em
comprar uma nova, da qual desconfio. Fé de príncipe, de princesa e de vocês que estão aqui na
minha mesa. Que devo fazer? Acabo de encontrar minha velha chave”. Os convidados do
casamento aconselham a Princesa a não se casar com o Príncipe, mas a voltar aos seus antigos
amores, esse Tit-Jean que havia passado por tantos “obstáculos” antes de encontrá-la.
E você poderá ver passar no país dos contos “Juan de Calais e o morto agradecido ”,
“Cinderela”, “Pele de Asno”, “Os Camaradas dotados” ou “A Grande Margaude e seus
companheiros”, pintura grandiosa na qual vemos ser construído um barco encantado onde se
movem os companheiros extraordinários: um homem forte; um grande “ouvinte”, Escuta-Claro;
um grande atirador; um grande corredor; um comilão; um beberrão; um grande assoprador e,
principalmente, o adversário, a Grande Margaude. No tesouro da tradição, encontraremos
também “O Gato de Botas”, “Os filhos em busca de remédio para seu pai”, “A menina de mãos
cortadas”, “Bénédicité”, “Grisélidis”, “Os três conselhos”, “O retorno do filho caçula”, “O Rei
Ramsinit" ou "O Grande Ladrão de Paris”.
No país dos contos: o riso
No repertório dos contos cômicos, acotovelam-se os tolos e os espertos, as vítimas e os que
sabem se safar ou os espertos, os maridos bobos e suas esposas espertas. Há este Jacques Pataud
encontrado em Old mines no Missouri, por Joseph-Médard Carrière, em um conto de humor arcaico
cujo título é: "Uma marmita de três patas deve caminhar". Jacques Pataud vai buscar uma marmita
na casa de um vizinho. Ele a carrega e a examina: "Ah! Tu és bem melhor do que eu, tu tens três
patas, eu só tenho duas. Tu vais pegar aquele caminho e vais caminhar. Na primeira casa em que
chegares, entra e diz a minha mãe que tu és a marmita que eu fui pedir emprestado". Em outro
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conto, Jacques Pataud vai ao mercado vender manteiga. Na estrada, "Ele chegou num lugar. Ele
olha a terra; ela estava bem rachada". Tu não precisas abrir tua boca para mim, não tenho nada para
te dar a não ser manteiga. Se tu não fechares tua boca, eu vou enchê-la de manteiga". Ele pegou
sua manteiga e a colocou toda na terra com uma pequena colher".
Por sua vez, Alcée Fortier encontrou em Luisiana as aventuras de "Bouki pis Lapin" 8, como
no conto "O castigo do Compadre Coelho". O Coelho é condenado à morte e o rei lhe autoriza a
escolher seu castigo: ser afogado, queimado, enforcado ou decapitado. Compadre Coelho aceita
todos esses suplícios com entusiasmo pois, diz ao rei que o que ele mais temia era ser jogado em um
tufo de espinheiro. O rei logo o condena a tal suplício, e o Coelho foge.
O conto "A água da fonte de Paris" lembra os velhos fabliaux9. Uma mulher audaciosa envia
seu bom marido a Paris, a fim de procurar uma água que possa "curar a dor de dentes". Assim que o
marido partiu, chega o príncipe e "é preparado um belo jantar". Mas, já na estrada, o marido
encontra um comerciante, que o traz de volta para casa, em seu cesto. Convidado à mesa, o velho
comerciante insiste em trazer com ele seu cesto. No decorrer da refeição, os convivas são
convidados a cantar: em seu refrão, o príncipe faz alusão a "uma jovem mulher abandonada"; a
mulher fala do seu marido, que está em Paris e "não está pronto para voltar". Por sua vez, o
comerciante conta que carregou um viajante em seu cesto. Enfim, do cesto, o marido canta ao
príncipe: "Tu sairás da minha casa a pauladas, Kyrie Eleison! Tu sairás da minha casa a pauladas,
Kyrie Eleison!"
O fabliau "O rico e o pobre camponês" descreve a luta “épica” na qual se confrontam PoisVerts10 e seu pároco. Pois-Verts é o Homem-das-mil-astúcias, que triunfa sobre seu adversário cuja
única vantagem é a posição social. Ele vende ao padre um chicote mágico com o qual ele ferve um
líquido. Quando o padre tenta imitá-lo, nada acontece e este jura que não se deixará mais enganar.
Mas pouco importa! Diante do pároco, Pois-Verts "mata sua velha mãe", que simula evidentemente
a morte, e depois se levanta ao som de um apito mágico; o padre apressa-se em comprá-lo. Ele briga
com sua empregada e a mata como Pois-Verts "matou", diante dele, a própria mãe. Mas, ao som do
8
Bouki e coelho.
Contos em versos muito usados antigamente na França.
10
Ervilhas-verdes.
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apito, a empregada não volta à vida e o padre "obtém um julgamento" contra Pois-Verts, que é
condenado a ser jogado no mar dentro de um saco! No caminho, Pois-Verts faz um pobre mendigo
acreditar que o carregam nesse saco para a cama da princesa, com quem ele não quer se casar. O
pobre toma o lugar de Pois-Verts e é jogado ao mar. No dia seguinte, o pároco, estupefato, vê
chegar Pois-Verts, conduzindo um grande rebanho de vacas. Pois-Verts explica ao padre que ele
caiu no meio do rebanho quando os carrascos o jogaram ao mar; ele acrescenta que até viu mais ao
longe magníficos cavalos negros. O padre pede imediatamente para ser jogado em um saco para
estar à noite no meio do rebanho. O contador Prudent Sioui conclui: "O senhor padre vai se juntar
ao pobre no fundo do mar, onde ficou. Com todas essas artimanhas, Pois-Verts torna-se um grande
comerciante". Em 1940, Joseph-Médard Carrière coletou uma versão desse conto em Tecumseh,
bem perto de Windsor; cinquenta anos mais tarde, a senhora Stella Meloche o contou a Marcel
Bénéteau. Nas margens do rio Detroit, Pois-Verts chama-se Corne-en-cul11.
Na versão do contador Paul Patry de Saint-Victor de Beauce, "Le brave petit tailleur"12
tornou-se Martineau-Pain-Sec, "um preguiçoso" expulso da casa pelo pai. Enquanto ele come uma
“tambane”, mistura de pão, leite e açúcar, é importunado por uma nuvem de moscas. Após ter bem
ou mal terminado sua refeição, espalha açúcar na mesa e, assim que os bichinhos avançam no
alimento, ele "mata mil com um golpe só e quinhentos de reverso!" Orgulhoso de sua proeza, ele
pediu para pintar um letreiro no qual se pode ler: "Martineau matou mil com um só golpe". O rei
passa e, vendo o letreiro, contrata Martineau para "fazer faxina" na floresta real. Nosso herói fará
com que três gigantes terríveis se matem um ao outro, capturará um unicórnio e derrotará os
inimigos do rei, deixando-se arrastar por seu cavalo no meio dos soldados que golpeia com uma
cruz de madeira arrancada no caminho. Seu feito pôs fim à guerra e "depois disso Martineau-PainSec ficou na casa do rei, onde ele sempre viveu bem".
No país das lendas: as ajudas sobrenaturais
11
12
Chifre-no-cu.
O valente pequeno alfaiate.
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Mas há um outro lado do imaginário de nossos contadores e contadoras: o das lendas.
Narrativas que se inscrevem no espaço e no tempo e que são objeto de uma crença mais ou menos
forte.
As lendas celebram, em primeiro lugar, as intervenções milagrosas dos seres sobrenaturais:
o próprio Deus, os santos protetores como Santa Ana ou a Virgem Maria, os anjos ou os mortos
protetores dos que lhes imploram ajuda. Os doentes são, então, curados; os incêndios,
interrompidos; os viajantes em perigo chegam ao destino; o Diabo é expulso; as crianças perdidas,
encontradas; os tesouros, descobertos e o futuro, revelado.
A figura da Dama de branco é ambígua. Trata-se, às vezes, da boa Santa Ana e, outras, da
Virgem Maria. Nos arredores da cascata de Montomorency, perto do Quebec, a Dama de branco
será a sombra inconsolável de uma jovem que perdeu seu noivo na batalha das planícies de
Abraham e que se jogou no rio. Em outros casos, a Dama de branco é uma feiticeira ameríndia que
afogava os viajantes no rio. No caso da família Cadieux, o viajante dos Pays d’en Haut,
13
é Santa
Ana, que guia a canoa na qual a família fugia enquanto que ele atirava contra os índios. Em forma
da Dama de branco, a Virgem Maria ajudou a encontrar muitas crianças perdidas na floresta.
Mulheres prestativas que protegem ou mulheres ameaçadoras que conduzem os viajantes ao
fracasso ou ao desastre, as damas de branco são assim, como as fadas protetoras ou hostis.
Os mortos também vêm em socorro dos homens ou das mulheres. Na realidade, esses
mortos que ajudam são frequentemente designados como Almas do Purgatório. Falava-se até de
"nossas pequenas almas". Trata-se das almas dos defuntos libertas dos suplícios do Purgatório pelas
rezas, pelos sacrifícios e pelas oferendas dos sobreviventes. As almas libertas são evidentemente
gratas e, do Céu, onde elas se encontram, ajudam, em troca, aqueles e aquelas que as ajudaram.
Nessa perspectiva, o mundo dos desaparecidos não é mais um abismo sombrio de onde não se
retorna mais, mas uma espécie de prolongamento do espaço doméstico onde os parentes mortos
continuam a cuidar dos seus, multiplicando os gestos de ajuda.
13
Les pays d’en Haut estão situados na região das montanhas Laurentides na província canadense do Quebec.
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No país das lendas: os fantasmas
Mas outras manifestações dos mortos são menos reconfortantes. Os fantasmas assustam:
suas lamentações, seus queixumes, seus uivos, seus gemidos, seus choros, seus gritos, seus
sussurros aterrorizam. Às vezes até mesmo suas intrusões se manifestam pelo tato e toques na noite:
seus hálitos gelam o sangue. Por que, então, eles retornam? Eles procuram o descanso que não
encontram pois não podem mais ter os gestos eficazes e suas palavras não surtem mais efeito.
Somente a intercessão dos vivos pode colocar fim à vagueação deles. O tema dos "fantasmas
suplicantes" explica-se, assim, pelo fato de que os mortos precisam das rezas dos vivos.
Conta-se, por exemplo, que o presbítero da paróquia de Gentilly foi assombrado por um
desaparecido desesperado. Um ser invisível chegou em torno das onze horas, bateu à porta do
presbítero, que se abriu sozinha, e os testemunhos ouviram alguém subir a escada e entrar em um
quarto. Ouviu-se um "barulho terrível". O padre subiu e voltou "pálido como um espectro". Ouviuse, então, "barulhos de correntes e gemidos". Essas visitas continuam durante uma semana, e o
padre foi consultar seu bispo. Ao retornar, assim que os barulhos recomeçaram, vestido com uma
estola e uma sobrepeliz, subiu ao quarto. Ouviu-se um barulho de luta. E Louis Fréchette termina
sua narrativa conforme segue: "O barulho infernal cessou de repente, e o corajoso padre reapareceu
lívido... Ele envelheceu dez anos". Posteriormente, todos as primeiras sextas-feiras do mês, até sua
morte, o padre celebrou a missa de Réquiem para alguém que ele nunca quis nomear.
A lenda de Pierre Soulard, que se aventurou pelo rio gelado, entre Quebec e Lévis, sob mau
tempo, é também conhecida com o título de "Tête à Pitre".
14
O canoeiro, que tinha a reputação de
blasfemar todo o tempo, quis atravessar o rio apesar do mau tempo. Ele deslizou, empurrando sua
embarcação no gelo e caiu nas águas do rio; imediatamente, "um pedaço de gelo afiado como uma
lâmina tocou-lhe o pescoço, cortando-lhe a cabeça”. A mesma cabeça ainda faz aparições acima do
rio, entre Quebec e Lévis, em tempos de névoa ou de neve.
14
A cabeça de Pitre.
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As lendas lembram também a história das "Almas penadas", de Saint-Michel. Em 1º de
outubro de 1775, um fiel da paróquia de Saint-Michel-de-la-Durantaye interrompera um sermão de
um padre Lefranc, jesuíta, que "ensinava a obediência aos poderes temporais". Ele exclamara:
"Basta de pregar, por tanto tempo, aos ingleses!" O bispo do Quebec, Monsenhor Brillant,
excomungara aqueles que eram solidários ao protesto do fiel. Cinco fiéis recusaram-se a se retratar
e a fazer "retratação pública" após a proibição. Marguerite Racine (morta em 1784), Laurent Racine
(morto em 1784), Félicité Doré (morta em 1784), Pierre Cadrain (morto em 1786), e Jean-Baptiste
Racine (morto em 1788), pai de Laurent, foram inumados "em terra não abençoada", em uma terra
que pertencia a um Cadrain. E vemos suas sombras vagar acima de suas sepulturas, sobre as quais
cresceram cinco grandes pinheiros.
Os defuntos tinham também que expiar, no outro mundo, os pecados cometidos na terra.
Joséphine Lalande voltava de um sarau com amigos quando percebeu “no patamar da grande
porta da igreja um homem usando um sobrepeliz e um barrete: este homem tinha a cabeça
inclinada e os braços estendidos na direção deles”. Pensando que se tratava do filho do sacristão
que queria amedrontá-los, ela pegou o barrete e voltou para a sua casa. Pôs o barrete em um
pequeno baú e, ao ir dormir, viu à sua janela “o mesmo indivíduo que ela vira nos degraus da
igreja” e que repetia: “Devolva meu barrete!” Durante esse tempo, “ela ouvia bater dentro do
pequeno baú como se um animalzinho prisioneiro quisesse sair”. Na noite seguinte, “ela viu o
mesmo fantasma que vira na véspera e que, suspenso nos ares e com a mesma atitude, gritavalhe: ‘Devolva meu barrete!’” Ela deu um grito e “desmaiou”. O padre visitou Joséphine e depois
consultou o Petit Albert15. O diabo lhe apareceu. O padre “o censurou amargamente pelo que
acontecera à pobre moça”, mas o diabo defendeu-se, disse não ser a causa detais fenômenos e
desapareceu. O padre “teve uma visão durante seu sono” e acordou-se, tendo “encontrado a
solução de seu problema”. Ele explicou à moça que o gesto dela tinha interrompido “uma grande
penitência” de uma alma do purgatório e que era preciso recolocar o barrete na cabeça do
fantasma. A moça caiu numa espécie de languidez e foi seu noivo quem devolveu o barrete ao
fantasma. Este lhe revelou, então, a razão de sua penitência. Vestido com um sobrepeliz, ele
Le Petit Albert é um grimóriode magia talvez inspirado pelos escritos de Saint –Albert le Grand. É impresso na
França pela primeira vez em 1668, depois reeditado continuamente.
15
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havia há tempos improvisado uma lição de catecismo em púlpito, diante das crianças, e suas
“piadas” fizeram-nas "dar gargalhadas". Uma semana mais tarde, ele se afogava e foi “condenado
ao purgatório, durante trinta anos e nos mesmos lugares” da profanação. Terminada sua
penitência, o fantasma recomendou ao noivo uma erva com a qual ele faria uma infusão para
curar sua noiva.
Joseph-Charles Taché redigiu, em alexandrinos desajeitados, uma lenda que ele situa na
Montagne à Bonhomme, perto de Quebec. Uma noite, lenhadores ouviram “sons lamuriosos” e, em
seguida, uma voz que gritava: “Onde a colocarei?” Um colono chamado Perrin foi ao encontro da
alma penada, mas só pôde responder: “Meu Deus! Eu não sei de nada!” Numa segunda tentativa de
ajudar o fantasma, sua resposta foi um pouco mais precisa: “entregue-a ao seu dono”. A alma não
ficou, no entanto, aliviada. Um ancião, o seu Ambroise, “lembrando-se de um determinado grande
processo agora esquecido”, aconselhou o pobre Perrin a responder: “Onde tu a pegaste!” No dia
seguinte, à questão “Onde, então, onde eu a colocarei?”, ele respondeu “com um timbre seguro”:
“Onde tu a pegaste!” Na manhã do dia seguinte, a cerca entre a terra de Perrin e a de Jean Goulet
foi deslocada vinte pés, e um marco foi colocado “na linha”. O marco fora deslocado há muito
tempo, e o culpado, condenado a vagar. Perrin o havia libertado de sua pena.
Em Sault-au-Récollet, na ilha de Montreal, um missionário Récollet, o padre Nicolas Viel, e
seu novato, Ahuntsic, se afogaram depois da manobra de um índio “que se opunha à pregação do
Evangelho na sua nação”. Mais tarde, viajantes que desciam a Rivière-des Prairies fizeram uma
parada para passar a noite e perceberam um fogo um pouco mais longe. Eles acreditaram tratar-se
de outros viajantes, e três homens dirigiram-se à beira do rio. Eles encontraram lá “um selvagem de
tanga, sentado no chão, os cotovelos sobre as coxas e a cabeça entre as mãos”. Imóvel e mudo, ele
estava todo molhado. Aproximando-se ainda mais, eles se deram conta de que a água que pingava
de seu corpo “não molhava a areia e não fazia vapor”. Além disso, o fogo não produzia calor. Eles
partiram, levando um tição do fogo. Um enorme gato preto apareceu num barulho de canoa
voadora16 e atacou a canoa dos viajantes. Eles jogaram o tição no gato; ele o pegou e desapareceu.
16
No Quebec, o diabo guia as “canoas voadoras”. Em numerosas narrações de “chasse-galerie”, lenhadores,
saudosistas, prisioneiros das florestas congeladas podiam, após um pacto com o diabo, voar em uma canoa e
atravessar distâncias incríveis para ir dançar e festejar. Eles deviam, entretanto, observar certas regras e fazer a
promessa de entregar as suas almas se dentro de seis horas eles pronunciassem o nome de Deus e se tocassem em
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Taché concluiu: “Este selvagem é o ‘afogador’ do Padre Récollet. Supõe-se que o diabo tenha se
apoderado do assassino no momento em que ele se secava, depois de ter arrastado para a água o
pobre missionário, e que ele e seu fogo foram transformados em lobisomens”.
Um comerciante de Quebec, Augustin Fraser, tinha vendido roupas a crédito a um viajante,
Martial Dubé, para que ele pudesse trocar por peles nos Pays d’en haut. Dubé declarou: “...morto
ou vivo, eu lhe pagarei o que você vai me adiantar!” Antes de deixar Fraser, ele repetiu: “...não
tema nada; mesmo que eu esteja no fundo do purgatório, eu virei lhe pagar”. Uma noite, dando a
última volta em sua loja, Fraser viu, sentado num fardo de mercadoria, Martial Dubé, que assim lhe
falou: “A vida é um sonho, capitão e, enquanto eu lhe falo, meu pobre corpo rola no fundo da baía
de Sainte -Croix. Eu me afoguei esta noite e venho lhe pagar, Sr. Fraser”. Ele explicou: “Eu deixei
num baú, na Pointe Lévis, alguns pertences fáceis de vender”. E, de fato, no cais de Lévis, Fraser
encontrou um baú cheio de peles. Após ter vendido sua empresa, Fraser tinha-se retirado à
Beaumont. Uma noite, ele reuniu sua família, seus empregados e lhes anunciou sua morte próxima:
“Deus permitiu que eu fosse avisado: no pôr do sol eu devo morrer. Martial Dubé apareceu para
mim sobre a rocha do vale; ele me disse que tudo estava acabado, e eu só tive tempo para me
preparar”. E Faucher de Saint-Maurice concluiu: “Desde então, cada vez que um Fraser vai morrer,
o fantasma da rocha lhe aparece”.
Outros fantasmas são mais agressivos. Uma das mais célebres narrativas de Philippe Aubert
de Gaspé apresenta o fantasma de Marie-Josephte Corriveau, a Corriveau, enforcada pelo
assassinato de seu marido e cujo cadáver fora exposto numa gaiola de aço. O narrador, José, conta
como seu “finado pai”, François, tendo passado uma noite diante da gaiola da Corriveau sentiu de
repente “duas grandes mãos secas, como garras de urso, que lhe agarravam pelos ombros”. Era a
Corriveau, que se pendurava nele e lhe suplicava para “levá-la a dançar” com seus amigos, os
feiticeiros da ilha de Orleans. François recusou e Corriveau o estrangulou ou pelo menos “ele não
uma cruz durante a viagem. A “chasse-galerie” significa, antes de tudo, os fenômenos sonoros percebidos nos ares
ou na terra. Frequentemente ela é ligada à visão de objetos ou de seres que se deslocam no ar. A origem dessa lenda
remonta à Idade Média, quando um impenitente, senhor Poitevin, o Senhor de Gallery, teria sido condenado, com os
seus companheiros, a caçar do cair da noite ao nascer do dia, até o fim dos séculos.
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valia muito mais, o pobre homem, pois perdeu completamente os sentidos”. Ele acordou-se no dia
seguinte “deitado ao comprido em uma vala”.
Na paróquia de Écorres, o cadáver de um enforcado fora colocado numa gaiola de ferro
suspensa em um poste no caminho do Rei. Um certo Valiquet “tinha batizado” e acabava de “fazer
seus convites” para uma “refeição (jantar)”. Passando perto da gaiola do enforcado, ele deu uma
grande chicotada que fez vibrar as grades e gritou: “Eu te convido para vir jantar na minha casa esta
noite!” À noite, os convidados estavam à mesa quando, de repente, alguém bateu à porta. O
enforcado entrou com sua gaiola embaixo do braço esquerdo e só concordou em ir embora com a
condição de que Valiquet fosse dançar ao pé de seu poste no dia seguinte. Valiquet foi obrigado a ir
ao local, mas levando em seus braços o bebê que acabara de ser batizado. O enforcado o criticou
por ter vindo “carregado com um fardo” que o impedia de dançar “uma bela roda”, cujo “compasso
se marca a chicotadas”, e o deixou ir embora, tendo ao menos “aprendido a respeitar os mortos”.
No país das lendas: o Diabo
Mas eis que aparece o Diabo. Ele está em toda a parte e irá até mesmo prestar serviço para
obter uma alma. Sob a forma de um cavalo, por exemplo, ele colaborou com a construção de várias
igrejas, carregando pedras. O preço de seu trabalho? A alma da primeira pessoa que entrar na igreja
após a construção desta. Um belo dia, no canteiro de obras da igreja do Sault-au-Récollet, um
grande e bonito cavalo branco chegou não se sabe de onde. Chamado a vir em socorro, o padre
reconheceu imediatamente aquele que se escondia sob a forma de um cavalo de carga. Ele correu à
sacristia e voltou com uma estola, com a qual envolveu rapidamente o focinho do animal. “Façamno trabalhar sem parar e sobretudo não tirem sua rédea!” Todo o dia, o cavalo puxou e puxou
pesadas carroças carregadas de pedras. Perto do fim da tarde, ele não era mais do que a sombra de
si mesmo: muito magro, grisalho, titubeante, ele gemia como um homem exausto. Já que só restava
uma pedra a transportar e diante do estado do cavalo, o carroceiro decidiu dar-lhe de beber e desatar
a rédea. O cavalo recobrou imediatamente sua forma, rebentou sua atrelagem e, com um relincho
que ressonou como uma grande gargalhada, lançou-se nos ares e, em sete grandes saltos, foi se
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jogar na Rivière-des-Prairies, em um lugar que se chama ainda hoje Les Rapides-du-Diable. O
cavalo fora “desencantado” antes de poder transportar a última pedra e a igreja nunca foi concluída,
pois faltava uma pedra; o Diabo não obteve, então, a alma, foi embora e todos ficaram quites.
É também graças a um pacto que homens podiam se deslocar numa canoa que, levantada por
Satã, voava pelos ares na forma dessa canoa voadora que assombrava o céu de Poitou e dos países
nórdicos. Longe, nas florestas do Norte, em pleno inverno, Baptiste Durand propôs aos lenhadores
ir dançar em Lavaltrie, paróquia natal deles. Ele os conduziu a uma clareira onde os esperava uma
grande canoa. Para voar à Lavaltrie, bastava prestar juramento ao Diabo, evitar de se embebedar,
não blasfemar e remar energicamente. Após terem “prestado juramento ao Diabo”, a canoa elevouse acima das árvores e partiu nos ares, a toda velocidade, até Lavaltrie. O baile acontecera em
Contrecoeur, na outra margem do rio, na casa de Seu Batissette Auger. Eles subiram na canoa e, em
algumas remadas, atravessaram o rio Saint-Laurent. Dançaram muito, comeram muito, beberam
muito e retornaram antes do amanhecer. Na volta, Durand, muito bêbado para conduzir a canoa,
cometeu um erro de manobra e um homem gritou: “Meu Deus!” A canoa virou e os viajantes
viram-se na neve perto do acampamento deles. Eles tinham escapado ao Diabo.
O Diabo também fez pacto com o feiticeiro da ilha de Anticosti, Gamache, que andava a
toda velocidade sobre as águas do Golfo Saint-Laurent, nos dias de calmaria, graças ao Diabo.
Além disso, por ocasião de suas viagens a Rimouski, supunha-se que ele comia do bom e do melhor
com o Diabo, em seu quarto de hotel. O Diabo comprava também a galinha preta, nas noites sem
lua, nas encruzilhadas, como um camponês que “topa”: pacto sem dia seguinte, mas cujas
consequências, a longo prazo, podiam ser desastrosas, pois não é impunemente que se “topa” com
Satã.
O Diabo fez também um papel de justiceiro, paradoxal àquele de punidor, quando se trata do
Diabo, que deveria ter, ao contrário, se divertido com as faltas cometidas pelos homens e pelas
mulheres. Na verdade, o Diabo punia depois de ter feito o papel do Tentador e de ter levado suas
vítimas à perdição com suas incitações ao mal. Por exemplo, os padres condenavam a dança e ele
incitava suas vítimas a dançar; era proibido dançar durante a Quaresma e ele fazia de tudo para que
a dança continuasse depois da meia-noite. Ele é, ao mesmo tempo, instigador e punidor das faltas
cometidas.
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Em “O homem do Labrador”, de Aubert de Gaspé Filho, um velho mendigo, Rodrigue,
“apelidado Braço de Ferro”, que era “aos vinte anos o antro de todos os vícios reunidos” conta seu
encontro com o Diabo. Ele se vangloriava de não ter medo nem de Deus nem do Diabo e foi
designado para vigiar o “Posto do Diabo” no Labrador. Por ocasião do desembarque, levado pela
cólera, feriu um de seus companheiros e, como ele pensava tê-lo matado, foi se esconder numa
cabana na floresta. À noite, um homem com rosto encoberto por um “chapéu imenso” saiu da
floresta, “seguido por um enorme cão preto”. Barulhos de garras, macacos na chaminé precederam
a chegada do desconhecido, que entrou com seu cão. Rodrigue fez, então, promessa “à boa Santa
Ana” de mendigar “o resto de seus dias” se ela o protegesse. O homem dirigiu-se ao fundo da
cabana, rasgando uma a uma todas as camas antes de parar no lugar onde se entocava Rodrigue, que
teve tempo de balbuciar uma espécie de oração e de expulsar o Diabo, que viera procurá-lo.
O Diabo assombra também os lugares onde se dança, assim como os caminhos que levam a
tais lugares. Tocando violino, ele fez com que dançarinos e dançarinas dançassem até se enterrarem
lentamente no solo, afundados por seus passos. Sob a forma de cavalo negro, fez foliões montarem
em suas costas para ir dançar, mas tentou atraí-los para as águas do Saint-Laurent.
Enfim, sob a aparência de um belo estranho, que era também um “belo dançarino”, ele
dançou com uma bela coquete a qual tentou raptar, salva in extremis pela intervenção do padre. No
romance A influência de um livro, de Philippe Aubert de Gaspé Filho, o capítulo intitulado “O
estrangeiro. Lenda canadense” representa a primeira “versão” canadense da lenda do Diabo belo
dançarino. Na noite da terça-feira de Carnaval, o Diabo chegou de trenó, às onze horas, numa casa
onde se dançava. Homem bonito, vestido de preto, usando chapéu e luvas, ele conservou as luvas e
o chapéu e, apesar da tempestade de neve que se desencadeava, não deixou desatrelar seu cavalo
negro. O estranho convidou a mais bela das belas, leve e coquete, a dançar. Ao dançarem, ele lhe
fez a corte e lhe propôs uma troca de colares. Três incidentes levantaram as suspeitas. A avó que
rezava, numa salinha, percebeu que o estranho a olhava com olhos de fogo toda vez que ela
pronunciava o nome de Maria. Quando o casal passava perto de seu berço, um bebê se punha a
chorar. Enfim, a neve havia derretido em volta do cavalo negro. O estranho insistiu para que a
dança continuasse após a meia-noite e dançou-se, então, na quarta-feira de Cinzas. O padre veio
depois de um pressentimento e dirigiu-se ao Diabo, agora desmascarado: seu chapéu caíra e se via
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seus cornos; longas garras saíam de suas luvas.
Ele queria que todos os convidados lhe
pertencessem, pois eles haviam dançado “na Quaresma”. O padre não se deixou abalar e bateu no
Diabo com grandes golpes de estola, aspergiu-o com água benta e depois pronunciou uma fórmula
de exorcismo. O Diabo se atirou através de uma parede e fugiu num barulho infernal, deixando atrás
de si um fedor que empesteou o lugar por muito, muito tempo. Quanto à pobre heroína, uns
afirmam que ela tornou-se religiosa para expiar sua falta, enquanto outros juram que ela casou-se
com seu noivo, que lhe perdoara com grande magnanimidade aventura de uma noite. Ela deu à luz
quatorze filhos! O que fez, segundo contadores, com que ela perdesse a vontade de dançar.
O Diabo não atacava somente os dançarinos.
Um grande cão preto estrangulava os
lenhadores que, exasperados por seu duro trabalho, "blasfemavam". Na véspera de Natal, um
lenhador, incorrigível blasfemador, recusou-se a acompanhar seus companheiros à missa da meianoite no vilarejo. No decorrer da noite, o Diabo manifestou a própria presença através de barulhos,
de garras que saíam da mesa e das cadeiras, de objetos que iam e vinham na cabana. No retorno de
seus companheiros, ele lhes contou o que acabara de acontecer e um deles foi imediatamente
procurar o padre para que o blasfemador pudesse se confessar. Quando o padre se apresentou, o
blasfemador recusou-se a se confessar; somente após encontrar o Diabo em pessoa é que ele se
confessou e depois morreu.
No fim de seus dias, os meninos maus deviam esperar receber uma última visita do Diabo,
que vinha buscar suas almas. Foi o que quase aconteceu a Joseph-Marie Aubé. Na “Lenda do padre
Laurent Caron”, Philippe Aubert de Gaspé conta que um Huron disse ao padre de l’Islet que havia
assistido à agonia de Aubé no Lac Trois-Saumons. Após uma vida de libertinagem, este último
ficara doente na estrada de volta. Um urso assistiu à sua longa agonia e o moribundo pôde contê-lo
graças a uma medalha da Santa Virgem que sua mãe lhe dera, suplicando-lhe nunca se separar dela.
A medalha o salvara das garras do Diabo, que tinha se transformado em um urso para vir buscar sua
alma. Mais tarde, o padre de l’Islet recebeu uma carta de um padre da França, o qual lhe disse que,
durante a execução de um rito de exorcismo, o possuído teve três dias de remissão. Quando a crise
de possessão recomeçou, o padre perguntou ao Diabo o que se acontecera e Satã confessou que ele
tivera de ausentar-se para ir buscar a alma de Joseph-Marie Aubé no Canadá; havia, porém,
fracassado!
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Os maus Cristãos, que aproveitavam o domingo para “adiantar” os trabalhos do campo ou
fazer a colheita de frutas selvagens, corriam o risco de ser punidos pelo Diabo. Um agricultor de
Rigaud, que trabalhava na sua plantação de batatas, num domingo de manhã, encontrou seus
legumes transformados em pedra. Em Saint-Lazare de Bellechasse, duas mulheres colhiam frutas
num domingo e só foram salvas das garras do Diabo por causa da presença de uma criança, “ser
puro para os poderes misteriosos”, que manteve o Diabo a distância.
Enfim, o Diabo apropriava-se dos corpos e de determinados lugares. Ele nem sempre usava
o pretexto de uma transgressão para possuir uma vítima. Na região da Beauce, possuiu uma moça, a
qual ele atormentou por muito tempo com vômitos, fugas e crises nervosas. No condado de
Champlain, um pai de família, irritado com os choros do seu caçula, exclamou que ele estava pronto
a dá-lo ao Diabo. Essas palavras evidentemente serviram de pretexto ao Diabo para tomar a criança
que, durante toda a sua vida, não pôde usar outras roupas além de uma camisola. Em Islet, uma
mulher cuja vida imoral condenou-a ao Diabo, foi também possuída e aterrorizava a paróquia com
suas lamentações. As cerimônias de exorcismo praticadas pelo padre Panet livraram-na do Diabo e
a paróquia encontrou novamente a paz.
Enfim, o Diabo apoderava-se do espaço. Foi o que aconteceu nas Forjas de Saint-Maurice,
onde uma tal de senhorita Poulin deu-lhe suas terras florestadas, as quais, um tal de senhor Bell,
contramestre das forjas, permitia que fossem exploradas por seus empregados. O Diabo não
demorou a se manifestar nesses lugares que ele considerava, doravante, como seus. O carroceiro
desconhecido, que passava sem responder as perguntas, era ele. Era também ele o misterioso mudo
que desenhava sinais incompreensíveis. Sempre ele, este homenzinho em pé, parado no cume da
chaminé das forjas. Ainda ele, o gato que ficava perto dos fornos ou o urso preto que as balas dos
caçadores não podiam tocar. Enfim, era certamente ele, o homem que forjava a própria ferradura
com o Grande Martelo.
No país das lendas: os espíritos
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Às diabruras inumeráveis, juntam-se as cem trapaças dos fogos-fátuos17 e dos duendes. Um
“homenzinho cinza” assombrava as montanhas chamadas “Sauteux”, entre Anse-à-Jean e Cap-auxRenards em Gaspésie. Era um guardião de tesouros que surgia numa “bola de fumaça” para afastar
os caçadores de tesouros dos cofres enterrados por marinheiros estrangeiros. Tratava-se, na verdade,
do fantasma de um membro da equipe, morto e jogado por cima do cofre que continha um tesouro.
“Um homem baixo e gordo” de cabeça invisível assombrou a Île-aux-Grues durante uns
trinta anos. Ele ficava sempre no mesmo lugar, “na colina da cidade baixa”. Louis LeBel, apelidado
“Carleton”, encontrou o homenzinho sem cabeça voltando de um sarau e “sentiu um aperto no
coração (medo) terrível”. Louis Carleton LeBel chegou a escapar do homenzinho, rolando colina
abaixo.
Para além do círculo protetor da casa e do fogo, que é seu coração, a noite é povoada por
formas hostis e a mais terrível, para aquele que tem que pegar a estrada depois do pôr do sol é, com
certeza, o fogo-fátuo. Pequena chama fascinante, ela atrai para os banhados o viajante que imagina
ver a claridade de uma lamparina na janela de uma casa. Almas de crianças mortas sem batismo ou
última metamorfose daquele que durante sete anos transformou-se em lobisomem, essas chamas
podem ser imobilizadas por uma faca cravada numa estaca ou numa árvore: atraído pelo aço, o
fogo-fátuo tentava introduzir-se no ângulo formado pela lâmina, e o cabo e ficava prisioneiro desse
espaço, o que permitia ao viajante
fugir. Joseph-Charles Taché mandou contar, por uma
testemunha, uma travessia de noite entre a terra firme e a Île-aux-Patins, onde um “empregado”,
Ouellon-le-malheureux, teve um fim trágico. Guiado por “uma lanterna acesa na janela”, da cabana
deles na ilha, Ouellon pôs-se a caminho, seguido de longe pelo narrador, que viu brilhar
subitamente dois fogos: um a leste e outro a oeste. O o barulho dos cascos do cavalo de Ouellon era
ouvido do lado oeste. Ele avistou diante de si uma “forte luz”; virando-se, pôde ver a fraca claridade
da lanterna a leste. Ele tinha chegado perto de Mare-aux-bars, “grande fosso muito profundo”, e a
“luz extraordinária”, um fogo-fátuo, desapareceu. O cavalo de Ouellon desapareceu no charco.
Ouellon se afogara.
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Em francês do Quebec; Feu-Follet, na França; Feu-de-Saint-Elme, Fogo-de-Santelmo. Em inglês, Will-o’-thewisp; no sul do Brasil, corresponde à Boitatá.
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Quanto aos duendes, eles gostavam de montar os cavalos. Iam aos currais, trançavam as
crinas dos cavalos para fazer rédeas e se entregavam às loucas cavalgadas noturnas. Traziam suas
montarias cobertas de suor na aurora, a crina e a cola trançadas, mas alimentadas por uma boa
quantidade de aveia, emprestada a um vizinho. Os proprietários de cavalos podiam livrar-se dos
duendes, colocando um balde de cinzas em cima da porta do curral. Assim que um duende
empurrava a porta, o balde virava seu conteúdo, e como esses pequenos seres não queriam deixar
rastros da passagem deles, passavam o resto da noite a juntar as cinzas e só partiam ao nascer do
sol, jurando nunca mais voltar.
No imaginário que exploramos, o lobisomem não pertence totalmente ao universo
supranatural das fadas, dos duendes e dos fogos-fátuos: trata-se de um homem condenado a se
transformar em lobo por não ter recebido a comunhão na Páscoa por sete anos seguidos. O
lobisomem percorre as estradas e ataca os passantes solitários. Ele pode ser dominado com uma
fincada de faca, que faz correr uma gota de seu sangue e o traz, assim, ao seu estado primeiro: um
homem nu, ferido, agradece, então, àquele que o libertou e lhe suplica para que não revele a
ninguém o que lhe acontecera.
No país das lendas: uma história diferente
Fora desse universo narrativo sobrenatural, o imaginário lendário conserva também a
lembrança das grandes proezas de homens fortes, como o gigante Modeste Mailhot, que removeu
uma enorme pedra para permitir a construção de uma estrada em Lotbinière. Um lugar particular é
reservado a Jos Montferrand, cujas proezas de brigão foram inumeráveis. Com uma mão, ele
levantou seu arado para indicar a direção de sua casa e lutou com um bando de Orangistes18 sobre a
ponte Chaudières, que cruza o rio Outaouais, entre Hull e Ottawa; mais tarde, com um chute, ele
deixou a marca de sua bota no teto de um hotel em Hull. Por sua vez, Alexis Tremblay, vulgo
Orange Order, também conhecido com o nome de Ordre orangiste ou Institution d’Orange, é uma organização
fraterna, protestante, do norte da Irlanda, organizada em lojas e fundada em 1795, em Loughgall.
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Trotador, corria mais rápido do que os cavalos mais rápidos. Correndo de Point-au-Pic à baía de
Mille Vaches, ele chegou antes de seu pai, que fizera a viagem de barco.
Poder dos padres, como o do padre Labrosse, que predisse a hora de sua morte e cujo fim foi
milagrosamente anunciado pelos sinos de todas as igrejas em que havia exercido seu ministério.
Poder do padre Ambroise Rouillard que, após sua morte, devolveu milagrosamente ao seu dono um
copo de prata que o senhor Rioux, de Trois-Pistoles, havia lhe emprestado. Poder de simples padres,
que apagavam os incêndios com um crucifixo.
Enfim, as lendas trazem a lembrança de Toussaint Cartier, o eremita da ilha Saint-Barnabé,
em frente a Rimouski, e aquela do agrimensor Fournier, que se afogou no rio Matapédia e cujo
cadáver não pôde ser removido, como se a montanha quisesse guardá-lo. A lenda traz também a
lembrança de Madeleine de Repentigny, que se tornou freira Ursulina19 depois da morte de um
Iroquois pelo qual era apaixonada e que deixou uma quantia de dinheiro para a manutenção de uma
lamparina, que queima ainda hoje diante da estátua de Notre-Dame-du-Grand-Pouvoir (Nossa
Senhora do Grande Poder). Segundo a lenda, Blanche de Beaumont jogou-se na água para escapar
dos piratas cujo navio fora transformado em pedra, bem perto do rochedo Percé.
E nós poderíamos percorrer ainda muito tempo o país das lendas. E nós poderíamos voltar
ao país dos contos. E nós poderíamos escutar as antigas canções de Natal e os velhos cânticos e
canções e as cantilenas e o Príncipe Eugène e os Estudantes de Pontoise e a Corça Branca e o
Casamento inglês e a Pastora muda... Todos esses cantos que moldaram o imaginário. Mas o país da
tradição se prolonga para muito além do horizonte. A noite cai. É preciso parar por aqui. E me
despedir.
Eu saúdo a todos vocês, Pequena Raposa e Grande Urso, Lobo e Cabritos, jovem herói que
conseguiu matar o Bicho de Sete Cabeças e encontrou uma esposa, Jean de l’Ours, Beau Prince e
Bonnet Rouge, Pequeno Polegar e seus irmãos e até mesmo o Ogro, eu o saúdo, pois sem ele não
haveria conto.
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Freira da Ordem de Santo Agostinho.
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Eu saúdo Tit-Jean, que partiu à procura de sua esposa desaparecida, Jean de Calais e o morto
agradecido, Cinderela, Peau d’Âne e La Grande Margaude, sem esquecer o Gato de Botas, e vocês
também, filhos que partiram à procura de um remédio para o pai de vocês e à pobre moça de mãos
cortadas e Bénédicité e Grisélidis. Saudações!
Saudações a você, Grand Voleur de Paris, Grande Ladrão de Paris, Jacques Pataud e
Compère Lapin, Compadre Coelho, e principalmente a ti, marido que não foi buscar a água da
Fontaine de Paris, Fonte de Paris. Saúdo a Pois-Verts e a seu padre e ao herói, apesar dele, malgré
lui, Martineau-Pain-Sec.
Uma última vez, eu saúdo as belas Damas de Branco, as boas Almas do Purgatório e “Almas
Penadas”, aos pobres espíritos suplicantes, a Pierre Soulard e a Josephine Lalande, ao padre Nicolas
Viel e a Ahuntsic, a Augustin Fraser e Martial Dubé, a Marie-Josephte Corriveau e a Valiquet.
E também, por que não, eu saúdo o velho Diabo construtor de igrejas, condutor da Canoa
Voadora, amigo dos feiticeiros e comprador de galinhas pretas, tocador de violino e belo dançarino,
imobilizado pela medalha de Joseph-Marie Aubé, possuidor de corpos e das Ferrarias de SaintMaurice. Saudações, velho Diabo, sempre vencido nas nossas narrativas!
E saudações a vocês também, fogos-fátuos e duendes, homenzinho cinza e lobisomens.
Saudações, enfim, a Modeste Mailhot, ao grande Jos Montferrand e a Alexis Tremblay,
vulgo Totador, ao padre Jean-Baptiste de Labrosse e ao padre Ambroise Rouillard, a Toussaint
Cartier e ao agrimensor Fournier, a Marguerite de Laroque de Roberval, a Marie-Jeanne Madeleine
Le Gardeur de Repentigny e a Blanche de Beaumont. E, enfim, saudações a ti, Anão Vermelho de
Détroit, cuja sombra passa pela coletânea de Marie Caroline Watson Hamlin, Legends of le Détroit.
Quando se calam os contadores e as contadoras, você(s) mergulha(m) no silêncio.
Terminadas as batalhas, já não há perseguições loucas, milagres, vitórias. O riso se apaga. Mais
nada.
Mas eis que nas fitas cassete e na película cinematográfica e na superfície dos antigos
manuscritos, enfiados nos arquivos, pode-se escutar barulhos, vozes. Alcée Fortier, Marius
Barbeau, Édouard-Zotique Massicotte, Joseph-Médard Carrière, Luc Lacourcière, Félix-Antoine
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Savard, o padre Germain Lemineux, o padre Anselme Chiasson, Carmen Roy, Catherine Jolicoeur,
Conrad Laforte, Roger Matton, Pierre Perrault, Jean-Claude Dupont tiveram, na época deles,
ouvidos atentos. Nem foi tudo perdido porque eles anotaram, registraram, transcreveram o
patrimônio vivo dos que carregam a tradição. Basta que uma voz reveze as anteriores para que o
imaginário desperte e que as obras da tradição oral revivam. Como quando Marcel Bénéteau canta
“Adieu, donc, la ville d’Orléans”. Um caderno que pertenceu à Sra. Ernest Dupuis conservara o
texto dessa canção, e a Sra. Stella Meloche, magnífica guardiã da memória do canto, conhecia sua
melodia. A canção é atual como no momento em “que três jovens militares/ Estando uma noite no
cabaré,/ E falando de suas amantes” compuseram a canção. E a tradição vive. E ela viverá.
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Vozes d´Haiti
Vodu: o Ounfò revisitado
Maximilien Laroche 1
Resumo: Este artigo resume a visita a uma exposição em Nova York sobre o vodu haitiano, as reflexões que suscitou
sobre o vodu tal como é entendido no Haiti e além desse país; apresenta, finalmente, uma interpretação do alcance
das transformações que o vodu haitiano conhece.
Palavras-chave: exposição – vodu – Haiti – transformações
Résumé: Cet article rend compte de la visite d'une exposition sur le vodoun haïtien, tenue à New York, des
reflexions qu'elle a suscitées sur le vodoun tel qu'il est vu en Haïti et au dehors de ce pays et finalement d'une
interprétation de la portée des transformations que connait le vodoun haïtien.
Mots-clés: exposition – vodoun – Haïti – transformations
Maximilien Laroche nasceu em Cap-Haitien, no Haiti. Ensinou literatura francesa do século
XVII e literaturas francófonas do Caribe na Universidade Laval, em Quebec. Entre as últimas
publicações de sua autoria, pode-se mencionar Le poids des mots (2013) e Nan kalfou espastan,
sa k ap pase? (2011).
No mês de outubro de 1998, no Museu Americano de História Natural, em pleno coração
de Manhattan, havia uma grande exposição intitulada Sacred arts of Haitian vodou. Como eu
estava em Nova Iorque na ocasião para ministrar uma conferência sobre os bizangos no Cercle
11
(Université Laval). Trad. Nubia Hanciau (Universidade Federal do Rio Grande – FURG)
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Primevère2, feliz coincidência ou vontade manifesta dos espíritos?, não quis perder essa
exposição.
Aliás, confirmou-se minha impressão de que o acaso havia sido programado pelos lwa: um
dos três altares reconstituídos em uma das salas do museu era consagrado aos bizangos.
Outro sinal inequívoco da bênção que me concediam os espíritos voduescos, foi eu ter
podido entrar sem pagar, já que a direção do museu, naquele dia, abriu suas portas a grupos de
crianças entre as quais passei, senão invisível, pelo menos despercebido. O que, tendo em vista
minha idade, só poderia ser considerado milagre. Deveria ver essa exposição! Era desejo do alto!
Ao sair dela corri para o Central Park, que se encontra em frente ao museu, levantei os
braços para o céu e gritei para mim mesmo com a voz forte ao máximo: “Louvado seja o grande
Mestre! O vodu de agora em diante é pós moderno!”
Efetivamente, para aqueles como eu, que no Haiti haviam conservado a imagem de um
vodu rural, pobre e dispondo de poucos meios para dotar-se de altar com decorações tão
ricamente aparamentadas, ornado de objetos tão suntuosos quanto em Nova Iorque, confirmavase a opinião do crítico Holland Cotter (no suplemento Beaux arts do New York Times, 8 out.
1998): a exposição do Museu Americano de História Natural não apresentava de forma alguma a
imagem da religião popular dos haitianos, ou seja, um culto de camponeses pobres, explorados e
desfavorecidos, bricolando objetos rituais com a ajuda de material heteróclito e exprimindo suas
convicções religiosas em contexto natural sumariamente organizado. O que ela mostrava era uma
face da pós-modernidade contemporânea do vodu. O vodu haitiano acabava de alcançar a etapa
de sua terceira idade.
As três idades do vodu haitiano
Antes de chegar a ser objeto de admiração de um público internacional, o vodu haitiano
passou por três etapas. Houve primeiro um período pré-moderno, que se estendeu da chegada dos
2
O Cercle Primevère é um clube fundado em Cap-Haïtien, que conheceu grande sucesso ao longo dos anos 1940 a
1960 pelas suas diversas atividades: conferências, banquetes, bailes; e que os haitianos, imigrados nos Estados
Unidos, quiseram fazer reviver em Nova Iorque.
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primeiros africanos, em 1505, até 1928, época da ocupação estadunidense do Haiti, período que
vai então da primeira colonização à primeira recolonização, após sua independência.
Em 1928, com a publicação de Ainsi parla l’oncle, o livro-manifesto do Doutor Price-Mars,
começava um segundo período, o da reabilitação do vodu, até então considerado superstição e até
mesmo prática bárbara de canibais. O Doutor Price-Mars empenha-se em fazer reconhecê-lo
enquanto legítima expressão de crenças que tinham plenamente direito ao título de religião.
Atacando o bovarismo coletivo, o autor de Ainsi parla l’oncle empreendia a descolonização
interior dos haitianos, no mesmo momento em que se efetuava sua recolonização política e
econômica.
Com a exposição Sacred arts of Haitian vodou, assistimos ao reconhecimento internacional
da independência dos haitianos, ao menos no domínio dos sentimentos religiosos e de sua
expressão artística. É como se ao slogan que os afroamericanos repetiam, nos anos 60: “Black is
beautiful”, o mundo respondesse: “Sim!” – mas, nesse caso, a resposta é para os haitianos, mais
precisamente para o Doutor Price-Mars, que o mundo exterior diz: sim.
Sabe-se que durante o período colonial francês o vodu foi perseguido pelas autoridades
políticas que chegavam ao ponto de impedir os negros de tocarem tambor. A pressão sobre o
vodu não aliviou depois da independência, em parte devido à opinião pública estrangeira, cuja
atitude se revela, sob Geffrard, por ocasião do caso de Bizoton3. Dele serviram-se para reafirmar
o caráter bárbaro do vodu. Spencer Saint-John, em 1884, em Hayti or the black Republic, foi
ainda mais longe, e, sob a ocupação americana, dois livros – Le roi blanc de la Gonave, de
Faustin Wirkus, e, sobretudo Magic Island, de William B. Seabrook –, repetiram os mesmos
estereótipos do período colonial. A diferença desta vez foi que a máquina midiática dos Estados
Unidos apoiou essa nova campanha de desvalorização, fazendo-a desabrochar notadamente no
cinema, com filmes de zumbis que continuam a fazer os melhores momentos de cinéfilos em
busca de sensações fortes.
Processo intentado em 1863, contra pessoas suspeitas de terem cometido crime, motivadas por
feitiçaria.
3
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Com Ainsi parla l’oncle, de Price-Mars, a tendência é revertida e cada vez mais o vodu é
considerado religião completa. Sua segunda idade é marcada pelos grandes romances indigenistas
de Cinéas, de Roumain e Alexis, mas, sobretudo, pela influência exercida pelo Escritório de
Etnologia e pelos principais ideólogos que desenvolveram as ideias de Price-Mars em seus
trabalhos a respeito da cultura popular haitiana.
É nesse período que conhece seu apogeu e ao mesmo tempo sua metamorfose com a
exposição do Sacred arts of Haitian vodou. Depois de ter sido superstição, religião, o vodu
tornou-se espetáculo, divertimento, e até mesmo comércio, advindo daí seu caráter de fenômeno
pós-moderno. Antes, porém, de nos interrogarmos a respeito dessa pós-modernidade do vodu,
precisemos a seguir que as datas de 1505, 1928 e 1998 são tão arbitrárias enquanto momentos de
mudança do perfil da religião popular dos haitianos, quanto quaisquer referências cronológicas.
Além disso, antes de Price-Mars, intelectuais haitianos haviam esboçado tentativas para explicar
o vodu; e depois dele, mesmo que se afirme seu caráter totalmente religioso, o vodu não deixou
de continuar objeto de sérias reservas.
Onde parece haver unanimidade, desde Price-Mars, é no âmbito do papel estético do vodu e
do valor de suas realizações artísticas. É com clareza que vê Holland Cotter, o crítico da
exposição do Museu Americano de História Natural, quando ele diz:
Mas é a arte que conta, e os objetos incluídos aqui, uns 500 ao todo, são fascinantes.
Abrangem de vívidas narrativas pintadas a tremulantes bandeiras bordadas, de madonas
de gesso a imensos tambores esculpidos em madeira. Nesses trabalhos, africanos,
europeus e influências indígenas do Novo Mundo tecem em conjunto uma produção
intensamente visceral, e de inquietante beleza.
Os resultados são emblemáticos do espírito assimilativo do pós-moderno e das poderosas
produções da arte religiosa...
Pode-se imaginar um visitante do Museu Americano de História Natural percebendo,
com ceticismo, ou até desalento, o ritual reduzido à condição de curiosidade. Mas outras
reações também são possíveis, assim como outras mostras semelhantes confirmaram...
O pensamento pós-moderno dos anos 90, para seu crédito, abriu caminho para que
ambos os pontos de vista coexistam, com suas inerentes limitações e revelações. Graças
a esta atmosfera de acolhida é que a arte culturalmente eclética do vodu haitiano,
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materialmente efêmera, contemporânea e tradicional, sagrada e profana, pode por fim ser
vista como o magnífico tour de force espiritual que ela é.4
Enquanto espetáculo, o vodu não se tornou simplesmente pós-moderno fora do Haiti. No
próprio país ele é diversão para o turista. Aquele que é levado para ver um criseur5 triturando
vidro em sua boca, engolindo fogo ou deixando-se martelar sobre um morteiro, pode se perguntar
se está em um lugar sagrado ou em um circo. Mas, como bem diz o cronista do New York Times,
as duas facetas, religião e diversão, podem coexistir numa mesma perspectiva pós-moderna.
São as manifestações desta nova idade do vodu que eu gostaria de examinar no domínio das artes.
Inicialmente, religião para iniciados, o vodu concedia livre acesso apenas aos seus adeptos.
Em Bois Caïman, Boukman6 não oficiava para os turistas. Mas com o modernismo, todos podem
entrar no altar (ounfò). O resultado, na era pós-moderna, é que entre os visitantes podem coexistir
duas visões do vodu, para não dizer duas realidades – a religiosa e a artística –, e não se sabe se a
segunda prevalece sobre a primeira.
O altar revisitado
Essa revisita do altar tradicional que nos obrigam a fazer não apenas a exposição de Nova
Iorque sobre as artes sagradas do vodu, mas também os numerosos livros publicados desde 1928,
força-nos a fazer algumas perguntas. Primeiro, a respeito do vodu e a globalização. Não se deve
4
No original: “But it is the art that counts, and the objects included here some 500 in all, are spellbinding. They
range from vivid painted narratives to shimmering beaded flags, from plaster Madonnas to immense carved wooden
drums. In these works, African, European and indigenous New World influences weave together to produce intense
visceral excitement and disquieting beauty… The results are emblematic of post-modenism’s assimilative spirit and
powerful works of religious art… One can imagine a visitor to the American Museum of natural History perceiving
with skepticism, even dismay, ritual reduced to the status of a curiosity. But other reactions are equally possible, as
other, similar exhibitions have confirmed… Post-modern thinking in the 1990’s has, to its credit, cleared the way for
both views to coexist, with their attendant limitations and revelations. An it is thanks to that embracing atmosphere
that the art of haitian Voodoo- culturally eclectic, materially ephemeral, contemporary and traditional, sacred and
profane, can be seen at last, and seen as the magnificent spiritual tour de force that it is”. New York Times,
suplemento Beaux-Arts, 8 de out. 1998, p.E31, p.E36, pE36b, p.E36c. As traduções do inglês são de autoria da
professora Eloína Prati dos Santos.
5
6
Voduísta tomado de crise de possessão.
O Bwa Kayman é a floresta onde, em 14 de agosto de 1791, reuniram-se os escravos que desencadeariam a
insurreição geral de 22 de agosto do mesmo ano, a qual seria o prelúdio à guerra da independência do Haiti.
Boukman foi o chefe que presidiu a reunião, aquele que dirigiria a insurreição.
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compreender esta palavra unicamente sob um ponto de vista econômico, pois há um sentido bem
mais extenso. Louis Vincent Thomas o esclarece na seguinte reflexão:
Isto também não significa que o passado está morto e não tem mais lugar nas memórias.
O contrário é que é verdadeiro. Talvez ele reencontre mesmo um acréscimo de
importância e de significação em um momento em que a identidade africana tem tanta
dificuldade para se definir em função de normas que não são suas e que, por engano,
tomamos naturalmente por universais. Encontram-se também na África essas tendências
julgadas muito rapidamente passadistas, que solicitam às religiões tradicionais serem ao
mesmo tempo a memória e a defesa da coletividade ante as agressões de fora, um pouco
à maneira pela qual o vodu haitiano soube preservar a herança cultural de um povo
ameaçado de perder sua identidade.
Que as novas formas sejam largamente sincréticas, ao menos em aparência (pois, se a
gramática é nova, a semântica em nada variou!), não muda nada nessa história. Longe de
ser um fenômeno aberrante, a comunidade profética ou messiânica de que falaremos
mais adiante, é bem mais testemunha de uma criatividade do que a ela renuncia: não se
mói mais o mesmo grão; mudamos o cenário da vida quotidiana, mas são as mesmas
necessidades que permanecem, e largamente a vontade de se bastarem por si mesmas. 7
A primeira conclusão à qual nos conduzem esses propósitos é a de que é preciso não apenas
comparar o vodu haitiano aos vodus beninenses ou iorubá, mas, de maneira mais geral, é preciso
fazê-lo com os vodus africanos e as formas transculturadas que eles conheceram no Haiti, em
Cuba, no Brasil, na Afro-América, em suma. Então, parece que são essas religiões
afroamericanas que remetem por antecipação às suas fontes africanas a imagem do destino para o
qual estão prometidas. Esta é, aliás, a ideia que desenvolveu Francis Kpatindé em artigo sobre o
Haiti intitulado: “Haiti, o futuro anterior”.8
No original: “Cela ne signifie pas non plus que le passé est mort et qu’il n’a plus de place dans les mémoires. C’est
le contraire qui est vrai. Peut-être même retrouve-t-il un surcroît d’importance et de signification dans un moment où
l’identité africaine a tant de mal à se définir en fonction de normes qui ne sont point siennes et qu’à tort, l’on tient
volontiers pour universelles. Aussi retrouve-t-on en Afrique ces tendances jugées trop rapidement passéistes et qui
demandent aux religions traditionnelles d’être tout-à- la fois la mémoire et le bouclier de la collectivité face aux
agressions du dehors, un peu à la manière dont le vaudou haïtien a su préserver l’héritage culturel d’un peuple
menacé de perdre son identité”. “Que les formes nouvelles soient très largement syncrétiques, du moins en apparence
(car si la grammaire est nouvelle, la sémantique n’a guère varié!), ne change rien à l’affaire. Loin d’être un
phénomène aberrant, la communauté prophétique ou messianique dont il sera question plus loin témoigne plutôt
d’une créativité qui ne renonce pas: on ne moud plus la même graine, on a changé le décor de la vie quotidienne,
mais ce sont les mêmes besoins qui demeurent et pour une large part la volonté d’y suffire par soi-même”.
THOMAS, Louis Vincent. La terre africaine et ses religions. Paris: L’Harmattan,1992, p. 32.
8
“Haïti, le futur antérieur”. Jeune Afrique, n. 1711, p. 46-47, 21-27 oct.1993.
7
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De fato, a globalização em pauta no mundo de hoje, nada mais é do que o apogeu de um
movimento que começou em 1492, prosseguiu com o tráfico negreiro e, finalmente, concluiu-se
com a divisão da África no Congresso de Berlim (1884-1885).
As religiões africanas começaram a suportar no Haiti, em Cuba e no Brasil o destino que
conhecem cada vez mais na própria África. A partir de então, como considerar todas essas
religiões de acordo com a imagem de integridade ou de pureza que corresponde cada vez menos à
realidade sincrética às quais se encaminham? E então devemos pensar: o que o vodu não diz, o
cristianismo, ao qual ele é mais frequentemente associado, diz em seu lugar? Devemos considerar
as religiões africanas ou afro-americanas como entidades independentes ou crenças associadas
em uma espécie de livre troca com as crenças cristãs? Em suma, é preciso tomá-las por novas
realidades sob as quais conviria distinguir, conforme propõe Louis-Vincent Thomas, uma
gramática nova e uma semântica tradicional? Finalmente, não deveríamos considerar essa
situação do ponto de vista que adotaríamos pensando no sincretismo das crenças greco-romanas
ou célticas da Europa com o judeu-cristianismo?
Uma segunda questão vem de alguma forma reforçar essa necessidade de uma abordagem
global, a das línguas utilizadas para falar do vodu e em nome dos voduístas. Até quando
continuaremos a escrever sobre o vodu em outras línguas que não a dos próprios voduístas e,
sobretudo, ignorando as línguas fontes que são notadamente o fon e o iorubá? Guérin
Montilus escreveu o seguinte:
São numerosos os termos fon que permanecem na língua religiosa haitiana. Mas o mais
significativo é o fundo semântico daomeano, que forma a camada profunda de
significação e interpretação do mundo pelo haitiano. Este fundo semântico encontra-se
particularmente na mitologia dos lwas chamados vodus pelos fon. Mas é também
dissimulado de mil maneiras por meio dos gestos, dos ritos, das exclamações, dos
cantos, etc. Nem sempre é explicitado por palavras.9
Tomemos o exemplo da palavra vodoun, sobre a qual Montilus nos diz que se trata do
termo para designar os lwas em fon. Escreve-se na maioria das vezes sem o n final, que acentua a
9
MONTILUS, Guérin. Mythes, écologie, acculturation en Haïti, Zurich, 1973.
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necessidade de nasalizar o final da palavra. Em contrapartida, a letra h ordinariamente
acrescentada a ounfort, em sua ortografia francesa, hounfort, insiste duplamente nessa necessária
nasalização.
Os haitianos são puristas, com razão. E têm duplamente razão de sê-lo a partir de 31 de
janeiro de 1980. Efetivamente, a partir dessa data é preciso atentar para os erros de francês, de
pronúncia e ortografia, e os erros do idioma haitiano, crioulo, se preferirmos. O decreto de 28 de
setembro de 1979 estipula:
Artigo 2º – “O crioulo, enquanto língua falada e escrita, é constituído de sons, de sinais
correspondendo a consoantes, vogais, semiconsoantes e meias-vogais”.
Na circular de 31 de janeiro de 1980, o secretário de Estado Josèf C. Bèna fornece as
seguintes precisões: Depatman Edikasyon Nasyonal, dapre sa GREKA (Gwoup Rechèch pou etidye Kreyòl
Aysyen) ki nan ONNAAK la te voye ba li, voye papye sa a ba nou pou nou sèvi nan lekòl yo. 10 E entre os vwayèl
bouch-nen está indicado: OUN, a exemplo da palavra OUNSI.
As palavras vodoun, oungan, ounfò, ounsi, ountò, oundjenikon, e todas aquelas que
compreendem o radical oun com um prefixo ou sufixo, devem ser escritas oun, para reproduzir o
som do ditongo nasalizado OUN, cette vwayèl bouch-nen11, conforme indicado na circular do
ministro.
Essa regra ainda não é sistematicamente observada simplesmente porque todos aqueles que
escrevem em crioulo haitiano, mesmo se o pronunciam muito bem, no caso dos falantes
haitianos, no momento de escrevê-lo deixam-se guiar pelo exemplo daqueles que ignoram a
pronúncia, sobretudo, das palavras em fon e yorouba. É assim que em francês há pelo menos três
maneiras de escrever a palavra vodu: vodoun, vaudou, vaudoux, vodou; e em inglês, duas: voodoo
e hoodoo. Portanto, se folhearmos alguns dicionários do crioulo haitiano, poderemos constatar o
seguinte: L.Peleman, em seu Diksyonnè Kreyòl-Franse, de 1978, escreveu vodou(n), colocando o
n entre parênteses. Bryant Freeman, por sua vez, em seu Diksyonè òtograf kreyòl ayisyen, de
10
O Ministério da Educação Nacional apresenta as regras de aplicação da escrita crioula haitiana.
11
Vwayèl bouch-nen: vogal pronunciada pela boca, mas nasalizada.
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1988, primeiramente escreve vodou, com uma única forma, mas no Haitian English dictionary,
segunda edição (1998), apresenta duas formas: vodou, vodoun, palavras haitianas que o inglês
traduz por voodoo. Há então no mesmo lexicógrafo, com dez anos de intervalo, evolução na
ortografia da palavra. Pode-se compreender que, para o escritor simples, a evolução seja ainda
mais lenta.
Quando consultamos os escritos de etnólogos beninenses ou franceses ao descrever a
cultura dos Fon, logo, no caso de pesquisadores que conhecem a língua, daqueles que a estudam,
observar-se-á que o beninense, Maximilien Quénum, em seu livro Au pays des Fon (1937),
escreveu vodoun, e que o francês Edouard Bourgoignie, em Les Hommes de l’eau (1977),
escreveu vodun.
Por último, para fechar o círculo, os leitores do jornal Haïti en Marche não deixaram de ler
o pequeno texto publicado na página 19, n. 34, v. XIII de 29 set. 1999:
O público exclamou: oun! quando Papi Djo, o conferencista, ao comparar o vodu e
outras religiões africanas, contou que na sequência de uma viagem ao Benin, descobriu
que o som oun é sinônimo da palavra espírito. Essa vogal nasalada é utilizada pelos
africanos em vários termos, tais como: oungan (sacerdote do vodu), oungenikon (mestre
da canção), ounsi (diácono do sacerdote), etc. Segundo o conferencista, esse som e essa
palavra têm significação muito importante no vodu africano. 12
Ao ler esse texto, constatamos que ainda é preciso apreender muito através de pesquisas de
campo e, sobretudo, esperar longo tempo antes que esses resultados sejam integrados à cultura
geral e utilizados correntemente. Assim, depois da publicação do livro de Pierre Anglade,
Inventaire étymologique des termes créoles des Caraïbes d’origine africaine (L’Harmattan,
1998) deveríamos saber que não podemos mais nos permitir apresentar definições fantasiosas às
palavras do vodu. Deveríamos também estar bem conscientes das derivações de sentido das
palavras que resultam da transculturação, cuja responsabilidade primeira pode ser dos escritores.
“Tout mounn fè…Oun! Pandan Papi Djo ap fè devlopman konparezon ak diferans ant vodou ak lòt relijyon yo, li
di li vwayaje Benen peyi Lafrik epi, li dekouvri mo OUN-an ki vle di espri. Li di mo OUN sa-a soti nan bouch ak
nen Afrken yo. Ou jwenn ni nan youn bann mo vodou tankou oungan, oungenikon, ounsi elatriye. Li di son OUN saa gen youn kokennchenn syifikasyon relijye nan peyi Afrik sa-a…”.
12
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Entre os Fon, a palavra vodu, antes de remeter à palavra religião, no sentido de instituição,
significa sangue, espírito, pacto, força. Karen McCarthy Brown sublinha: “Forasteiros deram o
nome vodu às práticas religiosas tradicionais do Haiti; só recentemente, e de forma limitada, os
haitianos começaram a empregar o termo como os outros”.13
Mas, alguns anos antes, sem esperar por essa constatação da antropóloga estadunidense,
Yves Déjean, após minuciosa pesquisas em várias regiões do Haiti, estabeleceu muito bem em
que sentido a palavra vodu era utilizada pelos falantes haitianos:
Se percorremos as diversas regiões do país e perguntamos às pessoas o que quer dizer a
palavra vodu, elas não respondem que é uma crença, um tipo de cerimônia ou de
oferenda aos espíritos. Para elas a palavra não está ligada a pessoas reais (padres,
curandeiros, defuntos ou seres espirituais, como os anjos, os gêmeos, os bizangos, os
makandas ou os champouèls14). O vodu, para elas, é antes de qualquer outra coisa, uma
dança em honra dos espíritos.15
Isso nos conduz diretamente à questão das relações entre o vodu e a escritura, pois o novo
sentido dado à palavra resulta em boa parte do emprego que dela fazem os que sobre ela
escrevem e não dos próprios voduístas. Sendo religião oral, há o risco de transformá-lo em
religião do livro que sobre ele se escreve. A oralidade do vodu é causa de uma flutuação doutrinal
que os escritos daqueles que o analisam de fora parecem fixar, além de uma tomada da palavra ou
da escrita das próprias práticas.
A religião do povo haitiano não consiste de uma única teologia uniforme. Ao contrário,
o que antropólogos denominaram vodu, ou religião vodu, é, na verdade, uma coleção
diversificada de ritos que afinal remetem suas origens a diferentes partes da África... Os
próprios camponeses africanos não chamam sua religião de vodu. [...]
Vodu, do seu ponto de vista, refere um evento específico, uma dança ritual durante onde
os espíritos chegam para montar e possuir o crente. No entanto, este conceito não é
“Outsiders have given the name voodoo to the traditional religious practices of Haïti; only recently and still to a
very limited extent, have Haitians come to use the term as others”. “Voodoo”, in Arthur C. Lenmann, James E
Myers, Magic, Witchcraft and Religion, California, London, Toronto, Mayfield Publishing Co., 1985, p. 312.
14
Os makandas e os chanpwèls são bandos de feiticeiros, que circulam à noite, segundo a crença popular.
15
“E nou mèt fè ronn péyi a ap mandé moun sa VODOU yé, sa yo rélé VODOU. Sé pa kouayans, sé pa tout kalité
sérémoni, sé pa tout kalité manjé loua, sé pa tout kozé ougan, bòkò, lésin, lémò,lézanj, marasa, bizango, makanda,
chanpouèl. VODOU sé you dans loua. Gin lè sé sans sa a nou jouinn nan bouch mas pèp la”. Iv Déjan, Mo “vodou”
a an kréyòl, Sèl, ano 6, n. 41, p. 32, out. 1978.
13
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universal, e há muitas religiões no Haiti, particularmente no sul, onde a palavra é pouco
conhecida.16
De fato, no norte do Haiti fala-se bem mais dos zanj (anjos) do que de lwa (espíritos). Do
vodu fala-se em uma língua outra, diferente da utilizada na religião popular. Sabe-se, além disso,
com que vontade fala-se com frequência do vodu, quer seja para denegrir, quer seja para
reabilitar. Às vezes surpreendemo-nos ao ver pesquisadores, tais como Wade Davis17, afirmarem
ter recebido confidências de membros de sociedades secretas e recusarem-se a desvendar o
conteúdo, sem com isso impedirem-se de tecer julgamentos favoráveis ao papel e ao
funcionamento dessas sociedades. Do oral ao escrito, do vodu vivido ao vodu narrado, há uma
distância sobre a qual deveríamos nos interrogar.
Se dessa escrita do vodu tentarmos passar à sua realidade vivida, não poderemos nos
impedir de pensar em outra forma de distância. Antes do estabelecimento do estado nação e sua
responsabilidade pelos serviços das escolas e dos hospitais, era à prática religiosa que incumbia
fornecer esses serviços à população. A religião deveria fazer viver e esperar, logo ensinar, cuidar
e fornecer razões e regras de vida. Mas quando pensamos, muitas vezes fazemos a elipse do
percurso que nos conduziu até onde estamos. Resulta daí que subestimamos o tempo, os esforços,
as condições e as circunstâncias que permitiram chegarmos ao pensamento presente. Esquecemos
a distância que separa nossa capacidade de pensar daquela de realizar nossos pensamentos. Além
do mais, o olhar do outro pode esclarecer as coisas ao ponto de nos fazer vê-las como ele as vê, e
nos impedir de vê-las como verdadeiramente elas são. Isso leva a nos interrogarmos não mais
apenas sobre a relação do vodu com a escrita, mas também com a epistemologia e com a política.
“The religion of the Haitian people does not consist of a single uniform theology. On the contrary, what
anthropologists have loosely termed Vodoun, or vodoun religion, is actually a collection of diverse rites that
ultimately trace their origins to different parts of Africa….The peasants themselves do not call their religion vodoun.
[…] Vodoun, from their point of view, refers to a specific event – a dance ritual during which the spirits arrive to
mount and possess the believer. Yet even this concept is not universal, and there are many regions in Haiti,
particularly in the south, where the word is hardly recognized”. DAVIS, Wade, Passage of darkness, Chapel Hill and
London: The University of North Carolina Press, 1988, p. 273.
16
17
DAVIS, op. cit., p. 243.
