Versão completa da revista - Revista Boitatá
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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 2 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 3 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 4 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 EXPEDIENTE: (Assis) EDITORES: Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy Universidade Federal do Rio Grande do Sul Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes Universidade Estadual de Londrina Profa. Maria das Dores Capitão Vigário Marchi Universidade Federal da Grande Dourados Dra.Maria do Socorro Galvão Simões Universidade Federal do Pará ORGANIZADORES: Dr. Mário Cezar Silva Leite Universidade Federal de Mato Grosso Dra. Mauren Pavão Przybylski Universidade Estadual da Bahia Dr. Piers Armstrong University of California (Estados Unidos) Dra Sylvie Dion Universidade Federal do Rio Grande Dr. Sílvio Jorge Renato Universidade Federal Fluminense COMISSÃO EDITORIAL: Dra. Vanderci de Andrade Aguilera Universidade Estadual de Londrina Dra. Anna Christina Bentes Universidade Estadual de Campinas Profa. Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira Universidade Federal da Grande Dourados Dra. Cláudia Neiva de Matos (presidente) Universidade Federal Fluminense Dra. Edil Silva Costa Universidade Estadual da Bahia Dra. Eliana Mara de Freitas Chiossi Universidade Federal da Bahia Dr. Eudes Fernando Leite Universidade Federal da Grande Dourados Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes (presidente) Universidade Estadual de Londrina Dra. Ivete Walty Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Dr. J. J. Dias Marques Universidade do Algarve (Portugal) Dr. Jorge Carlos Guerrero University of Ottawa (Canadá) Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes Universidade Federal do Pará Dra. Josebel Akel Fares Universidade Estadual do Pará Dra. Lisana Bertussi Universidade de Caxias do Sul Dr. Luiz Roberto Cairo Universidade Estadual Paulista PARECERISTAS DESTE NÚMERO: Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy Universidade Federal do Rio Grande do Sul Dra. Cláudia Neiva de Matos Universidade Federal Fluminense Dra. Edil Silva Costa Universidade Estadual da Bahia Dr. Eudes Fernando Leite Universidade Federal da Grande Dourados Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes Universidade Estadual de Londrina Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes Universidade Federal do Pará Dra. Lisana Bertussi Universidade de Caxias do Sul Dra. Maria do Socorro Galvão Simões Universidade Federal do Pará Dra Mauren Pavão Przybylski Universidade do Estado da Bahia Dra Normelia Parise Universidade Federal do Rio Grande Dra. Sylvie Dion Universidade Federal do Rio Grande Doutoranda Tassia Nascimento Universidade Federal do Rio de Janeiro Dra. Vera Lúcia Cardoso Medeiros Universidade Federal do Pampa 5 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Boitatá: Vozes da Francofonia : Oralidade e Cultura Popular/ Organizadoras : Mauren Pavão Przybylski, Sylvie Dion; Editores: Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Frederico Augusto Garcia Fernandes. – Londrina, n. 17, jan./jul 2014. – 1 v.: il.; p. 295. Semestral, jan./jul. 2014. ISSN 1980-4504 1. Literatura – Periódicos. 2. Vozes da Francofonia : Oralidade e Cultura Popular – Periódicos. I. Przybylski, Mauren Pavão II. Dion, Sylvie, III. Tettamanzy, Ana Lúcia Liberato IV. Fernandes, Frederico Augusto Garcia. VI. Universidade Estadual de Londrina. Boitatá, Londrina, n. 17, jan. Jul 2014 6 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Sumário Apresentação Mauren Pavão Przybylski e Sylvie Dion......................................................................... 9 Seção temática: Vozes da francofonia: Oralidade e Cultura Popular Vozes do Quebec “Autour de Fred Pellerin” Bertrand Bergeron............................................................................................................ 13 “A última viagem ao país do Imaginário da América Francesa” Jean Du Berger................................................................................................................. 26 Vozes d’Haiti “Vodu: o Ounfò revisitado” Maximilien Laroche........................................................................................................... 53 “ Literatura e oralidade no Haiti. A poesia em Crioulo de Georges Casteira Normélia Parise.................................................................................................................. 73 Vozes da África “A questão da identidade em Alain Mabanckou” Paula Souza Dias Nogueira............................................................................................... 91 “Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas contemporâneas” 7 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Alcione Correa Alves........................................................................................................ 103 “Romance africano de língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional” Maria Suzana Moreira do Carmo........................................................................................ 118 “ Palavras: denúncia à violência e ecos identitários em Nga Fefa Kajinvunda, de Boaventura Cardoso” Maria Aparecida de Barros................................................................................................... 132 Vozes francófonas no Brasil “Peias e Espartilhos: sátira popular à moda francesa na Primeira República” Francisco Marques e Esequiel Silva.................................................................................... 147 “historiographies premières : a escritura poética oralizada como lugar de conhecimento” Ana Rossi............................................................................................................................. 160 Seção livre “A formação do acervo IFNOPAP: método ou prática?” Alexandre Ranieri............................................................................................................... 177 “O lugar das poéticas orais” Danieli dos Santos Pimentel e Josebel Akel Fares.............................................................. 190 8 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 « Vozes poéticas : performance e memória nas narrativas cotidianas do Rio do Engenho (Ilhéus / Bahia) » Gisane Sousa Santa e Maria de Lourdes Netto Simões............................................................ 212 “Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho artístico From the forest/ Da floresta de Luana Costa e Hedi Jaansoo” Luana Costa................................................................................................................................ 232 “A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nnaordestinos” Naelza Wanderley........................................................................................................................ 245 “O assassino do aqueduto e sua representação na literatura popular portuguesa” Nilce Camila de Carvalho............................................................................................................ 267 “Clarice Lispector: oralidade, fabulação e recriação em doze lendas brasileiras” Samuel Frison.............................................................................................................................. 283 9 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 APRESENTAÇÃO Este número especial será dedicado às literaturas orais e populares dos países de língua francesa. Narrativas tradicionais e contemporâneas, patrimônio imaterial e patrimônio vivo, renovação do conto e das artes da voz, histórias populares e histórias de vida estão dentro das perspectivas que se pretende contemplar. O leitor irá se deparar com manifestações literárias advindas de diversos países que têm o francês como primeira ou segunda língua. O destaque será dado, contudo, a autores quebequenses convidados a apresentar suas discussões no âmbito das oralidades. Bertrand Bergeron, etnólogo quebequense, em seu “Autour de Fred Pellerin”, propõe-se não simplesmente a inventariar a obra do referido escritor, a qual encontra-se em constante evolução, dada a pouca idade do autor – mas em descrever e analisar a movência social e artística em que ela se inscreve. Já Jean Du Berger, etnólogo e professor aposentado da Universidade Laval, em seu artigo intitulado “A última viagem ao país do imaginário da América francesa”, relata a viagem de seu ancestral, Jean-Baptiste Du Berger, ocorrida em 19 de novembro de 1764. A reflexão vai retomar a rota do imaginário da América francesa para revisitar os lugares de fala, saudar os contadores e as contadoras e assistir ao circuito dos heróis dos contos e das personagens das lendas; o pesquisador objetiva “retornar ao país da memória para tomar a palavra como se bebe da raiz”. Do Quebec, passamos ao Haiti. Maximilien Laroche, professor de literatura aposentado da Universidade Laval, nos traz “Vodu: o Ounfò revisitado”. O autor resume, em seu artigo, uma visita a uma exposição em Nova Iorque sobre o vodu haitiano e as reflexões suscitadas em relação ao vodu tal como é entendido no Haiti e além desse país. Para discutir oralidade e literatura no Haiti, contamos com as reflexões da professora Normélia Parise. Em “ Literatura e oralidade no Haiti. A poesia em crioulo de Georges Casteira”, a autora sugere uma aproximação entre oralidade e literatura no Haiti, focando na produção poética em crioulo de Georges Casteira. 10 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Das Antilhas viajamos para a África. Paula Souza Dias Nogueira expõe uma reflexão acerca da questão da identidade na obra Mémoires de porc-épic, do escritor congolês Alain Mabanckou. Como ponto de partida, a pesquisadora apresenta uma contextualização dos autores francófonos da segunda geração pós-colonial para, em seguida, examinar as principais características de Mabanckou. Em “Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas contemporâneas”, o professor Alcione Correa Alves propõe-se a analisar o texto de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée", na obra coletiva Pour une littératuremonde (2007), assim como a leitura que Léopold Sédar Senghor apresenta ao Orphée noir, de JeanPaul Sartre. Ainda em terras africanas, Maria Suzana Moreira do Carmo, em seu “Romance africano de língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional”, procura, a partir do exame das matrizes das literaturas africanas, avaliar os elementos da história recente da África ocidental, que propiciaram o surgimento dos romances africanos de língua francesa. Maria Aparecida de Barros, em seu artigo “Palavras: denúncia à violência e ecos identitários em Nga Fefa Kajinvunda, de Boaventura Cardoso”, analisa a obra de contos Dizanga dia Muenhu, do autor recém-citado, editada em 1977. A autora confere destaque ao fato de o escritor não ter se disposto a traduzir o título do livro, evento que suscita a hipótese de que cabe ao leitor investigar o termo em quimbundo, grupo etnolinguístico do povo banto, estética de valoração à cultura de tradição oral africana. Fechamos a sessão temática com dois artigos. Primeiro, “Peias e Espartilhos: sátira popular à moda francesa na Primeira República”, no qual Francisco Marques e Esequiel Silva destacam que, nas primeiras décadas da República, as ruas das principais capitais brasileiras, sobretudo do Rio de Janeiro e do Recife, reurbanizadas nos moldes da Paris haussmanniana e bafejadas pela febre de cosmopolitismo em que investia a Europa, ofereciam-se às mulheres como passarelas onde podiam exibir seus modelos imitados ou importados, principalmente de Paris. Em seguida, o artigo de Ana Rossi, expõe uma reflexão relativa ao projeto de escritura a partir do poema da autora intitulado “historiographies premières” e desenvolve uma reflexão 11 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 epistemológica que, questionando o campo historiográfico, institui a voz e a oralidade como elementos fundamentais para a construção de um novo tipo de conhecimento a respeito da realidade brasileira. Na sessão livre, destacamos textos que se enquadram no escopo da revista: estudos de oralidade e culturas populares; textos oriundos de abordagens culturais ou multiculturais e que partam de diferentes campos de estudos, como Literatura, Antropologia, Ciências Sociais, Psicologia, História e Linguística serão aqui contemplados. Alexandre Ranieri, em “A formação do acervo IFNOPAP: método ou prática?”, objetiva tratar do método entrevista do projeto IFNOPAP a partir do documento Achegas para técnica e ética de coleta, com vistas a analisar os procedimentos adotados à luz tanto de folcloristas como Renato Almeida (1965) e Oswaldo Cabral (1954) quanto de pesquisadores contemporâneos, como Maria Inês de Almeida e Sonia Queiroz (2004) e Frederico Fernandes (2003). O artigo faz parte da tese de doutorado do autor, ainda em andamento e na qual ele faz uso de autores importantes, a exemplo de Marshall Macluhan (1972), Walter Benjamin (2001) e Paul Zumthor (2010), dentre outros. Danieli dos Santos Pimentel e Josebel Akel Fares, em “O lugar das poéticas orais”, atrelam a escrita do artigo aos seus interesses para com as pesquisas envolvidas com as poéticas orais. No referido artigo, as autoras se debruçam, sobre a tentativa de refletir a respeito de um tipo de abordagem observada ao longo do texto e apresentam, de forma didática e teórica, os percursos trilhados no decorrer da pesquisa. Das metodologias e aplicabilidades passamos à performance propriamente dita, enfatizada no texto “Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho artístico From the forest/ Da floresta, de Luana Costa e Hedi Jaansoo”. Em sua análise, a autora pretende aprofundar as investigações realizadas durante o processo de criação da obra From the Forest/Da Floresta, trabalho sonoro e visual criado por ela em conjunto com Hedi Jaansoo (Bergen) durante a disciplina do curso de Pós-Graduação “Voz, Texto, Coletividade”, ofertada pela UERJ e ministrada por Ricardo Basbaum, no Brasil, em parceria com Brandon LaBelle, professor da Academia de Belas-Artes da Noruega. 12 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Outra forma de performance é retratada por Naelza Wanderley, a partir das rimas e versos nordestinos. No artigo “A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nordestinos”, a pesquisadora propõe-se a desenvolver uma leitura comparativa a partir do texto português A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, enquanto “mediador” entre a matéria carolíngea em terras brasileiras e poemas pertencentes à literatura de cordel nordestina. Nilce Camila de Carvalho, no artigo “O assassino do aqueduto e sua representação na literatura popular portuguesa”, apresenta a história de Diogo Alves, um célebre bandido português do século XIX, que ficou conhecido como “O assassino do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa”. A autora procura, neste artigo, refletir sobre a personagem, seus crimes e sua lenda, discutindo as suas representações literárias e as explícitas intenções dos autores. Gisane Santana e Maria de Lourdes Netto Simões, no artigo « Vozes poéticas : performance e memória nas narrativas cotidianas do Rio do Engenho (Ilhéus / Bahia) », ojetivam analisar as narrativas orais do Rio do Engenho, que são produzidas no cotidiano da comunidade, nas suas práticas simbólicas, a partir de um estudo desenvolvido interdisciplinarmente no espaço da Literatura Comparada onde são estabelecidas convergências conceituais da teoria e crítica literárias, da nova história e dos estudos da cultura. Encerrando a Sessão Livre, Samuel Frison, em “Clarice Lispector: oralidade, fabulação e recriação em doze lendas brasileiras”, Como nasceram as estrelas, investiga as marcas da oralidade presentes na literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector. Além disso, o autor pretende recuperar historicamente a recriação das fábulas contidas no volume Doze Lendas Brasileiras, publicado em forma de calendário no ano de 1977 e, posteriormente, lançado em forma de livros infantis, com reedições até a contemporaneidade. Por fim, recupera a face contadora de histórias da escritora, sua capacidade de fabulação e ligação afetiva com o leitor mirim, bem como inúmeras confluências culturais na recriação de histórias conhecidas do nosso folclore. Boa leitura! Mauren Pavão Przybylski e Sylvie Dion 13 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Vozes do Québec AUTOR DE FRED PELLERIN Bertrand Bergeron1 Resumo: O presente artigo propõe-se menos a listar um inventário da obra de Fred Pellerin - obra em constante evolução principalmente em razão da idade jovem do autor - que descrever e analisar a esfera social e artística na qual ela se inscreve, em que ninguém é o fruto de uma geração espontânea. A contribuição original deste contador de histórias célebre em terras quebequenses será abordada numa perspectiva ao mesmo tempo diacrônica e sincrônica. Palavras-chave: Fred Pellerin, conto, contador de histórias, lenda, mito, “oratura”, “litoratura”, literatura. Résumé : L’article que voici se propose moins de dresser un inventaire de l’œuvre de Fred Pellerin — œuvre en constante évolution en raison notamment du jeune âge de l’auteur — que de décrire et d’analyser la mouvance sociale et artistique dans laquelle il s’inscrit, personne n’étant le fruit d’une génération spontanée. L’apport original de ce conteur célébré en terre québécoise sera abordé dans une perspective à la fois diachronique et synchronique. Mots clés : Fred Pellerin, conte, conteur, légende, mythe, orature, littorature, littérature. Brève archéologie de la tradition orale québécoise Bien que découvert officiellement en 1534 (d’un point de vue européen, s’entend), le Canada n’est l’objet d’une occupation continue qu’à partir de 1608 avec la fondation de Québec par Samuel de Champlain. Outre leurs maigres bagages, les premiers colons emportèrent avec eux, en plus de leur langue et de leur foi religieuse, un immensurable héritage fait de traditions tant coutumières qu’orales, véritables marqueurs de leur identité. Ce legs intemporel avait l’avantage de constituer un patrimoine immatériel, de sorte qu’il ne risquait pas d’encombrer l’espace exigu des navires de l’époque. Il était partout où se trouvaient ceux qui le portaient et qui ignoraient, le plus souvent, qu’ils étaient les fiduciaires d’un tel trésor. 1 Ethnologue. 1151, 8e Rang Nord, Saint-Bruno en Lac-Saint-Jean, Québec, Canada, G0W 2L0, Tél. : 418 343-2880 Courriel : bertrand.bergeron@ymail.com 14 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Coloniser n’implique pas seulement s’emparer du sol pour s’y établir et s’y développer, il consiste également en une vaste entreprise d’implantation de sa culture mise en présence et en concurrence avec celle des indigènes, d’où les inévitables emprunts de part et d’autre. Si le phénomène de l’acculturation bénéficie aux cultures hégémoniques en la nourrissant d’une sève neuve, elle appauvrit les cultures minorisées au point de les acculer à la déculturation. Pour m’en tenir qu’au patrimoine oral des colons français, de quoi était-il constitué? On y recense avant tout deux grandes catégories qui relèvent du type de mémoire impliquée lors de leur remémoration, c’est-à-dire lors de leur actualisation : la mémoire du mot à mot et celle des canevas. Certains récits se rangent sous la rubrique de la littérature fixée au sens où les mots et l’information appartiennent à la tradition. Le narrateur s’y révèle un passeur lié, entravé, un répétiteur en quelque sorte. Sa narration est contrôlée et sanctionnée. Se tromperait-il qu’on le reprendrait en le réprimandant ou en le raillant. Ainsi en va-t-il des proverbes, des dictons, des comptines, des devinettes et des virelangues. D’une génération à l’autre, ces récits se transmettent indéfectiblement, rébarbatifs à toute variation. « Pierre qui roule n’amasse pas mousse » se répète depuis des lustres sans altération. D’autres récits tolèrent l’intervention personnelle du narrateur sur un canevas fourni par la tradition. Ce sont les contes et les mythes. Le narrateur est libre quant à la formulation d’une information qui lui est imposée. Il peut personnaliser à l’envi sa manière de dire pourvu que le dit respecte le scénario conventionnel. Cette liberté du locuteur n’est pas sans effets sur l’information, car il s’y glisse inévitablement des variations que la tradition, sous l’impact de la répétition, finit par intégrer par un phénomène analogue à l’épigenèse. Enfin reste un troisième type de récits où l’information et la formulation appartiennent de droit au narrateur. Ce privilège est tout de même balisé par la collectivité qui encourage ou évacue tel ou tel type de discours. Ce sont les légendes, récits libres en apparence, évoluant à l’intérieur du système de croyances d’une population donnée qui leur accorde un permis de circuler. Une population d’obédience catholique découragera activement toute propagation de légendes hindoues, par exemple. Les colons français cultivaient naturellement ces genres de la tradition orale à l’exclusion du mythe, domaine réservé à l’Église qui l’avait annexé pour des raisons d’orthodoxie et de magistère, 15 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 et veillait rigoureusement à son intégrité, décourageant par le fait même toute tentative d’émergence d’une mythologie populaire. Les seuls mythes populaires en circulation sur le territoire de la Nouvelle-France étaient le fait des Amérindiens qui trouvaient dans leur narration ce bien-être psychologique qu’apporte une réponse concrète aux lancinantes questions qui taraudent la conscience de tout être humain : « Qui suis-je? D’où viens-je? Où vais-je? » Leurs récits se faisaient cosmogonie, anthropogonie ou théogonie selon les besoins et les urgences. Cet état de fait perdura, en gros, jusqu’à la fin de la Deuxième Guerre mondiale. Deux événements majeurs allaient chambouler le paysage bucolique de la tradition orale : la boîte à images et la Révolution tranquille. Boîte à images et Révolution tranquille L’apparition de la télévision au début de la seconde moitié du siècle dernier allait transformer radicalement la culture populaire et la pratique de ce que l’on pourrait, faute d’un autre mot, appeler « orature » par opposition à littérature, la dénomination « littérature orale » relevant presque de l’oxymoron. Faisons l’impasse sur l’irrésistible uniformisation sociale qui en découla — la métropole (entendez Montréal) donnant le ton au reste de la province —, pour nous concentrer uniquement sur le conte populaire. Le conteur traditionnel, qui officiait dans la cuisine ou le salon lors des veillées de famille, dut brutalement faire face à une concurrence qu’on pourrait qualifier de déloyale. Les moyens mis en œuvre par le nouveau médium étaient sans commune mesure avec la sobriété et la rusticité de l’approche technique de son art. Tout médium nouveau a comme contenu un médium ancien, pour reprendre un aphorisme de Marshall McLuhan. Présentée comme une fenêtre qui ouvrait sur le monde, la télévision déversait un déluge d’images qui captaient l’attention et instillaient une dépendance envers le petit écran. Une kyrielle d’émissions pour enfants puisait, dans l’univers du conte et de la légende, matière à nourrir ce monstre boulimique avide de contenu nouveau parfois jetable après usage. Ainsi vit-on une poupée, Fanfreluche, s’inspirer de la tradition orale en endossant le rôle de « trickster » pour intervenir dans la trame narrative afin de la détourner de la trajectoire conventionnelle pour interroger la pertinence d’un motif comme si les personnages 16 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 acquéraient dans cet exercice une conscience réfléchie qui leur octroyait provisoirement le statut de personne. La boîte à images en vint à bâillonner la bouche à images. Le conteur perdit sa pertinence sociale avec son auditoire captivé ailleurs et fit comme tout un chacun : il s’est assied à son tour devant le petit écran qui lui avait dérobé sa place et sa fonction. Plus tard, avec l’introduction des jeux interactifs, le conte fut à nouveau sollicité. La compagnie japonaise Nintendo mit sur le marché Super Mario Bros qui se répandit à la manière d’une déferlante. Le joueur, à travers une série d’épreuves et d’obstacles, faisait délivrer par le héros auquel il s’identifiait une princesse présentée comme récompense ainsi que le prescrit une fonction proppienne issue des recherches formalistes russes qui alimentèrent la conception de ces jeux. En septembre 1959, Maurice Duplessis décède. Son successeur prononce le mot qui ouvre sur tous les possibles : « Désormais », avant de suivre, quelques mois plus tard, son prédécesseur dans la tombe. Le Québec entrait en effervescence, et cette ébullition sociale trouva un écho dans la province voisine qui qualifia cette renaissance de « Quiet Revolution », après avoir décrété longtemps auparavant que la Belle Province était la « priest ridden province » — Paul Claudel parlait plutôt du « Tibet du catholicisme ». Le régime duplessiste fut baptisé la Grande Noirceur, notre Moyen Âge à nous selon une vision romantique empruntée à la France du XIX e siècle. Tout ce qui rappelait cette époque fut honni sans autre forme de procès. On jeta le bébé avec l’eau du bain. La Révolution tranquille devint une borne temporelle qui avait valeur de point d’origine. La culture traditionnelle fut suspectée de conservatisme, de passéisme et d’obscurantisme. On la coiffa du bonnet d’âne. Les conteurs firent le dos rond et se réfugièrent dans leur préhistoire pendant que les Québécois préparaient dans l’enthousiasme leur grand rendez-vous avec l’Histoire. Rendez-vous deux fois raté (1980 et 1995), le Québec et Porto-Rico demeurant les deux seules colonies de peuplement dans les Amériques à avoir refusé leur indépendance. Le conte nouveau L’urbanisation accélérée du Québec a dilué jusqu’à les affadir les milieux naturels de transmission tout en renouvelant radicalement les thèmes. Ce constat est particulièrement perceptible dans les légendes qui épousent intimement les préoccupations existentielles des 17 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 collectivités où elles circulent. Les références rurales n’interpellant plus l’imaginaire des citadins, on a qualifié d’« urbains » ces récits qui scénarisent les angoissent de ceux qui les colportent alors qu’il faudrait surtout parler de légendes contemporaines. Grosso modo, elles se concentrent autour de trois axes générateurs d’insécurité — la nourriture, le sexe et la peur de l’autre — tout en recyclant certains thèmes traditionnels afin de les remettre au goût du jour. La peur des fantômes ressortit à ce cas de figure. Les médias de masse sont devenus leur milieu naturel de transmission de sorte qu’on pourrait ranger ces récits de croyance sous la rubrique de légendes de masse, car elles appartiennent d’emblée à la culture de masse elle-même fabriquée et mise en marché par l’industrie culturelle. Leur dissémination pénètre jusqu’aux plus fines nervures de la Toile. Le conte a pris une autre voie pour resurgir avec une vitalité nouvelle. Contrairement à la légende qui ressortit aux arts de la conversation et préfère pour cette raison les échanges personnels, le conte appartient d’emblée aux arts du spectacle. Plus intime dans sa version traditionnelle, il élargit son public dans son actualisation contemporaine. Son évolution l’a conduit de « l’âtre au théâtre », pour reprendre la belle formule de Christian-Marie Pons dans un article éponyme qu’il a livré à la revue Jeu2. Il fait désormais partie de l’offre des arts de la scène. Le feu de camp ou la cuisine qui l’ont vu naître n’évoquent plus qu’un lointain souvenir, une époque édénique hors d’atteinte. La mue qu’il a subie l’a souvent rendu méconnaissable. Au Québec, il est généralement admis que l’on doit à Yves Bienvenue3 et Stéphane F. Jacques (à la salle Biscuit en 1991) cette métamorphose qui a transmuté le conte traditionnel en conte urbain ou contemporain, serait-il plus juste de dire. Sa thématique est prévisible : le sexe, la drogue et le béton. Mais à la différence des légendes contemporaines dans lesquelles les narrateurs se cantonnent dans un anonymat de bon aloi et ne sont mentionnés qu’à titre d’« un ami d’un ami » (un adua), les néo-conteurs recherchent frénétiquement la publicité qui les fera connaître comme des créateurs à part entière. Sauf de notables exceptions (Michel Faubert, André Lemelin, Jocelyn Bérubé pour ne retenir que ceux-là), ils produisent des œuvres signées qu’ils livrent sur la scène devant des centaines de spectateurs anonymes confondus dans l’obscurité en une masse impersonnelle. Ils font appel aux mêmes techniques que le théâtre : mise en scène du corps se 2 «De l’âtre au théâtre», dans Jeu 131, Contes et conteurs. Montréal, Cahiers de théâtre Jeu inc., 2009, p. 68-72. 