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A não fixação da doutrina voduesca está ligada à sua oralidade, mas também ao seu caráter de
religião iniciática. Louis-Vincent Thomas pensa que se trata de um traço da cultura dos africanos:
Os próprios autóctones, em sua imensa maioria, não sabem ou não sabem mais o porquê
de continuarem a viver. Em primeiro lugar isso não tem a ver com a evolução
contemporânea nem com o desagrado progressivo dos jovens em relação às tradições
ancestrais. Mas tem principalmente relação com a concepção africana do saber que
sempre é da ordem da iniciação e então do segredo. Ora, os grandes iniciados nunca
foram muito numerosos e, com o tempo, seu número e sua importância só podem
decrescer. Apesar disso, são eles os únicos detentores do conhecimento profundo, e é em
sua porta que é preciso bater”.18
Se na concepção africana do poder, saber e segredo estavam ligados, conforme afirma
Louis-Vincent Thomas, teríamos então aí a dimensão epistemológica e política do vodu a
respeito da qual deveríamos nos interrogar, tanto pelas próprias crenças voduescas, quanto por
sua influência nos costumes haitianos.
Em nossos dias podemos dizer que a transparência é exigida de qualquer poder: religioso
ou político. É o que o escrito garante: todos podem referir-se a ele. A palavra que se transmite de
boca a boca comporta um princípio de seleção, para não dizer oposição, uma vez que o segredo
só se justifica contra um adversário. Mas isso desencadeia uma consequência inesperada. Como
podemos ser missionários, distribuir a boa palavra se ela deve permanecer secreta? Uma religião
de iniciados é uma religião de resistência, de oposição, de combate. Ela não pode
consequentemente aceitar a adesão senão em caso de urgência. Era o que acontecia na época
colonial, quando era necessário combater o Outro, com toda a urgência.
Após a independência, quando o sentimento de urgência diminuiu porque não era
necessário combater o Outro, e quando o irmão inimigo parecia menos ameaçador porque possuía
nossas mesmas armas, pode-se compreender que o vodu tenha sido menos revolucionário. Forte
contra os dominadores estrangeiros, ele revelou-se fraco contra os dominadores nacionais. De
Toussaint Louverture até nossos dias, permaneceu sem força porque sem união ante o poder
político haitiano que o colocava fora da lei.
18
THOMAS, op. cit.
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Sem dúvida, não se chegou a eliminá-lo, mas é bem possível que os mesmos dirigentes que
o colocavam fora da lei estivessem, de fato, mais interessados em manipulá-lo do que em destruílo. Em relação a isto, a conduta de François Duvalier é esclarecedora. Enquanto durante sua
campanha eleitoral ele naturalmente deixava acreditarem que era um voduísta que chegara ao
poder, jamais permitiu o reconhecimento oficial à religião popular. Sobre sua escrivaninha,
entretanto, ele deixava ostensivamente espalhada uma foto de Paulo VI, pois, sendo o chefe de
uma instituição cuja força poderia ser mobilizada contra Duvalier, este tomava precauções. Em
contrapartida, os sacerdotes que não estavam unidos em uma Igreja nem em uma única doutrina,
não tinham capacidade de mobilização contra ele. Podiam apenas resistir, sobreviver, deixandose manipular. O que demonstra o realismo do ditado popular que afirma: “konplò pi fò pase
wanga”19.
Arma contra os outros, mas não necessariamente entre nós, o vodu, indiretamente pelo
segredo, diretamente pela fluidez doutrinal, não se apresenta como arma absoluta, aquela que
poderia vencer todas as dificuldades e que todo o mundo, sem exceção, procura.
Pode-se compreender que onde o vodu apresenta as respostas mais satisfatórias é no terreno
das artes. Aqui a estética é ética, pois o belo é valor, tanto para julgar quanto para desfrutar, valor
teórico e prático, suscetível de guiar tanto nossas ideias quanto nossos comportamentos, de
educar cada um e de nos reunir todos, logo valor de equilibro e de harmonia.
Isso explica o sucesso universal do vodu, o poder de sedução que exerce sobre uns e outros.
Parece que através da sua arte, os artistas, de todas as origens, conseguem comunicar a beleza
dessa ideia-força da cultura africana, esse valor ao mesmo tempo estético e ético que o cronista
da exposição Sacred arts of Haitian vodou, chamava de “a energia fascinante e devota”.
Miles runs the voodoo down: estética e ética do vodu
19
Deve-se temer muito mais as manobras dos conspiradores do que as dos feiticeiros.
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O célebre jazzista Miles Davis compôs um dia uma peça que intitulou: Miles runs the
voodoo down. Este título ilustra bem o sentido conferido pelos artistas à palavra vodu e remete
também à estética na mesma medida que à ética. Lembremos em primeiro lugar a definição para
o haitiano que apresentava Price-Mars em Ainsi parla l’oncle:
Um povo que canta e que sofre, que pena e que ri, um povo que ri, dança e se
resigna. Do nascimento à morte, a música está associada à toda sua vida. Ele canta com a
alegria no coração ou com lágrimas nos olhos. Canta no furor dos combates, sob a
saraivada das balas e na confusão das baionetas. Canta a apoteose das vitórias e o horror
das derrotas. Canta o esforço muscular e o repouso após a empreitada, o otimismo
inextirpável e a obscura intuição de que nem a injustiça, nem o sofrimento são eternos; e,
além disso, nada é desesperador, pois “o bom Deus bom” canta sempre, canta sem
cessar.
Se acreditamos no Tio (Oncle), é então plenamente justificado procurar uma ética nos
cantos do vodu, conforme acaba de fazer Kesner Castor em seu livro sobre a Éthique vaudou
(L’Harmattan, 1999), mesmo que eu acredite que essa ética também se encontra nos provérbios,
nos aforismos, nos contos, e talvez, antes de tudo, no exemplo, no modelo de vida que oferecem
certos voduístas (Karen McCarthy Brown, Mama Lola, 1991). Em sua pesquisa a respeito da
significação que os falantes haitianos dão à palavra vodu, Yves Déjean cita o exemplo de contos
nos quais é utilizada. Seria surpreendente que a ética do vodu não se impregnasse dessas histórias
em que alguns episódios são manifestos testemunhos de um maravilhoso inspirado no vodu.
Mas podemos, sobretudo, considerar que, em uma civilização oral, o valor de exemplo das
letras de uma canção é aumentado. As ideias não são simplesmente ditas, são cantadas e então a
beleza da performance serve de modelo, mais convincente ainda porque o fazer apoia, reforça e
ilustra o dizer. Não nos contentamos em dizer, convidamos a fazer, e quanto mais forte o
exemplo proposto seduz, agrada, suscita a admiração, mais nos envolvemos. A beleza é poderoso
estimulante para convencer do verdadeiro e do bem, e um encorajamento a repeti-lo. Na zona do
Caribe foi observado que as instituições mais duradouras (Orchestre septentrional, La Sonora
Matancera) e as personalidades cujo sucesso se manteve por mais tempo (Celia Cruz, Mighty
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Sparrow) são cantore(a)s. Isso deve ter relação com o contexto oral e com o prestígio que confere
o canto e a música.
Não nos enganemos então, se o haitiano canta dessa maneira; talvez seja porque ele é
eminentemente mais músico do que devido a sua civilização oral. O que nos leva diretamente à
seguinte definição do vodu: “Uma religião cantada e dançada”. Isso não quer dizer que há cantos
e danças nas cerimônias do vodu, mas, enquanto pensamento, ele também é performance. Dito de
outra maneira, não sendo religião do Livro, mas da oralidade, o vodu não separa da forma
artística a reflexão e sua expressão pela letra. Ela até mesmo prolonga a tradução desse
pensamento em ato por meio de uma prática, a dança, para desembocar finalmente no transe que
metamorfoseia o criseur em sua crença, em seu sonho e sua esperança. Há então um continuum
de valores e atos, de dizer e fazer, um ensino que se faz fazendo dizer, fazer e viver.
As notícias que nos vêm da República Popular da China nos informam que o presidente
desse país tem prazer em publicar as caligrafias no jornal Le Quotidien du Peuple. Ele perpetua
assim um antigo ideal estético chinês que fazia do mandarim um funcionário e ao mesmo tempo
um artista, quer dizer, um poeta, um sábio, um calígrafo e um gravurista. Em suma, ele era
músico, sendo poeta, desenhista, sendo calígrafo, pensador, e então sábio, e, finalmente, escultor,
ao gravar. Tal ideal de artista completo podemos encontrar na pessoa do griot africano ou do
contador caribenho. Orador, cantor, ator e mímico, o griot ou o contador não poderiam se
encarnar no escritor negro-africano a não ser que este tomasse suas precauções com relação ao
seu modelo ocidental.
No Ocidente, o escritor não precisa escrever, uma vez que tem máquinas para fazê-lo,
máquinas que vão da caneta-tinteiro ao computador. Precisa apenas pensar, emitir sinais mais ou
menos abstratos e a máquina se encarregará de reproduzi-los em caracteres decifráveis. Talvez
ele seja ainda artista, mas cada vez menos artesão, e não, em absoluto, um performeur. Alguns
artistas se refugiam cada vez mais no anonimato, ou reduzem sua escrita à expressão de um
silêncio.
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Divórcio entre estética e técnica, separação do artista e do artesão, temos aí a ilustração da
distância que separa o pré-moderno do pós-moderno. A arte haitiana e aquelas que lhe são
aparentadas (caribenha, latino-americana, afro-americana, negro-africana), caracterizam-se por
esse entrelaçamento da palavra e do gesto, do oral e do escrito, da estética e do prático, logo, do
ético e do estético.
Em todo caso podemos, a partir dessas premissas, seguir os traços da influência do vodu
nas artes do Haiti e da Afro-América. Se o vodu é canto e dança, logo letra e música, ritmo e
gestos, os dois domínios da música e da literatura carregam as marcas indeléveis desses
caracteres voduescos ao mesmo tempo em que a letra sairia do canto para o discurso, e a música,
da dança para o concerto.
Normalmente um lwa desce do céu, segundo seu desejo, para cavalgar o criseur voduísta.
Se alguém, como sugere o título da peça musical de Miles Davis, runs the voodoo down, faz
baixar o espírito, obriga o lwa a cavalgá-lo, isso significaria que ele pode submetê-lo à sua
vontade e não, como a metáfora do cavalo nos sugere, ser a ele submetido. Seria, como em outra
linguagem mitológica, forçar as Musas a nos inspirar.
Trata-se, obviamente, de uma figura de estilo. Mas a palavra vodu, como metáfora, nos
revela a visão do mundo e a estética, comuns aos artistas de ascendência negro-africana. Falou-se
da filosofia africana como de uma filosofia da força vital. A palavra vodu, na boca de Miles
Davis, simboliza essa força vital, essa energia que nos faz viver artisticamente, da qual o músico
afirma ter se servido e submetido à sua vontade. É, também, a metáfora do ideal artístico que o
jazzista se glorifica em alcançar.
Ora, percebemos que Césaire, ainda com maior precisão, do ponto de vista da teologia do
vodu, exprime a mesma visão de Miles Davis em seu poema “Marronner”, dirigido a René
Depestre, quando diz: “o sangue é um vodu poderoso”. E é essa mesma metáfora do sangue que
encontramos na pena de Senghor em seu poema “Para Nova Iorque”:
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Eis o tempo dos sinais e das contas
Nova Iorque! Ora, eis o tempo.
Tem-se que ouvir apenas os trombones de Deus,
teu coração bater ao ritmo do sangue, teu sangue.
[...]
Escuta bater teu coração noturno ao longe,
ritmo e sangue do tam tam, tam tam, sangue e tam tam.
[...]
Nova Iorque! Digo Nova Iorque, deixa afluir o sangue negro em teu sangue.
O sangue, uma das traduções possíveis da palavra vodu, em fon, é a força vital, a energia
que nos faz viver. Antes de tomar o sentido de religião, no sentido institucional que se dá a essa
palavra no vocabulário moderno, designava os espíritos, o que em crioulo haitiano chama-se lwa
ou zany. Esta força vital que o crítico Holland Holler, em seu artigo do New York Times,
caracteriza como “energia fascinante e devota do vodu”, podemos traduzir por sangue em dois
modos: objetivo e subjetivo.
Primeiro, no título da peça de Miles Davis, Miles runs the voodoo down, a palavra vodu
designa a linha do horizonte, a barra em que se fixa o saltador, a altura da façanha, performance e
realização que é preciso alcançar. Pois, se forçamos os espíritos a descerem até nós, abaixamo-los
enquanto nos elevamos. Poder-se-ia quase falar de substituição de pessoas, o que confere à
metáfora uma cor prometeica e revela ao mesmo tempo até que ponto ela é testemunha de uma
transculturação e de um sincretismo euroafricano.
Mas se o jazzista estadunidense falava subjetivamente do que podia fazer, o poeta
martinicano por sua vez fala, objetivamente, daquilo graças ao que consegue fazê-lo. Da mesma
forma o poeta senegalês. O sangue que circula em nosso corpo, que faz a cabeça pensar e os pés
dançarem, leva as mãos a tocarem e os olhos a verem, permite à obra ser escrita/oral/visual/táctil.
Pela correspondência das artes, a plenitude da performance que liga todas as artes torna-se
possível: a palavra, a dança, o pensamento e a mímica, como acontece com o griot ou o contador.
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Viver, debater-se, lutar, resistir, não abandonar (kenbe rèd), é participar de um jogo de
forças. Estamos no domínio da estética, mas também da dinâmica, da prática, e então da ética.
Eis por que não é muito grave que o vodu, em sua faceta pós-moderna, tenha passado da
religião à arte e espetáculo, ao divertimento e ao comércio. O essencial é que na casa dos
espíritos tornada teatro ou loja tenha o mesmo investimento de energia, a mesma atividade, o
mesmo entrecruzamento de força vital que testemunha a vida que pulsa, que não se apaga, que se
metamorfoseia, mas não muda nem desaparece.
O haitiano que foi ver a exposição Sacred arts of Haitian vodou no Museu Americano de
História Natural, não pode dela sair o mesmo que nela entrou. De uma religião guetoizada, pobre
e desprezada, quando sai é com a visão de uma fé que pode receber a iluminação de sua força, a
qual, no plano da arte, da beleza, não se mede pela sua verdade, mas pela sua vivacidade. Os
primeiros cristãos talvez ficassem surpresos se visitassem nossas catedrais ao verem a
magnificência desses lugares e a homenagem prestada aos santos dos quais se aproximavam nas
catacumbas. Há luzes que não se percebem com os olhos do corpo, mas com aqueles do coração.
Forçando-nos a sair do país e dos altares nativos para fazer a volta com guias estrangeiros,
a emigração, para não dizer a condição pós-moderna, nos força a revisitar com novos olhos o país
e seus altares.
Assim como essa revisita ao altar vodu, nossos escritores em suas obras, desde La famille
des Pitite-Caille, de Lhérisson, Gouverneurs de la rosée, de Roumain, Dezafi, de Frankétienne
até Zombi blues e Bizango, de Péan, não cessam de revisitar nossos mitos e lendas, de avaliar o
peso das palavras de nossas tradições populares. Este trabalho anba chal (feito em segredo),
diriam alguns, essas transformações silenciosas, pensarão outros, efetuam a metamorfose de
nosso universo fictício, e preparam aquele de nossa realidade.
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Literatura e oralidade no Haiti
A poesia em Crioulo de Georges Castera
Profa. Dra. Normelia M Parise (FURG)1
Resumo: Neste artigo propomos uma abordagem da relação entre oralidade e literatura no Haiti, focalizando a
produção poética em Crioulo de Georges Castera. Procuramos, primeiramente, situar o contexto histórico no qual
surge o interesse pelo folclore no Brasil e no Haiti, o dos anos 20, em relação à busca de uma expressão nacional em
cultura e literatura. Sublinhamos neste processo a importância da etnografia. Em seguida, abordamos esta questão no
Haiti, onde a relação entre oralidade e escrita se coloca em termos de oposição entre o Crioulo e o Francês, entre
cultura haitiana e cultura francesa. Finalmente, propomos uma leitura da poesia em Crioulo de Georges Castera
motivada pelo projeto de criar uma poesia moderna em Crioulo e de dar a esta língua um estatuto de escrita poética.
Palavras-chave: Haiti - Literatura - Oralidade - Poesia - Crioulo
Résumé: Dans cet article nous proposons une approche du rapport entre oralité et littérature en Haïti, focalisant la
production poétique en Créole de Georges Castera. Nous cherchons d´abord à situer le contexte historique dans
lequel surgit l´intérêt pour le folclore ou la culture populaire (orale) au Brésil et en Haïti, à savoir celui des années
20, en rapport avec la quête d´une expression nationale en culture et en littérature. Nous soulignons dans ce
processus l´importance de l´ethnographie. Ensuite, nous abordons cette question en Haïti où le rapport entre oralité et
écriture se pose en termes de l´opposition entre la langue Créole haïtienne et la langue française, entre la culture
haïtienne et la culture française. Finalement nous proposons une lecture de la poésie en créole de Georges Castera
motivée par le projet de créer une poésie moderne en Créole et de lui donner un statut d´écriture poétique.
Mots clefs: Haïti - Littérature - Oralité - Poésie - Créole
Pwezi se nan lavi sa sòti
Pwezi se nan lari sa sòti (G.C.)
[A poesia vem da vida / A poesia vem da rua]
1
Mestre em Estudos Francófonos e Doutora em Literatura comparada. Professora Adjunta da Universidade do Rio
Grande (FURG). Email: normelia_parise@hotmail.com
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Neste artigo abordaremos a relação entre literatura e oralidade no Haiti, focando a
produção poética de Georges Castera. Retomo aqui a comunicação Rencontre entre Macunaima
et l´Oncle para situar a questão da oralidade no Haiti e a relação entre tradição oral (folclore) e
literatura. E, em seguida, a comunicação Pour une poétique créole: poésie, oralité et modenité
chez Georges Castera. No Brasil como no Haiti, a valorização da oralidade vincula-se à relação
entre culturas e práticas orais, etnografia e formação da literatura nacional. Isso porque a
valorização da oralidade nos estudos literários e nas ciências sociais, sobretudo nos países
chamados pós-coloniais, coincide com os movimentos de constituição de uma cultura e de uma
literatura nacionais nos anos 20, com os Modernismos, os Indigenismos e a Negritude nas
Américas e no Caribe.
Mário de Andrade e Jean Price-Mars são duas figuras importantes na constituição de uma
sensibilidade, de um imaginário e um pensamento nacionais no Brasil e no Haiti, nos anos 20.
Ambos basearam seus projetos nas formas e práticas orais, através de pesquisas etnográficas, com
o intuito de combater o "bovarysme culturel" das elites. Mario de Andrade vincula-se ou é
vinculado ao movimento Modernista e Antropofágico; Price-Mars ao PanAfricanismo, à
Negritude (de Aimé Césaire, de Léopold Sédar Senghor et de Léon Gontran Damas) e ao
Indigenismo haitiano cujo primeiro número da Revue Indigène aparece em 1928, mesmo ano de
publicação de Macunaíma, de Ainsi parla l´Oncle e da Revista Antropofágica. O ano de 1928 nos
parece, assim, emblemático na invenção ou reinvenção do povo e da nação na América latina e
no Caribe.
No momento em que, em Paris então capital cultural e literária, a Europa “se africaniza”;
em que as “artes negras” passam a ocupar o centro da produção e da reflexão sobre a música, a
pintura, a escultura, a literatura, nas Américas e no Caribe, a valorização do índio e do negro
vincula-se a constituição de uma arte e de uma literatura nacionais. O Modernismo, a
Antropofagia, o Indigenismo e a Negritude buscavam valorizar o índio e o negro e incorporar a
cultura popular e a tradição oral à produção artística e literária.
Haiti e Brasil se aproximam quando se trata da herança colonial escravagista e da herança
africana. Nos anos 20, a Europa vive a guerra e o nazismo; o Haiti é ocupado pelos Estados
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Unidos desde 1915, e o Brasil, dominado pelas oligarquias e pelas estruturas oligárquicas,
continua sua política de imigração de europeus e asiáticos com o intuito de ocupar territórios e
branquear a população brasileira. Inicia também um processo de modernização, atrelado ao
capital estrangeiro, e de unificação linguística e cultural através de implementação de um sistema
de ensino nacional.
Escritores e intelectuais, conectados com as vanguardas européias, iniciam uma viagem
de descoberta do Brasil. Os românticos viajavam à Europa para de lá descobrir o Brasil; os
modernistas, além do contato com as vanguardas européias, passaram a viajar pelo Brasil pra
descobrir o Brasil. Mário de Andrade, que nunca viajou ao exterior, empreende nos anos 20,
viagens ao Norte e ao Nordeste brasileiros, registradas em O Turista aprendiz, origem da
narrativa Macunaíma, escrito logo após o retorno das viagens.
A Semana de 22 e o movimento Antropofágico eclodem em um Estado e em uma cidade
em efervescência artístico-cultural e literária. Em São Paulo, o Movimento modernista, buscava
unir a floresta e a cidade, o civilizado e o primitivo, as vanguardas e a tradição oral. Mário de
Andrade e Oswald de Andrade serão as figuras de proa deste movimento, propondo um conceito
singular e revolucionário para pensar os processos políticos, sociais e culturais no Brasil: o
conceito de antropofagia. Este buscava se opor ao “bovarismo cultural” das elites de que falava
Jean Price-Mars ao referir-se à elite haitiana. Mas também ao nacionalismo “verde e amarelo”
presente na política e na arte, que flertava com o fascismo e o nazismo. Do ponto de vista
epistemológico, as ciências sociais estão dominadas pelo positivismo, pelo evolucionismo e pelo
racismo.
O movimento modernista, que buscava unir Brasil e Europa, é seguido por um movimento
que voltava o olhar as realidades regionais e rurais com o romance de 30. E o mesmo acontece
no Haiti onde o movimento Indigenista de viés modernisante, sobretudo na poesia, é seguido pelo
roman paysan que se volta à vida do homem e da vida rural.
O Haiti, nos anos 20, vive a “Ocupação americana”. Fato que faz emergir um movimento
de resistência e um forte sentimento nacionalista. É neste contexto que Price-Mars publica La
vocation de l´élite, em 1919, e Ainsi parla
l´Oncle em 1928, compilação de conferências ou
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ensaios de etnografia proferidas no exterior. Nesta obra de natureza científica e política, PriceMars acusa a elite de racismo e de “bovarismo cultural”, lhe responsabiliza pelo profundo abismo
econômico, social e cultural entre as elites e o povo, o que produziu uma sociedade dividida.
A negação da cultura haitiana, com a diabolização da religião Vodu e a proibição nas
escolas da língua Crioulo, produziu um país com duas representações: francesa e crioula, de
matriz europeia e de matriz africana, católica e praticante do vodu, letrada e oral (analfabeta),
considerando-se que a grande maioria da população haitiana é, até nossos dias analfabeta; a fala e
a escrita em francês sendo restrita a uma minoria. Neste sentido, pode-se dizer que o Haiti sempre
viveu uma situação de diglossia e de tensões e negociações entre a língua do colonizador e a
língua do povo, entre o francês e o crioulo.
As palavras de Ainsi parla l´Oncle pontuam a irrupção na cena intelectual e política do
povo haitiano, o início de uma valorização do Vodu e da cultura popular, o início de uma
produção literária “indigenista” voltada à realidade social e ao imaginário do chamado Pays en
dehors (o país de fora). O objetivo de L´Oncle era o de "étudier la valeur du folklore haïtien" sob
a forma de conferências de vulgarização, de fazer um estudo científico com o objetivo de "relever
aux yeux du peuple haïtien la valeur de son folk-lore et d'intégrer la pensée populaire haïtienne
dans la discipline de l'ethnographie traditionnelle" (Avant-propos d´Ansi parla l´Oncle, 2009)
Price-Mars desejava submeter o pensamento popular haitiano a um trabalho científico
cujos parâmetros eram os da etnografia tradicional fundada na oposição entre dois sistemas: o da
oralidade e o da escrita. O trabalho do etnólogo seria o de integrar a oralidade à escrita, o mito à
ciência, a superstição à razão, o “pensamento primitivo” ao “pensamento civilizado”. Afirma a
necessidade de passar as crenças populares ao crivo do estudo científico com a incorporação da
tradição oral à escrita e ao discurso científico; a história não escrita à história escrita através de
um personagem da tradição oral.
O título Ainsi parla l´Oncle nos remete aos Contes de Bouki et Malice. Sempre juntos, o
primeiro representando a estupidez o segundo a astúcia. Podemos dizer que Malice é um irmão
distante de Macunaíma, tipo de personagem trickster da tradição oral caracterizando-se pela
malícia, pela astúcia, pela esperteza. Observamos que Price-Mars procura valorizar Bouki, ao
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contrário de Mário, que faz do personagem trickster o herói do nosso povo. A intenção de PriceMars parece ser a de valorizar o que representa o Oncle Bouki, le nèg bossal (paysan), em
oposição à Malice, le nèg créole. No Haiti, era chamado de nèg bossal o haitiano nascido na
África, e de nèg créole o nascido na colônia de Saint-Domingue (Haiti). Para Price-Mars, Bouqui
Malice são representantes de nos doléances, de nos amertumes et de nos habitudes d´assimilation
(Idem:20). A valorização de Bouki representaria a valorização da cultura bossale/africana no
Haiti. Assim, a primeira parte de sua obra apresenta uma defesa e ilustração do folclore haitiano e
a segunda um estudo comparado do vodu e da África. L´Oncle não ignorava que a valorização da
“cultura haitiana” deveria passar pela reabilitação da África. Para entendermos o projeto de PriceMars, precisamos entender o contexto de sua obra: o aprofundamento do racismo com a
Ocupação e a consciência do fosso existente entre "as massas camponesas" e as elites
compradoras. O pays en dehors (o país de fora) passa, então, a ser objeto de um saber e de uma
cultura.
Citanto Paul Sébillot, Price-Mars considera o folclore como a história não escrita de um
povo, a alma do povo, a exteriorização do eu coletivo no qual se encontra os materiais de sua
unidade espiritual. Ela deveria ser a matéria prima da construção da expressão da identidade
nacional. Havia a necessidade de se
inventar uma tradição, uma história, uma cultura
incorporando a tradição popular à escrita. Neste sentido, no trabalho do etnógrafo o gesto que faz
da tradição vivida um objeto de estudo seria indissociável do destino da escrita. (cf. Michel de
Certeau, L'écriture de l'histoire). O folclorista acabaria por assumir o papel de mitólogo e de
historiador.
Macunaíma de Mário de Andrade nos parece exemplar da criação, através das lendas, de
uma nova mitologia: da formação do brasileiro, pois que se trata de uma espécia de paródia do
romance picaresco de formação. Para o autor, o personagem que encontrou na tradição oral
passou a ser um sintoma de um povo em formação. Um herói sem caráter no sentido de múltiplo,
diverso, um amalgama heteróclito, um Arlequim. Macunaíma é Mário e Mário é Macunaíma de
modo que em suas viagens vão tomando a forma de um personagem/autor “crivado de raças”.
Nesta “história” de Mário de Andrade a escrita literária se alimenta de lendas e contos, resultando
em uma “escrita oralizada” ou “crioulizada” com as línguas indígenas e africanas, ao mesmo
tempo em que as tradições e línguas orais são incorporadas à escrita.
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Quanto ao escritor haitiano, este se viu sempre confrontado a dois sistemas: da língua
Crioulo e da língua Francesa, da cultura haitiana e da cultura francesa, enfim, da oralidade e da
escrita. A oposição entre oralidade (crioulo) e escrita (francesa) construindo-se num jogo de
oposições entre natureza e cultura, corpo e espírito, fábula e arquivo, mito e história; emoção e
razão, primitivo e civilizado. E é neste contexto que a literatura haitiana se desenvolverá e que os
escritores desenvolverão seus talentos e imaginários.
Tendo que lidar com a oralidade do crioulo e a escrita do francês, com a cultura popular e
a cultura de elite, o escritor haitiano teve que se confrontar com as armadilhas do folclorismo, do
exotismo e do populismo, em um país onde coexistem duas realidades socioculturais e
linguísticas diferentes e em oposição, embora em constante negociações produtoras de um
“crioulo afrancesado” e/ou de um “francês crioulizado”. Assim, no Haiti, quando falamos de
oralidade, falamos da língua Crioula, por oposição à língua da escrita, a Francesa.
Face a essa situação linguística e cultural, o escritor haitiano desenvolveria o que Lise
Gauvin chamou de surconscience linguistique, quer dizer uma consciência aguda da língua como
espaço de reflexão, de criação, de engajamento, como um “laboratoire des potentialités”. Para
Gauvin, referindo-se aos escritores francófonos, “écrire devient um véritable acte de langage”,
pois o escritor é forçado a pensar a língua.
Em Pour une poétique créole: poésie, oralité et modenité chez Georges Castera, busquei
investigar o projeto do poeta haitiano Georges Castera de dar ao crioulo um estatuto de língua
poética escrita, produzindo uma poesia crioula, como existe uma poesia francesa, uma poesia
brasileira, etc. Seu objetivo portanto é o de passar de uma língua oral (o Crioulo) a uma língua
escrita (o Crioulo). Para o poeta « la littérature créole est un choix conscient : écrire en créole
s´est se donner des armes pour lutter». E ainda, o poeta que escolhe escrever em Crioulo se
transforma necessariamente « en polémiste, en critique littéraire, en défenseur de la langue et de
son orthographe ». (Notre Librairie, n° 133, p. 96-101)
A obra poética de Georges Castera, composta de poemas em crioulo e em francês, oferece
um campo privilegiado de estudo das relações entre oralidade e escrita poética. Em nosso
argumento, a metapoesia seria um dos traços da surconscience linguistique da qual testemunha
sua poesia em Crioulo. No gesto inaugural de sua poesia em língua Crioulo encontra-se a
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questão: Como fazer poesia em uma língua que não tem tradição escrita e na qual, segundo o
poeta, não existiria o gênero “poesia lírica” no sentido da tradição ocidental? A essa questão,
acrescenta-se outra: Como fazer poesia e não prosa poética? Como « faire sortir la poésie
haïtienne de la narrativité du conte qui a nourri le roman haïtien et le récit poétique créole ».
(Notre Librairie, n°133 : 96).
Quando em 1976 publica Konbèlan, Castera dá início ao seu projeto, o de dar a língua
haitiana oral um estatuto de língua escrita, seu trabalho poético sendo motivado pelo desejo de
muní-la de uma escrita poética. Trabalho que procura ir além das práticas literárias de
crioulização da língua francesa presentes no Caribe francófono, para dar ao Crioulo um estatuto
de língua poética escrita. E mais, de uma língua poética moderna. Castera afirma, em entrevistas,
que « Il faut laisser le conte aux romanciers et aux conteurs et la poésie aux poètes » (Idem,
p.97). A narratividade da tradição poética haitiana viria da oralidade da língua Crioulo,
contrariamente à francesa ligada a uma longa tradição literária escrita.
A nosso ver, a metapoesia seria assim uma estratégia para atrair a atenção sobre o escrito
pela temática da escrita. O recurso a poemas gráficos, influência das vanguardas, teria sido uma
forma de espacializar o poema. A metapoesia seria uma estratégia de privilegiar a palavra e não o
discurso ou a voz que narra. Ela permitiria também a inscrição do poema no cotidiano, no
presente da escrita. Para Castera, a ausência do gênero poesia lírica, na perspectiva ocidental, na
língua Crioulo deixaria aos poetas a liberdade de criá-la. Neste sentido, a tradição oral (canto,
canções, provérbios, etc) seria o ponto de partida para um estudo de uma língua poética crioula.
A recusa da narratividade, poto mitan da tradição oral haitiana, o leva a uma poética da
experimentação pela via do Crioulo falado nas ruas, em constante movência, e das vanguardas
poéticas.
O poeta tira proveito de um aspecto da língua crioula, a catacrese, figura de linguagem
que consiste em desviar a palavra de seu sentido próprio alargando sua significação ; espécie de
metáfora incorporada à língua cotidiana. Neste procedimento, a palavra se liga à coisa concreta.
Entre o significante e o significado há uma relação imagética. Poderíamos dizer que se trata de
um traço da língua crioula. Mas, não seria a catacrese o traço de todas as línguas orais ? Um outro
procedimento de que se serve o poeta na construção rítmica do poema é a anáfora. A repetição
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que leva a um movimento encantatório do poema e à transe. Citando Zumthor, a palavra poética
é circularidade e função encantatória da linguagem.
O poema Tanbou é um belo exemplo da poética crioula de Castera. Nele a escrita poética
constrói-se sobre o ritmo e os sons do tambor. Ele nos remete a Paul Zumthor quando este afirma
que o tambor é fonte e modelo mítico dos discursos humanos, considerando-o como uma das
linguagens da « poesia vocal »; a percussão constituindo estruturalmente uma linguagem poética.
Nos anos 20, a música negra americana (do Norte e do Sul) “africanizava o mundo”. Surge uma
poesia fortemente influenciada pela música de origem africana. Penso no poeta da Guiana
Francesa, Léon Gontran Damas cuja escrita poética em Pigments e Névralgies é jazzeada, a
exemplo dos poetas da Harlem Renaissance. É interessante observar que a relação entre oralidade
e poesia nesta produção passa fortemente pela música. No caso das Américas, ela passa pelo
tambor, pela percussão, pelo ritmo em detrimento da melodia.
Mas, se considerarmos com Paul Zumthor que toda poesia quer ser voz através de
procedimentos de ruptura do discurso como acumulações repetidas, paralelismos, manipulações
sonoros com sequências fônicas não lexicais, aliterações, assonâncias... que estruturam o ritmo
poético; que todo poeta é voz, phôné, por oposição ao logos e que Toute parole poétique c´est un
événement qui se produit, une voix qui parle, energie sans figure, lieu fugace où la parole
instable s´ancre dans la stabilité du corps (Zumthor, 1983:159) como falar de poesia oral em
oposição a poesia escrita?
Zumthor prefere falar de poesia vocal, articulada pela voz, dita, salmodiada ou cantada.
Para ele, a oralidade é energeia : movimento, performance e mito. A poesia vocal compreende a
palavra poética (o texto), a energia (a voz) e forma sonora (melodia). Ela é energeia e não logos
pois se nutre do dinamismo vital da voz, da palavra e do corpo. Ela é mais próxima do teatro que
da poesia escrita. Com isso, Zumthor chama à atenção aos limites das tendências que opõem de
forma dual oralidade e escrita, sobretudo quando tratamos de poesia.
Voltemos ao Haiti onde a poesia está em constante diálogo com a dramatização da
palavra e com a música, e ao projeto de Castera que vai em um sentido inverso: dar ao Crioulo
(fundamentalmente oral) o estatuto de língua (poética) escrita, livre dos imperativos do narrar e
da narração, presentes, por exemplo, nos récits poétiques de Syto Cavé cuja obra permanece em
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boa parte oral e fortemente influenciada pela tradição dos récits créoles, contados por Maurice
Sixto. Georges Castera e Syto Cavé criaram juntos, em Nova York, um teatro em Crioulo nos
anos 70, o Kuidor. Deste encontro surgem assim duas perspectivas em relação à escrita poética
em Crioulo.
Vejamos um trecho do poema Tanbou:.
« Tanbou kreyòl »
pwèm pou 2 podyòl ak 2 wòch
Tanbou mache di
sa-m pa ka pote
ma kapote-l
sa-m pa ka
sa-m pa ka
ma ka
trakatap katap ka
trakatap katap ka
GOUDOU GOUDOU GOUDOU
plop
plop
plop
Gen tanbou
se ak zo mò pou bat yo
pou bri a sèk rèk
Apre ou bat vant yo
pou fè yo pale
GOUDOU GOUDOU GOUDOU
plop
plop
plop
pou fè yo pale
pou nèg isit nèg lòtbò
sispann lage chèy pay
anba sab lanmè
trakatap katap ka
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ma ka
sa-m pa ka
ma ka pote-l
san-m pa kapote-l
Tanbou-m bat la
Tanbou-m bat la
wa karese-l ak men ou
wa karese-l ak kò-w
Mo kreyòl yo se tanbou-m
Tanbou m'bat la rèk
Tanbou m'bat la sèk
[...]
Tanbou mache di
sa-m pa kapote
wa ka pote-l
wa kapote-l
si-m pa ka pote-l
sa-m pa ka
sa-m pa ka
wa ka
trakapap katap ka
Neste poema, há primeiramente a personificação do tambor. Ele é gesto, ação (caminha, anda) e
palavra (dizer). O poema traz o subtítulo “poema para duas bocas e duas pedras” articulando voz
e gesto. É o grito de guerra, é a eclosão da revolta a que está associado o tambor no Haiti. O
poeta joga com a expressão popular Sa´m paka pote mwen kapote´l (o que não posso carregar,
rólo). Formalmente, acumulações repetidas, paralelismos, manipulações sonoras e rítmicas,
aliterações e assonâncias, onomatopéias e ideofones, que diferentemente da onomatopéia, não
reproduzem o som mas procuram criar um som, um sentimento, uma sensação, uma cor, um
odor... Éu o caso de Bow! e Blengendeng bleng, título de dois livros de Castera
Vemos na poesia de Castera, as influências das vanguardas, mas também de Rimbaud e de
Aimé Césaire. Influências que se deixam entrever na liberdade dada às palavras, na utilização da
página, nas imagens poéticas criadas, no lugar dado ao corpo/erotismo e à imaginação. No poema
Tanbou as criações verbais e o jodo de repetições ressaltam as palavras, as colocam em
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movimento no espaço-tempo do poema. A mimesis da palavra presente no que chamamos a
presença na rua, do cotidiano em sua poesia, articula-se à temática do escrita, do corpo e da
política.
Tomemos 3 outros poemas do livro BOW! Leson Gramè,
ekriven :
Leson Gramè
Nou menm, pwèt, se tou nòmal,
Lè nou pa jwenn mo,
Nou tete lang.
Lan lang kreyòl,
Tout vèb pa koupe
Men koupe
Se vèb kreyòl
Ki pi dous
Lalin fè chive´m pouse,
Lapli mete´m sou sa.
Sè tou nòmal,
Lakay mwen,
Vèb kanpe
Derefize chita.
M´ekri…
M´ekri, Lank
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M´ekri nan tout sans.
M´ekri, m´ekri, m´de-ekri
M´ekri kout, m´ekri long,
M´ekri bourade, m´ekri malelve,
M´ekri an zeng de zong,
M´ekri a zong, ak je,
Ak zorèy pou´m delibere
Tout mo dan sere,
Pou fè yo danse kole,
M´ekri ak van,
Ak lari ki monte desann.
M´ekri, m´ekri,
Lè´m fin ekri, m´ekri ankò.
Depi vè lanp mete fè nwa
Anba kle
Vle pa vle,
Fèy paye, men pa´w !
Lank ekriven
M´al chèche
Imaj on imaj
Jouk nan zo lank
M´tombe nan lari,
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Lari ba´m tete.
Tout souse m´souse,
M´souse lank
Ekri s´on metye dwòl !
Gen de pafwa
Se zo pa´m menm,
M´ap souse
- zo men´m –
Pou´m jwenn
2,3 mo
Nan pwent plim mwen
Andedan 2, 3 gout lank.
Nestes 3 metapoemas, a escritura é tematizana no jogo de metarmofoses entre o corpo e a
escrita. Em Leson Gramè é a língua (o sistema e o órgão) que nutre e que é fonte de criação. Em
Lank ekriven, é a rua e o corpo do poeta que tornam-se fontes de criação pela assimilação entre
osso e caneta, entre tinta e leite.
Do procedimento que consiste em chamar a atenção ao significante, em jogar com as
palavras de duplo sentido como koupe et kanpe, resulta um acoplamento de palavras donde jorra
uma outra temática na poesia de Castera, a do erotismo. Não se trata do erotismo da palavra mas
do corpo-palavra que o eu lírico jwenn nan pwent plim [encontra na ponta da caneta/pena], ki li
tete nan lari a [que ele mama na rua], ki li souse nan zo lank, nan zo men´l.[que ele chupa nos
ossos da tinta, nos ossos de sua mão]
Em M´ekri o recurso à anáfora produz um movimento violente que conduz à um climax no
qual o ato de escrever é colocado em evidência e no qual a escrita mimetiza o gozo. A
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experimentação linguistica procura « découvrir les subtilités cachées » da língua Crioulo e
inventar palavras, criar imagens, incorporar advérbios que permitam fazer uma poesia crítica do
cotidiano e de inscrever o político no questionamento do próprio texto.
A poética crioula de Castera situa-se entre a prosa e a poesia lírica. Despojada de
eloquência, de ímpetos líricos ou ainda dramáticos, trata-se de uma poética do movimento e em
movimento na qual o jogo constitue a mola mestra. Entretanto, não se trata de um simples jogo de
palavras, gratuito pois que se alimenta da língua viva do cotidiano. Observamos na poesia de
Castera o diálogo constante entre a palavra performatizada/teatralizada através da teatralização da
palavra e da presença do corpo próprios a uma cultura ainda marcada pela oralidade. Mas,
diferentemente de Syto Cavé, cuja poesia é influenciada pela tradição do tire kont [dos
contadores de histórias), Castera explora as potencialidades do Crioulo para criar uma poesia
moderna.
Neste artigo, tratamos, de forma breve, da importância de Jean Price-Mars no impulso de
uma criação literária que buscasse expressar o mundo rural e a cultura popular, como é o caso do
roman paysan nos anos 30 e 40. Para, em seguida, abordarmos a relação entre oralidade e criação
poética na literatura haitiana contemporânea. Portanto, não podemos deixar de nos referir aos
movimentos da Ronde e da Jeune Haïti, anteriores à Jean Price-Mars, e, em especial, às obras
romanescas La famille des pitite-caille e Zoune chez sa ninaine, de Justin Lhérisson, publicadas
em 1906. Nestas duas narrativas Lhérisson se serve de uma forma típica da oralidade haitiana,
l´audience (reunião à noite na qual um narrador conta uma história a uma audiência),
incorporando de forma original e criativa, o Crioulo à escrita romanesca.
Referências Bibliográficas
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Porto Ancona sob os auspícios da UNESCO, 1988.3.
______ . O Turista aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 198.
BERARDINELLI, Alfonso. Da Poesia à Prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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CASTERA, Georges. Bow ! Montréal : Mémoire d´Encrier, 2007.
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CASTERA, Georges. Sous le voile déchiré. Présentation à la revue Conjonction, n°193, p. 9-14.
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Ecrire en créole. Entretien avec Georges Castera. Propos recueillis par Rodney Saint-Eloi. In
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5
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In :
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________.
Entretien
avec
Gary
http://sectioneducative.espacioblog.com/post/2006/12/08/
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In :
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GAUVIN, Lise. Ecrire en Français. Le choix linguistique. In : http://www.sgdl.org/ladocumentation/les-dossiers/251
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Vozes da África
A QUESTÃO DA IDENTIDADE EM ALAIN MABANCKOU
LA QUESTION DE L’IDENTITÉ CHEZ ALAIN MABANCKOU
Paula Souza Dias Nogueira1
Resumo: Neste artigo pretendemos analisar como a questão da identidade aparece na obra Mémoires de porc-épic,
do escritor congolês Alain Mabanckou. Para tanto, partimos de uma contextualização dos autores francófonos da
segunda geração pós-colonial para em seguida examinarmos as principais características de Mabanckou. Por fim,
analisamos a obra em questão atentando para a narrativa e para os traços estilísticos que colaboram para a discussão
sobre a identidade no contexto pós-colonial africano.
Palavras-chave: Mémoires de porc-épic; Alain Mabanckou; identidade; oralidade; pós-colonialismo; escritores
africanos.
Résumé: Dans cet article nous visons à analyser comment la question de l’identité apparaît chez Mémoires de porcépic, de l’écrivain congolais Alain Mabanckou. Pour cela, nous commençons par contextualiser les auteurs
francophones de la deuxième génération post-coloniale et, par la suite, nous examinons les principales
caractéristiques de Mabanckou. Pour finir, nous analysons l’oeuvre en question en faisant attention à la narrative et
aux traits stylistiques qui collaborent à la discussion sur l’identité dans le contexte post-colonial africain.
Mots-clés: Mémoires de porc-épic; Alain Mabanckou; identité; oralité; post-colonialisme; écrivains africains.
1
Mestranda do programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail:
paula.souza.dias@gmail.com
.
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I.
INTRODUÇÃO: IDENTIDADE E ESCRITA
Neste artigo nos propusemos a examinar como a questão da identidade é trabalhada no
livro Mémoires de porc-épic, do escritor congolês Alain Mabanckou. Para compreender o modo
como essa questão aparece em Mabanckou é importante, primeiramente, assinalar que o autor faz
parte do grupo de escritores francófonos da segunda geração pós-colonial africana, a qual tende a
refletir de maneira crítica sobre seu passado e herança, trazendo à tona a discussão sobre
identidade.
Bastante comum entre esses autores é o uso de novas estratégias de escrita e de temas
marginais, tais como o exílio, a imigração, a sexualidade, a loucura e o processo de escrita. Para o
Ocidente, o conjunto de países e culturas africanas faz parte de um mesmo todo, são todos iguais,
pertencentes à margem, ao subdesenvolvimento, à periferia, ao “outro”. Uma identidade africana
hegemônica foi, assim, criada e incorporada ao longo dos anos, fazendo com que a diversidade de
cada cultura não fosse levada em conta. Na tentativa de resgatar um pouco dessas diferentes
culturas, essa nova geração procura desconstruir o imaginário africano criado a partir dessa visão
ocidental e globalizada e reconstruir a identidade de cada povo de forma multifacetada,
mostrando aquilo que ficou silenciado durante os anos do colonialismo.
Vale lembrar que eles não apenas buscam reconstruir essas identidades como também
recriá-las, reescrevê-las, já que a identidade cultural “não é uma origem fixa em direção à qual
poderíamos, de maneira absoluta e definitiva, retornar. [...] Ela é sempre construída através da
narrativa, do mito, da memória e da imaginação”2 (HALL, 2008, p. 315).
Em 2007, com o intuito de se libertar cada vez mais do passado colonizador e de se
reconhecer com independência, 43 escritores assinam um manifesto a favor da “littérature-monde
en français”. Nesse manifesto eles defendem a ideia de que a literatura francófona, presente em
cinco continentes, não deve mais ser vista como dependente da literatura francesa, mas sim o
No original : “n’est pas une origine fixe vers laquelle nous pourrions faire, de manière absolue et définitive,
retour. [...] Elle est toujours construite à travers le récit, le mythe, la mémoire et l’imagination”. Todas as
traduções são nossas, salvo indicação.
2
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contrário: a literatura francesa deve fazer parte da literatura francófona. Sendo o termo
“francofonia” destinado a uma instituição política, e sendo usado – ainda que com boas intenções
– para tratar de escritores de fora da França como parte de um gueto dependente da França, os
autores do manifesto acreditam que ele não deve ser utilizado para tratar da literatura em língua
francesa, literatura plural, transnacional, aberta ao mundo.
A visão desses autores pode ser entendida como um reflexo da era pós-moderna na qual
vivemos. A descentralização da literatura francófona está intimamente ligada à descentralização
das identidades pós-modernas. Segundo Stuart Hall3 (2006), existem três concepções de
identidade do sujeito bastante diferentes. Simplificadamente, elas são: a) sujeito do Iluminismo: o
indivíduo é centrado, unificado, com um núcleo interior que nasce com ele e o acompanha de
maneira essencialmente igual para o resto da vida; b) sujeito sociológico: o núcleo interior do
sujeito não é autônomo e autossuficiente, está em constante mudança conforme as relações do
sujeito com o mundo externo, o eu e a sociedade; c) sujeito pós-moderno: o núcleo interior não é
mais visto como unificado e estável, mas antes fragmentado, composto de várias identidades, e a
sociedade (o mundo externo) passa por mudanças estruturais, o que faz com que as identidades
culturais se tornem provisórias e variáveis. Assim, a identidade do sujeito pós-moderno é
“formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13). Hall argumenta
que a pós-modernidade é caracterizadas por sua descontinuidade, por uma estrutura deslocada,
que “é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma ‘pluralidade
de centros de poder’” (Ibid., p. 16). Ora, no manifesto pela literatura-mundo em francês, temos:
O centro, esse ponto a partir do qual uma literatura franco-francesa supostamente irradia
não é mais o centro. O centro até aqui, mesmo se cada vez menos, tinha tido essa
capacidade de absorção que obrigava os autores vindos de alhures a se livrar de suas
bagagens antes de se entregar ao cadinho da língua e de sua história nacional: o centro,
nos dizem os prêmios do outono, é doravante em todo lugar, aos quatro cantos do
mundo. Fim da francofonia. E nascimento de uma literatura-mundo em francês4 (LE
MONDE, 03/02/11).
3
Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
No original : “le centre, ce point depuis lequel était supposée rayonner une littérature franco-française, n'est plus le
centre. Le centre jusqu'ici, même si de moins en moins, avait eu cette capacité d'absorption qui contraignait les
auteurs venus d'ailleurs à se dépouiller de leurs bagages avant de se fondre dans le creuset de la langue et de son
histoire nationale: le centre, nous disent les prix d'automne, est désormais partout, aux quatre coins du monde. Fin de
la francophonie. Et naissance d'une littérature-monde en français”.
4
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Partindo da ideia de múltiplas identidades e, portanto, de múltiplos centros, os autores do
manifesto, muitos deles da segunda geração francófona, trabalham a questão tanto da identidade
nacional quanto da identidade individual e pessoal em seus livros, através dos temas acima
mencionados. Posto que a identidade também se afirma através da linguagem, muitos autores
brincam com os limites entre a língua escrita e a falada, a fim de questionar a norma padrão, a
língua imposta e a visão unitária do mundo. A oposição tradição/ modernidade, ou oralidade/
escrita, é muito presente nas sociedades africanas, onde as línguas locais geralmente não são
ensinadas nas escolas, permanecendo faladas, sendo a língua escrita a do colonizador. Assim,
apesar da maior parte dos autores se expressar literariamente na língua imposta de fora, muitos
mesclam ao longo da narrativa expressões ou palavras locais, buscando um sentido de pertença.
A oralidade também se faz muito presente nas formas textuais breves, tais como as adivinhas, as
máximas e os provérbios, que requerem pelo menos dois interlocutores que, no âmbito literário,
são muitas vezes o narrador e o leitor, que dialogam ao longo da narrativa como um contador de
histórias faz com seu público.
Com efeito, as características supracitadas também aparecem na obra de Alain
Mabanckou, escritor congolês que se preocupa constantemente com as noções de identidade,
imigração e oralidade.
I.
A ESCRITA DE ALAIN MABANCKOU
Em 1966, na República do Congo, cidade de Pointe-Noire, nasce Alain Mabanckou.
Obtém seu baccalauréat em Letras e Filosofia, mas acaba por estudar Direito na Universidade
Marien-Ngouabi, em Brazaville, para realizar o desejo de sua mãe. Desde cedo Mabanckou
dedica as horas vagas à escrita, e aos 22 anos, com alguns manuscritos na mala, vai para Paris,
onde termina sua graduação após receber uma bolsa de estudos. Durante certo período o autor
dedica seu tempo à advocacia, trabalhando em diversos escritórios, mas nunca deixa de escrever.
Eis que em 1998 consegue publicar seu primeiro romance, Bleu-Blanc-Rouge, que lhe rende o
Grand Prix Littéraire de l'Afrique noire. A premiação faz com que Mabanckou se consagre como
escritor, abandonando a carreira de advogado para sempre. Escreve livros tanto em prosa quanto
em poesia, ficando conhecido pelo grande público por seus romances, a começar por Verre Cassé
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(2005) e Mémoire de porc-épic, Prix Renaudot em 2006. É também um dos autores a assinar o
manifesto por uma literatura-mundo em francês, ao lado de Dany Laferrière, Abdourahman A.
Waberi, Edouard Glissant, Gilles Lapouge entre outros. Bem pouco conhecido no Brasil,
Mabanckou é, no entanto, bastante aclamado na Europa e nos Estados Unidos, onde vive desde
2007, lecionando literatura francófona na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Em seus livros é comum que o narrador apresente traços autobiográficos, de modo que o
leitor nunca sabe ao certo se o que lê é ficção ou memória do próprio autor. De qualquer maneira,
a recorrência a personagens marginais, à metalinguagem e ao questionamento da língua padrão
revela a visão do autor: para ele, as identidades são múltiplas e devemos dar espaço a essa
diversidade. Nas palavras de Carmen Husti-Laboye (2010, p. 121):
A inclinação por essa figura da marginalidade na literatura da diáspora subsaariana
confirma a propensão ao descentramento próprio à literatura escrita no contexto da pósmodernidade, que visa a desconstrução de toda visão unitária e estável do mundo. Essa
estratégia ficcional institui a margem como variante do discurso oficial, um lugar a partir
do qual a voz emerge a fim de exprimir a diferença 5.
Em Mabanckou, os personagens à margem da sociedade repensam e discutem o discurso
oficial, as formas de poder e dominação impostas pelos colonizadores, a começar da língua.
Assim, seus protagonistas costumam questionar a norma culta, o uso do francês como língua
institucional e literária, as formas estilísticas próprias à literatura. Ao dar valor ao humor, à
paródia e à intertextualidade através desses personagens, Mabanckou procura desinstitucionalizar
a língua, quebrar a norma, dando lugar às falhas de coerência do mundo.
Mabanckou, também conhecido na academia como um escritor “africain sur Seine”, ou
seja, africano imigrante que escreve desde a Europa, tem um olhar aguçado em relação à
identidade dos imigrantes e dos povos colonizados, e essa discussão é bastante recorrente em seus
livros. Em Le sanglot de l’homme noir (2012, p. 59), livro autobiográfico, o autor diz:
[...] minha concepção de identidade ultrapassa de muito longe as noções de território e
de sangue. Cada encontro me nutre [...]. Seria inútil se limitar ao território, ignorar a
No original : “Le penchant pour cette figure de la marginalité dans la littérature de la diaspora subsaharienne
confirme la propension au décentrement propre à la littérature écrite dans le contexte de la postmodernité, qui vise la
déconstruction de toute vision unitaire et stable du monde. Cette stratégie fictionnelle institue la marge comme
variante du discours officiel, un lieu à partir duquel la voix émerge afin d’exprimer la différence”.
5
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multiplicação de interferências e, ademais, a complexidade dessa nova era que nos liga
uns aos outros, longe das considerações geográficas 6.
Mais adiante, a respeito de sua vida como imigrante e da influência desse fato em sua
obra, o autor complementa:
[...] eu estou cada vez mais persuadido que o deslocamento, o cruzamento das fronteiras,
nutre minhas angústias, contribui para dar forma a um país imaginário que, finalmente,
se parece com a minha terra de origem. É a minha própria busca interior, minha maneira
de conceber o universo. Eu escolhi não me fechar, dar ouvido ao barulho e ao furor do
mundo, jamais considerar as coisas de maneira fixa. Não me tornei escritor porque
emigrei. Porém, adquiri um outro olhar sobre a minha pátria uma vez distanciado dela.
[...] A emigração contribuiu para reforçar em mim essa inquietude que institui aos meus
olhos todo processo criativo7 (Ibid., p. 131-132).
A relação com o outro, com o que vem de fora, e, por consequência, a redescoberta ou a
busca pela própria identidade (além da identidade literária) é um tema central em sua obra,
discutido a partir do olhar de personagens marginais, tais como imigrantes (Black Bazar),
intelectuais excêntricos (Verre Cassé), mulheres (Les petits-fils nègres de Vercingétorix), pessoas
da periferia (African psycho) e até mesmo crianças (Demain j’aurais vingt ans).
No caso de Mémoires de porc-épic, o narrador personagem é também periférico, já que do
mundo animal, incapaz de raciocinar e de se comunicar como os homens, e, assim como nos
outros livros, esse narrador se encontra muitas vezes banhado por um sentimento de rejeição, de
solidão, em um ambiente onde a falta se faz muito presente e, portanto, em um ambiente onde
deve se reinventar e se redescobrir a fim de sobreviver. Nesse livro especificamente, a questão
identitária aparece de diferentes maneiras: na busca do personagem narrador por sua verdadeira
identidade, na relação dele com seu mestre, sua outra face, e também na relação de seu mestre
com seu outro eu.
No original : “[...] ma conception de l’identité dépasse de très loin les notions de territoire et de sang. Chaque
rencontre me nourrit [...]. Il serait vain de se cantonner au territoire, d’ignorer la multiplication des interférences et,
par-delà, la complexité de cette ère nouvelle qui nous lie les uns aux autres, loin des considérations géographiques”.
7
No original : “je suis de plus en plus persuadé que le déplacement, le franchissement des frontières, nourrit mes
angoisses, contribue à façonner un pays imaginaire qui, finalement, ressemble à ma terre d’origine. Il y va de ma
propre quête intérieure, de ma façon de concevoir l’univers. J’ai choisi de ne pas m’enfermer, de prêter l’oreille au
bruit et à la fureur du monde, de ne jamais considérer les choses de manière figée. Je ne suis pas devenu écrivain
parce que j’ai émigré. En revanche, j’ai posé un autre regard sur ma patrie une fois que je m’en suis éloigné. [...]
L’émigration a contribué à renforcer en moi cette inquiétude qui fonde à mes yeux toute démarche de création”.
6
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II. MÉMOIRES DE PORC-ÉPIC: IDENTIDADE E ORALIDADE
Mémoires de porc-épic e Verre Cassé são dois livros que andam juntos, apesar de suas
histórias serem totalmente distintas. Vejamos: se em Verre Cassé o personagem de mesmo nome
escreve suas memórias sobre o bar Le crédit a voyagé, em Mémoires de porc-épic, livro
publicado na sequência de Verre Cassé, o mesmo personagem dá voz a um porco-espinho
advindo do imaginário coletivo africano, que narra sua própria história: o livro é uma paródia de
uma lenda africana, na qual os animais podem ser duplos malignos ou benignos dos humanos:
[...] em Mémoires de porc-épic, a crença e a miríade de superstições que o acompanham
no contexto africano tradicional representam os principais elementos em torno dos quais
se constrói a narrativa alegórica desse narrador diretamente saído das lendas africanas.
Romance construído pela fusão de dois universos distintos, Mémoires de porc-épic dá,
de fato, voz a um animal ancorado na mentalidade coletiva africana, que se apresenta
diante de seu interlocutor, a baobá, como o duplo maligno do homem 8 (HUSTILABOYE, 2010, p. 122).
Na história, o porco-espinho é o duplo maligno do jovem Kibandi. A pedido de seu
mestre, o animal executa inúmeros assassinatos na vila onde moram; porém, tem consciência de
seus atos e sofre de remorso – a priori um sentimento humano. A partir dos desdobramentos
dessa lenda africana o autor explora a natureza plural do homem e suas dicotomias superior/
inferior, divino/ demoníaco, bom/ mal, positivo/ negativo, enfim, humano/ animal, criando uma
obra profunda sobre a essência humana. Além disso, o texto é uma grande homenagem às
fábulas, crenças, provérbios, contos e histórias presentes na cultura africana e em outras culturas
também. A título de exemplo, citamos Le Rat de ville et le Rat des champs (p. 64) e L’hirondelle
et les petits Oiseaux (p. 65), fábulas de La Fontaine.
Acerca do estilo, tanto Mémoires de porc-épic quanto Verre Cassé apresentam marcas de
oralidade e a fala despojada do personagem Verre Cassé, remarcada principalmente pela ausência
de pontuação, salvo o uso da vírgula. Isso nos remete às sociedades tradicionais africanas, nas
quais, como diz Chevrier em Littérature nègre (1984, p. 205), “durante a dominação colonial as
No original : “dans Mémoires de porc-épic, la croyance et la myriade de superstitions qui l’accompagnent dans le
contexte africain traditionnel représentent les principaux éléments autour desquels se construit le récit allégorique de
ce narrateur directement issu des légendes africaines. Roman construit par l’emboîtement de deux univers fictionnels
distincts, Mémoires de porc-épic donne en effet la parole à un animal ancré dans la mentalité collective africaine, qui
se présente devant son interlocuteur, le baobab, comme le double maléfique de l’homme”.
8
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culturas africanas e suas línguas de expressão sofreram o destino reservado às culturas e aos
homens ‘primitivos’: se elas não eram ignoradas elas eram negadas”9. A fim de preservar essas
línguas africanas, a memória se tornou algo importantíssimo, responsável por imortalizar as
histórias, repassadas de boca em boca pelos contadores, os griots. Assim, ao escrever como se
estivesse falando, Verre Cassé passa a impressão de estar transmitindo oralmente suas memórias,
ou seja, ele imortaliza a história do bar, no primeiro livro, e a do porco-espinho, no segundo. Em
Mémoires, as memórias do porco-espinho são contadas a uma árvore Baobá que, apesar de nunca
dialogar com ele, representa a figura de seu interlocutor. De fato, como o relato inteiro é dirigido
a essa segunda pessoa que é a árvore, o leitor acaba se sentindo ele mesmo o interlocutor,
tomando o lugar da Baobá e fazendo parte da história: o porco-espinho seria o contador de
histórias e o leitor, seu público.
Outras marcas de oralidade também podem ser encontradas na narrativa, tais como:
interjeições e onomatopeias; fluxo contínuo de pensamento, com digressões e interrupções;
repetições e acumulações para dar o tom da narrativa, enfatizando as características de algum
personagem; e provérbios e outras formas textuais breves (KALIDOU, 2008).
Além da questão da estrutura narrativa como forma de questionar uma identidade
imposta, o próprio personagem do animal passa por dilemas existenciais e de identidade,
tornando-se ele mesmo um imigrante: deve sair do mundo animal para ir viver com os homens,
sofrendo solidão e rejeição de sua comunidade animal. Uma vez convivendo com os homens, ele
começa cada vez mais a incorporar atitudes e sentimentos humanos a seu modo de ser e de agir, o
que lhe causa muita angústia: “tive vergonha de mim, o lado humano tomando cada vez mais
conta de meu lado animal”10 (MABANCKOU, 2006, p. 33). Seu destino de duplo lhe confere um
alter-ego, Kibandi, seu mestre, a quem ele obedece cegamente e do qual não consegue se separar,
chegando mesmo a se confundir com ele: “eu tinha sua vida entre minhas patas, respirava o sopro
No original : “pendant la domination coloniale les cultures africaines et leurs langues d’expression ont subi le sort
résérvé aux cultures et à l’homme ‘primitifs’: si elles n’étaient pas ignorées elles étaient niées”.
10
No original : “j’ai eu honte de moi, le côté humain prenant de plus en plus le dessus sur ma nature animal”.
9
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que vinha dele, eu era ele, ele era eu, e para reestabelecer as coisas eu devia me manifestar
urgentemente, meu coração iria explodir, não sabia mais quem eu era”11 (Ibid., p. 59-60).
A relação do porco-espinho com seu mestre, a princípio uma relação do ‘eu’ (porcoespinho) com o ‘outro’ (Kibandi), acaba por ser, na verdade, a relação do porco-espinho com
uma outra parte de si próprio, ou, do ponto de vista de Kibandi, sua relação com seu autre luimême. No ritual de iniciação, quando o jovem Kibandi recebe seu duplo, ele deve beber um
líquido chamado mayamvumbi, “a fim de sentir o estado de embriaguez que lhe permite duplicarse, liberar seu outro eu, um clone bulímico que não para de correr”12 (Ibid., p. 17). Após beber o
líquido iniciático, Kibandi
tornou-se uma nova criatura, o ser frágil que os aldeões de Mossaka viam atrás de Papai
Kibandi era apenas uma marionete, uma espécie de envelope vazio cujo conteúdo tinha
evaporado e esperava em algum lugar a hora para encontrar seu duplo, formar com ele
uma única e mesma entidade13 (Ibid., p. 48).
Assim, o ‘eu’ e o ‘outro’ se misturam, se fundem, fazendo emergir a questão da
identidade: ao abandonar o meio animal, o porco-espinho abandona também sua identidade
animal. O pequeno Kibandi, por sua vez, também sofre inicialmente com a transformação em sua
vida. Na noite em que seu pai lhe dá para beber o líquido iniciático o jovem vê, pela primeira vez,
o duplo de seu pai, que lhe diz: “você não viu nada, eu sou eu, e aquele que está deitado ao lado
de sua mãe, bem, também sou eu, eu posso ser ao mesmo tempo eu mesmo e o outro eu mesmo
que dorme, você entenderá logo”14 (Ibid., p. 80). Após a iniciação, Kibandi, o filho, é capaz de
enxergar seu outro eu mesmo, que em seguida foge para a floresta, pronto para começar suas
aventuras malignas pela vila.
Ademais, na lenda, quando o mestre morre, seu duplo animal costuma morrer também,
porém não é isso que acontece. O porco-espinho continua vivo, descrente de sua vida, triste pela
morte de seu mestre, sem rumo, sozinho, até sentar-se aos pés da Baobá e contar-lhe sua história.
No original : “je tenais sa vie entre mes pattes, je respirais le souffle qui lui revenait, j’étais lui, il était moi, et pour
rétablir les choses je devais me manifester en toute urgence, mon coeur allait éclater, je ne savais plus qui j’étais”.
12
No original : “afin de ressentir l’état d’ivresse qui permet de se dédoubler, de libérer son autre lui-même, un clone
boulimique sans cesse en train de courir”.
13
No original : “était devenu une autre créature, l’être fragile que les villageois de Mossaka apercevaient derrière
Papa Kibandi n’était plus qu’un pantin, une espèce d’enveloppe creuse dont la contenance s’était évaporée et
attendait quelque part son heure pour rencontrer son double, ne plus former avec lui qu’une seule et même entité”.
14
No original : “Tu n’as rien vu, je suis moi, et celui qui est couché à côté de ta mère, eh bien, c’est aussi moi, je
peux être à la fois moi-même et l’autre moi-même qui est couché, tu le comprendras bientôt”.
11
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Dessa forma, o relato que o animal faz à árvore é uma forma de buscar sua identidade, de
redescobri-la.
Em um artigo sobre os escritores francófonos da segunda geração, o autor Gbanou (2006,
p. 46) analisa que o ato de escrever, para esses autores, corresponde a uma necessidade de
libertar-se. Ele diz:
São figuras de excluídos, de malditos cujo sentimento e sensação de rejeição, de
afastamento e de falta são reveladores da realidade de um mundo onde o indivíduo tem,
mais do que nunca, obrigação de inventar locais de vínculo. Nessa ótica, o ato de
escrever responde, nos mestiços ou exilados, a uma necessidade e a uma dinâmica de
liberdade [...]15.
Essa ótica poderia ser transposta para a figura do porco-espinho, que também é
caracterizado como excluído, imigrante, rejeitado, tentando encontrar-se através de sua narrativa,
tentando encontrar sua liberdade.
Ao final de seu relato, o porco-espinho, melancólico, confessa que ainda tem dois desejos:
acabar com todos os duplos malignos da região, como “uma maneira de me redimir, de apagar
minha parte de responsabilidade quanto às desgraças que entristeceram essa vila e muitas
outras”16 (MABANCKOU, 2006, p. 218), e voltar a viver em sua comunidade animal, “porque a
frequentação dos homens criou em mim o sentimento da nostalgia [...] doravante eu me apego às
minhas lembranças como o elefante se apega às suas defesas, são essas imagens longínquas, essas
sombras desaparecidas, esses barulhos distantes”17 (Ibid., p. 220). Essa saudade remete
claramente à saudade que um imigrante ou um exilado sente de sua terra natal, para a qual sonha
em voltar um dia.
III.CONCLUSÃO
No original : “ce sont des figures d’exclus, de bâtards, de maudits dont le sentiment et la sensation de rejet,
d’écartèlement et de manque sont révélateurs de la réalité d’un monde où l’individu a, plus que jamais, obligation de
s’inventer des lieux d’attache. Dans cette optique, l’acte d’écrire répond, chez le métis ou l’exilé, à un besoin et à une
dynamique de liberté [...]”.
16
No original : “une manière de me racheter, d’effacer ma part de responsabilité quant aux malheurs qui ont
endeuillé ce village et beaucoup d’autres”.
17
No original : “parce que la fréquentation des hommes a créé en moi le sentiment de la nostalgie [...] je tiens
désormais à mes souvenirs comme l’éléphant tient à ses défenses, ce sont ces images lointaines, ces ombres
disparues, ces bruits éloignés”.
15
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No livro de entrevistas concedidas a Benedetto Vecchi chamado Identidade, Zygmunt
Bauman (2005, p. 19) analisa a questão da identidade baseando-se em sua própria experiência
como imigrante. Em dado momento, ele diz:
Estar total ou parcialmente ‘deslocado’ em toda parte, não estar totalmente em lugar
algum, pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há
alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar,
negociar, oferecer e barganhar. [...] As identidades flutuam no ar, algumas de nossa
própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta.18
Relacionando esse depoimento com o livro de Mabanckou, podemos dizer que o
personagem do porco-espinho está o tempo inteiro deslocado: enquanto ainda vive no mundo
animal, é visto como alguém desencontrado, sem rumo, e é punido e recriminado pelo velho
porco-espinho que governa a comunidade cada vez que desaparece. A floresta torna-se, pouco a
pouco, “um lugar que eu não suportava mais, procurava um jeito de me subtrair dela para ir viver
perto da vila de meu jovem mestre, ignorava então que eu iria ser submetido à fúria do velho
porco-espinho que nos governava, ele que xingava os humanos de todos os nomes ao longo do
dia”19 (MABANCKOU, 2006, p. 48).
Após a iniciação do jovem Kibandi, há ainda um período de adaptação à nova vida, no
qual o animal executa as missões ordenadas por seu mestre de dia e retorna para a floresta de
noite. Segundo o personagem, “esse período foi o mais tumultuoso de minha existência”20 (Ibid.,
p. 49). A solidão torna-se perturbadora e desconfortável, até que ele finalmente migra para o
mundo humano de vez. Ainda que tenha uma ligação forte com seu mestre, chegando a fundir-se
com ele, como vimos, o animal nunca chega a pertencer de fato a esse novo mundo, a sensação
de deslocamento permanece. Ser um duplo maligno foi uma escolha dele, quer dizer, ele escolheu
também essa mudança de identidade e de ambiente, porém a construção dessa nova identidade se
dá a partir do contato com o outro, com Kibandi. Suas angústias e arrependimentos em relação às
missões assassinas são um reflexo dessa identidade que lhe foi de alguma maneira imposta,
fazendo-o sentir saudades de sua antiga vida.
18
Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
No original : “un lieu que je ne suportais plus, je cherchais comment m’y soustraire afin d’aller vivre près du
village de mon jeune maître, j’ignorais alors que j’allais subir les foudres du vieux porc-épic qui nous gouvernait, lui
qui traitait les humains de tous les noms à longeur de journée”.
20
No original : “cette période fut la plus tumultueuse de mon existence”.
19
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Assim, ao mesmo tempo que o personagem se redescobre ao entrar em contato com o
mundo humano e com seu mestre, ele também se perde e se desorienta em relação ao que ele
verdadeiramente é/sente. O duplo animal e seu mestre podem, então, ser uma metáfora que
representa a abertura ao outro como forma de encontrar-se, de redescobrir-se – de buscar e
refletir sobre a sua própria identidade.
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REFERÊNCIAS
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Z&
VECCHI,
B. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.
CHEVRIER,
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Sélom K. La traversée des signes : roman africain et renouvellement du
discours. Revue de l’Université de Moncton, v. 37, n. 1, p. 39-66, 2006.
HALL,
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Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
_______. Identités et cultures. Politiques des cultural studies. Paris, Editions
Amsterdam, 2008.
HUSTI-LABOYE, C. La Diaspora postcoloniale en France : différence et diversité.
Paris: Pulim, 2010.
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Les romans negro-africains de la seconde generation : entre l’oralité africaine et
le roman moderne. Ethiopiques, n. 80, 2008.
MABANCKOU, A. Le
sanglot de l’homme noir. Paris: Fayard, 2012.
MABANCKOU, A. Mémoires
de porc-épic. Paris: Seuil, 2006.
Manifesto Littérature-monde en français. Le Monde, Paris, 03 de fev. 2011.
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Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas
contemporâneas
Alcione Correa Alves1
Universidade Federal do Piauí
RESUMO: partindo da análise do texto de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée",
na obra coletiva Pour une littérature-monde (2007), assim como da leitura que Léopold Sédar Senghor propõe ao
Orphée noir, de Jean-Paul Sartre, este artigo investiga a clivagem entre as noções de literatura francesa e literaturas
francófonas, centrando-se sobre os fatores que, segundo este autor, condicionam a recepção da obra literária
francófona pelo milieu literário francês. Advoga-se, como hipótese, que da referida clivagem decorre um prejuízo às
literaturas francófonas porque compreendidas como 'Outro' da literatura francesa. A hipótese será desenvolvida
através do que Jonathan Culler (1997) denomina metafísica da diferença, circunscrevendo, nestes termos, a
contribuição de Nimrod ao debate acerca das literaturas francófonas contemporâneas.
Palavras-chave: literaturas africanas contemporâneas; francofonia; metafísica da presença.
RÉSUMÉ: à partir d´une analyse du texte de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée",
dans l´oeuvre Pour une littérature-monde (2007), ainsi que de l´interprétation de Léopold Sédar Senghor au texte
Orphée noir, de Jean-Paul Sartre, cet article étudie le clivage entre les notions de littérature française et littératures
francophones em envisageant les facteus à conditionner, d´après Nimrod, la réception des oeuvres littéraires
francophones dans le milieu littéraire français. On propose, comme hypothèse, que de ce clivage découle un préjugé
par rapport aux littératures francophones puisque prises em tant que l´Autre d´une littérature française canonique.
Cet article devellopera son hypothèse au moyen de la métaphysique de la présence selon Jonathan Culler (1997) et
ce, pour caracteriser la contribution de Nimrod au débat sur les littératures francophones contemporaines.
Mots-clés: littératures africaines contemporaines; francophonie; métaphysique de la présence.
1
Alcione Correa Alves está professor adjunto I na Universidade Federal do Piauí, no
homônimo. Tem desenvolvido atividades de ensino, pesquisa e extensão na referida instituição,
Núcleo de Pesquisas sobre Africanidade e Afrodescendência – Ifaradá e os Grupos de
Americanidades: lugar, diferença e violência (como líder), Questões de hibridação literária nas
pesquisador) e Migração e Africanidades caribenhas e latino-americanas (como pesquisador).
estado brasileiro
além de integrar
Pesquisa CNPq
Américas (como
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A Luciléa Silva da Cruz
Introdução
Quando do Congresso Mundial da Fédération Internationale des Professeurs de Français
(FIPF), realizado no Rio de Janeiro em 1981, pesquisadoras(es) e professoras(es) brasileiros de
língua e literatura francesa tomam seu primeiro contato com o que, atualmente, se denomina
literaturas francófonas, notadamente no estudo das literaturas antilhana, haitiana, magrebina e
quebequense. De tal concentração decorreram, também, as primeiras experiências de ensino e
pesquisa sobre o tema em universidades brasileiras, seja na forma de cursos e disciplinas
opcionais, seja no âmbito de disciplinas regulares nos currículos de literatura francesa.
Em uma das conferências do evento, Jean-Louis Joubert, evocando sua própria
experiência docente em Paris XIII, propõe que o texto francófono ofereceria, a um leitor ideal
francês, o que nominou uma sourde résistance, manifesta através de uma duplicidade de
produção e de recepção como uma relevante chave de leitura, pautada pela busca e compreensão
de uma ambiguidade constitutiva, considerada inerente ao texto francófono (ALVES, 2012, p.
83):
En fait, que se passe-t-il quand je fais lire à mes étudiants de l'Université Paris XIII un
texte «francophone»? Ils peuvent d´abord le lire comme ils feraient de n´importe quel
autre texte écrit en français, et utilisant les procédures de décodage qu´ils ont à leur
disposition. En face d´un poème du Malgache Rabearivelo, ils peuvent découvrir un
poème fantaisiste et néo-symboliste; devant un poème-cri de l´antillais Aimé Césaire, un
déferlement surréaliste. De telles lectures sont d´ailleurs autorisés par les amitiés, les
cousinages, les admirations littéraires que ces poètes eux-mêmes avouent. Pourtant les
textes opposent comme une sourde résistance, comme si le fonctionnement qu´on leur
prête n'était pas le seul possible (JOUBERT, 1981, p. 269)
Trata-se de uma
reivindicação já em desenvolvimento, por Joubert, desde colóquio
anteriormente realizado, em 1963, sobre literaturas africanas, na Universidade de Dakar; além
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disso, em certa medida, elementos de seu argumento central se mostram, a meu ver, precursores
de algumas das teses que serão caras ao manifesto Pour une littérature-monde en français,
publicado em 2007 por Michel Le Bris no jornal parisiense Le monde2. Contudo, cumpre ressaltar
nossa ressalva à abordagem de Joubert quando implica uma leitura do texto francófono que
permanece enunciada desde um lugar francês: de modo decisivo, tal lugar de enunciação
compromete um estudo pautado pela salvaguarda da autonomia, do Diverso e da complexidade
inerentes às ditas literaturas francófonas (ou, doravante, das literaturas de língua francesa) que,
aos fins deste artigo, não podem jamais ser concebidas como variantes, mais ou menos exóticas,
da literatura francesa (ALVES, 2012, p. 84)3.
Neste sentido, este artigo, evidenciando o problema decorrente de um lugar de enunciação
francês na análise e apropriação das literaturas africanas contemporâneas, e concentrando-se em
uma análise do capítulo de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature
décolonisée", na obra coletiva Pour une littérature-monde (2007), visa a investigar problemas
teóricos decorrentes da clivagem entre as noções de literatura francesa e literaturas francófonas,
debatendo alguns dos fatores que, segundo este autor, condicionam a recepção da obra literária
francófona pelo milieu literário francês. Advoga-se, como hipótese, que uma das consequências
2
Por exemplo, ao recorrer à imagem da bulimia, a reflexão de Joubert dialoga com a ideia contemporânea da
autofagia, do repli sur soi na base de uma das bases da crítica do romancista e ensaísta Jean Rouaud ao atual estado
da literatura francesa, no capítulo de abertura da mesma obra em que publica Nimrod (2007): para Rouaud, se mostra
fundamental a denúncia do que considera o mal infligido às literaturas contemporâneas de língua francesa pelo
Nouveau roman e pela crítica estruturalista (ALVES, 2012). Digno de nota, ainda, o fato de que este argumento de
Rouaud, no que tange aos perigos à literatura oferecidos pela teoria e crítica literária, dialoga de modo profícuo com
as teses centrais de Tzvetan Todorov na obra A literatura em perigo (2007).
3
A este respeito, Claire Riffard (2006) comenta o caráter “francocentrado” no traçado de uma história
possível das literaturas francófonas, quando narradas a partir de (e em relação à) França. Tome-se como exemplo o
caso do poeta malgache Jean-Joseph Rabearivelo: malgrado o desenvolvimento de sua obra poética inovadora em
Madagascar, nos anos 1920 e, portanto, cerca de dez anos antes da Negritude nos moldes de Léopold Sédar Senghor,
tendem a ser reconhecidos como momentos precursores, do ponto de vista de uma história das literaturas
francófonas, a publicação em Paris do romance Batouala, de René Maran, em 1921, assim como a formação do
movimento da Negritude, no Quartier Latin, já nos anos 1930. Pode-se propor que os modos de narrar uma história
possível das literaturas francófonas têm se pautado, em larga medida, por uma construção discursiva por e a uma
França tomada como instância legitimadora de produção e recepção da literatura francófona. Diz-se recepção porque,
quando da exposição do texto de Rabearivelo a uma “metodologia de estudo de textos literários francófonos” em sala
de aula, Joubert abriu a possibilidade de descoberta, pelos alunos, de “un poème fantaisiste et néo-symboliste” no
texto do poeta malgache, de modo análogo ao qual se descobre, em leituras de Aimé Césaire, “un déferlement
surréaliste”, devidamente assentado no dado biográfico da visita de André Breton à América e no reconhecimento
laudatório deste ao Cahier d´un retour au pays natal.
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da referida clivagem é a percepção de um prejuízo às literaturas francófonas quando
compreendidas como 'Outro' da literatura francesa. O desenvolvimento teórico proposto à
hipótese compreenderá a clivagem proposta entre literatura francesa e literaturas francófonas
através do que Jonathan Culler (1997) denomina metafísica da diferença, circunscrevendo, nestes
termos, a contribuição de Nimrod ao debate acerca das literaturas francófonas contemporâneas
Apontamentos à noção de francofonia
A aplicação do termo francofonia tem sido particularmente restrita a obras de escritores
fora da França, sobretudo ao se tratar de escritores originários de departamentos ultramarinos ou
ex-colônias francesas. Nesse sentido, o uso literário do termo francofonia diz respeito,
atualmente, a sistemas literários em língua francesa fora da França, mais precisamente, a suas
antigas colônias (ALVES, 2012, p. 109-110). A francofonia, em sua origem concebida como um
conceito de integração das diferentes literaturas, segundo o critério de pertença a uma mesma
língua, estabeleceria, em suas últimas consequências, uma condição de desigualdade entre a
literatura francesa e as demais literaturas de língua francesa, com o risco de tomá-las como
variantes exóticas ou mesmo inferiores de um modelo:
Peut-on parler d'un champ littéraire africain francophone? Même si cette littérature
dispose d'institutions, d'évènements et d'éditeurs spécialisés, elle reste attachée au centre
parisien par des liens linguistiques, économiques et symboliques qui se reflètent parfois
dans les œuvres elles-mêmes (TERVONEN, 2005)4
4
Claire Riffard (2006) situa o conceito de campo literário, segundo Bordieu, em seu recenseamento das
abordagens críticas contemporâneas ao conceito de francofonia literária - mais precisamente dentre aquelas que
retomam a noção de espaço (ALVES, 2012). As abordagens contemporâneas da noção de francofonia literária são
divididas, nestes termos, em três grupos: as que retomam o conceito de espaço como, por exemplo, os trabalhos de
Dominique Maingueneau e o conceito de campo segundo teóricos como Bernard Mouralis e Pascale Casanova, em
sua République mondiale des lettres (1999); as que retomam a noção de história literária, desenvolvidas por teóricos
pós-colonialistas como Jean-Marc Moura (1999); as que retomam a noção de língua, dentre os quais se situam as
pesquisas de Lise Gauvin (2010).
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Malgrado o conceito de francofonia presuma a integração das literaturas de língua
francesa, mediante o princípio de uma irmandade baseada no critério da língua; e malgrado as
literaturas nacionais de colônias e ex-colônias tendam a se exprimir majoritariamente em língua
francesa; a noção de francofonia pode levar a uma tensão entre o sistema literário francês quando
percebido em uma posição dominante ante os demais sistemas literários em língua francesa. O
problema ora exposto pode ser melhor formulado ao adotar-se uma distinção fecunda entre um
campo literário francófono, no qual situam-se empiricamente todas as literaturas expressas
majoritariamente em língua francesa, e um sistema literário francês. A adoção dessa distinção
permite, hipoteticamente, perceber dentro do campo literário francófono uma correlação de forças
cuja consequência é um estatuto desigual entre o sistema literário francês e os demais sistemas
em jogo (ALVES, 2012, p. 110)5.
Em diálogo a este argumento, Jean Mouralis (1984) critica uma concepção de África
desde um lugar francês, concepção esta culturalmente imposta aos escritores africanos e, em certo
sentido, parte do campo literário francófono africano; sob tais condições, o conceito de África
subjacente às obras literárias francófonas africanas emanaria, paradoxalmente, de e à França.
Disso decorreria um problema científico relativo tanto às condições de possibilidade à edição e
difusão das obras quanto às condições de recepção das obras literárias francófonas por um
público francês ou, mais precisamente, parisiense. Pontualmente nesse último aspecto, concentrase tanto o debate no texto de Nimrod quanto o argumento central deste artigo, a saber, os termos
da recusa de Nimrod a uma concepção exógena do que seja África: exógena enquanto definida e
delimitada desde um lugar de enunciação francês, e de modo suficiente a uma determinação,
igualmente exógena, daquilo a que devam se circunscrever as literaturas africanas
contemporâneas para que sejam consideradas e legitimadas como tais. Sobre este ponto, Michel
Le Bris, em seu capítulo da obra coletiva Pour une littérature-monde, constrói um problema
semelhante, embora em bases distintas ao conceito de campo literário:
Tervonen, sobre este tema, argumenta que alguns dos problemas atinentes ao campo literário francófono africano se
devem ao fato de que, apesar da presença dos elementos necessários à constituição de um campo literário autônomo
(traduzido, por exemplo, no desenvolvimento e estímulo a editoras africanas, eventos e prêmios literários africanos),
ainda se trata, segundo a autora, de uma literatura que “reste attachée au centre parisien”, do qual emana sua
legitimidade e, do ponto de vista eminentemente literário, do qual emanam, também, os critérios estéticos
subjacentes “qui se reflètent parfois dans les œuvres elles-mêmes”.
5
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[...] Et ne parlons plus d’une littérature “francophone” que l’on distinguerait,
consciemment ou non, de la littérature proprement “française” - variante inférieure, ou
exotique, qui n’aurait d’autre perspective de reconnaissance que s’intégrer en se niant.
Autant le dire tout net: l’émergence de cette littérature monde signe la fin de la
“francophonie”, entendue comme l’espace où la France dispenserait ses lumières sur des
masses quelque peu enténébrées, pour promouvoir un espace de liberté et d’échanges sur
un pied d’égalité (LE BRIS, 2007, p.24)
Le Bris percebe a negação da literatura francófona como um preço a ser pago por sua
legitimação por um centro normativo parisiense, mediante o uso do verbo nier, somado à
construção restritiva ne...que a estipular a condição necessária para que a literatura francófona
aceda ao estatuto de literatura legitimada. Dois dos indícios presentes na citação, o exotismo e o
reconhecimento, ambos exógenos porque tomados em relação à literatura francesa, assinalam no
texto de Le Bris o que se considera propriamente literatura francófona: sempre determinada, em
seus termos subjacentes, em relação à literatura francesa, segundo regras atinentes ao campo
literário francês.
Claire Riffard (2006) comenta uma passagem de Littérature et développement sobre a
abordagem das literaturas francófonas africanas mediante um processo de folclorização,
privilegiando a construção de uma África idealizada que, ao fim e ao cabo, corresponderia às
expectativas francesas sobre ela:
les discours idéalisateurs de la 'rencontre des cultures' et du 'métissage culturel'.
Travaillant dans le sens d'une recontextualisation de la littérature africaine, il a montré
de façon magistrale comment la France a voulu modeler la littérature africaine dans le
sens d'une folklorisation” (RIFFARD, 2006)
Ao referido comentário, cabe adicionar a citação de Jean Mouralis, para quem o estudo de
uma história literária francófona africana ainda permanece, em larga medida, tributário de uma
história literária francesa:
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Le colonisé s'est efforcé, d'autre part, d'entrer dans le champ littéraire de son époque. A
cet égard, il faut se souvenir que le colonisateur, loin de s'y opposer, a encouragé la
production d'une littérature écrite autochtone. Mais dans son esprit, celle-ci devait être
centrée sur l'Afrique “véritable” et l'écrivain africain était invité à recueillir des contes
ou des légendes, à évoquer des figures historiques, à décrire des coutumes
(MOURALIS, apud RIFFARD, 2006)
Nestes termos, cumpre indagar o quanto o escritor africano de língua francesa “devait être
centrée sur l'Afrique 'véritable' et l'écrivain africain était invité à recueillir des contes ou des
légendes, à évoquer des figures historiques, à décrire des coutumes” (MOURALIS, apud
RIFFARD, 2006), assim como os termos a um “lugar francófono” estipulado e normatizado na
França, para consumo africano. Nestes termos, emanaria da França não apenas uma definição de
África mas, de modo complementar a ela, uma circunscrição do objeto e de temas específicos a
uma literatura francófona legitimamente africana, legítima porque assim reconhecida na e pela
França. Eis uma armadilha que se coloca ante o escritor africano: o estabelecimento de um lugar
que passa, decisivamente, por uma “África verdadeira”, a-histórica (ALVES, 2012, p. 91)6.
As literaturas francófonas africanas como metafísica da presença
Uma discussão dos pressupostos gnoseológicos subjacentes ao problema proposto se
mostra, de modo mais claro, em alguns dos comentários à contribuição de Léopold Sédar
Senghor ao movimento da Negritude, levados a termo por Diva Barbaro Damato, em sua obra
Édouard Glissant: poética e política. Amparado pela leitura do Orphée noir, Senghor
circunscreve a emoção como principal característica do Negro, tomado enquanto absoluto,
universal:
6
Esse processo de circunscrição pode ser comparado à apropriação de máscaras e estatuetas africanas que,
na Paris vanguardista do início do século XX, necessitam de um reconhecimento do milieu francês para acederem ao
estatuto de arte. Aprecia-se amiúde o caráter revolucionário das máscaras africanas em um quadro como Les
demoiselles d'Avignon, sem se cogitar um problema quando signos artísticos africanos (como as máscaras e
estatuetas Fang, por exemplo) são tomados e ressignificados para a constituição de uma arte vanguardista europeia,
ao preço da invisibilidade dos artistas africanos que as produziram e significaram. Ainda que se possa questionar se
as condições de produção destas máscaras e estatuetas as reivindicam, de fato, como o que se pensa ocidentalmente
como arte, tanto seu estatuto de objet d´art como sua autenticidade estão diretamente condicionados não à
procedência, sequer ao reconhecimento da própria comunidade da qual emergem, mas de sua posse por um museu
francês ou por um Picasso, um Matisse ou um Derian, por exemplo (DIAWARA, 1998).
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Nous voilà dans le domaine royal du Nègre, qui est l´émotion. J'aurais pu citer
Gobineau: qu´il me suffise de rappeler le Comte de Leyserling parlant de la “rivalité
orageuse”, de la grande chaleur émotionnelle du sang noir (SENGHOR, apud
DAMATO, 1995, p. 118)
Ressalte-se o papel da emoção como principal característica do Negro (com maiúscula,
enquanto conceito metafísico). Enunciando a partir de uma posição humanista, Senghor justapõe
a contribuição do Negro à ideia de civilização universal. Malgrado o mérito de buscar,
objetivamente, evidenciar a componente negra na formação cultural ocidental, no que é
corroborado pelo conjunto dos fundamentos da Negritude, o argumento de Senghor executa este
movimento mediante o par Razão/emoção, identificando o primeiro termo à civilização europeia
e o segundo, ao Negro (ALVES, 2012, p. 94). Não por acaso, Senghor reformula o cogito
cartesiano de modo a definir a natureza do Negro tendo ao centro, em vez do Ser, o Sentir: não
apenas a uma suposta natureza do Negro se circunscreveria a emoção em oposição à Razão (sem
que se defina, exatamente, o que o termo emoção queira significar) mas, como consequência
adicional, ao Negro africano (note-se a homologia entre os termos negro e africano) restaria, ao
fim e ao cabo, ser definido em relação ao Europeu. Ao aceitar e desenvolver os termos de
Orphée noir, Senghor segue, para além do argumento sartreano, uma definição da natureza do
Negro em relação à civilização europeia; aceitando o pressuposto humanista no cerne da
formulação sartreana, Senghor se compromete com uma essencialização do sujeito negro
africano, avalizada pelo par Razão/emoção.
Uma formulação do tipo “Je sens, donc je suis” corrobora o que Jonathan Culler (1997)
define como metafísica da presença contribuindo, assim, para determinar a emoção como lugar
do negro e promulgar este lugar como pertencente à suposta natureza de um negro africano,
essencial e Uno. Ainda que se possa interpretar a recuperação do cogito, por Senghor, como um
movimento de apropriação criativa, quiçá subversiva do cânone filosófico ocidental, em uma
substituição do ser pelo sentir, o argumento de Senghor oferece o risco de a estabelecer a
natureza de um Negro absoluto, que se requer distinto do europeu mas se define, essencialmente,
em relação a ele. Do argumento inicial com vistas a uma definição última do Ser do Negro,
decorre uma definição que se dá em relação ao europeu ou, extrapolando a constatação, uma
definição em relação àquele tomado, na tradição filosófica ocidental, como O Ser. A apropriação
do cogito, tal como proposta por Senghor, compromete o esforço de definição do negro africano
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com o apelo a uma essencialização tributária de uma tradição filosófica exógena pois o Negro
africano homogêneo, absoluto, é apenas na medida em que sente; Senghor permanece tributário
de uma metafísica da presença ao recorrer ao par europeu/negro, ao que subjaz o par inicial
pensamento/sentimento.
É possível deduzir outra consequência da aceitação do par Razão/emoção, sob o signo de
uma metafísica da presença, no que tange a definições essencialistas dos sujeitos negros: caso se
observe a vigência do par Razão/emoção em Orphée noir, constata-se um segundo par, auxiliar,
mediante o qual ao homem europeu seria associado o domínio da Técnica (da Ciência) ao passo
que o homem negro definir-se-ia pela comunhão com a Natureza:
Mais cette revendication hautaine de la non-technicité renverse la situation: ce qui
pouvait passer pour un manque devient source positive de richesse. Le rapport technique
avec la Nature la dévoile comme quantité pure, inertie, extériorité: elle meurt. Par son
refus hautain d’être homo faber, le nègre lui rend la vie. Comme si, dans le couple
‘homme-nature’, la passivité d’un des termes entraînait nécessairement l’activité de
l’autre. (...) L’action du nègre est d’abord action sur soi. Le noir se dresse et
s’immobilise comme un charmeur d’oiseaux et les choses viennent se percher sur les
branches de cet arbre faux. Il s’agit bien d’une captation du monde, mais magique, par le
silence et le repos: en agissant d’abord sur la Nature, le blanc se perd en la perdant; an
agissant d’abord sur soi, le nègre prétend gagner la Nature en se gagnant (SARTRE,
2001)
Sartre propõe a recusa deste Negro essencializado à ciência e à tecnologia como uma
source positive de richesse ainda que, sob a ótica ocidental (na qual vigora o par Ocidente/Áfricacomo-lugar-do-Negro), uma suposta não-tecnicidade possa evidenciar uma ausência, uma
insuficiência, ambas marcas próprias a definições sob a égide de uma metafísica da presença7. Os
dois usos do adjetivo hautain assinalam, por parte do Negro, uma compreensão da Natureza que
7
Há uma estrofe do poema Cahier d´un retour au pays natal, de Aimé Césaire (2008, p. 44), que opera a mesma
distinção entre uma tecnicidade e cientificidade próprias ao Ocidente, em oposição a um domínio da natureza local
por parte dos sujeitos martinicanos; contudo, no caso de Césaire, percebe-se uma busca efetiva do valor
gnoseológico do conhecimento da natureza, assim como da significação do lugar caribenho, por parte dos sujeitos
que nele habitam (ALVES, 2010). Pode-se propor, analogamente, que Caliban assenta seu golpe final em Próspero,
na cena final de Une tempête, regido por uma busca e uma convicção do valor gnoseológico do conhecimento da
natureza local, tomando-o mesmo como condição sine qua non a seu estar-na-ilha – em última instância, a ausência
deste conhecimento determinaria a ruína do Próspero césaireano.
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depende, de forma indelével, de categorias ocidentais: o Negro africano recusaria
conscientemente sua pertença ao homo faber e, de tal recusa, resultaria uma certa “captation du
monde, mais magique, par le silence et le repos”. O uso da conjunção mais, bem como o
qualificativo magique, reforçam uma definição essencializada do Negro africano em relação ao
homem europeu, ante o qual representaria um ideal de relação com a Natureza, nela fundando sua
Weltanschauung.
Eis, nesse ponto, uma característica fundamental à metafísica da presença: na definição da
diferença mediante um par, o segundo termo, onde reside a diferença, se define como ausência
(ou falta ou insuficiência) de Ser. No presente exemplo, a Natureza poderia ser definida, ao fim e
ao cabo, como ausência de Técnica, ainda que Sartre pretenda atenuar o par caracterizando a
relação do Negro como “rapport technique avec la Nature”. Ou seja, mesmo aceitando o par
Técnica/Natureza, estabelecendo o domínio do Negro ao segundo elemento, a compreensão do
fazer negro ante a Natureza resta, em última instância, definida a partir da Técnica própria ao Ser
Ocidental visto que a compreensão, pelo negro, de seu meio é definida como um tipo de relação
(técnica) com a Natureza, desprivilegiado ante a Técnica (em maiúsculo) como domínio
propriamente ocidental (ALVES, 2012, p. 99-100).
A metafísica da presença, a partir dos sujeitos francófonos africanos
Ressalte-se que a essencialização do sujeito negro africano, definida em termos de
universalidade, potencializa o caráter exógeno da definição do Negro enquanto Ser africano,
assentada sobre o par Técnica/natureza ao qual subjaz, em última instância, um par do tipo
Ocidente-universal/África-como-lugar-do-Negro. O caráter exógeno da definição, aliado ao
conceito de lugar a ela subjacente, estabelecem as bases a uma crítica estabelecida por certos
textos da obra coletiva Pour une littérature-monde ante uma definição essencial do negro,
deduzida de Orphée noir. Dentre os quais, recebe atenção, neste artigo, o capítulo de Nimrod, no
qual, iniciando seu argumento pela descrição de uma cena ocorrida no lançamento de seu
romance Le départ, disserta sobre os problemas relativos a uma África determinada desde um
lugar francês:
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Les africanistes les plus réputés de France soutiendraient sans sourciller que les vrais
Africains sont des Africains qui vivent dans des villages. Les Aficains sont sommés
d'entrer dans l'ordre occidental à condition de demeurer les “bons sauvages” qu'on
voudraient qu'ils soient. Si l'Afrique est une essence, la bonne conscience occidentale est
sauve. Aussi, un Africain doit rester africain, un Africain ne doit jamais changer
(NIMROD, 2007, p. 221)
A África determinada de um lugar francês, sob tais condições, demonstra a vigência da
premissa de ocidentalização do mundo (já apontada por Le Bris), de onde emergiria uma
literatura global enunciando em francês a partir da África: contudo, uma literatura global nestes
termos depende visceralmente da aceitação, por parte do escritor africano, do lugar designado ao
“bom selvagem”, termo necessário evidenciado entre aspas, no argumento de Nimrod, mediante
dois elementos, a saber, a conjunção à condition de, determinando em que medida o escritor
africano pode aceder a uma condição de legitimidade; e a estrutura condicional calcada no verbo
être, em suas extremidades, reforçando a essência estabelecida a um suposto ser africano
(ALVES, 2012, p. 100). A essa África, por vezes se busca relegar o domínio do escritor africano.
Em tais condições, leituras de textos literários africanos em língua francesa implicariam,
frequentemente, abordagens dessas literaturas mediante conceitos e critérios especificamente
franceses, por vezes subjacentes, em um movimento no qual o texto literário considerado
francófono percorre o círculo hermenêutico de, através e à França, e segundo o qual as condições
mesmas de produção, circulação e recepção destes textos são determinadas de, através e à
França. O recurso ao texto de Bourdieu permitiria flagrar um equívoco frequente a leituras desse
tipo: o transporte de ideias se dá, amiúde, compreendendo de modo insuficiente seu lugar de
enunciação.
Se a “imigração das ideias”, como diz Marx, raramente se faz sem dano, é porque ela
separa as produções culturais do sistema de referências teóricas em relação as quais as
ideias se definiram, consciente ou inconscientemente (…) Por isso, as situações de
“imigração” impõem com uma força especial que se torne visível o horizonte de
referência o qual, nas situações correntes, pode permanecer em estado implícito. Embora
seja escusado dizer que repatriar este produto de exportação implica riscos graves de
ingenuidade e de simplificação – e também grandes inconvenientes, pois fornece um
elemento de objectivação (BOURDIEU, 2005, p. 7)
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O transporte de ideias se dá amiúde, no caso específico da clivagem anteriormente
sugerida entre os domínios francês e francófono, estipulando seja uma universalidade do lugar de
enunciação francês, seja uma homogeneização daquilo que se define como francófono – parte dos
“riscos graves de ingenuidade e de simplificação” aos quais a citação de Bourdieu se refere. Em
ambos os casos, corre-se o risco permanente de, no estudo de textos literários denominados
francófonos, substituir o dado da enunciação (e de um lugar de enunciação) em língua francesa
por um conjunto de juízos preconcebidos sobre o lugar e o(s) sujeito(s) enunciador(es) dos textos
lidos: reduz-se, assim, a complexidade do Outro ao qual se denomina francófono mediante o uso,
justamente, daquilo que o constitui. O adjetivo “francófono”, de diferença, passa a rótulo8.
Nimrod interroga uma suposta natureza de objeto do escritor africano da qual, na análise
de seu argumento, se pode deduzir e debater em que medida o estabelecimento de critérios de
uma literatura “autenticamente” africana se dá amiúde externamente a ela:
Et que dire de l'écrivain africain? Tout se passe comme s'il devait produire une littérature
exotique destinée aux Européens et à lui même, ce qui revient à vouer à la nostalgie
d´une Afrique qui a disparu voilà longtemps. Et ce par voies et faits d'une production qui
se veut autentiquement africaine. Avec des filles excisées, des mariages forcés, le tout
dans un cadre de préference villageois: c'est là que les Africains sont autentiques
(NIMROD, 2007, p. 223)
A pergunta sobre a relação entre literatura francesa e as demais literaturas de língua
francesa se desenha em termos do lugar designado à obra denominada como francófona e, por
conseguinte, ao escritor relegado a uma posição francófona. Mais especificamente, e tornando o
problema mais complexo, Nimrod aponta para o estabelecimento de uma definição de África
formulada de e à França, para consumo de uma literatura emanada de um lugar geograficamente
8
A recorrência deste sintoma se mostra significativa em uma breve análise da literatura martinicana entre os
anos 1990 e 2000: não por acaso, nas primeiras páginas de Adèle et la pacotilleuse (2005), a protagonista Céline
Alvarez Bàà se ocupa em uma definição de si que, antes de tudo, se ocupa em assinalar que ela não é, ou não
corresponde, ás definições emanadas desde o continente ou mesmo desde França. O mesmo se passa com o primeiro
parágrafo do ensaio Le discours antillais, de Édouard Glissant (1997), para citar apenas dois exemplos.
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dito francófono mas definido a partir da França, e através de um critério qualitativo que
estabelece o qualificativo francófono, em última instância, como o que, por ausência de Ser, não
é francês. A definição de um lugar africano implicaria, nestas condições, uma literatura restrita a
determinados temas, topoï, paisagens consideradas autênticas de um determinado lugar, ou
daquilo que a ele competiria, o que conduziria, paradoxalmente, a uma reivindicação identitária
que, ao fim e ao cabo, se constrói estritamente nos termos do Outro. No tocante aos processos
escravagistas e ao Tráfico, tanto na África quanto na América, tais construções e redefinições
identitárias levariam, em suas últimas consequências, a uma definição do colonizado restrita
essencialmente àquilo estabelecido por outrem. Nimrod, na introdução de seu capítulo, descreve
que, após uma intervenção em Nancy para o lançamento de seu livro Le départ, fora interpelado
por um homem francês que “connais l'Afrique” pelo fato de haver nela vivido alguns anos,
gozando de uma posição legítima para “dire que vous n'êtes pas africain”:
Vous vous appelez Nimrod, les personnages de votre récit s'appellent Gath, Évodie,
Royès et autres. Ils portent des noms chrétiens. Et puis, ce qui m'a fait le plus rire, c'est
que vous parlez de poireaux, navets, carottes, pâquerettes...Ça n'est pas africain, ça, mon
Dieu! Pas du tout! Car l'Afrique, je connais, je connais votre pays, il n'y a pas de
carottes, il n'y a pas de navets, il n'y a pas de pâquerettes...Rien de ce que vous décrivez
n'est pas africain...(NIMROD, 2007, p. 218-219)
Um recenseamento de elementos considerados “legitimamente africanos” conduziria,
provavelmente, a uma lista de características que, ao fim e ao cabo, remeteriam o lugar africano à
preservação e manutenção de uma África a-histórica, “à la nostalgie d'une Afrique qui a disparu
voilà longtemps”, a uma África da qual se interditam processos e trocas culturais (ALVES, 2012,
p. 119). Paradoxalmente, uma tal definição de África, a sua revelia, implicaria em uma literatura
que, para aceder ao estatuto de literatura africana, não poderia falar de um lugar africano
contemporâneo. Em uma redução ab absurdo, noções como contemporaneidade e
transculturalidade consistiriam em um contra-senso ao que se define como literatura francófona
africana, uma vez que permaneceria relegada a uma posição de defesa e manutenção de uma
cultura a-histórica, própria de um “país africano” jamais claramente localizado.
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Conclusões parciais
A a-historicidade de um conceito exógeno de África fora anteriormente explicitada por
Mouralis e por Riffard, cujas críticas apontavam a um conjunto de topoï estabelecidos como
critério à definição de uma literatura tida como legitimamente africana, ao que o texto de Nimrod
dialoga com os dois supracitados. Prosseguindo o exame de tais conseqüências, seria possível
propor que uma adoção destas literaturas aos referidos temas, no sentido do que Mouralis (apud
RIFFARD, 2006) identificara como “des contes ou des légendes, à évoquer des figures
historiques, à décrire des coutumes” e do que Nimrod enumerara como “des filles excisées, des
mariages forcés, le tout dans un cadre de préference villageois”, quando adotada por escritores
africanos contemporâneos resultaria, a contrapelo de suas reivindicações de definição identitária,
em uma literatura de cunho identitário que, ao fim e ao cabo, redunda produzida e consumida em
relação à França, oferecendo o risco subjacente de uma aspiração identitária que, pretendendo-se
legítima, mantém a França como sua instância legitimadora e seu lugar de enunciação como
aquele que pecaria por ausência de Ser. Como consequência, perversa, outorgar-se-ia a uma
instância exógena o direito de enunciar o que é esta literatura africana contemporânea tentando
defender, literariamente, suas próprias construções identitárias.
Por fim, e para além de uma definição ocidental de África, cumpre sublinhar que o
capítulo de Fabienne Kanor em Pour une littérature-monde oferece elementos tangentes ao
debate sobre o problema do campo literário francófono. Kanor assinala em seu discurso uma
consequência da centralidade de um milieu parisiense no estabelecimento de critérios a uma
literatura francesa, e dos usos excludentes atribuídos a denominações como “literaturas
francófonas” e “literaturas africanas”: a impermeabilidade de um campo literário francês
(compreendido, hipoteticamente, pelo conjunto das literaturas em língua francesa) a obras e
autores tidos como periféricos.
“Péri quoi?”
Phérique. Périphérique. Ou si vous préférez: underground, an ba fey, à part, dans
l'ombre, alternative, en marge...bref, tout ce qui se conçoit et s'enonce différemment.
(…) Sauf que sur le terrain (en librairie) l'expression s'ancre, justifiant sans doute la mise
en quarantaine d'une bonne partie de cette littérature-là (KANOR, 2007, p. 238)
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O problema do lugar se mostra a partir de uma periodização literária que, na prateleira das
editoras e distribuidoras francesas, agrupam distintas literaturas sob um mesmo critério,
homogeneizante e, portanto, insuficiente a uma compreensão seja do Diverso destas literaturas,
seja dos processos transculturais que as relacionam, tanto entre si quanto com o próprio
patrimônio tido como literatura francesa (ALVES, 2012, p. 123). O estabelecimento de um lugar
às literaturas consideradas pelas editoras como “francófonas”, desde seu processo criativo, passa
pelas editoras (francesas) e culmina com a recepção das obras pelo público (francês, em grande
parte):
Tes mains pelotent et inspectent, tes yeux n'en croient pas leurs oreilles: quoi de
commun entre un Bessora et un Césaire? Entre un Tadjo et un...Chut! Il est des questoins
qui ne se posent point. Des logiques qui ne s'expliquent pas. Réjouis-toi plutôt d'avoir
trouvé ton exemplaire. Un Frankétienne pris en sandwich entre Dongala et (Ben)
Jelloun...fallait y penser (Ibid., p. 238-239)
Muitos dos fundamentos à noção operatória de literaturas francófonas são criticados,
nestes termos, por Nimrod, por Kanor e por boa parte dos escritores que subscrevem a obra Pour
une littérature-monde.
Referências
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Romance africano de língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional
Maria Suzana Moreira do Carmo1
Resumo: Com o exame das matrizes das literaturas africanas, este artigo pretende avaliar os elementos da história
recente da África ocidental que propiciaram o surgimento dos romances africanos de língua francesa. O período aqui
considerado refere-se, sobretudo, à passagem do romance histórico às obras de ficção que adquiriram certa
autonomia, com a expressão da individualidade do autor, mas que ainda mantiveram um estreito vínculo com a
narrativa tradicional.
Palavras-chave: Literaturas africanas. Narrativa tradicional. Romance africano.
Résumé: En examinant des origines des littératures africaines, cet article vise à évaluer les éléments de l'histoire
récente de l'Afrique de l'Ouest qui ont conduit à l'émergence des romans africains de langue française. Nous
considérerons, à cet effet, la période qui comprend surtout le passage du roman historique aux œuvres de fiction
ayant acquis une certaine autonomie avec l'expression de l'individualité de l'auteur, tout en maintenant un lien étroit
avec le récit traditionnel.
Mots-clés: Littératures africaines. Récit traditionnel. Roman africain.
Les paroles très anciennes
C’est comme les graines...
Camara Sory
11Doutora
em Letras pela Universidade de São Paulo e professora Adjunto II do Instituto de Letras e Linguística da
Universidade Federal de Uberlândia (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários). E-mail:
suzanamcarmo@ileel.ufu.br
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As circunstâncias que propiciaram o surgimento das literaturas africanas – a introdução da
educação formal pelas mãos do colonizador em um continente orientado social e culturalmente
pela oralidade – levaram o romancista africano a elaborar suas obras segundo uma visão estética
que se apoiava tanto na tradição romanesca européia quanto nas narrativas tradicionais. Se as
literaturas do ocidente modelaram, em parte, a criação dos países colonizados, a preservação de
elementos da tradição oral tornou-se um meio privilegiado de defesa do direito à diferença e à
constituição de campos literários africanos que se demarcam do cânone ocidental. Com o intuito
de examinar os elementos constitutivos do romance africano, Amadou Koné (1985) analisa,
sucessivamente e segundo uma ordem cronológica, a narrativa oral tradicional, o romance
histórico e o romance moderno, partindo da hipótese de que parte da ficção africana é decorrente
de um processo evolutivo da narrativa heróica tradicional oral e que essa evolução é devida à
“transformação da realidade africana e de seu sistema de criação literária” 2 (1985, p. 133).3 Com
uma orientação semelhante, embora menos imparcial, Makouta-Mboukou, em seu estudo sobre o
romance africano de língua francesa, não se limita à análise dos aspectos formais e estéticos da
criação literária. Segundo o autor, o encontro de culturas que gerou o romance africano de língua
francesa representa uma via de alienação e o corolário da seguinte constatação:
A civilização ocidental é essencialmente caracterizada por sua intolerância. Os três
elementos que a compõem não deixam entre si nenhum interstício capaz de abrigar os
elementos de cultura estrangeira. São estes: a religião cristã, a técnica e o espírito
cartesiano. (1980, p. 162) 4 [Grifos do autor]
Sob essa perspectiva, os três pilares da civilização ocidental formariam a base da rejeição
da cultura tradicional africana. Enquanto a religião cristã não reconhece a existência de outras
práticas e pensamentos religiosos, a técnica ocidental, oriunda do pensamento discursivo, rejeita
a priori a razão negra. Quanto ao pensamento cartesiano, sua fé na capacidade cognitiva da razão
elimina a sensibilidade diante dos mistérios da natureza e a comunhão com as forças secretas do
universo como meios de aquisição de conhecimento. A citação acima compreende, de fato, um
sentido extenso de rejeição cultural que será considerada, no âmbito deste trabalho, sob a
2
3
Todas citações das obras originalmente em francês terão traduções de minha autoria.
« ... à la transformation de la réalité africaine et de son système de création littéraire. »
« La civilisation occidentale est essentiellement caractérisée par son intolérance. Les trois éléments qui la
composent ne laissente entre eux aucun interstice pour loger les éléments de culture étrangère. Ce sont : la religion
chrétienne, la technique et l’esprit cartésien. »
4
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perspectiva dos efeitos da recepção e legitimação de obras africanas por parte de crítica europeia.
Rejeitando os elementos da narrativa tradicional, essa recepção inicial desconsiderava o fato de
que, a despeito de sua orientação temática ou ideológica, a ficção africana não poderia deixar de
refletir o encontro da cultura ocidental com a tradição africana que, por sua vez, compreende a
cultura árabe. É nesse sentido que faremos a seguir a verificação da permanência dos elementos
da narrativa tradicional nos primeiros romances africanos de língua francesa. Cumpre, no entanto,
esclarecer que por romance moderno compreende-se as obras de ficção que adquiriram certa
autonomia na expressão da individualidade do autor, mas que ainda mantinham um vínculo com
o
passado pré-colonial, evocando a tradição, seja por meio da temática, do estilo ou da
composição formal da obra. Portanto, não faremos qualquer menção aos autores que Bernard
Magnier classificou, poeticamente, como “os viajantes solitários”5 (1990, p. 102), autores dos
anos 80, dotados de um estilo próprio, mais individual, mas cujos percursos originais não
eliminam a sensibilidade em relação à coletividade, embora esta seja considerada sob uma
perspectiva mais universal e menos ligada às questões específicas da África. Ao contrário, a
evolução da narrativa tradicional ao romance moderno restringir-se-á à produção literária que
marca a passagem do oral ao escrito.
O surgimento das literaturas africanas de língua francesa
A produção do romance africano de língua francesa é esparsa e lenta até o período da
liberação das colônias francesas, em 1960. Makouta-Mboukou (1980, p. 195) considera que os
primeiros romances representam, na verdade, um período de exploração e experimentação, mas
aponta os romances Le reprouvé, do senegalês Massyla Diop, e Karim e Mirages de Paris, do
também senegalês Ousmane Socé, como romances dignos de atenção e indicadores dos rumos
que tomariam esse gênero na era pós-colonial. Le reprouvé, publicado sob a forma de folhetim,
5
Bernard Margnier refere-se à produção literária dos anos 80 de autores que, nascidos no continente africano,
elegeram Paris como domicílio e cujas obras parecem aderir a estratégias muito mais individuais do que coletivas.
São eles: Yodi Karone, Marie Ndiaye, Catherine N’Diaye, Blaise NDjehoya, Simon Njami, Calixthe Beyala, Thomas
Mpoyi-Buatu, Léandre-Alain Baker Barnabé Laye, Bolya Baenga, Caya Makhele, entre outros.
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em 1926, já indica a degenerescência dos costumes da África colonial, mas, embora lamente o
desaparecimento gradativo do passado africano, não rejeita a assimilação cultural. Quanto a
Karim, primeiro romance de Socé, de 1935, é possível verificar de maneira mais precisa a
armadilha montada para o jovem africano letrado, que é seduzido pelo brilho artificial da
civilização ocidental, tema que, aliás, se tornaria recorrente na ficção africana.
Se por um lado, intelectuais como Amadou Koné (1985) e Makouta-Mboukou (1980)
reivindicam o reconhecimento da narrativa tradicional como matriz e inspiração da ficção
africana, por outro lado, é importante observar os impactos da alteração de código – do oral ao
escrito – e da materialização da literatura, instituídas pelo sistema colonial, que promoveram a
sobreposição da escrita a uma cultura baseada na oralidade.
Implantação da cultura letrada
A alteração de código deveu-se à implantação do sistema educacional e consequente
divulgação da língua e cultura francesas nas antigas colônias. Como propósito inicial, esse
sistema previa a implantação de um modelo europeu para fins de divulgação dos hábitos e da
superioridade da civilização ocidental em contraposição ao que o colonizador considerava como
os costumes bárbaros de um povo pouco afeito ao exercício da lógica, o que justificava a
precariedade que, na opinião do colonizador, se refletia no cotidiano africano. Sem discutirmos,
por enquanto, a fragilidade do argumento, podemos ao menos dizer que, nos interstícios da ação
benevolente, escondia-se a necessidade de fornecer os subsídios adequados à população
autóctone para que pudesse colaborar efetivamente com o assentamento da administração
colonial. Foi, no entanto, essa ação educativa que proporcionou a formação de leitores e forneceu
as bases para o surgimento dos futuros escritores, poetas e, posteriormente, do pensamento crítico
africano.
“Na verdade, o poder colonial francês, ao organizar um sistema de ensino nos territórios
ocupados em função da necessidade de sua própria sobrevivência, suscitou,
sucessivamente, e entre outros, dois fenômenos que certamente não figuravam em suas
previsões: em primeiro lugar, a formação progressiva de um público que lia e se
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expressava em francês e, em seguida, a emergência de uma literatura de expressão
igualmente francesa” (GNAOULÉ-OUPOH, 2000. p. 12).6
O sistema de ensino colonial teve sua primeira escola oficial aberta em agosto de 1887,
por iniciativa de Arthur Verdier, navegador e comerciante francês, instalado em uma província da
Costa do Marfim, cuja intenção se limitava a formar os homens da região a fim de solucionar os
problemas imediatos de seu comércio e das plantações locais. A mesma necessidade detectada
por Verdier levaria o governador da colônia, Binger, a assinar uma convenção entre a
administração local e a congregação das Missões Africanas de Lyon para garantir a eficácia do
ensino, por ele julgado insuficiente, e servir de apoio ao empreendimento colonial de divulgação
da língua e da cultura francesas. O desenvolvimento do ensino em língua francesa só se efetuou,
portanto, a partir da necessidade de expansão e domínio do colonizador7, sendo o
desenvolvimento da literatura uma conseqüência natural da expansão do ensino e,
posteriormente, da abertura das universidades e formação dos futuros intelectuais do continente
africano.
Quando a organização do ensino público passa à administração federal, ou seja, quando a
administração colonial estabelece uma nova política escolar orientada a partir de Dakar 8, a
expansão do ensino público tem o mérito de estender sua ação às diversas regiões dos países
colonizados, mas o demérito de provocar, pela proposta de organização do ensino que dividia as
escolas em rurais, regionais e urbanas, a oficialização da exclusão. Enquanto as escolas rurais
eram mantidas por monitores africanos cuja principal atribuição era fornecer
(...) os rudimentos de língua francesa, de higiene e de cálculo [as escolas urbanas] foram
criadas com o objetivo de satisfazer as necessidades de escolarização dos filhos e filhas
“En effet, le pouvoir colonial français, en organisant, pour les besoins de sa propre survie, un systhème
d’enseignement dans les territoires occupés, a successivement suscité, entre autres, deux phénomènes qui ne
figuraient certainement pas au nombre de ses prévisions : d’abord la formation progressive d’un pubic lisant et
s’exprimant en français, ensuite l’émergence d’une littérature également d’expression française.”
6
7
Outro ponto que merece atenção por corroborar com o desejo de promover a submissão do colonizado é a
instauração tardia do ensino feminino. Este só se produziu, com efeito, a partir do momento em que os padres
responsáveis por parte das escolas oficiais concluíram que apenas com a formação de núcleos familiares cristãos
poderiam garantir o sucesso das Missões, uma vez que haviam constatado que os convertidos retornavam ao seu
meio de origem.
8
Dakar tornou-se a sede da AOF (Afrique-occidentale française) que regia o conjunto das colônias africanas e da
qual emanavam as leis e decretos que organizavam as colônias no plano político, econômico, social e, na medida de
seus interesses e necessidades, também no plano cultural.
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de europeus e de funcionários africanos que dominassem bem o francês e que vivessem
‘à moda européia’. 9 (GNAOULÉ-OUPOH, 2000, ibidem, p. 21).
Além da inserção do modelo, tal valoração do modus vivendi europeu não deixará de ter
implicações diretas nas literaturas africanas, cuja produção inspirou-se fortemente na realidade
imediata. Mesmo quando os escritores se empenham em recuperar a tradição, sem fazer qualquer
menção ao momento histórico vigente, trata-se de um resgate que visa enaltecer os méritos e as
virtudes dos grandes homens, da estrutura social e costumes tradicionais.
A imposição da língua e de hábitos europeus a uma cultura social e politicamente
organizada só poderia provocar a reação de parte da população que permanecia refratária ao
domínio francês. Não é, portanto, de se admirar que, em poucos anos de existência, a literatura
africana tenha mudado suas feições. Se, por um lado, o sistema educacional colonial permite o
surgimento das primeiras obras literárias nos moldes metropolitanos, por outro, as dimensões
políticas e socioculturais dessa inserção de valores e modelos franceses criam as condições ideais
para o surgimento de obras elaboradas, sobretudo, a partir da reação ao totalitarismo e aos abusos
cometidos contra o povo africano. Com a recuperação da tradição, as literaturas africanas trazem
à cena literária aquilo que a Europa tentou condenar ao esquecimento: a cultura africana précolonial. Em entrevista concedida a Edouard Maunick (2002), Léopold Sédar Senghor relembra
sua experiência pessoal com a instrução francesa que tinha como objetivo principal caracterizar a
barbárie da cultura africana:
Foi nos anos 20, eu estava no seminário Libermann; o diretor, o padre Lalouse, era
realmente um educador: ele queria, como nos dizia com freqüência, fazer de nós
verdadeiros franceses negros. O padre Lalouse tinha o hábito de nos dizer que nós não
éramos civilizados, que o que havia era uma tábula rasa e que era preciso nos ensinar a
pensar, a agir e até mesmo a sentir como os europeus, como os brancos, como os
franceses, e eu me revoltava contra essa idéia e voltava ao passado. Eu pensava nos dias
de Djilor, naquela vida de vilarejo que era ordenada como uma cerimônia, desde o
amanhecer, os cumprimentos a meu pai com o esboço de genuflexão das mulheres e das
moças, até às noites escuras, palpitantes, com seus contos e lendas. Tudo era organizado,
tudo era digno, tudo era belo e, mais tarde, me lembraria dessa vida de Djilor ao ler Léo
Frobenius falando dos Negros e dizendo que esses homens eram civilizados até os
ossos.10 (SENGHOR, 2002, p. 7).
“... des rudiments de langue française, d’hygiène et de calcul, [as escolas urbanas] ont été créées dans le but de
satisfaire les besoins de scolarisation des fils et filles d’Européens et de fonctionnaires africains, maîtrisant bien le
français et vivant « à l’européenne”.
10
“C’était dans les années vingt, j’étais au collège séminaire Libermann, le père directeur, le père Lalouse était
vraiment un éducateur, il voulait comme il nous l’a souvent dit faire de nous des Français noirs. Et le père Lalouse
9
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No prefácio de Les Damnés de la terre, de Frantz Fanon, Sartre (1968, p. 137) denuncia o
processo de helenização do colonialismo, o engodo e as táticas de uma agressão imperialista. Em
1948, o filósofo já havia feito a apreciação das conseqüências deste processo no plano literário.
Os rumos que as literaturas africanas tomaram nos anos subsequentes não fizeram senão ratificar
as previsões de Sartre: o plano estético-literário foi revelando, de forma profunda e consistente, a
conscientização de uma realidade histórica que compreendia tanto a valorização das tradições
quanto a intervenção do imperialismo europeu, visando ainda estabelecer o balanço dessa
dicotomia em benefício de uma constituição identitária, conforme aponta Charles Nokan:
A maioria dos escritores freqüentou a escola do colonizador e foram, portanto,
parcialmente influenciados pela educação que receberam. Havia uma espécie de escola
em cada região, em nossos diferentes grupos étnicos, mas tratava-se de uma escola cujo
ensino era exercido junto aos pais [pois] essa era uma época de experiências, relacionada
ao que os pais faziam, a tudo o que diziam; tudo era oral naquele momento; antes de
sermos educados pela educação criada pelos ocidentais, criada pelos colonizadores, nós
havíamos sido formados por esse tipo de educação que eu chamaria de educação
africana, educação da etnia, [exercida] junto aos pais e que só pode ser feita por meio da
experiência. Depois, tivemos na escola a cultura que o ocidente nos apresentou: a França
ou a Inglaterra, dependendo da região da África. E não há dúvida de que também
adquirimos certa experiência e isso transforma parcialmente o indivíduo: temos um
pouco de ambos, o que pode aparecer nas atividades que exercemos (...), portanto,
costumamos dizer que ambos se manifestam na obra. Cabe agora aos leitores, aos
críticos verificar o que é mais influenciado pelo ocidente e o que é, em parte,
influenciado por nossas culturas africanas. (NOKAN, 2006)
Vejamos, então, em que medida os elementos da narrativa tradicional determinaram os
traços que constituíram o moderno romance africano, confirmando as alegações supracitadas de
que o gênero romanesco africano não se limita a uma servil adaptação do romance francês.
avait l’habitude de dire que nous n’avions pas de civilisation, qu’il y avait table rase, et qu’il nous fallait apprendre à
penser, à agir et même à sentir comme les Européens, comme les Blancs, comme les Français et je me révoltais contre
cette idée et je revenais en arrière. Je songeais aux jours de Djilor, à cette vie de village qui était réglée comme une
cérémonie depuis le réveil du matin, les salutations à mon père avec l’esquisse de génuflexion des femmes et des
jeunes filles jusqu’aux veillées noires palpitant de contes et de légendes. Tout était réglé, tout était digne, tout était
beau et plus tard je me rappellerai cette vie de Djilor en lisant Léo Frobénius parlant des Noirs et disant que ces
hommes étaient civilisés jusqu’à la moelle des os.”
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Mestres do discurso: do griot ao escritor moderno
A sociedade tradicional, anterior ao tráfico negreiro, é definida por Amadou Koné (1980,
p. 137) como uma sociedade fechada, na qual o principal objetivo consistia em salvaguardar a
unidade e coerência do grupo. Seu sistema de organização contava com um princípio metafísico
que se expressava por meio dos mitos e permitia o equilíbrio entre o homem e a natureza. Esses
mitos regiam então as questões fundamentais da comunidade e eram ensinados pelos anciãos,
verdadeiros guardiões da tradição e mandatários dos deuses e ancestrais, que tinham como função
principal a manutenção do equilíbrio e o respeito aos valores do clã tais como a continuação da
linhagem, ou a importância do princípio de descendência, o valor da virilidade, da coragem, e da
fecundidade, entre outros. Como afirma Jacques Maquet (1968, p. 18-21), tudo o que o africano é
e possui se deve a seu status como membro de uma linhagem, como descendente de um ancestral,
cuja imagem é venerada como a de um ser forte e poderoso. O herói mítico se torna então um
modelo em torno do qual gravita a narrativa tradicional, proporcionando a criação de personagens
históricos como Sundjata, ancestral da região do Mandinga, cujos grandes feitos foram narrados
por Djibril Tamsir Niane (1960) em Soundjata ou l’épopée du Manding. Sem grande densidade
psicológica, o herói tradicional não tem dúvidas ou apreensões quanto ao papel que deve
desempenhar em sua relação com os demais personagens, com a natureza ou as contingências da
ação. “Nesse mundo “fechado e perfeito”, a questão fundamental não é saber se é preciso ‘ser ou
não ser’ mas, antes, como estar o mais alinhado possível com os valores considerados como os
melhores”.11 (KONÉ, 1985, p. 137).
Em sua pesquisa, Koné identifica duas etapas na evolução do romance africano. A
primeira, que constitui a formação do romance histórico, é caracterizada pelo processo de
recriação de uma história antiga na qual o escritor não desempenha o papel de simples tradutor,
mas reelabora o tema como se ele próprio a tivesse criado. Ser mais do que um simples tradutor é
ainda uma característica que diferencia a atividade do romancista da transcrição direta da
“Dans ce monde “clos et parfait”, la question fondamentale n’est pas de savoir s’il faut “être ou ne pas être” mais
plutôt comment être le plus en conformité avec les valeurs considérées comme les meilleures”.
11
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narrativa tradicional. O escritor, em parte ocidentalizado, deixa a sua marca de criador, daquele
que possui certa autonomia que lhe permite parafrasear a história. Talvez tenha sido esta uma das
razões que levaram alguns críticos a se perguntarem, por exemplo, em que medida Wangrin,
personagem do romance L’Étrange destin de Wangrin, de Amadou Hampaté Bâ (1992),
corresponde ao personagem real apresentado na advertência que precede o romance e qual seria a
parte de inventividade com que o autor teria complementado o perfil e as façanhas do
personagem. No posfácio, redigido treze anos após a publicação do romance, Hampaté Bâ usa de
fina ironia para esclarecer os mal entendidos relativos à autenticidade dos personagens e eventos
narrados:
Desde a publicação deste livro, em 1973, alguns mal entendidos surgiram cá a lá, tanto
no que concerne à personalidade real do herói quanto à própria natureza da obra. (...)
Admite-se, em geral, a existência histórica daquele que se apelidou, ele próprio, de
“Wangrin”, mas acredita-se que devo ter “romanceado” um pouco sua vida, introduzindo
uma dose sutil de tradição oral e eventos sobrenaturais de minha autoria, a fim de
encorpar a história e lhe dar uma espécie de significação simbólica.
Sinto-me extremamente lisonjeado pelo fato de que exegetas, que são, com freqüência,
eminentes professores de literatura, atribuam a mim tais qualidades de criação
literária”12 (1992, p. 359).
A segunda etapa seria marcada pela maior liberdade com que o escritor elaboraria suas
tramas, mesmo que seus romances ainda lembrassem, direta ou indiretamente, a tradição oral.
Trata-se, portanto, de uma interpretação livre da narrativa tradicional. Além da formação
européia dos escritores, que permitiu a mudança do código de expressão e o acesso ao cânone
ocidental, um outro fato relevante para a gradual aquisição de liberdade de criação do escritor
africano foi o afastamento do controle do público. As narrativas da tradição eram proferidas para
uma audiência que dominava o teor das histórias narradas e conhecia profundamente os mitos e
heróis. Esse conhecimento fazia com que o público exercesse um controle sobre a fidelidade da
12
Depuis la parution de ce livre en 1973, certains malentendus sont apparus çà et là tant sur la personnalité réelle du
héros que sur la nature même de l’ouvrage. (...) On admet généralement l’existence historique de celui qui s’était
surnommé lui-même « Wangrin », mais on pense que j’ai dû « romancer » quelque peu sa vie, y introduisant même,
pour corser l’histoire et lui donner une sorte de signification symbolique, un dosage subtil de tradition orale et
d’événements surnaturels de mon cru. Je suis extrêmement flatté que des exégètes, qui sont d’ailleurs souvent
d’éminants professeurs de littérature, m’attribuent de telles qualités de création littéraire ”.
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narrativa, controle que desaparece com a alteração do suporte: o livro nas mãos do leitor admite
certamente uma recepção crítica, mas não altera os rumos da narrativa como ocorria durante a
transmissão oral. É exatamente por essa razão que a justificativa da procedência dos mitos e
heróis narrados é recorrente nos discursos dos griots. Em Soundjata, o griot Mamadou Kouyaté
garante ser merecedor de crédito quanto à História do Ancestral do grande Manding:
Minha palavra é pura e despojada de qualquer mentira; é a palavra de meu pai; é a
palavra do pai de meu pai. Eu vos transmitirei a palavra de meu pai tal qual a recebi; os
griots dos reis ignoram a mentira13 (NIANE, 1960, p. 10)
Soundjata ou l’épopée du Manding é um romance histórico, cuja estrutura e função estão
muito próximas da narrativa oral tradicional. Já em outra fase, e considerando-se os
desenvolvimentos do romance estabelecidos por Amadou Koné, L’étrange destin de Wangrin
suscita algumas suspeitas em relação à credibilidade dos eventos narrados. Se Hampaté Bâ
garante a veracidade de sua narrativa e de sua fonte, pela ‘palavra’ recebida do próprio Wangrin,
a dúvida traz o reconhecimento implícito da atuação da imaginação do autor. Um passo adiante,
quando a autonomia do autor já seria então francamente reconhecida, Ahmadou Kourouma, Les
Soleils des indépendances, revela uma imagem muito tênue do griot da sociedade tradicional.
Diamourou, descendente dos virtuosos griots da família Doumbouya (KOUROUMA, 1970, p.
107), apresenta um discurso competente e tenta manter o prestígio de sua casta, mas não evoca a
autenticidade de seu discurso. Diamourou é o griot da moderna criação literária africana que,
além de estar distante da respeitosa audiência de outrora e ter perdido sua função de memória
reguladora da sociedade e do clã, é fruto do esfacelamento da sociedade tradicional trazido pelos
novos ventos das independências, sendo que ele próprio tira proveito da situação, vivendo às
expensas da filha e dos netos, que enriqueceram graças ao novo poder e à nova administração.
A passagem da narrativa do griot à narrativa do escritor moderno é, portanto, marcada por
um processo evolutivo que se inicia na narrativa oral tradicional, passa pelos romances históricos
que compreendem uma espécie de tradução, ou transcrição, dos grandes temas míticos e
históricos, até chegar ao moderno romance africano. Neste momento, a imaginação e a
“Ma parole est pure et dépouillée de tout mensonge; c’est la parole de mon père; c’est la parole du père de mon
père. Je vous dirai la parole de mon père telle que je l’ai recue; les griots de roi ignorent le mensonge”.
13
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criatividade individual desempenham um papel preponderante sem, contudo, abandonar
totalmente a estrutura da narrativa tradicional. Além de certa submissão ao cânone ocidental e da
liberdade adquirida para expressar sua individualidade e ideologia, a alteração do código da
comunicação, do oral ao escrito, também permite que o autor prolongue, de certo modo, a
atuação do griot.
Esboçando um esquema comunicacional da narrativa tradicional, Amadou Koné aponta
ainda a dupla função do escritor moderno: além de assumir o lugar do griot, ou seja, o lugar do
emissor das histórias exemplares da tradição, também assume o papel do agente rítmico cujas
intervenções musicais foram substituídas, no novo código, pelos acréscimos do enredo e pelo
estilo do autor, enriquecendo a mensagem e permitindo a introdução da ideologia do autor.
Um dos traços que distinguem o griot do escritor moderno africano é o fato do griot não
ser um criador na concepção ocidental do termo. Aliás, no momento em que o autor africano
ganhava autonomia e liberava sua imaginação, na França, teóricos como Barthes (1984, p. 63-69)
e Foucault (1994, p. 789-821) opunham-se à tradição clássica e propunham, num movimento
vanguardista, a morte do autor. Dito isso, assinalamos um dos pontos de divergência, tanto na
produção literária quanto na crítica, entre metrópole e ex-colônias. Isso não significa que o
privilégio da escritura em detrimento do autor não possa constituir uma via possível de análise
das literaturas africanas, mas no período que marcou a passagem do romance histórico ao
romance moderno africano, ou ainda no período que, posteriormente, compreenderia a era das
reivindicações, das lutas pela liberação e os anos subseqüentes às Independências, esse modelo de
leitura de uma obra africana constituiria praticamente um anacronismo.
Na passagem da tradição oral à escrita, a ideologia do autor e o momento histórico são
partes integrantes da narrativa. O cenário literário que abriga, por exemplo, o primeiro romance
de Ahmadou Kourouma encontra-se em estágio acentuado de liberação do escritor14. Mesmo que
a sociedade tradicional continuasse sendo uma fonte inesgotável de motivos temáticos, o controle
da narrativa oral exercido pelo público havia desaparecido. A supressão do crítico e censor
14
Esse momento coincide com uma vasta produção de romances que sucederam o processo das independências do
oeste africano. A esse respeito, podemos consultar a extensa lista de publicações selecionadas por Pius NGANDU
Nkashama em Les années littéraires en Afrique (1912-1987).
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imediato, cuja exigência de fidelidade à História restringia o papel do narrador à manipulação
competente do discurso, permitiu o livre curso da imaginação do autor.
Esse é o momento em que o escritor assume o papel de emissor independente,
abandonando a função de intérprete ou recriador de uma história há muito conhecida. Entretanto,
isso não significa que os temas tradicionais tenham sido totalmente abandonados, a diferença
reside no tipo de tratamento dado ao texto, que se singulariza por efeito da introdução da
imaginação e ideologia do autor. Se o escritor utiliza episódios da memória tradicional, com
referências a personagens, datas ou eventos históricos, a óptica pessoal prevalece em detrimento
da fidelidade histórica. Escrevendo agora em seu nome, em nome de suas aspirações e de seus
compromissos ideológicos, suas opiniões não são oficiais e o narrador, isento de compromisso
com a comunidade, pode expressar livremente seu julgamento.
O romance africano permitiu, portanto, que o escritor, cada vez mais impregnado da
cultura ocidental, se apartasse dos compromissos que o narrador tradicional tinha para com o seu
público. Suas convicções e aspirações sócio-políticas ou suas crenças religiosas encontram,
agora, livre curso de expressão. Afastando-se dos temas e dos heróis tradicionais, os escritores
podem enfim criticar e buscar alternativas para as questões discutidas em seus enredos.
O romance moderno africano surge, de fato, com a introdução da cultura ocidental no
continente, mas não deixa de ter uma ligação genética com a narrativa heróica tradicional. Depois
de uma breve passagem pelo romance histórico, no qual o autor torna-se uma espécie de
intérprete do passado, o escritor passa a expressar posicionamentos pessoais sem, contudo,
negligenciar as grandes questões coletivas ou a tradição. Considerando-se a história recente do
continente africano, as questões coletivas compreendem, em geral, as mazelas provocadas pela
colonização e pela pós-colonização, responsáveis pelo desequilíbrio e destruição das instituições
tradicionais. Não é, portanto de se admirar que a crítica literária referente às literaturas africanas
tenha privilegiado as relações entre a sociedade e a obra literária: Georges Lukács, Lucien
Goldmann e Mikhail Bakhtin são teóricos recorrentes nos estudos referentes às literaturas
africanas. Com tudo o que este continente comporta de tradições, crenças e organização social e
política, quer se trate de um traço deliberado, quer represente uma manifestação não intencional,
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inconsciente, os escritores africanos deixam sempre entrever, em maior ou menor grau, as marcas
da sociedade tradicional africana e a herança da narrativa oral.
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PALAVRAS: DENÚNCIA À VIOLÊNCIA E ECOS IDENTITÁRIOS EM NGA FEFA
KAJINVUNDA, DE BOAVENTURA CARDOSO.
Maria Aparecida de Barros1
RESUMO: Colônia portuguesa, Angola esteve sob jugo dessa empresa capitalista no percurso de quinhentos anos. A
independência ocorreu em 1975. É desse cenário a obra de contos Dizanga dia Muenhu, de Boaventura Cardoso,
editada em 1977. O escritor não se dispôs a traduzir o título do livro, evento que suscita a hipótese de que cabe ao
leitor investigar o termo em quimbundo, grupo etnolinguístico do povo banto, estética de valoração à cultura de
tradição oral africana. Dos contos, elegemos Nga Fefa Kajinvunda, em que a protagonista se faz pela palavra. Tratase de uma das inúmeras mulheres que comercializam no mercado ao ar livre. O processo de violência substancia-se
pelo autoritarismo do universo masculino sobre o feminino e pela supremacia da visão europeia em detrimento à
pessoa negra. Diante disso, a proposta deste artigo visa analisar as formas de resistência da personagem feminina,
que se ampara na voz, no discurso vivo, para espelhar na escrita de Boaventura Cardoso, o enfrentamento e a recusa
à anulação. Assim, a voz recobre-se de signos. Representativa da coletividade, forja-se na escrita, recurso utilizado
para romper o cerco de invisibilidade imposto à sociedade angolana. Na trama literária, os elementos
composicionais entrelaçam-se de vocábulos quimbundo imbricados à língua portuguesa, criando uma escrita que
repercute a oralidade que, além de formular denúncia à violência, à exploração, ao racismo, funciona como húmus
identitário.
PALAVRAS-CHAVE: Voz feminina; Exploração; Violência; Resistência; Subversão.
RÉSUMÉ: La colonie portugaise, Angola était sous le domaine de l’enreprise capitaliste au cours de cinq cents ans.
L’indépendance a eu lieu en 1975. Dans ce scénario l’oeuvre de contes de Dizanga dia Muenhu, Boaventura
Cardoso, publié em 1977. L’auteur n’a pas cherché à traduire le titre du livre, événement qui souléve l’hypothèse que
c’est au lecteur d’étudier le terme en quimbundo, groupe éthno-linguistique du peuple bantou, esthétique de
valorisation à la culture de la tradition orale africaine. Des contes, j’ai choisit Nga Fefa Kajinvunda, où la
protagoniste se fait par la parole. C’est une des mombreuses femmes qui font du commerce à l’air libre. Le processus
de violence passe par l’autoritarisme de l’univers masculin sur le féminin et la suprématie de la vision européenne en
détriment de la personne de race noire. Par conséquent, le but de cet article est d’analyser les formes de résistance du
personnage féminin, qui est soutenu par la voix, le discours en direct, pour refléter dans l’art de Boaventura Cardoso,
l’affrontement et le refus à l’annulation. Ainsi, la voix se recouvre de signes. Représentative de la communauté,
forgée sur l’écriture, caractéristique utilisée pour rompre le siège de l’invisibilité imposée à la société angolaise.
Dans cette trame littéraire, les éléments de composition se croisent avec des mots quimbundo immiscés dans la
langue portugaise, en créant une écriture qui résonne dans l’oralité qui, outre la formulation de dénonces à la
violence, l’exploitation, le racisme, fonctionne comme l’humus identitaire.
1
Doutoranda em Letras, Universidade Estadual de Londrina - UEL, Linha de pesquisa: Diálogos Culturais. Trabalha
no Núcleo Regional da Educação, situado à Av. Minas Gerais, 435, Cornélio Procópio. Endereço para contato:
mapdebarros@gmail.com
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MOTS-CLEFS: Voix féminine; Exploration; Violence; Résistence; Subversion.
Introdução
Colônia portuguesa, Angola esteve sob jugo dessa empresa capitalista no percurso de
quinhentos anos. Organizada militarmente, desde 1961, obteve independência, proclamada em
11 de novembro de 1975 pelo presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA), António Agostinho Neto, eleito primeiro presidente após a independência.
Lançamos olhar a um habitante de África, Boaventura Cardoso, nascido em Luanda, aos
26 de julho de 1944, que dos oito aos 22 anos viveu em Malange, província de Angola, localizada
na África Austral. É destas localidades que vibra a voz do produtor ficcional, que "é um dos
escritores mais lidos na atualidade, sendo sua obra traduzida em várias línguas" (CHAVES;
MACÊDO; MATA, 2005, p.11).
Graduado em Ciências Sociais, Boaventura Cardoso desempenhou funções diversas.
Dirigiu o Serviço de Informação Pública do Ministério de Informação da República Popular de
Angola, bem como o Instituto Angolano do Livro. Foi Secretário da Cultura. E, em França,
assumiu o cargo de Embaixador extraordinário e plenipotenciário de Angola. Atividade também
que passou a desenvolver em Roma. De volta ao seu país, atuou como Ministro da Cultura;
Governador da Província de Malange. No momento, é Deputado da Assembleia Nacional de
Angola.
Seu repertório artístico abrange as composições: Dizanga Dia Muenhu, (1977); O Fogo
da Fala (1980); A Morte do Velho Kipacaça, (1987); O Signo do Fogo, (1992); Maio Mês de
Maria (1997); Mãe Materno Mar, (2001) e Noites de Vigília (2013), sendo os três primeiros
livros de contos e os demais romances. Para a elaboração deste artigo selecionamos o conto Nga
Fefa Kajinvunda, retirado da obra Dzanga dia Muenhu, em que o escritor angolano crava
denúncia contra a exploração e a violência. Enveredando neste percurso literário, propusemo-nos
a levantar alguns dados sobre como se arvora o processo de anulação do sujeito negro por parte
da cultura hegemônica europeia.
A voz que se entrelaça à do narrador é a da personagem feminina. Trata-se de um
discurso arquitetado por uma mulher negra, que no bojo dialógico permite aflorar o contexto de
referência à luta pela sobrevivência num espaço margeado pela intolerância, pelo racismo. Na
contenda, a mulher negra toma para si a palavra e anuncia a verdade pelo viés do marginalizado,
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torna-se sujeito histórico, “revela-se como criador e criatura” (RATTS, 2007, p.41). Sob esta
perspectiva, pontuaremos algumas marcas dialógicas, presentes no discurso dessa personagem
que a tornam referência do povo angolano em arenas conflituosas. Por meio da voz, a palavra
define seu posicionamento e sua visão de mundo acerca dos problemas que assolam os membros
da comunidade de Angola, objetivam sua anulação, conforme reflexões arroladas nos itens a
seguir.
Voz: estatuto de sujeito à personagem feminina
A oralidade patenteia-se no conto Nga Fefa Kajinvunda. Fala e corpo traduzem vivências,
particularizam a compreensão que o sujeito tem de si, bem como da sociedade na qual se
encontra inserido. Sob este prisma, avalia a situação histórica que perpassa a trajetória humana e
pelo acúmulo de conhecimentos assimilados no percurso existencial reúne valores culturais,
registro de singularidade. Nesse sentido, a palavra/voz revela a visão de mundo, em que as
escolhas reorganizam o indivíduo em si mesmo e, em uma dimensão mais ampla, a conduta
projeta valores humanitários, basilares para normatização social.