3 Jean-Marc Massie. Petit manifeste à l’usage du conteur contemporain, Montréal, Planète Rebelle, 2001, p. 65. 18 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 déplaçant dans l’espace, gestuelle et modulation de la voix, éclairage, décors, bruits de fond, musique. Il arrive qu’on ne sache plus trop faire la différence entre un conteur disant son conte ou un comédien endossant le personnage du conteur le temps de sa prestation. La ligne est ténue qui sépare les deux rôles et il n’est pas interdit qu’elle soit franchie dans un sens comme dans l’autre. À cette posture en équilibre fragile sur cette indécise ligne de démarcation s’ajoute le mélange des genres qui répond à un idéal social occidental : le métissage. Dans un spectacle où se produisent des néo-conteurs, le spectateur est exposé au conte à l’appellation d’origine contrôlée ou contemporain, à la légende traditionnelle ou contemporaine, au récit de vie, à la nouvelle sans qu’il lui soit signalé où loge tel ou tel récit. Le « je » est souvent de rigueur. Ce n’est plus la matière qui dira le genre, mais la manière indéniablement empruntée au conteur. Mais ce conteur, ce n’est plus cet artisan populaire qui a appris sur le tas à l’école des autres conteurs, c’est un artiste de plein droit formé dans des institutions, souvent guidé par un metteur en scène. Ses textes sont écrits par lui-même ou par d’autres, alors que dans la civilisation traditionnelle les auditeurs étaient confrontés à une narration sans texte, le conteur produisant sous leurs yeux à l’usage de leurs oreilles un récit qui naissait et mourait au fur et à mesure de sa profération. Un récit ponctuel, en somme, en équilibre entre deux silences : il en naissait pour mieux y retourner. Un engouement qui ne se dément pas Dès lors, comment expliquer l’engouement actuel pour le conte? Une précision s’impose : il est indéniable que la situation québécoise participe d’un mouvement occidental et, sous bénéfice d’inventaire, peut-être même planétaire. Pour ma part, je suis tenté d’y voir une double cause. D’abord, une curiosité tardive de la part de la génération dite des « baby-boomers », bénéficiaire plus qu’instigatrice de la Révolution tranquille, de la culture de leurs parents et de leurs grandsparents. L’âge venant, ce passé encore accessible dont ils pensent avoir fait table rase et lui avoir réglé son compte, revient les hanter à la manière d’un fantôme inconsolé. Une sourde culpabilité alimentée par des espoirs souvent déçus les amène à revisiter cette époque qui n’était peut-être pas aussi étouffante qu’on a voulu le faire croire et ils se demandent comment leurs ancêtres vivaient, quelles réponses ils ont trouvées pour juguler leurs angoisses existentielles, quelle était leur vision 19 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 du monde. Les ayant précédés dans la vie, ces gens les ont précédés aussi dans la mort, peut-être ont-ils quelque chose à leur apprendre sur la façon d’affronter les vicissitudes inhérentes au métier de vivre. En récusant tout modèle, ils se sont privés de modèles. Quand il leur faut élire une manifestation exemplaire de la culture populaire, ils choisissent celle qui ressortissait par le prestige et le souvenir durable qu’elle a laissés. La narration des contes s’imposait d’emblée comme la plus haute et la plus noble l’expression de cette oralité qui articulait alors les composantes de la vie sociale et ne participait pas de cette ignorance dont elle avait été affublée avec condescendance. À cela, il convient d’ajouter la nostalgie, ce sentiment d’avoir perdu en cours de route quelque chose d’essentiel qui humanise la vie. Je parle ici de cette forme de nostalgie qui ébarbe les souvenirs de ses aspects revêches et irritants. Ce faisant, un passé proche acquiert une dimension aurorale, devient une valeur refuge où il fait bon se blottir pour se remettre d’un réel plus décevant que gratifiant. Le conte permet cette évasion et ce dépaysement. Dans une société fortement urbanisée, ces valeurs renvoient au monde rural devenu, pour l’occasion, le conservatoire de cette convivialité et de cette empathie associée à la vie paysanne. La jeune génération, plus bardée de gadgets électroniques que Neil Armstrong débarquant sur la Lune, l’a aussi compris et s’associe à cette quête pour échapper à ses contacts sociaux hypermédiatisés. Il y a dans ce renouveau du conte une incontestable quête d’authenticité, une authentique aspiration à une vie simple. Le conteur, par sa présence charnelle, réunit devant sa personne des auditeurs désireux de prendre congé d’eux-mêmes pour une aventure susceptible de rénover leur vie. Guidés par une seule parole, ils font un rêve commun qui se décline toutefois selon l’expérience et l’imagination de chacun. Une soirée de contes abolit la distance défiante qui s’est installée entre les êtres pour les souder en une communauté narrative. Des individus qui protègent jalousement leur intimité dans un anonymat distant découvrent les bienfaits de la vie unanime qui les apaisent comme un baume. Art temporel s’il en est puisque les paroles ne se succèdent qu’en vertu du passage du temps, le conte abolit ce temps pourtant nécessaire à sa réalisation en favorisant cette échappée d’euxmêmes que vivent les auditeurs afin de les conduire dans des contrées de nulle part. Alors que la légende s’infiltre parmi les choses de la vie, le conte protège farouchement son extraterritorialité. « Si Peau d’âne m’était conté », écrit le fabuliste4. Voici une formule rituelle qui ouvre sur tous les 4Jean 202. de La Fontaine. «Le pouvoir des fables», dans Fables de La Fontaine, Montréal, Sélection du Reader’s Digest, 2010, p. 20 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 possibles. Le conteur raconte comme ayant eu lieu des événements n’ayant jamais eu lieu. Le temps passé est garant de la vérité de sa menterie. C’est dans ce contexte à la fois social et psychologique qu’est apparu Fred Pellerin. Fred Pellerin Natif de Saint-Élie-de-Caxton, petit village du centre du Québec, Fred Pellerin a engrangé, au cours de son enfance et de son adolescence, quantité d’anecdotes villageoises. Elles se sont agglomérées au fil des ans pour former cet humus fertile qui nourrit son art savoureux. D’entrée de jeu, il s’est placé sous le haut patronage d’une mère-grand (Bernadette Pellerin) au verbe coloré qui mastiquait ses récits avec un dentier taillé dans du bois d’érable, héritage transmis de mère en fille pour faciliter cette « manducation de la parole » célébrée par Marcel Jousse5. Intronisé par un si haut parentage, Fred Pellerin s’inscrit en toute légitimité dans cette lignée indéfectible de conteurs de cuisine qui ont assuré la pérennité du conte en disant le monde après l’avoir cuvé dans leur imagination. Dans mon village, il y a belle Lurette6 contient en germe ce qui deviendra une œuvre sans commune mesure — sa grand-mère aurait préféré « dépareillée » — dans le paysage médiatique et littéraire québécois. Il est délicat de définir la place exacte qu’il occupe sur la scène artistique : conteur, humoriste, écrivain, monologuiste, chanteur, scénariste? Empruntant à l’un et à l’autre, il est un peu de tout cela et plus encore comme nous le verrons plus loin. Artiste célébré, chacune de ses productions lui vaut sa moisson de récompenses. Sur les scènes occupées à 75 % par des humoristes qui saucissonnent des tranches de vie au grand plaisir du tout riant, Fred Pellerin se démarque radicalement. Il ne recourt pas à une armée de scripteurs pour pimenter ses spectacles de lignes bien senties, son univers étant trop familier et trop marqué par sa personnalité pour être recréé par un tiers. Ce qu’il livre au public et aux lecteurs, c’est un univers-monde à la fois réel dans son irréalité et irréel dans sa réalité. Saint-Élie-de-Caxton existe de deux manières intimement interpénétrées. Il relève d’abord de la géographie avant d’accéder à l’imaginaire. Le village en entier devient le matériau de sa propre fabulation, la réalité alimentant la fiction qui la nourrit par un juste retour des choses. Dans les récits de Fred Pellerin, 5 Marcel Jousse. La Manducation de la Parole, Paris, Gallimard, 1975, 287 p. 6 Fred Pellerin. Dans mon village, il y a belle Lurette, Montréal, Planète Rebelle, 2001, 141 p. 21 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 son village s’irréalise pour exister davantage dans la réalité au point de faire accourir des vagues de touristes qui veulent mettre leurs pieds dans les pas d’êtres imaginaires qui n’ont jamais arpenté les rues et discuter avec des êtres réels qui surabondent d’existence depuis qu’ils font parler d’eux. Ceux qui visitent cette « mini-cipalité7 » comme la définit le conteur, déambulent dans un univers en instance de prodiges. Une affiche signalétique les avertit qu’à tel endroit se trouve un passage à lutins. Ces petits bonshommes occuperaient donc une partie invisible du territoire et peuvent apparaître à tout moment par une sorte de pirouette spatio-temporelle qui rend possible le passage d’une dimension à l’autre? Ainsi donc, ce panneau signalétique borne-t-il l’indécise frontière qui sépare le conte de la légende. Aussi longtemps qu’un lutin n’aura pas été signalé par un quelconque témoin qui jurera l’avoir vu de ses deux yeux vu, son existence problématique relève du conte et enchante ceux qui souhaitent s’égarer un jour dans des dimensions parallèles. Si l’occurrence advient et qu’un lutin pointe le bout de son nez, Saint-Élie-de-Caxton fermera son grand livre de contes pour s’ancrer solidement dans celui des légendes dans lequel s’interpénètrent le quotidien et le surnaturel. Ce panneau sert un avertissement : le marcheur arrive à une croisée de chemins symbolique et doit choisir sa voie : celle du conte ou celle de la légende. C’est cette faculté d’ajouter au réel sa part de merveilleux, de doser avec justesse réalité et fiction pour engendrer du réalisme fantastique qui fascine ceux qui assistent à ses spectacles ou qui lisent ses livres. Cette magie opère sans ces effets spéciaux qui alourdissent les manifestations du merveilleux en les ravalant au rang de prouesses techniques comme on le constate trop souvent au cinéma. Tout passe par la parole parce que sa fantaisie est habitable. Les contes de Fred Pellerin offrent un terrain fertile aux analyses stylistiques. L’« Orifice de la langue française8 », comme il s’est plu à rebaptiser l’organisme, n’en a pas fini de traquer ses métamorphoses langagières. Le conteur déploie une inventivité qui rappelle Rabelais. Et suprême hommage au maître, son célèbre contrepet — « femme folle à la messe » — nous est ramené de la manière la plus inattendue. Tel Hugo qui se piquait d’avoir mis « un bonnet rouge au dictionnaire », Pellerin peut se targuer d’avoir prouvé qu’en faisant leur entrée dans le Petit Robert, les « bobettes » ont réalisé le tour de force de permettre au Petit Robert lui-même d’entrer dans son dictionnaire. Sa 7 Idem, p. 12. 8 Idem, p. 17. 22 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 démonstration est limpide comme l’œuf de Colomb : « bobette » est le diminutif de « bob » qui signifie Robert. Simple, certes, mais encore fallait-il y penser! Économie des moyens, maximisation de l’effet. Faisant fi avec un souverain dédain des diktats des censeurs de la langue, il reformule les mots avec cette verdeur et cette liberté que s’est toujours octroyées le parler populaire. La langue de Pellerin relève de la parlure. L’imagination devient de l’imaginance : tout le monde saisit le sens et accepte la métamorphose qui rajeunit la chose. L’imaginance, c’est de l’imagination avec un surcroît de fantaisie. Une rapide recension des procédés stylistiques de l’auteur rassemble à foison le calembour, le contrepet, le faux proverbe (« […] tout allait pour le monde dans le meilleur des mieux9»), l’homophonie, la paronymie. L’hyperbole occupe une place non négligeable. À cet égard, la description d’Ésimésac constitue un morceau de bravoure qui rappelle la chanson de Tex Lecor : Le dernier des vrais. Onésime-Isaac Gélinas « était l’homme fort de mon village : un colosse pesant aux alentours dans les huit cents livres de muscles — sans compter ni les os, ni la peau! —. Tellement grand, le bonhomme, qu’il devait acheter de la colonne vertébrale en rouleau de quinze pieds. Avec ça, attachés aux épaules, des bras qui traînaient à terre, puis des mains plus grandes que des rames10». L’exagération est un trait familier de la jactance populaire. Qui lit ou entend Pellerin lors d’un spectacle se retrouve enseveli sous un amas de perles langagières qui sortent à profusion de la bouche du conteur à l‘instar de cette jeune fille, dans Les Fées de Perrault, qui répandait des diamants en guise de discours. Qu’on en juge plutôt sur pièce : « Oui! Du temps, de reste, pour toujours. Toujours, puis même un peu plus après. Ça fait longtemps, ça! Aujourd’hui, ti-gars, avec les cadrans qui tic-taquent à batterie, l’éternité a refoulé d’un bon bout. Par les temps qui courent, ça marche plus. Garrochés pour travailler, manger puis dormir, on se grouille même quand vient le moment de l’agrément. C’est rendu qu’il faut éjaculer à la première précocité pour sauver des minutes. C’est rendu que même le poulet puis le jambon sont pressés11». 9 Idem, p. 13. 10 Idem, p. 27. 11 Idem, p. 11. 23 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Puis que chaque auteur crée ses prédécesseurs comme l’écrivait Borges, Fred Pellerin s’inscrit dans une longue lignée d’écrivains qui ont fait de la langue un matériau docile à leurs explorations littéraires. Outre Rabelais déjà mentionné, on pourrait mentionner Prévert, Queneau et bien d’autres dans le champ de la littérature française. Pour nous en tenir au Québec, mentionnons Yvon Deschamps, illustre ancêtre dans sa version urbaine, Marc Favreau dont le personnage de Sol s’amusait à pétrir la matière sonore pour en tirer des mots nouveaux où se reconnaissaient encore ceux d’origine afin de donner à réfléchir sur l’état du monde. La filiation qui me paraît la plus prometteuse, à titre comparatif, nous oriente vers ClaudeHenri Grignon, auteur immensément connu pour son roman Un homme et son péché qui donna lieu à un feuilleton radiophonique éponyme pour être finalement adapté pour la télévision sous le titre évocateur Les Belles Histoires des pays d’en haut. De prime abord, tout devrait séparer ces deux créateurs. Mais en y regardant de plus près, leurs ressemblances sont plus notables que leurs différences. Grignon situe son œuvre dans son village natal, Sainte-Adèle. Il mêle habilement personnages fictifs (Séraphin Poudrier, Alexis Labranche) et personnes bien réelles dont certaines ont une dimension nationale (le curé Antoine Labelle et Arthur Buies) dans une trame narrative qui emprunte au réalisme. Son protagoniste s’est acquis une telle renommée qu’il est devenu, par antonomase, le prototype québécois de l’avare mesquin au point que Grignon s’est vanté d’en avoir tué le nom, aucun parent québécois ne désirant prénommer Séraphin l’un de ses enfants. À l’exemple de Grignon, Fred Pellerin a hissé son village natal au rang de lieu mythique de la province. Là où il semble se démarquer de son illustre prédécesseur tout en s’inscrivant dans sa trajectoire narrative, c’est dans cet amalgame de réalité et de merveilleux où personnages réels et fictifs se croisent sans s’étonner de se retrouver dans la même trame narrative qu’on peut assimiler au réalisme fantastique. Cette parenté plus spontanée que revendiquée renvoie son œuvre écrite comme ses prestations publiques à la chronique. De même que Grignon écrivait la chronique de Sainte-Adèle, Pellerin se fait l’historiographe inventif de Saint-Élie-de-Caxton. En sa personne se consomme l’union intime du conteur au verbe coloré et du chroniqueur attentif à la vie secrète de son village. La manière de l’un rejaillit sur la matière de l’autre. Au confluent de l’orature et de la littérature, n’emprunte-t-il pas la voie mitoyenne de la « littorature »? Ce dernier terme m’a été suggéré par l’écrivain André Gervais dans un échange de 24 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 courriels portant sur l’orature. « Quant à la littérature orale, soutenait l’auteur, (ou à la littorature : l’oral, ici, est au sein de l’écrit, de l’écrit littéraire, du texte), eh bien, c’est tel corpus accumulé, plus ou moins bien transcrit, actuellement publié ou non. Il peut alors être confronté à toutes les tentatives de création, dans une œuvre littéraire par exemple, d’une parole populaire plutôt folklorique ou plutôt moderne12. » Il est clair, dans l’esprit de Gervais, que c’est la littérature qui demeure l’aboutissement de toute tentative d’oralisation de la parole vivante dans une écriture à destination esthétique. Je lui concédai ce point avec la nuance que, pour l’ethnologue, le recours à la transcription n’était qu’un moyen provisoire pour figer et mettre à distance les récits de l’orature afin de les analyser pour mieux les y retourner. Dans cet échange, je percevais la littorature comme un point d’appui pour mieux rebondir vers le genre initial, alors que Gervais en faisait un genre transitoire. Pour ma part, je rapprocherais Fred Pellerin du funambule qui avance sur un fil d’acier en trouvant un équilibre dynamique grâce à un balancier dont l’un des bouts pèse son poids d’orature et l’autre celui de la littérature. Ses chroniques orales de Saint-Élie-de-Caxton s’expriment dans un parler qu’on pourrait nommer parlure qui, à mon humble avis, hausse le parler populaire québécois vers un sommet indépassable où elle brille de mille feux avant de disparaître. Car le milieu de vie qui la permettait, c’est-à-dire une certaine culture populaire rurale et villageoise, disparaît progressivement sous la poussée irrésistible d’une modernité citadine. Aussi est-on en droit de s’interroger sur l’avenir de cette œuvre éminemment poétique. Fred Pellerin sera toujours lu? La qualité esthétique de ses écrits est garante de sa pérennité. Mais sera-t-il toujours entendu? La réponse est moins tranchée. Tout est ici affaire d’oreille. Le chroniqueur-conteur possède une façon bien à lui de faire sonner la langue, de la faire chanter pour notre enchantement. Il est probable qu’on ne retiendra de ses spectacles que cette musique subtile et envoûtante d’une parlure en perte de terrain devant une urbanité conquérante. Ce qui pose une question connexe : à l’instar des conteurs traditionnels qui ajoutaient leur maillon à une longue chaîne de transmission, Fred Pellerin engendrera-t-il une filiation ou demeurera-t-il un créateur solitaire, c’est-à-dire unique dans son créneau? Ici, il faut revenir sur le sens même du 12 Courriel reçu le 6 mars 2013. 25 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 conte traditionnel. Ce dernier n’a pas d’auteur et n’est pas un texte. Sans auteur et sans texte, il n’existe que dans l’instant de sa narration. Sa survie est assurée par des générations de conteurs anonymes qui l’ont bénévolement transmis à travers les âges. Ils ne se considéraient jamais comme des créateurs. Le rôle de passeur leur convenait et ils s’en honoraient. La transformation de la civilisation traditionnelle en civilisation contemporaine s’est accompagnée du passage de la société de participation à la société de représentation qui discrimine les consommateurs de culture des créateurs. Contrairement au conteur traditionnel, le conteur contemporain aspire à la renommée individuelle qui lui permettra de vivre de son art. Le nirvana de la tradition ne lui convient pas. Il veut bien s’en inspirer à la condition d’y laisser une trace repérable dans l’espace et dans le temps. Il entend bien laisser derrière lui un imaginaire qui échappera à l’oubli. Aux œuvres anonymes, il oppose ses textes signés. Personne ne peut contester l’originalité et l’inventivité de Fred Pellerin. Il a marqué l’imaginaire des Québécois et le marquera encore pour longtemps. Ses écrits et ses spectacles sont si intimement associés à sa personnalité qu’ils transcendent le destin collectif pour imposer leur originalité. À ce titre et contrairement au conteur traditionnel, il ne s’inscrit pas dans une chaine de transmission pas plus qu’il n’en sera le premier maillon. Privilège du créateur, il n’aura pas de continuateur. D’aucuns s’essaieront peut-être à l’imiter, mais en vain. Sans continuateur ni imitateur, Fred Pellerin signe une œuvre durable qui ne rendra compte qu’à elle-même. S’il est vrai, comme l’écrit Patrice de La Tour du Pin, dans le « Prélude » à La Quête de joie, que « Tous les pays qui n’ont plus de légende/Seront condamnés à mourir de froid13… », alors Saint-Élie-de-Caxton et le Québec en son entier coulent des jours heureux bien au chaud dans son imaginaire solaire. 13 Patrice de La Tour du Pin. La Quête de joie, Paris, Gallimard, 1967, p. 25. Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 ÚLTIMA VIAGEM AO PAÍS DO IMAGINÁRIO DA AMÉRICA FRANCESA Jean Du Berger1 Resumo: Este artigo nos propõe uma viagem pelo imaginário da América Francesa, vasto território espiritual e imaterial, e nos apresenta os contos, as lendas e os seres fantásticos que acompanharam sua chegada ao continente. Palavras – chave: Contos, lendas, imaginário, América Francesa. Résumé: Cet article nous propose un voyage à travers l’imaginaire de l’Amérique française, vaste territoire spirituel et immatériel et nous présente les contes, les légendes et les êtres fantatisques qui ont accompagnés les premiers arrivant sur le continent. Mots-clés: Contes, légendes, imaginaire, Amérique française. No dia 19 de novembro de 1764, meu ancestral, Jean-Baptiste Du Berger, atravessava o rio Detroit para assistir, na condição de testemunha, ao casamento de Charles Bernier e Marie-Louise Gaudet, celebrado pelo padre Potier, da paróquia da Assunção. No dia 07 de janeiro de 1765, no mesmo lugar, André Bénéteau também testemunhara um casamento: o de Charles-Dominique Janson e Marie-Anne Bineau. 237 anos mais tarde, a convite de Marcel Bénéteau, eis que caminho nos passos de meu ancestral, em Windsor, na ocasião do colóquio comemorativo do tricentenário da fundação de Detroit. Nessa ocasião, mais uma vez, a última talvez, eu retomo a rota do imaginário da América francesa para rever os lugares de fala, saudar os contadores e as contadoras e assistir ao circuito dos heróis dos contos e das personagens das lendas. Retorno ao país de memória para tomar a palavra como se bebe da raiz. 1 Jean Du Berger é professor aposentado de literatura quebequense e de etnologia da Universidade de Laval. Suas principais áreas de pesquisa são os contos e as lendas da América francesa, assim como as memórias urbanas e rurais. Suas publicações versaram sobre a história dos estudos do folclore no Canadá, a literatura oral e as memórias urbanas. Título original: Dernier voyage au pays de l´imaginaire da América francesa, publicado em Le passage du Détroit, 300 ans de présence francofone, dirigido por Marcel Bénéteau, University of Windsor, 2003, p. 193-216. Texto traduzido por Rosa Rockenbach. 27 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Trilhar o país No pano de fundo, um continente. Grande terra da América de neve e de gelo e do brotar da vegetação na primavera; do verão luminoso e do outono flamejante. Depois, há a caminhada dos homens sobre a Grande terra da América, esta lenta marcha dos homens e das mulheres vindos da Ásia, esta paciente caminhada pelos rios e lagos e afluentes. Conquista da grande terra pelos vales, montanhas, através de florestas profundas e de intermináveis pradarias até as terras secas do sul, e mais, sempre mais longe, até a Terra do Fogo. Pescadores, caçadores, negociantes de peles, agricultores, de oeste a leste, eles se fixaram, adaptando-se à terra abundante em peixes, caças e frutas. Vamos nomeá-los. Na costa do Pacífico, Haïdas, Kootenays, Salish, Tsimshians, Wakashan, Tlinkits. De Rochosas ao rio Mackenzie, até a baía de Hudson, Athapascans e Chipewyans. E os Cris das planícies e os Cris das florestas. Do Atlântico aos Grandes Lagos, Micmacs, Abénaquis, Etchemins, Montagnais, Naskapis, Algonquins, Népissingues, Outaouais, Ojibways, Pieds-Noirs. E também Wendats, Ériés, Pétuns e Iroquois das Cinco Nações. Na ilha de Terra-Nova, Beothuk. Enfim, nos vastos espaços do norte, Inuit. E na sombra, circulamos personagens que vivem nas antigas narrativas: Wisakketkak ou Whiskey Jack, Carcajou, Tshakapesh, Gluskap, Mahtigwess e principalmente o grande Nenabojo. Mais tarde, virão da Europa vikings, portugueses, espanhóis. E Giovanni Caboto e Gaspar Corte-Real e Giovanni da Verrazano... E pescadores bascos e bretões que pescavam no Grande Banco de Terra Nova. Depois, em 1534, Jacques Cartier e, em sua trilha, lentamente, aqueles e aquelas cujos nomes ainda encontramos em terra americana; garimpeiros e comerciantes de pele que sonhavam com ricos reinos de jade e seda. De Tadoussac, da ilha de Sainte-Croix, de Port-Royal, de Quebec, depois de Montreal, eles retomaram as longas rotas dos rios das Primeiras Nações. Samuel de Champlain foi à baía Georgienne; Étienne Brûlé, em Sault Sainte-Marie; Jean Nicollet de Belle Borne ao lago Michigan; Médard Chouart Des Groseillers e Pierre-Esprit Radisson ao lago Superior e ao Alto Mississipi; o padre Claude Allouez ao lago Nipigon. René-Robert Cavlier de La Salle atinge o 28 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Ohio e o Illinois; Louis Jolliet e o padre Jacques Marquette, ao Alto Mississipi; René-Robert Cavelier de La Salle, mais uma vez, à embocadura do Mississipi. Entre o lago Superior e o lago des Bois, Jacques de Noyon tomou o caminho do Grand Portage, Antoine Laumet, conhecido como Lamothe, senhor de Cadillac, estabeleceu o forte do Detroit e Jean-Baptiste Le Moyne de Bienville foi até a baía de la Mobile, depois a Nova-Orléans. Pierre Gaultier de Varennes da Vérendrye, passando pelo lago La Pluie e o lago des Bois, subiu o rio Vermelho e o Assiniboine, passando pelo lago Winnipegosis e pelo rio Saskatchewan. Os viajantes subiram outros rios. Fort de Chartres, Fort Crèvecoeur e Vincennes na confluente do Wabash e do Ohio e Kaskaskia lembram a passagem deles. Graças a esses viajantes dos Pays d’en haut, Alexander Mackenzie chegou ao rio que leva seu nome, e Simon Fraser desceu outro rio que também leva seu nome. François Larocque foi ao país dos Mandanes e Gabriel Franchére, após ter contornado o cabo Horn, chegou à embocadura do rio Columba, de onde retorna a Montreal por via terrestre. A fala viva E todos esses passos e todas essas remadas definiram um espaço da terra da América. Ao longo dos rios percorridos pelas canoas dos coureurs de bois 2e as rabaskas3 dos viajantes, nos fortes e postos de comércio, mais tarde na casa das velhas paróquias em vigília, assim como nas cabanas dos países de colonização, homens e mulheres cantaram; homens e mulheres contaram. Eles trouxeram da Normandia, da Bretanha, da Île-de-France e do Poitou contos e lendas e canções que eles retomaram do Forte Sainte-Anne em Arcadie ao Forte Vancouver, às margens do Pacífico, do Forte Sept-Île ao Grande Lago des Esclaves, de Lachine ao Grand-Portage. Em seu ato de contar e de cantar, emergia a fala contadora, jorrava a fala cantadora, efêmera performance que, no tempo do conto ou da canção, oferecia aos olhos e aos ouvidos obras por vezes antigas e novas, conservadas na memória dos portadores e portadoras da tradição. De boca a orelha, as “Historicamente, a expressão coureur des bois foi utilizada durante o período colonial canadense para designar nômades, comerciantes de pele que viajaram em comunidades autóctones, no início da colonização francesa no Canadá, até as primeiras décadas do século XIX”. In: BERND, Zilá (org.) Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial / Editora da UFRGS, 2007, p. 154. 3 Grandes canoas, feitas de casca de tronco, utilizadas principalmente por ameríndios. 2 29 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 comunidades falantes e cantantes assim transmitiram lentamente as obras de tradição oral, que se espalharam como águas subterrâneas, irrigando o imaginário tradicional. Definir-se pela escritura Esta tradição apareceu progressivamente na escrita. No ano do início dos "conflitos" no BasCanadá, em 1837, um rapaz (de 23 anos), Philippe-Ignace-François Aubert de Gaspé, publicou, na editora William Cowan, no Quebec, L’influence d’un livre: roman historique. Trata-se do primeiro romance do país que traz “lendas”, tais como a do “Diable beau danseur”. A tormenta política prosseguiu. 1838: nova insurreição, duramente reprimida. Doze patriotas foram executados; outros, exilados. John George Lambton, conhecido por Lord Duham, veio pesquisar sobre os "conflitos e, em seu relatório, lê-se: “Não se pode de forma alguma conceber nacionalidade mais desprovida de tudo aquilo que pode vivificar e elevar um povo do que os descendentes dos franceses no BasCanadá, pelo fato de terem mantido a língua e seus costumes "particulares". É um povo sem história e sem Literatura”. Em 1845, na Histoire du Canada depuis sa découverte jusqu’à nos jours, François-Xavier Garneau proferirá abertamente a história dessa “nacionalidade a mais desprovida de tudo”. E uma geração de escritores dará forma a uma literatura que brotou dos contos e das lendas. Em Paris, no ano de 1853, James Huston publicou uma antologia, Légendes canadiennes; na sequência, coletâneas e romances se sucederam: Légendes canadiennes, do abade Henri-Raymond Casgrain e “Voyage autour de l’Île d’Orléans”, do doutor Hubert La Rue, em 1861; Les Anciens Canadiens, de Philippe-Joseph Aubert de Gaspé, assim como “Forestiers et voyageurs; étude de moeurs”, de Joseph-Charles Taché, em 1863. No final do século, Honoré Beaugrand lançou em Montreal La Chasse-galerie: légendes canadiennes. Essas obras transformavam as performances orais em objetos literários, eco do ato narrativo original, tradução, por assim dizer, da narrativa viva. O recurso à pesquisa de campo permitirá ouvir, de certa forma, os contadores e contadoras. 30 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Os portadores da tradição: contadores e contadoras, cantores e cantoras É com Alcée Fortier que uma das primeiras pesquisas de campo será desenvolvida em Vacherie, na Luisiana, ou seja, na América francesa. A publicação da coletânea Louisiana FolkTales in French Dialect and English Translation, em 1895, abria perspectivas relativas aos contadores e às contadoras. No Canadá, Marius Barbeau, antropólogo na Comissão de Geologia em Ottawa, encontrava, em abril, o abade Prosper Vincent, depois outros informantes de Wyandotte e de Seneca Reservation, em Oklahoma, de Seneca no Missouri, de Amherstburg em Ontário e de Lorette no Quebec. Barbeau reuniu os mitos e contos de grandes testemunhas da tradição oral dos Wendats, como Catherine Johnson e seu filho Allen, B.N.O. Walker, Star Hiram Young, Smith Nicols e Mary Mckee e, na subida, uma contadora influente, Kitty Greyeyes. Em Nova Iorque, em janeiro de 1914, na ocasião do encontro anual da American Folklore Society, Franz Boas perguntou a Marius Barbeau: “Existem, no Canadá, contos antigos, tais como os contos de fada de outrora?” Barbeau evocou os contos de Louis Fréchette e de certos escritores do século XIX e mencionou contos da família Sioui de Lorette: “La Princesse des Sept-Montagnes-Vertes”, L’eau de la Fontaine de Paris”, “Le Corpssans-âme”4, contos que lhe causaram uma “profunda impressão”, mas que ele não coletou “porque eram franceses demais e de uma aparência excessivamente literária”. Franz Boas incentivou o jovem pesquisador a se interessar por esse repertório para compreender a presença de temas europeus no “corpus” ameríndio. Barbeau retomou a pesquisa junto a Prudent Sioui e sua esposa, seus primeiros contadores. Esse primeiro contato com a arte dos contadores lhe fez descobrir uma tradição viva, ameaçada de desaparecer, da qual era necessário fazer, indiscutivelmente, o inventário científico. O etnólogo iria alargar seu campo de pesquisa, descobrindo, assim, sua própria tradição. Já em Lorette lhe haviam dito: “Senhor, em nenhum outro além daqui você poderá encontrar contadores ou cantores como 4 A princesa das sete montanhas verdes, A água da fonte de Paris, O corpo sem alma. 31 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 nas montanhas, do outro lado do Cabo Tourmente”. Tratava-se da região de Charlevoix, país dos serões animados não somente pelos moradores, mas também por esses “mendigos peregrinos” nos quais Barbeau reconheceu os últimos trovadores. No município de Les Éboulements, a senhora Gédéon Bouchard, de 76 anos, possuía um repertório de 52 contos que aprendeu em Saint-Fabien: “Em nossa casa, eles se reuniam à noite. Aqueles que não sabiam nenhum conto cantavam e os que não sabiam cantar, contavam contos”. Eram reuniões de inverno. “Nós nos reuníamos com frequência”. Outros contadores de Charlevoix se fizeram ouvir. Havia Jean-François Bouchard, o velho Joseph Mailloux, Marcel Tremblay e principalmente Louis “L’Aveugle” Simard. Babeau descreveu-o da seguinte forma: “L’Aveugle, sempre espontâneo, desenvolto, misturava as réplicas e as graçolas em suas canções, acompanhadas habitualmente de seu violino, como os trovadores medievais; assim que lhe dirigiam a palavra, ele replicava: “Um buraco, uma cavilha!”, como ele mesmo dizia. Às vezes lhe faziam piadas um tanto licenciosas, e ele respondia no mesmo tom, pois também conhecia o sal de seus ancestrais”. Vinte anos mais tarde, a descoberta do patrimônio dos contadores e contadoras continua com Luc Lacourcière e Félix-Antoine Savard no âmbito dos Arquivos de Folclore da Université Laval. Com a Irmã Marie-Ursule, cuja tese orientava, Luc Lacourcière encontrou em Sainte-Brigitte de Laval a senhora Édouard Sanschagrin. Depois, em Charlevoix, com Félix-Antoine Savard, outros contadores e contadoras vieram testemunhar com eloquência da vitalidade da tradição oral. Estavam todos presentes, respondendo ao chamado, muitas vezes “ao final da vida”. Em Clermont, Médéric Bouchard; em Saint-Irénée, Joseph “Palémon” Gauthier; em Saint-Siméon, Charles-Édouard Bouchard; em Port-au-Persil, Thomas Dallaire e em Les Éboulements, Pierre Pilotte. Em Shippagan, Octave Chiasson e Uldéric Hébert. Em Saint-Raphaël de Bellechasse, Cléophas Fradette. No coração de Ontário, na região de Sudbury, o padre Germain Lemieux descobriu a tradição narrativa de Maurice, George e Nelson Prud’homme e seu filho Joseph. Grandes contadores e contadoras ao redor do padre Lemieux: Gédéon e Philéas e Toussaint e Reina Savarie, Émile Roy, o “jongleur du billochet”5 em pessoa, Jean-Baptiste Lavoie e muitos outros que, através 5 Literalmente: Trovador do banco. O billochet é um banco rústico feito com tronco de árvore, usado na campanha pelos contadores de histórias. 32 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 do tempo e do espaço, entravam na roda dos contadores e contadoras, cantores e cantoras, artesãos e artesãs. No país dos contos: os animais Comecemos a viagem tomando o caminho dos contos, estas narrativas fora do espaçotempo, nas quais não se crê e que possuem uma função lúdica. Os contos revelam a astúcia da pequena Raposa, como no conto “Le conte du vol de nourriture par feinte mort”. Uma carroça carregada de peixe chega. Sempre faminta, a Raposa deita-se na estrada, fazendo-se de morta. O carroceiro para, recolhe-a e a joga sobre a carga de peixes. Discretamente, a Raposa deixa cair os peixes, um a um, pelo caminho, depois salta da carroça e come, come, come. Ao Urso, que também está faminto, a raposa se gaba de sua proeza. O Urso deita na estrada, mas a carroça passa por cima dele. Machucado, fraco, ele se queixa à Raposa, que lhe sugere mergulhar sua longa cola no buraco feito por pescadores no gelo de um lago. Ele só terá que se levantar rápido quando um peixe morder a cola, comê-lo e recomeçar, até que não tenha mais fome. O Urso se instala, espera pacientemente e pouco a pouco a água congela até que sua cola esteja solidamente presa ao gelo. Os pescadores, informados pela Raposa, aparecem para caçar o Urso, que acaba perdendo sua cola ao fugir. E os contos precipitam-se no imaginário. Raposa ladra, Raposa enganadora e Urso logrado. No conto “Renard Parrain”, a Raposa diz ao Urso que ele deve se ausentar para ser padrinho. Às escondidas, a Raposa volta para comer a manteiga que havia armazenada na casa do Urso. Ao voltar do batizado, o Urso lhe pergunta o nome do afilhado; a raposa responde “Mivide” [Meiovazio]. Haverá dois outros batizados e os nomes extravagantes refletem o estado das provisões: “Bien commencé” [Começou bem], “À moitié” [Pela metade]... O Urso acaba descobrindo os furtos e eles brigam. Enquanto o Urso dorme, a Raposa lhe cobre de manteiga e prova ser ele, o Urso, o ladrão. Em outro conto, aparece o Lobo. Jovens cabritos, deixados sozinhos em sua casa, recebem a ordem de não deixar o Lobo entrar. Por várias vezes, os pequenos reprimem seus ataques. Cobrindo-se de tinta ou enfarinhando suas patas, o Lobo convence-os de que é a própria mãe deles 33 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que bate à porta, consegue entrar e os devora. No retorno da verdadeira mãe, abre-se o ventre do Lobo e dele saem os pequenos cabritos vivos. No país dos contos: as maravilhas Passemos ao país dos contos maravilhosos como o da “La Bête à sept têtes”6, que se passa nos tempos em que os dragões ainda aterrorizavam reinos distantes, exigindo a cada ano o sacrifício de uma jovem. Um rapaz, que partiu para se aventurar, chega à capital de um reino cuja maldição do sacrifício tinha recaído sobre a filha do Rei. O Rei havia prometido a mão de sua filha e metade de seu reinado para aquele que conseguisse matar o dragão. Relutante, o rapaz é obrigado a acompanhar a jovem vítima até a caverna do dragão. O combate inicia. Com a ajuda de seus cães, o rapaz sai vitorioso, mas o camarista do rei o faz beber “uma água sonífera” e o herói mergulha em uma espécie de torpor. O traidor aproveita para dirigir-se ao castelo com a princesa, ameaçando-a de morte caso revele a verdade. Ele anuncia ao Rei que matou o Monstro de Sete Cabeças e reclama a mão da Princesa assim como a metade do reino. O Rei, então, ordena que o casamento de sua filha e do camarista seja celebrado. Mas eis que, lá na caverna, o herói desperta e se vê sozinho. Partiram: a princesa e o camarista! As línguas do Monstro de Sete Cabeças, provas da vitória, haviam desaparecido. O tempo urge. Seu cavalo voa. No momento em que a princesa, de braços com seu pai, caminhava em direção ao altar da capela real, o herói chega de surpresa com seus cães, que avançam no camarista. Apavorado, o traidor rapidamente confessa e é preso. O herói casará com a princesa. Mas suas aventuras estão apenas começando. E seria longo demais prosseguir aqui com essa estória. Pois Juan do Urso avança. Concebido após o rapto de sua mãe por um urso, o rapaz é muito forte. Ele esmaga em suas mãos grossas tudo o que pega e massacra todo aquele que ouse brigar com ele. Com todo o ferro da forja, ele fabrica uma bengala e pega a estrada com camaradas “dotados” de uma visão apurada, de uma audição prodigiosa ou de pernas rápidas. Os 6 "O Bicho de Sete Cabeças" 34 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 viajantes se instalam em uma casa no meio de uma floresta e montam guarda, revezando-se entre si. Um monstro sai da terra e os rapta, um após o outro. No terceiro dia, Juan do Urso se lança na perseguição do monstro, desce na terra pela extensão de um cabo e, com fortes golpes de sua bengala de ferro, mata o monstro. Ele descobre, então, três princesas que a fera havia raptado e encontra seus camaradas. Todos voltam à superfície, mas quando chega a vez de Juan do Urso, seus camaradas retiram o cabo e o abandonam. O herói será salvo por uma águia que o carrega no dorso. Aqui, a história também continua. Os camaradas vão desposar as princesas? O que fará Juan do Urso? Devo prosseguir o caminho. No conto “A fuga mágica”, de fato, as desgraças vão recair sobre o Belo Príncipe, o jovem herói. Por duas vezes ele ganha no jogo de dados do Boné Vermelho, o Diabo em pessoa, e exige que ele erga o castelo de seu pai com correntes de ouro, tão logo tenha encilhado seus cavalos com ouro e prata. Quando Boné Vermelho ganha a terceira partida, ordena ao Belo Príncipe o seguinte: “eu quero que tu venhas me encontrar a setecentas léguas no outro lado do sol, em um ano e um dia”. E o herói deve pegar a estrada. Um dia, às margens de um lago, ele percebe três moças que se banham. Então, esconde a jarreteira verde da mais bela, que evidentemente é a filha do tal Boné Vermelho, o qual espera Belo Príncipe a sete léguas do outro lado do sol. A filha do Diabo lhe comunica que ele deverá cumprir três tarefas, à primeira vista, impossíveis, mas que ela o ajudará. Belo Príncipe esvaziará, então, a água de um rio, construirá uma ponte sobre o rio seco e uma granja recoberta de plumas “de todos os pássaros do universo”. Cumpridas as tarefas, ele foge com aquela que ama após ter enganado a vigilância do Boné Vermelho, graças a um autômato, mas o Diabo os persegue. Ao perceber seu terrível pai, a jovem deixa cair uma escova de aço, que se transforma em uma “grande montanha de pinheiros”, a qual força Boné Vermelho a voltar atrás. Segunda perseguição de Boné Vermelho. Sua filha lança uma barra de sabão, que se transforma em uma grande montanha de aço: “com alfinetes e machados e todo esse tipo de coisa”. Na terceira vez, é a mulher do Diabo que parte, carregando um pequeno saco de trigo. Desta vez é uma garrafa d’água que salva o Belo Príncipe e sua Bela JarreteiraVerde a água espalhada na terra cria um lago e os dois jovens, transformados em patos, nadam em mar aberto. A mulher do Diabo lança grãos de trigo na direção dos dois e a pata, às bicadas, afasta o pato da margem. Aqui termina a perseguição, mas o casal precisa se separar por um certo tempo, mas não sem que a jovem tenha prevenido o Belo Príncipe de não beijar 35 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 ninguém até se reencontrarem. A tia do jovem rapaz o beija enquanto ele dorme e ele acaba sofrendo de amnésia. Tendo esquecido tudo, corteja outra moça e a pede em casamento. No dia do casamento, uma senhora aparece para apresentar um espetáculo no qual um pequeno galo e uma galinha “falantes” interpretam a história do Belo Príncipe e da Bela Jarreteira Verde, cujas peripécias fazem, pouco a pouco, emergir as lembranças do herói. A filha do Diabo é reconhecida e os apaixonados poderão finalmente se casar. E há também o conto do “Pequeno Polegar” e das crianças abandonadas na floresta por seus pais e que encontram seu caminho graças a retalhos de roupa ou pequenas pedras; a terceira vez, eles não conseguem encontrar o caminho, pois os pássaros haviam comido as migalhas de pão deixadas por eles pelo chão. Eles se refugiam na casa de um Ogro! Todos conhecem a continuação da história. O Ogro sente o cheiro de carne fresca e descobre as crianças. O Pequeno Polegar troca os bonés à noite; o Ogro mata seus próprios filhos. E o Pequeno Polegar, que ouve tudo, vê tudo e salva pra sempre seus irmãos. Depois, vamos ouvir o conto do “Homem em busca de sua esposa desaparecida”. TitJean7 liberta uma princesa raptada por uma fada terrível. Feliz por encontrar sua filha, o Rei decide, contudo, que o casamento só será realizado em um ano e um dia. Companhias duvidosas. A cada encontros dos jovens, o herói é entorpecido por soníferos que uma criada, sob ordens do Rei, o faz tomar. Após o sexto encontro, a Princesa entrega a Tit-Jean um lenço “no qual seu nome está bordado em ouro” e uma caixa de rapé; em seguida, parte em viagem. O Rei espera que assim encontrará “belos príncipes” e que esquecerá Tit-Jean. Ao acordar, o herói lamenta ver se afastar aquela que ele ama, na forma de uma “nuvem branca”. Uma fada o aconselha a pedir ajuda a suas irmãs e ele parte em busca da Princesa. Longa busca, junto das fadas-irmãs, que termina junto da “mestre de todos os pássaros”, quando uma velha águia lhe informa que a Princesa está “nas Sete Montanhas Verdes”. A águia aceita transportá-lo em seu dorso. O tempo urge, pois a Princesa está prestes a se casar com um príncipe. Na sexta montanha, a águia está exausta; como não lhe resta mais carne para se alimentar durante o voo, Tit-Jean “pega sua faca, tira um pedaço de sua carne da coxa esquerda e dá ao pássaro”. Eles chegam enfim ao castelo, 7 Juanzinho 36 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 onde Tit-Jean oferece seus serviços de cozinheiro. O lenço bordado em ouro e a caixa de rapé identificam-no, mas os apaixonados se separam curiosamente “sem reconhecerem um ao outro”. Vestido com “uma roupa de príncipe”, Tit-Jean ocupa o lugar à direita da Princesa, o que contraria o Príncipe, seu noivo. Antes da cerimônia do casamento, a Princesa toma a palavra: “Eis que há um ano e um dia, eu tinha uma velha chave. Essa chave me foi muito útil e eu não precisava de outras chaves pra todas as minhas fechaduras. Mas eu a perdi e estou indecisa em comprar uma nova, da qual desconfio. Fé de príncipe, de princesa e de vocês que estão aqui na minha mesa. Que devo fazer? Acabo de encontrar minha velha chave”. Os convidados do casamento aconselham a Princesa a não se casar com o Príncipe, mas a voltar aos seus antigos amores, esse Tit-Jean que havia passado por tantos “obstáculos” antes de encontrá-la. E você poderá ver passar no país dos contos “Juan de Calais e o morto agradecido ”, “Cinderela”, “Pele de Asno”, “Os Camaradas dotados” ou “A Grande Margaude e seus companheiros”, pintura grandiosa na qual vemos ser construído um barco encantado onde se movem os companheiros extraordinários: um homem forte; um grande “ouvinte”, Escuta-Claro; um grande atirador; um grande corredor; um comilão; um beberrão; um grande assoprador e, principalmente, o adversário, a Grande Margaude. No tesouro da tradição, encontraremos também “O Gato de Botas”, “Os filhos em busca de remédio para seu pai”, “A menina de mãos cortadas”, “Bénédicité”, “Grisélidis”, “Os três conselhos”, “O retorno do filho caçula”, “O Rei Ramsinit" ou "O Grande Ladrão de Paris”. No país dos contos: o riso No repertório dos contos cômicos, acotovelam-se os tolos e os espertos, as vítimas e os que sabem se safar ou os espertos, os maridos bobos e suas esposas espertas. Há este Jacques Pataud encontrado em Old mines no Missouri, por Joseph-Médard Carrière, em um conto de humor arcaico cujo título é: "Uma marmita de três patas deve caminhar". Jacques Pataud vai buscar uma marmita na casa de um vizinho. Ele a carrega e a examina: "Ah! Tu és bem melhor do que eu, tu tens três patas, eu só tenho duas. Tu vais pegar aquele caminho e vais caminhar. Na primeira casa em que chegares, entra e diz a minha mãe que tu és a marmita que eu fui pedir emprestado". Em outro 37 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 conto, Jacques Pataud vai ao mercado vender manteiga. Na estrada, "Ele chegou num lugar. Ele olha a terra; ela estava bem rachada". Tu não precisas abrir tua boca para mim, não tenho nada para te dar a não ser manteiga. Se tu não fechares tua boca, eu vou enchê-la de manteiga". Ele pegou sua manteiga e a colocou toda na terra com uma pequena colher". Por sua vez, Alcée Fortier encontrou em Luisiana as aventuras de "Bouki pis Lapin" 8, como no conto "O castigo do Compadre Coelho". O Coelho é condenado à morte e o rei lhe autoriza a escolher seu castigo: ser afogado, queimado, enforcado ou decapitado. Compadre Coelho aceita todos esses suplícios com entusiasmo pois, diz ao rei que o que ele mais temia era ser jogado em um tufo de espinheiro. O rei logo o condena a tal suplício, e o Coelho foge. O conto "A água da fonte de Paris" lembra os velhos fabliaux9. Uma mulher audaciosa envia seu bom marido a Paris, a fim de procurar uma água que possa "curar a dor de dentes". Assim que o marido partiu, chega o príncipe e "é preparado um belo jantar". Mas, já na estrada, o marido encontra um comerciante, que o traz de volta para casa, em seu cesto. Convidado à mesa, o velho comerciante insiste em trazer com ele seu cesto. No decorrer da refeição, os convivas são convidados a cantar: em seu refrão, o príncipe faz alusão a "uma jovem mulher abandonada"; a mulher fala do seu marido, que está em Paris e "não está pronto para voltar". Por sua vez, o comerciante conta que carregou um viajante em seu cesto. Enfim, do cesto, o marido canta ao príncipe: "Tu sairás da minha casa a pauladas, Kyrie Eleison! Tu sairás da minha casa a pauladas, Kyrie Eleison!" O fabliau "O rico e o pobre camponês" descreve a luta “épica” na qual se confrontam PoisVerts10 e seu pároco. Pois-Verts é o Homem-das-mil-astúcias, que triunfa sobre seu adversário cuja única vantagem é a posição social. Ele vende ao padre um chicote mágico com o qual ele ferve um líquido. Quando o padre tenta imitá-lo, nada acontece e este jura que não se deixará mais enganar. Mas pouco importa! Diante do pároco, Pois-Verts "mata sua velha mãe", que simula evidentemente a morte, e depois se levanta ao som de um apito mágico; o padre apressa-se em comprá-lo. Ele briga com sua empregada e a mata como Pois-Verts "matou", diante dele, a própria mãe. Mas, ao som do 8 Bouki e coelho. Contos em versos muito usados antigamente na França. 10 Ervilhas-verdes. 9 38 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 apito, a empregada não volta à vida e o padre "obtém um julgamento" contra Pois-Verts, que é condenado a ser jogado no mar dentro de um saco! No caminho, Pois-Verts faz um pobre mendigo acreditar que o carregam nesse saco para a cama da princesa, com quem ele não quer se casar. O pobre toma o lugar de Pois-Verts e é jogado ao mar. No dia seguinte, o pároco, estupefato, vê chegar Pois-Verts, conduzindo um grande rebanho de vacas. Pois-Verts explica ao padre que ele caiu no meio do rebanho quando os carrascos o jogaram ao mar; ele acrescenta que até viu mais ao longe magníficos cavalos negros. O padre pede imediatamente para ser jogado em um saco para estar à noite no meio do rebanho. O contador Prudent Sioui conclui: "O senhor padre vai se juntar ao pobre no fundo do mar, onde ficou. Com todas essas artimanhas, Pois-Verts torna-se um grande comerciante". Em 1940, Joseph-Médard Carrière coletou uma versão desse conto em Tecumseh, bem perto de Windsor; cinquenta anos mais tarde, a senhora Stella Meloche o contou a Marcel Bénéteau. Nas margens do rio Detroit, Pois-Verts chama-se Corne-en-cul11. Na versão do contador Paul Patry de Saint-Victor de Beauce, "Le brave petit tailleur"12 tornou-se Martineau-Pain-Sec, "um preguiçoso" expulso da casa pelo pai. Enquanto ele come uma “tambane”, mistura de pão, leite e açúcar, é importunado por uma nuvem de moscas. Após ter bem ou mal terminado sua refeição, espalha açúcar na mesa e, assim que os bichinhos avançam no alimento, ele "mata mil com um golpe só e quinhentos de reverso!" Orgulhoso de sua proeza, ele pediu para pintar um letreiro no qual se pode ler: "Martineau matou mil com um só golpe". O rei passa e, vendo o letreiro, contrata Martineau para "fazer faxina" na floresta real. Nosso herói fará com que três gigantes terríveis se matem um ao outro, capturará um unicórnio e derrotará os inimigos do rei, deixando-se arrastar por seu cavalo no meio dos soldados que golpeia com uma cruz de madeira arrancada no caminho. Seu feito pôs fim à guerra e "depois disso Martineau-PainSec ficou na casa do rei, onde ele sempre viveu bem". No país das lendas: as ajudas sobrenaturais 11 12 Chifre-no-cu. O valente pequeno alfaiate. 39 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Mas há um outro lado do imaginário de nossos contadores e contadoras: o das lendas. Narrativas que se inscrevem no espaço e no tempo e que são objeto de uma crença mais ou menos forte. As lendas celebram, em primeiro lugar, as intervenções milagrosas dos seres sobrenaturais: o próprio Deus, os santos protetores como Santa Ana ou a Virgem Maria, os anjos ou os mortos protetores dos que lhes imploram ajuda. Os doentes são, então, curados; os incêndios, interrompidos; os viajantes em perigo chegam ao destino; o Diabo é expulso; as crianças perdidas, encontradas; os tesouros, descobertos e o futuro, revelado. A figura da Dama de branco é ambígua. Trata-se, às vezes, da boa Santa Ana e, outras, da Virgem Maria. Nos arredores da cascata de Montomorency, perto do Quebec, a Dama de branco será a sombra inconsolável de uma jovem que perdeu seu noivo na batalha das planícies de Abraham e que se jogou no rio. Em outros casos, a Dama de branco é uma feiticeira ameríndia que afogava os viajantes no rio. No caso da família Cadieux, o viajante dos Pays d’en Haut, 13 é Santa Ana, que guia a canoa na qual a família fugia enquanto que ele atirava contra os índios. Em forma da Dama de branco, a Virgem Maria ajudou a encontrar muitas crianças perdidas na floresta. Mulheres prestativas que protegem ou mulheres ameaçadoras que conduzem os viajantes ao fracasso ou ao desastre, as damas de branco são assim, como as fadas protetoras ou hostis. Os mortos também vêm em socorro dos homens ou das mulheres. Na realidade, esses mortos que ajudam são frequentemente designados como Almas do Purgatório. Falava-se até de "nossas pequenas almas". Trata-se das almas dos defuntos libertas dos suplícios do Purgatório pelas rezas, pelos sacrifícios e pelas oferendas dos sobreviventes. As almas libertas são evidentemente gratas e, do Céu, onde elas se encontram, ajudam, em troca, aqueles e aquelas que as ajudaram. Nessa perspectiva, o mundo dos desaparecidos não é mais um abismo sombrio de onde não se retorna mais, mas uma espécie de prolongamento do espaço doméstico onde os parentes mortos continuam a cuidar dos seus, multiplicando os gestos de ajuda. 13 Les pays d’en Haut estão situados na região das montanhas Laurentides na província canadense do Quebec. 40 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No país das lendas: os fantasmas Mas outras manifestações dos mortos são menos reconfortantes. Os fantasmas assustam: suas lamentações, seus queixumes, seus uivos, seus gemidos, seus choros, seus gritos, seus sussurros aterrorizam. Às vezes até mesmo suas intrusões se manifestam pelo tato e toques na noite: seus hálitos gelam o sangue. Por que, então, eles retornam? Eles procuram o descanso que não encontram pois não podem mais ter os gestos eficazes e suas palavras não surtem mais efeito. Somente a intercessão dos vivos pode colocar fim à vagueação deles. O tema dos "fantasmas suplicantes" explica-se, assim, pelo fato de que os mortos precisam das rezas dos vivos. Conta-se, por exemplo, que o presbítero da paróquia de Gentilly foi assombrado por um desaparecido desesperado. Um ser invisível chegou em torno das onze horas, bateu à porta do presbítero, que se abriu sozinha, e os testemunhos ouviram alguém subir a escada e entrar em um quarto. Ouviu-se um "barulho terrível". O padre subiu e voltou "pálido como um espectro". Ouviuse, então, "barulhos de correntes e gemidos". Essas visitas continuam durante uma semana, e o padre foi consultar seu bispo. Ao retornar, assim que os barulhos recomeçaram, vestido com uma estola e uma sobrepeliz, subiu ao quarto. Ouviu-se um barulho de luta. E Louis Fréchette termina sua narrativa conforme segue: "O barulho infernal cessou de repente, e o corajoso padre reapareceu lívido... Ele envelheceu dez anos". Posteriormente, todos as primeiras sextas-feiras do mês, até sua morte, o padre celebrou a missa de Réquiem para alguém que ele nunca quis nomear. A lenda de Pierre Soulard, que se aventurou pelo rio gelado, entre Quebec e Lévis, sob mau tempo, é também conhecida com o título de "Tête à Pitre". 