ZUMTHOR (2007) credita função preponderante à voz. Para além da observação
aguçada, o pesquisador deve auscultar a poeticidade que emana do coletivo, com fim de perceber
as formas de pensamento que orientam os grupos sociais. O corpo associa-se à voz na
transmissão de conceitos elementares de formulação humana, conservados nos compartimentos
da memória. A articulação voz/corpo resulta na “performance”, que se “situa num contexto ao
mesmo tempo cultural e situacional [...], ultrapassa o curso comum dos acontecimentos” (p. 31).
Neste conjunto de ensinamentos se ampliam as vivências, porque ao ilustrar fatos pretensamente
triviais, sinalizam-se a complexidade de sua constituição, ou seja, ilustram a situação-problema
em suas causas e consequências. Nestes termos
a voz humana constitui em toda cultura um fenômeno central. Colocar-se, por assim
dizer, no interior desse fenômeno é ocupar necessariamente um ponto privilegiado, a
partir do qual as perspectivas contemplam a totalidade do que está na base dessas
culturas, na fonte da energia que as anima, irradiando todos os aspectos de sua realidade
(ZUMTHOR, 2007, p. 10).
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O escritor Boaventura Cardoso, no conto Nga Fefa Kajinvunda, entalha na escrita
a “performance”, conjugada pela articulação entre fala e manifestação corporal, configurada na
expressiva atuação da personagem feminina. A ação indica a cultura de sua origem e nela se
encontra a “energia”, combustão em que se abastece a protagonista para enfrentar os obstáculos
sociais, definidos pela exploração, racismo, intolerância.
É deste contexto a produção do ficcionista Boaventura Cardoso, há, em seu ato
criativo, representação à violência e atrocidades cometidas aos subalternos. Sua estética opera
em sentido contrário à lógica capitalista ao espelhar a positividade na atitude de Nga Fefa
Kajinvunda. Com isso, estabelece ruptura com os padrões das empresas imperialistas, já que a
percepção do autor se volta para a valoração da língua quimbundo e a alteridade conferida à
personagem central, conforme sinalizado em:
Kuateno! Kuateno! O grito rebentou no ventre atmosférico rapidamente na kazucutice 2
do Xamavo3. Negócios ainda parados, quitandeiras na berridagem do gatuno. Kuateno!
Kuateno! Tudo nas corridas para acaçar o dinheiro na ponda 4 de Nga Xica roubado. Na
berrida os fiscais também estavam. Pessoas que andavam nos becos ficavam assustadas,
movimentação era no acontecimento dos ladrões fugindo, Xamavo tinha desordem.
Kandengues até se espantavam, depois mergulhavam rindo na algazarra. Kuateno!
Kuateno! Grito levado longe, grito testemunho de boca bocando bocas. Nga Fefa
Kajinvunda, como lhe chamavam por causa da força dela na discussão, refilona, quem
lhe punha só desafio?, nem mesmo as polícias podiam com ela (CARDOSO,1982, p.
23).
Vários termos em
quimbundo desfilam juntamente com
vocábulos portugueses,
denotando a singularidade inerente ao modo de narrar do escritor angolano, que privilegia
aspectos da oralidade, bem como a arte de contar histórias. Demarcando o aspecto sonoro
propagado pela voz, que ruidosamente se espalha pelas vias do mercado aberto, “Xamavo”. Do
ponto de vista ficcional, o alcance da vibração vocal se traduz pelas condições propícias deste
ambiente povoado por pessoas diversas, composto, sobretudo, por mulheres comerciantes,
crianças e homens.
2
Desordem, confusão (N.E.).
Nome de antigo mercado (N.E.).
4
Pano que as quitandeiras usam à cintura e onde guardam o dinheiro (N.E.).
3
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De acordo com PEREIRA (2003), quimbundo é língua africana falada pelo grupo
etnolinguístico banto, cultivado por cerca de 500 povos distintos de vários países de África
Subsaariana, falado por aproximadamente 60 milhões de pessoas. Constituem cerca de 70% da
população do continente. Por estarem esses povos distantes da escrita, a palavra falada foi a via
por onde se engendraram os mitos, registros fundadores, que alojados na memória irromperam
as barreiras temporais. O discurso vivo consolidou valores, fontes edificadoras de crenças
centrais, veículo para normatizar a conduta comunitária. Boaventura Cardoso banha-se nestas
vertentes e enfatiza que:
Exercito uma semiósis que intersecciona o português angolanizado e as contribuições
semânticas da língua Kimbundu, em sua performance e competência. Parto sempre da
língua portuguesa reelaborada pelos povos Kimbundu, reelaboração essa, a partir da qual
arquitecto a minha gíria estético-literária (CARDOSO, 2010).
A confluência estética gera imagens e, de súbito, introduz o leitor à cena dos
acontecimentos. Conduz-nos a vislumbrar a agitação advinda do “Xamavo”, particularizada pela
movimentação de indivíduos na prática da comercialização e, respectivamente, na obtenção de
produtos. Para além disso, informa-nos que a correria aumentou devido ao furto cometido por
“kuateno”. O grito lançado contribui para aumentar a vivacidade do recinto.
A ambientação edifica-se por um cenário desigual fruto da gestão colonial, que se
arquitetou na imposição de autoridade de uma cultura sobre a outra e, no caso de Angola, ocorreu
pela truculência do poderio militar na destruição da cultura local. Este estratagema se perdurou e
no conto, em questão, o autor dirige a percepção do leitor para as feiras livres, local destacado
pela atividade desenvolvida pelas “quitandeiras”. Espaço que conserva as marcas ideológicas
repressivas, manifestado pelo poder patriarcal. A ação imposta tem por fim intensificar e selar a
violência, com consequente perpetuação da miséria e alienação, cuja tônica consiste em silenciar
o outro.
O emprego da metáfora “boca bocando bocas”, intensifica a movimentação, sendo que o
propósito dessas passagens é elevar a imagem de Nga Fefa Kajinvunda. O evento narrativo
centra-se nesta personalidade feminina, que se firma no discurso vivo. Atributo que lhe reveste
de força e coragem, já que o corpo “refilona” e a palavra se convertem em instrumentos
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distintivos de luta e resistência contra o sistema opressivo. Por isso, o narrador exalta-lhe a
competência discursiva, tal atributo lhe reveste de autoridade.
Se pensarmos no adjetivo refilar/ “refilona”, dentre as acepções o que nos parece mais
ilustrativo à personagem se restringiria a opor-se tenazmente, resistir, reagir falando. Caráter
distintivo que a consagra como signo de resistência, já que pelo seu espírito questionador
ninguém ousava a lhe provocar, nem mesmo “as polícias”. Boaventura Cardoso, em nota de
rodapé, traduz o significado de Nga Fefa Kajinvunda, “dona Josefa, a zaragateira” (p.23). O
acréscimo do adjetivo denota a expressividade da personagem, que não abre mão de seus
direitos, faz-se ouvir por meio da discussão, simboliza a possibilidade de reverter a situação
opressiva e o menosprezo dirigidos à população marginalizada.
A imposição da língua portuguesa como idioma nacional consiste num dos mecanismos
basilares das potências europeias para suplantar a identidade dos povos subjugados. Então,
somadas às marcas da oralidade há palavras em quimbundo, inclusive lançadas no início e
dispersas na narrativa, de modo a enfatizar o lugar social de onde são emanadas. Elas têm relevo
pelas representações que adquirem no decorrer da história: o de registrar a violência aos
colonizados na intensa demanda em extinguir-lhes as vozes. Os termos da língua nativa se
rebelam contra a hegemonia do colonizador e, sendo subversivos, vislumbram a libertação.
De acordo com (BONICCI (2009), no campo semeado pelo colonialismo, houve poda
aos colonizados quanto ao direito de assumirem suas respectivas identidades. Impôs-se a língua
portuguesa como idioma oficial e se repreendeu o uso das línguas nativas, obstruíram as vias para
que estes não pudessem ter acesso a própria herança ancestral, bem como aos bens e serviços
implantados em suas terras, conquistadas pelo explorador estrangeiro. Em espaços cercados e
conduzidos pela mão férrea das potências capitalistas, inibia-se a demonstração de insatisfação e
de rejeição à violência estabelecida em seus territórios, restando-lhes o silenciar e o aceitar da
submissão.
Contudo, muitos foram os meios encontrados pelos povos dominados para alcançar e
transpor a muralha de invisibilidade e no período pós-independência traçou-se um projeto
objetivava a nacionalização. Dessa forma, “os autores se distanciam da literatura metropolitana e
assumem uma literatura mais engajada e mais consoante à cultura e à formação dos sujeitos”
(BONICCI, 2009, p. 339). Nga Fefa não sucumbe ao estratagema de silenciamento, pelo
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contrário, o episódio já se abre com um grito. A personagem sustenta sua fala com firmeza e se
dirige a seus opositores com determinação.
Ainda sob a perspectiva deste pensador, se ideologicamente, durante o longo processo de
colonização, as empresas imperiais visaram o aniquilamento da cultura social angolana, em
contrapartida, no decorrer desse trâmite, o colonizado desenvolveu a réplica de modo velado em
forma de contestação à tirania, à violência, valendo-se dos recursos que lhes convinham de modo
a garantir a subjetividade. Assim, a cortesia, o silêncio funcionavam como mecanismos de
superação à brutal realidade, sendo que as ideias propagadas pela escrita “revelam não somente a
resposta do sujeito colonizado, mas a ambiguidade e a fragmentação do colonizador” (BONICCI,
2009, p. 339). O empenho prima pela “recuperação de voz”, instrumento de valorização, pois de
objeto o ser africano passa a ser sujeito de sua própria história, conforme atestado em:
Uma vez ela foi. Palavras zangadas com sô Zé, caloteiro. Mé dia, hora suarenta. Ainda
dentro de casa que começaram, quase sem barulho. Discutidamente depois, das
gargantas vomitavam berros, diálogo violento com as malcriações na língua. Palavras e
gestos no enquadramento. Os corpos na discussão enunciavam formas variadas. Paga
não pago. Nga Fefa e sô Zé no afrontamento. A solução não aparecia. As pessoas com a
curiosidade de saber que conversa era aquela de falar berradamente. Compreenderam
bem as conversas que passavam, quando dois já cá fora no prolongamento da maka. Sô
Zé pensava por ela ser mulher podia lhe ganhar na luta logo. Se enganou. Eu sou mulher
mas você não brincas comigo hem, caloteiro, não tem vergonha — Nga Fefa falou
autoridade nas palavras (CARDOSO, 1982, p. 23-24).
A tônica à voz patenteia-se no conto, apresentando aspectos da poética oral. A fala
feminina provoca a masculina no sentido de clamar por justiça, reivindicando para si e o coletivo
o direito legítimo de questionar o sistema, reclamando outras normas para compor as leis sociais.
O embate entre os personagens se inicia ao meio dia, o narrador denomina o período por “hora
suarenta”, pois este calor se propagará na discussão, de maneira intensiva. Os vestígios de
violência ascendem, a princípio, no repertório da fala e se prolongam por meio dos gestos. Corpo
e voz culminam na dramatização do episódio, a conjugação mobiliza o leitor a adentrar na cena
descrita. “A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente
um meio de comunicação: comunicando, ela o marca” (ZUMTHOR, 1992, p.32).
Marcadamente, faz-se notória a metáfora "garganta vomitavam berros" e, pela câmara
conduzida pelo narrador, o foco se afunila em "Palavras e gestos no enquadramento". A junção
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denota percepção de que as letras se desprendem das páginas, de forma a convidar o leitor para
também compor a multidão e visualizar a dança espetaculosa, intermediada por corpos e vozes.
Com a estratégia da narração em terceira pessoa, o narrador observador em alguns
lances concede a palavra à protagonista e no entrelace de vozes evidencia o lugar em que se
postula no contexto. Historicamente, coloca-se como parceiro
da população explorada, mostra
apreço e admiração pela força da mulher, que por sua configuração genética foi depreciada pela
fragilidade. Analogicamente, pode-se pensar que na mesma condição se encontra a nação
angolana, mas que demonstra resistência e determinação para reverter as consequências
fecundadas pela colonização. “Sô Zé pensava por ela ser mulher podia lhe ganhar na luta logo. Se
enganou.” A gradação performática prossegue:
Todos não estavam acreditar, é embora era garganta dela, manias de desafiar homem,
mé! A repetição da cena acontecia outra vez. Cada um na afirmação de si. Kajinvunda
nem que fugia só. Fia da mãe! Sô Zé começou de lhe empurrar no chão ali. Vai agora dálhe já — a multidão aquecida de contente. Nga Fefa no chão e o homem masculinamente
vitorioso. Mas, boxeiramente5 se levantou e lançou as mãos na garganta masculina. Sô
Zé na aflição, eué! Zolhos dele na viragem moribunda. Multidão atenta. Expectativa
dominante nos homens e nas mulheres. Receosos de ver sô Zé apanhar nas fuças, os
homens estavam. Era uma mulher. Vergonha para eles se Nga Fefa ganhava. Elas, o lado
delas, não queriam também ver Kajinvunda debaixo do corpo musculoso.[...] No
Sambila, na hora das mé dia, não te digo nada!, porrada grossa, meu! Ninguém se meteu
na cena. Só eles. Ditado que mandava não meter a colher entre marido e mulher, ali era
lei. Nga Fefa de repentemente baçulou6 o homem e a vitória dela com sô Zé no chão. [...]
Nga Fefa ainda na socagem do adversário. Tiveram de lhe dizer chega, vontade era
muita (CARDOSO, 1982, p. 24).
A ocorrência ganha plenitude ao sair da instância privada para a pública, tendo a população como
expectadora do embate entre Sô Zé e Nga Fefa. Notadamente, o narrador exalta a coragem feminina no
enfrentamento ao cerco de injustiças, mesmo tendo ciência da desvantagem pertinente às correlações de
forças, conforme assinala a afirmação: “Kajinvunda nem que fugia só. Fia da mãe!”. Da afirmação, podese intuir que as vozes autoral e narradora contemplam com interesse e admiração o procedimento da
mulher que não se rende aos ditames de práticas transgressoras de direitos igualitários. Momento em que o
narrador a consagra por seu qualificativo “Kajinvunda”, isto é, esta representação advém das camadas
5
Com jeito de boxeiro (N.E.).
6
Dar rasteira (N.E.).
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populares, provoca tumulto, sendo expressiva tanto a força discursiva quanto a de resistência física frente
ao opressor, pois “uma vez reiniciada a comunicação, as pessoas se redescobrem como seres
humanos” (THOMPSON, 1992, p. 213).
É perceptível que a ideologia machista naturaliza a opressão à mulher negra, captura
mentes tanto de homens brancos como de homens negros, justamente pelo fato de ser transmitida
e reproduzida pelo sistema capitalista, tentáculos de dominação e da ampliação da exploração, já
que " Receosos de ver sô Zé apanhar nas fuças, os homens estavam. Era uma mulher. Vergonha
para eles se Nga Fefa ganhava".
O comportamento da plateia indica ser costumeiro o triunfo da brutalidade sobre as pessoas que
são avaliadas em suas fragilidades, por isso, a efusão da torcida em prol daquele que ocupa funções
gerenciadas pelo escalão colonizador. No entanto, Nga Fefa Kajinvunda não se intimida. Os advérbios
“ali” e “já” conferem dinamicidade ao acontecimento, enquanto que “de repentemente” e “ainda”
exteriorizam a revolta sufocada, sinaliza que o oprimido pode reverter a ordem imposta sob a reputação
positiva conferida à protagonista. “A lição importante é aprender a estar atento àquilo que não está
sendo dito, e a considerar o que significam os silêncios. Os significados mais simples são
provavelmente os mais convincentes” (THOMPSON, 1992, p. 205).
A lição ensinada por Thompson faz-se presente no conto de Boaventura Cardoso, cuja
concentração estética prioriza histórias da tradição oral. Seu ato inventivo recai sobre a
essencialidade do ser humano, focaliza atributos em que repousam qualidades, vias pelas quais
se pode observar o projeto de identificação com os aspectos culturais formuladores da sociedade
angolana. Seus curtos contos, densos nas abordagens, abrangem o panorama histórico em que é
possível “ouvir” as vozes e interpretar a expressão corporal manifestadas pelas personagens,
sinais distintivos da forma de conceber o mundo. "O emprego da dupla dizer-ouvir tem por função
manifesta promover (mesmo ficticiamente) o texto no estatuto do falante e de designar sua comunicação
como uma situação de discurso in presentia (ZUMTHOR, 199, p.39).
Este ponto de vista é notável no conto em questão, pois o autor se dispôs a relatar fatos
cotidianos que cercam os grupos sociais de Angola, pelas vias ficcionais. É a voz de uma mulher
preterida pelo sistema político-econômico eleita para testemunhar, expor as intrigas
desempenhadas pela imensa parcela populacional, descompensada do conjunto de benefícios,
distintivo de uma sociedade desigual. Ao externar a interioridade pelo instrumento da faculdade
de falar, traz à tona sentimentos reveladores da concepção de mundo dos destituídos, porque a
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palavra expressa a subjetividade de Nga Fefa. Voz e performance designam resistência ao regime
patriarcal, fixado por condutas violentas e racistas, conforme o pronunciamento:
Nga Fefa, hum parece mentira! Nga Fefa agarrou mesmo o ladrão. Com uma aduela
tirou-lhe a vontade de correr. Os miúdos entravam na socagem e bofetadas também
davam na condenação. Vinham depois relatos de uma aventura breve, no palco
mussequeiro, grávido de cenas. Nunca recuava no medo das pessoas. Nga Fefa tinha
homem no corpo dela de mulher. Respondia xingantemente todos que lhe insultavam e
até os fiscais punham respeito nela. Senhoras inda que vinham do putu com as manias de
superior, não torravam farinha com ela. Olhar sisudo, cigarro na boca, falas poucas,
personificava a autoridade e o respeito (CARDOSO, 1982, p. 25).
A voz narradora expressa o incidente, manifesta o simulacro no qual contracenam, num
espaço divisório, de um lado encontrando-se a população negra e de outro a opulência
caucasiana, definida pela supremacia sobre os desprestigiados. O relato vincula-se a valorização
dos subjugados, enaltece Nga Fefa que se recusa a curvar-se à ideologia masculina, postulada
pelo império colonial, que julga a mulher como ser inferior. Na pauta literária, o autor engrandece
a personagem feminina, ressalta-lhe a coragem e destreza em enfrentar o sistema violento, que se
sela também pela arrogância das mulheres brancas, que também vivendo sob o jugo machista,
sentem prazer em se impor à mulher negra por acreditarem estar momentaneamente no poder.
Sob a ótica autoral, Nga Fefa representa a população angolana que mesmo estando à margem,
sinaliza a possibilidade de reverter a situação. A
presença dos “miúdos”, atuando com a
protagonista, aponta novas perspectivas. Estratégia desdobrada no item a seguir.
Morte: sublimação do sujeito
Nesta etapa do artigo propõe-se ressaltar nos recursos retóricos de Boaventura Cardoso o
sentimento de indignação entre dominador e dominados, num espaço singrado pelo ódio. O
comportamento violento intenta minar a integridade física, moral e psicológica da protagonista,
que como um véu, representa o coletivo dos despossuídos. Emerge do enredo denúncia a grave
vulnerabilidade imposta a este grupo social, que encontra na postura de Nga Fefa Kajivunda,
respaldo para enfrentar seus dilemas. Talvez, por este motivo, o narrador lhe outorga de força.
Diferentemente da violência, que se manifesta pela agressão, conjugada por atos corruptos, que
lesam as pessoas, a força se materializa
em ações firmes, expressam a moral positiva da
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personagem feminina. No evento ela procura ser respeitada e empenha-se na auto-afirmação, a
fim de romper laços opressores, conforme ilustra o excerto a seguir.
Chegou e perguntou saber se o peixe quanto é: Trinta escudos. Foi a resposta seca que
ela falou na intenção de não arranjar mais conversa. Ela sabia o costume antigo das
senhoras da Baixa de discutirem o preço da mercadoria. “Oh! É muito caro, Maria. Toma
lá quinze escudos se quiseres.” Braço estendido da senhora ficou embora só no espaço.
Nga Fefa parece lhe bateram vibrantemente no corpo. Tirou o cigarro da boca e
descansou arrogantemente as mãos na cintura. A mão da oferta barata ainda abandonada
no espaço. Zolhos das quitandeiras de repente espiando, muximas palpitantes. Parece
que vão vundumunar-se7. Banzaram. “A senhora está chamar Maria a quem? Você viste
meu nome é Maria? Vê lá, hem!” –– se arregalaram os olhos no desafio enquanto a mão
da oferta cobardemente murchando. Senhora, boca admirada. Nunca tinha ouvido dizer
quitandeira fala assim numa senhora. Estava no hábito dela ir no mercado e entrar na
discussão do preço, altivamente. Com o criado lá em casa, com a gente do musseque
com quem às vezes falava, comportamento dela único. Tempo ainda colonial. Pensou
que a quitandeira estivesse maluca. “Parece-me que há um mal-entendido, Maria”. Fora
da banca, Nga Fefa no gesto mussequeiro mandou a senhora calar a boca logo, logo
senão lhe dava (CARDOSO, 1982, p. 25-26).
Não bastasse a luta da personagem feminina pelo direito ao seu espaço num regime
machista, a disputa prossegue na inscrição da supremacia irrestrita do poderio do colonizador
sobre os nativos colonizados, representada pela “senhora”, que também se encontra aprisionada
ao sistema. Duas oponentes, mulher negra e mulher branca, defendem seus princípios, sendo que
esta se julga superior àquela, tratando-a, bem como todos os pertencentes a seu grupo
etnolinguístico, como seres inferiores. Na comunicação entre ambas, Nga Fefa, em continuidade
a moral desempenhada, se impõe na mesma instância de igualdade com a mulher branca, já que
não se avalia como inferior, fator de espanto e incômodo à outra. A interferência ao comércio da
protagonista, retratado na cena, em que a mulher branca se julga no direito de determinar o preço
que irá pagar na mercadoria, denota desvalorização sobre a atividade trabalhista da feirante,
mantendo a lucratividade da sociedade capitalista, já que o possível lucro obtido interferiria no
modo de sobrevivência da Nga Fefa.
No que se refere ao tratamento à personagem principal, nomeada por “Maria”, há
descaracterização de sua individualidade, fragilizada pelas disparidades, arbitrariedade e
7
Bater-se, lutar (N.E.).
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intolerância, centradas nas relações sociais entre estas personagens, que pelo foco narrativo,
singulariza a sociedade de Angola. Revidando ao procedimento imperioso da “senhora”, Nga
Fefa não se intimida pelo autoritarismo e mesmo sob a ameaça mantém-se firme em sua decisão
de luta, entendendo que não haveria outro caminho para superar a condição subalterna, conferida
e ela, e, num plano maior, à nação. Assim, no enredo literário Nga Fefa Kajinvunda é símbolo de
resistência do povo angolano, em particular ao aprisionamento da mulher negra, que deve
submissão à superioridade de homens e mulheres da sociedade branca e por extensão ideológica,
também aos homens negros. Por isso, sua voz contestadora reclama por sua dignidade e,
consequentemente, abrange o coletivo feminino, já que
Palavrosamente as quitandeiras caçoavam a mulher da Baixa, desaparecendo. Nos
kimbundos8 delas escondiam toda a fúria contra o colonialismo que não podiam falar na
língua da senhora abertamente. Anos de opressão se transformavam em liberdade nas
falas kimbundas (CARDOSO, 1982, p. 26).
Nesta movimentação, a linguagem do escritor de Dizanga Dia Muenhu irrefutavelmente
sustenta-se na leitura crítica ao contexto cultural. Apanha as falas de teor testemunhal e as avalia
na dimensão social e política, porque refuta os conhecimentos ocidentais que descaracterizam os
de matrizes africanas. Ao se debruçar sobre os costumes locais, detalhando barbáries à população
mais vulneráveis, ressalta por meio das vozes ficcionais, a particularidade do pensamento banto,
que na especificidade identitária demonstra a capacidade de edificar a essencialidade humana por
si própria, abastecendo-se em seu acervo filosófico.
A potencialidade das “falas kimbundas” configura-se em resistência, instrumento em que
a personagem principal e as demais vozes femininas que se agregam à dela extravasam
sentimentos de repulsa à ocupação colonial e, consequentemente, contra o patriarcado, uma das
ramificações do colonialismo. “Todo discurso é ação, física e psiquicamente efetiva. Donde a
riqueza das tradições orais, contrárias ao que quebra o ritmo da voz viva. O verbo se expande no
mundo, que por seu meio foi criado e dá vida. Na palavra se origina o poder de chefe e da
política, do camponês e da semente (ZUMTHOR, 1993, p. 75).
8
Língua falada pelo povo Kimbundo que havia no Norte de Angola, ao Norte do rio Kuanza (N.E.).
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O poder da palavra asseverado por Zumthor aflora-se no discurso vivo proferido pela
protagonista, que ao se recusar e driblar o silenciamento, contribui para o fluir das demais vozes
de mulheres angolanas negligenciadas pela hegemonia colonial. Então, estas falas refutam a
ingerência patriarcal e, neste ato, se funde a identidade feminina. Redes tecidas por meio da
avaliação de relações entre este universo de mulheres e o mundo opressor que as sufocam.
A sonoridade proliferada no conto arvora-se em dois grupos de mulheres feirantes, sendo
a que primeira imagem foca-se na protagonista em sua conduta emancipada, que clama por uma
sociedade que considere e valorize a pluralidade da cultura nativa. A outra representação destinase às quitandeiras do “Xamavo” que não possuem a disposição política de Nga Fefa, no choque
com a dinastia do dominador, suas atitudes expressam aversão, mas sem a iniciativa e disposição
que emanam da personagem central. Estas vozes se tornam expressivas ao unirem-se à voz
desafiadora de Nga Fefa. Nesse sentido, voz, corpo e performance retratam a reação do silêncio
dos oprimidos no anseio de se fazerem ouvir. A feira do “Xamavo” é o palco no qual se torna
possível a audição de vozes outrora amordaçadas, rumores grávidos por libertação. Tal exemplo
se amplia a seguir
Os policiais vinham acompanhados da senhora triunfante, apontando Nga Fefa: é aquela
negra! Medo ainda no princípio, a quitandeira fez coragem depois. Olhou à volta.
Ninguém estava. Chegaram e nem mais que avançaram saber como é que a maka foi.
Começaram só no castigo da quitandeira. Nga Fefa ainda deu uma paulada na cabeça
dum chuí9. Aqui é que mesmo na luta de verdade começou. A senhora no entimulamento
da fúria colonial: dêem-lhe mais! Força! Kajinvunda sem força, estendida no vermelho
sangue da morte (CARDOSO, 1982, p. 26).
Os desafetos cultivados nas relações de poder plantados pelo etnocentrismo europeu
patenteiam a trama violenta que se faz ilustrar no conto. O drama vivido por Nga Fefa resulta em
sua morte, tributo por macular a ordem imposta pela ideologia dominante. A conduta subversiva
em não se conformar com a realidade colonial foi fator preponderante para erradicá-la do veio
social, por isso, sua presença era indesejável e inaceitável. Por estas vias, torna-se possível
conjeturar que a auto-afirmação de Nga Fefa foi brutalmente silenciada, já que a repressão
9
Policial, no sentido pejorativo (N.E.).
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colonial se alimenta na alienação do dominado, torna-o objeto sob a égide da violência, com a
consequente anulação de seu modo de interagir com o universo. Repertório em que não há opção
para a argumentação, tampouco, trâmite para um julgamento pautado na equidade. Impera o
predomínio da brutalidade, seguido do extermínio. O espetáculo destina-se a intimidar a
população negra para que não ouse infringir as normas. Caso sejam burladas, a sentença será a
mesma imputada à protagonista: a morte como punição.
Na trajetória de libertação articulada por Nga Fefa Kajinvunda, o homem de pele branca
firma seu autoritarismo ao nativo, com o propósito de minar-lhe a confiança e determinação, de
forma a acorrentá-lo nas malhas da submissão, imputando-lhe a morte psicológica. A destruição
da personagem feminina torna-se, para o homem branco, espelho para refletir o temor. Nele se
mira o homem negro para se revestir de coragem, visto que, no percurso vinculado pela
contradição, ela reivindica para si e para a sociedade de Angola o direito de tornarem-se sujeitos,
propósito firmado em sua conduta crítica, contestadora e audaciosa.
A voz oprimida e silenciada no clímax narrativo confere vitória ao colonizador, na
conservação da manipulação de mentes e corpos para manutenção da ideologia capitalista. Mas
ao atentar para a resistência de Nga Fefa às formas coercivas lhe imputadas, ousamos enfatizar
que sua morte não lhe cessou a voz. Canalizada pelo narrador e autor ecoa pelas ondas sonoras
universais, numa linguagem perpassada pela expressão reivindicatória, que brada por uma
sociedade fraterna, que cultive o respeito ao ser humano.
Referências
BONICCI, Thomas (org.) Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Maringá:
EDUEM, 2009.
CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia; MATA, Inocência (orgs) Boaventura Cardoso: a escrita em
processo. São Paulo: Alameda, União dos Escritores Angolanos, 2005
CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo: Ática, 1982.
__________, Entrevista à Revista Metamorfoses, em 14 de janeiro de 2010. Disponível em: <
http://www.ueangola.com/entrevistas/item/375-entrevista-%C3%A0-revista-metamorfoses >. Acesso em 5
de junho 2014.
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Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/>.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. 3ª
ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro, Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
__________, A letra e a voz: a "literatura" medieval; tradução Amálio Pinheiro; Jerusa Pires
Ferreira. São Paulo: Companhia da Letras, 1993.
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Vozes Francófonas no Brasil
PEIAS E ESPARTILHOS:
sátira popular à moda francesa na Primeira República
CLOGS AND CORSETS:
popular satire on the french way in the First Republic
Francisco Cláudio Alves Marques1
Esequiel Gomes da Silva2
Resumo: Nas primeiras décadas da República, as ruas das principais capitais brasileiras, sobretudo do Rio de Janeiro
e do Recife, reurbanizadas nos moldes da Paris haussmanniana e bafejadas pela febre de cosmopolitismo que investia
a Europa, ofereciam-se às mulheres como passarelas onde podiam exibir seus modelos imitados ou importados,
principalmente de Paris. A iconografia e os anúncios veiculados pelas revistas e periódicos ilustrados da época, como
o Almanach de Pernambuco e a revista Kosmos, por exemplo, configuram-se testemunhos da maciça presença de
franceses no Rio e em Recife, proprietários de lojas e maisons interessados em atender às exigências do público
republicano. Apesar da forte adesão dos brasileiros aos modelos de sociabilidade importados da Europa, as classes
menos favorecida, por meio da literatura popular, manifestava certa resistência a essas mudanças nos costumes e na
indumentária, principalmente no Nordeste, onde ainda reinava resquícios da mentalidade e da moral católica e
patriarcal.
Palavras-chave: Sátira; Literatura de Cordel; Leandro Gomes de Barros; Moda Francesa; Primeira República.
Abstract: In the first decades of the Republic, the streets of the main Brazilian capital cities, especially of Rio de
Janeiro and Recife, recently urbanized based on the Haussmanian Paris and smiled upon by the fever of
cosmopolitanism that invested Europe, women had been used as runways where they could exhibit her imitated or
imported models, especially in Paris. The iconography of the time and the advertisements conveyed by magazines
and illustrated periodicals, such as the Almanach de Pernambuco and the magazine Kosmos, for instance, form the
testimonies of the massive presence of the French in Rio and Recife, owners of stores and maisons, interested in
fulfill the demands of the republican public. In spite of the Strong adherence of the Brazilians to the sociability
models to the imported from Europe, the less-favored classes, through the popular literature, showed some resistance
to these changes in the habits and clothing, especially in the Northeast, where traces of the Catholic and patriarchal
moral and mentality were still alive.
Keywords: Satire; Literature of Cordel; Leandro Gomes de Barros; French fashion; First Republic.
Quem caminhasse pelas ruas centrais do Recife de final do século XIX e começo do XX,
experimentaria aquela mesma sensação descrita por António de Alcântara Machado referindo-se
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, professor do Departamento de Letras Modernas da UNESP –
campus de Assis. Av. Dom Antonio, 2.100. Parque Universitário. E-mail: fransclau@gmail.com
2
Doutorando em Letras/Literatura e Vida Social pela UNESP – campus de Assis. E-mail: esequielg72@gmail.com
1
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à variedade de estilos arquitetônicos, de línguas estrangeiras que podiam ser ouvidas nas ruas da
cidade de São Paulo e, certamente, à enorme presença de estabelecimentos comerciais
estrangeiros que aumentava vertiginosamente nas primeiras décadas do século XX. O escritor
modernista observa, com certa ironia, que São Paulo possuía “todos os estilos [arquitetônicos]
possíveis e impossíveis”, diversidade que emprestava à Paulicéia “um arzinho de exposição
internacional.” (MACHADO, 1983, p. 171).
Pelo fato de não termos acesso, neste texto, a fotografias das ruas da Recife republicana
para legitimar as premissas anteriores, recorremos ao Almanach de Pernambuco, periódico anual
com relativa quantidade de informações iconográficas, criado por Julio Pires Ferreira, que
circulou entre os anos de 1899 e 1931. No periódico em apreço, fotografias de praças, edifícios e
ruas da cidade, bem como anúncios comerciais de toda ordem, alternavam-se com biografias de
figuras locais, textos literários e relatórios oficiais alusivos aos feitos políticos e sociais da capital
pernambucana.
Para a matéria a ser discutida mais adiante interessa-nos, sobremaneira, a avalanche de
anúncios que o periódico trazia em suas páginas. Geralmente em caixa alta, as chamadas para as
casas de comércio se sucediam por páginas e páginas, cada uma ocupando a página inteira. O
Almanach para o ano de 1900 trazia anúncios sobre estabelecimentos cujos proprietários eram
alemães, ingleses, portugueses e franceses radicados em Recife, sendo que os dois últimos se
destacavam entre os demais.
Na edição de 1900 a filial francesa da relojoaria “A PENDULA PERNAMBUCANA”
anunciava: “Unico deposito dos verdadeiros relogios de Palek, Philippe & C. Genéve e de J.
Lippetz, Chaux de Fonds”, enumerando, logo em seguida, as distinções recebidas pela qualidade
do produto: “Medalha de ouro na Exposição Nacional, Medalha de ouro na Exposição Universal
de Paris em 1889, da Suissa 1896.” Além de indicar o endereço da filial recifense, a companhia
Eugéne Goestchel & Ca. informava o endereço da matriz na França: “Caza em Paris: 8, Rue
d´Angouléme”. Na mesma edição MMe Pigeon, a proprietária do estabelecimento “Costureira
Francesa”, anunciava “Forro de todas as qualidades, crepe liso e bordado para luto.” Na edição de
1901, entre anúncios de companhias de seguros, armazéns de açúcar, lojas de móveis e ferragens,
as casas francesas de moda aparecem com maior frequência. MMe Léon Gérard é a proprietária
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da casa “MODISTA FRANCEZA – CASA DE MODAS – PARA VESTIDOS E
ESPARTILHOS.”
O anúncio estampado na segunda capa do Almanach de 1906, ao lado da biografia do
tenente-general José Joaquim Coelho (Barão de Victória), trazia a seguinte chamada: “Maison
Chic: Modas, Tecidos e Confecções, Espartilhos de Paris”. Alusões à moda importada da Europa,
sobretudo da França, aparece também em vários anúncios da edição de 1910. A casa “A Rosa dos
Alpes”, situada no n. 32 da Rua Barão da Victoria, anunciava “Espartilhos para Senhoras”,
definindo-se como “o estabelecimento preferido pelo chic feminino [...] pelo seu completo
sortimento vindo directa e mensalmente da Europa.” Acreditamos que os exemplos citados são
suficientes para que se tenha presente a forte preferência das mulheres brasileiras pelos modos de
vestir importados da Europa ou pelas roupas confeccionadas por modistas francesas estabelecidas
em Recife.
Naquele começo de século, as ruas de algumas capitais brasileiras reurbanizadas nos
moldes da Paris haussmanniana obedeciam ao ideal cosmopolita republicano, oferecendo-se às
mulheres como uma passarela onde podiam exibir seus modelos imitados ou importados da
Europa, adquiridos nos melhores estabelecimentos comerciais. Era assim descrita pela revista
Kosmos, em 1907, a performance da mulher republicana em perfeita consonância com o novo
traçado das ruas do Rio de Janeiro:
[...] Sabes a quem a mulher de hoje deve o realce encantador de sua beleza e elegância? – À rua,
aos melhoramentos da rua. Antigamente, nos apertos do nosso velho beco do Ouvidor, no
círculo desairoso do largo da Carioca, nem eu nem tu, podíamos ver bem a mulher, nem ela se
nos podia mostrar com a exigida perspectiva. Além disso, o mau calçamento, sempre em
péssimo estado, tirava-lhe a cadência do olhar, fazendo-a gingar, como os nossos capadócios
[...] Agora não. Com as ruas amplas, com a moldura alegre das casas novas, o movimento e o
gesto podem obedecer a todas as exigências e aos rigores de todos os estudos. (Kosmos apud
Nosso Século, 1980)
Apesar de ter acesso a bens importados, os moradores do Brasil imperial eram
considerados mal vestidos pelos estrangeiros. A francesa Rose Freycinet, por exemplo, em visita
ao país em 1871, registrou a deselegância do príncipe real, chamando atenção para a contradição
entre a beleza do porte físico e suas péssimas maneiras. Além disso, destacou a francesa; “Vestiase, na ocasião (uma missa na Capela Real), com um fraque marrom e uma calça de nanquim, traje
bastante ridículo para as 8 horas da noite, numa grande festa pública.” (FREYCINET apud
RASPANTI, 2013, p. 32). Essas observações deixam claro que, no Brasil, os ditames da moda já
vinham sendo prescritos pelos franceses desde a época do Império.
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Márcia Pinna Raspanti observa que, no Rio de Janeiro, os ingleses com portas abertas nas
ruas Direita e da Alfândega detinham a venda de artigos para homens, enquanto os franceses,
instalados na Rua do Ouvidor, privilegiavam a moda feminina. Entre os mimos disponíveis nas
lojas e maisons, oferecidos ao público feminino, destacavam-se roupas, tecidos, perucas, luvas,
lenços, sapatos, águas de colônia, cosméticos, leques, bijuterias, meias, chapéus, espartilhos e
tudo o que havia de mais chic. (RASPANTI, 2013, pp. 32-33).
À medida que começam a frequentar mais livremente os espaços públicos, ostentando o
que de mais atual havia em termos de moda, as mulheres tornam-se objetos de sátira, críticas e
anedotas de toda ordem. O uso de saias compridas e cheias de adereços, imitação da jupe-culotte
francesa, motivou sátiras como esta, presente no poema “O balão”, de autoria do poeta Luiz
Gama, publicada na primeira edição das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, em 1859:
Silêncio! é ela!
Tão vaporosa
Vem, e formosa,
– Que treme o chão!
Gordo cetáceo,
Deixando os mares,
Que afronta os lares,
Sobre um balão!
Eu te saúdo,
Oh tartaruga,
Romba taruga,
De barracão!
Monstro que alojas,
Sob os babados,
Dez mil soldados,
Do rei Plutão! (GAMA, 2000, p. 48)
O poeta continua caricaturizando a peça, lembrando que debaixo dela existem “Curvadas
molas,/Arcos de pipa,/Cordas de tripa,/E um rebecão”; e ainda “Caixas de guerra,/Rouco
zabumba,/Que retumba,/Como um trovão;/Felpuda palha,/Para viveiros,/Dois travesseiros,/E um
trombão.” (GAMA, 2000, p. 48).
Não diferentemente, o boom da moda feminina em Paris, no início do século XX, leva o
escritor Guillaume Apollinaire a descrever um diálogo entre Paponat e Tristouse Ballerinette,
constante do livro O poeta assassinado (1927), cujo conteúdo configura-se uma sátira cortante às
combinações mais extravagantes da vestimenta feminina parisiense:
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– Olhe, este ano a moda é insólita e trivial – disse Tristouse, simples e cheia de fantasia. Todas
as matérias dos diversos reinos da natureza podem entrar na composição de um vestido de
mulher. Vi um feito de rolhas de cortiça, encantador, e por certo valendo mais do que esses
bonitos modelos para noite, de pano cru, furor de todas as estreias. Há mesmo um grande
costureiro que medita o lançamento de saias-e-casacos feitos da capa de livros velhos
encadernados em pelo de bezerro. [...] As espinhas de peixe estão a usar-se muito nos chapéus.
E também é vulgar que as raparigas deliciosas apareçam vestidas à peregrino de S. Tiago de
Compostela, provavelmente com o vestido de constelado de conchinhas de S. Tiago. A
porcelana, o grés e a faiança surgiram de repente na arte do vestuário. (APOLLINAIRE, 1983,
pp. 83-85)
Paponat, interessado em modas e recém-chegado da Itália, pede que Tristouse faça um
relato sobre o que vestiriam as mulheres naquele ano, por volta de 1911, período que se
convencionou chamar de Belle époque. É bastante significativo que o excerto acima esteja
inserido em uma obra classificada como surrealista, o que pode ser concebido como uma sátira às
tendências da moda na sociedade moderna. Nos interstícios, vozes de um segmento da sociedade
que não aceitava passivamente as tendências do momento, pois a sátira, como se sabe, é uma
forma de se colocar contra instituições e costumes de determinada época ou grupo. De certa
forma, o que o escritor surrealista estava fazendo era prever as mudanças que se operariam no
mundo da moda na sociedade do futuro, o que podemos ver na continuação do diálogo:
[...] Não só chapéus as plumas passaram a decorar, mas sapatos e luvas; no próximo ano até nas
sombrinhas havemos de vê-las. Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de
Baccarat. [...] E já me esquecia de informá-lo de que vi nos bulevares, na quarta-feira passada,
uma pirosa qualquer com espelhinhos aplicados e colados no vestido. Ao sol, era de um efeito
suntuoso. Parecia uma mina de ouro em passeio. Mais tarde começou a chover e a dama ficou
parecida com uma mina de prata. [...] A moda vai ficando cada vez mais prática e não
desperdiça nada; a tudo confere nobreza. Vai fazendo com as matérias aquilo que os românticos
fizeram com as palavras. (APOLLINAIRE, 1983, pp. 83-85)
Além das extravagantes indumentárias acima referidas, Tristouse lembra a Paponat o
hábito de as pessoas vestirem-se com animais vivos. A namorada de Croniamantal, personagem
central do livro, teria encontrado uma senhora que trazia vinte pássaros no chapéu: “canários,
pintassilgos, pintarroxos, todos com a pata presa a seu fio, numa grande chilreada e a bater as
asas”. “O vestido bordado a grão de café, a dentes verdadeiros ou de alho, a cebolas e a cachos de
uvas também” seriam muito usados para visitas (APOLLINAIRE, 1983).
No Nordeste brasileiro dos primeiros decênios da República, as saias francesas e os
espartilhos causaram sensação entre as mulheres, que logo aderiam ao uso das peças
supostamente importadas de Paris pelas lojas e maisons estabelecidas, sobretudo, nas ruas mais
movimentadas. Na verdade, muitas das peças usadas pelas brasileiras eram confeccionadas por
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costureiras que, oportunamente, diziam-se francesas. O fato é que, pelo menos em Recife, a
incipiente industrialização começa a atrair mulheres para o mercado de trabalho, liberando-as do
domínio da casa, lugar que a tradição patriarcal e arcaizante havia lhes reservado.
As primeiras operárias procuram nivelar-se às damas da “sociedade”, copiando-lhes a
indumentária, frequentando lugares até então designados para os homens, arremedando a
performance da mulher moderna cujos padrões comportamentais passavam a ser ditados por
modelos de sociabilidade importados da Europa. Tal conduta, pelo fato de destoar dos padrões
consagrados pela moral tradicional, levou muitos poetas populares, no Nordeste, a compor
poemas de conteúdo misógino e moralizante. Nesta empresa destacou-se o poeta Leandro Gomes
de Barros, saudosista dos tempos do Império. Declaradamente antirrepublicano, Leandro compôs
o folheto de cordel O Bataclan Moderno, publicado em Recife nos primeiros anos do século XX,
criticando agudamente a adesão aos novos costumes pelas mulheres:
Mundo velho desgraçado
Teu povo precisa um freio,
Para ver se assim melhora
Este costume tão feio
De uma moça simi-nua
Andar mostrando na rua
O suvaco a perna o seio.
[...]
Antigamente uma moça
Quando fazia um vestido
Gastava quase oito metros
P´ra ele sair comprido
Não punha os braços de fora
Porém o contrário agora,
Assim tem acontecido.
Hoje porém com três metros
As vezes com dois e meio
Faz uma moça um vestido
Que seja bonito ou feio
Porque a moda MODERNA
É até em cima da perna
E decotar todo o seio. (BARROS, 1953, p. 1)
A referência à “moda MODERNA”, em caixa alta, manifesta uma crítica declarada à
proposta republicana de modernização dos costumes, de abolição dos hábitos provincianos,
indicativos do atraso e da “falta de civilização” do brasileiro. Para Leandro, estas medidas,
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prescritas como uma forma de higienização física, mental e social, agridem a moral costumeira,
corroem o moral dos homens da sociedade:
Hoje a civilização
Em tudo foi transformada,
Não existe mais pudor
A moral não vale nada
A vergonha apodreceu
A sociedade morreu
Há muito foi sepultada. (BARROS, 1953, p. 1)
A caricatura da mulher conformada aos costumes modernos é um dos leitmotiv da sátira
produzida por Leandro Gomes de Barros. As novidades da moda são agudamente satirizadas pelo
poeta, que não perde a oportunidade de ridicularizar a jupe-culotte francesa, saia muito usada
pelas mulheres no começo do século XX, também conhecidas como saias-calções. A peça aqui
considerada foi sarcasticamente criticada por Leandro em As saias calções, de 1911. Por seus
ornatos, formato exótico e corte extravagante, foram comparadas à pamonha. A sátira, extensiva
às novidades viabilizadas pela abertura republicana, castiga com vistas à moralização dos
costumes. Na visão de Leandro, a indumentária feminina e os ornamentos modernos servem às
mulheres de algemas e peias (impedimento; embaraço; prisão de corda ou ferro que segura os
“pés” das bestas):
As mulheres que só vivem
A sondar a invenção,
Acharam que est´avam bem
Inventando cinturão,
Com pouco mais ellas andam
Com cartucheira e facão.
Além da tal pulseira
Com que vivem algemadas,
Chegaram as saias pamonhas
Com essas vivem peiadas,
Agora as saias calções
Chegaram mesmo damnadas. (BARROS, 1911, p. 2)
Vista como um prenúncio do fim dos tempos, a jupe-culotte suscitou reações diversas
entre as mulheres do Nordeste agrário/urbano pós-Imperial, alcançando dimensões apocalípticas:
“São cousas de fim do mundo”, diz uma vizinha à outra, “Bem disse frei Panellada/Que ainda
chegava o tempo/De a gente viver peiada”. “Quem morrer vestida n´ella/Não alcança salvação”,
diz uma comadre à outra, em tom de admoestação. À mostra numa vitrine e vestindo um
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manequim – a loja é de uma modista francesa – a saia causa assombro em um velho sertanejo de
passagem: “Este diabo é o cão/Que está todo abotuado,/Credo em cruz, Ave Maria/Dou-te figa,
condenado”.
Embora acolhida com reserva, a saia-pamonha provoca reações partidárias na maioria das
mulheres. À beira da morte, uma velha que havia rejeitado a confissão, pede ao filho que não lhe
faça caixão: “[...] quero em vez de mortalha/É uma saia calção”. No confessionário, a freira
Chica Bazar adverte que prefere fugir do convento “Se quizerem me empatar,/Mas, uma saia
calção/Eu não deixo de botar”. Embora o marido esteja falido, a mulher do padeiro “Felippe pão”
insiste: “Meu velho na padaria/Não ganha mais um tustão,/Mas, embora, venda o forno/Dá-me
uma saia calção”. Uma velha que andava “Escorada n´um bastão,/Pedindo por caridade/Em toda
parte um tustão”, suplicava que lhe completassem o dinheiro “De uma saia calção”.
O poeta, porém, não vê nenhum sinal de elegância na peça, antes acentua sua
deformidade: “Procuro um jeito nellas/De forma nenhuma acho,/São botões como diabos/Desde
cima até embaixo,/Estando mulheres e homens/Parece ser tudo macho”.
Do ponto de vista da sátira moralizante, a mulher que “sai de casa” se submete
deliberadamente às exigências do olhar masculino na rua, lugar tradicionalmente reservado aos
homens e às mulheres descomprometidas com o cânon moral:
Dantes n´uma barbearia
Quem entrasse a qualquer hora
Não encontrava uma moça
Mas tudo mudou agora
De mulheres vive cheia
Dali a que for mais feia
É esta a que mais namora. (BARROS, 1953, p. 2)
Embora livres das peias domésticas, as mulheres modernas tornam-se reféns da moda.
Apeiam-se as éguas e os cavalos, para domesticá-los e domá-los, sobretudo quando indomáveis
ou no cio. Em As saias calções, as mulheres encontram-se duplamente algemadas: por um lado, a
crítica moralizante configura-se como rédeas à sua conduta transviada; do outro, peias e algemas
fazem uma alusão crítica à ditadura da moda.
De acordo com Roberto DaMatta, no âmbito do carnaval brasileiro a exibição contrapõese à modéstia e ao recato, ou melhor, a dialética do que é (ou deve ficar) escondido e do que é
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abertamente revelado (DAMATTA, 1997, p. 140). Assim Leandro descreve a desenvoltura das
mulheres que se tornam “públicas”:
As senhoritas de agora
É certo o que o povo diz,
Não há vivente no mundo
Da sorte tão infeliz;
Vê-se uma mulher raspada
Não se sabe se é casada,
Se é donzela ou meretriz.
Traz a cabeça pelada
Bem raspadinho o cangote,
O vestido que ela usa
Tem trez palmos de decote
Sendo de frente ou de banda
Vê-se bem quando ela anda
O seio dando pinote. (BARROS, 1953, p. 3)
No poema, os seios das mulheres não estão simplesmente à mostra, eles “pinotam”,
saltam, fazem piruetas sugestivas, metáfora emprestada à equitação: “pinote”, salto que a
cavalgadura dá, escoiceando. Por analogia, a mulher moderna aproxima-se da égua no cio, do
potro sem doma. No carnaval, continua DaMatta,
[...] a representação do corpo não se contenta em mostrá-lo parado, como nas esculturas
chamadas ‘nus artísticos’ (em que a nudez é ritualizada, congelada e tornada digna e
moralmente viável). Ao contrário, o corpo não só se desnuda, mas se movimenta, revelando
todas as suas potencialidades reprodutivas. [...] É um corpo que “chama” o outro, tornando-se
sempre alusivo do ato sexual, da forma mais essencial de confusão e ambiguidade do grotesco,
quando – como nos indica Bajtin – dois corpos se transformam em um. (DAMATTA, 1997, p.
140)
Mas o movimentar-se sugestivamente, na sátira moralizante, equivale a cavar o próprio
túmulo corporal. As mulheres que saem furtivamente para a rua, com seus trajes indecentes,
deixam revelar partes de seu corpo reservadas apenas ao marido, na intimidade da casa. No
entanto, no âmbito da rua, o que foge ao controle do talhe fica exposto “Aos olhos da piratagem”:
Conheço certa senhora
Que é esposa de um doutor,
Quando ela sai a passeio
O povo treme de horror
Pois seu modo de trajar
Já tem dado o que falar
A quem não é falador.
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Tem o cabelo cortado
Usa o vestido bem curto
Sem mangas, até o joelho
Se ela cair d´um susto
O que levar escondido
Sem licença do marido,
Pode a gente ver sem custo.
Quando ela sai a passeio
Não usa dizer p´ra onde
Se a viagem é prolongada
Precisa tomar o bonde
Cousa que a gente ignora
Fica do lado de fora
Que o vestido não esconde.
Sua carne vive esposta
Aos olhos da piratagem
Que vai p´ra certo lugar
Pra ver a sua passagem... (BARROS, 1953, p. 3)
Na sátira em barbante, a “rua” representa um espaço sintetizador de diferenças e
contradições do mundo rural, urbano, moderno, republicano. A poesia satírica de Leandro
ajudava a reforçar os laços moralizantes da tradição, repropondo um modelo de conduta que
devia ser seguido por toda a sociedade; rechaçava a febre republicana de modernidade porque
feria a “honra” e os bons costumes, princípios que vinham sendo conservados no interior de
cápsulas morais, e que se queriam impermeáveis, desde os tempos do carrancismo.
A crítica à moda copiada da Europa não se restringia apenas à indumentária feminina. O
modo “avançado” como alguns homens se vestiam também incomodava os mais conservadores.
Recorrendo à tópica medieval do “mundo às avessas”, Leandro Gomes de Barros lamenta a
inversão dos papéis sexuais nos primeiros versos de As saias calções:
O mundo está as avessa,
As couzas não vão de graça,
Homem raspando bigode,
E mulher vestindo calça,
Isso é um páo com formiga,
Um banheiro com fumaça. (BARROS, 1911, p. 1)
Colocar no mesmo campo semântico duas peças tradicionalmente pertencentes ao gênero
feminino, “saias”, e masculino, “calções”, informa-nos sobre o juízo que o público menos afeito
às inovações fazia da peça francesa, sobretudo no que se refere à inversão dos papéis sexuais
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naquele começo de século, quando as mulheres começavam a emancipar-se, entrando para o
mercado de trabalho. Tais mudanças não passam despercebidas do poeta popular:
Os homens de hoje só querem
Mulher para trabalhar,
A mulher de casa é elle,
Faz tudo que ella ordenar,
Para ser ama de leite
Só falta dar de mamar.
Agora analysem bem
Um homem assim como é:
A mulher vai para a fábrica,
Elle há de torrar café,
Faz fogo aprompta o jantar
Dar papa e banho ao bebê.
Vai ver água enche vasilhas,
Forra o chão com uma estoupa
Bota nella os pannos todos,
Vai ao rio e lava roupa,
É ama, é creada, é tudo
E alli só ganha a soupa.
Se ella for uma esperta
Diz-lhe logo mandilhão!
Marido que não trabalha
Só tem direito ao pirão;
Se pisar fora do risco,
Apanha de cinturão. (BARROS, s.d., p . 2)
Leandro coloca pelo avesso a identidade sexual de homens e mulheres que se submetem à
ditadura da moda. No poema As cousas mudadas (1910-1912), a adesão aos novos costumes
parece confundir os sentidos do poeta: “Hoje se vê uma moça/Ninguém sabe se é rapaz/Anda
com calça e chapéo,/Pouca differença faz.” As calças masculinas com braguilhas pra trás,
fortemente criticadas por Leandro, remetem a uma tópica rabelaisiana que neste contexto ajudanos a entender a postura conservadora do poeta paraibano, cuja mentalidade ainda revelava, por
meio da sua escrita, fortes laços com a antiga geração agrária, católica e patriarcal.
Sinônimo de virilidade, a função da braguilha em Rabelais é carnavalizada, desviada de
sua função habitual. Panurge, máscara rabelaisiana, tece longas considerações para convencer a
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Pantagruel de que a braguilha “é a primeira peça de armadura para armar o homem de guerra”,
servindo também para proteger seu órgão viril. Por inspiração da Natureza e pela virtude Divina,
o homem teria sido inspirado a “armar-se”, expressão ambígua, primeiro pelos colhões. O
arquétipo da braguilha/armadura teria sido a folha de parreira com que o Adão primordial se
cobrira, explica Panurge:
Assim testemunha o capitão e filósofo hebreu Moisés, afirmando que Adão se armou com uma
brava e galante braguilha, feita e modelada por uma bela invenção de folhas de figueira, que são
muito simples e muito cômodas em durabilidade, incisão, frisamento, polidez, tamanho, cor,
odor, virtude e faculdade para cobrir e armar os colhões (RABELAIS, 2006, pp. 87-90)
A associação com a virilidade, presente no texto de Rabelais, nos permite entender que a
tradicional topografia da braguilha, havia mudado de eixo nos tempos de Leandro, de modo que
os valores masculinidade e virilidade, tão preservados pelos homens nordestinos, estavam
topograficamente invertidos naquele momento da história. “O mundo está às avessas”, reclama
recorrentemente o poeta.
Apesar da forte adesão dos brasileiros aos modelos de sociabilidade importados da
Europa, as classes menos favorecidas, por meio da literatura popular, manifestavam certa
resistência a essas mudanças nos costumes e na indumentária, principalmente no Nordeste, onde
ainda imperava resquícios da mentalidade e da moral católica e patriarcal. Fazendo-o, contudo,
por meio da sátira. Muitos, talvez, como uma espécie de desrecalque por não poder usufruir das
benesses acessíveis somente a uma parcela ainda muito pequena da população brasileira.
Sem dúvida nenhuma, expressões recorrentes – “estabelecimento preferido pelo chic
feminino”, “completo sortimento vindo directa e mensalmente da Europa” –
usadas para
qualificar os produtos anunciados no Almanach de Pernambuco, sobretudo pelos franceses
radicados na capital pernambucana, ajudavam a distinguir a que tipo de público estavam
reservados aqueles produtos.
Referências
Almanach de Pernambuco. Recife: Ribeiro & Martins, para os anos de 1900, 1901, 1906 e 1910.
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APOLLINAIRE, Guillaume. O poeta assassinado. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Estampa,
1983.
ATHAYDE, João Martins de. O bataclan moderno. Juazeiro do Norte: Editor José Bernardo da
Silva, 1953.
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas, História de João da Cruz (4º vol.), Recife:
Tip. Moderna, (Rua Duque de Caxias, 38), [s.d.], 16 p., (Col. CRB e FVL).
BARROS, Leandro Gomes de. As saias calções, Um susto de minha sogra, A defesa da
aguardente. Recife: LGB, (Rua do Alecrim, 38-E), 1911, 16 p., (Col. CRB).
GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
(Vol. 6 da Coleção “Poetas do Brasil”).
MACHADO, António de Alcântara. Prosa Preparatória – Cavaquinho e Saxofone. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
Nosso Século (1900-1910), Abril Cultural, n. 2, 1980, (Citação da Kosmos de 1907).
MARQUES, Francisco Cláudio Alves. O Atirador de Palavras. In: Revista de História da
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, n. 76, 2012, pp. 65-69.
RABELAIS, François. O Terceiro Livro dos Fatos e Ditos Heroicos do Bom Pantagruel.
Trad. Elide Valarini Oliver. São Paulo/Campinas: Ateliê/ Ed. da Unicamp.
RASPANTI, Márcia Pinna. Que deselegantes!. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, n. 89, 2013, pp. 32-33.
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historiographies premières :
a escritura poética oralizada como lugar de conhecimento
Ana Rossi1
RESUMO : Este artigo traz uma reflexão sobre o projeto de escritura a partir do poema que redigi em língua
francesa, e que se intitula « historiographies premières ». A partir deste projeto de escritura poética, o artigo
desenvolve uma reflexão epistemológica que, questionando o campo historiográfico, institui a voz e a oralidade
como elementos fundamentais para a construção de um novo tipo conhecimento a respeito da realidade brasileira.
Assim, a escritura literária oralizada por meio da voz, traz um conhecimento inédito sobre nossas sociedades.
PALAVRAS-CHAVES: projeto de escritura literária. Brasilidade. Voz. Oralidade. Epistemologia.
RÉSUMÉ: Cet article propose une réflexion sur le projet d’écriture à partir du poème que j’ai rédigé en langue
française dont le titre est “historiographies premières’’. A partir de ce projet d’écriture poétique, l’article développe
une réflexion épistémologique qui, interrogeant le champ historiographique, élève la voix et l’oralité comme des
éléments fondamentaux pour construire une nouveau type de connaissance sur la réalité brésilienne. Ainsi, l’écriture
littéraire oralisée par l’intermédiaire de la voix apporte une connaissance inédite sur nos sociétés.
MOTS-CLÉS: projet d’écriture littéraire. Brésilianité. Voix. Oralité. Épistémologie.
1
Professora Doutora, Universidade de Brasília, Instituto de Letras, Departamento de Línguas Estrangeiras e
Tradução, Colaboradora do Programa de Pós-Graduação Estudos em Tradução (POSTRAD), Líder do grupo de
pesquisa do CNPq Tradução, Experiência, Epistemologia, anahrossi@gmail.com
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INTRODUÇÃO: prolegômenos para um projeto de escritura oralizada
O nascer do poema historiographies premières se define como uma voz que luta para
encontrar o seu lugar no universo linguístico e cultural francês. Ele é uma tentativa para resgatar
uma voz que se fez inicialmente presente em língua portuguesa do Brasil, e que depois migrou
para o universo francófono e francês. A razão de ser do poema remete a dois níveis primordiais
de entendimento: um de ordem racional (que também é político no sentido da res-publica), e o
outro de ordem afetiva. Entendemos que quando se fala de projeto de escritura, de poesia, e do
fazer poética, torna-se impossível separar estes dois níveis de entendimento. Não existe apenas a
razão. Logo, discutir o projeto de escritura da poesia implica situar-se a um nível epistêmico que
não se atém ao que é comumente aceito como racional no plano científico. O conceito de “voz”
(neste caso, individual mas não ligada a uma pessoa física) utilizado no projeto de escritura
remete ao fato dela não ser oriunda do espaço linguístico francês. Esta separação entre de um
lado o que remete à voz do poema, à sua oralidade, isto é, ao que se ouve na poesia (inclusive na
poesia escrita), e, por outro lado, o que é da escrita e da escritura, é o que deve ser pensado.
Dentro deste espaço identificamos e compreendemos como se moldam elementos tidos
como díspares entre si, tais como os dados biográficos e os de ordem sócio-histórica. Este moldar
demanda uma reflexão sobre o fazer poético dentro de um espaço linguístico que é expressão de
uma cultura. Logo, o espaço linguístico também molda o poema formatando-o dentro de
referenciais que, longe de serem universais, são de tipo histórico e cultural. Tais questões nos
remetem, portanto à busca de novos conceitos e novas hipóteses de trabalho que explique as
relações da oralidade na escritura. Neste artigo não me situo dentro da dicotômica cultura popular
versus cultura de elite. Entendo não ser possível estruturar a problemática de tal maneira por
referir-me a conceitos que permitem visualizar o objeto de estudo, que é a “voz” definida como
potencialidade que traz à tona a memória do corpo fugidio, isto é, que não existe mais no instante
“t” do aqui e do agora, mas que perdura na memória e no tempo em “t+n”. Um outro conceito é o
de “memória” definida como sendo a recomposição da categoria tempo, não mais como sucessão
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
de datas ou de dados factuais, mas como o conjunto das modificações do que somos e do que
fazemos, assim como daquilo que diz o poema diz no instante “t+1” até o “t+n”. É a força da
performance (do gesto teatral, da narrativa contada, das noites em torno da fogueira 2) que,
potencializando o instante “t” reconstrói o que a “memória” em “t+n” que nunca são iguais. Esta
modificação inclui necessariamente a dimensão afetiva que escapa ao racional tal como
conceituado pela ciência. O conceito do poema historiographies premières se insere neste espaço
em construção.
A gestação do poema historiographies premières ocorreu, portanto, em distintas fases. A
primeira começa no silêncio do corpo. A voz, inserida e definindo o corpo, prepara a existência
do sujeito narrador. Pouco a pouco, a questão caminha rumo a um objeto de estudo vocalizado,
dentro do qual a voz passa a ter um papel determinante no interrogar e dizer a narrativa oficial
sobre a brasilidade. Esta narrativa histórica inserida em uma memória “t1” remete ao contexto da
sociedade brasileira no início dos anos setenta, logo depois do Ato Institucional nº5. A voz que
emerge deste poema parte deste instante político-social específico e da consequente narrativa da
historiografia brasileira no seio de uma socialização que emerge nos primeiros anos da escola
primária no interior do estado de São Paulo, na cidade de Araçatuba. Este é o espaço “real”
histórico-político e o tempo “t” de indagação inicial que, progressivamente, se delimita para repensar a construção da brasilidade a partir dos elementos historiográficos.
Referir-se à historiografia do Brasil implica adentrar em um campo onde importa
reconsiderar as relações entre o discurso e o real, mostrando o que foi escrito, por quem foi
escrito, como foi escrito, em detrimento de quem. No caso do poema, entrar neste campo deu-se a
partir do espaço da memória individual. A voz do poema emerge deste silêncio que indaga o que
foi e que não é mais, mas que persiste sob a forma de memória individual. O aparecimento da voz
do poema reelabora a historiografia brasileira em suas sistematizações e olvidos, como a
experiência da escravidão no Brasil e a ocupação do território nacional, questões tão mais
apagadas no nosso imaginário coletivo quanto mais presentes nas concretudes de nossa vida
2
Ganduglia N. País de Magias Escondidas. Montevideo: Planeta. 2010. p.37.
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social. A constituição da voz do poema passa pela História e pelas estórias definidas como
conjunto de fragmentos que reconstroem os elementos diferenciados e dispersos à minha
disposição. A carne deste poema resulta, portanto, de uma vasta pesquisa sobre a formação do
Brasil, sobre um passado (ainda) invisível que, paradoxalmente, salta aos olhos de quem enxerga
sem olhar. A voz do poema adquire uma consistência e uma feição que lateja e impõe espaço
para sair. A ficção conquista, neste projeto de escritura, o seu lugar de síntese, por intermédio da
poesia de uma parte da historiografia nacional.
O poema3 é um todo, dividido em 9 cantos [« chants des mémoires », « chant 1 – hier le
présent », « chant 2 – maintenant » - « chant 3 – voix des langues » - chant 4 – mémoire une au
pluriel » - « chant 5 – voix de l’écriture rythmée » - chant 6 – voix des allers-retours », « chant 7
– histoire et historiographies » - « chant 8 – ayvu rapyta »]. Cada um dos nove cantos tem a força
da parte do todo, e refere-se a diferentes vozes que se mesclam. Temos a voz do que já foi
cantado, aquela a respeito do que nunca foi cantado, e aquela que, talvez, um dia, refira-se ao que
poderá ser cantado. Estamos dentro de um espaço de criação ficcional onde o que é mentira e o
que é verdade perdem sua explicação racional. A voz individual se multiplica e assume, a partir
do universo ficcional, sua função de trazer para o campo das possibilidades o universalismo das
experiências humanas, aquelas que dizem respeito a todo ser humano. Logo, a ficção entra nesta
relação estreita com o real, e recompõe, a partir da experiência estética individual, uma estética
definida e fundamentada na memória coletiva. Assim sendo, o poema se encarna diz respeito às
dores universais compartilhadas por todos, independentemente das diferenças culturais e
territoriais.
A partir daí, começa a questão de como construir este poema em língua francesa. A pergunta,
árdua, significa, necessariamente, introduzir na língua francesa elementos culturais que lhe são
estranhos. A língua francesa, e em especial, a norma culta constitui uma situação de escritura
singular porque remete às lógicas formais historicamente datas e ligadas, entre outros elementos,
à retórica de Cícero. O que está em questão é inventar uma narração sob a forma de um poema
3
ROSSI A. historiographies premières. Toulon: Arco-Íris. 2008.
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que dizendo respeito a uma realidade que se situa no espaço de inteligibilidade brasileira, possa
ser escrito em língua francesa. Refiro-me à possibilidade de narrar uma experiência poéticobiográfico-histórico-social sobre a brasilidade no espaço de inteligibilidade do universo
linguístico e cultural francês. Este é o desafio que, encarnando sob a forma do projeto de
escritura, remete a uma observação das estruturas sintáticas da língua.
O primeiro embate é como uma escritura que articula o real e o discurso isto é, que
fundamenta o que se chama historiografia, traz elementos da realidade brasileira dentro do
universo francês, e da “língua francesa”. Neste particular, “L’historiographie (c’est-à-dire
“histoire” et “écriture”) porte inscrit dans son nom propre le paradoxe – et quasi l’oxymoron – de
la mise en relation de deux termes antinomiques: le réel et le discours. Elle a pour tâche de les
articuler et, là où ce lien n’est pas pensable, de faire comme si elle les articulait. De la relation
que le discours entretient avec le réel dont il traite, ce livre est né. Quelle alliance entre l´écriture
et l’histoire? (...) De ce point de vue, le réexamen de l’opérativité historiographique débouche
d’une part sur un problème politique (les procédures propre au “faire de l’histoire” renvoient à
une manière de faire l’histoire”), et d’autre part, sur la question du sujet (du corps, et de la parole
énonciatrice), question refoulée du côté de la fiction ou du silence par la loi d’une écriture
“scientifique”.”4
O que está em jogo são as inteligibilidades oriundas do universo cultural (grafia da história)
brasileiro, e suas possíveis recriações no universo cultural francês mediadas pela voz. Este
primeiro embate sistematiza os pontos de conflitos, as teias de significações, as situações
problemáticas do projeto de escritura.
1) « língua francesa » : as transformações de um pré-conceito
DE CERTEAU M. L´écriture de l’histoire. Paris : Gallimard. 1975. p. 5 « A historiografia (isto é, « história » e
« escritura ») traz inscrito em seu próprio nome o paradoxo – e quase o oxímoro – da relação de dois termos
antinômicos : o real e o discurso. Ela tem como tarefa articulá-los e, lá onde esta ligação não está pensada, fazer
como si ela as articulasse. Da relação que o discurso estabelece com o real do qual ele trata, nasce este livro. Que
aliança entre a escritura e a história ? (...) Deste ponto de vista, reexaminar a operatividade historiográfica
desemboca de um lado sobre um problema político (os procedimentos próprios ao « fazer a história » remetem a
uma maneira de fazer história »), e de outro lado, sobre a questão do sujeito (do corpo, e da palavra anunciadora),
questão colocada para o lado da ficção ou do silêncio pela lei de uma escritura « científica ». (Tradução minha).
4
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A segunda versão do poema consistiu na pesquisa dos espaços sociais, políticos e
linguísticos da língua francesa. Muitos autores foram lidos, autores literários em sua grande
maioria. O que buscava era, não proximidade linguística, mas mais propriamente a cultural. Não
era a « língua » francesa que « me faisait défaut », mas sim a expressão linguístico-cultural desta
língua francesa inserida em uma realidade que se aproximasse da experiência afro-brasileira e
indígena. Autores como Guimarães Rosa pesquisaram, por intermédio da escritura literária, o
espaço do interior do Brasil que conjuga culturas “sertanejas” situadas em um território distante
da costa atlântica e suas rotas, africanas e europeias.
Inventar este espaço literário implicou na leitura de autores que criam literaturas onde o
elemento francês ou francófono aparece entrelaçado a outros, como também se apresenta
deslocado de seu eixo e de suas características principais. Procurava estes espaços diante da
dificuldade de dizer a brasilidade em língua (e cultura) francesas. historiographies premières
impunha de se expressar em uma língua francesa que se referisse a outros espaços tempos e
gêneses, a outras prosódias e ritmos, aos povos oriundos das Américas e da África. Povos
transplantados, estórias e histórias fragmentadas, descosturadas a partir das quais a narrativa
recompõe fragmentos, dados esparsos, fios retorcidos dentro da lógica que aparece no decorrer da
escritura, no seu próprio processo íntimo de criação. Foi necessário interligar espaços de criação
e de indagação, e sobretudo me permitir ultrapassar os limites da língua francesa que conhecia, e
ensinava em sala de aula na França. Estes limites foram ultrapassados dentro do processo de
criação interligados às leituras dos autores antilhanos e dos africanos que escrevem em francês e
em inglês. A pesquisa chamou minha atenção para o atlas da língua francesa (francófona), um
atlas disperso, diverso cuja língua pertence, já, a diferentes povos geograficamente distantes do
continente europeu, e que, hoje, recompuseram a lógica da língua. A pesquisa também me
possibilitou enxergar o que aconteceu com a língua francesa, e com a língua inglesa em
territórios longínquos das antigas metrópoles.
A tese da escritura deste longo poema em versos livres é a seguinte: cada língua carrega
experiências humanas diferenciadas que objetivam seu pertencimento linguístico-cultural. Reconstruir este « cantar » em língua francesa implicou integrar o léxico das frutas, árvores. Mas
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acima de tudo reiventar a sintaxe e a lógica a partir da voz que soa no poema. O canto 5 « voix de
l’écriture rythmée » [voz da escritura ritmada] anuncia o projeto de escritura no corpo do poema.
« dans l’écriture les feuilles décalent le regard la
chaise le verre de lait le chant des mouettes de
l’écriture mélodieuse énoncent les premiers langages
nomment l’expérience entamée au soir de la
disparition accouchée depuis par sa langue
enfant dans le temps d’avant aujourd’hui dans
l’au-delà de toute interdiction sert la gestation
nommée en lieu d’exil qui se mue en écriture
du temps abiographique confirmé dans le rythme
de la chose expérimentée langue déposée sur la
feuille du papier »5
2) o espaço “entre” como transcriação
Abordar a oralidade e a voz em historiographies premières relaciona dois espaços a priori
separados um do outro, o universo da língua francesa da França e o universo da língua portuguesa
do Brasil. No entanto, refletir sobre este projeto de escritura demandou a formalização de um
espaço “in-between”, o “entre”, lugar diferenciado que não se encontra nem totalmente em um
lugar, nem em outro espaço de língua-cultura6. Este espaço “entre” remete à voz como um
elemento estruturador da narrativa que se situa dentro de espaços-tempo diferenciados que se
apresentam simultaneamente. Este espaço “entre” pensa o trânsito entre o que acontece dentro de
um espaço, a passagem entre um e outro, e as transcriações no outro espaço. Ele é o que observa
estas passagens ao sair de uma lógica, é necessário transportá-la para tal língua de maneira a que
isto seja compreendido.
Em historiographies premières, conceituamos três espaços-tempos: na língua francesa
quando da primeira versão do poema que formaliza a matéria com a qual trabalhar-se-ia
posteriormente. Este primeiro espaço-tempo gera um texto contínuo, em versos livres que
apresenta um uso ortodoxo da pontuação e das letras minúsculas cuja inspiração baseou-se nos
5
Rossi A. historiographies premières. Toulon : Arco-Iris. 2008. p. 71.
“na escritura as folhas deslocam o olhar a/cadeira o copo de leite o canto das gaivotas da escritura melodiosa
anunciam as primeiras linguagens/inclusive a experiência iniciada no anoitecer do/ desaparecimento nascido desde
então em sua língua/criança no tempo de antes hoje no/ além de qualquer proibição serve a gestação/nomeada em
lugar de exílio que se transforma em escritura/do tempo abiográfico confirmado no ritmo/da coisa experimentada
língua depositada sobre a/folha do papel.” (Tradução minha)
6
ROSSI A. et allii.“Antropofagia, Mestiçagem e Estranhamento: Tradução em (dis)curso”. Cadernos de Tradução
nº31, p. 35-55, Florianópolis, 2013/1.
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movimentos poéticos dos anos 50, e mais particularmente em autores como Haroldo de Campos,
Augusto de Campos, Décio Pignatari, o poeta e.e. cummings. Elaborada a partir de
reminiscências pessoais, de dados históricos, de memórias de livros de história do Brasil que se
autodefinem como “realidades”, esta narração em poema é constituída de fábulas que fogem à
estreita definição de “real” e “ficcional”. Esta primeira versão redigida como uma escrita
automática dos surrealistas destrava a razão para desembocar em um material literário que te
como pano de fundo reminiscências, lembranças, invenções, dados biográficos reelaborados
dentro da “língua francesa” a partir da ligação com a reflexão historiográfica brasileira sobre a
brasilidade. A escritura é uma experiência pessoal levada adiante dentro da prosódia que impõe
ritmo, silêncios que, todos, ultrapassam a lógica da escrita. Se a letra no sentido bermaniano é um
conceito que objetiva o objeto da tradução, ela é insuficiente para definir as operações em jogo
quando se tenta explicar a voz no interior deste projeto de escritura. Em historiographies
premières a letra opera em vários níveis: reconstrução polissêmica e dialógica de materiais
textuais que redimensionam a inteligibilidade da história brasileira a partir de dados biográficos,
resquícios de poemas, memórias de trechos de romances, vocabulário e estruturas sintáxicas.
Mas, em um outro nível, digamos, mais profundo, é imprescindível tratar da “voz”, do corpo”
como expressão da memória em suas formas plásticas e fugidias. Esta primeira versão apresenta
nove cantos, cada qual com seu respectivo título. Estes desabrocham no decorrer dos marcos da
escritura do poema historiographies premières na medida em que o projeto de escritura interliga
trajetória pessoal e coletiva. As duas línguas em presença, o português e o francês, constroem
espaços-tempos diferentes que remetem a posições ideológicas, como se refere Paulo Leminski
em seu ensaio “Três Línguas”7 : “Desde Linaeus, os animais e as plantas têm nomes em latim: o
nome científico. Carvalho é “quercus pedunculata”. O rouxinol é o “icterus cyannensis”. Esses
pássaros não cantam. Essas árvores não respondem à primavera. São lugares numa escala.”
Assim, o tempo e o espaço são tratados neste projeto desde o ponto de vista da alteridade, isto é,
como espaços múltiplos organizados dentro de cada língua cuja relação não é de superioridade,
mas sim de temporalidades diferenciadas. Logo, não existe um locutor central e único, e muito
menos centro e periferia. Esta é a dimensão política em jogo nesta escritura. Se não há « centro »,
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LEMINSKI P. Ensaios e anseios crípticos. Campinas:Editora Unicamp. 2011. p. 157.
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por conseguinte, não há o seu correlato que é a « periferia ». Temos então espaços múltiplos
dentro de tempos variados e múltiplos criados a partir da literariedade. O silêncio enquadra-se
neste tópico na medida em que possui várias dimensões. Nas análises textuais, o silêncio é
impossível de ser conceituado, e muitas vezes é identificado tipograficamente como sendo o
“espaço branco da página”. Mas isto não conceitua o silêncio que não se define em relação a um
espaço tipográfico, mas sim dentro da oralidade. Existem outras formas de silêncio, como o
silêncio “falante” inserido no âmago do texto em várias situações: quando é impossível dizer algo
que está aí porque não existem (ainda) palavras para dizê-lo. Apenas a voz consegue perceber e
dizer estes silêncios. O silêncio é aquilo que não pode ser significado do ponto de vista
tipográfico, que não pode ser arrimado apenas à língua porque o seu paradigma não remete a isto,
mas sim à voz que o diz em um instante “t”. Eis porquê historiographies premières é antes de
tudo um projeto de voz, de silêncio e de corpo.
Esta questão fundamenta o poema historiographies premières. Como referir-se a uma
realidade exterior ao espaço do pensamento da língua, em geral, e da língua francesa, em
particular? Como pensar as reminiscências do espaço historiográfico brasileiro com suas
interligações culturais e sociopolíticas dentro da língua francesa cuja visada cultural e ideológica
está arrimada a elementos culturais de outras partes do mundo? Como referir-se a elementos
culturais que não pertencem nem histórica, nem sociológica, nem ideologicamente ao espaço de
inteligibilidade francês, tal como este é formalmente definido?
A pesquisa realizada dentro dos espaços linguísticos e culturais do francês, e em particular
nas Antilhas nas Guianas e na Ilha da Réunion respondem ao problema acima colocado.
3) corpo, voz e superposição de temporalidades
Na época, as minhas referências sobre poesia “francófona” eram principalmente autores
como Edouard Glissant (1960, 1981, 1990, 1994) e Gaston Miron (1970) cujas respectivas
poesias e tratados de poética explicitam relações com a oralidade, e com a voz. Pela primeira vez,
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vi o crioulo escrito e li o “francês” do Québec. Estes dois poetas trabalham aparecem a língua
francesa em regiões geográficas longínquas da França septentrional. Daí a expressão linguística
destas realidades di-ferirem. Tais leituras somadas a inúmeras outras constituíram uma primeira
interrogação sobre o universo da “língua francesa” em suas localizações geopolíticas cujo
denominador comum é que os projetos de escritura trazem para a língua francesa experiências
políticas e históricas di-vergentes. A consciência de tais projetos norteou as pesquisas
subsequentes no poema historiographies premières sobre como construir a brasilidade em língua
francesa.
Tomar consciência do projeto de escritura destes poemas no que tange à importância da voz
significou inventar procedimentos e estratégias para compreender tais poemas que produziam
sensações de total estranhamento. Após as primeiras leituras em voz baixa – totalmente
infrutíferas e mortas, compreendi, mais por intuição, que para compreender tais poemas era
necessário soltar a minha voz, ouvi-la esbarrando (o que vem em francês é “en me cognant contre
les lettres) naquelas sequencias de letras que produziam sons tão desconhecidos aos meus
ouvidos. Muito atenta, observava as potencialidades da língua francesa que eu aprendera durante
tantos anos e que julgava conhecer. Mobilizei os recursos do corpo8 por inteiro (permaneci de pé,
relaxei os ombros, destravei as palmas das mãos, estiquei a coluna, respirei fundo várias vezes e
me lancei na leitura marcando marquei as pausas, os silêncios, procurando naquela sequência de
instantes “t” e “t+1” a “t+n” modular minha voz, entoar o que lia não mais a partir do que eu
estava escrito, mas procurando uma estrutura interna de inteligibilidade que apenas o corpo e a
voz podem materializar e mostrar. A voz é, antes de tudo, uma experiência, individual e coletiva.
Ela possui recursos próprios, seu próprio espaço de inteligibilidade que passa por elementos que
os que regem a nossa escrita culta, silenciosa, sentada e calada.
Esta experiência me colocou em uma situação de estranhamento cada vez maior quando me
obrigou a mobilizar os recursos físicos para ouvir a minha voz dizer aqueles sons (e não mais
CHAMORRO G. “Narrar com os pés: uma aproximação da história oral desde a perspectiva kaiowá”. Trânsitos da
voz: estudos de oralidade e literatura. [Eudes Fernando Leite, Frederico Fernandes (organizadores)]. Londrina:
EDUEL. 2012. p. 217
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lendo letras escritas, “couchées sur le papier” como sintomaticamente diz a expressão em língua
francesa) que não eram meus. Este estranhamento me levou a encontrar soluções para dizer os
poemas de maneira a alcançar um entendimento mesmo que precário. Aproximava-me do
sentido. Pude então, ouvir os rasgos e os traços da língua francesa que eu conhecia naqueles
poemas embora estivessem escondidos. A partir daí, os poemas se tornaram um pouco “meus”.
Foi-me possível ouvi-los em um processo de re-conhecimento da língua francesa que até então
julgava conhecer. Neste caso, oralizar e utilizar a voz constituiu uma experiência de
estranhamento onde os sons, dançando entre conhecidos e desconhecidos ou semi-conhecidos,
me fizeram esquecer que estava em uma situação de leitura, e me lançaram em um espaço onde
apenas os olhos e a técnica da leitura silenciosa não bastam. Foi preciso mobilizar os recursos
físicos, todos eles, extraí-los de meu corpo para ouvir a música do poema que tanto buscava. A
sequencia de sons, permeada pelos silêncios, pelo rugir das ondas do mar, pelo sol que queima,
pelo sal que cicatriza e mata, pelos rasgos de choro, pelos corpos sendo jogados ao mar, pelo
navio que chega ao porto, pelos gritos desesperados dos que aqui chegaram escravizados, passou
então a ter sentido. Entendi o aspecto épico do poema de Edouard Glissant cunhado no poema de
Homero, narrando a epopeia da chegada dos Africanos escravizados às ilhas fragmentadas das
Antilhas.
Esta experiência onde experimento a minha própria voz e onde tomo consciência da importância
das potencialidades do corpo para alcançar o sentido constituiu uma ruptura no que, até então,
definia como sendo “francês” e “língua francesa”, assim como na maneira de “ler” poesia. Neste
período também estava muito envolvida com leituras de poemas meus no Centre International de
Poésie de Marseille (CIPM)9, que se encontra na cidade de Marseille, na França. A mobilização
do corpo com a presença da voz em suas inúmeras manifestações e formas foi fundamental para
transcriar o sentido do poema. Porquê não utilizar este caminho para o próprio projeto de
escritura que desenvolvia: ouvir a voz da língua portuguesa do Brasil no texto em língua
francesa?
9
CENTRE INTERNATIONAL DE POÉSIE DE MARSEILLE, CIPM, leitura oralizada por Ana Rossi de seus
poemas, http://www.cipmarseille.com/auteur_fiche.php?id=1839, consultado em 2 de abril de 2014.
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Uma das consequências desta experiência é a superposição de temporalidades onde o que é dito
no poema não passa por uma mediação, nem representação. Antes de tudo, o que é dito é um
“contar-se”10 onde se retoma, de maneira cíclica a cada vez que ocorre o dizer do poema, a
vivência dos fatos primordiais, again and again. A atuação do corpo desenterra o poema da folha
de papel dando-lhe um novo alento e uma nova vida. A atualização corpórea chama a si pelo
menos duas temporalidades que se sobrepõem e que coexistem no dizer do poema: a
temporalidade do corpo que “fala” aquele poema, e a temporalidade do que é dito no poema.
Assim, a força do poema provem desta interseção onde as fronteiras entre
“passado”
e
“presente” desaparecem, e, longe dos recortes historiográficos, superpõe estes tempos que
produzem, então, uma totalidade que é eminentemente social e política de afirmação.
O poema de Edouard Glissant, Le Sel Noir, ajudou-me também no tratamento do tema. O título
do poema, com seu substantivo Sel e com o adjetivo Noir, remete à escravidão e à toda
experiência histórico-social da qual participam não apenas os sequestrados na África e seus
descendentes, mas a sociedade como um todo. Logo, a ficção torna-se um espaço inédito para repensar novos topos da escritura da história, a historiografia brasileira, que, por intermédio da
mobilização dos recursos corporais e da voz trazem à luz do dia o que foi apagado. Desta
experiência de escutar a minha própria voz para compreender o poema de Edouard Glissant nasce
a ideia que norteia o projeto de escritura de historiographies premières: uma escritura que,
revisitando aspectos da historiografia brasileira permite, por intermédio da voz tecê-los em língua
francesa.
Começa uma nova fase de pesquisa em que após uma primeira versão inicio a re-escritura que
levanta outras questões: como definir a origem? Quais as fronteiras entre memória individual e
coletiva? Como se dá a relação entre os dados biográficos e a narrativa que remete ao grupo?
Como tecer estes fios sob a forma de uma narrativa em que a voz remenda os rasgos, clareia os
apagamentos que recuperam nossa memória coletiva? A dificuldade em tecer os dados
CHAMORRO G. “Narrar com os pés: uma aproximação da história oral desde a perspectiva kaiowá”. Trânsitos
da voz: estudos de oralidade e literatura. [Eudes Fernando Leite, Frederico Fernandes (organizadores)], Londrina:
EDUEL, 2012. p.228.
10
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historiográficos (muitos e fragmentados) nos chamou a colocar o plural. Logo, historiographies.
E historiographies premières remete ao marco inicial do transplante dos Africanos em solo
americano, aquele instante “t” onde não temos a narrativa “de dentro”. historiographies
premières pensa esses tempos primordiais a partir de elementos fragmentados como a vida nas
plantações de cana, os castigos, os estupros, a fuga, os quilombos, o início da vida urbana.
4) a mise en scène da escritura
A mise en scène da escritura, partindo das experiências do sujeito escritor, possibilita entrever o
espectro das experiências humanas. A escritura se torna efetiva apenas na escritura. No ato de
escrever, ela se transcria dando suporte e sustentação ao que foi escrito. A mão escrevendo, se
escreve sózinha e por si só. Ela conduz o sujeito escritor a ser o que ele é, realizando o que está
além das fronteiras díspares do que entendemos como « realidade » e « ficção ». Esta escritura
ultrapassa estas barreiras, porque, integrando e intermediando elementos díspares, ela re-constrói
a « realidade » tangível, essencial, em relação com a memória, depurando o que deve ficar e o
que deve desaparecer. Todo o resto é poeira que se esvai no caminho. A reflexão sobre o que é
escritura é um ato contínuo que se realiza a partir do escrever, e do refletir sobre este escrever.
Nestes poemas, a escritura se explicita de várias maneiras. Contínua, ela emerge de maneira
abrupta para mostrar fragmentos de outro tempo, de outro espaço que ela chama
ininterruptamente ao palco. Fragmentos desdobrados em detalhes ínfimos adquirem voz própria
que diz o que deve ser compreendido, o que deve ser dito e escrito sobre aquilo, voz que
transcende o que definimos como “real”, as sendas do caminho que destilamos na escritura verso
após verso em um caminhar que adquire sua feição após finalização. O fragmento histórico ou a
memória pessoal adquire valor de testemunho que passa sob o crivo da experiência pessoal. A
narrativa prestes a ser mostrada em sua feição final, e desemboca no ponto em que o projeto de
escritura alcança seu término (sempre provisório). A história e as estórias compõem um cenário
onde não é mais possível separar o individual da História. A narrativa resignifica os dados
biográficos e garante uma inteligibilidade constitutiva de conhecimento. Este conhecimento
presente nos versos institui a literatura também como conhecimento sobre a realidade. Eis porquê
textos/fragmentos literários são usados como testemunho de uma época, e se tornam fonte de
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conhecimento sobre outras épocas, como mostra o trecho abaixo, no canto 7 “histoires et
historiographies”:
« et après le voile déchiré de la mémoire
survient entaché de marécages et de
points de scansion des voix passage du
milieu dans le souvenir du jour où le nous
à son retour ne trouve plus d’habitants au
village juste un bambin morveux pleurnichard
au coin du feui caca-pipi uma marmite sans
eua sur le feu et les trente-huit mille neuf
cent douze âmes de carmanio disparues
policierss juges enquêteurs limiers gratte-feuilles
rien les autorités classent l’affaire étouffer la
rumeur coûte que coûte rumeur qui s’amplifie
le village de carmanio mangé corps et âmes par
un arbre géant arbe du temps d’antan litanie
présentes dans les mémoires l’arbre de gohomsaha
flotte sur la place du village et pendant des siècles
l’histoire officielle se tait sur les habitants de
carmanio et ceux des autres villages avalés par l’arbre
sauf qu’il n’y a ni arbre ni gohomsaha
sauf qu’il y a un bambin culotte caca pipi plein
sauf qu’il y a une marmite vide sur le feu à grésiller
sauf qu’il y étouffe le silence des âmes délaissées
sauf que les enlèvements en masse hurlent (...) »11
A arte da escritura media a experiência humana de escrever algo e de refletir sobre aquilo a partir
do conhecimento ali gerado. No caso da escritura colocada por escrito, o conhecimento é
observado a posteriori. No caso da escritura recriada pela voz, o conhecimento se corporifica
11
ROSSI A. historiographies premières. Toulon, Arco-Íris. 2008. p. 103.
« e depois o véu rasgado da memória/vem manchado de pântanos e de/pontos de escansão vozes da passagem
do/meio na lembrança do dia em que o nós/na volta não encontra mais os habitantes na/cidade apenas a criança
catarrenta que chora/ao lado do fogo coco-xixi uma marmita sem/água sobre o fogo e as trinta e oito mil nove/centos
e doze de carmanio desaparecidas/policiais juizes detetives finos escrivalhões/nada as autoridades arquivam o caso
asfixiar o/rumo custe o que custar rumor que se amplia/a cidade de carmanio comida corpos e almas por/uma árvore
gigante árvore do tempo de antes litania/presente nas memórias a árvore de gohomsaha/flutua sobre a praça da
cidade e durante séculos/a história oficial emudece sobre os habitantes de/carmanio e daquelas outras cidades
tragados pelo árvore/exceto que não tem nem árvore nem gohomsaha/exceto que tem uma criança calcinha coco xixi
cheia/exceto que tem uma marmita vazia fervendo sobre o fogo/exceto que se asfixia o silêncio das almas
abandonadas/exceto que os sequestros em massa berram (...) » (Tradução minha)
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naquele instante “t”,, “t+1”, “t+n”. A escritura é experiência analítica que forja um conhecimento
sobre a “realidade”. Nossa práxis atual é de considerar tal aspecto pertencente mais propriamente
à ciência em suas formas acadêmicas como dissertação de mestrado, tese de doutorado, artigo
científico, projeto e relatório de pesquisa. A escritura literária confere um conhecimento a
respeito do social, reorganiza e reformula a observação, desloca os pontos de vista. Eis porquê a
escritura literária observa e refunde o que está além do nosso alcance, de nossa visão imediata, de
nossas tradições culturais, históricas, sociais e políticas. Assim, ela refunde os cânones, revisita
os valores que devem ser analisados sob outro ângulo. Esta é a fundamentação dos “cantos”
historiographies premières.
5) historiographies premières : o conceito
Costuma-se ler o título em primeiro lugar apesar de sabermos que o titulo é sempre colocado por
último. Neste caso específico, não será diferente. Durante toda a escritura, uma questão
fundamental foi como dar sentido aos elementos textuais. O termo historiographies se compõe de
duas partes: « historia » e « grafia ». O termo « história » se relaciona ao tempo, e considera a
memória individual como elemento reconstitutivo da memória do longo tempo. O termo
« grafia » remete ao que é escrito. Portanto, o titulo conceitua o projeto de escritura que é a
escritura da História brasileira a partir do que foi apagado e dos elementos biográficos. O plural
refere-se às várias estórias refundidas na História reconstituída.
Os poemas culminam com o último canto que se intitula « Ayvu Rapyta ». Este título remete a
um longo poema da nação Guarani que narra o nascimento do mundo e dos seres que povoam a
terra. Trata-se de uma cosmogonia. De tradição oral, o poema foi coletado em território paraguaio
na década de 1940, e neste momento, passa a ser veiculado sob sua forma escrita. É quando o
mundo ocidental toma conhecimento deste poema pela antropologia e pela etnologia. A questão
colocada é saber se o fato destes povos não terem grafia, de serem povos ágrafos não os
possibilita terem história? Pois bem, a tese adotada nestes cantos é de reconstituir esta história
dos ameríndios que não é separada daquela dos afrodescendentes, nem dos europeus que
chegaram a estas terras brasilis. Eis porquê o poema refere-se à brasilidade.
« et l’espace de la poésie jaillit sur fond
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d’archipels de mémoire nomination naissant
des ventres ronds mangés par la terre sépulcre
et naissance du nommer dans la chaleur moite
du passage du milieu qui transfigure la figure
de l’africain transplanté-déporté en rien moins
que rien pour l’exploitation de la terre amérindienne
terre porteuse de promesses terre formée par les
décalages amérindiens africains européens qui
matissent métis-âge embruns du matin à l’orée
de la nuit lorsque le jour annonce peut-être le
viol dans la cour intérieure avant l’heure de la
sieste et le ventre lourd attend la délivrance les
seins sucés se vident de leur contenu et la vie jaillit »12
CONCLUSÃO
Este projeto de escritura transcende o conhecimento unidirecional da História oficial para mostrar
que o conhecimento pode ser apreendido de maneira plural, ele pode ter vários tipos de objetos,
diferentes metodologias. A escritura literária constitui um caminho fundamental para ler o real a
partir dos elementos vividos em sociedade. É tempo de revermos o que foi esquecido para
produzir discursos plurais dentro na tentativa de explicitarmos o que passou neste território, isto
é, a história e o tempo. A escritura literária abre campos de observação e de análise sobre como o
conhecimento pode ser apreendido de diversas maneiras. Logo, a questão passa a ser sobre o que
é conhecimento. Questão de fundamental importância epistemológica, a estruturação do
conhecimento é complexo, e deve ser entendido a partir de seus diferentes matizes. A literatura e
a escritura literária, abre-nos espaço para reformular os conceitos. Neste sentido, a oralidade
apresenta um potencial que se faz presente nestes textos que pertencem à tradição oral, e que, em
uma sociedade baseada no altíssimo valor do que está escrito, muitas vezes são objeto de
esquecimento e de apagamento. É de fundamental importância observar, inclusive em nossas
produções literárias, a oralidade como elemento constitutivo da escritura literária em torno da
qual inúmeros elementos se reorganizam e novas questões epistemológicas são colocadas.
12
Rossi Ana, historiographies premières, Toulon, Arco-íris édition, 2008, p. 120.
« e o espaço da poesia jorra sobre o pano de fundo/dos arquipélagos da memória nomeação nascendo/dos ventres
redondos comidos pela terra sepulcra/e nascimento da nomeação no calor ressudado/da passagem do meio que
transfigura a figura/do africano transplantado-deportado e nada menos/que nada para a exploração da terra
ameríndia/terra carregada de promessas terra formada pelos/deslocamentos ameríndios africanos europeus
que/amarronzam mestiço-idade rebentação da manhã na aurora/da noite quando o dia anuncia talvez o/estupro no pátio
interior antes da hora da/sesta e o ventre pesado espera a libertação os/seios chupados se esvaziam de seu conteúdo e a
vida jorra” (Tradução minha).
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REFERENCIAS
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por Ana Rossi de seus poemas, http://www.cipmarseille.com/auteur_fiche.php?id=1839,
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Sessão Livre
A FORMAÇÃO DO ACERVO IFNOPAP: MÉTODO OU PRÁTICA?
Alexandre Ranieri1
Resumo: Este artigo teve como objetivo tratar do método entrevista do projeto IFNOPAP a partir do documento
Achegas para técnica e ética de coleta com vistas a analisar os procedimentos adotados a luz tanto dos folcloristas
como Renato Almeida (1965), Oswaldo Cabral (1954), entre outros, quanto dos pesquisadores nossos
contemporâneos como Maria Inês de Almeida e Sonia Queiroz (2004) e Frederico Fernandes (2003) para, com isso,
entender melhor o processo de desenraizamento das narrativas contidas no CD-ROM Caleidoscópio Amazônico
(1998) e se as mesmas, nesse processo, ainda guardam vestígios do chamado “Etnotexto” descrito por Pelen (2001).
No entanto, o objetivo maior deste artigo é definir se as ações do projeto IFNOPAP respeitam uma metodologia ou
se foram feitas a partir de algumas práticas que não se chegam a se constituírem em um método. O presente artigo,
portanto, é uma pequena parte da minha tese de doutorado em andamento. Nele, faço uso de outros autores
importantes como Mahshall Macluhan (1972), Walter Benjamin (2001) e Paul Zumthor (2010), dentre outros.
Palavras-chave: Método; IFNOPAP; Prática; Entrevista.
Abstract: This paper aims to discuss the interview method IFNOPAP project from Achegas document for technical
and ethical collection in order to analyze the procedures adopted in light of both folklorists as Renato Almeida
(1965) , Oswaldo Cabral (1954) , among others , as our contemporary researchers like Mary Ines Almeida and Sonia
Queiroz (2004) and Frederico Fernandes (2003) to thereby better understand the process of uprooting the narratives
contained in the CD- ROM Amazon Kaleidoscope (1998 ) and the same , this process still retain vestiges of the "
Etnotexto " described by Pelen (2001) . However , the main goal of this article is to define the shares in respect
IFNOPAP design methodology or if they were made from some practices that do not come to constitute a method .
This article, therefore , is a small part of my doctoral thesis in progress . In it , I make use of other important authors
as Mahshall McLuhan (1972) , Walter Benjamin (2001) and Paul Zumthor (2010) , among others .
Keywords: Method ; IFNOPAP ; Practice ; Interview .
Este artigo é uma pequena parte da minha tese de doutorado. Nela, investigo, dentre outras
coisas, se as narrativas do CD-ROM Caleidoscópio Amazônico: uma aventura de imagens e cores
(1998) ainda apresentam traços do “Etnotexto” descrito por Pelen (2001) Para tanto, tive que
voltar ao começo, ou melhor, até onde o método de investigação me permite retornar. Sabe-se
1
Aluno do curso de doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), sob a orientação do
Professor Frederico Augusto Garcia Fernandes. Professo licenciado da Secretaria de Educação do Estado do Pará
(SEDUC-PA).
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que o CD-ROM é um produto acabado e fechado dentro dos limites do formato de arquivo no
qual se encontra, e que o mesmo toma por base as narrativas do projeto IFNOPAP (O Imaginário
nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense), sabe-se, também, que não é
possível voltar ao instante da enunciação por parte do informante, quando o mesmo conta uma
história com base em algum acontecimento cotidiano, momento (performático) único em que
ocorre o “exercício fônico” realizado no emprego da linguagem que segundo Paul Zumthor em
Introdução à poesia oral a poesia se enraíza (ZUMTHOR, 2010, p. 8).
Nos resta voltar ao começo acadêmico, quando o pesquisador sai dos muros da
universidade e vai a campo coletar narrativas munido de um gravador ou qualquer outro
instrumento que lhe permita registrar o momento da enunciação. Esse momento no qual o
pesquisador encontra-se diante do informante e lhe diz “me conte uma história!” em pouco se
iguala ao momento sui generis da “contação” contextualizada pelo momento que surge a partir de
uma dúvida ou ato falho cometido no ambiente doméstico.
Por isso, nesse momento, pesquisador e informante, participam de um “jogo”. O primeiro
pede ao segundo um objeto para o seu estudo: uma narrativa, esperando o máximo de
espontaneidade. O segundo dá ao primeiro o que seu conhecimento de mundo lhe diz para dar:
uma narrativa do seu cancioneiro pessoal, se esforçando para parecer espontâneo, mesmo com a
presença de uma pessoa oriunda do ambiente acadêmico – um “doutor” talvez pense o informante
– munido de um aparato tecnológico.
Sobre essa relação (ou esse jogo), nada podemos afirmar com exatidão em relação ao
segundo personagem (o informante), apenas podemos supor muitas coisas como a seu
desconforto na presença de um acadêmico ou diante de um gravador. Sobre nossos anseios
enquanto pesquisadores, podemos concluir baseados em inúmeros conceitos antropológico,
sociológicos, estéticos, de psicologia etc, muitas coisas a partir de toda nossa documentação
acadêmica que precede e/ou surge após a entrevista. Então, sobre o informante no momento em
que se vê na situação de ter que contar uma história outrora imersa em uma situação de
comunicação e transportá-la para outra completamente diferente como a de uma entrevista, só
podemos afirmar com exatidão que a situação é simplesmente diferente.
Segundo Carpenter, citando como exemplo os talhadores esquimó, na tradição oral, o
contador fala como “muitos-para-muitos” e não como “pessoa-para-pessoa” por isso pode-se
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ouvir a obra de arte de qualquer direção igualmente bem, pois ela dirige-se a todos
(CARPENTER, 1960, p. 66-67 apud MCLUHAN, 1972, p. 103). Todavia, é importante ressaltar
a diferença entre ouvi-la bem e entendê-la tal qual um membro da comunidade. Um estudioso
pode apreciar o momento e entender a beleza daquilo do ponto de vista estético-antropológico e
sua importância para a comunidade de onde provém, mas possivelmente não saberá com exatidão
a que aquilo se aplica no contexto de onde foi tirado.
Segundo Marshal Mcluhan em A galáxia de Gutenberg, a razão porque achamos difícil
compreender os mitos está justamente no fato deles não excluírem qualquer faceta da experiência
como fazem as culturas alfabetizadas, ou seja, todos os níveis de significação são simultâneos
(MCLUHAN, 1972, p. 110).
Portanto, entender como se deu esse processo em se tratando do Projeto IFNOPAP é
entender o começo do processo de “desenraizamento” e afastamento que as narrativas sofreram
até a produção de um objeto tecnológico como a gravação do Compact Disc em questão.
Considerações sobre método
Muitos são os autores e os métodos de coleta e transcrição de entrevistas orais adotadas no
Brasil. São eles antropólogos, sociólogos, historiadores, linguistas, literatos, jornalistas e até
mesmo profissionais de marketing, ciências exatas e biológicas fazem uso desse método de
pesquisa. Há, por certo, muitas coisas em comum e muitas especificidades nesses processos.
Como o acervo do projeto IFNOPAP abarca desde mitos e lendas amazônicas até a história
oral de vida dos homens e mulheres da região – inclusive algumas das narrativas que chegaram
ao Caleidoscópio possuem traços de história oral de vida – tratarei neste subcapítulo sobre os
métodos usados tanto por folcloristas quanto por estudiosos da história oral já que segundo José
Carlos Bom-Meihy em Manual de História Oral “ainda que a tradição oral implique em
entrevista, ela remete às questões do passado longínquo que se manifestam através do folclore e
pela transmissão geracional” (MEIHY, 1996. p. 45).
No entanto, sabe-se que o método dos folcloristas abarca um incontável número de facetas
de pesquisa que em grande parte não diz respeito – senão de forma indireta – a este estudo.
Centrar-me-ei, mais adiante, nos processos metodológicos que julgar mais adequado a coletas de
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narrativas orais, ou seja, aqueles que, a meu ver, menos interferem na espontaneidade do
entrevistado, causando, assim, o mínimo de ruptura possível com o Etnotexto (PELEN, 1996),
tais como a pesquisa prévia sobre a comunidade e seus membros; a aproximação ao informante
com vistas a ganhar a confiança dele; o registro de tudo o que cerca o momento da “contação”; a
transcrição o mais fiel possível à gravação e com observações sobre a performance do narrador e
glossário, dentre outras.
Pensando nisso, recorro a Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz que em Na captura da
voz acusam três momentos na história das edições do conto oral popular no Brasil: o dos
pioneiros, que conviveram com as primeiras máquinas impressoras no país entre os anos de 1881
e 1920, os quais priorizavam muito mais a coleta do que a reflexão analítica; a dos folcloristas,
em grande parte por iniciativa e recursos próprios, e antropólogos já vinculados às instituições
superiores nos primeiros anos da Universidade brasileira os quais primavam pelo rigor
metodológico, dando ênfase ao registro de informações sobre o contador e na fidelidade ao
dialeto da narração, graças aos equipamentos de gravação já desenvolvido o suficiente naquela
época; e o os pesquisadores universitários ligados aos programas de Pós-Graduação nas áreas de
Ciências Humanas e Letras, em especial a partir das décadas de 70 e 80, que voltam sua atenção
para cena performática graças ao desenvolvimento das teorias da enunciação e do videofilme.
(ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 123)
É interessante notar que as autoras fazem essa divisão histórica levando em consideração a
questão do método, tamanha é a importância do mesmo para o resultado final: seja uma coletânea
impressa (ou digital) ou um estudo crítico sobre as narrativas coletadas. Nesse aspecto, o estudo
das fontes primárias e dos seus métodos de coleta nos ajuda a entender melhor não apenas o
produto final que é o dispositivo eletrônico de que trato, mas me dá aporte teórico para entender o
início do processo que desembocará no CD-ROM.
Para tanto, é necessário analisar algumas peculiaridades do método de pesquisa desde o
planejamento, passando pela coleta até o registro. Para isso nos servimos das palavras de
Oswaldo R. Cabral que afirma em Cultura e folclore: bases científicas do folclore que:
É da observação de fenômenos reveladores da existência de determinadas modalidades
da cultura vulgar, do seu levantamento, da sua distribuição, das suas características
particulares, da sua descrição e do seu registro que se há de partir para atingir-se o
propósito superior que é a análise (CABRAL, 1954, p. 173 apud JARDIM, 2011, p. 103)
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Com isso, esperamos analisar os métodos utilizados pelo Projeto IFNOPAP para
constituição de seu corpus acadêmico e entender até que ponto houve uma preocupação com a
metodologia para proporcionar uma melhor análise por parte dos estudiosos que fizeram uso
desse objeto.
Neste artigo, analisarei os métodos utilizados pelo IFNOPAP com base, em especial mas
não exclusivamente, no documento fornecido pela coordenação do projeto: Achegas para técnica
e ética da coleta. O documento é dividido em três partes: “a propósito do entrevistador”, “a
propósito do informante” e “a propósito da gravação”. O último item se divide em “antes”,
“durante” e “depois” da entrevista.
Achegas para técnica e ética da coleta
Antes de entrarmos nas achegas propriamente ditas é importante lembrarmos o objetivo
primeiro do IFNOPAP: “mapear o que se conta no Pará” (SIMÕES, 2014). Esse foi um objetivo
ambicioso, tendo e vista que um dos lemas do projeto nessa fase era o de escutar (gravar) quem
tivesse uma história para contar, sem se importar com idade, etnia, cor, sexo... o que nos faz
lembrar as palavras de Renato Almeida quando afirma que os detentores do folclore não estão
somente entre as classes mais pobres ou somente no meio rural (ALMEIDA, 1965, p. 30-31).
A primeira coisa que me chamou atenção nessa espécie de “pequeno manual” foi o nome
dado a ele: “achegas”, que segundo Vilhena era um termo muito usado pelos folcloristas para
publicações curtas – de cerca de três laudas datilografadas – e indicava “que o autor pretendia
apresentar hipóteses gerais sobre um problema, aproximar-se ligeiramente de um assunto, ou
somente acrescentar algumas informações a um debate” (VILHENA, 1997, p. 177).
O termo, outrora utilizado para aqueles pequenos artigos, foi bem empregado para esse
documento – também em três laudas – que trata de maneira geral de algumas (poucas) regras para
a coleta de narrativas.
Segundo a professora Maria do Socorro Simões, em entrevista concedida no dia 06 de
janeiro de 2014, as achegas foram feitas em partes com métodos científicos orientados pelo
professor Cristophe Golder – que, na época, acabara de defender a sua tese de doutorado em
semiótica pela Université de Franche Comté e cujo tema versava sobre o Bumba-meu-boi do
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Maranhão – em partes com base na intuição dos professores que participavam do projeto.
(SIMÕES, 2014)
a) A propósito do entrevistador
A primeira orientação dada nessa primeira parte das “achegas” é: “a pesquisa de campo
consistirá, em princípio, na coleta de narrativas tal como nos forem repassadas,
espontaneamente” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.1). Todavia,
o documento em questão fora produzido em uma fase do projeto posterior ao que descrevemos
anteriormente quando se utilizavam recursos próprios para a coleta. Portanto, é bastante comum
encontrarmos em fitas e transcrições, registros de interrupções dos entrevistadores ou ainda,
observações feitas pelos transcritores que afirmam que a narrativa não pode ser completada como
no trecho que se segue:
Essa história é apenas uma parte de uma longa e fascinante narrativa que se perdeu
devido ao ensaio solicitado pela informante, a qual temia uma má performance, por isso
nos proibiu de gravá-la. O cansaço também colaborou, pois a mesma já havia contado
outras narrativas, sempre seguidas de um ensaio.
A incipiência desta pesquisadora fez com que a narrativa fosse contada de forma
fragmentada. A tentativa de recompor o quadro da narrativa anterior é refletida nas
várias intervenções feitas (PORTAL DE POÉTICAS ORAIS, 2014).
A nota de rodapé acima, retirada da narrativa publicada por mim no Portal de Poéticas
Orais, O Tejo do Jacaré, mostra uma declarada incipiência da pesquisadora que permitiu um
“ensaio” por parte da informante – o que, provavelmente, tirou boa parte da espontaneidade da
narrativa – e uma “contação” fragmentada graças a interrupções externas.
A orientação seguinte diz que “a espontaneidade estabelecer-se-á a partir das atitudes do
próprio pesquisador” e é complementada pelas seguintes:
- o entrevistador deve ser: discreto, habilidoso, elegante, atento. Evitar ser importuno.
Deixar o informante à vontade. Evitar que o informante se desvie dos propósitos da
pesquisa;
- o entrevistador é, tão-somente, o coletor das narrativas, do que se conclui que deve
falar o mínimo e ouvir (gravar) o máximo; (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA
COLETA, 1994, p.1)
Nessas orientações, podemos perceber a preocupação da equipe organizadora em preservar
a espontaneidade a partir da postura do próprio entrevistador. Mas sem se aprofundar ou dar
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exemplos de como proceder em casos que possam ser recorrentes. Como essas instruções foram
dadas pela equipe da capital em visita às localidades no decorrer de uma espécie de minicurso,
acredito que essas e muitas outras dúvidas devam ter sido sanadas. Tanto que abaixo desses itens
referentes ao entrevistador podemos ver a seguinte “Observação: este não é um documento
acabado. Há orientações básicas indispensáveis e há orientações que podem, eventualmente, ser
adaptadas às circunstâncias” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2).
O penúltimo item trata do trabalho em grupo (2 ou 3 membros) (ACHEGAS PARA
TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). Nesse caso, a preocupação estava no caso de o
pesquisador ser de outra localidade (como a capital, por exemplo) e não conhecer as pessoas e
lugares por onde passaria. Essa orientação segundo a coordenadora do projeto foi cumprida por
raríssimos pesquisadores tendo em vista que o projeto carecia de coletores e, na maioria das
vezes, eles eram da localidade ou conheciam as regiões onde trabalharam (SIMÕES, 2014). Caso
a orientação fosse seguida à risca, ela feriria uma das observações feitas por Renato Almeida de
que as entrevistas deveriam ser feitas a sós com o entrevistado. Todavia, na impossibilidade –
assim como orienta Renato Almeida – os coletores tomavam nota de tudo (ALMEIDA, 1965,
p.28).
O último e enigmático aviso “deixar a emoção na UFPA” se refere ao envolvimento do
entrevistador com o que é contado pelo informante(ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA
COLETA, 1994, p.2). O entrevistador não poderia ser indiferente ao que se conta, mas o mesmo
também não poderia se envolver a ponto de prejudicar a espontaneidade do que se estava
contando. Todavia, Frederico Fernandes alerta para o risco dessa abordagem “cimentar uma linha
divisória entre o popular e o acadêmico” (FERNANDES, 2003, p. 33). E vai além, afirmando que
numa pesquisa como essa “qualquer tentativa de afastamento interfere nos resultados” e finaliza o
raciocínio afirmando ter se sentido parte do objeto por interagir com a narrativa (FERNANDES,
2003, p. 136);
Outras informações que não constam nas achegas me foram repassadas em entrevista, como
a roupa que os entrevistadores deveriam trajar, esta não poderia ser chamativa, todos deveriam ir
bem vestidos, mas com nada que pudesse tirar a atenção dos informantes no momento da
“contação” – tal qual sugere Renato Almeida (ALMEIDA, 1965, p.26).
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b) A propósito do informante
Ainda que autores como Renato Almeida (1965) e Amadeu Amaral (1976) acusem como
necessário a coleta uma pesquisa prévia, a primeira orientação deste item afirma que deve-se
começar a coleta através dos conhecidos. Com esses e autoridades (prefeitos, religiosos, médicos,
professores), colher informações e passar, a partir daí a entrevistar os demais membros da
comunidade. O que faz sentido, afinal de contas, se sou membro de uma comunidade, conheço as
pessoas que vou entrevistar, seus hábitos e costumes, não tenho porquê pesquisar afinal de contas
já conheço o suficiente sobre aquela pessoa. Acredito que as observações de Renato Almeida e
Amadeu Amaral são importantes para os pesquisadores que não são membros da comunidade. O
que não foi o caso da maior parte dos coletores do projeto IFNOPAP.
No segundo item das achegas, temos “não limitar a figura do informante: faixa etária;
origem geográfica; classe social; profissão; religião” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA
DA COLETA, 1994, p.2), em relação à origem geográfica, em entrevista, a professora Socorro,
afirma que a única restrição estaria em que a pessoa deveria viver no Pará há pelo menos dois
anos. Mesmo que autores como Vilhena e Ortiz afirmem que não se deve utilizar informantes
especializados, a metodologia adotada pelo projeto está de acordo com o que defende Renato
Almeida que afirma que os detentores do folclore não estão somente entre os analfabetos
(ALMEIDA, 1965, 2014).
Mas, pergunto-me qual o tempo necessário para alguém criar vínculos com um
determinado local ou região? Acredito que isso depende da relação que o indivíduo tem com o
seu próprio lugar de origem.
Pensando nisso é quase impossível não lembrar de Walter Benjamin em seu renomado
capítulo O narrador, do livro Magia e técnica, arte e política, no qual afirma que existem dois
grupos de narradores “que se interpenetram de múltiplas maneiras”: o viajante e o residente, cada
um deles “alimenta” o outro. Tanto o viajante que carrega consigo o imaginário de onde provem
e de lugares por onde passou deixa a sua marca no imaginário local, quanto o narrador residente
empresta um pouco do que conhece ao viajante para a formação do seu cancioneiro. Nesse
aspecto, viajante e residente, são as duas faces de uma mesma moeda, suas histórias de vida e
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suas narrativas se complementam mutuamente e cooperam uma com a outra na formação do
cancioneiro de um e de outro (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Assim, acredito que se o objetivo era “mapear o que se conta no Pará” (SIMÕES, 2014)
(grifo meu) o narrador que esteja “no” Pará por menor que seja sua estadia, em ser um narrador, a
meu ver, ele já interfere na “paisagem oral”2 deixando sua marca indelével no que circula ou irá
circular nas rodas de amigos ou na casas de famílias de onde tentamos escutar o que se diz.
No contato com o informante, o documento afirma que se deve “informar sobre a proposta
de trabalho, com clareza, objetividade, simplicidade e humildade” e “referir que se trata de um
trabalho de equipe, sem fins lucrativos e, se julgar necessário e oportuno, dar informações mais
completas”. No caso de dúvidas “formular as questões e responder as perguntas com clareza e
honestidade, para angariar a confiança do informante” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA
DA COLETA, 1994, p.2). Tais informações são básicas e não requerem um esforço analítico da
minha parte.
No entanto, a orientação seguinte é no mínimo intrigante: “tentar ser parte do grupo, sem
exageros, naturalmente” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). A
afirmação é um tanto quanto equivocada, na minha opinião, ou você faz parte, ou você não faz
parte de um grupo. Talvez o que os organizadores quiseram dizer foi que o entrevistador deveria
se “enturmar” ao grupo e não necessariamente fazer parte dele. Não estivesse essa orientação
especificamente no item “a propósito do informante e pensaria que “grupo” se referiria aos
pesquisadores.
No final deste item, há um conjunto de observações referentes às solicitações dos
informantes
- Pagamento: deixar claro que se trata de estudo e não de atividades com fins lucrativos.
Se o informante quiser objetos em troca das informações, o pesquisador tentará resolver a
questão da maneira mais adequada.
- Sugestões sentimentais: agir com recato, discrição e evitar constrangimentos.
- Procurar atender o informante se se tratar de troca de informações. (ACHEGAS PARA
TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3).
2
Para a utilização deste termo, concordo com Frederico Augusto Garcia Fernandes que em A voz e sentido o define
como “a polifonia presente nos relatos e que podem vir de muitas fontes”. Ainda que o autor não cite,
especificamente, a presença do viajante como elemento desta polifonia, acredito que ele faça parte dela por menor
que seja a sua intervenção (dias, meses, anos) na paisagem oral (FERNANDES, 2007, p. 77).
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As observações acima resumem boa parte do que foi dito nesse item. Na questão do
pagamento, se por um lado não se diz exatamente o que fazer no caso da insistência do
pagamento por outro deixa-se o entrevistador a vontade para resolver a questão da maneira mais
conveniente. Em relação às sugestões de caráter sentimental a orientação reitera o que foi dito a
propósito de “deixar as emoções na UFPA”. Por fim as trocas de informações não só são aceitas
como são quase recomendadas.
No documento não há qualquer referência especificamente sobre o que Oswaldo Cabral
chama de “mores tradicionais” (CABRAL, 1954, p. 188 apud JARDIM, 2011, p. 105). Não há
referências sobre a relação entre pessoas de sexo diferente – como no caso de termos uma
entrevistadora e um entrevistado ou vice-versa –, ou sobre uma possível atitude de descrença ao
que se está escutando – o que não deve nunca ocorrer sob risco de colocar não só aquela, mas
todas as outras entrevistas naquela comunidade a perder, já que um membro da comunidade que
se sentir destratado pelo entrevistador pode conversar a todos os outros membros da comunidade
a não cooperar com o pesquisador –, conforme alerta Oswaldo Cabral (CABRAL, 1954, p. 188
apud JARDIM, 2011, p. 105). Ou essas especificidades foram referidas durante o minicurso de
orientação ministrado nas localidades ou partiu-se do princípio de que como os entrevistadores
seriam membros da comunidade, eles já teriam esse trato arraigado em suas práticas cotidianas.
Somente quando se diz “tentar ser parte do grupo, sem exageros, naturalmente” é que percebo a
tentativa de instruir os entrevistadores quanto ao que Oswaldo Cabral chama de “excessiva
liberdade” e “ultrapassar os mores tradicionais do meio”.
c) A propósito da gravação
Este item se divide em “antes”, “durante” e “depois” da gravação e se refere a questões
meramente técnicas. No “antes”, temos orientações que tratam sobre reunir o material necessário
(caneta, papel, gravador, pilhas, fitas, máquina fotográfica, filmes), examinar e testar as fitas e o
gravador, além de assinalar a referência na fita que se fosse utilizar (ACHEGAS PARA
TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3).
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A referência às máquinas fotográficas tinha como pressuposto, segundo Maria do Socorro
Simões, que as mesmas não atrapalhassem a performance, para isso, os fotógrafos teriam que
trabalhar da forma mais discretas possível. As câmeras de vídeos não chegaram a ser usadas
devido à falta de recursos (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3).
No subitem “Durante”, exige-se do entrevistador que grave na fita, inicialmente os dados
pessoais do informante, o local, a data e hora da gravação, além de verificar se o microfone está
bem posicionado em relação ao informante, controlar o avanço da fita e virá-la em momento de
interrupção demorada para que a mesma não interrompa o informante no momento em que narra.
A última orientação deste subitem avisa que não se deve interromper a gravação mesmo durante
conversas paralelas.
Nesse subitem também há algumas observações sobre “anotar em folha de papel
informações que julgar interessantes e/ou perguntas para esclarecimentos posteriores, sem nunca
interromper a gravação para fazer isso e só falar se for inquirido pelo informante” (ACHEGAS
PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3). Estas informações me parecem de acordo
com o que Renato Almeida aconselha: anotar-se o modo como a história é contada, se há
assistentes e qual a reação de quem escuta (ALMEIDA, 1965, p. 156).
Podemos observar que tal orientação foi cumprida quando observamos a nota de rodapé da
narrativa O tejo, história contada pela informante Francisca Paulina Cardoso e publicada no livro
Belém conta...:
6
A digressão feita a partir deste ponto, foi devido à confusão com os nomes das
personagens. A informante acabou repassando para seus ouvintes (a entrevistadora, alguns
vizinhos e familiares) a responsabilidade de esclarecer a questão.
7
Nos dois parágrafos a seguir, a informante diminui o tom da voz para mostrar que a
personagem estava falando consigo mesma.
8
Instrumento construído com galhos de árvore, é utilizado por caçadores para transportar
caça.
9
A informante reproduziu a fala da personagem, dizendo [móio].
10
A informante bate com a mão fechada, na mesa, para confirmar sua colocação.
11
“Tejo” segundo a informante é o que se dá a lagartos. Também chamado de Teju”.
12
[Viu...!], [fil...!]: onomatopéias que denotam movimento veloz. São seguidas por gesto:
a informante levanta o braço direito e o mergulha no ar. (SIMÕES, Maria do Socorro;
GOLDER, Christophe, 1995, p. 13-16)
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Observo que a pesquisadora Veruza Mourão, responsável pela gravação e transcrição desta
narrativa faz referência à maneira como dona Francisca conta, os recursos que a mesma utiliza e a
ajuda ou interrupção que a mesma teve durante a contação, algo que se aproxima bastante das
orientações dadas por Renato Almeida.
As orientações para o momento após a gravação resumem-se em “reformular as questões
que ficaram pendentes durante a narrativa” com vistas, dentre outras coisas, fazer o glossário e/ou
as notas explicativas como as vistas acima; e “proteger a fita imediatamente após a gravação total
(narrativas, perguntas e respostas posteriores)”.
d) A transcrição
A transcrição é outro momento do processo de desenraizamento. Daí em diante, a decisão
da equipe de pesquisadores de como fazer é importante. Nas transcrições feitas pelos
pesquisadores do projeto decidiu-se respeitar o modo de falar do informante tentando adequá-lo à
transcrição escrita, recriando os momentos de oscilação e pausa, por exemplo, usando reticências
ou colchetes quando não é possível para o pesquisador entender o que foi dito pelo informante.
Todavia, a transcrição deixa passar muitas das características do perfil linguístico da comunidade.
Não há qualquer referência ao processo de transcrição das narrativas nas achegas, mas em
entrevista concedida no dia 24/07/2012, a professora Socorro Simões afirma que o critério de
transcrição não levou em consideração os fatos fonéticos porque o objetivo do projeto era outro
que não necessariamente o linguístico. Então, a transcrição foi feita a maneira de um ditado
escolar, respeitando a gramática da língua portuguesa, sendo que, ao final da entrevista, as
palavras que o entrevistador não compreendesse seriam perguntadas ao informante para a
formação do glossário (SIMÕES, 2012).
Essa faceta do método empregado se coaduna com o que Almeida e Queiroz afirmam sobre
a formação de um glossário no momento da transcrição (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 138).
Mas, em nenhuma das publicações da série Pará conta... (Belém, Santarém e Abaetetuba conta...)
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(SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe, 1995), há o que as autoras chamam de
“paratexto crítico”, ou seja, “apresentação, prefácio e notas, escritos pelo próprio organizador (na
maior parte dos casos), ou por um intelectual convidado” onde se teriam algumas particularidades
do método de coleta e os objetivos da pesquisa, o que impede que outros estudiosos que não
estejam em contato direto ou possuam relações próximas ao projeto (como eu) de trabalharem de
forma mais aprofundada com o corpus do projeto IFNOPAP.
Por fim, acredito que ao projeto ainda lhe faltaram algumas informações específicas de
como abordar os entrevistados, como seria esse primeiro contato? Não há especificações como o
faz Renato Almeida que afirma que nunca se deve ir direto ao assunto.
Com base em todas as informações que obtive a partir da leitura de autores e obras que
versam sobre a metodologia de coleta folclórica e levando em consideração o que pude observar
a partir dos documentos, entrevistas e produtos do projeto em questão, pude concluir que o
mesmo utilizou uma metodologia, em grande parte, adequada a coleta de narrativas. Não se trata,
portanto de uma simples prática, mas de um método, algumas vezes equivocado mas que
“acertou” na maior parte das ações que empreendeu, constituindo assim, efetivamente, um
método de entrevista oral.
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Paulo: Editora Unesp, 2007.
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CD-ROM
CALEIDOSCÓPIO Amazônico: uma aventura em imagens e cores. Produção: Ana Prado e
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Documento
ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA. 1994. Belém, PA: UFPA, 1994.
Entrevistas
SIMÕES, Maria do Socorro. Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre Ranieri.
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_______________________. Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre Ranieri.
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Site
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Tese
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de narrativas e versos a cultura oral pantaneira. Tese de Doutorado. UNESP: Assis, 2003.
JARDIM, Marcelo Rodrigues. Cartografia de poéticas orais da região Sul do Brasil: os
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O LUGAR DAS POÉTICAS ORAIS
THE PLACE OF ORAL POETICS
Danieli dos Santos Pimentel (PUCRS-FALE)1
Josebel Akel Fares (UEPA- PPGED)2
Resumo: O interesse pela pesquisa com as poéticas orais foi que nos levou a escrever este artigo. Assim sendo, nos
debruçamos na tentativa de refletir sobre um tipo de abordagem como a que será observada ao logo do texto.
Apresentamos, de forma didática e teórica, os percursos quase sempre encarados no decorrer da pesquisa com as
poéticas. Primeiramente, nos acercaremos de uma breve discussão em torno da entrada dos estudos da oralidade no
ramo das teorias da literatura, em seguida, pontuaremos algumas das etapas adotadas nesse percurso: o campo de
pesquisa e suas implicações, a escolha dos narradores, técnicas de pesquisa em literatura oral, entrevistas narrativas,
metodologia (a história oral e a abordagem cartográfica), transcrição, e por último, a análise e interpretação dos
dados. Desse modo, optamos pelo cruzamento de teorias, algumas específicas das poéticas da voz, e, outras oriundas
do cenário das ciências sociais.
Palavras-chave: Poéticas orais; Pesquisa; Metodologia.
Abstract: The interest in research with oral poetics was what led us to write this article. Therefore, we concentrate in
an attempt to reflect about one type of approach as it will be seen through the text. We present in a theoretical and
didactic way what is seen during the research with the poetic. We start a brief discussion about the entrance
of orality study in the field of literature theories. Then we appoint some of the steps taken during this path: the field
of research and its implications, the choice of narrators, research techniques in oral literature, narrative interviews,
methodology (oral history and cartographic approach), transcription and finally the analysis and interpretation of
data. Thus, we chose the intersection between theories from social sciences and voice poetic.
Keywords: Oral poetics; Research; Methodology.
O texto poético oral
Entendida como um espaço de mesclas, a nova historiografia da literatura se vê obrigada a
agregar, ao ramo dos estudos narrativos, outras expressões da cultura até então deixadas à
margem pela crítica literária. Na acepção de Paul Zumthor, a ressurgência dos fenômenos vocais
Doutoranda em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – bolsista Capes.
Mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) com parceria interinstitucional UEPA/PUCRS
– mestrado sanduíche com bolsa Capes, Integrante do grupo de pesquisa Cultura e Memórias da Amazônia (CUMAUEPA). E-mail para contato: danielipimentel@yahoo.com.br.
1
2
Doutora em Comunicação e Semiótica: Intersemiose na Literatura e nas Artes (PUCSP, 2003); mestra em Letras:
Teoria Literária (UFPA, 1997). Possui estágio Pós-Doutoral em Educação (PUCRS, 2012). Coordena o Núcleo de
pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA). E-mail para contato: belfares@uol.com.br.
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instaura a revanche no cenário da teoria da literatura. Se pensarmos pela lógica de que as
tradições orais são anteriores aos textos canônicos e literários lidos pelo mundo inteiro, não
descartamos a prerrogativa de que a literatura quase sempre, se serviu do imaginário dos povos
de culturas antigas. Visto dessa maneira, ao ter firmado o pé nas velhas tradições, a literatura não
pode hesitar de olhar para o ontem de sua gênese criadora, nem tampouco, “negar a importância
do papel que desempenharam, na história da humanidade, as tradições orais. As civilizações
arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm graças a elas” (ZUMTHOR, 2010,
p. 8). Adiante, Zumthor estabelece questionamentos acerca da literatura “operada tanto pela
escrita quanto pela voz”:
quantos poemas na Paris dos anos 1950, escritos e editados “literariamente”, musicados
posteriormente, tornaram-se canções na consciência e no uso coletivos? Por sua vez, o
ensino primário não transformou, para crianças de minha geração, algumas fábulas de La
Fontaine em poesia oral por excelência? [...] Isso não é novidade: desde o século XIV, a
classe popular florentina cantava versos da Divina Comédia e, ainda no século XVIII, os
gondoleiros venezianos cantavam oitavas de Tasso. De modo inverso, quantos poemas e
contos literários serviram-se de uma tradição popular? (ZUMTHOR, 2010, p. 23).
Neste início de século, assistimos as novas teorias híbridas: mestiçagens, complexidades e
multiplicidades de valores, bem como da não negação e interdependência entre saberes e práticas
seguem nesta prerrogativa. A metonímia já não é capaz de explicar a parte do todo, por isso, está
sendo combatida pelo atravessamento de multiplicidades simultâneas e emergentes. A concepção
dual não cabe mais na noção movente da cultura ao passo que, agimos como integrados, e ainda,
vezes por outra, como apocalípticos redutores, para lembrar aqui Umberto Eco (1979).
Diante disso, nós os pesquisadores das poéticas orais, temos um papel fundamental –
recobrar a revisão da historiografia literária no intuito agregar as multiplicidades narrativas.
Fixamos nosso olhar no texto poético oral. Isto é, o texto narrativo oral presente tanto na voz de
narradores quanto na literatura impressa, uma vez que esta se utiliza da experiência do ato de
narrar. O texto oral segue na contramão de uma historiografia literária excludente de muitos
textos da cultura, dentre eles: o texto poético oral. Sobre a questão, Doralice Alcoforado (2007, p.
3) observa: “o texto poético oral permaneceu por muito tempo fora do enfoque teórico dos
estudos literários, cuja tradição tem privilegiado a escrita”.
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Um tipo de abordagem ainda reducionista e diacrônica porque se prende apenas as
investigações de cunho estruturalistas, formalistas, comparativistas e tantas outras “istas”
arraigadas nos galhos das confortáveis teorias da literatura são, antes de tudo, corretas, mas um
tanto limitadas uma vez que, por narrativas não se compreende apenas os registros impressos,
mas quaisquer manifestações de linguagem, ou ainda, todos os textos da cultura no sentido lato
dos gêneros textuais. O que de fato requer um olhar diferenciado e atento aos textos da oralidade,
modalidade artesanal, constituinte de uma linguagem estética. Por conseguinte, Zumthor (2010,
p. 24) chama a atenção para a subalternização do oral: “É inútil julgar a oralidade de modo
negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura. Oralidade não significa
analfabetismo”. Na mesma proposição observa Frederico Fernandes (2002, p. 15-6).
As questões de ordem estética não podem ser apreendidas unicamente pelo aspecto
formal, como muitas vezes se faz na literatura escrita. A forma de narrar é, por
excelência, artesanal. E isso não quer dizer que a palavra esteja totalmente despida de
uma estética, ao contrário, aqui a apreensão do belo torna-se mais facilmente
compreendida pela transmissão de saberes e de coisas simples do dia-a-dia [...] Pode-se
dizer, então, que a literatura popular resulta de um trabalho com a linguagem, em que a
criatividade, as maneiras de contar, o entretenimento e o plano ideológico, provenientes
dela, trazem indícios de que se está lidando com uma “enfabulação” do cotidiano.
Para Alcoforado (2007, p. 4) “o texto oral simultaneamente é um texto artístico e um texto
etnográfico. Mantido virtualmente na memória do seu transmissor, que o ajusta ao universo
cultural do seu grupo”. Artístico no agenciamento de imagens semânticas e de profundo
significado próprio do universo mítico oral, textos que refletem uma complexa cosmogonia e
teias simbólicas de imaginários descritos pela ótica devaneante de velhos guardiões de memórias.
Etnográfico porque suscita imagens mentais de uma determinada cultura, acontecimento viável
somente pelo ouvido sensível capaz de escutar o leve canto trazido pelo vento das origens,
daquilo que a cultura muito se esforça para traduzir no indizível das palavras, daquilo que ela nos
diz, representa e descreve simbolicamente. A literatura escrita continua em débito com a
oralidade, ninguém ousaria negar a importância que a oralidade tem para a literatura, isto
significa admitir que os textos orais já existiam antes mesmo de a escrita surgir. Portanto, duplas
e ambivalentes uma vez uma se serve da outra.
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A chamada literatura de formação brasileira se apropriou do imaginário de povos indígenas
em busca de um ideal de nação. Assim, a corrente idealizadora das páginas literárias não está
totalmente despida da mítica, ao menos isso restou da barbárie colonizadora, e, graças ao
imaginário indígena a literatura escrita brasileira deste período não é “menos pobre”. Os signos
indígenas já existiam mesmo antes do discurso escrito chegar, o que os cronistas fizeram foi
interpretá-lo e traduzi-lo, diga-se de passagem, conforme seus pontos de vista, e, por fim, adaptálo ao texto literário. Alfredo Bosi (1992) em Dialética da colonização observa como se deu essa
“nova representação do sagrado”, primeiro na tentativa de “transpor para a fala do índio a
mensagem católica”, segundo, na tentativa de “aculturar” e “traduzir” esse jogo duplo e
ambivalente da colonização.
Com o fim de converter o nativo Anchieta engendrou uma poesia e um teatro cujo
correlato imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forças em perpétua luta:
Tupã-Deus, com sua constelação familiar de anjos e santos, e Anhanga-Demônio, com a
sua coorte de espíritos malévolos que se fazem presentes nas cerimônias tupis. Um
dualismo ontológico preside a essa concepção totalizante da vida indígena: um de seus
feitos mais poderosos, em termos de aculturação, é o fato de o missionário vincular o
ethos da tribo a poderes exteriores e superiores à vontade do índio (BOSI, 1992, p. 67-8).
Uma parcela do panteão foi, sem dúvida, usurpada e demonizada pelas instituições
esmagadoras deste período. A literatura escrita não pode continuar negando a oralidade, pois dela
serviu-se e continua servindo-se até hoje. Só temos acesso às culturas antigas por meio delas,
(oralidade  literatura) mas não teríamos o acesso sem que essas culturas tivessem existido e
produzido significados de que a literatura se ocupou. Oralidade e literatura são pares
indissociáveis, uma não existe sem a outra. Longe desse ranço, precisamos emergir no trabalho
com todos os gêneros textuais, sobretudo, reavaliar a natureza dos objetos no contexto dos
estudos literários. Pensar os textos: literários orais no entrelace com outras linguagens, na
contribuição de outras teorias que o ajudam a problematizá-lo. Existe um estatuto bastante
consolidado pela teoria da literatura, resta a utilização do texto poético oral, por exemplo, visto
pela ótica das teorias críticas da literatura. Precisamos avançar. Aproximar as teorias, tanto as da
literatura, quanto as da oralidade com o objetivo de estabelecer ressonâncias, identificar as
incompletudes de uma em relação a outra e torná-las negociáveis. Lutar pelas reciprocidades. A
teoria literária precisa se abrir aos novos objetos, nesse ponto, a pesquisa com as poéticas orais
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tem seu mérito. Nasce do constante diálogo com outras áreas do conhecimento. O trabalho de um
pesquisador de narrativas orais que, necessariamente, trabalha com rupturas e deslocamentos,
espécie de arqueólogo dos índices e sinais da oralidade. A sua imersão no campo de pesquisa
requer, além de um letramento teórico, uma habilidade prática de convívio. O pesquisador é esse
arqueólogo em campo que luta com as virtualidades teóricas que na prática, ele a deseja com
afinco.
A pesquisa com as poéticas orais difere das pesquisas realizadas na formação de
professores de língua e literatura. Trata-se de um trabalho que começa, como afirma Fernandes
(2002, p. 14), com a “inversão de foco”, ou ainda, “inverte-se o foco de análise” em que além do
trabalho de pesquisa bibliográfica, há ainda o trabalho de recolha dos materiais, fontes orais de
pesquisa no locus – etapa que demanda tempo e disponibilidade. Não bastasse a habilidade de
“dialogar com as mais variadas áreas do conhecimento”, a pesquisa de campo exige um
“letramento” sensível, cartográfico e etnográfico para tratar com os envolvidos. Vale ressaltar
que o sujeito da pesquisa é quem determina a sua participação no trabalho, pois ele torna-se o
principal responsável pela criação e circulação dos textos poéticos orais. De posse das questões
emergentes, elabora-se um roteiro de entrevista para conduzir o diálogo com os narradores.
[...] é natural que as entrevistas pautem-se em um roteiro básico, que pode ser
modificado diante dos narradores, pois são eles que constroem as teias para o diálogo
avançar. Assim, quem conduz o trabalho deve conhecer a matéria e ser sensível ao
tratamento da questão, para encontrar a questão necessária; reconduzir alguns temas;
escolher a palavra compreensível naquele universo; conceber várias formas de expressar
a pergunta; saber calar e ter disponibilidade de ouvir, de ouvir muito; não deixar a
ansiedade saltar caminhos e chegar à pergunta final, sem ainda ter chegado ao fim da
entrevista; deixar espaços abertos para uma próxima entrevista, ou um próximo
pesquisador; para tantas outras aprendizagens e trocas (FARES, 2010, p. 24).
O material recolhido a partir das entrevistas narrativas são de domínio do narrador e este
conduz o diálogo, demarca e seleciona o seu repertório. O tempo de cada entrevista (uma a duas
horas, no máximo) não deve desgastar o entrevistado, podendo repetir-se em turnos e momentos
diferenciados. Não perder de vista os objetivos e a metodologia a serem seguidos, pois em se
tratando da quantidade de dados gerados a partir de uma única entrevista, não há como prever
seus encaminhamentos, por hora, o olhar atento de sempre retornar aos objetivos e suas
reformulações (FARES, 2010, p. 35).
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Durante a coleta, “muitas dessas narrativas são, a nosso olhar, completamente inusitadas e
diante do contador não temos como dizer o que queremos ouvir, pois não há como ter um
reconhecimento prévio de seu repertório” (FERNANDES, 2002, p. 14). As experiências obtidas
em campo não comportam nos anais de dissertações, teses, diários de campo, uma vez que muitas
fogem de nosso controle, são teóricas, metodológicas, afetivas e tudo o mais extraído das
experiências sensoriais e subjetivas raramente levadas ao conhecimento do público. Como então
se manter atento, flexível, e neutro no processo? Digamos então que esta assertiva não comporta
o trabalho de pesquisa de campo. Atento sim, flexível sempre. Porém neutro, impossível.
Muitas vezes, a paixão pelo objeto nos faz perder na profusão de dúvidas. Desespero total
diante do obscuro. Mistério que se aprofunda para acalmar-se na redenção dos achados. O objeto
é parceiro da conquista, sentimento exasperado para além de nossas razões. O pesquisador tornase um adolescente deslumbrado pelo objeto de desejo. Com paixão surge o olhar anuviado e um
perder-se por vontade. Tateante, o pesquisador caminha noite adentro em busca de respostas. No
profundo de si gritam as hipóteses, surgem monstros assustadores e os demônios das teorias a
espera do tempo derradeiro para enfim, acalmar-se nas águas das conclusões tardias. As teorias
servem como luvas ajustáveis as mãos. Pensar o objeto à luz das teorias e pensar as teorias em
prol do objeto é um exercício contínuo, acordados ou em sonho o objeto não desaparece.
O trabalho com as poéticas tem sido uma investida que subverte a lógica dos estudos
literários, trata-se antes de tudo, uma aventura contra o cânone. Um lance audaz na tentativa de
reformular as estruturas dominantes da crítica literária. No entrelugar da cultura e dos estudos
literários nos embrenhamos e tiramos do limbo as culturas das bordas3. O que nos faz pensar que
temos o direito de excluir as formas narrativas orais dos estudos literários? De forma pontual
Fares (2013) esclarece:
1) O fato de a matéria estar fora do cânone e por isso afastada dos círculos acadêmicos,
seja como disciplina ou como conteúdo, e exemplifico com os cursos de graduação em
Letras, que nunca a incluíram em seus currículos. A arquitetura desses conhecimentos é
complexamente bem desenhada e perceber as linhas de sua construção é tão importante e
O conceito “cultura das bordas” cunhado por Jerusa Pires Ferreira (2010, p. 11-2) ajuda-nos a pensar a questão da
subalternidade a que foi destinado inúmeros textos e expressões da cultura. Bordas “implica a pertença múltipla e
toda a dificuldade de estabelecer limites. Pode ser um contra cânone e mais, a liberdade de assumir heterodoxias e o
equilíbrio precário daquilo que pode estar nas beiras do sistema [...], fora dos sistemas centrais”. Ou ainda, “Bordas é
a definição em equilíbrio, como no fio da faca”.
3
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difícil quanto desvendar os fios que tecem o canônico, as matérias instituídas, como a
matemática, a história, a linguística, a literatura de verniz superior. 2) Muitos
profissionais da área, normalmente, como disse anteriormente, desqualificam quaisquer
literaturas ditas das bordas – as de expressões regionais, as direcionadas virtualmente ao
público infantil e juvenil, as africanas, as de testemunho etc., as consideram “meioliterárias” ou não literatura. – e não promovem o interesse de novas pesquisas no corpo
discente. 3) O mito, a lenda e o caso, como ainda se costuma titular o repertório oral, é
matéria vinda das raízes populares, ou seja, produção das classes mais pobres, muito
vezes, analfabetas ou semianalfabetas, e a “literatura” sempre se aproximou do saber
erudito, escolarizado, daí que essas formas orais sempre foram muito mais objeto dos
antropólogos e dos folcloristas do que dos profissionais das Letras.
Zumthor, ao reconhecer a importância da memória oral criou um estatuto para a voz,
interessado pelo medievo lançou-se no terreno das antigas tradições: “Ninguém sonharia em
negar a importância do papel que desempenharam, na história da humanidade, as tradições orais”
(ZUMTHOR, 2010, p. 8). A voz, em seu caráter fundante e poético, encontra no autor a
possibilidade compreendida como gênese do acontecimento – constelação metafórica que
deságua numa sintaxe imagética, verborrágica em plena da pulsão de vida.
A voz jaz no silêncio do corpo como o corpo em sua matriz. Mas, ao contrário do corpo,
ela retorna a cada instante, abolindo-se como palavra e como som. Ao falar, ressoa em
sua concha o eco deste deserto antes da ruptura, onde, em surdina, estão a vida e a paz, a
morte e a loucura. O sopro da voz é criador (ZUMTHOR, 2010, p. 10).