14 O canoeiro, que tinha a reputação de blasfemar todo o tempo, quis atravessar o rio apesar do mau tempo. Ele deslizou, empurrando sua embarcação no gelo e caiu nas águas do rio; imediatamente, "um pedaço de gelo afiado como uma lâmina tocou-lhe o pescoço, cortando-lhe a cabeça”. A mesma cabeça ainda faz aparições acima do rio, entre Quebec e Lévis, em tempos de névoa ou de neve. 14 A cabeça de Pitre. 41 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 As lendas lembram também a história das "Almas penadas", de Saint-Michel. Em 1º de outubro de 1775, um fiel da paróquia de Saint-Michel-de-la-Durantaye interrompera um sermão de um padre Lefranc, jesuíta, que "ensinava a obediência aos poderes temporais". Ele exclamara: "Basta de pregar, por tanto tempo, aos ingleses!" O bispo do Quebec, Monsenhor Brillant, excomungara aqueles que eram solidários ao protesto do fiel. Cinco fiéis recusaram-se a se retratar e a fazer "retratação pública" após a proibição. Marguerite Racine (morta em 1784), Laurent Racine (morto em 1784), Félicité Doré (morta em 1784), Pierre Cadrain (morto em 1786), e Jean-Baptiste Racine (morto em 1788), pai de Laurent, foram inumados "em terra não abençoada", em uma terra que pertencia a um Cadrain. E vemos suas sombras vagar acima de suas sepulturas, sobre as quais cresceram cinco grandes pinheiros. Os defuntos tinham também que expiar, no outro mundo, os pecados cometidos na terra. Joséphine Lalande voltava de um sarau com amigos quando percebeu “no patamar da grande porta da igreja um homem usando um sobrepeliz e um barrete: este homem tinha a cabeça inclinada e os braços estendidos na direção deles”. Pensando que se tratava do filho do sacristão que queria amedrontá-los, ela pegou o barrete e voltou para a sua casa. Pôs o barrete em um pequeno baú e, ao ir dormir, viu à sua janela “o mesmo indivíduo que ela vira nos degraus da igreja” e que repetia: “Devolva meu barrete!” Durante esse tempo, “ela ouvia bater dentro do pequeno baú como se um animalzinho prisioneiro quisesse sair”. Na noite seguinte, “ela viu o mesmo fantasma que vira na véspera e que, suspenso nos ares e com a mesma atitude, gritavalhe: ‘Devolva meu barrete!’” Ela deu um grito e “desmaiou”. O padre visitou Joséphine e depois consultou o Petit Albert15. O diabo lhe apareceu. O padre “o censurou amargamente pelo que acontecera à pobre moça”, mas o diabo defendeu-se, disse não ser a causa detais fenômenos e desapareceu. O padre “teve uma visão durante seu sono” e acordou-se, tendo “encontrado a solução de seu problema”. Ele explicou à moça que o gesto dela tinha interrompido “uma grande penitência” de uma alma do purgatório e que era preciso recolocar o barrete na cabeça do fantasma. A moça caiu numa espécie de languidez e foi seu noivo quem devolveu o barrete ao fantasma. Este lhe revelou, então, a razão de sua penitência. Vestido com um sobrepeliz, ele Le Petit Albert é um grimóriode magia talvez inspirado pelos escritos de Saint –Albert le Grand. É impresso na França pela primeira vez em 1668, depois reeditado continuamente. 15 42 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 havia há tempos improvisado uma lição de catecismo em púlpito, diante das crianças, e suas “piadas” fizeram-nas "dar gargalhadas". Uma semana mais tarde, ele se afogava e foi “condenado ao purgatório, durante trinta anos e nos mesmos lugares” da profanação. Terminada sua penitência, o fantasma recomendou ao noivo uma erva com a qual ele faria uma infusão para curar sua noiva. Joseph-Charles Taché redigiu, em alexandrinos desajeitados, uma lenda que ele situa na Montagne à Bonhomme, perto de Quebec. Uma noite, lenhadores ouviram “sons lamuriosos” e, em seguida, uma voz que gritava: “Onde a colocarei?” Um colono chamado Perrin foi ao encontro da alma penada, mas só pôde responder: “Meu Deus! Eu não sei de nada!” Numa segunda tentativa de ajudar o fantasma, sua resposta foi um pouco mais precisa: “entregue-a ao seu dono”. A alma não ficou, no entanto, aliviada. Um ancião, o seu Ambroise, “lembrando-se de um determinado grande processo agora esquecido”, aconselhou o pobre Perrin a responder: “Onde tu a pegaste!” No dia seguinte, à questão “Onde, então, onde eu a colocarei?”, ele respondeu “com um timbre seguro”: “Onde tu a pegaste!” Na manhã do dia seguinte, a cerca entre a terra de Perrin e a de Jean Goulet foi deslocada vinte pés, e um marco foi colocado “na linha”. O marco fora deslocado há muito tempo, e o culpado, condenado a vagar. Perrin o havia libertado de sua pena. Em Sault-au-Récollet, na ilha de Montreal, um missionário Récollet, o padre Nicolas Viel, e seu novato, Ahuntsic, se afogaram depois da manobra de um índio “que se opunha à pregação do Evangelho na sua nação”. Mais tarde, viajantes que desciam a Rivière-des Prairies fizeram uma parada para passar a noite e perceberam um fogo um pouco mais longe. Eles acreditaram tratar-se de outros viajantes, e três homens dirigiram-se à beira do rio. Eles encontraram lá “um selvagem de tanga, sentado no chão, os cotovelos sobre as coxas e a cabeça entre as mãos”. Imóvel e mudo, ele estava todo molhado. Aproximando-se ainda mais, eles se deram conta de que a água que pingava de seu corpo “não molhava a areia e não fazia vapor”. Além disso, o fogo não produzia calor. Eles partiram, levando um tição do fogo. Um enorme gato preto apareceu num barulho de canoa voadora16 e atacou a canoa dos viajantes. Eles jogaram o tição no gato; ele o pegou e desapareceu. 16 No Quebec, o diabo guia as “canoas voadoras”. Em numerosas narrações de “chasse-galerie”, lenhadores, saudosistas, prisioneiros das florestas congeladas podiam, após um pacto com o diabo, voar em uma canoa e atravessar distâncias incríveis para ir dançar e festejar. Eles deviam, entretanto, observar certas regras e fazer a promessa de entregar as suas almas se dentro de seis horas eles pronunciassem o nome de Deus e se tocassem em 43 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Taché concluiu: “Este selvagem é o ‘afogador’ do Padre Récollet. Supõe-se que o diabo tenha se apoderado do assassino no momento em que ele se secava, depois de ter arrastado para a água o pobre missionário, e que ele e seu fogo foram transformados em lobisomens”. Um comerciante de Quebec, Augustin Fraser, tinha vendido roupas a crédito a um viajante, Martial Dubé, para que ele pudesse trocar por peles nos Pays d’en haut. Dubé declarou: “...morto ou vivo, eu lhe pagarei o que você vai me adiantar!” Antes de deixar Fraser, ele repetiu: “...não tema nada; mesmo que eu esteja no fundo do purgatório, eu virei lhe pagar”. Uma noite, dando a última volta em sua loja, Fraser viu, sentado num fardo de mercadoria, Martial Dubé, que assim lhe falou: “A vida é um sonho, capitão e, enquanto eu lhe falo, meu pobre corpo rola no fundo da baía de Sainte -Croix. Eu me afoguei esta noite e venho lhe pagar, Sr. Fraser”. Ele explicou: “Eu deixei num baú, na Pointe Lévis, alguns pertences fáceis de vender”. E, de fato, no cais de Lévis, Fraser encontrou um baú cheio de peles. Após ter vendido sua empresa, Fraser tinha-se retirado à Beaumont. Uma noite, ele reuniu sua família, seus empregados e lhes anunciou sua morte próxima: “Deus permitiu que eu fosse avisado: no pôr do sol eu devo morrer. Martial Dubé apareceu para mim sobre a rocha do vale; ele me disse que tudo estava acabado, e eu só tive tempo para me preparar”. E Faucher de Saint-Maurice concluiu: “Desde então, cada vez que um Fraser vai morrer, o fantasma da rocha lhe aparece”. Outros fantasmas são mais agressivos. Uma das mais célebres narrativas de Philippe Aubert de Gaspé apresenta o fantasma de Marie-Josephte Corriveau, a Corriveau, enforcada pelo assassinato de seu marido e cujo cadáver fora exposto numa gaiola de aço. O narrador, José, conta como seu “finado pai”, François, tendo passado uma noite diante da gaiola da Corriveau sentiu de repente “duas grandes mãos secas, como garras de urso, que lhe agarravam pelos ombros”. Era a Corriveau, que se pendurava nele e lhe suplicava para “levá-la a dançar” com seus amigos, os feiticeiros da ilha de Orleans. François recusou e Corriveau o estrangulou ou pelo menos “ele não uma cruz durante a viagem. A “chasse-galerie” significa, antes de tudo, os fenômenos sonoros percebidos nos ares ou na terra. Frequentemente ela é ligada à visão de objetos ou de seres que se deslocam no ar. A origem dessa lenda remonta à Idade Média, quando um impenitente, senhor Poitevin, o Senhor de Gallery, teria sido condenado, com os seus companheiros, a caçar do cair da noite ao nascer do dia, até o fim dos séculos. 44 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 valia muito mais, o pobre homem, pois perdeu completamente os sentidos”. Ele acordou-se no dia seguinte “deitado ao comprido em uma vala”. Na paróquia de Écorres, o cadáver de um enforcado fora colocado numa gaiola de ferro suspensa em um poste no caminho do Rei. Um certo Valiquet “tinha batizado” e acabava de “fazer seus convites” para uma “refeição (jantar)”. Passando perto da gaiola do enforcado, ele deu uma grande chicotada que fez vibrar as grades e gritou: “Eu te convido para vir jantar na minha casa esta noite!” À noite, os convidados estavam à mesa quando, de repente, alguém bateu à porta. O enforcado entrou com sua gaiola embaixo do braço esquerdo e só concordou em ir embora com a condição de que Valiquet fosse dançar ao pé de seu poste no dia seguinte. Valiquet foi obrigado a ir ao local, mas levando em seus braços o bebê que acabara de ser batizado. O enforcado o criticou por ter vindo “carregado com um fardo” que o impedia de dançar “uma bela roda”, cujo “compasso se marca a chicotadas”, e o deixou ir embora, tendo ao menos “aprendido a respeitar os mortos”. No país das lendas: o Diabo Mas eis que aparece o Diabo. Ele está em toda a parte e irá até mesmo prestar serviço para obter uma alma. Sob a forma de um cavalo, por exemplo, ele colaborou com a construção de várias igrejas, carregando pedras. O preço de seu trabalho? A alma da primeira pessoa que entrar na igreja após a construção desta. Um belo dia, no canteiro de obras da igreja do Sault-au-Récollet, um grande e bonito cavalo branco chegou não se sabe de onde. Chamado a vir em socorro, o padre reconheceu imediatamente aquele que se escondia sob a forma de um cavalo de carga. Ele correu à sacristia e voltou com uma estola, com a qual envolveu rapidamente o focinho do animal. “Façamno trabalhar sem parar e sobretudo não tirem sua rédea!” Todo o dia, o cavalo puxou e puxou pesadas carroças carregadas de pedras. Perto do fim da tarde, ele não era mais do que a sombra de si mesmo: muito magro, grisalho, titubeante, ele gemia como um homem exausto. Já que só restava uma pedra a transportar e diante do estado do cavalo, o carroceiro decidiu dar-lhe de beber e desatar a rédea. O cavalo recobrou imediatamente sua forma, rebentou sua atrelagem e, com um relincho que ressonou como uma grande gargalhada, lançou-se nos ares e, em sete grandes saltos, foi se 45 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 jogar na Rivière-des-Prairies, em um lugar que se chama ainda hoje Les Rapides-du-Diable. O cavalo fora “desencantado” antes de poder transportar a última pedra e a igreja nunca foi concluída, pois faltava uma pedra; o Diabo não obteve, então, a alma, foi embora e todos ficaram quites. É também graças a um pacto que homens podiam se deslocar numa canoa que, levantada por Satã, voava pelos ares na forma dessa canoa voadora que assombrava o céu de Poitou e dos países nórdicos. Longe, nas florestas do Norte, em pleno inverno, Baptiste Durand propôs aos lenhadores ir dançar em Lavaltrie, paróquia natal deles. Ele os conduziu a uma clareira onde os esperava uma grande canoa. Para voar à Lavaltrie, bastava prestar juramento ao Diabo, evitar de se embebedar, não blasfemar e remar energicamente. Após terem “prestado juramento ao Diabo”, a canoa elevouse acima das árvores e partiu nos ares, a toda velocidade, até Lavaltrie. O baile acontecera em Contrecoeur, na outra margem do rio, na casa de Seu Batissette Auger. Eles subiram na canoa e, em algumas remadas, atravessaram o rio Saint-Laurent. Dançaram muito, comeram muito, beberam muito e retornaram antes do amanhecer. Na volta, Durand, muito bêbado para conduzir a canoa, cometeu um erro de manobra e um homem gritou: “Meu Deus!” A canoa virou e os viajantes viram-se na neve perto do acampamento deles. Eles tinham escapado ao Diabo. O Diabo também fez pacto com o feiticeiro da ilha de Anticosti, Gamache, que andava a toda velocidade sobre as águas do Golfo Saint-Laurent, nos dias de calmaria, graças ao Diabo. Além disso, por ocasião de suas viagens a Rimouski, supunha-se que ele comia do bom e do melhor com o Diabo, em seu quarto de hotel. O Diabo comprava também a galinha preta, nas noites sem lua, nas encruzilhadas, como um camponês que “topa”: pacto sem dia seguinte, mas cujas consequências, a longo prazo, podiam ser desastrosas, pois não é impunemente que se “topa” com Satã. O Diabo fez também um papel de justiceiro, paradoxal àquele de punidor, quando se trata do Diabo, que deveria ter, ao contrário, se divertido com as faltas cometidas pelos homens e pelas mulheres. Na verdade, o Diabo punia depois de ter feito o papel do Tentador e de ter levado suas vítimas à perdição com suas incitações ao mal. Por exemplo, os padres condenavam a dança e ele incitava suas vítimas a dançar; era proibido dançar durante a Quaresma e ele fazia de tudo para que a dança continuasse depois da meia-noite. Ele é, ao mesmo tempo, instigador e punidor das faltas cometidas. 46 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Em “O homem do Labrador”, de Aubert de Gaspé Filho, um velho mendigo, Rodrigue, “apelidado Braço de Ferro”, que era “aos vinte anos o antro de todos os vícios reunidos” conta seu encontro com o Diabo. Ele se vangloriava de não ter medo nem de Deus nem do Diabo e foi designado para vigiar o “Posto do Diabo” no Labrador. Por ocasião do desembarque, levado pela cólera, feriu um de seus companheiros e, como ele pensava tê-lo matado, foi se esconder numa cabana na floresta. À noite, um homem com rosto encoberto por um “chapéu imenso” saiu da floresta, “seguido por um enorme cão preto”. Barulhos de garras, macacos na chaminé precederam a chegada do desconhecido, que entrou com seu cão. Rodrigue fez, então, promessa “à boa Santa Ana” de mendigar “o resto de seus dias” se ela o protegesse. O homem dirigiu-se ao fundo da cabana, rasgando uma a uma todas as camas antes de parar no lugar onde se entocava Rodrigue, que teve tempo de balbuciar uma espécie de oração e de expulsar o Diabo, que viera procurá-lo. O Diabo assombra também os lugares onde se dança, assim como os caminhos que levam a tais lugares. Tocando violino, ele fez com que dançarinos e dançarinas dançassem até se enterrarem lentamente no solo, afundados por seus passos. Sob a forma de cavalo negro, fez foliões montarem em suas costas para ir dançar, mas tentou atraí-los para as águas do Saint-Laurent. Enfim, sob a aparência de um belo estranho, que era também um “belo dançarino”, ele dançou com uma bela coquete a qual tentou raptar, salva in extremis pela intervenção do padre. No romance A influência de um livro, de Philippe Aubert de Gaspé Filho, o capítulo intitulado “O estrangeiro. Lenda canadense” representa a primeira “versão” canadense da lenda do Diabo belo dançarino. Na noite da terça-feira de Carnaval, o Diabo chegou de trenó, às onze horas, numa casa onde se dançava. Homem bonito, vestido de preto, usando chapéu e luvas, ele conservou as luvas e o chapéu e, apesar da tempestade de neve que se desencadeava, não deixou desatrelar seu cavalo negro. O estranho convidou a mais bela das belas, leve e coquete, a dançar. Ao dançarem, ele lhe fez a corte e lhe propôs uma troca de colares. Três incidentes levantaram as suspeitas. A avó que rezava, numa salinha, percebeu que o estranho a olhava com olhos de fogo toda vez que ela pronunciava o nome de Maria. Quando o casal passava perto de seu berço, um bebê se punha a chorar. Enfim, a neve havia derretido em volta do cavalo negro. O estranho insistiu para que a dança continuasse após a meia-noite e dançou-se, então, na quarta-feira de Cinzas. O padre veio depois de um pressentimento e dirigiu-se ao Diabo, agora desmascarado: seu chapéu caíra e se via 47 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 seus cornos; longas garras saíam de suas luvas. Ele queria que todos os convidados lhe pertencessem, pois eles haviam dançado “na Quaresma”. O padre não se deixou abalar e bateu no Diabo com grandes golpes de estola, aspergiu-o com água benta e depois pronunciou uma fórmula de exorcismo. O Diabo se atirou através de uma parede e fugiu num barulho infernal, deixando atrás de si um fedor que empesteou o lugar por muito, muito tempo. Quanto à pobre heroína, uns afirmam que ela tornou-se religiosa para expiar sua falta, enquanto outros juram que ela casou-se com seu noivo, que lhe perdoara com grande magnanimidade aventura de uma noite. Ela deu à luz quatorze filhos! O que fez, segundo contadores, com que ela perdesse a vontade de dançar. O Diabo não atacava somente os dançarinos. Um grande cão preto estrangulava os lenhadores que, exasperados por seu duro trabalho, "blasfemavam". Na véspera de Natal, um lenhador, incorrigível blasfemador, recusou-se a acompanhar seus companheiros à missa da meianoite no vilarejo. No decorrer da noite, o Diabo manifestou a própria presença através de barulhos, de garras que saíam da mesa e das cadeiras, de objetos que iam e vinham na cabana. No retorno de seus companheiros, ele lhes contou o que acabara de acontecer e um deles foi imediatamente procurar o padre para que o blasfemador pudesse se confessar. Quando o padre se apresentou, o blasfemador recusou-se a se confessar; somente após encontrar o Diabo em pessoa é que ele se confessou e depois morreu. No fim de seus dias, os meninos maus deviam esperar receber uma última visita do Diabo, que vinha buscar suas almas. Foi o que quase aconteceu a Joseph-Marie Aubé. Na “Lenda do padre Laurent Caron”, Philippe Aubert de Gaspé conta que um Huron disse ao padre de l’Islet que havia assistido à agonia de Aubé no Lac Trois-Saumons. Após uma vida de libertinagem, este último ficara doente na estrada de volta. Um urso assistiu à sua longa agonia e o moribundo pôde contê-lo graças a uma medalha da Santa Virgem que sua mãe lhe dera, suplicando-lhe nunca se separar dela. A medalha o salvara das garras do Diabo, que tinha se transformado em um urso para vir buscar sua alma. Mais tarde, o padre de l’Islet recebeu uma carta de um padre da França, o qual lhe disse que, durante a execução de um rito de exorcismo, o possuído teve três dias de remissão. Quando a crise de possessão recomeçou, o padre perguntou ao Diabo o que se acontecera e Satã confessou que ele tivera de ausentar-se para ir buscar a alma de Joseph-Marie Aubé no Canadá; havia, porém, fracassado! 48 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Os maus Cristãos, que aproveitavam o domingo para “adiantar” os trabalhos do campo ou fazer a colheita de frutas selvagens, corriam o risco de ser punidos pelo Diabo. Um agricultor de Rigaud, que trabalhava na sua plantação de batatas, num domingo de manhã, encontrou seus legumes transformados em pedra. Em Saint-Lazare de Bellechasse, duas mulheres colhiam frutas num domingo e só foram salvas das garras do Diabo por causa da presença de uma criança, “ser puro para os poderes misteriosos”, que manteve o Diabo a distância. Enfim, o Diabo apropriava-se dos corpos e de determinados lugares. Ele nem sempre usava o pretexto de uma transgressão para possuir uma vítima. Na região da Beauce, possuiu uma moça, a qual ele atormentou por muito tempo com vômitos, fugas e crises nervosas. No condado de Champlain, um pai de família, irritado com os choros do seu caçula, exclamou que ele estava pronto a dá-lo ao Diabo. Essas palavras evidentemente serviram de pretexto ao Diabo para tomar a criança que, durante toda a sua vida, não pôde usar outras roupas além de uma camisola. Em Islet, uma mulher cuja vida imoral condenou-a ao Diabo, foi também possuída e aterrorizava a paróquia com suas lamentações. As cerimônias de exorcismo praticadas pelo padre Panet livraram-na do Diabo e a paróquia encontrou novamente a paz. Enfim, o Diabo apoderava-se do espaço. Foi o que aconteceu nas Forjas de Saint-Maurice, onde uma tal de senhorita Poulin deu-lhe suas terras florestadas, as quais, um tal de senhor Bell, contramestre das forjas, permitia que fossem exploradas por seus empregados. O Diabo não demorou a se manifestar nesses lugares que ele considerava, doravante, como seus. O carroceiro desconhecido, que passava sem responder as perguntas, era ele. Era também ele o misterioso mudo que desenhava sinais incompreensíveis. Sempre ele, este homenzinho em pé, parado no cume da chaminé das forjas. Ainda ele, o gato que ficava perto dos fornos ou o urso preto que as balas dos caçadores não podiam tocar. Enfim, era certamente ele, o homem que forjava a própria ferradura com o Grande Martelo. No país das lendas: os espíritos 49 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Às diabruras inumeráveis, juntam-se as cem trapaças dos fogos-fátuos17 e dos duendes. Um “homenzinho cinza” assombrava as montanhas chamadas “Sauteux”, entre Anse-à-Jean e Cap-auxRenards em Gaspésie. Era um guardião de tesouros que surgia numa “bola de fumaça” para afastar os caçadores de tesouros dos cofres enterrados por marinheiros estrangeiros. Tratava-se, na verdade, do fantasma de um membro da equipe, morto e jogado por cima do cofre que continha um tesouro. “Um homem baixo e gordo” de cabeça invisível assombrou a Île-aux-Grues durante uns trinta anos. Ele ficava sempre no mesmo lugar, “na colina da cidade baixa”. Louis LeBel, apelidado “Carleton”, encontrou o homenzinho sem cabeça voltando de um sarau e “sentiu um aperto no coração (medo) terrível”. Louis Carleton LeBel chegou a escapar do homenzinho, rolando colina abaixo. Para além do círculo protetor da casa e do fogo, que é seu coração, a noite é povoada por formas hostis e a mais terrível, para aquele que tem que pegar a estrada depois do pôr do sol é, com certeza, o fogo-fátuo. Pequena chama fascinante, ela atrai para os banhados o viajante que imagina ver a claridade de uma lamparina na janela de uma casa. Almas de crianças mortas sem batismo ou última metamorfose daquele que durante sete anos transformou-se em lobisomem, essas chamas podem ser imobilizadas por uma faca cravada numa estaca ou numa árvore: atraído pelo aço, o fogo-fátuo tentava introduzir-se no ângulo formado pela lâmina, e o cabo e ficava prisioneiro desse espaço, o que permitia ao viajante fugir. Joseph-Charles Taché mandou contar, por uma testemunha, uma travessia de noite entre a terra firme e a Île-aux-Patins, onde um “empregado”, Ouellon-le-malheureux, teve um fim trágico. Guiado por “uma lanterna acesa na janela”, da cabana deles na ilha, Ouellon pôs-se a caminho, seguido de longe pelo narrador, que viu brilhar subitamente dois fogos: um a leste e outro a oeste. O o barulho dos cascos do cavalo de Ouellon era ouvido do lado oeste. Ele avistou diante de si uma “forte luz”; virando-se, pôde ver a fraca claridade da lanterna a leste. Ele tinha chegado perto de Mare-aux-bars, “grande fosso muito profundo”, e a “luz extraordinária”, um fogo-fátuo, desapareceu. O cavalo de Ouellon desapareceu no charco. Ouellon se afogara. 17 Em francês do Quebec; Feu-Follet, na França; Feu-de-Saint-Elme, Fogo-de-Santelmo. Em inglês, Will-o’-thewisp; no sul do Brasil, corresponde à Boitatá. 50 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Quanto aos duendes, eles gostavam de montar os cavalos. Iam aos currais, trançavam as crinas dos cavalos para fazer rédeas e se entregavam às loucas cavalgadas noturnas. Traziam suas montarias cobertas de suor na aurora, a crina e a cola trançadas, mas alimentadas por uma boa quantidade de aveia, emprestada a um vizinho. Os proprietários de cavalos podiam livrar-se dos duendes, colocando um balde de cinzas em cima da porta do curral. Assim que um duende empurrava a porta, o balde virava seu conteúdo, e como esses pequenos seres não queriam deixar rastros da passagem deles, passavam o resto da noite a juntar as cinzas e só partiam ao nascer do sol, jurando nunca mais voltar. No imaginário que exploramos, o lobisomem não pertence totalmente ao universo supranatural das fadas, dos duendes e dos fogos-fátuos: trata-se de um homem condenado a se transformar em lobo por não ter recebido a comunhão na Páscoa por sete anos seguidos. O lobisomem percorre as estradas e ataca os passantes solitários. Ele pode ser dominado com uma fincada de faca, que faz correr uma gota de seu sangue e o traz, assim, ao seu estado primeiro: um homem nu, ferido, agradece, então, àquele que o libertou e lhe suplica para que não revele a ninguém o que lhe acontecera. No país das lendas: uma história diferente Fora desse universo narrativo sobrenatural, o imaginário lendário conserva também a lembrança das grandes proezas de homens fortes, como o gigante Modeste Mailhot, que removeu uma enorme pedra para permitir a construção de uma estrada em Lotbinière. Um lugar particular é reservado a Jos Montferrand, cujas proezas de brigão foram inumeráveis. Com uma mão, ele levantou seu arado para indicar a direção de sua casa e lutou com um bando de Orangistes18 sobre a ponte Chaudières, que cruza o rio Outaouais, entre Hull e Ottawa; mais tarde, com um chute, ele deixou a marca de sua bota no teto de um hotel em Hull. Por sua vez, Alexis Tremblay, vulgo Orange Order, também conhecido com o nome de Ordre orangiste ou Institution d’Orange, é uma organização fraterna, protestante, do norte da Irlanda, organizada em lojas e fundada em 1795, em Loughgall. 18 51 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Trotador, corria mais rápido do que os cavalos mais rápidos. Correndo de Point-au-Pic à baía de Mille Vaches, ele chegou antes de seu pai, que fizera a viagem de barco. Poder dos padres, como o do padre Labrosse, que predisse a hora de sua morte e cujo fim foi milagrosamente anunciado pelos sinos de todas as igrejas em que havia exercido seu ministério. Poder do padre Ambroise Rouillard que, após sua morte, devolveu milagrosamente ao seu dono um copo de prata que o senhor Rioux, de Trois-Pistoles, havia lhe emprestado. Poder de simples padres, que apagavam os incêndios com um crucifixo. Enfim, as lendas trazem a lembrança de Toussaint Cartier, o eremita da ilha Saint-Barnabé, em frente a Rimouski, e aquela do agrimensor Fournier, que se afogou no rio Matapédia e cujo cadáver não pôde ser removido, como se a montanha quisesse guardá-lo. A lenda traz também a lembrança de Madeleine de Repentigny, que se tornou freira Ursulina19 depois da morte de um Iroquois pelo qual era apaixonada e que deixou uma quantia de dinheiro para a manutenção de uma lamparina, que queima ainda hoje diante da estátua de Notre-Dame-du-Grand-Pouvoir (Nossa Senhora do Grande Poder). Segundo a lenda, Blanche de Beaumont jogou-se na água para escapar dos piratas cujo navio fora transformado em pedra, bem perto do rochedo Percé. E nós poderíamos percorrer ainda muito tempo o país das lendas. E nós poderíamos voltar ao país dos contos. E nós poderíamos escutar as antigas canções de Natal e os velhos cânticos e canções e as cantilenas e o Príncipe Eugène e os Estudantes de Pontoise e a Corça Branca e o Casamento inglês e a Pastora muda... Todos esses cantos que moldaram o imaginário. Mas o país da tradição se prolonga para muito além do horizonte. A noite cai. É preciso parar por aqui. E me despedir. Eu saúdo a todos vocês, Pequena Raposa e Grande Urso, Lobo e Cabritos, jovem herói que conseguiu matar o Bicho de Sete Cabeças e encontrou uma esposa, Jean de l’Ours, Beau Prince e Bonnet Rouge, Pequeno Polegar e seus irmãos e até mesmo o Ogro, eu o saúdo, pois sem ele não haveria conto. 