Fernandes (2007, p. 25) ao relacionar a poesia oral e estudos literários, adverte: “a poesia
oral necessita de um direcionamento que a (re) coloque na berlinda da teoria literária, para que o
valor poético eminente em seus textos possa ser investigado à luz de uma disciplina artísticocultural”. O autor critica ainda a marginalização da poesia oral pela crítica literária.
Primeiro porque se desvinculava da escrita e, por conseguinte, foi tratada como uma
literatura de pessoas que não sabiam ler nem escrever. Segundo, porque assumiu a
definição de popular ou de primitiva em contraposição à de erudita. Terceiro, porque se
tornou objeto de uma investigação folclórica, no qual eram observados costumes,
sincretismo religioso, origem étnica, ao passo que o valor poético descaracteriza-se em
meio ao caldo heterogêneo da cultura popular. Quarto, porque se tornou exótica. E
quinto, porque a teoria literária começa a se desvincular de um modelo analítico regido
pela batuta da letra tardiamente (FERNANDES, 2007, p. 24-5).
Assim sendo, Zumthor (1993) em A letra e a voz já antevia a falta de interesse pelo estudo
interpretativo da poesia oral. Ao dedicar-se aos estudos da poesia medieval, ele supõe que, de
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alguma maneira, as poéticas orais já tem reconhecimento. Porém, mesmo a poesia medieval já
constituída como objeto dos estudos literários, continua sendo relegada. O que reavemos, é sem
dúvida, um olhar mais atento às singularidades da cultura no sentido de um interesse particular e
sistematizador do problema do poético no texto oral. Da mesma forma que Zumthor sinalizou
para a importância dos textos recolhidos do imaginário popular medieval. Admitimos a
emergência de contrapor o discurso hegemônico e autoritário canônico de uma historiografia
literária que tem se servido muito mais em demasia dos textos escritos. Propomos, nesse sentido,
a criação de um estatuto epistemológico que dê conta do estudo das poéticas orais no sentido de
compreendê-las como formas constitutivas de linguagem, tal qual já foi sistematizada as teorias
da narrativa no âmbito dos textos literários.
Campo interdisciplinar por excelência
Cineasta e etnógrafo Jean Rouch (2003, p. 185) afirmou: “Tudo o que posso dizer hoje é
que no campo o simples observador se modifica a si mesmo”. Ninguém sai de uma pesquisa da
mesma forma que entrou. Deslocar-se do seu eixo para adentrar na imensidão do outro, a
princípio, não é uma tarefa fácil. A universidade por muito tempo privilegiou a pesquisa
bibliográfica ou documental do que a pesquisa de campo. A partir dessa constatação, acreditamos
na abertura para as mais variadas experiências do senso comum, ou ainda que a universidade
possa integrar-se a vida cotidiana. O mundo apresenta muitos saberes, os quais, muitas vezes, o
universo acadêmico simplesmente ignora pela maça dominante cientificista vigente esmagadora.
O pensamento técnico-científico contemporâneo se afasta cada vez mais da visão cartesiana
segregadora dos saberes, daí sentimos a necessidade de religar saberes e práticas dentro do
contexto acadêmico.
Para cumprir o percurso, a sabedoria aconselha apurar o olhar. O outro ajudará no
processo de construção da epopeia e a posição diante deste interlocutor é dialógica
sempre, e, muitas e muitas vezes, de aprendiz. O pesquisador nunca alcançará todas as
sutilezas das diferentes formas de expressão, o mundo é imensamente maior que os
nossos olhos. Assim, é indispensável depor “as armas” instituídas e abrir-se para a
construção de novos roteiros e novas formas de caminhar. E, ao encontrar o inusitado, às
vezes, precisa-se ter disponibilidade para mudar rumos e tempos programados. Em
síntese, compreender que o alvo para onde a mira aponta não é a única forma de ver, mas
que o olhar periférico, desfocado, comunica significados relevantes, configura o homem
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com menos disfarces, e com menos poses (como todo pesquisador, sabemos que a
câmera e o gravador favorecem o gesto rígido, posado) (FARES, 2003, p.78).
Quão difícil, é para nós, a tarefa de “tolerar” o mundo externo do Outro, compreendê-lo e
aceitá-lo na sua singularidade, do contrário, seria mais prático, como acontece normalmente,
relegá-lo a um canto sozinho sem o direito as contrapalvras. Agimos pelo fetiche atroz e
impulsivo/dominante que nega qualquer direito do outro exercer a sua individualidade. Desde que
existe o Eu e o Outro estamos imersos na alteridade, contudo não a tornamos real nas relações
humanas. O Outro é sempre diferente de mim a medida que o Outro é “esse” Outro, nem por isso,
ele é inferior a mim. Alguma coisa dispersa que aproxima. Sou eu também um Estrangeiro para o
Outro e para mim mesmo até o momento em que “aquele Outro” não me atravessa se não o deixo
atravessar. Em outras palavras, o “estranho está em mim, portanto, somos todos estrangeiros. Se
sou estrangeiro, não existem estrangeiros” (KRISTEVA, 1994, p. 201-2).
Ao fechar-me em minha couraça continuo sendo alheio em minha individualidade,
acreditando fantasmaticamente ser um autêntico primordial. Do contrário, “aquele Outro” poderia
me ignorar. Impedir meu fluxo em direção a ele. Contudo, insisto, dou meia volta, ajusto o passo
e me lanço no abismo do desconhecido. Se o outro é para mim tão alheio como o julgo sem antes
de conhecê-lo? Kristeva (1991, p. 09) nos responde:
Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o
espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a
simpatia. Por conhecê-lo em nós, poupamos-nos de ter que detestá-lo em si mesmo.
Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro
começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos
reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades.
Barbero nos mostra que a cultura de outrem não o torna melhor nem pior, apenas diferente
pela sua particularidade. Mas com ela, e nela, na cultura do outro também podemos emergir, sem
negar a si e ao outro pelo simples desejo de cambiar informações. Num pensamento consonante
com as teorias do híbrido e da cultura, temos que aprender com o outro em meio à experiência de
intercâmbio. Paulo Freire (1995, p. 110), em uma conhecida fala nos revela “abri-se a ‘alma’ da
cultura e deixar-se ‘molhar-se’, ‘ensopar-se’ das águas culturais e históricas dos indivíduos
envolvidos na experiência”. Sem dúvida, é esse um dos caminhos esperados no campo da
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pesquisa. A entrada envolve não só questões de ordem teórica como também os embates das
relações humanas travadas nesse processo.
Não é fácil obter as respostas de imediato, mas é plenamente plausível que se comece a
pensar sobre as relações que envolvem um trabalho ético de pesquisa de campo. Não se trata de
um retorno de ordem financeira, e, sim, do legado para os envolvidos no processo, o que não
pode ser simplesmente quebrado pela falta de compromisso e respeito aos saberes do outro.
Relacionado a tudo isso, incluem-se, na permanência no campo de pesquisa, relações de
alteridade em que o campo é uma porta de entrada para o processo de investigação, mas também
é a saída para as respostas dos fenômenos e melhoria das questões sociais. Acima de tudo, são
respostas para os problemas humanos e para o humano.
A experiência de narrar
Walter Benjamin (1993, p. 198) sobre a experiência de narrar afirma: “a experiência que
passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores”. Tomemos como ponto de
partida a arte de narrar como sendo o componente norteador para a seleção dos partícipes da
pesquisa. Os mais experientes seriam o mais indicados, os mais habilidosos na arte da memória e
na arte de narrar. Sempre há uma pessoa constantemente lembrada por alguém da comunidade –
aquele que dispõe de grande memória local. Assim, afirma o autor: “por mais familiar que seja
seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de
distante, e que se distancia ainda mais” (BENJAMIN, 1993, p. 197).
Se o narrador está perdendo a capacidade de narrar, precisamos então dar voz a ele para que
a memória do passado distante ecoe na atualidade das pessoas mais jovens, garantindo assim, a
continuidade da tradição de um povo. Sobre este assunto, o mesmo Benjamin afirma que, “a arte
de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar
devidamente”.
Como selecionar os narradores? Cabe ao pesquisador fazer o levantamento prévio dos
“detentores” dos saberes que se associam ao tema de sua pesquisa. De preferência, as pessoas
com mais idade, preferivelmente, aqueles que nasceram e nunca saíram de suas terras (categoria
– narrador sedentário de acordo com Benjamin), pois o tempo pode ter lhes somado grande
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conhecimento sobre os acontecimentos locais. Podemos nos deparar com pessoas que não
nasceram na comunidade (categoria – narrador viajante, conforme Benjamin), mas ao se
estabelecerem acabaram somando grande experiência sobre os acontecimentos do lugar.
Mediante escolha de narradores, previamente selecionados, esses normalmente se incubem de
indicar outras pessoas. Deve-se ter cuidado é com o número de pessoas a serem entrevistadas,
pois dependendo da quantidade selecionada, o material de entrevista se amontoa e
consequentemente o tempo de transcrição redobra. Contudo, o trabalho não se esgota aí. Lidar
com lembranças de pessoas mais velhas é também lidar com os “buracos do esquecimento” e
para isso, precisamos adquirir a habilidade e a sensibilidade ao lidar com a memória do outro.
Jerusa Pires Ferreira (2003, p. 94) ao estudar o Esquecimento enquanto pivô narrativo nos
contos populares ressalta: “Poderíamos mesmo dizer que o esquecimento seria responsável pela
continuidade, pela memória e até pela lembrança”. Os lapsos de esquecimento durante o
exercício da memória pode estar ligado às interdições, numa visão psicanalítica, “é o
esquecimento que vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental”. Também Zumthor
(1997, p. 15), nos alerta que “nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando
uma parte do que elas acumularam de experiência”. Sendo o esquecimento o par indissociável do
exercício “mnemotécnico”, devemos nos acostumar com as questões que envolvem a memória
dos narradores. Certamente, identificadas nas expressões: “esqueci”, “se me lembro muito bem”,
“estou meio esquecido”, “outro dia te conto melhor”, “nem me lembro mais”, “faz tanto tempo”.
Do rizoma às pistas da cartografia
Por muito tempo, o trabalho com as formas narrativas orais se utilizou do método da
história oral4. Recentemente, a cartografia passou a ser frequentemente adotada na pesquisa com
as poéticas orais. De que forma estamos pensando a cartografia enquanto método a ser utilizado
na pesquisa em literatura oral?
Os estudos de história oral, no entender de Jorge Aceves Lozano (2006, p. 15), “interessou-se pela ‘oralidade’ na
medida em que ela permitiu obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar análises históricas com base na
criação de fontes inéditas ou novas”.
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Primeiramente, porque a cartografia nos mostra um novo roteiro a ser seguido, a começar
pelo exercício recognitivo do olhar do pesquisador cartógrafo em campo. Necessariamente,
observador de eventos em curso. O pesquisador cartógrafo é um viajante em busca de outros
territórios da voz. A segunda justificativa corresponde à aproximação da cartografia com a
etnografia, olhar sensível em movimento que parte de um ângulo, e, uma vez que o pesquisador
(de narrativas orais) se estabelece numa determinada comunidade, este, necessariamente, precisa
desenvolver um exercício do olho etnográfico. Suely Rolnik (2011, p. 31) em Cartografia
sentimental: transformações contemporâneas do desejo explica essa alegoria do olho humano e
cartográfico utilizando-se da linguagem cinematográfica. Nesse movimento, (CLAQUETE:
MOVIMENTO UM) “uma câmera o conduz” em direção a uma cena. Imagem inicial que se
mostra na pesquisa, esses movimentos “só são apreensíveis por seu olho vibrátil, ou melhor, por
todo aquele seu corpo que alcança o invisível” (ROLNIK, 2011, p. 31).
Notemos que o texto oral suscita, sobremaneira, esse deslocamento. Movimento do olhar
sensível pelo fato de comportar a substância do simbólico e a matéria do imaginário traduzida em
narratividades pouco a pouco expressas na voz de narradores. Além do mais, reiteramos que
textos orais, sobrepostos uns aos outros, formam mapas cognitivos em que o pesquisador
cartógrafo terá que encontrar achar, capturar, ajuntar, coletar, manipular e interpretar de acordo
com os mapas da cultura oral.5
A cartografia passou a integrar as diversas áreas da cultura e da comunicação. Desde os
conceitos dicionarizados de Houaiss (2004) e Aurelio (1986), perpassando por diversas
conceituações da cultura, podemos afirmar que, a cartografia mais do que uma mera noção de
construção de mapas, constitui-se em registros das manifestações da cultura. Fares (2011, p. 834), baseada na leitura de Zumthor6, sinaliza.
A carta é um signo que tem uma lógica própria, é instrumento de referência e mensagem,
que remete mais a representação condicionada pelas tradições culturais, que a própria
realidade espacial. Como texto, o mapa exige ao mesmo tempo uma leitura e uma
interpretação e atua sobre a imaginação de quem o consulta. Como os relatos dos
5
Um estudo mais direcionado para a aplicação e utilização do método cartográfico em pesquisa com as poéticas
orais ver o trabalho de dissertação de mestrado: “Cartografias poéticas em narrativas da Amazônia: Educação,
Oralidades e Saberes em diálogo”, de Danieli dos Santos Pimentel (2012). Referência completa ao final do artigo.
6
ZUMTHOR, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’ espace au moyen age. Paris: Seuil, 1993.
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viajantes, os mapas também serviram para ilustrar a revelação bíblica e render a
homenagem da terra à vontade divina. Por isto, o espaço universal se reduzia ao
ecumênico, à parte da terra onde se encontra o homem é entendido como espaço de
Redenção. Então, eles variam de abrangência, de objetivo e nas formas de imitar a terra.
As imagens, desprovidas de pretensões de imitar a realidade, trazem o desejo de colocar
em destaque a interpretação de mundo do desenhista, do cartógrafo.
O elemento histórico se forja ali, os ícones presentes nos mapas arquivam os
acontecimentos da história e da memória social de um povo. Dessa forma, o mapa pode ser
encarado como um texto a ser decifrado por quem se dispõe a estudá-lo. Estabelecendo, assim,
um exercício em prol da imaginação de quem o consulta. Os mapas nunca são iguais, pois estes
variam em sua maneira de representar a terra e o espaço. Possuem ainda formatos diferenciados,
representam determinadas épocas e historicidades.
Deleuze e Guattari não pensaram a cartografia metodologicamente, para ambos, o termo se
apresentou, num primeiro momento, como um conceito. Mais tarde, após transposição
metodológica firmou-se no campo das diversas áreas do conhecimento. Nesse âmbito, as
elaborações dos novos mapas engendram outras formas de entender o caminho da filosofia das
ciências, na condição de melhor pensar a natureza dos objetos e suas possibilidades
interpretativas. Nasce então com a cartografia o princípio norteador das multiplicidades que toma
para si a quebra de dualismos.7 Para Barbero (2002, p. 15) “isso implica não só a tarefa de ligar,
mas também a mais arriscada e fecunda, de redesenhar os modelos, para que caibam nossas
diferentes realidades”.
Atraída por sua flexibilidade, a abordagem permite realçar a sensibilidade do cartógrafo
frente à realidade em construção, assim defende Virgínia Kastrup (2009, p. 49): “o cartógrafo
deve pautar-se numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia,
embora já estivesse ali, como virtualidade”.
A cartografia cunhada pela filosofia foi escrita em resposta às teorias psicanalistas ainda em
voga. Deleuze e Guattari contrapõem as teorias dicotômicas, convencidos da ideia de
multiplicidades, desenvolvem a noção de aproximação das territorialidades. Resulta dai a imagem
7
Para melhor compreender a formulação do pensamento dos filósofos em questão, é preciso compreender que em
Mil Platôs instaura-se uma crítica tecida contra os moldes da teoria de Sigmund Freud de tendência estruturalista.
Entendida a partir de um ponto de vista da “desterritorialização” em que a multiplicidade de linguagens confluem
para um ponto de encontro, daí o próprio título da obra (Mil Platôs), mil possibilidades de acesso aos ramos do
conhecimento.
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do rizoma que Deleuze e Guattari tanto enfatizaram: a noção de “raiz pivotante”, própria da
teoria psicanalítica, é contrária a ideia de múltiplo que também é o oposto da “lógica binária”
adotada pela psicanálise. Saltamos da “raiz pivotante” para o “sistema-radícula”, a que está no
centro do ponto de vista cartográfico.
Os filósofos associam a imagem de multiplicidade ao método cup-ut de Burroughs,
empregado pelo escritor na sobrepor textos sobre textos (palimpsestos) como prática de colagem.
Dito de outra forma, a ciência cartesiana foi, aos poucos, aceitando a ideia de que o mundo é um
amontoado de signos, e a ciência clássica não pode negar que o caos segue em direção ao
“caosmo-radídula”. Essa lógica rizomórfica da qual Deleuze e Guattari criaram tem a ver com os
princípios: conexão e de heterogeneidade; multiplicidade; ruptura a-significante. O rizoma não é
fixo, ele “pode ser rompido, quebrado em lugar qualquer” [...] compreende linhas de
segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado”
(DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 18).
Além dos elementos rizomórficos acima, inclui-se o princípio de cartografia ou de
“decalcomania”. Tal assertiva nos ajuda a pensar a escolha do método cartográfico utilizado na
pesquisa com as poéticas orais. De acordo com Deleuze e Guattari (1995, p. 21) o “princípio de
cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural
ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda”.
O conceito de cartografia formulado por Deleuze e Guattari (1995 p. 21) surge como o
princípio do “rizoma” que está “inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no
real”. Desse modo, desloca-se do lugar comum para um “entrelugar” 8, posição movediça para
adentrar na “imensidão” do Outro. O que promove o sentindo à prática cartográfica é o
reconhecimento do “Outro” no processo, fruto da relação do eu  outro: “Não somos mais nós
mesmos. Cada um reconhecerá os seus (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 11).
A cartografia atesta um princípio “rizomático” e “fractalizado”, imbricado nas relações da
ciência com o saberes, sem jamais atribuir juízos de valor às dicotomias entre “erudito e
popular”. Ao estreitar as bases do conhecimento, a cartografia exercita uma correspondência
entre as artes, entre o homem e o cotidiano. No entender de Rolnik (2011, p. 23),
O termo “entrelugar” é usado por Silviano Santiago em seu estudo “O entrelugar do discurso latino
americano” (1978), com o objetivo de repensar a forma que é entendida a cultura e a identidade brasileira.
8
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o cartógrafo se incumbe de “dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às
linguagens que encontra, devore as que lhes parecerem elementos possíveis para a
composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um
antropófago.
Jerusa Pires Ferreira (2007), durante entrevista concedida ao GT de Literatura Oral e
Popular, de Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística
(ANPOLL), discorre sobre o sentido da prática cartográfica: “cartografar significa recuperar
elementos fundamentais para a explicação dos fenômenos da cultura, do social, do geográfico, do
código, eu diria que esses mapas são cosmográficos também”. Um dos exemplos citados por
Ferreira (sobre o exercício da cartografia) se dá através da recolha dos textos do imaginário
amazônico, a partir do projeto IFNOPAP (Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares
da Amazônia), coordenado pela professora Maria do Socorro Simões da Universidade Federal do
Pará (UFPA):
ao longo desses anos fomos pensando essas viagens e essas viagens foram sugerindo
cartografias, foram sugerindo apreensões, foram sugerindo métodos e até um método
famoso, nessa viagem nossa que se tornou famoso que foi aquele das escapadas,
escapadas significava ir descobrir novas coisas quando o navio parava e dentre essas
novas coisas, pessoas, objetos, arquiteturas, indícios, signos, se fosse no Xingu, fosse no
rio amazonas, no rio Guamá, por onde nós andamos.
A obra Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura
expande o conceito de cartografia. A cartografia pensada por Barbero (2002, p. 12) propõe a
seguinte interrogação: “quem disse que a cartografia só pode representar fronteiras e não
construir imagens das relações, dos entrelaçamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos?”
Todavia, o sentido da prática cartográfica é acompanhar eventos em curso, ao mesmo tempo atar
e reatar os fios que compõem as etapas da pesquisa, mais que isso, é fazer o caminho inverso do
conhecimento, romper fronteiras do estabelecido, ir ao encontro de novas formas de enxergar o
mundo, isto é, perceber que acima de tudo, as fronteiras da ciência se “solapam”, se “despregam”
dos velhos continentes que teimam em ver o todo sem a parte e a parte sem o todo.
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Fernandes (2011) ao tratar da abordagem cartográfica critica a visão diacrônica dos estudos
literários e o ensino da disciplina literatura. Conforme o autor, a poesia oral tem ficado há muito
tempo relegada pela teoria da literatura responsável, muitas vezes, pela subalternização e
folclorização da produção poética oral:
a historiografia literária brasileira, com sua perspectiva diacrônica, ainda não conseguiu
conceber uma narrativa que interpretasse a poesia oral como um texto poético, para além
do folclórico, ou como uma paraliteratura que, apenas, serve de base para a grande obra
literária (FERNANDES, 2011, p. 150).9
A noção de paraliteratura tem a ver com o fato de as produções orais terem sido relegadas,
deixadas à margem do sistema literário, e, sobretudo, pensadas na esteira de uma forma de poesia
inferior como ainda fazem os defensores do grande pensamento canônico formador de opiniões
excludentes de outras manifestações de linguagem. Entende-se que através da abordagem
cartográfica, encarada enquanto metodologia para o estudo das poéticas orais, o mapa se torna
mais aberto para as particularidades, vistas com outra lógica do fazer científico.
Ao lidarmos com a memória estamos lidando com o plano subjetivo do narrador – pausas,
silêncios, lacunas, entonações, expressão fácil e performance corporal são elementos
fundamentais a serem observados. Esses elementos semânticos não podem passar despercebidos
diante do olhar do transcritor. Na passagem do oral para o escrito muita coisa se perde (dada a
impossibilidade da tradução) uma vez que o transcritor lida com a voz e o corpo em movimento.
Ao trabalhar com texto poético o transcritor deve entrar nesse mundo da passagem para o
poético, permitir-se entrar pelas da imaginação – mundo habitado por poetas, sábios, duendes,
bruxos, encantados, cantadores e narradores em geral – quase sempre, imersos em outra
[i]realidade tão diferente, muitas vezes, do mundo palpável do pesquisador.
Como já foi dito, o transcritor deve atentar para a questão da performance da voz, pois
diante do material narrado ocorre o “momento em que uma mensagem poética é simultaneamente
transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 1993, p. 295).
Daí a necessidade do olhar sensível do ouvinte para detectar os turnos de linguagem poética
em meio ao material coletado. A recepção do texto poético é o efeito estético compreendido e
9
Bella Jozef (2006) discorre sobre esse conceito em A máscara e o enigma, assim expõe: “no âmbito literário,
desenvolveu-se a chamada ‘paraliteratura’, com vasto campo de ação, e o fazer artístico viu-se num impasse”.
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observado em face do narrador, pois se trata de uma poética instaurada na voz em presença,
assim descreve Zumthor (2000, p. 59): “A performance é então o momento de recepção –
momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido”.
Seguramente, a performance envolve a relação “eu-outro”, os movimentos do corpo vibram
na potência do outro num processo dialógico ativo. Veremos novamente essa definição proposta
pelo mesmo Zumthor (2010, p. 217) na obra Introdução à poesia oral: “A oralidade não se reduz
à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós,
se endereça ao outro, seja um gesto mudo, um olhar [...] Os movimentos do corpo são assim
integrados a uma poética”.
A etapa da transcrição não pode ser negligenciada, conclui-se neste momento, um dos
momentos fundamentais da pesquisa. A transcrição gera os dados e as categorias de análise.
Entender o material gravado em áudio previamente como a matéria que dá vida ao texto oral
depende da forma como este é agenciado e atualizado pelo transcritor-ouvinte, depende inclusive
de sua visão particular de mundo, pois este imprime também as suas marcas pessoais na forma de
transcrever e compreender os múltiplos significados narrativos.
A transcrição dos textos orais não são os mesmos modelos levados em conta pela
transcrição fonética realizada pela linguística. Alcoforado (2007, p. 4) afirma que “o texto
poético oral não se restringe a um contexto enunciativo exclusivamente verbal. Aspectos
translinguísticos, específicos do discurso oral, associam-se à voz para lhe dar mais concretude”.
A autora chama a atenção para o acontecimento performático do ato narrativo, como “os gestos, a
dicção entonacional, as pausas, a mímica facial, e os movimentos do corpo, até mesmo o estímulo
da plateia, que não reduzem a oralidade à ação exclusiva da voz”. Assim, se forjam os elementos
constituintes da performance a ser decodificado pela tarefa do transcritor.
A dificuldade de transferir-se para a escrita a diversidade de signos sonoros e gestuais,
que se constelam no momento da performance, leva a simplificações de entendimento e
a preconceitos de julgamento, quanto ao valor poético do texto oral, quase sempre
confundido com a versão transcrita do texto gravado. Por isso o transcritor precisa ter
sensibilidade para perceber não apenas as variações linguísticas lexicais, morfosintáticas
e fonéticas, mas também outros aspectos presentes no texto gravado tais como os
silêncios, as pausas, mas sobretudo os procedimentos que exploram elementos
prosódicos transformando em imagens verbais as imagens auditivas, expressas por meio
de sequências fônicas imitativas – as onomatopeias (ALCOFORADO, 2007, p. 5).
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Atrelado à dificuldade traduzir para o escrito os elementos da prosódia e a habilidade
fidedigna de não deixar esvair-se o componente poético que dá vida ao texto oral. Sendo que cada
narrador imprime sua marca individual e particular dos elementos gestuais, corporais e
expressivos, de modo geral, cada pessoa imprime seu ato performático espontâneo. Como não os
componentes do poético oral durante a passagem para o texto escrito?
Esses fatos sonoros, aparentemente desprovidos de significado, agrupam-se, aliteram-se
em correspondências imitativas bastante expressivas, ganhando força de palavra,
reforçando, por vezes como significante, significados suplementares ao signo poético.
As onomatopeias são quase sempre criações espontâneas motivadas por associações
sonoras imitativas buscando certa aproximação com o significado (ALCOFORADO,
2007, p. 5).
O sentido da busca por uma transcrição eficiente ancora-se no caráter ético e no
compromisso com o objeto de pesquisa, diante do compromisso social com a palavra do narrador
e, sobretudo, com a permanência e transmissão da memória diante do material narrado, o registro
escrito se encarregaria desse guardado ao alcance das gerações posteriores.
Desdobramento do exercício cognitivo, capacidade decifrável de enigmas, momento lúdico.
A análise e a interpretação só se concretizam, de fato, quando ocorre um letramento específico
acerca do objeto. Muitas vezes, todas as etapas ocorrem dentro do esperado, no entanto, cabe ao
pesquisador desenvolver sua habilidade interpretativa frente aos indícios, sinais e achados.
Momento solitário. Trabalho de arqueólogo. Ninguém mostrará o verdadeiro caminho, de certo,
ele não existe. A errância é a bagagem do viajante. Nestes termos, o pesquisador envereda por
suas próprias trilhas, caminhos e escolhas. Não há uma receita pronta ou fórmula exata, cada
objeto demanda especificidade, hipóteses e questionamentos. O objeto é único em sua inteireza e
chama para si teorias, método e abordagem.
O pesquisador deve ouvir suas vozes internas. O que mais lhe chama atenção para
determinado ângulo? Muitos livros de metodologia científica já foram escritos, pensando talvez,
na especificidade dos métodos. Podem e devem ser consultados, aliás, nos ajudam a tatear
caminhos e respostas. A leitura de manuais científicos até sinalizam caminhos e sugerem
escolhas, mas nem sempre aplicáveis em tudo. As angústias e a falta de respostas emergem
naturalmente. De alguma forma a inquietude provoca a perturbação do estado das coisas. Mostra
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que alguma coisa aconteceu. Não existe pesquisa sem inquietação, se não há inquietação não há
pesquisa, pois na certa, não temos mais questionamentos e tudo está muito bem resolvido dentro
de nós. Na pesquisa ocorre o contrário.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
VOZES POÉTICAS: performance e memória nas narrativas cotidianas do Rio do Engenho
(Ilhéus/ Bahia)
Gisane Souza Santana1
Maria de Lourdes Netto Simões2
RESUMO: Este estudo objetiva analisar as narrativas orais do Rio do Engenho, que são produzidas no cotidiano da
comunidade, nas suas práticas simbólicas. Trata-se de um estudo desenvolvido interdisciplinarmente no espaço da
Literatura Comparada onde são estabelecidas convergências conceituais da teoria e crítica literárias, da nova história
e dos estudos da cultura. Parte-se de uma pesquisa bibliográfica, relacionando questões sobre performance
(ZUMTHOR, 2000; FERNANDES, 2002; ALCOFORADO, 2002), memória (NORA, 2004; HALBWACHS, 2006;
FERREIRA, 2004; POLLACK, 1989) e práticas simbólicas (CERTEAU, 1998; IPHAN, 2000.). Por meio da
pesquisa de campo, foram feitas a recolha dos relatos e depoimentos através do método da história oral
(PORTELLI, 1989). O tratamento desses relatos e depoimentos foi fundamentado na concepção de testemunho
(MOREIRAS, 2001; LEMAIRE, 2002) enquanto formas primárias de manifestação cultural. A pesquisa permitiu
verificar que as narrativas orais podem ser entendidas como uma síntese de processos sociais e culturais, de um
passado compartilhado pela comunidade; podem ser consideradas como representação das práticas cotidianas, das
tradições e vivências coletivas. Assim, essas narrativas são expressões literárias consideradas lugares de memória
(NORA, 2004) por suas referências simbólicas e culturais, e por revelarem momentos de convivências, integração
social e sociabilidade.
Palavras-chave: Performance. Memória. Práticas cotidianas. Literatura. Rio do Engenho.
RÉSUMÉ: Cette étude a pour but d’analyser les récits oraux du Rio do Engenho, produits au quotidien de cette
communauté dans ses pratiques symboliques. Il s’agit d’une étude interdisciplinaire dans le cadre de la Littérature
Comparée où les convergences conceptuelles de la théorie et de la critique littéraire, de la nouvelle histoire et des
études culturelles. Le point de départ se reporte aux questions sur la performance (ZUMTHOR, 2000;
FERNANDES, 2002 ; ALCOFORADO, 2002), la mémoire (NORA, 2004; HALBWACHS, 2006 ; FERREIRA,
2004 ; POLLACK, 1989) et les pratiques symboliques (CERTEAU, 1998 ; IPHAN, 2000). La recherche sur le
terrain a donné un reccueil de récits et de témoignages à travers la méthode de l’histoire orale (PORTELLI, 1989).
Le traitement de ce matériel a été basé sur la conception de témoignage (MOREIRAS, 2001 ; LEMAIRE, 2002) en
tant que forme primaire de manifestation culturelle. La recherche a permis de constater que les récits oraux peuvent
être compris comme une synthèse des processus sociaux et culturels, d’un passé partagé par la communauté. Ces
récits peuvent être considérés comme une représentation des pratiques quotidiennes, des traditions et d’expériences
collectives. En outre, ces récits sont des expressions littéraires considérées comme des lieux de mémoire (NORA,
2004), par ses références symboliques et culturelles et par le fait de réveler des moments de convivialités,
d’intégration sociale et de sociabilité
Mots-clés : Mémoire. Performance. Pratiques quotidiennes. Rio do Engenho
Contar é muito dificultoso, não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que
têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho
que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavando, só mesmo sendo coisas de
rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que
outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. De cada vivimento
1
Mestranda em Letras, na Universidade Estadual de Santa Cruz. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Grupo Identidade
Cultural e Expressões Regionais - ICER/DLA/ UESC. E-mail: gisa_santana@yahoo.com.br
2
Doutora em Estudos Portugueses e pós-doutora em Literatura Comparada e Turismo Cultural, pela Universidade
Nova de Lisboa. Pesquisadora do Grupo Identidade Cultural e Expressões Regionais - ICER/DLA/ UESC.
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que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era
como se fosse diferente pessoa.
Guimarães Rosa
Como bem diz Guimarães Rosa, contar histórias não é tarefa fácil. É ofício para vozes
poéticas que transformam o tempo vivido em tempo pensado e narrado, através dos fios da
memória. Tal qual um artesão, essas vozes, na trama do tear, tecem paisagens cotidianas de suas
lutas, nos trânsitos da casa e da rua e constroem imagens, expõem odores, sabores e sonhos,
entrelaçando os fios do tempo. Sua arte de narrar lhe vem das experiências cotidianas da vida; sua
lição, elas extraem da própria dor; sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo.
A habilidade de tecer histórias, ao longo do tempo, se fez necessária para a sobrevivência
dos grupos sociais; tal prática tornou comum a compreensão de que dela resultam as tramas
simbólicas, orientadoras da vida em coletividade. É por meio do exercício dessa capacidade, que
os humanos deixam suas trilhas para as gerações futuras. Essas vozes poéticas, protagonistas
anônimas da história, representam a memória dos tempos, como observou Benjamim (1989, p
57), “a experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores”.
Trata-se de vozes que rompem silêncios e desvelam aspectos e elementos de lugares obscurecidos
pela memória oficial. Guardadas em trechos diversos, as narrativas cotidianas, apoiadas na
memória, são tecidas diariamente para o grande continuum da transmissão oral.
No Rio do Engenho – distrito de Ilhéus desde o tempo colonial, quando o atual município
foi a Capitania São Jorge dos Ilhéus – as narrativas fazem parte de uma herança cultural de
tradições e costumes que estão guardadas na memória de alguns dos habitantes da região. Assim,
por meio das festas, ofícios, rezas, danças e artesanatos os moradores procuram em seu percurso
histórico articular saberes, corroborando a manutenção da vida social e cultural do distrito. O
nosso interesse por essas narrativas, justifica-se devido a não haver, até o momento, nenhuma
recolha sistematizada de tal expressão literária. Nesse sentido, a recolha e análise dessas
narrativas poderão contribuir para a preservação da expressão literária e da memória dos
contadores de história da localidade.
Para irmos ao encontro das vozes poéticas e de suas narrativas na referida comunidade,
foi necessária a adoção de procedimentos metodológicos para identificação, coleta e registros das
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narrativas orais do Rio do Engenho. Com o objetivo de melhor entender o modo de viver e morar
da comunidade, a via escolhida, por ser aquela que melhor nos conduziu às casas de farinha, aos
ramais, ao Rio Santana e ao encontro dos heróis anônimos, segue os princípios da pesquisa
bibliográfica e pesquisa de campo, essa última feita através de entrevistas conversacionais
(ANDRADE, 1999).
A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida interdisciplinarmente no espaço da Literatura
Comparada em sua feição contemporânea: convergências conceituais da teoria e crítica literárias,
da Nova História e dos Estudos da Cultura. Com base na visão teórica referida, partimos para a
pesquisa de campo. O itinerário desenvolvido, a partir desse andamento, constou de uma
sucessão de passos, os quais nem todos foram previamente definidos e planejados, pois na
verdade, muito se construiu à medida que a pesquisa ia se realizando, no entendimento de que a
dinâmica das entrevistas sinalizaria demandas.
As entrevistas foram feitas, através do método da história oral (PORTELLI, 1989) nos
momentos descontraídos, procurando-se interferir o mínimo possível na exposição das narrativas,
a fim de que os narradores pudessem expressar livremente a história do lugar, as suas ideias, os
seus costumes a sua memória cultural, ou seja, as histórias de vida e as narrativas da vida
(TODOROV, 2006).
Procuramos registrar o discurso dos narradores, a fim de preservar o máximo possível as
marcas da oralidade presentes no cotidiano, proporcionando ao leitor o contato com essa
literatura que representa a memória cultural daquela comunidade. Mantivemos o colorido do
palavreado pessoal de cada narrador, pois “trata-se de um primeiro e decisivo esforço de traduzir
a linguagem escrita daquilo que foi gravado” (ALBERTI, 2010, p.174). Depois da conferência do
texto transcrito, passamos para a copidescagem, seguindo as orientações de Alberti (2010, p.214)
O copidesque não modifica a entrevista: não interfere na ordem das palavras, mantém
perguntas e respostas tais quais foram proferidas, não substitui palavras por sinônimos,
enfim respeita a correspondência entre o que foi dito e o que está escrito.
Tendo em vista as normas padrões da escrita, fizemos algumas adaptações na transcrição
das narrativas para este trabalho. Entretanto, respeitando os diversos falares dos narradores,
conservamos a linguagem simples e poética, com alguns desvios, como “tô”, “falano”,
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“escutarum”, “virum”, e outras marcas da oralidade. Em relação à transcrição dos recursos
performáticos, com as mudanças tonais da voz, o uso de repetição, o silêncio repentino –
elementos inerentes à oralidade, esses e outros elementos, pelas próprias peculiaridades dos
discursos, procuramos expressar através da pontuação.
Com base no exposto, o estudo sobre as narrativas orais do Rio do
Engenho foi
estruturado em duas seções: a primeira discorre sobre as narrativas do cotidiano do Rio do
Engenho; a segunda discute sobre a importância dos recursos performáticos para o sentido e
significado ao que se narra. Assim, através da pesquisa, concluímos que as narrativas orais do
Rio do Engenho não podem ser descaracterizadas ou esquecidas, uma vez que revelam o modus
vivendi dos moradores, mantendo formas de relacionamento entre homens e o lugar em que eles
habitam. Dessa maneira, buscamos uma forma de contribuição para dar visibilidade às vozes
anônimas e contribuir para transformá-los em sujeitos sociais a serem reconhecidos pela
sociedade como parte integrante do patrimônio cultural de Ilhéus.
1. As narrativas do cotidiano
O conteúdo das narrativas orais são fragmentos do cotidiano, visíveis entre fatos
lembrados e fatos vividos pelos moradores e, como registros de experiências vivenciadas, são
bens simbólicos - patrimônio imaterial (IPHAN, 2000; LONDRES, 2004). Desse modo, a
singularidade das narrativas não se limita apenas ao seu valor estético; mas, também, em sua
força representativa, ao valor sociocultural que as revestem, pois esses evidenciam um ethos
cultural característico do lugar. As memórias coletivas se materializam através das práticas
simbólicas (CERTEAU,1998) que, ao serem exteriorizados, agem como um meio de socialização
nas
atividades coletivas desenvolvidas pelos grupos sociais. Esse patrimônio imaterial
é
construído a partir da memória coletiva, portanto inclui-se na categoria lugar de memória
(NORA,1993).
Nessas narrativas, o cotidiano se transfigura em espaços imateriais - lugar social, no
dizer de Ricoeur (2007) - como paisagens visuais, sonoras e olfativas - uma cartografia de sons,
ritmos e cores ,que povoam o imaginário constante do Rio do Engenho. Dessa maneira, é no
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invisível cotidiano do Rio do Engenho, que conhecemos as crendices, os saberes, os fazeres, as
técnicas e o vocabulário dos moradores, evidenciando por meio dos modos de fazer e morar, a
base da organização social da comunidade. Tal organização se enquadra no modelo de ação
tradicional, em que o cotidiano é marcado por ações de sociabilidade, proximidade e
solidariedade – laços que são estreitados todos os dias entre as pessoas e o espaço habitado. Os
elementos materiais como as barcaças, as casas de farinha, a igreja, o rio, as matas, o riacho e o
mangue; e também, os imateriais - as rezas, as técnicas, celebrações – compõem o patrimônio
simbólico, e fazem do distrito um lugar social (RICOEUR, 2007).
Assim, os saberes e fazeres apresentam a maneira de viver, determinando as
representações sociais que, por sua vez, definem a identidade coletiva dos habitantes do distrito
rural. As experiências individuais e coletivas dessas vozes poéticas caracterizam noções de
pertencimento coletivo, uma vez que integram o acervo do imaginário cultural dos povos, que
atravessam os tempos. Para Pollak é a memória herdada – fenômeno construído no âmbito
individual e coletivo. A memória herdada apresenta-se na interação entre memória e sentimento
de identidade entendido como “ imagem de si para si e para os outros” (1992, p.204) que
desenvolve a continuidade e a coerência da pessoa e/ou do grupo.
No livro Armadilhas da Memória (2004), a pesquisadora Jerusa Pires Ferreira traz a
memória como temática central para discutir as teias de relações que envolvem os processos
culturais de um lugar social. Para a pesquisadora, a memória, em certos espaços, se configura
como alicerce que constrói e desconstrói narrativas, dando vez a outras possibilidades de
renovações diversas. Nas entrevistas realizadas, as narrativas sobre as práticas simbólicas eram
sempre interpostas pela referência aos espaços de: casa de farinha, rio Santana, matas, roças,
barcaças. Havia uma relação entre os fatos narrados e os espaços em que esses fatos foram
vividos. De tal modo, esses espaços tornam-se um ponto de evocação do passado.
Numa conversa calorosa com seu Antônio, através da memória herdada, ele explica as
etapas da colheita, secagem3 e beneficiamento do cacau
Eu sou trabalhadô rural, num sabe? Meu pai e meu avô que me ensinô a cultivá o cacau
3
A região é bastante conhecida pela tradição cacaueira, difundida por sua contribuição à economia nacional e
também pelo imaginário retratado na literatura produzida por Jorge Amado, Adonias Filho, Sosígenes Costa e outros.
Conferir a antologia “Esteja a gosto! Viajando pela Costa do Cacau em Literatura e Fotografia”, organizada por
Maria de Lourdes Netto Simões, 2007.
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O nosso cacau aqui é cultivado no sistema cabruca4
Tira cum podão. Faiz um mutuê... [pergunto sobre o que é um mutuê, e ele responde]
uma ruma de cacau, uma bandeira,
depois um grupo quebra, outro tira o cacau, coloca na prensa pra tirá o mel...é cum o
mel faiz licô, geléa, suco...[ depois de uma pausa, começa a falar sobre a secagem do
cacau] bota no cocho pra fermentá, depois bota os caroço na barcaça, pra tomá sol e vai
mexendo cum rodo, pra num ficá desidratada. Olhe [alerta seu Antônio] tem que passá o
rodo umas 6 veiz por dia, pra num tê mofo.. Num pode tomar nem chuva nem sereno. Se
chuver, fecha a barcaça. Se moiá o cacau num presta. Num pode tê mofo, nem sujera.
A gente pede a Deus e a Viugem Maria pra dá um tempo bom. Se tivé um tempo bom
seca cum 4 a 5 dias.
A gente aproveita tudo. A casca você pinica e bota no sol pra secá, aí fica a palha do
cacau. Ou vende ou bota na planta. O cacau de água [ cacau verde] faz salada. A polpa
faz suco e geléa. A sibira bota par secá, bota no fogo cum açúcar e faz doce. Faz
chocolate e doce cum as amêndoas.
[...]
Valte faiz muitos doces com cacau, ele aproveita tudo, até a folha. Aqui tem uma fábrica
de chocolate de D. Diva. O chocolate é feito cum o cacau daqui.
(Antônio dos Santos, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013)
Nessa narrativa, seu Antônio conta sobre os seus conhecimentos acerca de um importante
elemento da cultura regional: o cacau. Todo processo de beneficiamento do cacau ele aprendeu
com seu pai e avô, que eram trabalhadores rurais. Esse modo de fazer difundiu informações sobre
um conhecimento tradicional na região de Ilhéus e Itabuna. Assim, existe uma gama de saberes e
fazeres ligados à produção de cacau que somente há algumas décadas vem ganhando
reconhecimento no âmbito do delineamento de uma imagem de identidade cultural no território.
Dentre eles, podemos listar o licor de cacau, o mel de cacau, o e a geléia da polpa do cacau, com
destaque para os tabletes de cacau e amêndoas torradas com açúcar orgânico – doces artesanais,
desenvolvidos por alguns moradores do Rio do Engenho.
No distrito, vivem pessoas cujo modo de vida é orientado pelos conhecimentos
tradicionais; uma localidade em que os mais velhos são responsáveis por transmitir, pela tradição
oral, seus saberes e fazeres. Nesse entendimento, existe uma memória compartilhada por diversos
grupos de moradores, e é o conteúdo dessas memórias que compõe os significados do cotidiano.
Portanto, o cotidiano constitui-se como lugar no qual as pessoas “produzem práticas culturais
próprias, com isso, transformam o conteúdo cultural” (CERTEAU,1998, p.45)
Termo regional originário do verbo “brocar” que significa corta arbusto para plantar cacau, caracterizando o cultivo
de cacau em conjunto com a Mata Atlântica. O sistema cabroca fundamenta-se no modelo de desenvolvimento
sustentável.
4
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O processo histórico do Rio do Engenho e do seu entorno resultou da hibridação das
etnias indígena (Tupiniquim e Aimoré), africana5e portuguesa. A partir dessas etnias se
constituíram as práticas simbólicas,reunindo num mesmo espaço sujeitos, culturas e costumes
diferentes, instituindo modos de vida particulares. Desse processo histórico que os sujeitos
constituíram no distrito, as narrativas cotidianas emergem como um lugar onde as práticas
simbólicas podem ser observadas de forma mais aguda; lugar de história, experiências coletivas e
de construção do passado, portanto, lugar de memória.
No contexto do distrito rural, ainda é comum a figura do curandeiro, como o único
capaz de curar determinados males para os quais a ciência não oferece intervenção. Cascudo
(2000, p. 270) define-o como: “sabedor de segredos para dirigir e tornar alguém invulnerável
usando apenas a força de formas oracionais”. Na narrativa para vento caído e quebrante, há
símbolo dos elementos do catolicismo (pai nosso, ladainha, ave-maria e salve maria),
do
candomblé (as folhas usadas durante a benzeção são consagradas a Ossaim – deus da folha e das
ervas), e dos índios caboclos6 – conhecedores da medicina local. Portanto,
essa narrativa
apresenta traços de uma hibridização cultural. Claramente, aspectos da cultura portuguesa
aparecem fundidos com a cultura africana e indígena.
[ com o ramo verde na mão, D. Tereza diz:]
Reza pra vento caído e quebrante
Deus quando no mundo andô todo mal ele curô, espiela e arca levantô. Eu levanto a
espiela de [diz o nome da pessoa] pelo vosso divino amor.
[ Reza em voz baixa outra oração que não pode ser transcrita, e depois diz;}
Reza dois Padre-nosso e oferece a deus da mata e os cabocos.
(Tereza, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013)
O curandeiro adquire forças porque sua cura é uma influência dos caboclos da floresta. É
ele que expulsa o espírito e as doenças; liberta a alma e torna são o corpo das feridas, dos
quebrantos, dos ventos caídos, do mal olhado, frieiras e peito aberto. Assim, o curandeiro é
coautor da intervenção.
5
Ver livro MARCIS, Therezinha. Viagem ao Engenho de Santana. Ilhéus: Editus, 2000.
“Os caboclos são os espíritos donos da terra e representam os índios que aqui viviam antes da chegada dos brancos
e negros” (SILVA, 1994,p.57)
6
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Esse ofício de Tereza é dom concedido por Deus:
Foi num sonho que eu recebi o comunicado, sabia? Eu dormia e
E a voz me chamava... Falarum pra mim no sonho... Mas eu falei... Mas como eu posso
ajudar? Aí a voz falô a oração no sonho [faz uma pausa de uns cinco minutos, como se
quisesse lembrar de outros detalhes, e diz:]
Eu aprendi assim. Eu tenho essa obrigação até o fim da vida
Eu num sei explicar, porque não é ensinado por pessoa, vem do dom da pessoa [...]
ninguém sabe essa oração. Meu pai nun sabia.
Já ajudei muita gente aqui, no repartimento, na tranquilidade, esse povo todo vem aqui
pra mim rezá.[...]
[ depois de um tempo em silêncio, D. Tereza diz:]
Inda tenho muita história prá conta.
(Tereza, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013)
Depois da reza, D. Tereza afirma que não basta ela ter fé no ato reza, mas que tal
sentimento deve estar presente naquele que recebe a benzeção. A afirmação da curandeira ratifica
o caráter mágico do ato simbólico, expresso por Lévi-Strauss (1975), que diz que a eficácia da
magia implica na crença da magia. Os curandeiros falam sobre a melhora na qualidade da saúde
daqueles que atendem; os ajudados narram acontecimentos que ratificam a competência do
atendente e, inclusive na comunidade, as pessoas se reconhecem, indicando os cuidados possíveis
e atestando a idoneidade de quem os pratica.
A narrativa de D. Tereza delineia um retrato histórico-cultural de um povo e vincula o
passado ao presente. O passado ecoa na evocação das lembranças do outro e o presente se revela
na natureza criadora da curandeira, que narra os acontecimentos, repassando um momento
vivenciado por ela. Ao repassar o seu passado, Tereza comprova que a memória oral é lugar de
construção da identidade cultural. Na narrativa da curandeira, a performance foi um instrumento
essencial para contar sobre seu dom; as mudanças tonais da voz, o olhar dirigido ao ouvinte, as
expressões faciais pontuando cada momento significante e os movimentos das mãos, conferiam
autoridade ao seu discurso.
2 A arte de narrar
A arte de narrar histórias, causos e acontecimentos requer não apenas o saber narrar, mas
o como narrar. Os gestos, as expressões, os olhares furtivos, as mudanças rítmicas e tonais da voz
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são alguns dos muitos recursos de que se vale o depositário da memória para dar sentido e
significado ao que se narra. Dessa maneira, pode-se dizer que o relato oral é constituído no
momento da performance “momento em que a mensagem poética é transmitida e percebida”
(ZUMTHOR,1993, p 295).
São histórias em que os narradores são as personagens principais, testemunhas ou
ouvintes dos episódios narrados, conforme podemos observar no relato da Senhora Luzia,
moradora do Rio do Engenho há 40 anos.
Meu pai era pescador. Criou nois tudo (oito filhos) pescando. Era uma época de muita
fartura [ no semblante uma expressão de felicidade].
O rio era limpo dava muito peixe... [ D. Luzia aponta para o rio]. a gente bebia agua,
lavava ropa... era muito bom!
Meu pai dizia que aqueles que respeitavam as águas pescavam muito peixe, mas o que
não respeitava ela, [a Mãe D’Agua], enganava. A Mãe D’agua aparecia muito aqui, era
bonitona, cabelos aqui ó [mão a cintura para indicar o tamanho dos cabelos da Mãe
D’Agua] ela aparecia sentada na pedra, cantava uma cantiga bunita. Muitos pescador
já se afogarum porque foram atrás desse canto...é verdade!
Hoje ela num aparece mais não...[balança a cabeça e faz alguns minutos de silêncio]
num sei porquê[...]
Ele contava que aparecia muitas almas nesse Rio do Engenho. E num era mentira, não.
Aqui teve muito sangue derramado dos escravo... de noite, quando estava no rio
pescano, ele e finado Zezinho (que Deus o tenha) cansava de ver uma mulher de branco
sentada chorando; ouvia assobios, gemidos, via muita visagem... os escravos sofrerum
muito aqui. Aí ele rezava o creiu em Deus padi, é uma oração muito forti! Crei em Deus
padi todo poderoso, craidor...e assim ia.
E rezava ave-maria para alma dos escravos
[nesse momento, D. Luzia faz o sinal da cruz, e levanta o olhar para o céu, pedindo
proteção]. Ah! A gente todo sábado às 5 da manhã rezava o santo ofício. – também pela
almas. Por isso meu pai não tinha medo. A gente é que tinha.
Até hoje rezo três ave-maria, toda segunda feira, que é dia das alma.
(Luzia Santos, entrevista concedida em 13 de dezembro)
À medida que ia contando os fatos, os sentimentos de D. Luzia oscilavam – alegria,
tristeza, saudade. O semblante da narradora, ao contar suas histórias, evoca uma saudade. Os
gestos feitos por D. Luzia aparecem como um texto paralelo; para o que a voz não dá conta de
narrar “[...] gesto e voz; regulados um pelo outro, asseguram uma harmonia que nos transcende
[...] o elo que liga a voz e o gesto é de ordem funcional, resultando de uma finalidade em
comum” (ZUMTHOR, 1993, p.48). A palavra então é corporificada. Os braços acompanham o
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rumo da história e dão o tom da grandeza do evento narrado, as mãos também falam. Todas
essas expressões parecem dar vida à narração performática7 de D. Luzia.
A narradora, ao assumir a responsabilidade de contar histórias, empresta seu corpo e sua
expressividade para a realização do texto, que se materializa por meio da performance; “voz e
gestos, faz a coreografia de suas narrativas. A voz do poeta, viva na garganta, presente e até
vibrante no silêncio ruidoso de seus poemas, fala a linguagem do corpo. Voz é também corpo.”
(MATOS, 2007, p.150) [grifo nosso]. Dessa maneira, o depositário da memória assume a
responsabilidade pelo que é dito e como isso é feito. Ele atua como vínculo entre passado
(tradição e experiências coletivas) e o momento presente:
desde que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos
parcialmente, estatuto de símbolo. O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz
que vem de outra parte, ele a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda
“argumentação” suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta, seu lugar, fora
da língua, fora do corpo. (ZUMTHOR, 2010, p.15-16)
Em muitas ocasiões, ao presenciar as narrativas performáticas dos moradores do rio do
Engenho, tivemos a sensação de sermos levadas para um lugar fora do espaço da casa,
adentramos no universo das histórias. Isso demonstra o status simbólico que tem a voz em
performance.
Esse modo particular de narrar adotado pelo narrador performático é responsável por um
movimento regular que caracteriza a narração
Esse movimento pode ser percebido na musicalidade da linguagem; na entonação de
palavras e frases, exclamações e interrogações; na encenação que o narrador faz das
vozes de suas personagens. Tais formas de movimento emprestam à narração um ritmo
que lhe será próprio. O ritmo é objetificado pelo narrador figurado na escrita, mais do
que por suas palavras, embora sejam as palavras que sugiram os movimentos do corpo,
pelo efeito icônico que provocam. O corpo figurado do narrador, ao realizar os
movimentos, revela-nos, através de determinados gestos, a estrutura e a textura das
imagens verbalmente evocadas. (MOREIRA, 2000, p. 167)
No relato de D. Luzia, essa narração performática acontece mediada também pela
rememoração, que combina tempos e vozes distintas na enunciação, no corpo em presença desse
7
Ver o artigo Escrita e Performance na Literatura Moçambicana, de Terezinha Taborda Moreira.
http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta08/Conteudo/N08_Parte03_art07.pdf
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depositário da memória. Desse modo, a memória funciona como uma espécie de operadora das
relações dialógicas, das temporalidades diversas, permitindo aos narradores inscreverem, na
enunciação, esse mosaico de vozes e essa série de gestos.
Tal relato é totalmente dialógico e plurivocal, pois ela enuncia palavras suas e menciona
palavras de outros. Assim, o texto oral se articula a partir da figuração da voz em sua
historicidade, ou seja, na relação de trânsito que a voz estabelece. Diálogo em ato, e ato de
diálogo, o texto encena a vocalidade (ZUMTHOR, 1993, p. 161) em seu sentido de abertura para
o mundo, para a vida. A elocução vocalizada do narrador configura o que Paul Zumthor nomeia
de gestus8, que se refere a um comportamento corporal num todo, compreendendo risos,
lágrimas, espasmos, um comportamento que constitui um fator necessário da performance
poética (ZUMTHOR, 1993)
Na reflexão sobre a narrativa, percebe-se que D. Luzia atesta a veridicidade do fenômeno
sobrenatural, além de revelar seu conhecimento sobre as suas experiências e as de seu pai com
as visagens. Seu discurso vai tecendo os fios da narrativa, ao tempo que apresenta elementos para
o entendimento delas. Entre eles, é o tempo noturno como significado de um momento próprio
para as aparições das visagens. Essa narrativa revela também o quanto a atividade da pesca
tornou-se uma alternativa econômica para população do distrito, além de ser reforço à
alimentação das famílias.
Para Chartier (1990), podemos compreender que as maneiras de perceber a realidade
social não são discursos neutros; determinam estratégias e práticas que tendem a estabelecer
autoridade, além de justificarem, para os indivíduos, suas escolhas e condutas. Nesse caso, as
criaturas incorporadas na tradição oral do Rio do Engenho estabelecem entre suas inúmeras
funções, maneiras de moldar certos padrões de caráter, a constituição e a reafirmação de valores e
ética, além de viabilizar um conjunto de histórias comunicativas para a vida em sociedade.
Partindo dessa premissa, pode-se dizer que, na transmissão de boca a ouvido, repassam-se valores
responsáveis pela estrutura social e pela tradição de um povo. Assim, as narrativas orais
constituem-se em instrumento de expressão identitária. Nesse entendimento, a memória é “um
elemento essencial da construção identitária” (LE GOFF, 1992, p. 24).
8
Segundo Moreira (2011) o gestus transforma a narrativa em performance, materializando, em letra
escrita, a performance oral dos contadores de histórias.
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Nas narrativas que trilham pelos caminhos da memória, é comum as histórias se darem
em razão de “fatos que assumem tamanho relevo para a pessoa que ouve que ela passa a contálos como se os tivesse vivido” (POLLACK, 1992, p.200).
Eu ainda escuto falar muito em lobisoni nessas bandas, até hoje; tinha um homem aqui
no Santo Antônio que virava. Ele mexia nas filhas, cê sabe, né?, num pode pai e filha.
Aí virava lobisoni... sempre na quaresma e no Natal ele aparecia e ficava rondando as
fazendas do Rio do Engenho. É verdade! [balança a cabeça].
Olha como fico arrupiada! Meu marido viu, correu atrás dele, mas não conseguiu
pegar. No outro dia ele viu o capim todo amassado das pisadas do lobisoni...
[ Dona Maria descreve como era o lobisomem]
O lobisoni era alto, cabeludo, tinha o pé grande, cheiro de enxofre. Aqui, no Rio do
Engenho, ele aparece sempre, pergunta à Maria [senhora que estava sentada ao lado
dela, no momento da entrevista].
Graças a Deus eu nunca vi.
(Maria Batista dos Santos, entrevista concedida em 13 de dezembro de 2013)
Nessa narrativa, o corpo participa do ato do dizer. A voz firme de D. Maria é realçada
com o olhar penetrante no ouvinte e os meneios da cabeça, que promovem a persuasão. Durante
a entrevista, Dona Maria aponta o conhecimento de seres fantásticos no Rio do Engenho sobre os
quais já ouviu falar através das narrativas contadas pelos mais antigos. De acordo com Cascudo
(2002), a metamorfose em lobisomem é constituinte do mito universal que chegou ao Brasil na
memória do colonizador, decorrente da cultura ibérica, na qual virar lobo significava um castigo
por alguma ofensa moral grave, como a relação libidinosa entre parentes consanguíneos. O
incesto simboliza a natureza animal do ser humano, seu impedimento explica a relação entre a
natureza e a sociabilidade. Violar esse princípio social determina outra ordem numa outra
dimensão, a punição por meio da transformação em bicho - lobisomem. Desse modo, os fatos
selecionados pela memória e narrados trazem consigo leituras e versões de mundo.
Na descrição das características do lobisomem, D. Maria apresenta detalhes minuciosos;
acaba revivendo a história vivida e contada pelo seu marido. O odor da criatura evidencia o
contato do marido de D. Maria com o lobisomem. Assim, o cheiro de enxofre atesta a existência
do ser encantado.
No momento da sua performance, ela enaltece não somente as suas
experiências de ouvinte, mas também a de terceiros – nesse caso, a do seu marido. Para
evidenciar a veracidade nesse fato, D. Maria conta com o testemunho de Maria, sua vizinha “ É
verdade, ele aparece sempre aqui, principalmente nas noites de lua cheia. Nas casa de farinha ,
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se tiver farinha torrada ele come muito” (Maria Silva, entrevista concedida em 13 de dezembro
de 2013).
Nesses relatos, os depositários deixam evidente, em suas performances, a preocupação
com a veracidade das narrativas. A performance se dá pela interação de uma série de elementos,
é a constituição de uma cena, cujo centro é o corpo e a voz: “a performance é virtualmente um
ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a
presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe” (ZUMTHOR, 2005, p.69).Há
necessidade de persuadir, de explicar a verdade dos fatos, ainda que as narrativas apresentem
personagens e situações fantásticas. O testemunho é um elemento importante na relação entre o
imaginário e a verdade, torna-se o componente essencial para atestar fidelidade aos
acontecimentos. Para o narrador, “o que importa é a realidade, a verdade das ações narradas;
função parecida com a que na Idade-Média tiveram gêneros literários tais como o exemplum e a
parábola [...]” (LEMAIRE, 2002, p. 110).
Nesse sentido, o patrimônio imaterial – o conteúdo da narrativa - e a memória oral não
abordam a totalidade do passado, mas os fragmentos escolhidos e ressignificados pelo presente.
Dessa maneira, a memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo
contínuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas” (THOMSON,1997, p.
57). Além de tal característica, a memória oral também possui um caráter ficcional que, de certa
forma, colabora para essa não totalidade. "Quando acreditamos evocar o passado há noventa e
nove por cento de reconstrução e um por cento de evocação verdadeira" (HALBWACHS, 2006,
p.43).
Nesse caso, é impossível uma lembrança que reproduza precisamente um fato ocorrido.
Partindo desse pressuposto, pode-se dizer que, para o depositário da memória, a sua história não
é mito, nem lenda,
é a sua verdade; isso porque o que se narra se mistura com a sua própria
experiência de vida. Esse modo de representação da realidade faz com que os depoentes
difundam o lugar de uma conexão das narrativas onde são, ao mesmo tempo, leitores e coautores
de produção de sentidos e significados.
Para Alcoforado (2008), estão associados à voz do narrador, vários aspectos
translinguísticos, específicos do discurso oral, como os gestos, dicção entonacional, mímica
facial, expressão corporal e o próprio estímulo da plateia, que não reduz a transmissão da
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mensagem exclusivamente à ação específica da voz. São expressões não verbais, que imprimem
mais força, vigor e realismo ao texto.
Observar a expressão tranquila da rezadeira Maria da Glória e o seu olhar fixo para o
horizonte, ao narrar as suas histórias de vida, é poder assistir a um espetáculo. O olhar da
rezadeira revela os gestos de leitura do mundo. A doçura de sua voz encanta o ouvinte, que
permanece atento a todos os detalhes da narrativa; A mudança no timbre da voz, sublinha certos
momentos da narrativa que nos leva a adentrar na veracidade da narrativas :
Aprendi a rezar as pessoa com minha vó e minha mãe – elas que me ensinarum. Antes
dela partir ela me ensinou. Eu ainda num ensinei a ninguém...só posso ensiná a alguma
pessoa se me sentí fraca (foi isso que minha vó ensinô)
Já rezei muitas crianças. Eu num tinha sussego, não. Era dia e noite, até domingo o
povo querendo reza. Era o meu ofício. Hoje eu quase num rezo mais, [a rezadeira faz
uma pausa] às vezes um chega e pede: “D. Maria da Glória reza aqui. Aí eu rezo um
pra tirar quebranto, mau olhado, bruxarias, essas coisas de esprito desgraçado... As
pessoas num acredita mais, sabe? [os olhos ficam marejados de lágrimas]
Todo menino que nascia aqui as mães trazia pra mim rezar...
[depois de um tempo em silêncio, D. Maria diz] Lembrar o que a gente viveu e
aprendeu é viver novamente experiências jamais esquecidas.
[...]
Certa vez nasceu uma menina mulher de uma cumade minha, a bichinha era bem
bunitinha. Apareceu alguém pra visita a criança. Pois bem, depois que a visita saiu,
essa menina choro, choro, choro [uem, uem, uem uem - imita o choro da criança]...
isso era mais ou meno dez hora da manhã! Atardinha levaru pra mim. Batero na porta
com muita força [olha para porta da frente e imita a batida] pá, pá, pá, pá pá, pá.
Ela ia morrê!
Passei uns chá e rezei, mas disse pra mãe: “Foi a mulher que butou olhado nessa
bichinha!” Ficaro assim, né?... Será? Vixe Nossa Senhora Aparecida! Isso tá com
muitos ano, mas nunca esqueci, esse menina tá é moça, mulher de filhos [expressão de
alegria]
(Maria de Glória Silva, entrevista concedida em 17 de dezembro de 2013)
Ao organizar os fragmentos de sua história de vida em texto a ser transmitido oralmente,
D. Maria, revisita seu passado por meio do exercício da recriação deste pela narrativa; e projeta
expectativas sobre dois aspectos: sociedade e saúde. Sua narrativa biográfica e memorialista é a
sua forma pessoal de agir sobre o mundo. Daí a perspectiva dialética da memória, ao mesmo
tempo em que molda a identidade é moldada por ela.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
A linguagem performática utilizada por Maria da Glória é um recurso usado por ela para
assegurar ao público-ouvinte o caráter verossímil. Em nome da verossimilhança9, os depositários
buscam no ato de narrar histórias do universo fantasioso um artifício interessante para atrair e
ganhar aceitação diante dos seus receptores. A performance utilizada pelo contadores de histórias
garante a verossimilhança quando o seu receptor se identifica com os fatos relatados, a ponto de
estabelecer um determinado vínculo com a realidade do texto. O jogo performático possibilita ao
narrador a impressão de que ele está contando algo que se desenrolou naquele momento e ainda
não está inteiramente determinado, ou seja, torna os acontecimentos presentes, assim como o faz
a arte dramática. Zumthor destaca a importância da presença de alguém para ouvir o que se conta.
A performance se processa pelo diálogo, ainda que a palavra esteja apenas com um único
participante. Observa que “a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer
imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis por que o verbo
poético exige o calor do contato” (1993, p,222).
Outro recurso utilizado por D. Maria da Glória são
as onomatopeias – suporte da
performance. O narrador de história prende a atenção da plateia, com as correspondências
imitativas - (uem, uem, uem uem - imita o choro da criança)...Batero na porta com muita força
(olha para porta da frente e imita a batida: pá, pá, pá, pá pá, pá) ; ainda cria situações em que o
ouvinte é levado para o momento da ação, isto é, consegue passar de maneira convincente a
“carga emotiva que está por trás dos gestos da personagem, dando a ideia aproximada da
dramaticidade da cena” (ALCOFORADO, 2008,p.4). Assim, a onomatopeia é mais um recurso
do narrador para conferir ao seu discurso validade.
Partindo do conteúdo do relato apresentado, destaca-se também a importância da memória
para o ato do narrar.
[A] Memória das vozes pretende ser uma ajuda à compreensão destas vozes que vêm do
passado e continuam vivas no presente, vozes poéticas e cantadas, ou “traduzidas” para a
escrita quando a simples memória enfraquece e se revela insuficiente para conservar a
riqueza do patrimônio poético. (MUZARTE-FONSECA, 2006, p. 15).
9
Entender esse conceito de semelhante à verdade é fundamental para o estudo da literatura e das artes
em geral. A Poética de Aristóteles apresenta, que, "pelas precedentes considerações se manifesta que
não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer
dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (Aristóteles, 1984, p. 451, cap. IX).
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Assim sendo, o ato de narrar constitui a materialização da memória. A memória, como um
componente constituinte do sentimento de identidade, é uma espécie de guardiã da integridade de
cada grupo social, que garante a sobrevivência de fatos que marcaram um tempo e garante a
partilha desses acontecimentos entre indivíduos de um grupo social. “A recordação do passado é
necessária para afirmar a própria identidade, tanto individual como de grupo. Um e outro também
se definem, evidentemente, por sua vontade no presente e seus projetos de futuro” (TODOROV,
2002, p. 199). Assim sendo, a memória reforça os sentimentos de pertença e adesão afetiva ao
grupo, contribuindo para coesão social.
A memória reúne a um só tempo aquilo que os olhos viram e os ouvidos ouviram; ou
aquilo que os olhos não viram, mas os ouvidos ouviram, mas que se torna presente e visível
através da performance do contador. A memória é sempre uma construção feita no presente a
partir de vivências ocorridas no passado. A memória é a força que recria os fatos, os quais se
atualizam através das narrativas. Para Zumthor (1998), a realização vocal performática está
carregada de significação que vai além da comunicação linguística. Através da realização vocal,
desempenhada nas práticas sociais e cotidianas dos povos, a voz poética conseguiu permanecer
nas formas de representação cultural da comunidade do Rio do Engenho.
Assim sendo, pelo ato de narrar as histórias, os grupos sociais vão perpetuando a própria
cultura, suas trajetórias pessoais e suas visões de mundo. Esse material simbólico constitui teias
de significações e de marcadores identitários de um povo cujas narrativas podem ser pensadas
como lugares de memória. De acordo
Pierre Nora (1993),
os lugares de memória são
identificados como espaços carregados de conteúdo simbólico e de referências culturais.
Desse modo, um lugar de memória é um núcleo significativo, tanto material como
imaterial, e de larga permanência através das gerações, para a memória e as identidades coletivas.
Este núcleo se caracteriza por uma carga simbólica, portadora de referências às identidades
culturais; está enraizado nas convenções,
nos costumes,
nas manifestações culturais e se
modifica na medida em que mudam as maneiras de concepção, aprovação, uso e tradição. Os
lugares de memória são estabilizadores da memória coletiva.
Assim, o conceito de lugar de memória transcende os bens culturais edificados
considerados excepcionais e vinculados a uma historiografia tradicional, aproxima-se, portanto
do conceito de referência cultural (IPHAN,2000), na medida em que nele inserem-se as
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expressões orais, práticas e manifestações culturais que representam a trajetória de uma
comunidade. São lugares evocadores da historicidade e do desenvolvimento comunitário, em suas
várias dimensões, onde se descortinam vozes, silêncios, experiências, que eternizaram gerações e
permanecem vivos nas subjetividades e nas práticas cotidianas.
Nesse sentido, pode-se dizer que a narrativa oral é lugar de memória, de construção e
atualização do passado, e funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social.
Elas representam lugares de vivências coletivas e de atualização principais simbologias, rituais e
práticas cotidianas que identificam uma comunidade com o seu patrimônio cultural.
As
narrativas do Rio do Engenho enquanto lugares de memórias seguem o movimento das águas do
Rio Santana, que tem os seus narradores como testemunhas que buscam o cumprimento da sua
missão: perpetuar a memória da comunidade, de modo mais verossímil possível.
Os materiais do passado, resultado de juízo de valores, que formam o patrimônio cultural,
são artefatos potenciais de memória, em que essa pode se aportar. Para Nora (1993, p.09), "a
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”, entretanto é
importante sublinhar que "somente a atualização desses traços ou vestígios é que lhes poderá
conferir o caráter de documento" (DODEBEI, 2005, p.43), que é a maneira pela qual os materiais
de memória se apresentam. A respeito desse fato, Le Goff (1992,p.68), comenta: "o processo da
memória no homem faz intervir não só a ordenação dos vestígios, mas também a releitura desses
vestígios" que é a sua atualização.
Assim, a preservação da expressão literária poderá contribuir para a salvaguarda desse
bem cultural, além de tornar possível a valorização da antiga capitania hereditária de São Jorge
dos Ilhéus.
Considerações finais
As narrativas orais, sobre as quais aqui falamos, instituem uma das formas de ocupar os
tempos livres, comumente no entardecer e à noite, reforçando os laços de confiança entre os
membros familiares e da comunidade. Por meio de narrativas, do contar, era/é possível aliviar a
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dureza do trabalho e ainda transmitir costumes, ensinamentos, padrões para o convívio em
sociedade – elementos promotores da coesão social. O narrador é uma pessoa, figura singular
para as narrativas orais; sua desenvoltura na arte de narrar se assemelha à agilidade com que
manuseia a rede para a pesca ou os utensílios para a lavoura e para a caça. Por isso, podemos
chamá-lo de artesão narrador.
Em meio às teias simbólicas (GEERTZ, 1989) os depositários da memória do Rio do
Engenho, com suas narrativas, tornam-se fonte de reconhecimento do passado e da história do
presente, já que existe uma coerência entre passado e presente que podem ser percebidas nas
práticas cotidianas. Assim, os relatos orais sobre o passado dão suporte a atos de resistência e
territorialidade não unicamente em relação ao grupo estudado em referência, como também a
outros grupos, que conseguiram preservar as raízes de sua cultura ainda vivas até hoje.
As informações recolhidas pela pesquisa demonstraram que as narrativas orais
possibilitam, através da voz discurso, a junção de campos de grande relevância tais como o
conhecimento acerca do mundo e das coisas, as reminiscências, as conversas cotidianas, a
rememoração, a evocação, a forma de vida cotidiana, os hábitos, os usos e costumes. A palavra
vocalizada (ZUMTHOR, 1993) e as práticas cotidianas (CERTEAU, 1998), possibilitam às
pessoas participar de um ritual de reconstrução de histórias no qual o homem integrado nesse
processo possa se religar ao universo.
Embora seja um mestre do ofício de narrar, a sua voz, mesmo sendo poética, não ecoa
no espaço do discurso disciplinar. São atores anônimos, que tecem diariamente suas obras, ou
narrativas, com os fios das memórias e com uma diversificada riqueza de detalhes, as vidas e
memórias de um povo, que comumente se perdem nos desvãos da história. Trazer à tona o lado
submerso do iceberg, para usar uma metáfora de Paul Veyne, como as narrativas dos atores
anônimos do Rio do Engenho, remete aos desafios presentes e constantes nas discussões da
Literatura e da Nova História.
Referências
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho artístico From the
forest/ Da floresta de Luana Costa e Hedi Jaansoo
Luana Costa1
RESUMO: Este trabalho pretende aprofundar as investigações realizadas durante o processo de criação da obra
“From the Forest/Da Floresta”, trabalho sonoro e visual criado por Luana Costa (Rio de Janeiro) e Hedi Jaansoo
(Bergen) durante a disciplina de Pós-Graduação “Voz, Texto, Coletividade”, ofertada pela UERJ, ministrada por
Ricardo Basbaum no Brasil em parceria com Brandon LaBelle, professor da Academia de Belas-Artes da Noruega.
O objetivo é prosseguir as análises acerca da produção sonora (oralidades, leituras e suas derivações), intentando
alargar as discussões sobre a emissão de voz, e produção de discursos (escrito, gravado), experimentalismos sonoros
e fenômenos da linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Voz; discursos; poéticas contemporâneas.
ABSTRACT: This work intends to deepen the investigations carried out during the process of creating the audible
and visual work "From the Forest / Da floresta" created by Luana Costa (Rio de Janeiro) and Hedi Jaansoo (Bergen)
during the course of Postgraduate: "Voice, Text Collectivity", taught by Ricardo Basbaum in Brazil in partnership
with Brandon LaBelle, a professor at the Bergen Academy of Art & Design, in Norway. The purpose is to continue
the analyzes of sound production (orality, readings and their derivations), intending to extend the discussions on the
issue of voice and speech production (written, recorded), experimentalism and sonic phenomena of language.
KEYWORDS: Voice; speeches; contemporary poetics.
Introdução
No ano de 2012, os professores e artistas Ricardo Basbaum (UERJ) e Brandon LaBelle
(Academia de Belas Artes da Noruega) realizaram através do curso “Voz, Texto e Coletividade/
Voice, Text, Collectivity”, uma proposta de criação, experimentação e parceria artística entre os
alunos de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e dos alunos de
Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega. Naquela ocasião, o curso ofertado pelas
duas instituições parceiras buscava problematizar as questões pertinentes às artes sonoras,
proporcionando uma investigação acerca da produção e emissão de voz (leitura, fala e seus
1
Poeta, performer multimídia, atriz. Professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola. Mestranda em Estudos
Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense – RJ.
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desdobramentos), dos processos de criação e produção de discurso (escrito, impresso ou
gravado), bem como da emissão de voz em domínio coletivo (coros, refrões, manifestações,
conversas coletivas e dinâmicas de grupo).
Ao longo do curso o som esteve no centro de nossa pesquisa de tal modo que, buscando
iniciar um alargamento de nossas percepções com respeito à arte sonora foram formuladas desde
o início do processo de trabalho algumas perguntas concernentes ao campo sônico, tais como: “O
que é o ouvir?”; “O que ouvimos?”; “Existem diferentes tipos de escuta?”; “Por que nos
concentramos em alguns tipos de sons e ignoramos outros?”.
Essas indagações, intermediadas em nossas aulas pelo artista e Prof. Ricardo Basbaum,
foram expostas de maneira empírica e delicada, despertando-nos aos sensíveis que essas mesmas
questões provocavam. Enquanto pensávamos sobre tais perguntas, Basbaum convidava-nos a
escutar da sala de aula o som do vento que entrecortava as persianas, pequenos ruídos que se
espalhavam pelo espaço, o som das buzinas dos automóveis que ressoavam das ruas até a larga
janela - um ouvido aberto sobre o mundo.
Sobremaneira, para pensar um exercício sobre a escuta e ajudar-nos a problematizar
questões que foram surgindo-nos, importantes pensadores do som adentraram como escopo de
leitura em nossas investigações, dentre eles Christoph Cox (2001)
e o texto Beyond
Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism, Michel de Certau (1996) e sua
obra de Vocal Utopias: Glossolalias, o próprio Brandon LaBelle (2006) e a obra Background
Noise: Perspectives on Sound Art e o escritor, compositor e educador musical Murray Schafer
(1992), autor dentre outras da obra A Sound Education: 100 Exercises in Listening and
Soundmaking.
Tais textos foram discutidos, sempre os associando às experimentações no campo da
linguagem e do som realizadas pelos artistas modernos e contemporâneos. A obra de Schafer no
entanto revelou-se de destacada importância para nossos apontamentos pois através dos
exercícios sonoros propostos pelo autor logramos discutir alguns pontos chave pertencentes ao
campo sônico nos fazendo valer de muitas das assertivas do autor sobre as experimentações
sonoras.
Destaquemos algumas observações de Schafer contidas em A Sound Education. Nesse seu
trabalho o pesquisador canadense afirma que o ambiente ao nosso redor seria uma potente
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paisagem sonora, e a escuta não seria uniforme, tampouco a mesma para todos os indivíduos não apenas os indivíduos escutariam de formas diferentes entre si como também as sociedades e
culturas possuiriam escutas distintas umas das outras, já que a paisagem sonora do mundo seria
“incrivelmente variável diferindo de acordo com a hora, a estação, o lugar e a cultura”
(SCHAFER, 1992, p. 8, tradução minha). Haveriam ainda diferenças entre o que ele chamou de
“escuta concentrada” e “escuta periférica”, escutas pela quais determinados sons se sobreporiam
culturalmente sobre outros, deixando à margem certos sons ignorados em sua matéria sonora.
Para ilustrar essa afirmação destaco aqui algumas das indagações propostas pelo autor:
Por que nós nos concentramos em determinados sons, enquanto que
outros ouvimos apenas por acaso? Seriam alguns sons descriminados
culturalmente de modo a não serem ouvidos de nenhum modo? (Um
africano disse certa vez: ‘O Apartheid é um som!'). Alguns sons são
filtrados ou tornados imperceptíveis por outras pessoas? E como é que a
mudança do ambiente acústico afetaria os tipos de sons que escolhemos
para ouvir ou ignorar? (SCHAFER, 1992, p. 7-8, tradução minha).
Ao revelar o campo sonoro como uma paisagem passível de ser delimitada, edificada,
com sons culturalmente aceitos e outros ignorados, o autor expõe em seguida que uma
consciência sobre o som e os diferentes modos de ouvir devem ser por nós repensados de maneira
profunda, amplificada. Para ele muitos dos sons que escutamos na contemporaneidade são apenas
frutos de produções de nossa civilização mecanizada, que desde o século XX teria nos
sobrecarregado sensorialmente com sua floresta de engenhocas ruidosas. A produção musical a
partir do século XX teria sofrido uma transformação drástica em suas práticas por meio de
tecnologias que teriam modificado as técnicas da escuta e manipulação gerando consequências
devastadoras às práticas musicais e a maneira de ouvir configuradas até então. Afirma o autor que
desde tais consequências, os sons que ouviríamos seriam culturalmente impostos, delineando uma
paisagem sonora poluída e desesperadora que nos afetaria psicologicamente de modo negativo e
ensurdecedor, tornando nossos sentidos deveras submisso, silenciado, não-criativo.
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No entanto, seria possível mudar essas configurações sonoras impostas socialmente
através do desejo de uma escuta sensibilizada. Tal escuta seria produto de uma atuação
consciente e participante sobre nosso mundo sonoro e se daria através de exercícios práticos e do
retorno de hábitos já não mais incorporados ao nosso cotidiano. Um importante hábito destacado
pelo autor ao longo de sua obra seria o de aprender a ouvir. Este hábito seria uma necessidade
fundante para um efetivo processo de sensibilidade e educação sonora afim de transformarmos
nosso modo de ouvir e a paisagem sonora ruidosa em que vivemos. Sobre essa reaprendizagem
da escuta, assim afirmou o autor:
Eu acredito que o caminho para melhorar a sonoridade do mundo é bastante simples.
Devemos aprender a ouvir. Parece ser um hábito que nos esquecemos. Devemos
sensibilizar o ouvido para o mundo milagroso de sons que nos rodeiam. Depois de ter
desenvolvido alguma perspicácia crítica, podemos ir para projetos maiores, com
implicação social, de modo que outras pessoas podem ser influenciadas por nossas
experiências. O objetivo final seria começar a tomar decisões conscientes sobre projetos
que afetam a nossa paisagem sonora (SCHAFER, 1992, p. 11, tradução minha).
Aprender a ouvir e exercitar a própria escuta para verter nosso ouvido autômato em um
ouvido pensante, eis o propósito do autor. Abrir as terminações nervosas dos ouvidos dos outros
sentidos - esgarçar a escuta do paladar, a escuta do tato, dos poros, do olhar. Tornar visível a
todos os sentidos o invisível, decidir conscientemente e de maneira crítica a nossa experiência
sonora incorporando-a de fato às nossas vidas. Tarefa aparentemente árdua, porém simples
quando intermediada pelo desejo, o simples desejo de ouvir... E foi mesmo de modo a refletir a
escuta enquanto pulsação poética desejante, enquanto experimentação, enquanto sensação,
possibilidade e um modo de estar e agir no mundo, que trabalhamos os elementos sonoros de
modo singular e coletivo durante o curso “Voz, Texto, Coletividade”.
Tendo o pensamento sobre o campo sonoro conjugado à ação e como modo efetivo de
interferir conscientemente em nossa paisagem sonora, fomos estimulados pelos professores
Ricardo Basbaum no Rio de Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega a realizar um trabalho
artístico que valorizasse a experimentação sonora e se fizesse valer de recursos técnicos durante
sua elaboração, tais como o gravador sonoro para a captação do som, de modo a abarcar as
questões suscitadas ao longo do curso pensando e experimentando o sonoro no contemporâneo.
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Acerca da possibilidade de captação dos eventos sonoros, esta é fruto das transformações
causadas na prática musical desde o século XX que, como nos revela o pesquisador e compositor
de música experimental Michel Chion (1994) autor de Música, media e tecnologia a forma de se
produzir o som teria se alterado drasticamente a partir das novas tecnologias insurgentes. Tais
tecnologias permitiram alterar os modos de produção do som pois através delas qualquer som
poderia ser agora capturado e posteriormente reproduzido, gerando por sua vez uma cisão entre a
fonte sonora e seu resultado sonoro. Essa mudança tornou desnecessário que durante a escuta de
um som sua fonte estivesse presente; seria preciso somente do suporte de registro do som
captado. E foi mesmo através de um trabalho pela captura de sons que nossa experiência
sinestésica teve início.
A captação de eventos acústicos de diferentes paisagens sonoras e a partilha coletiva dos
sons coletados deu-se como um profícuo exercício experimental ao longo do curso. Demos início
às nossas conversas sobre a voz, o texto e a coletividade em processos artísticos sonoros
estimulado pelas propostas de Schafer (1992); referenciando-nos em artistas sonoros da
vanguarda - tais como John Cage (1912-1992), Alvin Lucier (1913) e Karlheinz Stockhausen
(1928-2007); bem como em artistas contemporâneos como o próprio Ricardo Basbaum e seu
trabalho sonoro “conversas coletivas”.
Sobre essas conversas coletivas do autor, elas se constituíram de ações performáticas
pertencentes ao trabalho “conversas & exercícios [área instalação + conversa coletiva]” exposto
na 30ª Bienal de São Paulo no ano de 2012 e trataram-se de leituras públicas desenvolvidas em
Workshop e realizadas com participantes e convidados (dentre eles Brandon LaBelle) na área de
instalação do trabalho do autor no espaço da Bienal. Visando integrar o texto escrito à sua
emissão sonora de forma a incorporar os discursos diversos que irrompem na arte
contemporânea, a conversa coletiva 1 “fala, som, texto” e a conversa coletiva 2 “grupo, coletivo,
experiência” deram-se em grupo e de forma multivocal, polifônica. A partir do Workshop, uma
leitura pública coletiva foi realizada na Bienal. Naquela ocasião alguns alunos do curso “Voz,
Texto, Coletividade” também participaram do workshop tendo estado presentes durante a leitura
pública do trabalho.
A partilha das experiências sonoras dos trabalhos artísticos de Ricardo Basbaum foram
importantes para ajudar-nos a seguir em nossas elucubrações sobre os elementos sonoros do
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próprio curso. Ainda que a captação sonora de ruídos tenha sido realizada por cada um de nós,
interessava também abarcar experimentações relacionadas à voz e ao texto, pensando-o em sua
possível multiplicidade sonora, coletiva. Ao longo do curso partilhamos com o grupo algumas
experiências sonoras individuais, discutindo-as. Cada colega revelava ao longo da partilha certas
inclinações acústicas.
Como poetisa, interessou-me as possibilidades e intervenções sonoras sobre o texto e
através da poesia falada, de forma a criar uma espécie de poética da voz. A fala poética como
evocação da arte performática que integra palavra, o corpo, e a voz é um campo que venho
experimentando desde 2003. Em Cuiabá-MT, realizei minhas primeiras experimentações de
poesia falada no Encontro dos Poetas Livres2 nas Praças Cuiabanas e dei início também aos meus
trabalhos poéticos e performáticos em diálogo com as artes visuais, tendo a fotografia como
suporte. Imbricada à performance, os desdobramentos das experimentações poéticas que
atualmente tenho realizado em parceria com o ator, músico e fotógrafo Jone Castilho é trabalhada
sempre no intuito de expandir o texto para outras esferas como a voz, o corpo e as artes visuais,
como se pode ver em uma de nossas experiências fotográficas que se segue:
2
O Encontro dos Poetas Livres nas Praças Cuiabanas foi idealizado em 2001 pelo poeta cuiabano Neneto Sá e
obteve ao longo de sua existência a presença de muitos poetas de Cuiabá, que temporária e nomadicamente
habitavam as praças da cidade para falar e ouvir poesia.
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Fig. 1. Era a Ela. Fotografia: Jone Castilho. Corpo: Luana Costa.
Pintura corporal: José Cardoso, julho de 2011. Exposta na mostra 1 Instante, Niterói.
O desejo de criar diálogos entre o texto e as poéticas visuais como pode-se perceber
sempre acompanhou-me em minhas inquietações artísticas. E não foi diferente quando da
proposta de realização de uma obra artística sonora por parte dos professores e artistas Ricardo
Basbaum e Brandon LaBelle durante o curso ofertado no ano de 2012.
Para a realização do trabalho correspondente a este curso de artes sonoras tive de empreender
uma experimentação profunda do campo textual enquanto potencialidade sônica. Esgarçar o som
enquanto elemento de plasticidade acústica por meio de tecnologias contemporâneas tal como
gravadores sonoros e programas para gravação e audição de áudio foram eventos inéditos para
mim.
Sobremaneira, este trabalho não concretizou-se de modo individual. A intenção dos
professores foi a de efetuar uma parceria entre os estudantes de Pós-Graduação em Artes do Rio
de Janeiro e os estudantes de Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega.
Selecionadas por afinidade curricular pelos dois professores - Ricardo Basbaum no Rio de
Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega - o meu trabalho no curso deu-se em parceria com a
239
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
artista estoniana Hedi Jaansoo. Os processos de nosso trabalho rumo à criação de nossa obra
tiveram início em outubro de 2012, quando do primeiro contato por correio eletrônico, como se
detalhará.
Primeiros diálogos: Sonoridade, visualidade e texto no processo de criação da obra From
the Forest/Da Floresta
Hedi Jaansoo enviou-me àquela data um arquivo de sua voz e uma imagem da floresta da
Estônia (Fig.2), país báltico da Europa Setentrional e seu país natal. No texto enviado junto à
imagem ela detalhava-me o interesse em fazer da imagem abaixo um elemento para nossa obra
em processo.
Fig.2 Floresta da Estonia. Hedi Jaansoo, 2012
240
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Segundo havia-me me afirmado Jaansoo, o seu desejo era o de editá-la em movimento
circular, movimento este que para ela simbolizava o ritmo e a continuidade da vida. A artista
desejava também associá-la ao som de sua respiração para acentuar a proposta da relação
intrínseca entre a natureza e a vida humana.
Paralelamente ao envio da imagem da floresta por Hedi Jaansoo, eu efetuava uma visita
para Rio Branco, capital do Estado do Acre. Tal viagem, aproximando-me da Floresta
Amazônica, despertou meu interesse pela flora brasileira e os elementos da natureza enquanto
material e matéria potente para a criação artística.
Já completamente envolvida e contaminada pelas elucubrações do curso e as assertivas
sobre as paisagens sonoras, dei início aos meus primeiros registros dos eventos sonoros daquela
região. A intenção da viagem havia então se convertido também no desejo de executar captações
de sons através do gravador sonoro, companheiro inseparável desde o início do curso; apontar
impressões escritas e fotografar a cidade de Rio Branco ainda desconhecida aos meus olhos e
ouvidos era também o meu intuito.
Tendo em mãos desde o início da viagem um caderno confeccionado por mim e intitulado
Caderno de Sonhos, realizei em suas folhas em branco a anotação diária de meus sonhos na
capital do Acre e a escrita de impressões do lugar durante minhas caminhadas pelo local.
Como um exercício de escuta para o fazer sonoro realizei um primeiro vídeo da imagem
de uma forte chuva que caíra em Rio Branco dando ênfase ao seu som; gravei os ruídos de
coaxares de sapos em diversos pontos da Universidade Federal do Acre; da voz de um indígena
fazendo um pronunciamento público nessa mesma Universidade; escrevi sobre a sensação
experimentada quando de meu alojamento na moradia indígena existente na Universidade Federal
do Acre; descrevi em meu caderno os sabores da comida oferecida a mim e feitas por um casal de
indígenas que ali estavam; detalhei sobre a noite em que todos cantávamos e contávamos
histórias ao redor de uma fogueira durante uma noite calorosa sob a Lua crescente. A expectativa
era a de fazer destes escritos um dado para agregar aos processos artísticos de nossa obra quando
de meu retorno ao Rio de Janeiro.
No entanto, tais expectativas viram-se momentaneamente perdidas quando do extravio
deste caderno no Aeroporto de Belo Horizonte - Minas Gerais. Ao retornar à minha morada no
241
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Estado do Rio de Janeiro, desejei salvaguardar de algum modo as impressões e sensações que
ainda estavam vivas em minha memória.
No anseio por capturar essas impressões um tanto fantasmáticas desta ida à capital do
Acre em parte esquecidas como alguns de meus sonhos anotados periodicamente durante os
quatro dias que lá passei, tomei a decisão de realizar uma escrita literária desta viagem. Tal
escrita poderia de algum modo condensar a experiência e ser uma espécie de cartografia
mnemônica e poética de minha vivência no local. Escrevi assim um texto e dediquei-o ao Acre.
Intitulei-o Sonho Amazônico. Eis os seus versos:
Sonho Amazônico
No seio da Floresta
Vi pajés coloridos entoarem cânticos
Índias de prata abrirem estrelas
E entregar suas luzes como oferenda
Para fazer dançar
os príncipes-trovões
No seio da Floresta
Vi o Sol transformar
os pássaros em ouro
Vi raízes e folhas virarem manto
E o leite das árvores dos seringais
Pintarem de branco
os cabelos dos Rios
No seio da Floresta
Vi o Povo da Água emergindo da chuva
Vi o Povo do Fogo sobre os raios do Sol
Vi o Povo da Terra saindo das grutas
E mulheres guerreiras voltando das lutas
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No seio da Floresta
Ouvi as vozes das sereias-feiticeiras
Onças aladas movendo-se nas telhas
Ouvi pulsar o coração de uma estrela
No seio da Floresta
Com meu terceiro olho sônico
Movi-me nas densas trilhas de éter
Rumo a um íngreme sonho amazônico.
Após escrevê-lo apresentei o texto escrito em língua inglesa à Hedi Jaansoo, que
respondeu-me com entusiasmo e enfatizando a aproximação de eventos de sua própria vida com
os versos da terceira estrofe do poema. A partir desta escrita e da recepção positiva pela artista
sugeri que realizássemos uma conjugação da experiência sonora da terceira estrofe deste texto
com sua imagem da Floresta da Estônia, mas de modo a operar de modo distinto e não
convencional com a emissão sonora de minha voz. Aqui destaco a importância da leitura do texto
de Michel de Certau (1996) durante o curso para o pensamento deste procedimento sônico.
Afeta-me os fenômenos de linguagem que apontam para os desejos e atos de transcriação
das operações normativas da língua e as manifestações linguísticas que indicam uma elaboração
de alteridades para a criação de um tópos literário capaz de causar uma fissura na própria verve
da linguagem - fenômenos e ações poéticas das quais o escritor Ghérasim Luca3 (1913-1994)
constitui uma importante referência para mim. Ora, sobre tais fenômenos - em especial a
glossolalia - assim afirmou Michel de Certau sobre suas emissões:
Arte da fala [un art de dire] dentro dos limites de uma ilusão (...) desregulam a
organização dos sistemas de significado como ervas daninhas que crescem por entre o
concreto. Por um momento, como o ritual ‘Loa’ Vodu, as vozes se apossam do discurso.
(CERTAU, 1996, p. 29, tradução minha).
Segundo Guilherme Castelo Branco, para o poeta romeno Ghérasim Luca, a poesia seria “uma operação pela qual
cada palavra é submetida a uma série de mutações sonoras, e cada uma das facetas da palavra acaba por libertar a
multiplicidade de sentidos que ela carrega, algumas delas radicalmente novas” (CASTELO BRANCO, 2010, p. 81).
3
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No caminho de uma intervenção sonora menos à ordem dos ditames orais e mais à
desconstrução dos discursos majoritários da linguagem, procurei realizar uma gravação sonora da
poesia que fosse convidativa para a entrada nessas perturbações linguísticas e incitasse ao
segredo e ao secreto, ao ritual e ao mágico, já que minha experiência vivida na região Amazônica
também havia sido atravessada pelo ritualístico. Assim, a gravação sonora da 3ª estrofe foi
realizada de modo que a impostação de minha voz fosse outra que não a minha natural e usual
nos modos de fala convencionais. Falada de maneira sussurrante, emiti-a como se tais palavras
fossem próprias de um segredo contado aos ouvidos de alguém por alguma entidade ou espírito
das florestas.
Na intenção de também preservar a ideia sugerida por Hedi (imbricar a imagem em loop
da floresta da Estonia ao som de sua respiração) e seguindo a sugestão dada em sala de aula pelo
Prof. Ricardo Basbaum, reeditei o som de minha voz sussurrada ao som de minha respiração
sobrepondo-as. Minha respiração, feita de modo convulsivo, anti-natural e bastante marcado
através de minha inspiração efetuada pela boca possibilitou converter o trabalho sonoro em uma
dupla voz, um duplo som, uma voz coletiva.
Traduzida para o inglês, a gravação foi novamente enviada para Hedi Jaansoo, que
realizou a edição final junto ao seu vídeo da floresta estoniana de maneira que o som acabou por
torna-se uma emissão sônica em loop e em uníssono com a imagem da floresta. Estes processos
desaguaram por fim em nossa obra From the Forest/Da floresta, constituindo assim um encontro
singular entre nossas florestas, intermediadas pelos diálogos entre texto, voz e imagem.
O nosso trabalho artístico integrou a exposição Dupla-Boca/Double-Mouth sob curadoria
dos professores e artistas Ricardo Basbaum e Brandon LaBelle tendo sido levada à público, junto
aos demais trabalhos de outras duplas de alunos, na exposição realizada em Bergen, Noruega e na
Galeria Cândido Portinari da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil.
Referências bibliográficas:
CERTAU, Michel. Vocal Utopias: Glossolalias. In: Representations, Volume 0, Issue 56, Special
Issue: The new Eruditon. Automn, 1996.
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COX, Cristoph. Beyond Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism. In:
Journal of Visual Culture, vol. 10. Sage Publications: Los Angeles, London, New Delhi,
Singapore and Washington DC, August, 2011. Disponível em: http://vcu.sagepub.com
CHION, M. Música, media e tecnologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
Foucault, M. 2006. “Outros Espaços”. Estética: literatura e pintura, música e cinema, Ditos e
Escritos Vol. III, Rio de Janeiro, Forense Universitária.
SCHAFER, R. Murray. A Sound Education. Canada: Arcana Editions, 1992.
LA BELLE, Brandon. Background Noise: Perspectives on sound art. Continuum International
Publishing Group: New York, 2006.
VASCONCELOS, Jorge; BRANCO, Guilherme Castelo. “Michel Foucault e a Literatura” In:
Arte, vida e política: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: LCV, 2010.
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nordestinos
The carolingian in hinterland: the cavalry in northeastern rhymes and verses
Naelza de Araújo Wanderley 1
Resumo: O propósito desse estudo é desenvolver uma leitura comparativa a partir do texto português A História do
Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, enquanto “mediador” da matéria carolíngea em terras
brasileiras, e de poemas pertencentes à literatura de cordel nordestina (A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A
prisão de Oliveiros, de Leandro Gomes de Barros; Traições de Galalão e a morte dos Doze Pares de França, de
Marcos Sampaio, entre outros). Através deste, conta-se destacar, à luz das relações transtextuais, que a modernidade
também reservou, principalmente no Nordeste brasileiro através da Literatura de Cordel, o seu lugar de destaque para
o fascínio que a gesta carolíngea exerceu e exerce sobre o público através dos séculos. Muitos são os aspectos que
aproximam e que distanciam o texto português e os folhetos de cordel que desenvolvem seus versos acerca da
heroicidade de Rolando, da lendária dor do rei Carlos Magno e de batalhas apocalípticas em nome da honra. Esses
cordéis são produtos de uma nova leitura que apenas revela algumas permanências pontuais. A vitalidade desse tema
francês do século XII reflete uma permanência da épica europeia trazida pelo elemento colonizador que foi
assimilada e recontextualizada pelos poetas da literatura de cordel no Nordeste brasileiro.
.
Palavras-chave: Cordel. Intertextualidade. Carlos Magno e os Doze Pares de França.
Abstract: The purpose of this study is to develop a comparative reading between the Portuguese text A História do
Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, while "mediator" of carolingian in Brazilian lands, and
poems from Northeast popular literature (A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A prisão de Oliveiros, de Leandro
Gomes de Barros; Traições de Galalão e a morte dos Doze Pares de França, de Marcos Sampaio, among others). It
stands out, in the light of transtextual relations, which modernity also reserved, especially in the Brazilian Northeast,
through the popular literature, its place of prominence to the fascination that the management carolingian exercised
and exerts on the public through the centuries. There are many close and apart aspects from the Portuguese text and
the Northeast popular literature that incorporate Rolando’s heroism the legendary king Carlos Magno’ pain and the
apocalyptic battles in the name of honor. These Northeast popular literatures are products of a new reading, which
reveals some specific periods. The vitality of the French’s theme from the 12th century reflects the idea of continuity
of European epic brought by element colonizer, which was assimilated and recontextualized by poets of the Brazilian
Northeast popular literature.
Keywords: Northeast popular literature. Intertextuality. Carlos Magno e dos Doze Pares de França.
1 Introdução
A opção por uma leitura que tem como suporte teórico inicial a literatura comparada
apresenta-se aqui como espaço aberto à noção de intertextualidade, uma vez que esta, segundo
1
Drª– Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Email: naelzanobrega@ig.com.br
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Carvalhal (1986, p. 53), “abre um campo novo e sugere modos de atuação diferentes ao
comparativista.”
As várias formas de distanciamento que se apresentam entre a canção de gesta francesa
(medieval) e os folhetos de cordel, pertencentes à literatura popular do Nordeste brasileiro
(século XX) evidenciam um longo e paradoxal caminho. A busca pelos pontos que unem,
principalmente, e pelos que distanciam esses textos, mesmo sendo estes pertencentes a épocas e
lugares distantes no tempo, no espaço e no contexto, vai além do aspecto comparativo entre as
produções literárias de uma época ou de determinado espaço, pois conduz o leitor ao(s)
intertexto(s) que se entrelaçam ao longo da história literária que une a medievalidade europeia e o
poeta popular do sertão nordestino.
A referência a intertextos justifica-se através da escrita e reescrita de vários textos que
retomam a saga carolíngea2 e que, ao longo dos séculos, compõem a trilha que permite também
aos poetas populares do Nordeste brasileiro recontar, em seus folhetos de cordel, as façanhas do
imperador Carlos Magno e de seus valorosos guerreiros. Esta é uma temática que pertence, em
sua origem, à gesta francesa. Observe-se que as chansons de geste francesas, assim como a
epopeia, têm como tema os feitos históricos / ilustres medievais e foram escritos a partir da
segunda metade do século XI até o século XIII.
De origem indefinida, a canção de gesta pode ter surgido das cantilhenas, canto de
celebração dos soldados após as vitórias nas batalhas (MOISÉS, 1985). Ainda segundo esse autor
(1985, p. 76), “Em francês, o termo cantilène designa uma curta composição medieval [...], que
alguns estudiosos aceitaram como a forma precursora das canções de gesta.” Essa composição
medieval de pequena extensão, conforme se pode observar, tinha seu canto executado pelo povo
e sua temática se voltava para um conteúdo de exaltação. Segundo Leoni (1967, p. 13), os cantos
lírico-épicos (cantilenas) teriam sido reunidos, transformados, ampliados, formando grandes
2
A repercussão dos cantos carolíngeos não ficou restrita apenas ao território francês. Espalhou-se por outras terras e
inspirou inúmeras composições. Foram eles a fonte de inspiração de Ariosto, em seu Orlando Furioso e de Boiardo,
em Orlando enamorado, “talvez a mais alta obra de imaginação da poesia vernácula italiana durante o século XV,”
segundo Gardner (1941, p. 25). Macy (1941, p. 137) afirma que, “Em inumeráveis versões a história de Roland
atravessou toda a Renascença. Foi imensamente popular na Itália, onde se fez assunto de Orlando Furioso, a obra
prima de Ariosto”. A literatura portuguesa também foi herdeira dessa gesta francesa e dentre os livros que narram as
aventuras de Carlos Magno e dos Pares de França está a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de
França, conhecido em Portugal desde o século XVI e, posteriormente, trazido para o Brasil pelos colonizadores.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
epopéias (as canções de gesta). “Estas canções seriam, pois, fruto de séculos e de
gerações. Mas os textos primitivos nunca foram encontrados.”
A gesta francesa divide-se em três grupos e, entre eles, está o ciclo denominado
francês, também chamado de Carlos Magno. As canções de gesta deste ciclo datam,
sobretudo, dos séculos XII e XIII. Elas também se subdividem em dois grupos: a epopeia real e
epopeia feudal. Denominada de epopeia real, a Canção de Rolando pode ser considerada a obra
principal de toda a Idade Média francesa. É considerada uma verdadeira epopeia nacional, cuja
composição data de 1050, mais ou menos, e é composta de mais de quatro mil versos
decassilábicos.
A Canção de Rolando, de autoria anônima3, apresenta, como núcleo temático, a batalha
de Roncesvalles, travada no desfiladeiro de mesmo nome, segundo indica a tradição, por
Rolando, sobrinho de Carlos Magno, e os demais Pares de França, no ano de 778. Esse núcleo
histórico será bastante ampliado através dos elementos lendários acrescidos aos acontecimentos
acerca dessa batalha. Cantados oralmente, os versos dessa canção chegaram a várias partes do
Ocidente Europeu através dos jograis e, através do canto deles, a história alimenta a lenda, e esta,
por sua vez, reinventa a história.
O ato de recontar, através dos séculos, determinada obra ou temática
através da
reescritura4 reflete algo que ultrapassa os limites da simples inspiração a partir um texto do
passado. Desta forma, uma nova manifestação literária se ergue todas as vezes que histórias são
reescritas, pois essa postura funciona, muitas vezes, como uma espécie de mola propulsora da
atividade literária. Esse processo ratifica a ideia de que a matéria que dá significado e
3
Ressalte-se que a questão da autoria dessa obra, assim como a sua origem, também se apresenta de forma
indefinida pela crítica, pois se alguns acreditam em uma criação coletiva, outros atribuem o registro da identificação
do autor ao último verso do poema: “Ici finit la gest que Turold décline” (CORDIER, 1935, p. 101) ou “Ice s´arrête
La Geste que Thérould a chantée.” (THEROULDE, 1888?, p. 237). Observe-se que as duas escritas do último verso
da Canção de Rolando, ambas elaboradas a partir do códice de Oxford, revelam a assinatura de Turold / Thérould e
são encerradas pelos verbos “decline” e “chantée”. Dessa forma, considerando-se o(s) sentido(s) apresentados por
esses verbos, Turold / Thérould seria o autor, o copista, o tradutor ou apenas o recitador dos versos dessa narrativa
heroica notavelmente elaborada.
4
Trabalhar com o termo reescrita, ao invés de retextualização, justifica-se, no presente texto, inicialmente, pelo fato
de que, na abordagem de muitos estudiosos desse campo de pesquisa, não há uma definição muito clara acerca dessa
noção. Marcuschi (2010, p. 46) ao discutir esses processos, apenas apresenta a amplitude dos conceitos, afirmando
que, na retextualização, acontece uma espécie de “‘tradução’, mas de uma modalidade para outra, permanecendo-se,
no entanto, na mesma língua”. A seguir, o autor comenta o processo que chamou de reescrita, afirmando que este
poderia ser visto como sinônimo do termo retextualização, uma vez que “igualmente poderíamos usar as expressões
refacção e reescrita, (...) que observam aspectos relativos às mudanças de um texto no seu interior (uma escrita para
outra, reescrevendo o mesmo texto)”.
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movimento à criação literária é a própria literatura, pois, segundo Curtius (1957, p. 1415) a literatura do passado pode continuar contribuindo com o presente; é uma espécie
de “presente eterno”, e, para a literatura, “todo passado é presente ou pode sê-lo”.
Uma canção de gesta medieval presentificada em diferentes contextos e
assumindo novos significados ao longo dos séculos e em diferentes literaturas. Esse é o
caminho percorrido pela matéria de França que, no início do século XX, torna-se uma das
principais temáticas dos representantes da literatura de cordel5 no Nordeste brasileiro.
2 O cordel nordestino e as várias versões da saga carolíngea
Eis o que é a poesia do povo: a natureza no momento mais expansivo da sua verdade, a
inspiração no vôo mais livre e inconsciente. Quem não há de estudá-la? Estender a mão
para sentir as pulsações latentes do coração da humanidade? Escutar as alegrias do
mundo através d´esta harpa animada, em que ressoam todas as alegrias e tristezas do
poema da vida?
Teófilo Braga
Apresentando-se como fenômeno bastante conhecido no Nordeste do Brasil, a literatura
de cordel tem a sua origem ligada às folhas volantes e aos vários manuscritos portugueses que
percorreram essa região desde fins do século XVI. Essa produção portuguesa introduzida no
Brasil sofreu adaptações para se adequar ao novo ambiente e, na Região Nordeste, assume
características bastante peculiares. De temática diversificada, essa forma de literatura reflete
basicamente a realidade social em que nasceu.
Dessa forma, ao escolher a temática da novela de cavalaria como ponto de partida para a
sua criação poética, o poeta popular do início do século XX, certamente, desconhecia toda a
linhagem histórica e literária da qual está envolta a matéria carolíngea, uma vez que “A maioria
deles nasceu na zona rural, filhos de pequenos proprietários ou de trabalhadores assalariados.
Tiveram pouca ou nenhuma instrução formal. Alguns eram autodidatas, outros aprenderam a ler
com parentes e conhecidos” (ABREU, 2006, p. 93). Assim sendo, coube à figura do colonizador
5
A literatura de cordel é, sem dúvida, herdeira da tradição medieval, mas não daquela que se criou e desenvolveu no
sul da França pela arte dos “troubadours”. Não, suas raízes devem ser procuradas mais ao norte, na Normandia, na
Flandres, na Picardia, melhor dizendo, nos cantões de “langue d´oil”, com os “trouvères” criadores das “chansons de
geste”, com os poetas que celebraram os feitos heroicos e patrióticos dos nobres senhores, as explorações guerreiras
dos heróis nacionais e dos cavaleiros cristãos contra os infiéis. (RIBEIRO, 1987, p. 80)
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português a mediação desse verdadeiro processo de transplantação da matéria de França em solo
brasileiro, mesmo quando esta já não tinha o mesmo destaque em solo francês.
A Provença nos veio através da influência galaico-portuguesa e não diretamente. [...]
A figura de ROLDÃO, o Roland, Par de França, continua viva na poesia cantada do
sertão do Nordeste. Não ocorre o mesmo na França, onde viveu, nem na Espanha, onde
sucumbiu em agosto de 778. [...] Não penetrou nos contos, mas é indispensável nos
versos, imagem mais legítima da bravura, da coragem imediata, o homem-sem-medo,
eterno encanto para a velha turbulência sertaneja.
[...]
Os cantadores e poetas populares nordestinos ignoram o Roland das chansons de geste
ampliadoras e a própria Chanson de Roland não deixou a companhia de alguns
estudiosos urbanos, leitura que não alcança curiosidade plebeia. O Roldão brasileiro é
uma atualidade. Não era possível retirá-lo da lembrança coletiva do meu país.
(CASCUDO, 2001, p.10-11)
Roland, o brasileiro e português Roldão, não está no conto popular, na história
tradicional. É infalível na cantoria, nos versos de desafio, na batalha poética,
constituindo um recurso prestante no confronto do supremo destemor. Onze séculos não
o afastaram da citação sertaneja no Nordeste do Brasil, como no Brasil do centro e do
sul.
[...]
Mas, curiosamente, essa fama ilustre que se tornou tradição popular do Brasil não teve
fonte oral e sim origem impressa, perfeitamente identificável. [...]
É a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, nas edições de
Lisboa, 1723, 1728, 1789, tradução de Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor de
Algarve, e que representam recapitulações e edições dos vários livros sucessivos, antes
da forma definitiva que alcançou nos princípios do século XIX.
No Brasil o Carlos Magno foi motivo de inspiração popular em muitos episódios que
apareceram versificados, cantados, constituindo folhetos de ampla divulgação, como a
Batalha de Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, A Morte dos Doze Pares, pelos poetas
populares Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde, José Bernardo da Silva,
Marcos Sampaio, editados na Paraíba, Pernambuco e Ceará, com infalível mercado
consumidor entre o povo e perfeita ignorância dos letrados.
[...]
A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, como a conhecemos
em Portugal e Brasil, não existe em espanhol e francês.
[...]Todos os velhos cantadores profissionais a sabiam de cor. [...] Não conhecer a
História de Carlos Magno era ignorância indesculpável, indigna dos bardos sertanejos,
mesmo analfabetos. Faziam-na ler, folha por folha, escutando, aprendendo,
entusiasmando-se, decorando, repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em
perguntas fulminantes e respostas esmagadoras.
[...]
Roland au Moyen-Âge, está morto na memória folclórica de França, por quem lutou, e
na Espanha, onde morreu.
Vive, valoroso, invencido, incomparável, na poesia cantada do Nordeste do Brasil.
(CASCUDO, 2001, p. 51-60)
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A narrativa poética do cordel que apresenta como tema principal os feitos do rei Carlos
Magno e de seus guerreiros surge de um processo de identificação do público popular nordestino
com os valores apresentados nos textos acerca dessa temática. O código de honra, a coragem do
guerreiro frente às injustiças e às traições humanas, a defesa da fé (Cristianismo), entre outros,
motivam a escrita poética e legitima, através do público, o mais completo exercício de recepção
que a criação literária pode testemunhar e que surge da interação autor/ público leitor / obra.
Segundo Abreu (2006, p. 95-97), essa interação era essencial à sobrevivência desse
gênero, uma vez que ela acontecia de tal forma que, no ato da venda e apresentação dos folhetos
pelo poeta, era possível a intervenção direta do público ouvinte através de protestos que poderiam
influenciar diretamente na composição de um novo folheto.
Os “versos”, como eram chamados os folhetos pelas pessoas comuns, eram recitados,
muitas vezes, de memória, com grande orgulho para o recitador, nas calçadas das fazendas, ao
término do suado dia de trabalho braçal. Segundo Terra (1983, p.36), “Os folhetos contariam com
maior audiência no campo onde seria uma das poucas formas de lazer e fonte de informação.”
Era um deleite para o corpo e para a alma do sertanejo que tinha a oportunidade de ouvir e de
comentar admiradamente sobre aqueles personagens. Faziam-no de tal forma que davam a
impressão de que conheciam de perto os guerreiros franceses, a sua “valentia”, o seu
compromisso com a fé em Cristo, assim como o código de honra que unia homem e “lenda” em
tempos e contextos tão diferentes.
Ao comentar a presença da matéria carolíngea entre os sertanejos, Câmara Cascudo, em
sua obra Cinco livros do povo, já identificava como sendo “do povo” as edições portuguesas
sobre essa temática:
A HISTÓRIA DE CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA foi, até
poucos anos, o livro mais conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa
popularidade nos grandes centros urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado,
engenhos de açúcar, residências de praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso
existente em casa. Raríssima no sertão seria a casa sem a HISTÓRIA DE CARLOS
MAGNO, nas velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos
Pares ou a imponência do Imperador da barba florida. (CASCUDO, 1994, p 441)
É nesse cenário que a edição portuguesa de A história do Imperador Carlos Magno e dos
Doze Pares de França coloca-se para os poetas populares como texto matriz que deu origem a
vários folhetos de cordel ao longo dos anos. Estava aberto o caminho para o amplo processo de
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reescrita executado pelos poetas populares que, através do cordel, iriam recontar essa história em
suas narrativas poéticas, adaptadas ao gosto do público e às cores do cenário nordestino.
Ayala, em seu texto Riqueza de pobre (1997, p. 161-162), cita Manoel Cavalcante
Proença, que, ao analisar os folhetos que contam a história de Carlos Magno, afirma não ser
“possível transportar temas sem naturalização” e que “ao povo, pouco lhe importa de onde venha
a lenda. Quando ele vive essa lenda, essa lenda está se passando no Nordeste.” É, através de
recursos dessa ordem, que o poeta popular, assim como o jogral medieval, aproxima o público
leitor de seus textos do conteúdo das gestas francesas. Ele serve como uma espécie de mediador
que adéqua os traços gerais dos intrincados textos portugueses, atribuindo-lhes uma linguagem
que possa ser compreendida pelos seus leitores.
Pode-se observar que essa mediação nada tem de inocente. Ela tem como objetivo
principal a construção de um processo de identificação através do qual o poeta persegue o
autorreconhecimento do sertanejo na figura do nobre ou do bravo guerreiro medieval que, muitas
vezes, tem o sertão nordestino como cenário de lutas lendárias.
Carvalhal (1986, p. 53-54) afirma que
A repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto, etc.) nunca é
inocente. [...] Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar
continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto
antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto
anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inventa.
A popularidade da gesta carolíngea na literatura popular nordestina pode ser constatada
através da retomada dessa temática em vários folhetos e por vários autores. Entre eles, podem-se
citar os seguintes cordéis: A história de Carlos Magno e os Doze Pares de França, de João Lopes
Freire; A batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A prisão de Oliveiros e seus companheiros, de
Leandro Gomes de Barros; A morte dos 12 Pares de França, de Marcos Sampaio; História
completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio da Silva; Roldão no Leão de Ouro, de João
Martins de Athayde.
A elaboração desses textos requer do poeta popular certa fidelidade ao texto que lhe serve
como matriz comum ao folhetos, fato que não o impede de recorrer a certos recursos adaptativos.
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Essas adaptações constroem o que Ivan Cavalcante Proença (1977, p. 40) chama de “as pontes
para o público” e Jerusa Pires Ferreira (1993, p. 21), de “‘Brechas’ da Criação”.
O processo que envolve a elaboração desses textos, partindo de um texto matriz comum,
dá origem a um entrelaçamento intertextual6 quase único na literatura brasileira. Fenômeno
semelhante pode ser registrado na literatura erudita, com os textos Marília de Dirceu, de Tomás
Antônio Gonzaga e com a Canção de exílio, de Gonçalves Dias.
O entrelaçamento intertextual que aproxima o texto História do Imperador Carlos Magno
e dos Doze Pares de França e os folhetos de cordel, já referidos anteriormente, pode ser
percebido através de uma postura narrativa que ora se aproxima da citação, ora da alusão. Os
trechos selecionados dos folhetos A batalha de Oliveiros com Ferrabrás e de A prisão de
Oliveiros e seus companheiros, de Leandro Gomes de Barros, comparados ao texto matriz,7
evidenciam como é elaborado esse processo, não apenas em algumas passagens, mas em toda a
extensão dos dois textos de Leandro Gomes de Barros:
Ferrabraz8 como se viu com tão cruel e quase mortal ferida, iluminado da graça do
Espírito Santo, conheceu o erro dos Turcos; e posta a mão esquerda sobre a ferida, disse
a Oliveiros: Ó nobre cavaleiro, por honra de teu Deus, o qual confesso se verdadeiro, e
6
Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes, define a intertextualidade como sendo uma das relações transtextuais, a
primeira delas, constituída pela relação de copresença de um texto em outro. Segundo Genette, a intertextualidade
tem a seguinte definição: uma relação de copresença entre dois ou mais textos , isto é, essencialmente mais
frequente, pela presença evidente de um texto em outro. Gerard Genette reconhece na intertextualidade três tipos de
relações intertextuais: a citação, o plágio e a alusão. A citação é uma das formas de intertextualidade mais facilmente
perceptível no interior do texto, pois constitui uma citação literal das palavras do autor citado, tornando-se, assim,
bastante explícita. Mesmo sendo uma reprodução parcial de um texto de outro autor, ela pode, ou não, aparecer entre
aspas com uma referência precisa sobre o autor e a obra de onde foi retirado o fragmento. No folheto de cordel, a
relação intertextual não se encontra delimitada no texto através de aspas, embora ela seja visível no decorrer de todo
o folheto.
A transtextualidade é definida por Genette como sendo “tudo o que põe um texto em relação, manifesta ou secreta,
com outros textos” (1982, p. 7). Essa teoria apresenta cinco possibilidades de leituras analíticas para um texto: a
Intertextualidade, que se mostra na superficialidade do texto, de forma explícita ou implícita, e que se confirma
através de três processos: a citação, o plágio e a alusão; a Paratextualidade, que diz respeito a todo texto paralelo ao
texto literário; a Metatextualidade, que estabelece uma relação crítica com outro texto; a Hipertextualidade, que
analisa a relação hipotexto/hipertexto e a Arquitextualidade, que diz respeito à classificação do texto literário,
(GENETTE 1982, p. 7 - 12). Dessa forma, o texto que aqui está sendo tratado como texto matriz é, na realidade,
segundo a teoria de Genette, um hipotexto que dá origem a vários hipertextos.
8
Cumpre assinalar que o texto original foi preservado sem qualquer tipo de alteração na ordem sequencial deste. Foi
feita somente a atualização ortográfica.
7
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Onipotente, te rogo que não me deixes morrer, sem que antes receba o Santo Batismo, e
depois faze de mim quanto quiseres, pois que me venceste em muito leal batalha; [...]
Teve Oliveiros tanto pesar, como contentamento de ver a Ferrabraz convertido, que com
o grande gosto lhe rebentaram as lágrimas pelos olhos, e com grande amor lhe curou a
ferida o melhor que pode. Então disse Ferrabraz: — Oliveiros, convém muito para que a
minha alma se salve, que montes no meu cavalo, e me ajudes a subir nas ancas, ou
atravessado sobre o pescoço, e me leves com brevidade, por que se te detiveste algum
tempo, temo que não tenhas poder para valer-te a ti;nem ao menos para levar-me aonde
tanto desejo ir; porque esta manhã deixei dez mil Turcos emboscados detrás deste
monte; e vendo-me vencido, sairão todos contra ti para eu ser resgatado; o que já não
quero, senão viver na Fé de JESUS Cristo. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS
MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 49-50)
— Nobre e grande cavaleiro!
Disse o turco, arrependido.
Agora estou convencido
Que teu Deus é verdadeiro,
Grande, bom e justiceiro,
Ente de grande mister —
Faz tudo quanto Ele quer,
NEle não há quem O pise!
Te peço que me batize —
Depois faça o que quiser!
Oliveiros, quando acabou
De ouvir o que ele dizia,
Ficou com tanta alegria,
Que, de contente, chorou.
As feridas lhe curou,
Livrou ele de morrer.
Então, se ouviu dizer
Aquela alma fiel:
— Bendito, ó Deus de Israel,
Que foi, que é, que há de ser!
[...]
E disse: — Hás de montar
Em seu cavalo e seguir
E ajudar-me a subir,
Para poder me levar.
E não deves demorar,
Porque estou muito ferido —
Ficarei muito sentido
Em morrer sem batizar-me
E ali tem a esperar-me
Um exército crescido! (BARROS, [19 - -], p. 15 – 16)
Foram levados os cinco Cavaleiros com as mãos atadas, e Oliveiros também com os
olhos tapados, ao Almirante Balão, o qual perguntou a Burlantes seu capitão, que os
trazia presos, qual daqueles era o que tinha vencido a seu filho Ferrabraz? [...]
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Perguntou o Almirante a Oliveiros, quem era, e como se chamava? Respondeu Oliveiros.
— Senhor, eu me chamo Egino, pobre Cavaleiro, aventureiro, somos todos cinco da
Província de Lorena,e viemos servir ao Imperador Carlos Magno só pelo soldo; é a
primeira vez que entramos em batalha. [...]
—E logo chamou a seu camarista Barbaças, e lhe disse: — Faze que estes presos sejam
levados ao campo e despidos, seja atado cada um a seu pau, e se lhe dê cruel morte. —
Disse então o seu Capitão Burlantes: —Senhor, será melhor enviar embaixada ao
Imperador Carlos Magno, para ver se quer dar a teu filho Ferrabraz em troco destes
cinco Cavaleiros. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE
PARES DE FRANÇA, 1864, p. 55-56)
E, naquela multidão,
Levando os prisioneiros,
Entregou os cavaleiros
Ao almirante Balão.
Ele lá como um leão,
Em desesperos fatais,
Igualmente a Satanás
No dia que o céu perdeu,
Disse: — Desses, quem venceu
O meu filho Ferrabraz?
[...]
O rei fez uma mudança:
Perguntou a Oliveiros
Se eles eram cavaleiros
Dos Doze Pares de França.
Oliveiros sem tardança,
Disse: — Nós somos soldados
Muito pouco exercitados.
Somos todos de Lorenda,
Para a primeira contenda
Agora fomos chamados!
Ordenou o almirante
Que para o campo so levassem
E todos cinco matassem,
Por um meio agonizante.
Ali lhe disse Burlante:
—Teu plano não é capaz:
Creio que lucrava mais
Mandar por dois mensageiros
Trocar esses cavaleiros
Por teu filho Ferrabraz. (BARROS, [19 - -], p. 18 – 19)
Os folhetos editados pela Editora Luzeiro, contendo as duas narrativas poéticas, na década
de 1970, já anunciavam, em sua página de abertura, entre parênteses, a seguinte observação:
“(extraídas do livro de Carlos Magno)”. Não se sabe ao certo se esta foi uma atitude já
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apresentada pelo autor na primeira impressão desses textos de cordel. De qualquer forma, este
texto oferece ao leitor do sertão, aquele não tivera em suas mãos a oportunidade de conhecer o
livro da edição portuguesa através do qual vários filhos de pequenos fazendeiros da região
aprenderam ler, a oportunidade de também conhecer essa história.
A transformação do gênero narrativo (prosa) em versos populares, a serem cantados nas
feiras da região, possibilitou ao sertanejo simples a “posse” desse texto, mesmo que fosse apenas
através do ato de ouvir alguém recitar, pois, na maioria das vezes, a leitura era realizada por
aquele que “conhecia as letras” para muitos que apenas ouviam atentamente na calçada para
comentar depois, animadamente, a valentia e a honra dos “cabras” de Carlos Magno, como se
estes fossem personagens tão próximos deles quanto os conhecidos cangaceiros do sertão.
Leandro Gomes de Barros, além de apresentar ao homem simples do sertão nordestino a
matéria oriunda da medieva gesta carolíngea, também exercitava, ao seu modo, não o plágio, mas
já anunciava, em seus folhetos, uma espécie de citação direta quando apresenta ao leitor o
hipotexto gerador de dois grandes hipertextos da literatura de cordel nordestina. De fato, um
grande vanguardista do cordel nordestino. Segundo Cavignac
(2006, p. 83), “os poetas de
cordel seriam trovadores modernos — os últimos detentores de uma tradição multissecular — e o
folheto seria uma prova, entre outras, da sobrevivência da Idade Média europeia no Brasil.”
Os versos da narrativa poética de cordel recortam o essencial do texto em português em
prosa e, por vezes, aproximam-se tanto, que chegam a “se tocar” nas palavras, nos nomes e nas
ações das personagens. Esse aparente distanciamento do hipotexto permite ao poeta popular a
“síntese” necessária aos recortes dos detalhes essenciais da narrativa na atividade de reescrita.
Observe-se como o poeta popular preenche os espaços dos detalhes suprimidos em relação à
narrativa de origem com elementos bem próximos da linguagem e do mundo de seus leitores; o
almirante Balão, pelo desespero em que se encontrava, estava “como um leão”, símbolo de
ferocidade, e é também comparado a Satanás em maldade. Uma espécie de gradação que conduz
o leitor à elaboração de uma imagem deformada pelo desespero e pela maldade para o
personagem que foi o algoz do grande guerreiro Oliveiros.
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Esses mesmos recursos também conduzem à elaboração dos demais folhetos acerca dessa
temática, mesmo sendo elaborados por diferentes autores. O episódio da prisão de Oliveiros
pelos turcos, entre outros, também será narrado no folheto A história de Carlos Magno e os Doze
Pares de França, de João Lopes Freire. Observe-se que o desenvolver da narrativa poética
acontece de tal forma que permite ao leitor o reconhecimento de uma postura poética muito
próxima, tanto em relação ao hipotexto quanto em relação aos demais folhetos dos poetas
populares que versam sobre a temática carolíngea:
Dali fizeram partida
tudo cheios de emoção
e levaram Oliveiros
para o almirante Balão
disse este venceu meu filho
mas vai pagar na prisão.
Ordenou o almirante
que os levasse em um instante
podia mandar matar com a morte agonizante
assim fazia a vingança
sobre o seu filho importante.
Deu-lhe o conselho brilhante
este palamo não é capaz
é melhor formar uma troca
de Oliveiros por Ferrabraz
porque ele é teu filho
e talvez tu não veja ele mais. (FREIRE, [19 - -], p.30 -31)
O folheto de João Lopes Freire apresenta uma estrutura poética diferenciada daquela
apresentada por Leandro Gomes de Barros nos referidos folhetos, pois sua estrofe é uma sextilha
de sete sílabas, enquanto que os outros folhetos são estruturados em martelos (décimas de sete
sílabas) e, já nas primeiras estrofes, sugere ao leitor uma justificativa do poeta para a escrita sobre
o tema:
Minha caneta de ouro
prendo ela em minha mão
para escrever uma história
de grande admiração
a vida de Carlos Magno
que foi Imperador Cristão. (FREIRE, [19 - -], p.1)
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Primeiramente, o poeta popular faz referência a um de seus principais instrumentos de
trabalho, a caneta. Ela é de “ouro”, uma matéria nobre para contar a história de nobres. A
exaltação da fé cristã surge, na narrativa, como uma verdadeira “ponte” entre o religioso
sertanejo e o folheto que se inicia, pois Carlos Magno assume, já nos primeiros versos do poeta,
a função de símbolo de luta pela fé cristã, afinal ele foi o “Imperador Cristão”, e a absolutização
dessas palavras já revelam ao leitor a intenção do poeta em contar a história daquele era o
defensor dos cristãos e que, em suas batalhas, “recebia forças / das regiões divinais”, pois era
“um enviado / do divino Espírito Santo / para defender a Igreja”.
Esse folheto apresenta-se como uma espécie de síntese de toda a narrativa da edição
portuguesa, pois os demais tratam de alguns episódios da narrativa. Por exemplo, os textos de
Leandro Gomes de Barros narram apenas os capítulos referentes à batalha de Oliveiros com o
gigante Ferrabraz e a prisão do guerreiro de França pelos turcos, presentes no Livro II, da edição
portuguesa. Assim sendo, essa edição, não somente sintetiza para o leitor a história de Carlos
Magno e dos Doze Pares de França, mas também se narra episódios que serão retomados
isoladamente por outros autores, em outros folhetos.
A história do romance proibido de Berta, mãe de Roldão e irmã do rei Carlos Magno, e do
Duque Milão, pai de Roldão, a origem de Roldão e a explicação para o seu nome, a sua armação
como Cavaleiro, assim como a sua morte fazem parte da narrativa de João Lopes Freire e também
do cordel História completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio da Silva, episódios
narrados nos livros IV e V da
Primeira Parte da edição portuguesa:
Saídos dos estados de França os dois Esposos chegaram à Itália; e desviando-se sempre
dos lugares públicos para não serem conhecidos, chegaram a um deserto pertencente, e
junto à Cidade de Sena, e achando entre os mais ásperos penhascos uma profunda cova,
se acomodaram nela, valendo-se para seu sustento das silvestres frutas, rústicas ervas.
Passados poucos dias daquela rústica habitação, começou Berta a sentir as dores do
parto, que se fazia mais penoso, por não terem, nem para seu sustento, nem para enfaixar
o fruto nascido. E assim todo cheio de lágrimas, e suspiros, saiu Milão da cova, e se foi
por aqueles campos pedir esmola.
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Ausente Milão, começara a crescer as dores em Berta, de sorte que a faziam andar aos
tombos pela cova; e como estava só, se viu tão aflita, que chegou ao último instante de
sua vida, sem poder articular palavra. Em fim, chegou a parir um menino junto da boca
da cova, o qual caindo sobre a terra, veio rodando por ela um grande espaço até um
plano, que estava defronte da cova, por fazer ali uma ladeira, chegando Milão, e vendo
aqueles dois espetáculos, sua esposa como morta, e a seu filho rodando pela terra tomou
o menino e o lavou, e aquentando uns toscos coeirinhos, que pelo amor de Deus lhe
tinham dado, o envolveu neles, e lavando também Berta a apertou, e logo consertou a
cama com o novo mato, e deixou a ambos nela.
Enquanto o menino dormiu, esteve Milão contando a Berta na forma que o tinha achado
rodando sobre a terra todo ensanguentado, porque Berta não o tinha visto, pois quando o
pariu estava sem sentidos. Quando Berta tal ouviu, começou de novo a dar graças a
Deus, de ter livrado aquele inocente de morrer pagão, e o mesmo fazia Milão, e assim
ajustaram de o batizar, e por-lhe o nome de Rodando, (pois rodando nasceu) e hoje se
chama Roldão, por corrupção do vocábulo. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS
MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 195-196)
Depois que Carlos Magno chegou à França, começo a examinar em várias matérias, e
também nas de guerra o seu sobrinho Roldão, porém ele as sabia melhor do que eles,
porque em todas era insigne, principalmente na arte de Cavalaria. Justas e Torneios; era
tão valente, que não havia quem com ele quisesse jogar as lutas, ainda que fosse o mais
valente homem.
Vendo Carlos Magno tantos prodígios em seu sobrinho, logo tratou (ainda que não tinha
idade completa) de o armar cavaleiro, para o que convocou toda a corte, e todos
uniformemente o consentiram, e foi o dia de maior aplauso, e festejos que jamais
houve.
Armado Cavaleiro Roldão, sendo de nove anos, na forma costumado, se mandaram
apregoar as festas, Justas e Torneios feitas em seu aplauso; para o que concorreram os
melhores cavaleiros, não só do mesmo Reino, mas também dos Estrangeiros.
(HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE
FRANÇA, 1864, p. 208-209)
Tornando em si Roldão, juntou as mãos, e olhando para o Céu pedia perdão a Deus [...] e
depois abraçando-se com a espada, disse: In manus tuas, Domine, commendo spiritum
meum. Que quer dizer: nas tuas mãos, Senhor, encomendo a minha alma. (HISTÓRIA
DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p.
184)
Junto a cidade Sena
em um matagal afastado
tinha uma profunda cova
Milão olha com cuidado
viu que ali com sua esposa
dava para ficar hospedado.
[...]
Milão precisava sair
para procurar o que comer
e um dia ele saiu
Berta começou sofrer
e as dores do parto
começou a aparecer.
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Viu o seu filho nascer
ela gemendo e chorando
porém na bera da cova
a criança saiu rolando
por Deus que nessa hora
Roldão ia chegando.
[...]
A palavra roldão
porque ele nasceu bolando
quando Berta deu a luz
nada ficou enxergando
o lugar era acidentado
a criança saiu rolando. (FREIRE, [19 - -], p.9-10)
[...]
Com 9 anos de idade
Carlos Magno mandou chamar
deu-lhe cavalo e armamento
para ele poder treinar
não tinha o que aprender
mas tinha o que ensinar. (FREIRE, [19 - -], p.16)
[...]
Sua espada duridana
morreu abraçado com ela
foi a sua defensora
que lhe serviu de vela
em todos os momentos
nunca se separou dela. (FREIRE, [19 - -], p.38)
Passaram longe de Roma
perto a cidade de Sena
encontraram num deserto
uma furna bem pequena
Berta ia num estado
que quem visse tinha pena
Ficaram ali nessa cova
ambos dormindo no chão
frutas e hervas silvestres
era a alimentação
e ela ainda assombrada
do rancor de seu irmão.
[...]
Ficou ela já com dores
e Milão saiu sozinho
pelos casebres dos campos
chorando pelo caminho
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implorando alguma esmola
pra socorrer seu filhinho
Na ausência do esposo
duplicou mais seu sofrer
pois a furna era apertada
para ela se mover
já bem na boca da furna
veio a criança nascer
Saiu rodando a criança
por sobre uma lanceada
perto havia uma ladeira
ficou ali encostada
Berta nas folhas e sem fala
muito abatida e prostrada.
Milão arranjou nas casas
alimento e mais de um coeiro
achou a mulher no campo
e o filho taboleiro
ele não soube dos dois
qual acudisse primeiro.
[...]
Milão tomou-o nos braços
e seguiu no outro dia
apresentou o menino
ao cura da freguesia
com o nome de Rodando
foi batizado na pia.
O pai achou-o rodando
ensanguentado no chão
e da palavra rodando
foi derivado Roldão [...] (SILVA, 1960, p. 10 – 12)
Admirava a todos
e a real majestade
os cavaleiros da corte
lhe tomaram amizade
foi armado cavaleiro
com nove anos de idade.
Começou com nove anos
pelo tio foi armado
e nas batalhas que ia
tirava bom resultado
que dentre os mais cavaleiros
foi ele o mais respeitado. (SILVA, 1960, p. 26)
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O entrelaçamento intertextual que aproxima os dois folhetos e a edição portuguesa é
facilmente identificado através da referência aos personagens, aos mesmos fatos narrados, aos
mesmos espaços descritos e também através da sugestão de exaltação à figura do herói Roldão.
Observe-se, ainda, que o folheto História completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio
da Silva, apesar de anunciar a “história completa” de Roldão, narra apenas uma parte, pois a
morte desse cavaleiro não é descrita nesse cordel, como acontece no folheto de João Lopes
Freire.
Existem ainda dois outros folhetos que se apresentam ao público leitor do cordel
nordestino como reescritas das histórias dos heróis carolíngeos e que têm como texto de origem a
mesma edição portuguesa aqui apresentada. São eles A morte dos 12 Pares de França, de Marcos
Sampaio, e Roldão no Leão de Ouro, de João Martins de Athayde.
Oh maldito Galalão, o mal aventurado homem, nasceste de sangue nobre, e por avarento
foste traidor! Sendo rico te moveste por dinheiro! Sendo grande, e nobre te fizeste
pequeno, baixo e vil! Foste escolhido entre tantos, tão grandes cavaleiros para ir com a
embaixada, e vendeste a teu Senhor! [...]
E sempre foste traidor, e ambicioso, pois por um quase nada vendeste o que mais valia
que todo o mundo.
Oh perversa avareza, inimiga de toda a caridade, e da boa virtude, de quantos males és
causadora! Por avareza vendeu Judas a Jesus Cristo, por avareza foi Adão desobediente
ao seu Criador, por avareza foi a cidade de Troia destruída; e pela avareza vendeu
Galalão aos nobres, e virtuosos Cavaleiros. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS
MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 178)
Oh! maldito Galalão
mau desaventurado homem
nasceste de sangue nobre
a avareza te consome
sendo rico te vendeste
botando em lama teu nome
Tu sendo um príncipe nobre
de tão alta distinção
foste escolhido por todos
para tão fina missão
porém com tua nobreza
usaste a negra traição
[...]
Cometeste contra Deus
a mais infame maldade
de vender teus companheiros
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aos monstros sem piedade
tu covarde hás de sentir
o pago disto mais tarde
Tu era sempre traidor
em tudo o mais vagabundo
vendeste o que valia mais
do que tudo neste mundo
botaste teus companheiros
no abismo mais profundo
Por avareza vendeu Judas
a Jesus nosso Redentor
por avareza foi Adão
desobediente ao criador
por avareza vendeu
Galalão o seu senhor (SAMPAIO, 1954, p. 4-6)
A proximidade entre os textos, no caso desse folheto, é tão evidente que o poeta popular
transforma em versos certas passagens da narrativa em prosa. Assume a mesma postura de
desdém em relação ao personagem Galalão e às suas ações de traidor. Assim como no hipotexto,
o cordel nordestino transforma esse personagem da saga carolíngea em alguém tão desprezível
quanto aqueles que, segundo o Cristianismo, cometeram os maiores erros de toda a história da
humanidade. Observe-se que o poeta omitiu, em seus versos, a referência à lendária Troia,
possivelmente, um recurso para atribuir mais veracidade à construção caricata desse personagem
que, em solo sertanejo, ainda tem seu nome relacionado à ideia de alguém traiçoeiro, perigoso. O
castigo atribuído a esse personagem não poderia ser menor que o seu erro, pois a simples morte
não vingaria nem ao Rei Carlos Magno, que perdeu os Doze Pares de França, por causa da traição
de Galalão, e nem o público sertanejo que o condenou perpetuamente.
[...] mandou Carlos Magno que Galalão fosse atado a quatro ferozes cavalos, a cada
braço um, e cada pé outro, e depois de bem atado, cavalgaram quatro homens nos quatro
cavalos, e cada um partiu para sua parte, e todos ao mesmo tempo, e cada cavalo saiu
com seu quarto. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE
PARES DE FRANÇA, 1864, p. 187)
Quatro ferozes cavalos
Carlos Magno mandou buscar
e pegaram Galalão
e neles foram amarrar
em cada cavalo um membro
era para estraçalhar
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Então os quatro cavalos
partiram em velocidade
e do infame Galalão
cada um levou a metade
era o fim do desgraçado
que usou da falsidade. (SAMPAIO, 1954, p. 30)
Se a temática amorosa é praticamente inexistente em A Canção de Rolando, a edição
portuguesa da História do imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França abre espaço
para o capítulo lírico da vida de Rolando e permite ao poeta popular do Nordeste brasileiro
João Martins de Athayde, no folheto Roldão no Leão de Ouro, assim como o fez Boiardo, ao
cantar para o mundo o seu “Orlando innamorato”, cantar em seus versos a paixão de Roldão pela
princesa Angélica, assim como o seu casamento.
Tinha o leão uma porta na barriga, que se abria por dentro, e fora, é tão sutil, que só
quem soubesse o segredo a percebia; por ela meteu Ricarte a Roldão e ajustando os
braços e pernas pelas do leão e cabeça, e mais partes da mesma sorte, fechou a porta e
ficou Roldão dentro à sua vontade, porque para ver tinha o leão furado os olhos, e para
respirar os narizes e a boca; [...] desta sorte com as molas que o leão tinha nos braços e
pernas, movendo Roldão os seus, parecia era o mesmo leão que se movia por si.
(HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE
FRANÇA, 1864, p. 242)
Este leão tinha juntas
que andava e se movia
todo de barriga oca
nele um homem cabia
e tinha os olhos furados
que escondido tudo via
[...]
Quando o leão estava pronto
Ricarte chamou Roldão
e mandou que ele entrasse
na barriga do leão
pois só assim ele via
D. Angelica na prisão (ATHAYDE, 1960, p. 14-15)
Aqui o texto do folheto não está tão próximo do hipotexto ou texto matriz quanto no
poema de Sampaio. Embora existam elementos comuns aos dois textos, estes não se apresentam
com as características de proximidade narrativa dos textos anteriormente citados. Faz-se
importante lembrar que, através da alusão, a leitura intertextual remete o leitor, duplamente, a
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outro texto anterior ao folheto e à edição portuguesa; a referência ao leão de ouro como artifício
que possibilita a Roldão o ato de infiltrar-se na prisão da princesa Angelica conduz o leitor a
outro possível vínculo de intertextualidade: os versos de Homero e o famoso cavalo de troia. Mas
esta é somente uma das muitas páginas, que cabe entre uma página e outra do infinito “livro de
areia” que é o cordel nordestino.
3 Considerações finais
A leitura da poesia popular sertaneja possibilita ao leitor de hoje um encantamento
diferente daquele que evocava no sertanejo do início do século passado. É evidente que, em cada
época, existem obras, autores e públicos específicos. Esse é o grande círculo da produção literária
culta ou popular. Mas a magia dos grandes textos não morre com o tempo. Dada a sua grandeza,
eles sempre encontram alguém que os faça ressurgir com aparência e novos sentidos para
encantar um novo leitor. Esse é o processo que possibilitou ao sertanejo simples, através da mão
calejada do poeta popular, o contato e a identificação imediata com as aventuras do rei Carlos
Magno e seus guerreiros. Foi pelos versos cantados pelo poeta popular nas feiras nordestinas que
a temática oriunda da matéria de França, pertencente às páginas medievais, foi lida, ouvida e
preenchida de novos sentidos por um novo público leitor, o homem simples do campo no início
do século XX, no Nordeste brasileiro.
Na modernidade, a lenda carolíngea e seus heróis, assim como o cordel nordestino,
continuam seu caminho na direção de novos leitores e de novas leituras. Exemplo desse fato são
as edições em quadrinhos da Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, de Leandro Gomes de Barros
(desenhada pelo cearense Klévisson Viana e promovida pela Secretaria de Cultura do Ceará), e
da obra Rolando (publicada no Brasil, em 2005, pela Via Lettera Editora), que remete o leitor ao
texto da Canção de Rolando.
Abre-se, assim, a partir de novas propostas como estas, um novo tempo para a literatura
popular do Nordeste e também um novo público, certamente. É a leitura da imagem atrelada às
palavras e à construção de sentidos. Por essa via, os folhetos e a matéria carolíngea têm uma
roupagem nova, mas, apesar desse fato, acredita-se que o encanto poético advindo da essência da
narrativa do cordel e da medieva gesta francesa ainda é o aspecto de oralidade, o contar
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recitando, a identificação imediata do leitor / ouvinte, pois nasceram do povo e da sua vontade de
cantar, de contar, mas também de recontar / reescrever, ao seu modo, as histórias passadas para
uma geração do presente.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
O ASSASSINO DO AQUEDUTO E SUA REPRESENTAÇÃO NA LITERATURA
POPULAR PORTUGUESA
Nilce Camila de Carvalho1
RESUMO: Diogo Alves foi um célebre bandido português do século XIX que ficou conhecido como “O assassino
do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa”. Sua principal prática criminosa consistia em assaltar e jogar a vítima do
alto do Arco Grande a fim de que não houvesse testemunha. Apesar de ter ficado famoso por esses crimes, ele foi
julgado e condenado à forca por um outro. Diogo Alves transformou-se em uma lenda urbana. Sua história deu
origem a livros, folhetos de cordel e filmes, seus atos são lembrados até hoje pelos lisboetas, uma vez que sua
memória ficou atrelada ao aqueduto. Assim, a proposta desse artigo é refletir sobre o personagem, seus crimes e sua
lenda, discutindo as suas representações literárias e as explícitas intenções dos autores.
PALAVRAS-CHAVE: Bandido; lenda; literatura popular; representação.