19 Freira da Ordem de Santo Agostinho. 52 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Eu saúdo Tit-Jean, que partiu à procura de sua esposa desaparecida, Jean de Calais e o morto agradecido, Cinderela, Peau d’Âne e La Grande Margaude, sem esquecer o Gato de Botas, e vocês também, filhos que partiram à procura de um remédio para o pai de vocês e à pobre moça de mãos cortadas e Bénédicité e Grisélidis. Saudações! Saudações a você, Grand Voleur de Paris, Grande Ladrão de Paris, Jacques Pataud e Compère Lapin, Compadre Coelho, e principalmente a ti, marido que não foi buscar a água da Fontaine de Paris, Fonte de Paris. Saúdo a Pois-Verts e a seu padre e ao herói, apesar dele, malgré lui, Martineau-Pain-Sec. Uma última vez, eu saúdo as belas Damas de Branco, as boas Almas do Purgatório e “Almas Penadas”, aos pobres espíritos suplicantes, a Pierre Soulard e a Josephine Lalande, ao padre Nicolas Viel e a Ahuntsic, a Augustin Fraser e Martial Dubé, a Marie-Josephte Corriveau e a Valiquet. E também, por que não, eu saúdo o velho Diabo construtor de igrejas, condutor da Canoa Voadora, amigo dos feiticeiros e comprador de galinhas pretas, tocador de violino e belo dançarino, imobilizado pela medalha de Joseph-Marie Aubé, possuidor de corpos e das Ferrarias de SaintMaurice. Saudações, velho Diabo, sempre vencido nas nossas narrativas! E saudações a vocês também, fogos-fátuos e duendes, homenzinho cinza e lobisomens. Saudações, enfim, a Modeste Mailhot, ao grande Jos Montferrand e a Alexis Tremblay, vulgo Totador, ao padre Jean-Baptiste de Labrosse e ao padre Ambroise Rouillard, a Toussaint Cartier e ao agrimensor Fournier, a Marguerite de Laroque de Roberval, a Marie-Jeanne Madeleine Le Gardeur de Repentigny e a Blanche de Beaumont. E, enfim, saudações a ti, Anão Vermelho de Détroit, cuja sombra passa pela coletânea de Marie Caroline Watson Hamlin, Legends of le Détroit. Quando se calam os contadores e as contadoras, você(s) mergulha(m) no silêncio. Terminadas as batalhas, já não há perseguições loucas, milagres, vitórias. O riso se apaga. Mais nada. Mas eis que nas fitas cassete e na película cinematográfica e na superfície dos antigos manuscritos, enfiados nos arquivos, pode-se escutar barulhos, vozes. Alcée Fortier, Marius Barbeau, Édouard-Zotique Massicotte, Joseph-Médard Carrière, Luc Lacourcière, Félix-Antoine 53 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Savard, o padre Germain Lemineux, o padre Anselme Chiasson, Carmen Roy, Catherine Jolicoeur, Conrad Laforte, Roger Matton, Pierre Perrault, Jean-Claude Dupont tiveram, na época deles, ouvidos atentos. Nem foi tudo perdido porque eles anotaram, registraram, transcreveram o patrimônio vivo dos que carregam a tradição. Basta que uma voz reveze as anteriores para que o imaginário desperte e que as obras da tradição oral revivam. Como quando Marcel Bénéteau canta “Adieu, donc, la ville d’Orléans”. Um caderno que pertenceu à Sra. Ernest Dupuis conservara o texto dessa canção, e a Sra. Stella Meloche, magnífica guardiã da memória do canto, conhecia sua melodia. A canção é atual como no momento em “que três jovens militares/ Estando uma noite no cabaré,/ E falando de suas amantes” compuseram a canção. E a tradição vive. E ela viverá. 54 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Vozes d´Haiti Vodu: o Ounfò revisitado Maximilien Laroche 1 Resumo: Este artigo resume a visita a uma exposição em Nova York sobre o vodu haitiano, as reflexões que suscitou sobre o vodu tal como é entendido no Haiti e além desse país; apresenta, finalmente, uma interpretação do alcance das transformações que o vodu haitiano conhece. Palavras-chave: exposição – vodu – Haiti – transformações Résumé: Cet article rend compte de la visite d'une exposition sur le vodoun haïtien, tenue à New York, des reflexions qu'elle a suscitées sur le vodoun tel qu'il est vu en Haïti et au dehors de ce pays et finalement d'une interprétation de la portée des transformations que connait le vodoun haïtien. Mots-clés: exposition – vodoun – Haïti – transformations Maximilien Laroche nasceu em Cap-Haitien, no Haiti. Ensinou literatura francesa do século XVII e literaturas francófonas do Caribe na Universidade Laval, em Quebec. Entre as últimas publicações de sua autoria, pode-se mencionar Le poids des mots (2013) e Nan kalfou espastan, sa k ap pase? (2011). No mês de outubro de 1998, no Museu Americano de História Natural, em pleno coração de Manhattan, havia uma grande exposição intitulada Sacred arts of Haitian vodou. Como eu estava em Nova Iorque na ocasião para ministrar uma conferência sobre os bizangos no Cercle 11 (Université Laval). Trad. Nubia Hanciau (Universidade Federal do Rio Grande – FURG) 55 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Primevère2, feliz coincidência ou vontade manifesta dos espíritos?, não quis perder essa exposição. Aliás, confirmou-se minha impressão de que o acaso havia sido programado pelos lwa: um dos três altares reconstituídos em uma das salas do museu era consagrado aos bizangos. Outro sinal inequívoco da bênção que me concediam os espíritos voduescos, foi eu ter podido entrar sem pagar, já que a direção do museu, naquele dia, abriu suas portas a grupos de crianças entre as quais passei, senão invisível, pelo menos despercebido. O que, tendo em vista minha idade, só poderia ser considerado milagre. Deveria ver essa exposição! Era desejo do alto! Ao sair dela corri para o Central Park, que se encontra em frente ao museu, levantei os braços para o céu e gritei para mim mesmo com a voz forte ao máximo: “Louvado seja o grande Mestre! O vodu de agora em diante é pós moderno!” Efetivamente, para aqueles como eu, que no Haiti haviam conservado a imagem de um vodu rural, pobre e dispondo de poucos meios para dotar-se de altar com decorações tão ricamente aparamentadas, ornado de objetos tão suntuosos quanto em Nova Iorque, confirmavase a opinião do crítico Holland Cotter (no suplemento Beaux arts do New York Times, 8 out. 1998): a exposição do Museu Americano de História Natural não apresentava de forma alguma a imagem da religião popular dos haitianos, ou seja, um culto de camponeses pobres, explorados e desfavorecidos, bricolando objetos rituais com a ajuda de material heteróclito e exprimindo suas convicções religiosas em contexto natural sumariamente organizado. O que ela mostrava era uma face da pós-modernidade contemporânea do vodu. O vodu haitiano acabava de alcançar a etapa de sua terceira idade. As três idades do vodu haitiano Antes de chegar a ser objeto de admiração de um público internacional, o vodu haitiano passou por três etapas. Houve primeiro um período pré-moderno, que se estendeu da chegada dos 2 O Cercle Primevère é um clube fundado em Cap-Haïtien, que conheceu grande sucesso ao longo dos anos 1940 a 1960 pelas suas diversas atividades: conferências, banquetes, bailes; e que os haitianos, imigrados nos Estados Unidos, quiseram fazer reviver em Nova Iorque. 56 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 primeiros africanos, em 1505, até 1928, época da ocupação estadunidense do Haiti, período que vai então da primeira colonização à primeira recolonização, após sua independência. Em 1928, com a publicação de Ainsi parla l’oncle, o livro-manifesto do Doutor Price-Mars, começava um segundo período, o da reabilitação do vodu, até então considerado superstição e até mesmo prática bárbara de canibais. O Doutor Price-Mars empenha-se em fazer reconhecê-lo enquanto legítima expressão de crenças que tinham plenamente direito ao título de religião. Atacando o bovarismo coletivo, o autor de Ainsi parla l’oncle empreendia a descolonização interior dos haitianos, no mesmo momento em que se efetuava sua recolonização política e econômica. Com a exposição Sacred arts of Haitian vodou, assistimos ao reconhecimento internacional da independência dos haitianos, ao menos no domínio dos sentimentos religiosos e de sua expressão artística. É como se ao slogan que os afroamericanos repetiam, nos anos 60: “Black is beautiful”, o mundo respondesse: “Sim!” – mas, nesse caso, a resposta é para os haitianos, mais precisamente para o Doutor Price-Mars, que o mundo exterior diz: sim. Sabe-se que durante o período colonial francês o vodu foi perseguido pelas autoridades políticas que chegavam ao ponto de impedir os negros de tocarem tambor. A pressão sobre o vodu não aliviou depois da independência, em parte devido à opinião pública estrangeira, cuja atitude se revela, sob Geffrard, por ocasião do caso de Bizoton3. Dele serviram-se para reafirmar o caráter bárbaro do vodu. Spencer Saint-John, em 1884, em Hayti or the black Republic, foi ainda mais longe, e, sob a ocupação americana, dois livros – Le roi blanc de la Gonave, de Faustin Wirkus, e, sobretudo Magic Island, de William B. Seabrook –, repetiram os mesmos estereótipos do período colonial. A diferença desta vez foi que a máquina midiática dos Estados Unidos apoiou essa nova campanha de desvalorização, fazendo-a desabrochar notadamente no cinema, com filmes de zumbis que continuam a fazer os melhores momentos de cinéfilos em busca de sensações fortes. Processo intentado em 1863, contra pessoas suspeitas de terem cometido crime, motivadas por feitiçaria. 3 57 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Com Ainsi parla l’oncle, de Price-Mars, a tendência é revertida e cada vez mais o vodu é considerado religião completa. Sua segunda idade é marcada pelos grandes romances indigenistas de Cinéas, de Roumain e Alexis, mas, sobretudo, pela influência exercida pelo Escritório de Etnologia e pelos principais ideólogos que desenvolveram as ideias de Price-Mars em seus trabalhos a respeito da cultura popular haitiana. É nesse período que conhece seu apogeu e ao mesmo tempo sua metamorfose com a exposição do Sacred arts of Haitian vodou. Depois de ter sido superstição, religião, o vodu tornou-se espetáculo, divertimento, e até mesmo comércio, advindo daí seu caráter de fenômeno pós-moderno. Antes, porém, de nos interrogarmos a respeito dessa pós-modernidade do vodu, precisemos a seguir que as datas de 1505, 1928 e 1998 são tão arbitrárias enquanto momentos de mudança do perfil da religião popular dos haitianos, quanto quaisquer referências cronológicas. Além disso, antes de Price-Mars, intelectuais haitianos haviam esboçado tentativas para explicar o vodu; e depois dele, mesmo que se afirme seu caráter totalmente religioso, o vodu não deixou de continuar objeto de sérias reservas. Onde parece haver unanimidade, desde Price-Mars, é no âmbito do papel estético do vodu e do valor de suas realizações artísticas. É com clareza que vê Holland Cotter, o crítico da exposição do Museu Americano de História Natural, quando ele diz: Mas é a arte que conta, e os objetos incluídos aqui, uns 500 ao todo, são fascinantes. Abrangem de vívidas narrativas pintadas a tremulantes bandeiras bordadas, de madonas de gesso a imensos tambores esculpidos em madeira. Nesses trabalhos, africanos, europeus e influências indígenas do Novo Mundo tecem em conjunto uma produção intensamente visceral, e de inquietante beleza. Os resultados são emblemáticos do espírito assimilativo do pós-moderno e das poderosas produções da arte religiosa... Pode-se imaginar um visitante do Museu Americano de História Natural percebendo, com ceticismo, ou até desalento, o ritual reduzido à condição de curiosidade. Mas outras reações também são possíveis, assim como outras mostras semelhantes confirmaram... O pensamento pós-moderno dos anos 90, para seu crédito, abriu caminho para que ambos os pontos de vista coexistam, com suas inerentes limitações e revelações. Graças a esta atmosfera de acolhida é que a arte culturalmente eclética do vodu haitiano, 58 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 materialmente efêmera, contemporânea e tradicional, sagrada e profana, pode por fim ser vista como o magnífico tour de force espiritual que ela é.4 Enquanto espetáculo, o vodu não se tornou simplesmente pós-moderno fora do Haiti. No próprio país ele é diversão para o turista. Aquele que é levado para ver um criseur5 triturando vidro em sua boca, engolindo fogo ou deixando-se martelar sobre um morteiro, pode se perguntar se está em um lugar sagrado ou em um circo. Mas, como bem diz o cronista do New York Times, as duas facetas, religião e diversão, podem coexistir numa mesma perspectiva pós-moderna. São as manifestações desta nova idade do vodu que eu gostaria de examinar no domínio das artes. Inicialmente, religião para iniciados, o vodu concedia livre acesso apenas aos seus adeptos. Em Bois Caïman, Boukman6 não oficiava para os turistas. Mas com o modernismo, todos podem entrar no altar (ounfò). O resultado, na era pós-moderna, é que entre os visitantes podem coexistir duas visões do vodu, para não dizer duas realidades – a religiosa e a artística –, e não se sabe se a segunda prevalece sobre a primeira. O altar revisitado Essa revisita do altar tradicional que nos obrigam a fazer não apenas a exposição de Nova Iorque sobre as artes sagradas do vodu, mas também os numerosos livros publicados desde 1928, força-nos a fazer algumas perguntas. Primeiro, a respeito do vodu e a globalização. Não se deve 4 No original: “But it is the art that counts, and the objects included here some 500 in all, are spellbinding. They range from vivid painted narratives to shimmering beaded flags, from plaster Madonnas to immense carved wooden drums. In these works, African, European and indigenous New World influences weave together to produce intense visceral excitement and disquieting beauty… The results are emblematic of post-modenism’s assimilative spirit and powerful works of religious art… One can imagine a visitor to the American Museum of natural History perceiving with skepticism, even dismay, ritual reduced to the status of a curiosity. But other reactions are equally possible, as other, similar exhibitions have confirmed… Post-modern thinking in the 1990’s has, to its credit, cleared the way for both views to coexist, with their attendant limitations and revelations. An it is thanks to that embracing atmosphere that the art of haitian Voodoo- culturally eclectic, materially ephemeral, contemporary and traditional, sacred and profane, can be seen at last, and seen as the magnificent spiritual tour de force that it is”. New York Times, suplemento Beaux-Arts, 8 de out. 1998, p.E31, p.E36, pE36b, p.E36c. As traduções do inglês são de autoria da professora Eloína Prati dos Santos. 5 6 Voduísta tomado de crise de possessão. O Bwa Kayman é a floresta onde, em 14 de agosto de 1791, reuniram-se os escravos que desencadeariam a insurreição geral de 22 de agosto do mesmo ano, a qual seria o prelúdio à guerra da independência do Haiti. Boukman foi o chefe que presidiu a reunião, aquele que dirigiria a insurreição. 59 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 compreender esta palavra unicamente sob um ponto de vista econômico, pois há um sentido bem mais extenso. Louis Vincent Thomas o esclarece na seguinte reflexão: Isto também não significa que o passado está morto e não tem mais lugar nas memórias. O contrário é que é verdadeiro. Talvez ele reencontre mesmo um acréscimo de importância e de significação em um momento em que a identidade africana tem tanta dificuldade para se definir em função de normas que não são suas e que, por engano, tomamos naturalmente por universais. Encontram-se também na África essas tendências julgadas muito rapidamente passadistas, que solicitam às religiões tradicionais serem ao mesmo tempo a memória e a defesa da coletividade ante as agressões de fora, um pouco à maneira pela qual o vodu haitiano soube preservar a herança cultural de um povo ameaçado de perder sua identidade. Que as novas formas sejam largamente sincréticas, ao menos em aparência (pois, se a gramática é nova, a semântica em nada variou!), não muda nada nessa história. Longe de ser um fenômeno aberrante, a comunidade profética ou messiânica de que falaremos mais adiante, é bem mais testemunha de uma criatividade do que a ela renuncia: não se mói mais o mesmo grão; mudamos o cenário da vida quotidiana, mas são as mesmas necessidades que permanecem, e largamente a vontade de se bastarem por si mesmas. 7 A primeira conclusão à qual nos conduzem esses propósitos é a de que é preciso não apenas comparar o vodu haitiano aos vodus beninenses ou iorubá, mas, de maneira mais geral, é preciso fazê-lo com os vodus africanos e as formas transculturadas que eles conheceram no Haiti, em Cuba, no Brasil, na Afro-América, em suma. Então, parece que são essas religiões afroamericanas que remetem por antecipação às suas fontes africanas a imagem do destino para o qual estão prometidas. Esta é, aliás, a ideia que desenvolveu Francis Kpatindé em artigo sobre o Haiti intitulado: “Haiti, o futuro anterior”.8 No original: “Cela ne signifie pas non plus que le passé est mort et qu’il n’a plus de place dans les mémoires. C’est le contraire qui est vrai. Peut-être même retrouve-t-il un surcroît d’importance et de signification dans un moment où l’identité africaine a tant de mal à se définir en fonction de normes qui ne sont point siennes et qu’à tort, l’on tient volontiers pour universelles. Aussi retrouve-t-on en Afrique ces tendances jugées trop rapidement passéistes et qui demandent aux religions traditionnelles d’être tout-à- la fois la mémoire et le bouclier de la collectivité face aux agressions du dehors, un peu à la manière dont le vaudou haïtien a su préserver l’héritage culturel d’un peuple menacé de perdre son identité”. “Que les formes nouvelles soient très largement syncrétiques, du moins en apparence (car si la grammaire est nouvelle, la sémantique n’a guère varié!), ne change rien à l’affaire. Loin d’être un phénomène aberrant, la communauté prophétique ou messianique dont il sera question plus loin témoigne plutôt d’une créativité qui ne renonce pas: on ne moud plus la même graine, on a changé le décor de la vie quotidienne, mais ce sont les mêmes besoins qui demeurent et pour une large part la volonté d’y suffire par soi-même”. THOMAS, Louis Vincent. La terre africaine et ses religions. Paris: L’Harmattan,1992, p. 32. 8 “Haïti, le futur antérieur”. Jeune Afrique, n. 1711, p. 46-47, 21-27 oct.1993. 7 60 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 De fato, a globalização em pauta no mundo de hoje, nada mais é do que o apogeu de um movimento que começou em 1492, prosseguiu com o tráfico negreiro e, finalmente, concluiu-se com a divisão da África no Congresso de Berlim (1884-1885). As religiões africanas começaram a suportar no Haiti, em Cuba e no Brasil o destino que conhecem cada vez mais na própria África. A partir de então, como considerar todas essas religiões de acordo com a imagem de integridade ou de pureza que corresponde cada vez menos à realidade sincrética às quais se encaminham? E então devemos pensar: o que o vodu não diz, o cristianismo, ao qual ele é mais frequentemente associado, diz em seu lugar? Devemos considerar as religiões africanas ou afro-americanas como entidades independentes ou crenças associadas em uma espécie de livre troca com as crenças cristãs? Em suma, é preciso tomá-las por novas realidades sob as quais conviria distinguir, conforme propõe Louis-Vincent Thomas, uma gramática nova e uma semântica tradicional? Finalmente, não deveríamos considerar essa situação do ponto de vista que adotaríamos pensando no sincretismo das crenças greco-romanas ou célticas da Europa com o judeu-cristianismo? Uma segunda questão vem de alguma forma reforçar essa necessidade de uma abordagem global, a das línguas utilizadas para falar do vodu e em nome dos voduístas. Até quando continuaremos a escrever sobre o vodu em outras línguas que não a dos próprios voduístas e, sobretudo, ignorando as línguas fontes que são notadamente o fon e o iorubá? Guérin Montilus escreveu o seguinte: São numerosos os termos fon que permanecem na língua religiosa haitiana. Mas o mais significativo é o fundo semântico daomeano, que forma a camada profunda de significação e interpretação do mundo pelo haitiano. Este fundo semântico encontra-se particularmente na mitologia dos lwas chamados vodus pelos fon. Mas é também dissimulado de mil maneiras por meio dos gestos, dos ritos, das exclamações, dos cantos, etc. Nem sempre é explicitado por palavras.9 Tomemos o exemplo da palavra vodoun, sobre a qual Montilus nos diz que se trata do termo para designar os lwas em fon. Escreve-se na maioria das vezes sem o n final, que acentua a 9 MONTILUS, Guérin. Mythes, écologie, acculturation en Haïti, Zurich, 1973. 61 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 necessidade de nasalizar o final da palavra. Em contrapartida, a letra h ordinariamente acrescentada a ounfort, em sua ortografia francesa, hounfort, insiste duplamente nessa necessária nasalização. Os haitianos são puristas, com razão. E têm duplamente razão de sê-lo a partir de 31 de janeiro de 1980. Efetivamente, a partir dessa data é preciso atentar para os erros de francês, de pronúncia e ortografia, e os erros do idioma haitiano, crioulo, se preferirmos. O decreto de 28 de setembro de 1979 estipula: Artigo 2º – “O crioulo, enquanto língua falada e escrita, é constituído de sons, de sinais correspondendo a consoantes, vogais, semiconsoantes e meias-vogais”. Na circular de 31 de janeiro de 1980, o secretário de Estado Josèf C. Bèna fornece as seguintes precisões: Depatman Edikasyon Nasyonal, dapre sa GREKA (Gwoup Rechèch pou etidye Kreyòl Aysyen) ki nan ONNAAK la te voye ba li, voye papye sa a ba nou pou nou sèvi nan lekòl yo. 10 E entre os vwayèl bouch-nen está indicado: OUN, a exemplo da palavra OUNSI. As palavras vodoun, oungan, ounfò, ounsi, ountò, oundjenikon, e todas aquelas que compreendem o radical oun com um prefixo ou sufixo, devem ser escritas oun, para reproduzir o som do ditongo nasalizado OUN, cette vwayèl bouch-nen11, conforme indicado na circular do ministro. Essa regra ainda não é sistematicamente observada simplesmente porque todos aqueles que escrevem em crioulo haitiano, mesmo se o pronunciam muito bem, no caso dos falantes haitianos, no momento de escrevê-lo deixam-se guiar pelo exemplo daqueles que ignoram a pronúncia, sobretudo, das palavras em fon e yorouba. É assim que em francês há pelo menos três maneiras de escrever a palavra vodu: vodoun, vaudou, vaudoux, vodou; e em inglês, duas: voodoo e hoodoo. Portanto, se folhearmos alguns dicionários do crioulo haitiano, poderemos constatar o seguinte: L.Peleman, em seu Diksyonnè Kreyòl-Franse, de 1978, escreveu vodou(n), colocando o n entre parênteses. Bryant Freeman, por sua vez, em seu Diksyonè òtograf kreyòl ayisyen, de 10 O Ministério da Educação Nacional apresenta as regras de aplicação da escrita crioula haitiana. 11 Vwayèl bouch-nen: vogal pronunciada pela boca, mas nasalizada. 62 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 1988, primeiramente escreve vodou, com uma única forma, mas no Haitian English dictionary, segunda edição (1998), apresenta duas formas: vodou, vodoun, palavras haitianas que o inglês traduz por voodoo. Há então no mesmo lexicógrafo, com dez anos de intervalo, evolução na ortografia da palavra. Pode-se compreender que, para o escritor simples, a evolução seja ainda mais lenta. Quando consultamos os escritos de etnólogos beninenses ou franceses ao descrever a cultura dos Fon, logo, no caso de pesquisadores que conhecem a língua, daqueles que a estudam, observar-se-á que o beninense, Maximilien Quénum, em seu livro Au pays des Fon (1937), escreveu vodoun, e que o francês Edouard Bourgoignie, em Les Hommes de l’eau (1977), escreveu vodun. Por último, para fechar o círculo, os leitores do jornal Haïti en Marche não deixaram de ler o pequeno texto publicado na página 19, n. 34, v. XIII de 29 set. 1999: O público exclamou: oun! quando Papi Djo, o conferencista, ao comparar o vodu e outras religiões africanas, contou que na sequência de uma viagem ao Benin, descobriu que o som oun é sinônimo da palavra espírito. Essa vogal nasalada é utilizada pelos africanos em vários termos, tais como: oungan (sacerdote do vodu), oungenikon (mestre da canção), ounsi (diácono do sacerdote), etc. Segundo o conferencista, esse som e essa palavra têm significação muito importante no vodu africano. 12 Ao ler esse texto, constatamos que ainda é preciso apreender muito através de pesquisas de campo e, sobretudo, esperar longo tempo antes que esses resultados sejam integrados à cultura geral e utilizados correntemente. Assim, depois da publicação do livro de Pierre Anglade, Inventaire étymologique des termes créoles des Caraïbes d’origine africaine (L’Harmattan, 1998) deveríamos saber que não podemos mais nos permitir apresentar definições fantasiosas às palavras do vodu. Deveríamos também estar bem conscientes das derivações de sentido das palavras que resultam da transculturação, cuja responsabilidade primeira pode ser dos escritores. “Tout mounn fè…Oun! Pandan Papi Djo ap fè devlopman konparezon ak diferans ant vodou ak lòt relijyon yo, li di li vwayaje Benen peyi Lafrik epi, li dekouvri mo OUN-an ki vle di espri. Li di mo OUN sa-a soti nan bouch ak nen Afrken yo. Ou jwenn ni nan youn bann mo vodou tankou oungan, oungenikon, ounsi elatriye. Li di son OUN saa gen youn kokennchenn syifikasyon relijye nan peyi Afrik sa-a…”. 12 63 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Entre os Fon, a palavra vodu, antes de remeter à palavra religião, no sentido de instituição, significa sangue, espírito, pacto, força. Karen McCarthy Brown sublinha: “Forasteiros deram o nome vodu às práticas religiosas tradicionais do Haiti; só recentemente, e de forma limitada, os haitianos começaram a empregar o termo como os outros”.13 Mas, alguns anos antes, sem esperar por essa constatação da antropóloga estadunidense, Yves Déjean, após minuciosa pesquisas em várias regiões do Haiti, estabeleceu muito bem em que sentido a palavra vodu era utilizada pelos falantes haitianos: Se percorremos as diversas regiões do país e perguntamos às pessoas o que quer dizer a palavra vodu, elas não respondem que é uma crença, um tipo de cerimônia ou de oferenda aos espíritos. Para elas a palavra não está ligada a pessoas reais (padres, curandeiros, defuntos ou seres espirituais, como os anjos, os gêmeos, os bizangos, os makandas ou os champouèls14). O vodu, para elas, é antes de qualquer outra coisa, uma dança em honra dos espíritos.15 Isso nos conduz diretamente à questão das relações entre o vodu e a escritura, pois o novo sentido dado à palavra resulta em boa parte do emprego que dela fazem os que sobre ela escrevem e não dos próprios voduístas. Sendo religião oral, há o risco de transformá-lo em religião do livro que sobre ele se escreve. A oralidade do vodu é causa de uma flutuação doutrinal que os escritos daqueles que o analisam de fora parecem fixar, além de uma tomada da palavra ou da escrita das próprias práticas. A religião do povo haitiano não consiste de uma única teologia uniforme. Ao contrário, o que antropólogos denominaram vodu, ou religião vodu, é, na verdade, uma coleção diversificada de ritos que afinal remetem suas origens a diferentes partes da África... Os próprios camponeses africanos não chamam sua religião de vodu. [...] Vodu, do seu ponto de vista, refere um evento específico, uma dança ritual durante onde os espíritos chegam para montar e possuir o crente. No entanto, este conceito não é “Outsiders have given the name voodoo to the traditional religious practices of Haïti; only recently and still to a very limited extent, have Haitians come to use the term as others”. “Voodoo”, in Arthur C. Lenmann, James E Myers, Magic, Witchcraft and Religion, California, London, Toronto, Mayfield Publishing Co., 1985, p. 312. 14 Os makandas e os chanpwèls são bandos de feiticeiros, que circulam à noite, segundo a crença popular. 15 “E nou mèt fè ronn péyi a ap mandé moun sa VODOU yé, sa yo rélé VODOU. Sé pa kouayans, sé pa tout kalité sérémoni, sé pa tout kalité manjé loua, sé pa tout kozé ougan, bòkò, lésin, lémò,lézanj, marasa, bizango, makanda, chanpouèl. VODOU sé you dans loua. Gin lè sé sans sa a nou jouinn nan bouch mas pèp la”. Iv Déjan, Mo “vodou” a an kréyòl, Sèl, ano 6, n. 41, p. 32, out. 1978. 13 64 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 universal, e há muitas religiões no Haiti, particularmente no sul, onde a palavra é pouco conhecida.16 De fato, no norte do Haiti fala-se bem mais dos zanj (anjos) do que de lwa (espíritos). Do vodu fala-se em uma língua outra, diferente da utilizada na religião popular. Sabe-se, além disso, com que vontade fala-se com frequência do vodu, quer seja para denegrir, quer seja para reabilitar. Às vezes surpreendemo-nos ao ver pesquisadores, tais como Wade Davis17, afirmarem ter recebido confidências de membros de sociedades secretas e recusarem-se a desvendar o conteúdo, sem com isso impedirem-se de tecer julgamentos favoráveis ao papel e ao funcionamento dessas sociedades. Do oral ao escrito, do vodu vivido ao vodu narrado, há uma distância sobre a qual deveríamos nos interrogar. Se dessa escrita do vodu tentarmos passar à sua realidade vivida, não poderemos nos impedir de pensar em outra forma de distância. Antes do estabelecimento do estado nação e sua responsabilidade pelos serviços das escolas e dos hospitais, era à prática religiosa que incumbia fornecer esses serviços à população. A religião deveria fazer viver e esperar, logo ensinar, cuidar e fornecer razões e regras de vida. Mas quando pensamos, muitas vezes fazemos a elipse do percurso que nos conduziu até onde estamos. Resulta daí que subestimamos o tempo, os esforços, as condições e as circunstâncias que permitiram chegarmos ao pensamento presente. Esquecemos a distância que separa nossa capacidade de pensar daquela de realizar nossos pensamentos. Além do mais, o olhar do outro pode esclarecer as coisas ao ponto de nos fazer vê-las como ele as vê, e nos impedir de vê-las como verdadeiramente elas são. Isso leva a nos interrogarmos não mais apenas sobre a relação do vodu com a escrita, mas também com a epistemologia e com a política. “The religion of the Haitian people does not consist of a single uniform theology. On the contrary, what anthropologists have loosely termed Vodoun, or vodoun religion, is actually a collection of diverse rites that ultimately trace their origins to different parts of Africa….The peasants themselves do not call their religion vodoun. […] Vodoun, from their point of view, refers to a specific event – a dance ritual during which the spirits arrive to mount and possess the believer. Yet even this concept is not universal, and there are many regions in Haiti, particularly in the south, where the word is hardly recognized”. DAVIS, Wade, Passage of darkness, Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 1988, p. 273. 16 17 DAVIS, op. cit., p. 243. 65 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A não fixação da doutrina voduesca está ligada à sua oralidade, mas também ao seu caráter de religião iniciática. Louis-Vincent Thomas pensa que se trata de um traço da cultura dos africanos: Os próprios autóctones, em sua imensa maioria, não sabem ou não sabem mais o porquê de continuarem a viver. Em primeiro lugar isso não tem a ver com a evolução contemporânea nem com o desagrado progressivo dos jovens em relação às tradições ancestrais. Mas tem principalmente relação com a concepção africana do saber que sempre é da ordem da iniciação e então do segredo. Ora, os grandes iniciados nunca foram muito numerosos e, com o tempo, seu número e sua importância só podem decrescer. Apesar disso, são eles os únicos detentores do conhecimento profundo, e é em sua porta que é preciso bater”.18 Se na concepção africana do poder, saber e segredo estavam ligados, conforme afirma Louis-Vincent Thomas, teríamos então aí a dimensão epistemológica e política do vodu a respeito da qual deveríamos nos interrogar, tanto pelas próprias crenças voduescas, quanto por sua influência nos costumes haitianos. Em nossos dias podemos dizer que a transparência é exigida de qualquer poder: religioso ou político. É o que o escrito garante: todos podem referir-se a ele. A palavra que se transmite de boca a boca comporta um princípio de seleção, para não dizer oposição, uma vez que o segredo só se justifica contra um adversário. Mas isso desencadeia uma consequência inesperada. Como podemos ser missionários, distribuir a boa palavra se ela deve permanecer secreta? Uma religião de iniciados é uma religião de resistência, de oposição, de combate. Ela não pode consequentemente aceitar a adesão senão em caso de urgência. Era o que acontecia na época colonial, quando era necessário combater o Outro, com toda a urgência. Após a independência, quando o sentimento de urgência diminuiu porque não era necessário combater o Outro, e quando o irmão inimigo parecia menos ameaçador porque possuía nossas mesmas armas, pode-se compreender que o vodu tenha sido menos revolucionário. Forte contra os dominadores estrangeiros, ele revelou-se fraco contra os dominadores nacionais. De Toussaint Louverture até nossos dias, permaneceu sem força porque sem união ante o poder político haitiano que o colocava fora da lei. 18 THOMAS, op. cit. 66 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Sem dúvida, não se chegou a eliminá-lo, mas é bem possível que os mesmos dirigentes que o colocavam fora da lei estivessem, de fato, mais interessados em manipulá-lo do que em destruílo. Em relação a isto, a conduta de François Duvalier é esclarecedora. Enquanto durante sua campanha eleitoral ele naturalmente deixava acreditarem que era um voduísta que chegara ao poder, jamais permitiu o reconhecimento oficial à religião popular. Sobre sua escrivaninha, entretanto, ele deixava ostensivamente espalhada uma foto de Paulo VI, pois, sendo o chefe de uma instituição cuja força poderia ser mobilizada contra Duvalier, este tomava precauções. Em contrapartida, os sacerdotes que não estavam unidos em uma Igreja nem em uma única doutrina, não tinham capacidade de mobilização contra ele. Podiam apenas resistir, sobreviver, deixandose manipular. O que demonstra o realismo do ditado popular que afirma: “konplò pi fò pase wanga”19. Arma contra os outros, mas não necessariamente entre nós, o vodu, indiretamente pelo segredo, diretamente pela fluidez doutrinal, não se apresenta como arma absoluta, aquela que poderia vencer todas as dificuldades e que todo o mundo, sem exceção, procura. Pode-se compreender que onde o vodu apresenta as respostas mais satisfatórias é no terreno das artes. Aqui a estética é ética, pois o belo é valor, tanto para julgar quanto para desfrutar, valor teórico e prático, suscetível de guiar tanto nossas ideias quanto nossos comportamentos, de educar cada um e de nos reunir todos, logo valor de equilibro e de harmonia. Isso explica o sucesso universal do vodu, o poder de sedução que exerce sobre uns e outros. Parece que através da sua arte, os artistas, de todas as origens, conseguem comunicar a beleza dessa ideia-força da cultura africana, esse valor ao mesmo tempo estético e ético que o cronista da exposição Sacred arts of Haitian vodou, chamava de “a energia fascinante e devota”. Miles runs the voodoo down: estética e ética do vodu 19 Deve-se temer muito mais as manobras dos conspiradores do que as dos feiticeiros. 67 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O célebre jazzista Miles Davis compôs um dia uma peça que intitulou: Miles runs the voodoo down. Este título ilustra bem o sentido conferido pelos artistas à palavra vodu e remete também à estética na mesma medida que à ética. Lembremos em primeiro lugar a definição para o haitiano que apresentava Price-Mars em Ainsi parla l’oncle: Um povo que canta e que sofre, que pena e que ri, um povo que ri, dança e se resigna. Do nascimento à morte, a música está associada à toda sua vida. Ele canta com a alegria no coração ou com lágrimas nos olhos. Canta no furor dos combates, sob a saraivada das balas e na confusão das baionetas. Canta a apoteose das vitórias e o horror das derrotas. Canta o esforço muscular e o repouso após a empreitada, o otimismo inextirpável e a obscura intuição de que nem a injustiça, nem o sofrimento são eternos; e, além disso, nada é desesperador, pois “o bom Deus bom” canta sempre, canta sem cessar. Se acreditamos no Tio (Oncle), é então plenamente justificado procurar uma ética nos cantos do vodu, conforme acaba de fazer Kesner Castor em seu livro sobre a Éthique vaudou (L’Harmattan, 1999), mesmo que eu acredite que essa ética também se encontra nos provérbios, nos aforismos, nos contos, e talvez, antes de tudo, no exemplo, no modelo de vida que oferecem certos voduístas (Karen McCarthy Brown, Mama Lola, 1991). Em sua pesquisa a respeito da significação que os falantes haitianos dão à palavra vodu, Yves Déjean cita o exemplo de contos nos quais é utilizada. Seria surpreendente que a ética do vodu não se impregnasse dessas histórias em que alguns episódios são manifestos testemunhos de um maravilhoso inspirado no vodu. Mas podemos, sobretudo, considerar que, em uma civilização oral, o valor de exemplo das letras de uma canção é aumentado. As ideias não são simplesmente ditas, são cantadas e então a beleza da performance serve de modelo, mais convincente ainda porque o fazer apoia, reforça e ilustra o dizer. Não nos contentamos em dizer, convidamos a fazer, e quanto mais forte o exemplo proposto seduz, agrada, suscita a admiração, mais nos envolvemos. A beleza é poderoso estimulante para convencer do verdadeiro e do bem, e um encorajamento a repeti-lo. Na zona do Caribe foi observado que as instituições mais duradouras (Orchestre septentrional, La Sonora Matancera) e as personalidades cujo sucesso se manteve por mais tempo (Celia Cruz, Mighty 68 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Sparrow) são cantore(a)s. Isso deve ter relação com o contexto oral e com o prestígio que confere o canto e a música. Não nos enganemos então, se o haitiano canta dessa maneira; talvez seja porque ele é eminentemente mais músico do que devido a sua civilização oral. O que nos leva diretamente à seguinte definição do vodu: “Uma religião cantada e dançada”. Isso não quer dizer que há cantos e danças nas cerimônias do vodu, mas, enquanto pensamento, ele também é performance. Dito de outra maneira, não sendo religião do Livro, mas da oralidade, o vodu não separa da forma artística a reflexão e sua expressão pela letra. Ela até mesmo prolonga a tradução desse pensamento em ato por meio de uma prática, a dança, para desembocar finalmente no transe que metamorfoseia o criseur em sua crença, em seu sonho e sua esperança. Há então um continuum de valores e atos, de dizer e fazer, um ensino que se faz fazendo dizer, fazer e viver. As notícias que nos vêm da República Popular da China nos informam que o presidente desse país tem prazer em publicar as caligrafias no jornal Le Quotidien du Peuple. Ele perpetua assim um antigo ideal estético chinês que fazia do mandarim um funcionário e ao mesmo tempo um artista, quer dizer, um poeta, um sábio, um calígrafo e um gravurista. Em suma, ele era músico, sendo poeta, desenhista, sendo calígrafo, pensador, e então sábio, e, finalmente, escultor, ao gravar. Tal ideal de artista completo podemos encontrar na pessoa do griot africano ou do contador caribenho. Orador, cantor, ator e mímico, o griot ou o contador não poderiam se encarnar no escritor negro-africano a não ser que este tomasse suas precauções com relação ao seu modelo ocidental. No Ocidente, o escritor não precisa escrever, uma vez que tem máquinas para fazê-lo, máquinas que vão da caneta-tinteiro ao computador. Precisa apenas pensar, emitir sinais mais ou menos abstratos e a máquina se encarregará de reproduzi-los em caracteres decifráveis. Talvez ele seja ainda artista, mas cada vez menos artesão, e não, em absoluto, um performeur. Alguns artistas se refugiam cada vez mais no anonimato, ou reduzem sua escrita à expressão de um silêncio. 69 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Divórcio entre estética e técnica, separação do artista e do artesão, temos aí a ilustração da distância que separa o pré-moderno do pós-moderno. A arte haitiana e aquelas que lhe são aparentadas (caribenha, latino-americana, afro-americana, negro-africana), caracterizam-se por esse entrelaçamento da palavra e do gesto, do oral e do escrito, da estética e do prático, logo, do ético e do estético. Em todo caso podemos, a partir dessas premissas, seguir os traços da influência do vodu nas artes do Haiti e da Afro-América. Se o vodu é canto e dança, logo letra e música, ritmo e gestos, os dois domínios da música e da literatura carregam as marcas indeléveis desses caracteres voduescos ao mesmo tempo em que a letra sairia do canto para o discurso, e a música, da dança para o concerto. Normalmente um lwa desce do céu, segundo seu desejo, para cavalgar o criseur voduísta. Se alguém, como sugere o título da peça musical de Miles Davis, runs the voodoo down, faz baixar o espírito, obriga o lwa a cavalgá-lo, isso significaria que ele pode submetê-lo à sua vontade e não, como a metáfora do cavalo nos sugere, ser a ele submetido. Seria, como em outra linguagem mitológica, forçar as Musas a nos inspirar. Trata-se, obviamente, de uma figura de estilo. Mas a palavra vodu, como metáfora, nos revela a visão do mundo e a estética, comuns aos artistas de ascendência negro-africana. Falou-se da filosofia africana como de uma filosofia da força vital. A palavra vodu, na boca de Miles Davis, simboliza essa força vital, essa energia que nos faz viver artisticamente, da qual o músico afirma ter se servido e submetido à sua vontade. É, também, a metáfora do ideal artístico que o jazzista se glorifica em alcançar. Ora, percebemos que Césaire, ainda com maior precisão, do ponto de vista da teologia do vodu, exprime a mesma visão de Miles Davis em seu poema “Marronner”, dirigido a René Depestre, quando diz: “o sangue é um vodu poderoso”. E é essa mesma metáfora do sangue que encontramos na pena de Senghor em seu poema “Para Nova Iorque”: 70 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Eis o tempo dos sinais e das contas Nova Iorque! Ora, eis o tempo. Tem-se que ouvir apenas os trombones de Deus, teu coração bater ao ritmo do sangue, teu sangue. [...] Escuta bater teu coração noturno ao longe, ritmo e sangue do tam tam, tam tam, sangue e tam tam. [...] Nova Iorque! Digo Nova Iorque, deixa afluir o sangue negro em teu sangue. O sangue, uma das traduções possíveis da palavra vodu, em fon, é a força vital, a energia que nos faz viver. Antes de tomar o sentido de religião, no sentido institucional que se dá a essa palavra no vocabulário moderno, designava os espíritos, o que em crioulo haitiano chama-se lwa ou zany. Esta força vital que o crítico Holland Holler, em seu artigo do New York Times, caracteriza como “energia fascinante e devota do vodu”, podemos traduzir por sangue em dois modos: objetivo e subjetivo. Primeiro, no título da peça de Miles Davis, Miles runs the voodoo down, a palavra vodu designa a linha do horizonte, a barra em que se fixa o saltador, a altura da façanha, performance e realização que é preciso alcançar. Pois, se forçamos os espíritos a descerem até nós, abaixamo-los enquanto nos elevamos. Poder-se-ia quase falar de substituição de pessoas, o que confere à metáfora uma cor prometeica e revela ao mesmo tempo até que ponto ela é testemunha de uma transculturação e de um sincretismo euroafricano. Mas se o jazzista estadunidense falava subjetivamente do que podia fazer, o poeta martinicano por sua vez fala, objetivamente, daquilo graças ao que consegue fazê-lo. Da mesma forma o poeta senegalês. O sangue que circula em nosso corpo, que faz a cabeça pensar e os pés dançarem, leva as mãos a tocarem e os olhos a verem, permite à obra ser escrita/oral/visual/táctil. Pela correspondência das artes, a plenitude da performance que liga todas as artes torna-se possível: a palavra, a dança, o pensamento e a mímica, como acontece com o griot ou o contador. 71 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Viver, debater-se, lutar, resistir, não abandonar (kenbe rèd), é participar de um jogo de forças. Estamos no domínio da estética, mas também da dinâmica, da prática, e então da ética. Eis por que não é muito grave que o vodu, em sua faceta pós-moderna, tenha passado da religião à arte e espetáculo, ao divertimento e ao comércio. O essencial é que na casa dos espíritos tornada teatro ou loja tenha o mesmo investimento de energia, a mesma atividade, o mesmo entrecruzamento de força vital que testemunha a vida que pulsa, que não se apaga, que se metamorfoseia, mas não muda nem desaparece. O haitiano que foi ver a exposição Sacred arts of Haitian vodou no Museu Americano de História Natural, não pode dela sair o mesmo que nela entrou. De uma religião guetoizada, pobre e desprezada, quando sai é com a visão de uma fé que pode receber a iluminação de sua força, a qual, no plano da arte, da beleza, não se mede pela sua verdade, mas pela sua vivacidade. Os primeiros cristãos talvez ficassem surpresos se visitassem nossas catedrais ao verem a magnificência desses lugares e a homenagem prestada aos santos dos quais se aproximavam nas catacumbas. Há luzes que não se percebem com os olhos do corpo, mas com aqueles do coração. Forçando-nos a sair do país e dos altares nativos para fazer a volta com guias estrangeiros, a emigração, para não dizer a condição pós-moderna, nos força a revisitar com novos olhos o país e seus altares. Assim como essa revisita ao altar vodu, nossos escritores em suas obras, desde La famille des Pitite-Caille, de Lhérisson, Gouverneurs de la rosée, de Roumain, Dezafi, de Frankétienne até Zombi blues e Bizango, de Péan, não cessam de revisitar nossos mitos e lendas, de avaliar o peso das palavras de nossas tradições populares. Este trabalho anba chal (feito em segredo), diriam alguns, essas transformações silenciosas, pensarão outros, efetuam a metamorfose de nosso universo fictício, e preparam aquele de nossa realidade. 72 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Literatura e oralidade no Haiti A poesia em Crioulo de Georges Castera Profa. Dra. Normelia M Parise (FURG)1 Resumo: Neste artigo propomos uma abordagem da relação entre oralidade e literatura no Haiti, focalizando a produção poética em Crioulo de Georges Castera. Procuramos, primeiramente, situar o contexto histórico no qual surge o interesse pelo folclore no Brasil e no Haiti, o dos anos 20, em relação à busca de uma expressão nacional em cultura e literatura. Sublinhamos neste processo a importância da etnografia. Em seguida, abordamos esta questão no Haiti, onde a relação entre oralidade e escrita se coloca em termos de oposição entre o Crioulo e o Francês, entre cultura haitiana e cultura francesa. Finalmente, propomos uma leitura da poesia em Crioulo de Georges Castera motivada pelo projeto de criar uma poesia moderna em Crioulo e de dar a esta língua um estatuto de escrita poética. Palavras-chave: Haiti - Literatura - Oralidade - Poesia - Crioulo Résumé: Dans cet article nous proposons une approche du rapport entre oralité et littérature en Haïti, focalisant la production poétique en Créole de Georges Castera. Nous cherchons d´abord à situer le contexte historique dans lequel surgit l´intérêt pour le folclore ou la culture populaire (orale) au Brésil et en Haïti, à savoir celui des années 20, en rapport avec la quête d´une expression nationale en culture et en littérature. Nous soulignons dans ce processus l´importance de l´ethnographie. Ensuite, nous abordons cette question en Haïti où le rapport entre oralité et écriture se pose en termes de l´opposition entre la langue Créole haïtienne et la langue française, entre la culture haïtienne et la culture française. Finalement nous proposons une lecture de la poésie en créole de Georges Castera motivée par le projet de créer une poésie moderne en Créole et de lui donner un statut d´écriture poétique. Mots clefs: Haïti - Littérature - Oralité - Poésie - Créole Pwezi se nan lavi sa sòti Pwezi se nan lari sa sòti (G.C.) [A poesia vem da vida / A poesia vem da rua] 1 Mestre em Estudos Francófonos e Doutora em Literatura comparada. Professora Adjunta da Universidade do Rio Grande (FURG). Email: normelia_parise@hotmail.com 73 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Neste artigo abordaremos a relação entre literatura e oralidade no Haiti, focando a produção poética de Georges Castera. Retomo aqui a comunicação Rencontre entre Macunaima et l´Oncle para situar a questão da oralidade no Haiti e a relação entre tradição oral (folclore) e literatura. E, em seguida, a comunicação Pour une poétique créole: poésie, oralité et modenité chez Georges Castera. No Brasil como no Haiti, a valorização da oralidade vincula-se à relação entre culturas e práticas orais, etnografia e formação da literatura nacional. Isso porque a valorização da oralidade nos estudos literários e nas ciências sociais, sobretudo nos países chamados pós-coloniais, coincide com os movimentos de constituição de uma cultura e de uma literatura nacionais nos anos 20, com os Modernismos, os Indigenismos e a Negritude nas Américas e no Caribe. Mário de Andrade e Jean Price-Mars são duas figuras importantes na constituição de uma sensibilidade, de um imaginário e um pensamento nacionais no Brasil e no Haiti, nos anos 20. Ambos basearam seus projetos nas formas e práticas orais, através de pesquisas etnográficas, com o intuito de combater o "bovarysme culturel" das elites. Mario de Andrade vincula-se ou é vinculado ao movimento Modernista e Antropofágico; Price-Mars ao PanAfricanismo, à Negritude (de Aimé Césaire, de Léopold Sédar Senghor et de Léon Gontran Damas) e ao Indigenismo haitiano cujo primeiro número da Revue Indigène aparece em 1928, mesmo ano de publicação de Macunaíma, de Ainsi parla l´Oncle e da Revista Antropofágica. O ano de 1928 nos parece, assim, emblemático na invenção ou reinvenção do povo e da nação na América latina e no Caribe. No momento em que, em Paris então capital cultural e literária, a Europa “se africaniza”; em que as “artes negras” passam a ocupar o centro da produção e da reflexão sobre a música, a pintura, a escultura, a literatura, nas Américas e no Caribe, a valorização do índio e do negro vincula-se a constituição de uma arte e de uma literatura nacionais. O Modernismo, a Antropofagia, o Indigenismo e a Negritude buscavam valorizar o índio e o negro e incorporar a cultura popular e a tradição oral à produção artística e literária. Haiti e Brasil se aproximam quando se trata da herança colonial escravagista e da herança africana. Nos anos 20, a Europa vive a guerra e o nazismo; o Haiti é ocupado pelos Estados 74 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Unidos desde 1915, e o Brasil, dominado pelas oligarquias e pelas estruturas oligárquicas, continua sua política de imigração de europeus e asiáticos com o intuito de ocupar territórios e branquear a população brasileira. Inicia também um processo de modernização, atrelado ao capital estrangeiro, e de unificação linguística e cultural através de implementação de um sistema de ensino nacional. Escritores e intelectuais, conectados com as vanguardas européias, iniciam uma viagem de descoberta do Brasil. Os românticos viajavam à Europa para de lá descobrir o Brasil; os modernistas, além do contato com as vanguardas européias, passaram a viajar pelo Brasil pra descobrir o Brasil. Mário de Andrade, que nunca viajou ao exterior, empreende nos anos 20, viagens ao Norte e ao Nordeste brasileiros, registradas em O Turista aprendiz, origem da narrativa Macunaíma, escrito logo após o retorno das viagens. A Semana de 22 e o movimento Antropofágico eclodem em um Estado e em uma cidade em efervescência artístico-cultural e literária. Em São Paulo, o Movimento modernista, buscava unir a floresta e a cidade, o civilizado e o primitivo, as vanguardas e a tradição oral. Mário de Andrade e Oswald de Andrade serão as figuras de proa deste movimento, propondo um conceito singular e revolucionário para pensar os processos políticos, sociais e culturais no Brasil: o conceito de antropofagia. Este buscava se opor ao “bovarismo cultural” das elites de que falava Jean Price-Mars ao referir-se à elite haitiana. Mas também ao nacionalismo “verde e amarelo” presente na política e na arte, que flertava com o fascismo e o nazismo. Do ponto de vista epistemológico, as ciências sociais estão dominadas pelo positivismo, pelo evolucionismo e pelo racismo. O movimento modernista, que buscava unir Brasil e Europa, é seguido por um movimento que voltava o olhar as realidades regionais e rurais com o romance de 30. E o mesmo acontece no Haiti onde o movimento Indigenista de viés modernisante, sobretudo na poesia, é seguido pelo roman paysan que se volta à vida do homem e da vida rural. O Haiti, nos anos 20, vive a “Ocupação americana”. Fato que faz emergir um movimento de resistência e um forte sentimento nacionalista. É neste contexto que Price-Mars publica La vocation de l´élite, em 1919, e Ainsi parla l´Oncle em 1928, compilação de conferências ou 75 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 ensaios de etnografia proferidas no exterior. Nesta obra de natureza científica e política, PriceMars acusa a elite de racismo e de “bovarismo cultural”, lhe responsabiliza pelo profundo abismo econômico, social e cultural entre as elites e o povo, o que produziu uma sociedade dividida. A negação da cultura haitiana, com a diabolização da religião Vodu e a proibição nas escolas da língua Crioulo, produziu um país com duas representações: francesa e crioula, de matriz europeia e de matriz africana, católica e praticante do vodu, letrada e oral (analfabeta), considerando-se que a grande maioria da população haitiana é, até nossos dias analfabeta; a fala e a escrita em francês sendo restrita a uma minoria. Neste sentido, pode-se dizer que o Haiti sempre viveu uma situação de diglossia e de tensões e negociações entre a língua do colonizador e a língua do povo, entre o francês e o crioulo. As palavras de Ainsi parla l´Oncle pontuam a irrupção na cena intelectual e política do povo haitiano, o início de uma valorização do Vodu e da cultura popular, o início de uma produção literária “indigenista” voltada à realidade social e ao imaginário do chamado Pays en dehors (o país de fora). O objetivo de L´Oncle era o de "étudier la valeur du folklore haïtien" sob a forma de conferências de vulgarização, de fazer um estudo científico com o objetivo de "relever aux yeux du peuple haïtien la valeur de son folk-lore et d'intégrer la pensée populaire haïtienne dans la discipline de l'ethnographie traditionnelle" (Avant-propos d´Ansi parla l´Oncle, 2009) Price-Mars desejava submeter o pensamento popular haitiano a um trabalho científico cujos parâmetros eram os da etnografia tradicional fundada na oposição entre dois sistemas: o da oralidade e o da escrita. O trabalho do etnólogo seria o de integrar a oralidade à escrita, o mito à ciência, a superstição à razão, o “pensamento primitivo” ao “pensamento civilizado”. Afirma a necessidade de passar as crenças populares ao crivo do estudo científico com a incorporação da tradição oral à escrita e ao discurso científico; a história não escrita à história escrita através de um personagem da tradição oral. O título Ainsi parla l´Oncle nos remete aos Contes de Bouki et Malice. Sempre juntos, o primeiro representando a estupidez o segundo a astúcia. Podemos dizer que Malice é um irmão distante de Macunaíma, tipo de personagem trickster da tradição oral caracterizando-se pela malícia, pela astúcia, pela esperteza. Observamos que Price-Mars procura valorizar Bouki, ao 76 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 contrário de Mário, que faz do personagem trickster o herói do nosso povo. A intenção de PriceMars parece ser a de valorizar o que representa o Oncle Bouki, le nèg bossal (paysan), em oposição à Malice, le nèg créole. No Haiti, era chamado de nèg bossal o haitiano nascido na África, e de nèg créole o nascido na colônia de Saint-Domingue (Haiti). Para Price-Mars, Bouqui Malice são representantes de nos doléances, de nos amertumes et de nos habitudes d´assimilation (Idem:20). A valorização de Bouki representaria a valorização da cultura bossale/africana no Haiti. Assim, a primeira parte de sua obra apresenta uma defesa e ilustração do folclore haitiano e a segunda um estudo comparado do vodu e da África. L´Oncle não ignorava que a valorização da “cultura haitiana” deveria passar pela reabilitação da África. Para entendermos o projeto de PriceMars, precisamos entender o contexto de sua obra: o aprofundamento do racismo com a Ocupação e a consciência do fosso existente entre "as massas camponesas" e as elites compradoras. O pays en dehors (o país de fora) passa, então, a ser objeto de um saber e de uma cultura. Citanto Paul Sébillot, Price-Mars considera o folclore como a história não escrita de um povo, a alma do povo, a exteriorização do eu coletivo no qual se encontra os materiais de sua unidade espiritual. Ela deveria ser a matéria prima da construção da expressão da identidade nacional. Havia a necessidade de se inventar uma tradição, uma história, uma cultura incorporando a tradição popular à escrita. Neste sentido, no trabalho do etnógrafo o gesto que faz da tradição vivida um objeto de estudo seria indissociável do destino da escrita. (cf. Michel de Certeau, L'écriture de l'histoire). O folclorista acabaria por assumir o papel de mitólogo e de historiador. Macunaíma de Mário de Andrade nos parece exemplar da criação, através das lendas, de uma nova mitologia: da formação do brasileiro, pois que se trata de uma espécia de paródia do romance picaresco de formação. Para o autor, o personagem que encontrou na tradição oral passou a ser um sintoma de um povo em formação. Um herói sem caráter no sentido de múltiplo, diverso, um amalgama heteróclito, um Arlequim. Macunaíma é Mário e Mário é Macunaíma de modo que em suas viagens vão tomando a forma de um personagem/autor “crivado de raças”. Nesta “história” de Mário de Andrade a escrita literária se alimenta de lendas e contos, resultando em uma “escrita oralizada” ou “crioulizada” com as línguas indígenas e africanas, ao mesmo tempo em que as tradições e línguas orais são incorporadas à escrita. 