ABSTRACT: Diogo Alves was a famous nineteenth-century Portuguese bandit who became commonly known as
"The murderer of the Águas Livres Aqueduct of Lisbon". His main criminal activity was to rob and then throw the
victim from the top of the Great Arch, a section of this Aqueduct, intending to left no witnesses. Despite having
become famous for those crimes, he was tried and hanged by another. Diogo Alves became an urban legend. His
story originated several books, brochures, pamphlets and movies, his crimes are remembered even today by the
Lisboans, since his memory has been engraved in the aqueduct. Thus, the aim of this paper is to discuss this
character, his crimes and his legend, debating his literary representations as well as the intentions of the authors.
KEYWORDS: Outlaw; legend; popular literature; representation.
Na literatura popular portuguesa existem séries de folhetos de cordel que narram as
façanhas de bandidos que se tornaram populares. Sobre esse tema, foram produzidas, entre o final
do século XIX e as primeiras décadas do século XX, três coleções: “Histórias populares
portuguezas”, “Grandes criminosos” e “Criminosos célebres”. Tais folhetos apresentam a vida e
os crimes desses homens lendários.
José do Telhado, João Brandão, Diogo Alves e Remexido são os bandoleiros mais
destacados na literatura de cordel portuguesa. Todos viveram no século XIX e atuaram em
determinadas regiões: Zé do Telhado na região do Minho e Trás-os-montes; João Brandão na
Beira; Remexido na serra do Algarve; e Diogo Alves em Lisboa, único bandido urbano entre os
citados.
1
Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Estadual de Londrina. Esse trabalho foi realizado a partir do
estágio PDSE financiado pela CAPES (Proc. 9829-12-1) sob a orientação do Prof. Dr. José Joaquim Dias Marques
(Universidade do Algarve/ Portugal)
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A reflexão acerca do momento histórico vivido por esses personagens auxilia na
compreensão dos motivos que os conduziram à vida criminosa. José do Telhado é o bandido
aclamado popularmente como “Robin Hood português”. Ele se alistou no regimento dos
Lanceiros da Rainha, participou de revoltas populares, foi condecorado com a medalha da Torre
e Espada por salvar a vida do general Sá de Bandeira e, no entanto, com a mudança das diretrizes
políticas, se viu perseguido por representantes do governo, desempregado e com uma família para
sustentar. A partir desse momento, segundo as representações literárias acerca desse personagem,
Zé do Telhado entrou para a vida criminosa, mas agiu de acordo com seus nobres princípios.
Remexido foi um guerrilheiro que lutou bravamente pelos interesses miguelistas na
Guerra Civil (1823-1834), a qual opôs absolutistas, que apoiavam D. Miguel, e liberais,
defensores de D. Maria. Após o exílio de D. Miguel, o governo português decidiu extinguir as
revoltas localizadas que ainda demonstravam apoio à política absolutista. Diante desse quadro,
Remexido resolveu manter-se escondido na Serra do Algarve, lugar de difícil acesso para o
exército da rainha, e continuou com sua guerrilha particular conhecida como “A guerrilha do
Homem da Serra” (1834-1838). Para subsistência de seu grupo, Remexido saqueou as vilas mais
próximas e as estradas, ações que o qualificou também como bandoleiro.
João Brandão, conhecido como o “terror da Beira”, era de uma família liberal que foi
acirradamente perseguida a partir de 1828. Com o fim da guerrilha que perseguia os miguelistas,
a família conseguiu se restabelecer servindo no combate aos miguelistas insurretos. Mais tarde,
João Brandão fez parte do concelho de Midões que elegia os deputados que iam para a capital.
Em 1853, recebeu permissão para perseguir os ladrões e assassinos da Beira. Mesmo “agindo
dentro da lei”, os excessos cometidos por João Brandão, enquanto exercia esse poder local, foram
responsáveis por seu declínio posterior, uma vez que houve interesses políticos em condená-lo.
Em relação a esses bandidos, Diogo Alves é o que mais destoa, não apenas por ser um
bandido citadino, mas também por não ter um claro objetivo político. A conjuntura social que
levou esse personagem à vida de crimes difere bastante em relação a dos outros, e seus motivos
foram considerados mais sórdidos pela população e pelos autores que se dedicaram a narrar sua
história.
Os crimes que mais causaram indignação popular foram cometidos no Aqueduto das
Águas Livres de Lisboa, o qual foi construído sob a ordem de Rei D. João V para o fornecimento
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de água potável para a cidade, e seu funcionamento se deu a partir de 1748. O “caminho dos
arcos” era utilizado para ir dos bairros mais periféricos, como Benfica, passando por cima do vale
de Alcântara, em direção ao centro da cidade. Diogo Alves possuía (não se sabe como) uma
chave falsa de uma das galerias interiores dos arcos. Sua prática criminosa consistia em assaltar o
transeunte solitário que percorria aquele caminho, e após roubá-lo, para evitar que houvesse
delação, jogava-o do alto do Arco Grande. As obras relatam que esses roubos seguidos de
assassinatos duraram cerca de 6 meses e, por falta de investigação policial, não se pode apurar o
número exato das vítimas.
Embora tenha se tornado famoso pelos crimes do aqueduto, o bandoleiro foi julgado e
condenado por um outro crime: o assalto à casa de um médico na Rua das Flores. As várias
representações existentes sobre Diogo Alves imputam-lhe certo “pendor” e “satisfação” em
relação ao crime. Tais características o tornaram o assassino mais caricato da literatura popular
portuguesa. Em razão dessas peculiaridades, esse artigo tem como objetivo analisar a
representação literária de Diogo Alves, o assassino do aqueduto.
Todos os bandoleiros citados tiveram várias representações literárias. Zé do Telhado é o
que mais suscitou obras e tem um lugar marcado na tradição oral, não só em sua região, mas em
todo Portugal. Histórias de bandidos, alguns heroificados como Zé do Telhado, sempre
encantaram a imaginação popular. São figuras que cativam e empolgam por sua coragem e
destemor, e outras vezes que aterrorizam por sua crueldade e frieza.
Não raro, o relato das façanhas desses personagens são caracterizados como literatura de
aventuras. Nesse sentido, exercem a função de entreter o leitor, transmitindo àqueles que ouvem
ou leem suas histórias uma sensação de liberdade e de poder que, geralmente, não desfrutam em
suas vidas rotineiras. Roger Chartier ao analisar os folhetos2 sobre um bandido popular francês do
século XVII, Guilleri, argumenta:
Diferentes por sua data, origem, gênero, estilo, esses textos repousam, entretanto, sobre
uma mesma solicitação do imaginário dos leitores, introduzidos no mundo inquietante e
atraente, secreto e aberto, dos trapaceiros de toda espécie. Quer a ficção seja dada como
2
Chartier analisa o interesse popular pela leitura dos folhetos que hoje compõem o acervo da Biblioteca Azul,
folhetos baratos que circulavam na França do Antigo Regime, muito dos quais narravam histórias de malandros,
trapaceiros e bandidos, personagens que permitiam aos leitores conhecer não só os seus modos de vida e as suas
sutilezas como também suas gírias, os jargões utilizados por eles e que eram empregados na escritura dos livretos
Entre os folhetos mais populares está a Vida generosa dos andarilhos, mendigos e boêmios (última edição em 1627)
e O vagabundo ou a história e o caráter da malícia e da trapaça daqueles que correm o mundo às expensas dos
outros (editado primeiramente em italiano em 1621). Ver (CHARTIER, 2004, cap. 8).
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verdade quer o discurso realista contenha intenções divertidas, picarescas ou burlescas, o
objetivo é o mesmo: descrever a sociedade dos malandros, oferecer como leitura a
perambulação vagabunda para aqueles que permanecem no lugar, a trapaça para os
honestos, a aventura para quem só conhece a repetição familiar dos trabalhos cotidianos.
(CHARTIER, 2004, p. 289).
Além de apresentar um tema popularesco, os folhetos instigavam a leitura por incluir nas
publicações dicionários e/ou léxicos que permitiam aos leitores compartilhar da linguagem
secreta dos malandros e do “estilo de vida” dos vagabundos. Tais características são a razão de
seu sucesso na França do século XVII. A “fórmula editorial” (CHARTIER apud ABREU, 1999,
p. 23), publicações em brochuras e em papel barato, é comum em toda a Europa e auxiliou na
popularização da literatura erudita através de adaptações.
Considerado em Portugal como literatura de cordel, esse “gênero editorial” tornou-se
bastante popular, praticado desde o século XVI, também divulgou textos literários antes restritos
a um pequeno grupo social (ABREU, 1999, p. 24-25) e sua produção abarca uma grande
variedade de assuntos e temas de diferentes gêneros e formas como “autos, pequenas novelas,
farsas, contos fantásticos, moralizantes, histórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras,
notícias...além de poder ser escrita em prosa, em verso ou sob a forma de peça teatral” (ABREU,
1999, p. 21).
É dentro desse “gênero editorial” que foram produzidas grande parte das narrativas sobre
Diogo Alves. Escritos em prosa: a coleção “Crimes e Criminosos Célebres”, sob a autoria de Belo
Redondo e Tomé Vieira, publicou Diogo Alves e a sua quadrilha (18--); a coleção intititulada “Os
Grandes Criminosos” publicou Os crimes de Diogo Alves e da sua quadrilha (1922); a coleção
“Histórias Populares Portuguezas” publicou o folheto intitulado História verdadeira e completa
do celebre ladrão e assassino Diogo Alves (19--); há também um folheto com o título Vida, e
Morte de Diogo Alves (1841) escrito por Francisco Antonio Martins Bastos3.
No campo da poesia, tem-se duas publicações: O supplicio de Diogo Alves: canto
funebre... (1841), escrito por Antonio Manoel Terras, e Conversação nocturna que teve o reu
Francisco Mattos Lobo, com a sombra de Diogo Alves (1841) de autoria de A. J. P.. Trata-se de
dois longos poemas compostos ao estilo romântico. O primeiro, de composição mais trabalhada e
com vocábulos rebuscados, tece uma reflexão sobre a pena de morte imputada ao bandido e canta
3
Em razão das semelhanças de forma e conteúdo desses folhetos, eles serão referidos apenas genericamente como
“folhetos” nesse artigo. Como “obras” refiro-me a toda a produção relacionada à Diogo Alves.
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seus últimos momentos que vão da entrada no Oratório até o patíbulo. O segundo poema é um
diálogo entre um bandoleiro preso, Francisco Mattos, e a alma de Diogo Alves que surge para
lamentar seus infames crimes e admoestar o seu “sucessor” em atrocidades. Esse segundo poema
possui uma linguagem com marcas evidentes de oralidade, característica resultante de sua própria
especificidade dialógica que o torna mais fluído e, portanto, mais popular.
Em 1877, Leite Bastos publicou O crimes de Diogo Alves, obra que classificou como
biografia romanceada e na qual narra a vida, os crimes e a relação do bandoleiro com sua
quadrilha, inclusive com sua amante, situando histórica e socialmente as ações do personagem na
cidade de Lisboa. É a obra mais vigorosa e detalhada existente sobre Diogo Alves por tencionar
reconstruir o universo típico dos bandoleiros na época, se valendo, para tanto, da linguagem
popular e das gírias dos malandros e vadios que perambulavam pelas ruas e vielas da capital.
Diogo Alves e os crimes do aqueduto (2003), de Artur Varatojo, também dedica-se à vida
de crimes do personagem, no que se aproxima a todas as outras anteriores, porém, essa obra
contém um capítulo inusitado intitulado “Estudo do crânio de Diogo Alves”. Artur Varatojo,
formado em direito e medicina legal, foi um escritor dedicado à análise criminológica, conhecido
popularmente como “Inspetor Varatojo”. Ele publicava crônicas semanais no jornal A Capital sob
o título “O crime visto por Artur Varatojo”, teve programas televisivos e radiofônicos (“Na pista
do crime”). Com sua formação voltada para o estudo criminológico, Artur Varatojo se aproveitou
do fascínio popular pelo crime. No entanto, nesse caso, o que surpreende é o fato de sua análise
sobre Diogo Alves ser baseada em conceitos cientificistas4 do século XIX, os quais são
transmitidos como sendo plausíveis no século XXI.
Diogo Alves cometeu seus crimes entre os anos de 1836 e 1839. Sua alcunha era “o
Pancada”, ele nasceu em Lugo na Galícia (Espanha) em 1810 e aos treze anos, como ocorreu
entre muitos galegos, deixou os pais e foi tentar melhores condições de vida em Portugal.
De modo geral, essas obras apresentadas acima narram momentos cruciais da vida de
Diogo Alves. Principiam comentando sua partida da Galícia, sua obediência aos pais, pobres e
honrados camponeses, seu trabalho de boleeiro (cocheiro) na cidade de Lisboa. Todos os autores
Não é insignificante reiterar que esses conceitos cientificistas baseavam-se no racismo científico, na
eugenia e na craniometria. No caso, a análise de Varatojo parte do princípio de que o crânio de Diogo Alves
possuia anomalias que indicavam sua propensão inata para o crime.
4
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afirmam que Diogo Alves não apresentava nenhum indício do assassino que viria a ser. Era, ao
contrário, muito bom empregado e honesto.
No século XIX, era comum aos galegos sairem de sua terra e irem a Lisboa trabalhar
como “criado de servir”. A intenção desses migrantes era conseguir uma economia suficiente para
uma vida modesta na Galícia. Os galegos tinham já demarcadas as funções que poderiam exercer
na capital portuguesa: aguadeiro, boleeiro, “moço de recado”, criado doméstico, carregador, entre
outras. Tais profissões eram vistas com desdém por serem trabalhos braçais e não qualificados,
assim, aqueles que as exerciam eram alvo de preconceitos e ridicularizações5.
Diogo Alves, segundo os autores dos folhetos, obteve certa fama como boleeiro.
Inclusive, Belo Redondo e Tomé Vieira afirmam que ele era um profissional disputado no ramo.
Afirmam ainda que, após esse princípio de vida calma e sem turbulências na capital, Diogo Alves
começou a frequentar tavernas e viciou-se no jogo. É dessa forma que começou sua derrocada:
bebia e jogava, não levava mais o trabalho a sério, consequentemente, o seu último patrão, ao
perceber algumas mudanças em seu comportamento, o dispensou temendo um desenlace
violento. Diogo Alves, já então com má fama, não conseguiu mais colocação profissional.
Os folhetos são unânimes ao apontar para a influência exercida pela taberneira Gertrudes
Maria, a Parreirinha, sobre o personagem. Diogo havia a conhecido na tasca que esta mantinha
em uma ruela chamada Águas Boas. Era uma portuguesa separada do marido e que morava com
dois filhos. A taberna, segundo os autores, era mal frequentada, com aspecto sombrio e sujo e a
taberneira é descrita como uma mulher vulgar, uma felina, tão sórdida quanto o lugar em que
trabalhava. Diogo Alves se apaixonou pela Parreirinha, e essa mulher foi acusada pelos autores e
pela tradição popular de ser a responsável pela perdição do galego. No folheto Os crime de Diogo
Alves, da coleção “Os Grandes criminosos”, lê-se:
O seu conhecimento e ligação com uma mulher de baixa esféra como elle, mas de má
conduta, e a sugestão que ella soube exercer sobre o seu pobre e fraco espirito
compeliram-o á pratica de nefandos átos e a entregar-se a uma vida desregrada de vicio
em que a taberna o iniciou e que d'ali para diante seguiu sempre até morrer.
[…]
E' aqui que começa a vida aventurosa de Diogo Alves que o conhecimento de tal mulher
instigou e impeliu para o crime como vamos vêr o que durou a sua acção no Aqueduto
das Aguas Livres, a que Diogo Alves deixou ligado o seu nome. (ANONIMO, 18?, p. 45
Esses imigrantes galegos eram vistos sobretudo como grosseiros, avarentos e, às vezes, beberrões. Há toda uma
produção cultural portuguesa da primeira metade do século XIX que pretende ridicularizar a imagem desses
imigrantes (JUSTO, 2011, p.41).
273
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5)
No caso, o papel atribuido à Parreirinha remete à concepção que se tinha da mulher
naquele período histórico. Ela poderia ser a mulher honrada, submissa, que servia e ajudava o
marido ou poderia ser a sua perdição. Parreirinha é descrita como “fera”, “gralha sinistra”,
“monstro”, “abominação”, “mulher perversa” que ofereceu o “fruto proibido ao homem”. No
mesmo sentido, em Diogo Alves e sua quadrilha, Belo Redondo e Tomé Vieira afirmam que
Mais do que a Diogo Alves, o ódio popular recaíu, principalmente, sôbre a Parreirinha,
visou especialmente a amante do salteador. Ela ficou como o génio do Mal, a sinistra
inspiradora das atrocidades que o outro praticou, pervertedora de um homem que, antes
de a conhecer, fôra sempre orientado pelos preceitos da dignidade e da honra. A história
de Diogo Alves, contada pelo Povo, reconstituída de reminiscência em reminiscência,
transmitida de coração em coração, é a história de alguém que se perdeu por amor, que
desceu às maiores vilanias e baixezas para conquistar e manter a mulher que não o
merecia.
(…)
(…) o ladrão e assassino só o foi por inspiração, alento e domínio da Parreirinha, que
esta mantinha um extraordinário poder sôbre êle, colaborou activamente em muitas das
suas tristes façanhas e que era para satisfazer os caprichos e necessidades da sua amante
que o bandoleiro roubava e matava (REDONDO; VIEIRA, 1930, p. 13)
Apesar de a justiça condenar Diogo Alves à forca6 e de a população ter-se horrorizado
com seus crimes, a visão concebida em torno da amante do bandido é ainda mais avassaladora,
sendo ela tida como a “musa inspiradora” do criminoso, para a qual seus atos convergem. Essa
culpabilidade atribuída à Parreirinha advém da formação machista e religiosa portuguesa e dos
preceitos sob os quais eram qualificados a figura feminina no século XIX. O simples fato de ser
mulher atrairia julgamentos duvidosos, como então qualificar uma mulher pobre, separada do
marido e que trabalhava em uma tasca?
A mesma leitura religiosa feita acerca da Parreirinha norteia também a própria iniciativa
dos autores ao narrar os crimes praticados por Diogo Alves. O objetivo explicitado nos textos é
6
Diogo Alves é considerado o último condenado à forca em Portugal. Sua execução se deu em fevereiro de 1841 (no
mesmo dia também foi enforcado Antonio Martins, um dos membros de sua quadrilha). Sua cabeça foi guardada
com intenção de análises criminológicas que revelassem seu pendor ao crime. Hoje pertence à Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa. Apesar de ser popularmente veiculado a informação de que ele foi o último
condenado a forca, há uma afirmação na biografia romanceada de Leite Bastos dizendo que Francisco de Matos
Lobo, o mesmo bandido que tem a “conversação noturna” com Diogo Alves, foi executado no Algarve, na cidade de
Lagos, em 1846 (BASTOS, 2006, p. 223). Assim, o dado controverso é provavelmente oriundo da tradição oral, que
considera o bandido galego como sendo último enforcado, fato que também acaba sendo uma estratégia para a
memorização e transmissão de sua lenda.
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demonstrar o fim trágico do homem que escolhe viver uma vida de vícios, de vadiagem e de
crimes. A questão moral e de cunho condenatório perpassa todos esses textos populares e também
é o fio condutor do romance biográfico publicado por Leite Bastos Os crimes de Diogo Alves
(1877). Para que se tenha uma visão mais ampla do estilo narrativo dessas obras, segue abaixo a
introdução do folheto Vida, e Morte de Diogo Alves:
Não somente os homens insignes por virtudes, armas, e letras devem ser immortalisados
pela historia, mas tambem aquelles que se fizerão celebres por seus crimes, porque de
huns e outros sempre se tiraa resultado; os homens bons devem ser o modelo de nossas
acções, assim como os perversos, o exemplo que nos faça abominar o caminho do crime.
Parece que em nosso tempo não poderia apparecer hum homem, que com seu
desordenado modo de vida, e desgraçado fim melhor imposesse hum freio á quasi geral
abominação, que vemos grassar infelizmente em nosso paiz; nós sempre desejosos do
melhor bem da nossa Patria, julgamos a preposito escrever a vida deste homem, que à
poucos dias no patíbulo soffreu o castigo de seus crimes, para que a mocidade fuja como
de viboras, de toda a má companhia, e deteste o amor do ócio, como origem de todos os
males, e considere as paixões, como implacáveis inimigos, que dentro de seu coração
nutre. Por isso deixando longas reflexões, que não serião inuteis, passaremos a narrar a
vida de Diogo Alves, e seus horrendos crimes (BASTOS, 1841, p. 3).
Desse modo, a série de crimes praticados por Diogo Alves, bem como a pena capital que lhe
imputaram, foi representada e concebida nessa literatura de acordo com uma doutrina moralista
com o intuito de mostrar, principalmente aos mais jovens, o fim cruel que pode ter um homem
que opta pelas más companhias e pela “vida fácil” de ladrão. É interessante pensar na recepção
desses folhetos, cuja “fórmula editorial” pretendia alcançar leitores variados, dentre os quais se
incluíam, majoritariamente, pessoas de baixa condição social7. Nesse sentido, possivelmente a
publicação dessa literatura, mais particularmente nesse caso, estava condicionada por um objetivo
educativo e moralizante visando não só conter, indiretamente, a criminalidade na cidade de
Lisboa, como também guiava-se por principios iluministas pautados na ideia de formação moral
do cidadão8.
Essa perspectiva, também relacionada aos índices de criminalidade da capital portuguesa
no período, é ressaltada no romance de Leite Bastos, Os crimes de Diogo Alves, única obra que
7
Por tratar-se de folhetos populares, deve-se considerar a veiculação oral das histórias. Essa forma de transmissão
era primordial, uma vez que era alta a taxa de analfabetismo, abarcando cerca de 80% da população portuguesa
(CORREIA, Luís Grosso. Centenário da República: O ensino primário na primeira república – O homem vale,
sobretudo, pela educação que possui. In.: Revista Seara Nova, n. 1713, 2010. Disponível em
www.searanova.publ.pt/pt/1713/dossier/163). Acessado em 19/03/2014.
8
É importante destacar que nesse período há certa preocupação em relação à formação plena (moral, educacional) do
cidadão devido à constituição do Estado-nação (BAUMAN, 2013, 7 - 21).
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
apresenta o contexto histórico social vivido pelo personagem, incluindo uma análise minuciosa
do bandoleiro, embora também não se esquive do objetivo de “instruir para o bem” (BASTOS,
2006, p. 23):
A calçada do Duque era então sítio mal afamado, que as pessoas decentes evitavam.
As ruas da Condessa e dos Galegos, até ao pátio do marquês de Penalva, coito de vadios
e das mulheres de má nota, formavam como que um bairro à parte da cidade, onde a
acção da polícia se não atrevia a penetrar.
Na calçada do Duque, à direita, como quem vai para S. Roque, havia um taberninha que
comunicava com o pátio do marquês, conhecida pela tasca da Joaquina do Forno, na
qual a ronda chuchadeira nem ousava a meter o nariz.
Ali cantava-se, bebia-se e bailava-se o fandango, o solo inglês e o fado, a toda a hora do
dia e da noite, ao mesmo tempo em que se jogava e esfaqueava qualquer freguês que não
se conformasse muito bem com o ajuste das contas.
A orgia era permanente.
Aquele labirinto de becos e casinhotos do pátio que se estende até à rua do Príncipe e é
limitado pela frondosa mata, foi teatro de crimes e violências de toda a ordem.
Quem iria pedir ali ao assassino contas da vida de um homem?!
A política absorvia todas as atenções.
A vida e a bolsa do cidadão estavam à mercê da população nómada que enxameava nas
tabernas e vivia da pilhagem e do crime.
(…)
Mas, não só a cidade estava infestada de ladrões. Este mal estendia-se por toda a
Estremadura.
A Beira, o Minho e Trás-os-Montes tinham à mercê deles os seus campos, as suas
aldeias, as suas vilas e a suas cidades (BASTOS, 2006, p. 37-38).
A descrição de Leite Bastos é bastante detalhada ao apontar os lugares que normalmente eram
considerados como sendo frequentados por bandoleiros. O fragmento mostra a negligência das
autoridades competentes em sanar esses problemas sociais. No período, a cidade de Lisboa
enfrentava uma tensão relacionada ao crime em razão de uma grave crise econômica, de um
pequeno crescimento urbano e devido ao descaso do governo mais preocupado com as constantes
revoltas e guerrilhas que despontavam no campo (Revolta dos Marechais, Guerrilha do
Remexido, etc.). Ademais, em Lisboa, a política governamental privilegiava os nobres e a
nascente burguesia, deixando a população, em geral, marginalizada.
Ao entrar no mundo do crime, Diogo Alves se tornou chefe de bando. Seu primeiro alvo,
como já foi dito, foi realizar assaltos no Aqueduto das Águas Livres. Há alguns autores que
dizem que os crimes do aqueduto foram praticados apenas por ele. Duas narrativas fílmicas
existentes sobre o personagem, a primeira de 1909 (inacabada) e a segunda de 1911 - ambas
intituladas Os crimes de Diogo Alves - representam o personagem e seu bando agindo
276
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
conjuntamente no aqueduto9. Logo, não há um consenso entre as várias representações literárias e
fílmicas. No filme de 1911, nas cenas em que Diogo joga as vítimas do aqueduto, sempre há uma
comemoração feliz do personagem com pulos e urros de alegria. Essa representação do bandido
como alguém que se comprazia no crime também aparece nos folhetos, embora com menor
fulgor.
As pessoas que por ali passavam, na grande maioria, eram pobres comerciantes e
lavradores que iam vender suas produções na cidade. Após a queda, a vítima ficava
irreconhecível, não sendo possível saber se havia sofrido qualquer agressão física. Essa
característica e o fato de haver vigilância nas entradas da galeria fizeram as autoridades supor que
se tratava de uma onda de suicídios.
Os jornais apenas noticiavam as sequentes mortes em notas de rodapés, sem dar grande
importância ao assunto, às vezes com o subtítulo “Notas Diversas” (MOUTINHO apud
BASTOS, 2006, p.15). No folheto História verdadeira e completa do célebre ladrão e assassino
Diogo Alves da “Coleção Histórias Populares Portuguezas”, o autor menciona um diálogo que
representa a crença popular a respeito do que ocorria no Aqueduto das Águas livres:
D’uma vez o Carioca juntára-se com alguns amigos e como se demorasse mais do que
tencionava, resolveu tomar o caminho de Bemfica pelo aqueducto, e assim o comunicou
aos companheiros que tentaram dissuadil-o, lembrando-lhe que parecia estar
excomungado aquelle caminho pois quem o transitava era acommettido do desejo de pôr
termo á existência. (ANÔNIMO, 19--, p. 7)
O personagem Carioca não ouviu seus companheiros por acreditar que se tratava de
crendices e fez o caminho como havia pensado. No dia seguinte foi encontrado morto no leito da
ribeira de Alcântara, debaixo do Arco Grande. Devido a grande quantidade de mortes que
ocorreram no aqueduto, o governo fechou a passagem, desse modo, Diogo Alves foi obrigado a
encontrar outros meios de continuar seus roubos.
Em Os crimes de Diogo Alves, da coleção “Os grandes criminosos”, há menção a um
assalto singular, no qual Diogo não conseguiu matar a vítima:
Um dia porém veio a conhecer-se o autor de tantos crimes: foi o caso que um outro
creado da infanta quando ia receber as soldadas encontrou no caminho dos arcos Diogo
9
Segundo os relatos, a quadrilha de Diogo Alves era composta por Beiço Rachado (Manuel Joaquim da Silva,
soldado), o Enterrador (João das Pedras, galego), o Pé de dança (José Candido Coelho, galego), Antônio Palhares
(soldado), Antônio Martins (caixeiro, galego), a Parreirinha (Gertrudes Maria, amante), José Manoel Lopes (guarda
barreira, galego), Cosme de Araujo (galego), entre outros citados pelos autores, a maioria galegos.
277
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Alves que lhe perguntou para onde ia, ao que elle respondeu informando-o do fim a que
ia.
A’ volta Diogo Alves que esperára por elle saindo-lhe ao encontro de faca em punho
ordenou ao creado que lhe entregasse o dinheiro. Motejou com o servo da infanta e
dispunha-se a vir-se embora quando reconhecendo os intuitos de Diogo Alves levou a
mão á algibeira na intenção de tirar de lá o dinheiro que consigo trazia mas puchando
para o facínora uma pistola o que o deixou aterrado.
Aos gritos do creado acudiu logo gente mas Diogo Alves teve ainda tempo de fugir
conseguindo safar-se por umas terras.
Assim acabou a parte mais trágica da vida d’este facínora passada sobre estes arcos e
que apenas existe na voz do povo. (ANÔNIMO, 1922, p. 6)
Essa referência aparece em algumas das obras e em ambos os filmes, no entanto, se foi
um episódio verídico não há como saber, mas o fato é que possivelmente a polícia já possuía
pistas para investigar o caso, o que não foi feito, visto que, até então, não havia interesse por
parte do governo em descobrir o criminoso. Muitas foram as pessoas assaltadas e mortas por
Diogo Alves, e são também muitas as histórias que se contaram acerca de cada vítima.
Entretanto, o desinteresse resultava da própria marginalidade daqueles que transitavam pelo
“caminho dos arcos”. Qual seria a relevância de uma investigação que pretenderia prender um
ladrão e assassino de pessoas pobres? Apesar da vultuosidade dos crimes do aqueduto, essa fase
de Diogo Alves e de sua quadrilha é referida nos folhetos como sendo menor em relação ao crime
que se sucedeu.
Ignorado os crimes do aqueduto, Diogo e seu bando foram julgados e condenados apenas
pelo crime da Rua das Flores que ocorreu depois de haverem fechado o “caminho dos arcos”. Em
razão da importância e consequência desse crime para o desfecho da vida do personagem, é
necessário um pequeno resumo.
A quadrilha comandada por Diogo Alves reuniu-se por diversas vezes para planejar o
atentado contra o Dr. Andrade. Receberam a ajuda de um criado da casa, o Manuel Alves, que
facilitou a entrada dos bandidos. O criado Manuel foi impelido para o grupo pelo primo, um
caixeiro de uma taberna que também fazia parte da quadrilha. Na noite do crime, o Dr. Andrade
não estava na casa, apenas uma senhora viúva10 com suas duas filhas e um filho, José Elias
10
Algumas obras afirmam ser essa senhora uma parenta do Dr. Andrade, viúva de seu irmão, outras mencionam
que era apenas uma senhora cuja família o médico sentiu “compaixão” e acolheu.
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Correia Mourão11, que visitava a família, visto que estudava em Coimbra. Os bandidos mataram
as vítimas por estrangulamento e, em seguida, recolheram o dinheiro e os objetos de interesse. Os
autores que narram o episódio afirmam que foi homicídio seguido de roubo em razão da prática
criminosa de Diogo Alves de não deixar testemunhas. É imprescindível comentar que esse roubo
causou um imenso prejuízo ao médico, motivo que levou os autores dos folhetos a qualificá-lo
como “maior” comparado aos do aqueduto12.
Esse crime chocou os lisboetas e foi largamente noticiado por tratar-se de uma família
ilustre. O grande alvoroço causado fez com que a polícia ficasse determinada a encontrar os
assassinos e, assim, esse foi o único crime cometido por Diogo Alves e por seu bando que foi
devidamente investigado, com ressalvas a uma pequena referência ao assalto cometido contra
uma estanqueira (dona de uma tabacaria) que testemunhou contra o bandido no julgamento.
Através da pista deixada pelo criado Manuel Alves (dado como desaparecido), que se
arrependeu amargamente e, por isso, foi assassinado por Diogo e seu bando, a polícia chegou aos
culpados. Todos receberam sua pena: Diogo Alves, Antônio Martins, Palhares e Beiço Rachado
foram condenados à pena de morte, outros membros do grupo e a Parreirinha foram condenados
ao degredo perpétuo em colônias africanas.
Dentre as testemunhas estavam a estanqueira que foi roubada pela quadrilha e a filha de
onze anos da Parreirinha, a qual as obras dizem que a mãe mandou Diogo matar porque talvez
tivesse ouvido e visto a morte do criado Manuel Alves e era, assim, testemunha ocular dos planos
encetados pelo bando. Diogo se recusou a matar a menina afirmando que esta de nada sabia
porque estava dormindo.
Um dos crimes de Diogo que ficou marcado na tradição oral de Lisboa (inclusive referido
11
Em nenhuma das obras aparece o nome das mulheres vítimas dessa assalto, apenas o nome do filho. Nota-se
nessa ausência, principalmente do nome da mãe, o mesmo descaso em relação à representação da mulher na
sociedade do período.
12
O crime é medido pelos autores como sendo maior por tratar-se de uma família ilustre. Em Os crimes de Diogo
Alves e da sua quadrilha, o autor refere-se ao crime da Rua das Flores como “o maior de todos de Diogo Alves, pela
avultada importancia do seu roubo, (…), foi todavia d'uma altissima importancia para a policia não só pelo facto do
bom nome da familia atingida, pelo golpe audaz e certeiro do temivel faquista, como tambem pelos signaes evidentes
de cumplicidade portas a dentro d'aquela casa e que serviriam de pista a ulteriores pesquizas levadas a efeito com
grande sucesso caindo pouco tempo depois na alçada da justiça para apuramento de responsabilidades toda a
quadrilha do famigerado assassino”(ANÔNIMO, 18?, p. 11). Vale também destacar que o médico Dr. Andrade,
segundo as obras, não ofereceu à família morta um enterro digno, sendo todos enterrados em vala comum. Os
variados autores conjecturam hipóteses para a “estranha” atitude do médico. Ao que parece, a negligente e cruel
decisão do Dr. Andrade vem da tristeza maior em perder parte de sua fortuna.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
pelo coorientador desse trabalho, J. J. Dias Marques, que se lembra de ter ouvido essa narrativa
de sua avó, falecida em 1978) foi o homicídio que dizem que ele cometeu contra uma criança que
jogou do aqueduto. No momento em que foi lançar a menina do arco, conta-se que esta sorriu
para ele. A tradição diz que este foi o único crime do qual o temível bandoleiro se arrependeu.
Esta história não se encontra nos folhetos publicados sobre os crimes de Diogo Alves, apenas no
filme de 1911 há uma cena de Diogo jogando uma menina dos arcos e arrependendo-se em
seguida. Com tal representação, a lenda ameniza, ou melhor humaniza, de certa forma, a imagem
facinorosa que é veiculada a respeito do bandoleiro.
Na história de Lisboa, Diogo Alves ficou profundamente ligado ao Aqueduto das Águas
Livres, sendo mais lembrado em relação a esse monumento do que o nome dos próprios
engenheiros, como afirma José Viale Moutinho no prefácio da obra de Leite Bastos. Em 2012, o
bandido mereceu uma pequena menção em uma revista popular de Lisboa, Time Out, a qual, na
semana em que se comemorava o dia de Halloween, publicou um número especial apresentando
todos os lugares da cidade considerados como mal assombrados. Nessa edição, a lenda de Diogo
Alves aparece acompanhada de uma foto de sua cabeça:
Diogo Alves (1810 -1841), o famoso assassino em série que tirou a vida de pelo menos
70 pessoas, atirando-as do alto do Aqueduto das Águas Livres, constitui “um dos mais
misteriosos casos da criminologia em Portugal”, na opinião de Francisco Moita Flores,
escritor e ex-inspector da Polícia Judiciária. “Os jornais da época falavam de um
monstro que habitava o aqueduto, de uma alma penada que existia em Lisboa, diziam
que o diabo andava á solta”, afirma. “Foi um mistério que empolgou a cidade durante
anos. Até se descobrir a verdade, atribuíam-se os crimes a causas sobrenaturais.” Diogo
Alves foi o último condenado à morte em Portugal – por enforcamento. E aquilo que se
acredita ser o seu crânio está hoje em exposição no Museu da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa. (Time Out Lisboa, 31out – 06 nov/2012, p. 20)
O trecho apenas apresenta o bandido e menciona a aura misteriosa com que ficaram
marcados os seus crimes, nunca investigados. A revista anuncia que se tratava de um número
mínimo de setenta mortes, número assustador tendo em vista que tais homicídios foram
realizados durante o período de seis meses. Essa informação, muito provavelmente falsa e
imprecisa, busca perpetuar e intensificar a lenda criada em torno do bandoleiro e do aqueduto. A
ideia de ser algo sobrenatural que fazia com que as pessoas que passassem pelo Caminho dos
Arcos fossem acometidas de uma vontade insana de se atirar de lá, foi, presumivelmente, uma
explicação popular para um mistério que rondava a cidade e a estarrecia com acontecimentos que
se tornaram recorrentes e desconhecidos, e que, de fato, nunca foram plenamente esclarecidos.
280
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Uma análise minuciosa acerca do personagem Diogo Alves vai além de uma leitura
superficial dos relatos literários, da biografia e dos filmes realizados sobre ele. Esse bandido
requer um profundo estudo histórico acerca da época em que viveu, um estudo que lance luz em
muitos pontos ocultos que permeiam sua história, a começar pelas condições de vida a que eram
submetidos os galegos que iam para Portugal a procura de melhores oportunidades e eram os
únicos que se sujeitavam às profissões braçais.
As obras existentes sobre esse bandido possibilitam compreender muito do momento
histórico, e principalmente do pensamento da época, visto que as narrativas estão repletas de
preconceitos não só contra os galegos, que eram muitos, mas também em relação às mulheres,
pelo fato de haver um consenso entre os autores de que a culpa da “perdição” de Diogo Alves
estava em seu relacionamento com a Parreirinha. Em todas as obras ela é a “Eva” que oferece o
“fruto” proibido a “Adão”.
Os folhetos e as obras literárias sobre Diogo possuem um objetivo comum: pretendem
mostrar o fim trágico que pode ter uma pessoa que se deixa influenciar por “más companhias”,
decindo sair do “caminho do bem” a fim de gozar de uma “vida fácil” e aventurosa de bandido.
As representações literárias partem de um discurso que, na maioria das vezes, veicula apenas um
dos lados que envolvem a questão. Quando é mencionada a negligência policial e governamental,
essa vem expressa com sutileza, quase ofuscada pelo objetivo maior da narrativa: formar
cidadãos decididos a afastar-se do mau caminho.
A história de Diogo Alves está cheia de lacunas que não podem ser respondidas com
análises contemporâneas que partem de uma metodologia criminal comum ao século XIX. Os
motivos que levaram esse bandido a cometer tais atrocidade ficaram perdidos no tempo e espaço
devido a uma iniciativa política e policial que importava mais em exterminar o agente do mal
sem compreender as razões que o originaram. Os crimes perpetrados por Diogo Alves, cuja
personalidade foi qualificada de fria, calculista e insana, podem ter sido frutos de um problema
histórico social, existencial, psicológico ou mesmo oriundos de uma revolta pessoal contra sua
condição marginalizada. Todavia, seu julgamento e sentença, tão rapidamente atribuídos,
denunciam o completo descaso em que estava a população nas mãos de um Estado mais
interessado em punir.
Diante dessas questões e da significativa produção literária sobre Diogo Alves, que além
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
de entreter, possuía objetivos educativos e moralizantes, conclui-se que a emergência do tema
nessa literatura popular tinha também uma função paliativa que se aliava a um discurso religioso
na tentativa de conter a crescente criminalidade. Para tanto, a figura de um imigrante galego que
era tido como honesto e trabalhador e que se deixa levar pela “vida fácil” e aventurosa de ladrão,
sendo ao cabo julgado e condenado a forca, serve como um excelente caso para exemplificação.
A lenda criada em torno de Diogo Alves é uma matéria bastante profícua para a literatura
de aventuras13, como bem aponta Moutinho no prefácio da biografia de Diogo Alves, no entanto,
é imprescindível que ela seja considerada a partir de um ponto de vista crítico em relação ao
contexto histórico, social e cultural da época em que surgiu. Nesse sentido, a reconstrução da
linguagem dos bandoleiros e da paisagem urbana de Lisboa no período, representada em Os
crimes de Diogo Alves, somada às informações presentes nos relatos existentes nos folhetos, dão
a dimensão da representação popular do personagem em diversos momentos, fornecendo
conteúdo para uma compreensão do seu significado social, bem como para reflexões literárias
envolvendo a narrativa oral e popular.
Referências
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação
de Leitura do Brasil, 1999.
ANÔNIMO. História e vida de Diogo Alves e da sua quadrilha: narrativa verdadeira das
façanhas do célebre bandido. Lisboa: Francisco Romero, [19--].
____________. História verdadeira e completa do célebre ladrão e assassino Diogo Alves.
Coleção: Histórias populares portuguesas. [S.l. : s.n., 19--].
____________. Os crimes de Diogo Alves e da sua quadrilha. Coleção: Os grande criminosos.
Lisboa: Liv. Barateira, 1930.
BASTOS, Francisco António Martins. Vida e Morte de Diogo Alves. Lisboa: na Typ. de F.C.A,
1841.
BASTOS, Leite. Os crimes de Diogo Alves. Porto: Esfera do Caos, 2006.
BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BELO, Redondo; VIEIRA, Tomé. Crimes e criminosos célebres: Diogo Alves e sua quadrilha.
Lisboa: Guimarães, 1930.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora
UNESP, 2004.
CORREIA, Luís Grosso. Centenário da República: O ensino primário na primeira república – O
13
Esse ano, 2014, foi lançada mais uma obra sobre Diogo Alves intitulada O assassino do aqueduto, de
Anabela Natário, que não pode ser incluída nesse artigo por ser uma produção bastante recente.
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
homem vale, sobretudo, ela educação que possui. In.: Revista Seara Nova, N. 1713, 2010.
Disponível em www.searanova.publ.pt/pt/1713/dossier/163. Acessado em 19/03/2014
JUSTO, Carlos Pazos. “A imagem da Galiza e dos galegos em Portugal entre fins do século XIX
e primeiras décadas do XX: do imagotipo negativo ao imagotipo de afinidade”. In.: VEREDAS
16. (Santiago de Compostela, 2011), pp. 39-70
P, A. J.. Conversação nocturna que teve o reu Francisco Mattos Lobo, com a sombra de
Diogo Alves. Lisboa: Typ. de F. C. A.. 1841.
TERRAS, Antônio Manoel. O supplicio de Diogo Alves: canto funebre... Lisboa: Typ. De
Mathias José Marques da Silva, 1841.
VARATOJO, Artur. Diogo Alves e os crimes do aqueduto. Lisboa: Correio da Manhã, 2003.
Revistas
Time Out Lisboa. 31 outubro a 6 de novembro 2012. Nº 266.
Filmes
Os crimes de Diogo Alves. 1909. Lisboa. Direção: Lino Correia. (inacabado)
Os crimes de Diogo Alves. 1911. Lisboa. Direção: João Tavares. (curta metragem)
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
CLARICE LISPECTOR: ORALIDADE, FABULAÇÃO E RECRIAÇÃO EM
DOZE LENDAS BRASILEIRAS – COMO NASCERAM AS ESTRELAS - DOZE
LENDAS BRASILEIRAS
CLARICE LISPECTOR: ORALITY, FABULAÇÃO AND REBUILDING IN
TWELVE BRAZILIAN LEGENDS – HOW WERE BORN THE STARS
Samuel Frison1
Resumo: o presente artigo investiga as marcas da oralidade presentes na literatura infantojuvenil de Clarice
Lispector. Recupera historicamente a recriação das fábulas contidas no livro Doze Lendas Brasileiras, publicado
em forma de calendário no ano de 1977, e posteriormente lançado em forma de livros infantis com reedições até
a contemporaneidade. Resgata a face contadora de histórias da escritora, sua capacidade de fabulação e ligação
afetiva com o leitor mirim, bem como inúmeras confluências culturais na recriação de histórias conhecidas do
nosso folclore.
Palavras-chave: literatura oral, literatura infanto-juvenil, infância.
Abstract: this paper investigates the marks of orality in children´s literature of Clarice Lispector. Retrieves
historically recreating the fables in the book Twelve Brazilian Legends, published in form of calendar year 1977,
and later released in the form of children's books with reissues until nowadays. Rescues the face of the storyteller
writer, his ability to confabulation and emotional connection with the reader mirim, as well as numerous cultural
confluences
in
the
recreation
of
known
stories
of
our
folklore.
Keywords: oral literature, children´s literature, childhood.
“Antes de aprender a ler e a escrever eu já fabulava” (Clarice Lispector)
“Que mistérios tem Clarice” (Caetano Veloso/Capinam)
Introdução
No início de 1977, ano de seu falecimento, Clarice Lispector passava por uma de suas
muitas crises financeiras. A fábrica de brinquedos Estrela, líder de vendas para crianças à
época, pediu à escritora que organizasse o texto de um calendário, contendo doze pequenas
1
Doutorando em Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: sfrison@terra.com.br
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
histórias que retratassem a cultura de cada região do país. O calendário seria distribuído junto
às vendas. Devido ao período de necessidades em que se encontrava, ela decidiu aceitar a
proposta, apesar de suspeitar da qualidade final do trabalho, uma característica comum sua a
cada finalização de um projeto pessoal. Escreveu, certa vez, em uma de suas crônicas
publicadas no jornal do Brasil, quando de sua projeção nacional sobre o paradoxo: “O
anonimato é como um sonho. Estou precisando desse sonho. Aliás, eu não queria mais
escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro.” (2010, p. 133)
O livro que se tem em mãos hoje, chamado Como Nasceram as Estrelas - Doze
Lendas Brasileiras é a reunião daquelas histórias, organizada em forma de publicação, com
ilustrações realizadas por Fernando Lopes, da Rocco Editores. Foi lançado posteriormente à
morte da escritora, em 1987. Antes disso era possível encontrar muitas dessas histórias
espalhadas por uma infinidade de livros didáticos do Brasil, dada sua relevância, tanto
estilística quanto cultural. São doze pequenos contos dedicados a cada mês do ano, cujo
cenário é a diversidade regional brasileira. Seus personagens são principalmente bichos –
universo fascinante para Clarice - e indígenas representativos de várias tribos como guaranis,
curumins, maués. Também estão presentes à coletânea protagonistas como o homem
sertanejo, com uma releitura de Pedro Malasarte, e o gaúcho, através da lenda do Negrinho do
Pastoreio. Como define Nádia Gotlib, “a escritora procura criar um universo com elementos
da cultura popular, no sentido de ser fiel ao clima bem brasileiro.” (2009, p. 555)
Todas as histórias que recontadas nesta publicação nasceram da tradição oral. Foram
coletadas e rescritas a partir da pesquisa da própria autora e do contato que teve com amigos
como Érico e Mafalda Veríssimo, à época que Érico despontava com escritor. Quando morou
em Washington, Estados Unidos, o casal conviveu muito com Clarice e os filhos. A partir daí,
a amizade entre eles tornou-se significativa. A inclusão de O Negrinho do Pastoreio em Como
Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras justifica-se também por essa amizade. À
época de lançamento do calendário o escritor gaúcho já havia falecido, mas a ligação de
Clarice com Mafalda permaneceu. As outras histórias presentes ao livro são resquícios do
contato de Clarice com a literatura de Monteiro Lobato e de outros escritores regionais, desde
quando freqüentava a escola primária em Recife. Também recordações de uma infância
povoada de histórias.
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Maria Inês Almeida e Sônia Queirós, em Na captura da Voz (2004), compreendem as
coletâneas de contos orais de quatro maneiras: coletas, compilações, recriações e traduções.
Para as autoras há uma diferenciação na forma de entender as coletâneas de contos orais na
sua organização, bem como na natureza e nas intenções que levaram a sua publicação. Essa
classificação torna-se um pouco problemática, tendo em vista o trabalho que Clarice teve para
organizar os contos. Almeida e Queirós classificam as coletas como “coletâneas de narrativas
orais populares resultantes de pesquisa de campo (....), visando ao deleite do leitor,
especialmente o público infantil escolar”. (2004, p. 130). Nesse sentido, percebe-se a intenção
primeira de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras: atender ao público
consumidor de brinquedos. Posteriormente, ao se transformarem em conteúdo de livros
didáticos, as narrativas atendem a outra demanda dentro do universo escolar em sua pretensa
formação dos leitores infanto-juvenis.
Ainda defendendo a ideia da transcriação e de adaptação que mantém como traço
característico certo estilo autoral, as autoras circunscrevem a noção de compilação, ou seja,
“coletâneas de narrativas orais já anteriormente escritas e publicadas por outros autores,
reunidas numa nova organização.” (2004, p. 130). A obra de Clarice também atende a essa
classificação, uma vez que é possível ver histórias como A perigosa Yara, O pássaro da sorte
– que conta a lenda do Uirapuru - Do que eu tenho medo – a história do Saci-Pererê – entre
outros, na escrita de outros autores como Ricardo Azevedo e Monteiro Lobato. Também a
ideia de recriação perpassa a antologia clariceana, uma vez que está presente à forma das
narrativas o estilo da escritora ligado ao questionamento existencial, ou seja, as provocações
da vida como um grande mistério ainda a ser desvelado, traço característico de sua escrita.
Talvez a ideia de recriação defendida por Almeida e Queirós é a que mais se adapte ao
enquadre de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras. Isso decorre do fato de
as recriações caracterizarem-se como coletâneas de narrativas “inspiradas na tradição oral,
mas escritas já à distância da performance”, uma vez que os escritores as recriam com a ajuda
da memória, relembrando situações ou fatos marcantes da infância, sem que haja uma
“recolha sistemática do texto oral” (2004, p.131). Aqui a noção de memória, recordação –
recordare – passar pelo coração novamente, na acepção da palavra – ganha uma conotação
afetiva da alma clariceana. Retoma as memórias do Recife antigo, um tema recorrente às suas
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crônicas e contos, cujo tema da infância se apresenta em A Legião Estrangeira (1964),
Felicidade Clandestina (1971) e a Descoberta do Mundo (1984) escritas para o público dito
adulto. A adoração por animais e crianças é evidenciada tanto nas memórias da infância
pobre, como também em suas obras infanto-juvenis. Como assinala Benjamin Moser na
biografia Clarice :
À medida que ficava mais velha e cada vez mais nostálgica da infância, sua ligação
com os animais foi se fortalecendo, e eles passaram a desempenhar um papel cada
vez mais importante em sua escrita. (2011, p. 564)
A ligação da escritora com Lobato também evidencia o tom da narrativa nas lendas
descritas, dada a forte ligação com o escritor de Reinações de Narizinho que aparece em
Felicidade Clandestina (1971). Também nas primeiras leituras, como repara Gotlib (2009,
p.109). “A menina mergulha assim nas aventuras de um mundo de fantasia, cm viagens ao
fundo do mar, ao reino das Águas Claras, ao reino das Abelhas e aos vários países do Mundo
das Maravilhas.” A pesquisadora vê nessa ligação entre a menina Clarice o Lobato certa
vocação ao ato de contar histórias, fato que vai acentuar sua característica como fabuladora.
Porém, as dificuldades da vida adulta empurram Clarice para uma progressiva mudez e
introspecção, afastando-a da palavra oral para a solidão da escrita. Permanece então a
contadora de histórias doméstica, a mãe afetiva e dedicada.
Como coleta, compilação e recriação simultaneamente, Como Nasceram as Estrelas Doze Lendas Brasileiras adere ainda o conceito tratado por Ana Lúcia Liberato Tettamanzy
no ensaio De Palmeiras e Colibris ou como a Voz Guarani vem se tornando letra (2010). O
referido texto referenda o caráter que as narrativas orais quando transcritas adquirirem com o
papel de textos divulgadores na cultura. Para a autora, esses textos, provindos de uma tradição
ao se propor retratar cultura indígena, obtêm um traço diferenciado quando organizados para
fins paradidáticos. No entanto, o problema da autoria que acarretam nos remete a um
problema discutido pelos estudos pós-estruturalistas que tratam do conceito de “origem” de
tais histórias, sua permanência e disseminação em outras culturas. No caso de Clarice, uma
escritora russa, naturalizada brasileira, que morou em vários países da Europa e nos Estados
Unidos, a marca dessa hibridização cultural se faz presente no processo de recriação, algo que
pode ser presenciado em contos como Curupira, o danadinho, personagem que ilustra a
história do mês de Julho.
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Na narrativa, com um estilo muito pessoal, Clarice descreve o Curupira como sendo
esquisito como um “ser feio que nem o Tinhoso e peludo que nem um urso, mas pequeno.”
(1987, p. 32) Mesclando humor e ironia, continua a descrever as peraltices do pequeno ser, de
pés voltados para trás, como defensor das matas e dos animais – uma espécie de alter-ego da
escritora: “Que ser misterioso, também sábio: conhece, ao olhar apenas, as plantas que curam
doença de bicho” (1987, p. 32). No entanto, o diálogo de culturas é visível na recriação da
autora, principalmente ao final da caracterização curupira, quando ela o compara a um
“gnomo-monstro”, personagem símbolo do folclore escandinavo.
Também sabe se vingar dos índios que, com flechas, ferem um bicho indefeso.
Então o Curupira o atrai para caminhos sem fim e eis o caçador enganado, tonto e
perdido. É verdade que pede antes a um caçador que não mate animais dos que
vivem em grupo, porque o grupo ficará com saudade deles. Mas, ai de nós se o índio
não cede! Não tem perdão do Curupira. Espalha fogo e quase deixa o índio bem
assado. Os caçadores temem este espécie de gnomo-monstro e suas vinganças.
(1987, p.33)
Oralidade em Clarice
Hermética era um adjetivo que incomodava Clarice Lispector, uma vez que reforçava
sua vocação de mito difícil, algo que desdenhara desde sempre. Em 1967, ela venceu o
prêmio nacional de Literatura Infantil com o seu primeiro livro dedicado às crianças, O
mistério do Coelho Pensante. Aproveitou a ocasião para desconstruir o título de escritora
inalcançável que insistiam em lhe impingir. Em uma de suas crônicas no jornal do Brasil que
seriam reeditadas postumamente em A descoberta do Mundo (1984) agradece o
reconhecimento dos leitores mirins e ironiza:
Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me
chamam de escritora hermética. Como é? Quando escrevo para crianças, sou
compreendida, mas quando escrevo para os adultos fico difícil? (2010, p. 79).
Se as primeiras obras foram inevitavelmente comparadas pelo estilo a escritores como
Hermann Hesse e Virgínia Woolf, dada a presença do fluxo de consciência narrativo, similar
em que, muitas vezes, a existência do discurso indireto-livre apaga os limites da voz entre
narradores e personagens, o mesmo não se pode afirmar das narrativas dedicadas à literatura
infanto-juvenil da autora. Há nelas a predominância do tom maternal, da voz onisciente e das
marcas da oralidade muito frequentes ao gênero.
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A oposição oralidade/escrita tem suscitado muitas discussões nos mais variados
segmentos, contemplando estudos linguísticos, literários, históricos e sociais, com toda a
problemática que pode acarretar essa dualidade tanto no estudo isolado como no diálogo entre
as referidas áreas. Encontra-se nos estudos culturais também um espaço para articulações
profícuas de caráter multidisciplinares para discussões dessa ordem, como afirma Frederico
Fernandes em A Voz e o Sentido: « Pensar o texto literário a partir de uma abordagem
discursiva corresponde extrapolar a discussão em torno dos períodos, gêneros e autores para
colocá-los frente a frente com outras disciplinas ». (2007, p. 31).
Dessa maneira não cabe polarizar essas linhas de pensamentos, mas justificar as
hipóteses que fundamentam esse artigo. Assim prioriza-se uma visão sociointeracionista da
linguagem, não tomando a oralidade como oposição à escrita, mas sim percebendo a sua
vocação para o dialogismo, à dinâmica de interpenetrações, à sua interação de seus elementos
na comunicabilidade. Assume-se ao invés de uma postura multidisciplinar, aquilo que Antoni
Zabala, no livro Enfoque Globalizador e Pensamento Complexo (2002), define como
transdisciplinar. Essa perspectiva crítica utiliza-se de variadas áreas do conhecimento para
explicar um fenômeno que se dá no social, premissa básica para entender a abordagem
sociointeracional do fenômeno da linguagem enquanto discurso no literário e em sua função
performática. A partir dessa visão dialógica entre a fala e a escrita, pode-se perceber no texto
clariceano de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras sua vocação para a
contação de histórias. Isso se dá através de alguns elementos próprios da fala, outros da
escrita, presentes ao texto que não se anulam, mas se complementam de forma
interdependente.
Uma das características dessa visão interacional é aquela que descarta a escrita como
representação da fala. A ideia de representação nos remete a distanciamentos da origem,
problematização comum dos estudos pós-estruturalistas desencadeados por Jacques Derrida
em A Escritura e a Diferença (1967) e outros2. O filósofo do desconstrutivismo esboçou
2
Pós-estruturalismo entendido como o movimento desarticulador da estruturalidade da estrutura da linguagem,
que questiona as ideias organizacionais do pensamento calcadas sob a pretensa noção de verdade calcada no
logos da linguagem.
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principalmente suas teorias a partir da visão fonocêntrica de Ferdinand de Saussure 3 sobre a
distinção entre língua e fala, oposições que carregam uma visão logocêntrica articulada na
linguagem. Para Derrida, a ideia de representação sempre carrega uma conotação de “menor”,
de “falha”, de “faltas e ausências”, quando relacionada ao seu original. Quando se toma a
distinção de oralidade oposta à escrita, se reduz a relação a dois pólos cujo centro de verdade
esvazia a reciprocidade. Então um será sempre ausente e falho em relação ao outro. Reside na
questão sobre o pensamento logocêntrico um dos principais questionamentos da crítica que
envolve as teorias do gênero, da tradução, das literaturas periféricas, do questionamento do
cânone, das poéticas da oralidade entre outros. Segundo Luiz Antonio Marcuschi, na obra Da
fala para a escrita (2010), um dos problemas centrais da situação, ao colocar a escrita como
representação da oralidade, situa-se principalmente na:
....impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos,
de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da língua. São, portanto,
realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista semiológico podem
ter peculiaridades com diferenças acentuadas, de tal modo de que a escrita não
representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização multissistêmica
(palavras, gestos, mímicas) e os textos escritos também não se circunscrevem
apenas ao alfabeto (envolvem fotos, ideogramas, por exemplo,os ícones do
computador, e grafismos de todos os tipos). Fique, pois, claro que não postulamos
uma simetria de representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das
articulações estritamente lingüísticas. (2010, p. 47)
O pensamento de Mikhail Bakhtin em Estética da Criação Verbal (1992) sobre os
gêneros do discurso é importante para se pensar a relação dialógica que existe entre
enunciados, seus produtores e receptores dentro de uma perspectiva interacionista. Se antes
havia por parte dos formalistas russos um entendimento da produção de discurso centrado na
figura do emissor, Bakhtin dá uma nova dimensionalidade à compreensão dos sistemas
comunicativos, atribuindo importância significativa aos enunciados em sua recepção no outro
através do fluxo verbal. Cabe lembrar que o autor refere-se aos usos da língua como discurso
e não propriamente como um sistema. O que ele reitera é a ideia de influência a que estão
submetidos os gêneros orais e os gêneros escritos, o que mais tarde vem a ser chamado pelos
3
Ver A Estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença. São Paulo:
Perspectiva, 1967.
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estudiosos da língua como intergenerecidade4. Nessa perspectiva, tanto os gêneros orais são
assimilados pelos escritos como o inverso, residindo no fato importante justificativa para
expor a interação entre as formas orais e escritas como constituições híbridas que se
retroalimentam numa progressão contínua e infinita.
Pontuar essas interações no texto clariceano de Como Nasceram as Estrelas - Doze
Lendas Brasileiras é perceber a presença de elementos nos enunciados que, embora estejam
na forma escrita nos remetem à fala, mais precisamente à contação de histórias enquanto
gênero do discurso. Essas marcas da oralidade se apresentam principalmente em forma de
categorização metaenunciativas,5 ou seja, comentários do próprio autor que interrompe o
fluxo para tecer considerações, algo bastante comum à oralidade, uma vez que nessa estrutura
do discurso a coerência pode ser restabelecida pelo faltante de forma mais imediata pela
evocação do interlocutor. Outra forte presença da oralidade no texto infanto-juvenil clariceano
são as catáforas que antecipam o que vai ser contado, recurso utilizado de forma muito
freqüente pelos contadores de histórias, dada a necessidade de chamar atenção sobre o
conteúdo a ser oralizado.
A proximidade dessa enunciação na obra de Clarice Lispector nos revela a forma
como suas histórias para crianças e jovens nasceram, ou seja, na relação da figura mãe com
seus filhos. O Mistério do Coelho Pensante (1967) foi originado, segundo a própria autora, a
partir de uma ordem do filho Paulo, quando moravam em Washington, à época que escrevia
Maçã no Escuro (1961). O enredo da história parte de uma experiência da própria mãe e do
filho quando estavam alimentando uns coelhos. Alguns dias depois, os animaizinhos
misteriosamente desapareceram. Clarice repetiu a história oralmente para os filhos menores
várias vezes e depois se rendeu a ordem de Paulo para que traduzisse a experiência em forma
de escrita. “Então tirei o papel da máquina e escrevi a estória do coelho pensante que era real,
que ele conhecia”. (Gotlib, 2009, p. 351). Findadas algumas laudas escritas, a mãe deu-as a
uma babá para que contasse novamente a história, cumprindo assim sua obrigação e
confirmando sua vocação para contadora de histórias. Mais tarde, em 1967, por sugestão de
4
Refiro-me aqui a Jean-Michel Adam na França e a Ingedore Koch e Luiz Antônio Marcuschi no Brasil. Todos
eles influenciados pela teoria de Bakhtin.
5
São recursos metalingüísticos como comentários, advertências, declarações, promessas, reflexões, avaliações
que interrompem o fluxo narrativo, chamando a atenção do leitor/ouvinte, conforme Kock e Elias (2006)
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um editor de livros infantis, a escritora recuperou as laudas que ainda estavam escritas em
inglês e verteu para o português a história, transformando-a em grande sucesso editorial. Não
foi uma época fácil para Clarice, no entanto nunca deixou de responder e dar a devida atenção
aos filhos. Também não foi sua primeira experiência com histórias infantis. Ela chegou a
esboçar algumas ideias para sua sobrinha Márcia, em 1946, filha de Tânia Kauffmann,
novamente como tia contadora. O tema da narrativa versava sobre a história de um menino
que comia uma abóbora, cujo conteúdo tem outro menino que comia outra abóbora, e assim
por diante. Esse ensaio da fabulação não chegou a se constituir como história escrita
permanecendo na oralidade, ficando guardado o episódio na memória dos filhos de Clarice.
A proximidade com seu público mirim revela o tom maternal de suas histórias infantojuvenis que se estenderam a todos os textos dedicados a essa faixa-etária, lugar em que as
funções metaenunciativas e as catáforas se fazem presentes. Clarice sempre se deu bem com
os pequenos, a quem considerava alegres, enquanto o adulto é triste: “Quando eu me
comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com
adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim. Aí é difícil.” 6
Os filhos Paulo e Pedro, a filha de seu psicanalista e amigo, Andréa Azulay, as
crianças do orfanato que eram ajudadas por sua amiga, Olga Borelli, os filhos de Érico e
Mafalda Veríssimo, seus sobrinhos, todos despertavam em Clarice um lado maternal que era
alegre e triste ao mesmo tempo, dada a sua própria relação com a mãe, Mania Lispector 7. No
seu papel materno, Clarice afirmava: “Nasci para amar os outros, nasci para escrever, nasci
para criar meus filhos.” (Moser, 2011, p.313).
Os recursos discursivos citados são muito comuns nas funções de maternagem durante
o processo de contar histórias, dada à intimidade que revelam enquanto espécie de conversa
6
Fala recolhida da entrevista que deu a Julio Lerner, em 1977, na TV Cultura, pouco antes de falecer.
Moser, na biografia Clarice, (2011) retoma dados que comprovam a profunda tristeza de Clarice Lispector pela
situação de sua mãe. Desde o nascimento, a escritora conviveu com o fato de sua progenitora entrar numa
profunda depressão e estar paralítica em virtude dos fatos ocorridos em Tchechelnik, Ucrânia, por ocasião da
perseguição aos judeus e de um possível ataque violento de que Mania foi vítima, meses antes de Clarice nascer.
Parte da tristeza da escritora estava na crença de uma possível melhora da mãe, o que não aconteceu. Desde
pequena começou a fabular, representar pequenos teatros e declamar histórias para a mãe na esperança de que
ela saísse daquele sonambulismo, o que não veio a acontecer até a sua morte, em 21 de setembro de 1930. “Eu
era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim. (...) Eu morria de sentimento de culpa porque
pensava que tinha provocado isso quando nasci.” (Moser, 2011, p. 114)
7
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próxima, ao pé do ouvido. São elementos típicos da interação familiar, da fabulação que
responde a uma necessidade de afeto recíproco. Na história que abre Como Nasceram as
Estrelas - Doze Lendas Brasileiras, cujo título é o mesmo da coletânea, tem-se a versão
indígena de como se originaram as luzes que piscam no céu. Já no início, o narrador da
história começa com uma catáfora em destaque, afirmando:
Pois é, todo mundo pensa que sempre houve estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes
os índios olhavam de noite para o céu escuro – e bem escuro estava esse céu. Um
negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. (1987, p. 8).
Prosseguindo no fluxo discursivo temos mais presenças de catáforas e um processo de
interlocução com o leitor típico dos contos orais, na introdução da pergunta:
Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam,
guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e
dormiam, roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para
terem todos o que comer. Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para
moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas
matas sob um gostoso sol amarelo. (1987, p.8)
Ao final da história, a explicação para o nascimento das estrelas do céu repousa no
fato da fuga dos pequenos curumins que, pensando em roubar mais fubá dos milharais,
embrenharam-se em cipós para roubar-lhes mais milho. Subiram tanto que se transformaram
em estrelas. No entanto, o narrador se permite o comentário metaenunciativo ao final dizendo
ter sua versão para o fato, diferente da história narrada pelos índios. Para ele, as estrelas que
estão no céu “são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que tudo
ocorra bem. Para sempre. E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.” (1987, p. 9). Percebese a hibridização de culturas quando, ao final da história, o próprio narrador branco dá a sua
versão para a lenda, sem denegrir a anterior, desencadeando a possibilidade da coexistência da
visão de mundo e de suas crenças.
Esses recursos estilísticos se repetem em outras narrativas da coletânea, demonstrando
sua propensão ao ato de contar histórias. Na história do Saci-Pererê, intitulada Do que eu
tenho medo, o narrador inicia novamente o texto com certa proximidade de seu interlocutor,
fazendo uso de metaenunciações e catáforas. Assim narra a lenda do ser mágico que habita as
matas brasileiras, marcando seu fluxo narrativo com abundantes usos dos dois pontos e dos
comentários que a aproximam de seu interlocutor, o leitor/ouvinte:
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Bem, o jeito é começar fazendo uma confissão: a de que sou um pouquinho covarde,
tenho meus medos. E você vai rir de mim quando souber de que é que eu receio
tanto. É ...bem..., é.... (Vou tomar uma bruta coragem e dizer mais uma vez.) Tenho
medo é do... Saci-Pererê! Mas que alívio eu já ter confessado. E que vergonha. Só
não juro que o Saci existe porque não se deve ficar jurando à toa, por aí. Você é
provavelmente de cidade e não me acredita. Mas que nas matas tem saci, lá isso tem.
E eu garanto essa verdade que até parece mentira, garanto porque já vi esse meiogente e meio-bicho. (p. 40)
Um fato interessante da narrativa De que tenho medo é a presença do narrador
protagonista. Diferentemente das outras histórias da coletânea, há um desprendimento do
distanciamento dos fatos deslocado para uma exposição da experiência do narradorpersonagem ter compartilhado o medo de conhecer o Saci-Pererê. Ao final da história, ele
conta como fez para obter o revés e enganar a criatura arteira.
Quando ele me pediu fumo, dei. Mas misturei ao tabaco, um pouco de pólvora (não
demais porque eu não queria matá-lo). E quando ele tirou a primeira tragada, foi
aquele estrondo. Porque eu também sou um pouco Saci-Pererê: foi com ele que
aprendi as manhas. (1987, p. 41)
Considerações Finais
As narrativas que compõem Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras
são conhecidas por grande parte da geração de Lobato e de seus precursores. São também
parte um de um repertório cultural que permanece vivo naqueles que cultuam a arte de contar
histórias, pertencendo à tradição da oralidade. Nesse sentido, compreendem aquilo que
Fernandes (2007) redefine a partir de Paul Zumthor (1993) como arquétipos, ou seja,
atualizações, espécie de “texto virtual” presentificado que se dissemina e perpetua como atual
por uma comunidade ou cultura. É o trabalho que Clarice fez e seus editores e leitores
permanecem realizando ao reeditar a obra ou transformá-la em conteúdo para a contação de
histórias. Dessa forma, a escrita é desterritorizada, passando para oralidade a disseminação de
seu conteúdo cultural. Para que o texto se torne um arquétipo, há a necessidade da disposição
do receptor de tanto recebê-lo como transmiti-lo, motivo para um estudo da recepção dos
contadores de histórias a partir da obra infanto-juvenil de Clarice em contexto de performance
e recepção. O que se pode adiantar dessa perspectiva de estudo é que eles nasceram para ser
contados, ainda nos dias atuais estão presentes em muitas coletâneas. Sua motivação provém
de parte da obra da escritora que se inclina menos à introspecção, sem apagá-la, e acentua o
diálogo com o público leitor.
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Moser (2011) aponta a necessidade de fabulação e depois de escrita como uma espécie
de resiliência da escritora diante dos fatos da vida. Na infância, a doença da mãe lhe era por
demais penosa e sofrida. Para ajudar em casa e no seu próprio tratamento, a única saída para a
jovem Clarice em seus oito anos de idade era fabular e criar histórias. No entanto, a
expectativa foi frustrada.
A única ajuda que podia oferecer era mágica. Implorava a Deus que ajudasse sua
mãe, e, de acordo com Bertha Lispector Cohen, encenava pequenas peças para
entretê-la, às vezes conseguindo fazer rir a “estátua” condenada. Anita Rabin
lembrava que, quando Clarice criava histórias, usando acessórios como lápis ou
ladrilhos, ela inventava desfechos mágicos, em que uma intervenção milagrosa
curava a doença da mãe. (p. 116)
Clarice permanece sob a égide do mistério para alguns: “Eu sou a própria pergunta”,
definia uma de suas crônicas. Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras, dada a
sua característica de representação dos arquétipos e dos mitos culturais recriados de forma
híbrida, também abarca os mistérios da escritora, esses revelados pelos questionamentos que
perpassam o texto e indagam o ouvinte/leitor. Evidenciam-se no discurso da obra muitas
indagações. Sobre o Saci Pererê - “não se sabe explicar porque ele é tão bom com os bichos”
(1987, p. 33) - ou a respeito da sorte que o uirapuru traz ao povo da mata – “Como é que se
espalhou que o uirapuru dá sorte?” (1987, p.17) - são muitos os mistérios invocados pela obra
infantil de Clarice, o que estimula o leitor/ouvinte mirim a explorá-los, despertando uma
espécie de necessidade de questionamento ou pedagogia da pergunta.
O ser inquieto, a escritora que amava as crianças, Clarice Lispector veio ao mundo em
situação familiar muito difícil. Cresceu em meio à esperança, mas as necessidades da vida
foram transformando aquela menina de imaginação fértil e expansiva numa mulher cada vez
mais silenciosa, solitária e ensimesmada. Passando por períodos mais introspectivos e menos
sociais, permanecia em Clarice a latência do não pertencer. Disse ela certa vez em sua crônica
Pertencer (2004, p. 53) sobre a passagem do tempo: “Com o tempo, sobretudo nos últimos
anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como é. E uma espécie toda nova da solidão de
não pertencer começou a me invadir como heras num muro.” (p. 53)
Mesmo com tantas perguntas sem respostas, identifica-se no discurso de Como
Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras a necessidade de fabular, verbalizar e recriar.
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Também um trabalho intercultural de dar voz a uma cultura nacional polifônica, ao mesmo
tempo desterritorizada, dialógica, híbrida, como a própria constituição de Clarice: brasileira,
nascida russa, cidadã do mundo. As histórias dessa coletânea continuam disponíveis para
serem lidas e contadas, continuamente, desvelando uma face da escritora ainda pouco
conhecida, a da contadora de histórias.
Referências Bibliográficas
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______________. Crônicas para jovens de escrita e de vida. Rio de Janeiro:
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TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato. De palmeiras e colibris ou de como a voz guarani
vem se tornando letra. Texto apresentado em Encontro do Grupo de Trabalho sobre Poéticas
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ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo. Porto Alegre: Artmed,
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.