77 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Quanto ao escritor haitiano, este se viu sempre confrontado a dois sistemas: da língua Crioulo e da língua Francesa, da cultura haitiana e da cultura francesa, enfim, da oralidade e da escrita. A oposição entre oralidade (crioulo) e escrita (francesa) construindo-se num jogo de oposições entre natureza e cultura, corpo e espírito, fábula e arquivo, mito e história; emoção e razão, primitivo e civilizado. E é neste contexto que a literatura haitiana se desenvolverá e que os escritores desenvolverão seus talentos e imaginários. Tendo que lidar com a oralidade do crioulo e a escrita do francês, com a cultura popular e a cultura de elite, o escritor haitiano teve que se confrontar com as armadilhas do folclorismo, do exotismo e do populismo, em um país onde coexistem duas realidades socioculturais e linguísticas diferentes e em oposição, embora em constante negociações produtoras de um “crioulo afrancesado” e/ou de um “francês crioulizado”. Assim, no Haiti, quando falamos de oralidade, falamos da língua Crioula, por oposição à língua da escrita, a Francesa. Face a essa situação linguística e cultural, o escritor haitiano desenvolveria o que Lise Gauvin chamou de surconscience linguistique, quer dizer uma consciência aguda da língua como espaço de reflexão, de criação, de engajamento, como um “laboratoire des potentialités”. Para Gauvin, referindo-se aos escritores francófonos, “écrire devient um véritable acte de langage”, pois o escritor é forçado a pensar a língua. Em Pour une poétique créole: poésie, oralité et modenité chez Georges Castera, busquei investigar o projeto do poeta haitiano Georges Castera de dar ao crioulo um estatuto de língua poética escrita, produzindo uma poesia crioula, como existe uma poesia francesa, uma poesia brasileira, etc. Seu objetivo portanto é o de passar de uma língua oral (o Crioulo) a uma língua escrita (o Crioulo). Para o poeta « la littérature créole est un choix conscient : écrire en créole s´est se donner des armes pour lutter». E ainda, o poeta que escolhe escrever em Crioulo se transforma necessariamente « en polémiste, en critique littéraire, en défenseur de la langue et de son orthographe ». (Notre Librairie, n° 133, p. 96-101) A obra poética de Georges Castera, composta de poemas em crioulo e em francês, oferece um campo privilegiado de estudo das relações entre oralidade e escrita poética. Em nosso argumento, a metapoesia seria um dos traços da surconscience linguistique da qual testemunha sua poesia em Crioulo. No gesto inaugural de sua poesia em língua Crioulo encontra-se a 78 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 questão: Como fazer poesia em uma língua que não tem tradição escrita e na qual, segundo o poeta, não existiria o gênero “poesia lírica” no sentido da tradição ocidental? A essa questão, acrescenta-se outra: Como fazer poesia e não prosa poética? Como « faire sortir la poésie haïtienne de la narrativité du conte qui a nourri le roman haïtien et le récit poétique créole ». (Notre Librairie, n°133 : 96). Quando em 1976 publica Konbèlan, Castera dá início ao seu projeto, o de dar a língua haitiana oral um estatuto de língua escrita, seu trabalho poético sendo motivado pelo desejo de muní-la de uma escrita poética. Trabalho que procura ir além das práticas literárias de crioulização da língua francesa presentes no Caribe francófono, para dar ao Crioulo um estatuto de língua poética escrita. E mais, de uma língua poética moderna. Castera afirma, em entrevistas, que « Il faut laisser le conte aux romanciers et aux conteurs et la poésie aux poètes » (Idem, p.97). A narratividade da tradição poética haitiana viria da oralidade da língua Crioulo, contrariamente à francesa ligada a uma longa tradição literária escrita. A nosso ver, a metapoesia seria assim uma estratégia para atrair a atenção sobre o escrito pela temática da escrita. O recurso a poemas gráficos, influência das vanguardas, teria sido uma forma de espacializar o poema. A metapoesia seria uma estratégia de privilegiar a palavra e não o discurso ou a voz que narra. Ela permitiria também a inscrição do poema no cotidiano, no presente da escrita. Para Castera, a ausência do gênero poesia lírica, na perspectiva ocidental, na língua Crioulo deixaria aos poetas a liberdade de criá-la. Neste sentido, a tradição oral (canto, canções, provérbios, etc) seria o ponto de partida para um estudo de uma língua poética crioula. A recusa da narratividade, poto mitan da tradição oral haitiana, o leva a uma poética da experimentação pela via do Crioulo falado nas ruas, em constante movência, e das vanguardas poéticas. O poeta tira proveito de um aspecto da língua crioula, a catacrese, figura de linguagem que consiste em desviar a palavra de seu sentido próprio alargando sua significação ; espécie de metáfora incorporada à língua cotidiana. Neste procedimento, a palavra se liga à coisa concreta. Entre o significante e o significado há uma relação imagética. Poderíamos dizer que se trata de um traço da língua crioula. Mas, não seria a catacrese o traço de todas as línguas orais ? Um outro procedimento de que se serve o poeta na construção rítmica do poema é a anáfora. A repetição 79 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que leva a um movimento encantatório do poema e à transe. Citando Zumthor, a palavra poética é circularidade e função encantatória da linguagem. O poema Tanbou é um belo exemplo da poética crioula de Castera. Nele a escrita poética constrói-se sobre o ritmo e os sons do tambor. Ele nos remete a Paul Zumthor quando este afirma que o tambor é fonte e modelo mítico dos discursos humanos, considerando-o como uma das linguagens da « poesia vocal »; a percussão constituindo estruturalmente uma linguagem poética. Nos anos 20, a música negra americana (do Norte e do Sul) “africanizava o mundo”. Surge uma poesia fortemente influenciada pela música de origem africana. Penso no poeta da Guiana Francesa, Léon Gontran Damas cuja escrita poética em Pigments e Névralgies é jazzeada, a exemplo dos poetas da Harlem Renaissance. É interessante observar que a relação entre oralidade e poesia nesta produção passa fortemente pela música. No caso das Américas, ela passa pelo tambor, pela percussão, pelo ritmo em detrimento da melodia. Mas, se considerarmos com Paul Zumthor que toda poesia quer ser voz através de procedimentos de ruptura do discurso como acumulações repetidas, paralelismos, manipulações sonoros com sequências fônicas não lexicais, aliterações, assonâncias... que estruturam o ritmo poético; que todo poeta é voz, phôné, por oposição ao logos e que Toute parole poétique c´est un événement qui se produit, une voix qui parle, energie sans figure, lieu fugace où la parole instable s´ancre dans la stabilité du corps (Zumthor, 1983:159) como falar de poesia oral em oposição a poesia escrita? Zumthor prefere falar de poesia vocal, articulada pela voz, dita, salmodiada ou cantada. Para ele, a oralidade é energeia : movimento, performance e mito. A poesia vocal compreende a palavra poética (o texto), a energia (a voz) e forma sonora (melodia). Ela é energeia e não logos pois se nutre do dinamismo vital da voz, da palavra e do corpo. Ela é mais próxima do teatro que da poesia escrita. Com isso, Zumthor chama à atenção aos limites das tendências que opõem de forma dual oralidade e escrita, sobretudo quando tratamos de poesia. Voltemos ao Haiti onde a poesia está em constante diálogo com a dramatização da palavra e com a música, e ao projeto de Castera que vai em um sentido inverso: dar ao Crioulo (fundamentalmente oral) o estatuto de língua (poética) escrita, livre dos imperativos do narrar e da narração, presentes, por exemplo, nos récits poétiques de Syto Cavé cuja obra permanece em 80 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 boa parte oral e fortemente influenciada pela tradição dos récits créoles, contados por Maurice Sixto. Georges Castera e Syto Cavé criaram juntos, em Nova York, um teatro em Crioulo nos anos 70, o Kuidor. Deste encontro surgem assim duas perspectivas em relação à escrita poética em Crioulo. Vejamos um trecho do poema Tanbou:. « Tanbou kreyòl » pwèm pou 2 podyòl ak 2 wòch Tanbou mache di sa-m pa ka pote ma kapote-l sa-m pa ka sa-m pa ka ma ka trakatap katap ka trakatap katap ka GOUDOU GOUDOU GOUDOU plop plop plop Gen tanbou se ak zo mò pou bat yo pou bri a sèk rèk Apre ou bat vant yo pou fè yo pale GOUDOU GOUDOU GOUDOU plop plop plop pou fè yo pale pou nèg isit nèg lòtbò sispann lage chèy pay anba sab lanmè trakatap katap ka 81 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 ma ka sa-m pa ka ma ka pote-l san-m pa kapote-l Tanbou-m bat la Tanbou-m bat la wa karese-l ak men ou wa karese-l ak kò-w Mo kreyòl yo se tanbou-m Tanbou m'bat la rèk Tanbou m'bat la sèk [...] Tanbou mache di sa-m pa kapote wa ka pote-l wa kapote-l si-m pa ka pote-l sa-m pa ka sa-m pa ka wa ka trakapap katap ka Neste poema, há primeiramente a personificação do tambor. Ele é gesto, ação (caminha, anda) e palavra (dizer). O poema traz o subtítulo “poema para duas bocas e duas pedras” articulando voz e gesto. É o grito de guerra, é a eclosão da revolta a que está associado o tambor no Haiti. O poeta joga com a expressão popular Sa´m paka pote mwen kapote´l (o que não posso carregar, rólo). Formalmente, acumulações repetidas, paralelismos, manipulações sonoras e rítmicas, aliterações e assonâncias, onomatopéias e ideofones, que diferentemente da onomatopéia, não reproduzem o som mas procuram criar um som, um sentimento, uma sensação, uma cor, um odor... Éu o caso de Bow! e Blengendeng bleng, título de dois livros de Castera Vemos na poesia de Castera, as influências das vanguardas, mas também de Rimbaud e de Aimé Césaire. Influências que se deixam entrever na liberdade dada às palavras, na utilização da página, nas imagens poéticas criadas, no lugar dado ao corpo/erotismo e à imaginação. No poema Tanbou as criações verbais e o jodo de repetições ressaltam as palavras, as colocam em 82 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 movimento no espaço-tempo do poema. A mimesis da palavra presente no que chamamos a presença na rua, do cotidiano em sua poesia, articula-se à temática do escrita, do corpo e da política. Tomemos 3 outros poemas do livro BOW! Leson Gramè, ekriven : Leson Gramè Nou menm, pwèt, se tou nòmal, Lè nou pa jwenn mo, Nou tete lang. Lan lang kreyòl, Tout vèb pa koupe Men koupe Se vèb kreyòl Ki pi dous Lalin fè chive´m pouse, Lapli mete´m sou sa. Sè tou nòmal, Lakay mwen, Vèb kanpe Derefize chita. M´ekri… M´ekri, Lank 83 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 M´ekri nan tout sans. M´ekri, m´ekri, m´de-ekri M´ekri kout, m´ekri long, M´ekri bourade, m´ekri malelve, M´ekri an zeng de zong, M´ekri a zong, ak je, Ak zorèy pou´m delibere Tout mo dan sere, Pou fè yo danse kole, M´ekri ak van, Ak lari ki monte desann. M´ekri, m´ekri, Lè´m fin ekri, m´ekri ankò. Depi vè lanp mete fè nwa Anba kle Vle pa vle, Fèy paye, men pa´w ! Lank ekriven M´al chèche Imaj on imaj Jouk nan zo lank M´tombe nan lari, 84 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Lari ba´m tete. Tout souse m´souse, M´souse lank Ekri s´on metye dwòl ! Gen de pafwa Se zo pa´m menm, M´ap souse - zo men´m – Pou´m jwenn 2,3 mo Nan pwent plim mwen Andedan 2, 3 gout lank. Nestes 3 metapoemas, a escritura é tematizana no jogo de metarmofoses entre o corpo e a escrita. Em Leson Gramè é a língua (o sistema e o órgão) que nutre e que é fonte de criação. Em Lank ekriven, é a rua e o corpo do poeta que tornam-se fontes de criação pela assimilação entre osso e caneta, entre tinta e leite. Do procedimento que consiste em chamar a atenção ao significante, em jogar com as palavras de duplo sentido como koupe et kanpe, resulta um acoplamento de palavras donde jorra uma outra temática na poesia de Castera, a do erotismo. Não se trata do erotismo da palavra mas do corpo-palavra que o eu lírico jwenn nan pwent plim [encontra na ponta da caneta/pena], ki li tete nan lari a [que ele mama na rua], ki li souse nan zo lank, nan zo men´l.[que ele chupa nos ossos da tinta, nos ossos de sua mão] Em M´ekri o recurso à anáfora produz um movimento violente que conduz à um climax no qual o ato de escrever é colocado em evidência e no qual a escrita mimetiza o gozo. A 85 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 experimentação linguistica procura « découvrir les subtilités cachées » da língua Crioulo e inventar palavras, criar imagens, incorporar advérbios que permitam fazer uma poesia crítica do cotidiano e de inscrever o político no questionamento do próprio texto. A poética crioula de Castera situa-se entre a prosa e a poesia lírica. Despojada de eloquência, de ímpetos líricos ou ainda dramáticos, trata-se de uma poética do movimento e em movimento na qual o jogo constitue a mola mestra. Entretanto, não se trata de um simples jogo de palavras, gratuito pois que se alimenta da língua viva do cotidiano. Observamos na poesia de Castera o diálogo constante entre a palavra performatizada/teatralizada através da teatralização da palavra e da presença do corpo próprios a uma cultura ainda marcada pela oralidade. Mas, diferentemente de Syto Cavé, cuja poesia é influenciada pela tradição do tire kont [dos contadores de histórias), Castera explora as potencialidades do Crioulo para criar uma poesia moderna. Neste artigo, tratamos, de forma breve, da importância de Jean Price-Mars no impulso de uma criação literária que buscasse expressar o mundo rural e a cultura popular, como é o caso do roman paysan nos anos 30 e 40. Para, em seguida, abordarmos a relação entre oralidade e criação poética na literatura haitiana contemporânea. Portanto, não podemos deixar de nos referir aos movimentos da Ronde e da Jeune Haïti, anteriores à Jean Price-Mars, e, em especial, às obras romanescas La famille des pitite-caille e Zoune chez sa ninaine, de Justin Lhérisson, publicadas em 1906. Nestas duas narrativas Lhérisson se serve de uma forma típica da oralidade haitiana, l´audience (reunião à noite na qual um narrador conta uma história a uma audiência), incorporando de forma original e criativa, o Crioulo à escrita romanesca. Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o Héroi sem Nenhum Caráter. Edição coordenada por Telê Porto Ancona sob os auspícios da UNESCO, 1988.3. ______ . O Turista aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 198. BERARDINELLI, Alfonso. Da Poesia à Prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 86 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 CERTEAU. Michel de. L´Ecriture de l´histoire. Paris: Gallimard, 1975. CASTERA, Georges. Bow ! Montréal : Mémoire d´Encrier, 2007. ______. Blengendeng bleng ! Port-au-Prince: Presses Nationales d´Haïti, 2005, coll L´Intemporel. ______. L´encre est ma demeure. France : Actes Sud, 2006. CASTERA, Georges. Sous le voile déchiré. Présentation à la revue Conjonction, n°193, p. 9-14. 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Palavras-chave: Mémoires de porc-épic; Alain Mabanckou; identidade; oralidade; pós-colonialismo; escritores africanos. Résumé: Dans cet article nous visons à analyser comment la question de l’identité apparaît chez Mémoires de porcépic, de l’écrivain congolais Alain Mabanckou. Pour cela, nous commençons par contextualiser les auteurs francophones de la deuxième génération post-coloniale et, par la suite, nous examinons les principales caractéristiques de Mabanckou. Pour finir, nous analysons l’oeuvre en question en faisant attention à la narrative et aux traits stylistiques qui collaborent à la discussion sur l’identité dans le contexte post-colonial africain. Mots-clés: Mémoires de porc-épic; Alain Mabanckou; identité; oralité; post-colonialisme; écrivains africains. 1 Mestranda do programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail: paula.souza.dias@gmail.com . 89 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 I. INTRODUÇÃO: IDENTIDADE E ESCRITA Neste artigo nos propusemos a examinar como a questão da identidade é trabalhada no livro Mémoires de porc-épic, do escritor congolês Alain Mabanckou. Para compreender o modo como essa questão aparece em Mabanckou é importante, primeiramente, assinalar que o autor faz parte do grupo de escritores francófonos da segunda geração pós-colonial africana, a qual tende a refletir de maneira crítica sobre seu passado e herança, trazendo à tona a discussão sobre identidade. Bastante comum entre esses autores é o uso de novas estratégias de escrita e de temas marginais, tais como o exílio, a imigração, a sexualidade, a loucura e o processo de escrita. Para o Ocidente, o conjunto de países e culturas africanas faz parte de um mesmo todo, são todos iguais, pertencentes à margem, ao subdesenvolvimento, à periferia, ao “outro”. Uma identidade africana hegemônica foi, assim, criada e incorporada ao longo dos anos, fazendo com que a diversidade de cada cultura não fosse levada em conta. Na tentativa de resgatar um pouco dessas diferentes culturas, essa nova geração procura desconstruir o imaginário africano criado a partir dessa visão ocidental e globalizada e reconstruir a identidade de cada povo de forma multifacetada, mostrando aquilo que ficou silenciado durante os anos do colonialismo. Vale lembrar que eles não apenas buscam reconstruir essas identidades como também recriá-las, reescrevê-las, já que a identidade cultural “não é uma origem fixa em direção à qual poderíamos, de maneira absoluta e definitiva, retornar. [...] Ela é sempre construída através da narrativa, do mito, da memória e da imaginação”2 (HALL, 2008, p. 315). Em 2007, com o intuito de se libertar cada vez mais do passado colonizador e de se reconhecer com independência, 43 escritores assinam um manifesto a favor da “littérature-monde en français”. Nesse manifesto eles defendem a ideia de que a literatura francófona, presente em cinco continentes, não deve mais ser vista como dependente da literatura francesa, mas sim o No original : “n’est pas une origine fixe vers laquelle nous pourrions faire, de manière absolue et définitive, retour. [...] Elle est toujours construite à travers le récit, le mythe, la mémoire et l’imagination”. Todas as traduções são nossas, salvo indicação. 2 90 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 contrário: a literatura francesa deve fazer parte da literatura francófona. Sendo o termo “francofonia” destinado a uma instituição política, e sendo usado – ainda que com boas intenções – para tratar de escritores de fora da França como parte de um gueto dependente da França, os autores do manifesto acreditam que ele não deve ser utilizado para tratar da literatura em língua francesa, literatura plural, transnacional, aberta ao mundo. A visão desses autores pode ser entendida como um reflexo da era pós-moderna na qual vivemos. A descentralização da literatura francófona está intimamente ligada à descentralização das identidades pós-modernas. Segundo Stuart Hall3 (2006), existem três concepções de identidade do sujeito bastante diferentes. Simplificadamente, elas são: a) sujeito do Iluminismo: o indivíduo é centrado, unificado, com um núcleo interior que nasce com ele e o acompanha de maneira essencialmente igual para o resto da vida; b) sujeito sociológico: o núcleo interior do sujeito não é autônomo e autossuficiente, está em constante mudança conforme as relações do sujeito com o mundo externo, o eu e a sociedade; c) sujeito pós-moderno: o núcleo interior não é mais visto como unificado e estável, mas antes fragmentado, composto de várias identidades, e a sociedade (o mundo externo) passa por mudanças estruturais, o que faz com que as identidades culturais se tornem provisórias e variáveis. Assim, a identidade do sujeito pós-moderno é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13). Hall argumenta que a pós-modernidade é caracterizadas por sua descontinuidade, por uma estrutura deslocada, que “é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma ‘pluralidade de centros de poder’” (Ibid., p. 16). Ora, no manifesto pela literatura-mundo em francês, temos: O centro, esse ponto a partir do qual uma literatura franco-francesa supostamente irradia não é mais o centro. O centro até aqui, mesmo se cada vez menos, tinha tido essa capacidade de absorção que obrigava os autores vindos de alhures a se livrar de suas bagagens antes de se entregar ao cadinho da língua e de sua história nacional: o centro, nos dizem os prêmios do outono, é doravante em todo lugar, aos quatro cantos do mundo. Fim da francofonia. E nascimento de uma literatura-mundo em francês4 (LE MONDE, 03/02/11). 3 Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. No original : “le centre, ce point depuis lequel était supposée rayonner une littérature franco-française, n'est plus le centre. Le centre jusqu'ici, même si de moins en moins, avait eu cette capacité d'absorption qui contraignait les auteurs venus d'ailleurs à se dépouiller de leurs bagages avant de se fondre dans le creuset de la langue et de son histoire nationale: le centre, nous disent les prix d'automne, est désormais partout, aux quatre coins du monde. Fin de la francophonie. Et naissance d'une littérature-monde en français”. 4 91 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Partindo da ideia de múltiplas identidades e, portanto, de múltiplos centros, os autores do manifesto, muitos deles da segunda geração francófona, trabalham a questão tanto da identidade nacional quanto da identidade individual e pessoal em seus livros, através dos temas acima mencionados. Posto que a identidade também se afirma através da linguagem, muitos autores brincam com os limites entre a língua escrita e a falada, a fim de questionar a norma padrão, a língua imposta e a visão unitária do mundo. A oposição tradição/ modernidade, ou oralidade/ escrita, é muito presente nas sociedades africanas, onde as línguas locais geralmente não são ensinadas nas escolas, permanecendo faladas, sendo a língua escrita a do colonizador. Assim, apesar da maior parte dos autores se expressar literariamente na língua imposta de fora, muitos mesclam ao longo da narrativa expressões ou palavras locais, buscando um sentido de pertença. A oralidade também se faz muito presente nas formas textuais breves, tais como as adivinhas, as máximas e os provérbios, que requerem pelo menos dois interlocutores que, no âmbito literário, são muitas vezes o narrador e o leitor, que dialogam ao longo da narrativa como um contador de histórias faz com seu público. Com efeito, as características supracitadas também aparecem na obra de Alain Mabanckou, escritor congolês que se preocupa constantemente com as noções de identidade, imigração e oralidade. I. A ESCRITA DE ALAIN MABANCKOU Em 1966, na República do Congo, cidade de Pointe-Noire, nasce Alain Mabanckou. Obtém seu baccalauréat em Letras e Filosofia, mas acaba por estudar Direito na Universidade Marien-Ngouabi, em Brazaville, para realizar o desejo de sua mãe. Desde cedo Mabanckou dedica as horas vagas à escrita, e aos 22 anos, com alguns manuscritos na mala, vai para Paris, onde termina sua graduação após receber uma bolsa de estudos. Durante certo período o autor dedica seu tempo à advocacia, trabalhando em diversos escritórios, mas nunca deixa de escrever. Eis que em 1998 consegue publicar seu primeiro romance, Bleu-Blanc-Rouge, que lhe rende o Grand Prix Littéraire de l'Afrique noire. A premiação faz com que Mabanckou se consagre como escritor, abandonando a carreira de advogado para sempre. Escreve livros tanto em prosa quanto em poesia, ficando conhecido pelo grande público por seus romances, a começar por Verre Cassé 92 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 (2005) e Mémoire de porc-épic, Prix Renaudot em 2006. É também um dos autores a assinar o manifesto por uma literatura-mundo em francês, ao lado de Dany Laferrière, Abdourahman A. Waberi, Edouard Glissant, Gilles Lapouge entre outros. Bem pouco conhecido no Brasil, Mabanckou é, no entanto, bastante aclamado na Europa e nos Estados Unidos, onde vive desde 2007, lecionando literatura francófona na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Em seus livros é comum que o narrador apresente traços autobiográficos, de modo que o leitor nunca sabe ao certo se o que lê é ficção ou memória do próprio autor. De qualquer maneira, a recorrência a personagens marginais, à metalinguagem e ao questionamento da língua padrão revela a visão do autor: para ele, as identidades são múltiplas e devemos dar espaço a essa diversidade. Nas palavras de Carmen Husti-Laboye (2010, p. 121): A inclinação por essa figura da marginalidade na literatura da diáspora subsaariana confirma a propensão ao descentramento próprio à literatura escrita no contexto da pósmodernidade, que visa a desconstrução de toda visão unitária e estável do mundo. Essa estratégia ficcional institui a margem como variante do discurso oficial, um lugar a partir do qual a voz emerge a fim de exprimir a diferença 5. Em Mabanckou, os personagens à margem da sociedade repensam e discutem o discurso oficial, as formas de poder e dominação impostas pelos colonizadores, a começar da língua. Assim, seus protagonistas costumam questionar a norma culta, o uso do francês como língua institucional e literária, as formas estilísticas próprias à literatura. Ao dar valor ao humor, à paródia e à intertextualidade através desses personagens, Mabanckou procura desinstitucionalizar a língua, quebrar a norma, dando lugar às falhas de coerência do mundo. Mabanckou, também conhecido na academia como um escritor “africain sur Seine”, ou seja, africano imigrante que escreve desde a Europa, tem um olhar aguçado em relação à identidade dos imigrantes e dos povos colonizados, e essa discussão é bastante recorrente em seus livros. Em Le sanglot de l’homme noir (2012, p. 59), livro autobiográfico, o autor diz: [...] minha concepção de identidade ultrapassa de muito longe as noções de território e de sangue. Cada encontro me nutre [...]. Seria inútil se limitar ao território, ignorar a No original : “Le penchant pour cette figure de la marginalité dans la littérature de la diaspora subsaharienne confirme la propension au décentrement propre à la littérature écrite dans le contexte de la postmodernité, qui vise la déconstruction de toute vision unitaire et stable du monde. Cette stratégie fictionnelle institue la marge comme variante du discours officiel, un lieu à partir duquel la voix émerge afin d’exprimer la différence”. 5 93 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 multiplicação de interferências e, ademais, a complexidade dessa nova era que nos liga uns aos outros, longe das considerações geográficas 6. Mais adiante, a respeito de sua vida como imigrante e da influência desse fato em sua obra, o autor complementa: [...] eu estou cada vez mais persuadido que o deslocamento, o cruzamento das fronteiras, nutre minhas angústias, contribui para dar forma a um país imaginário que, finalmente, se parece com a minha terra de origem. É a minha própria busca interior, minha maneira de conceber o universo. Eu escolhi não me fechar, dar ouvido ao barulho e ao furor do mundo, jamais considerar as coisas de maneira fixa. Não me tornei escritor porque emigrei. Porém, adquiri um outro olhar sobre a minha pátria uma vez distanciado dela. [...] A emigração contribuiu para reforçar em mim essa inquietude que institui aos meus olhos todo processo criativo7 (Ibid., p. 131-132). A relação com o outro, com o que vem de fora, e, por consequência, a redescoberta ou a busca pela própria identidade (além da identidade literária) é um tema central em sua obra, discutido a partir do olhar de personagens marginais, tais como imigrantes (Black Bazar), intelectuais excêntricos (Verre Cassé), mulheres (Les petits-fils nègres de Vercingétorix), pessoas da periferia (African psycho) e até mesmo crianças (Demain j’aurais vingt ans). No caso de Mémoires de porc-épic, o narrador personagem é também periférico, já que do mundo animal, incapaz de raciocinar e de se comunicar como os homens, e, assim como nos outros livros, esse narrador se encontra muitas vezes banhado por um sentimento de rejeição, de solidão, em um ambiente onde a falta se faz muito presente e, portanto, em um ambiente onde deve se reinventar e se redescobrir a fim de sobreviver. Nesse livro especificamente, a questão identitária aparece de diferentes maneiras: na busca do personagem narrador por sua verdadeira identidade, na relação dele com seu mestre, sua outra face, e também na relação de seu mestre com seu outro eu. No original : “[...] ma conception de l’identité dépasse de très loin les notions de territoire et de sang. Chaque rencontre me nourrit [...]. Il serait vain de se cantonner au territoire, d’ignorer la multiplication des interférences et, par-delà, la complexité de cette ère nouvelle qui nous lie les uns aux autres, loin des considérations géographiques”. 7 No original : “je suis de plus en plus persuadé que le déplacement, le franchissement des frontières, nourrit mes angoisses, contribue à façonner un pays imaginaire qui, finalement, ressemble à ma terre d’origine. Il y va de ma propre quête intérieure, de ma façon de concevoir l’univers. J’ai choisi de ne pas m’enfermer, de prêter l’oreille au bruit et à la fureur du monde, de ne jamais considérer les choses de manière figée. Je ne suis pas devenu écrivain parce que j’ai émigré. En revanche, j’ai posé un autre regard sur ma patrie une fois que je m’en suis éloigné. [...] L’émigration a contribué à renforcer en moi cette inquiétude qui fonde à mes yeux toute démarche de création”. 6 94 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 II. MÉMOIRES DE PORC-ÉPIC: IDENTIDADE E ORALIDADE Mémoires de porc-épic e Verre Cassé são dois livros que andam juntos, apesar de suas histórias serem totalmente distintas. Vejamos: se em Verre Cassé o personagem de mesmo nome escreve suas memórias sobre o bar Le crédit a voyagé, em Mémoires de porc-épic, livro publicado na sequência de Verre Cassé, o mesmo personagem dá voz a um porco-espinho advindo do imaginário coletivo africano, que narra sua própria história: o livro é uma paródia de uma lenda africana, na qual os animais podem ser duplos malignos ou benignos dos humanos: [...] em Mémoires de porc-épic, a crença e a miríade de superstições que o acompanham no contexto africano tradicional representam os principais elementos em torno dos quais se constrói a narrativa alegórica desse narrador diretamente saído das lendas africanas. Romance construído pela fusão de dois universos distintos, Mémoires de porc-épic dá, de fato, voz a um animal ancorado na mentalidade coletiva africana, que se apresenta diante de seu interlocutor, a baobá, como o duplo maligno do homem 8 (HUSTILABOYE, 2010, p. 122). Na história, o porco-espinho é o duplo maligno do jovem Kibandi. A pedido de seu mestre, o animal executa inúmeros assassinatos na vila onde moram; porém, tem consciência de seus atos e sofre de remorso – a priori um sentimento humano. A partir dos desdobramentos dessa lenda africana o autor explora a natureza plural do homem e suas dicotomias superior/ inferior, divino/ demoníaco, bom/ mal, positivo/ negativo, enfim, humano/ animal, criando uma obra profunda sobre a essência humana. Além disso, o texto é uma grande homenagem às fábulas, crenças, provérbios, contos e histórias presentes na cultura africana e em outras culturas também. A título de exemplo, citamos Le Rat de ville et le Rat des champs (p. 64) e L’hirondelle et les petits Oiseaux (p. 65), fábulas de La Fontaine. Acerca do estilo, tanto Mémoires de porc-épic quanto Verre Cassé apresentam marcas de oralidade e a fala despojada do personagem Verre Cassé, remarcada principalmente pela ausência de pontuação, salvo o uso da vírgula. Isso nos remete às sociedades tradicionais africanas, nas quais, como diz Chevrier em Littérature nègre (1984, p. 205), “durante a dominação colonial as No original : “dans Mémoires de porc-épic, la croyance et la myriade de superstitions qui l’accompagnent dans le contexte africain traditionnel représentent les principaux éléments autour desquels se construit le récit allégorique de ce narrateur directement issu des légendes africaines. Roman construit par l’emboîtement de deux univers fictionnels distincts, Mémoires de porc-épic donne en effet la parole à un animal ancré dans la mentalité collective africaine, qui se présente devant son interlocuteur, le baobab, comme le double maléfique de l’homme”. 8 95 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 culturas africanas e suas línguas de expressão sofreram o destino reservado às culturas e aos homens ‘primitivos’: se elas não eram ignoradas elas eram negadas”9. A fim de preservar essas línguas africanas, a memória se tornou algo importantíssimo, responsável por imortalizar as histórias, repassadas de boca em boca pelos contadores, os griots. Assim, ao escrever como se estivesse falando, Verre Cassé passa a impressão de estar transmitindo oralmente suas memórias, ou seja, ele imortaliza a história do bar, no primeiro livro, e a do porco-espinho, no segundo. Em Mémoires, as memórias do porco-espinho são contadas a uma árvore Baobá que, apesar de nunca dialogar com ele, representa a figura de seu interlocutor. De fato, como o relato inteiro é dirigido a essa segunda pessoa que é a árvore, o leitor acaba se sentindo ele mesmo o interlocutor, tomando o lugar da Baobá e fazendo parte da história: o porco-espinho seria o contador de histórias e o leitor, seu público. Outras marcas de oralidade também podem ser encontradas na narrativa, tais como: interjeições e onomatopeias; fluxo contínuo de pensamento, com digressões e interrupções; repetições e acumulações para dar o tom da narrativa, enfatizando as características de algum personagem; e provérbios e outras formas textuais breves (KALIDOU, 2008). Além da questão da estrutura narrativa como forma de questionar uma identidade imposta, o próprio personagem do animal passa por dilemas existenciais e de identidade, tornando-se ele mesmo um imigrante: deve sair do mundo animal para ir viver com os homens, sofrendo solidão e rejeição de sua comunidade animal. Uma vez convivendo com os homens, ele começa cada vez mais a incorporar atitudes e sentimentos humanos a seu modo de ser e de agir, o que lhe causa muita angústia: “tive vergonha de mim, o lado humano tomando cada vez mais conta de meu lado animal”10 (MABANCKOU, 2006, p. 33). Seu destino de duplo lhe confere um alter-ego, Kibandi, seu mestre, a quem ele obedece cegamente e do qual não consegue se separar, chegando mesmo a se confundir com ele: “eu tinha sua vida entre minhas patas, respirava o sopro No original : “pendant la domination coloniale les cultures africaines et leurs langues d’expression ont subi le sort résérvé aux cultures et à l’homme ‘primitifs’: si elles n’étaient pas ignorées elles étaient niées”. 10 No original : “j’ai eu honte de moi, le côté humain prenant de plus en plus le dessus sur ma nature animal”. 9 96 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que vinha dele, eu era ele, ele era eu, e para reestabelecer as coisas eu devia me manifestar urgentemente, meu coração iria explodir, não sabia mais quem eu era”11 (Ibid., p. 59-60). A relação do porco-espinho com seu mestre, a princípio uma relação do ‘eu’ (porcoespinho) com o ‘outro’ (Kibandi), acaba por ser, na verdade, a relação do porco-espinho com uma outra parte de si próprio, ou, do ponto de vista de Kibandi, sua relação com seu autre luimême. No ritual de iniciação, quando o jovem Kibandi recebe seu duplo, ele deve beber um líquido chamado mayamvumbi, “a fim de sentir o estado de embriaguez que lhe permite duplicarse, liberar seu outro eu, um clone bulímico que não para de correr”12 (Ibid., p. 17). Após beber o líquido iniciático, Kibandi tornou-se uma nova criatura, o ser frágil que os aldeões de Mossaka viam atrás de Papai Kibandi era apenas uma marionete, uma espécie de envelope vazio cujo conteúdo tinha evaporado e esperava em algum lugar a hora para encontrar seu duplo, formar com ele uma única e mesma entidade13 (Ibid., p. 48). Assim, o ‘eu’ e o ‘outro’ se misturam, se fundem, fazendo emergir a questão da identidade: ao abandonar o meio animal, o porco-espinho abandona também sua identidade animal. O pequeno Kibandi, por sua vez, também sofre inicialmente com a transformação em sua vida. Na noite em que seu pai lhe dá para beber o líquido iniciático o jovem vê, pela primeira vez, o duplo de seu pai, que lhe diz: “você não viu nada, eu sou eu, e aquele que está deitado ao lado de sua mãe, bem, também sou eu, eu posso ser ao mesmo tempo eu mesmo e o outro eu mesmo que dorme, você entenderá logo”14 (Ibid., p. 80). Após a iniciação, Kibandi, o filho, é capaz de enxergar seu outro eu mesmo, que em seguida foge para a floresta, pronto para começar suas aventuras malignas pela vila. Ademais, na lenda, quando o mestre morre, seu duplo animal costuma morrer também, porém não é isso que acontece. O porco-espinho continua vivo, descrente de sua vida, triste pela morte de seu mestre, sem rumo, sozinho, até sentar-se aos pés da Baobá e contar-lhe sua história. No original : “je tenais sa vie entre mes pattes, je respirais le souffle qui lui revenait, j’étais lui, il était moi, et pour rétablir les choses je devais me manifester en toute urgence, mon coeur allait éclater, je ne savais plus qui j’étais”. 12 No original : “afin de ressentir l’état d’ivresse qui permet de se dédoubler, de libérer son autre lui-même, un clone boulimique sans cesse en train de courir”. 13 No original : “était devenu une autre créature, l’être fragile que les villageois de Mossaka apercevaient derrière Papa Kibandi n’était plus qu’un pantin, une espèce d’enveloppe creuse dont la contenance s’était évaporée et attendait quelque part son heure pour rencontrer son double, ne plus former avec lui qu’une seule et même entité”. 14 No original : “Tu n’as rien vu, je suis moi, et celui qui est couché à côté de ta mère, eh bien, c’est aussi moi, je peux être à la fois moi-même et l’autre moi-même qui est couché, tu le comprendras bientôt”. 11 97 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Dessa forma, o relato que o animal faz à árvore é uma forma de buscar sua identidade, de redescobri-la. Em um artigo sobre os escritores francófonos da segunda geração, o autor Gbanou (2006, p. 46) analisa que o ato de escrever, para esses autores, corresponde a uma necessidade de libertar-se. Ele diz: São figuras de excluídos, de malditos cujo sentimento e sensação de rejeição, de afastamento e de falta são reveladores da realidade de um mundo onde o indivíduo tem, mais do que nunca, obrigação de inventar locais de vínculo. Nessa ótica, o ato de escrever responde, nos mestiços ou exilados, a uma necessidade e a uma dinâmica de liberdade [...]15. Essa ótica poderia ser transposta para a figura do porco-espinho, que também é caracterizado como excluído, imigrante, rejeitado, tentando encontrar-se através de sua narrativa, tentando encontrar sua liberdade. Ao final de seu relato, o porco-espinho, melancólico, confessa que ainda tem dois desejos: acabar com todos os duplos malignos da região, como “uma maneira de me redimir, de apagar minha parte de responsabilidade quanto às desgraças que entristeceram essa vila e muitas outras”16 (MABANCKOU, 2006, p. 218), e voltar a viver em sua comunidade animal, “porque a frequentação dos homens criou em mim o sentimento da nostalgia [...] doravante eu me apego às minhas lembranças como o elefante se apega às suas defesas, são essas imagens longínquas, essas sombras desaparecidas, esses barulhos distantes”17 (Ibid., p. 220). Essa saudade remete claramente à saudade que um imigrante ou um exilado sente de sua terra natal, para a qual sonha em voltar um dia. III.CONCLUSÃO No original : “ce sont des figures d’exclus, de bâtards, de maudits dont le sentiment et la sensation de rejet, d’écartèlement et de manque sont révélateurs de la réalité d’un monde où l’individu a, plus que jamais, obligation de s’inventer des lieux d’attache. Dans cette optique, l’acte d’écrire répond, chez le métis ou l’exilé, à un besoin et à une dynamique de liberté [...]”. 16 No original : “une manière de me racheter, d’effacer ma part de responsabilité quant aux malheurs qui ont endeuillé ce village et beaucoup d’autres”. 17 No original : “parce que la fréquentation des hommes a créé en moi le sentiment de la nostalgie [...] je tiens désormais à mes souvenirs comme l’éléphant tient à ses défenses, ce sont ces images lointaines, ces ombres disparues, ces bruits éloignés”. 15 98 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No livro de entrevistas concedidas a Benedetto Vecchi chamado Identidade, Zygmunt Bauman (2005, p. 19) analisa a questão da identidade baseando-se em sua própria experiência como imigrante. Em dado momento, ele diz: Estar total ou parcialmente ‘deslocado’ em toda parte, não estar totalmente em lugar algum, pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. [...] As identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta.18 Relacionando esse depoimento com o livro de Mabanckou, podemos dizer que o personagem do porco-espinho está o tempo inteiro deslocado: enquanto ainda vive no mundo animal, é visto como alguém desencontrado, sem rumo, e é punido e recriminado pelo velho porco-espinho que governa a comunidade cada vez que desaparece. A floresta torna-se, pouco a pouco, “um lugar que eu não suportava mais, procurava um jeito de me subtrair dela para ir viver perto da vila de meu jovem mestre, ignorava então que eu iria ser submetido à fúria do velho porco-espinho que nos governava, ele que xingava os humanos de todos os nomes ao longo do dia”19 (MABANCKOU, 2006, p. 48). Após a iniciação do jovem Kibandi, há ainda um período de adaptação à nova vida, no qual o animal executa as missões ordenadas por seu mestre de dia e retorna para a floresta de noite. Segundo o personagem, “esse período foi o mais tumultuoso de minha existência”20 (Ibid., p. 49). A solidão torna-se perturbadora e desconfortável, até que ele finalmente migra para o mundo humano de vez. Ainda que tenha uma ligação forte com seu mestre, chegando a fundir-se com ele, como vimos, o animal nunca chega a pertencer de fato a esse novo mundo, a sensação de deslocamento permanece. Ser um duplo maligno foi uma escolha dele, quer dizer, ele escolheu também essa mudança de identidade e de ambiente, porém a construção dessa nova identidade se dá a partir do contato com o outro, com Kibandi. Suas angústias e arrependimentos em relação às missões assassinas são um reflexo dessa identidade que lhe foi de alguma maneira imposta, fazendo-o sentir saudades de sua antiga vida. 18 Tradução de Carlos Alberto Medeiros. No original : “un lieu que je ne suportais plus, je cherchais comment m’y soustraire afin d’aller vivre près du village de mon jeune maître, j’ignorais alors que j’allais subir les foudres du vieux porc-épic qui nous gouvernait, lui qui traitait les humains de tous les noms à longeur de journée”. 20 No original : “cette période fut la plus tumultueuse de mon existence”. 19 99 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Assim, ao mesmo tempo que o personagem se redescobre ao entrar em contato com o mundo humano e com seu mestre, ele também se perde e se desorienta em relação ao que ele verdadeiramente é/sente. O duplo animal e seu mestre podem, então, ser uma metáfora que representa a abertura ao outro como forma de encontrar-se, de redescobrir-se – de buscar e refletir sobre a sua própria identidade. 100 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 REFERÊNCIAS BAUMAN, Z& VECCHI, B. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. CHEVRIER, J. Littérature nègre. Paris: Armand Colin, 1984. GBANOU, Sélom K. La traversée des signes : roman africain et renouvellement du discours. Revue de l’Université de Moncton, v. 37, n. 1, p. 39-66, 2006. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. _______. Identités et cultures. Politiques des cultural studies. Paris, Editions Amsterdam, 2008. HUSTI-LABOYE, C. La Diaspora postcoloniale en France : différence et diversité. Paris: Pulim, 2010. KALIDOU. 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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Teseu, o labirinto e seu nome: sobre o lugar de enunciação às literaturas africanas contemporâneas Alcione Correa Alves1 Universidade Federal do Piauí RESUMO: partindo da análise do texto de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée", na obra coletiva Pour une littérature-monde (2007), assim como da leitura que Léopold Sédar Senghor propõe ao Orphée noir, de Jean-Paul Sartre, este artigo investiga a clivagem entre as noções de literatura francesa e literaturas francófonas, centrando-se sobre os fatores que, segundo este autor, condicionam a recepção da obra literária francófona pelo milieu literário francês. Advoga-se, como hipótese, que da referida clivagem decorre um prejuízo às literaturas francófonas porque compreendidas como 'Outro' da literatura francesa. A hipótese será desenvolvida através do que Jonathan Culler (1997) denomina metafísica da diferença, circunscrevendo, nestes termos, a contribuição de Nimrod ao debate acerca das literaturas francófonas contemporâneas. Palavras-chave: literaturas africanas contemporâneas; francofonia; metafísica da presença. RÉSUMÉ: à partir d´une analyse du texte de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée", dans l´oeuvre Pour une littérature-monde (2007), ainsi que de l´interprétation de Léopold Sédar Senghor au texte Orphée noir, de Jean-Paul Sartre, cet article étudie le clivage entre les notions de littérature française et littératures francophones em envisageant les facteus à conditionner, d´après Nimrod, la réception des oeuvres littéraires francophones dans le milieu littéraire français. On propose, comme hypothèse, que de ce clivage découle un préjugé par rapport aux littératures francophones puisque prises em tant que l´Autre d´une littérature française canonique. Cet article devellopera son hypothèse au moyen de la métaphysique de la présence selon Jonathan Culler (1997) et ce, pour caracteriser la contribution de Nimrod au débat sur les littératures francophones contemporaines. Mots-clés: littératures africaines contemporaines; francophonie; métaphysique de la présence. 1 Alcione Correa Alves está professor adjunto I na Universidade Federal do Piauí, no homônimo. Tem desenvolvido atividades de ensino, pesquisa e extensão na referida instituição, Núcleo de Pesquisas sobre Africanidade e Afrodescendência – Ifaradá e os Grupos de Americanidades: lugar, diferença e violência (como líder), Questões de hibridação literária nas pesquisador) e Migração e Africanidades caribenhas e latino-americanas (como pesquisador). estado brasileiro além de integrar Pesquisa CNPq Américas (como 102 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A Luciléa Silva da Cruz Introdução Quando do Congresso Mundial da Fédération Internationale des Professeurs de Français (FIPF), realizado no Rio de Janeiro em 1981, pesquisadoras(es) e professoras(es) brasileiros de língua e literatura francesa tomam seu primeiro contato com o que, atualmente, se denomina literaturas francófonas, notadamente no estudo das literaturas antilhana, haitiana, magrebina e quebequense. De tal concentração decorreram, também, as primeiras experiências de ensino e pesquisa sobre o tema em universidades brasileiras, seja na forma de cursos e disciplinas opcionais, seja no âmbito de disciplinas regulares nos currículos de literatura francesa. Em uma das conferências do evento, Jean-Louis Joubert, evocando sua própria experiência docente em Paris XIII, propõe que o texto francófono ofereceria, a um leitor ideal francês, o que nominou uma sourde résistance, manifesta através de uma duplicidade de produção e de recepção como uma relevante chave de leitura, pautada pela busca e compreensão de uma ambiguidade constitutiva, considerada inerente ao texto francófono (ALVES, 2012, p. 83): En fait, que se passe-t-il quand je fais lire à mes étudiants de l'Université Paris XIII un texte «francophone»? Ils peuvent d´abord le lire comme ils feraient de n´importe quel autre texte écrit en français, et utilisant les procédures de décodage qu´ils ont à leur disposition. En face d´un poème du Malgache Rabearivelo, ils peuvent découvrir un poème fantaisiste et néo-symboliste; devant un poème-cri de l´antillais Aimé Césaire, un déferlement surréaliste. De telles lectures sont d´ailleurs autorisés par les amitiés, les cousinages, les admirations littéraires que ces poètes eux-mêmes avouent. Pourtant les textes opposent comme une sourde résistance, comme si le fonctionnement qu´on leur prête n'était pas le seul possible (JOUBERT, 1981, p. 269) Trata-se de uma reivindicação já em desenvolvimento, por Joubert, desde colóquio anteriormente realizado, em 1963, sobre literaturas africanas, na Universidade de Dakar; além 103 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 disso, em certa medida, elementos de seu argumento central se mostram, a meu ver, precursores de algumas das teses que serão caras ao manifesto Pour une littérature-monde en français, publicado em 2007 por Michel Le Bris no jornal parisiense Le monde2. Contudo, cumpre ressaltar nossa ressalva à abordagem de Joubert quando implica uma leitura do texto francófono que permanece enunciada desde um lugar francês: de modo decisivo, tal lugar de enunciação compromete um estudo pautado pela salvaguarda da autonomia, do Diverso e da complexidade inerentes às ditas literaturas francófonas (ou, doravante, das literaturas de língua francesa) que, aos fins deste artigo, não podem jamais ser concebidas como variantes, mais ou menos exóticas, da literatura francesa (ALVES, 2012, p. 84)3. Neste sentido, este artigo, evidenciando o problema decorrente de um lugar de enunciação francês na análise e apropriação das literaturas africanas contemporâneas, e concentrando-se em uma análise do capítulo de Nimrod "La nouvelle chose française: pour une littérature décolonisée", na obra coletiva Pour une littérature-monde (2007), visa a investigar problemas teóricos decorrentes da clivagem entre as noções de literatura francesa e literaturas francófonas, debatendo alguns dos fatores que, segundo este autor, condicionam a recepção da obra literária francófona pelo milieu literário francês. Advoga-se, como hipótese, que uma das consequências 2 Por exemplo, ao recorrer à imagem da bulimia, a reflexão de Joubert dialoga com a ideia contemporânea da autofagia, do repli sur soi na base de uma das bases da crítica do romancista e ensaísta Jean Rouaud ao atual estado da literatura francesa, no capítulo de abertura da mesma obra em que publica Nimrod (2007): para Rouaud, se mostra fundamental a denúncia do que considera o mal infligido às literaturas contemporâneas de língua francesa pelo Nouveau roman e pela crítica estruturalista (ALVES, 2012). Digno de nota, ainda, o fato de que este argumento de Rouaud, no que tange aos perigos à literatura oferecidos pela teoria e crítica literária, dialoga de modo profícuo com as teses centrais de Tzvetan Todorov na obra A literatura em perigo (2007). 3 A este respeito, Claire Riffard (2006) comenta o caráter “francocentrado” no traçado de uma história possível das literaturas francófonas, quando narradas a partir de (e em relação à) França. Tome-se como exemplo o caso do poeta malgache Jean-Joseph Rabearivelo: malgrado o desenvolvimento de sua obra poética inovadora em Madagascar, nos anos 1920 e, portanto, cerca de dez anos antes da Negritude nos moldes de Léopold Sédar Senghor, tendem a ser reconhecidos como momentos precursores, do ponto de vista de uma história das literaturas francófonas, a publicação em Paris do romance Batouala, de René Maran, em 1921, assim como a formação do movimento da Negritude, no Quartier Latin, já nos anos 1930. Pode-se propor que os modos de narrar uma história possível das literaturas francófonas têm se pautado, em larga medida, por uma construção discursiva por e a uma França tomada como instância legitimadora de produção e recepção da literatura francófona. Diz-se recepção porque, quando da exposição do texto de Rabearivelo a uma “metodologia de estudo de textos literários francófonos” em sala de aula, Joubert abriu a possibilidade de descoberta, pelos alunos, de “un poème fantaisiste et néo-symboliste” no texto do poeta malgache, de modo análogo ao qual se descobre, em leituras de Aimé Césaire, “un déferlement surréaliste”, devidamente assentado no dado biográfico da visita de André Breton à América e no reconhecimento laudatório deste ao Cahier d´un retour au pays natal. 104 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 da referida clivagem é a percepção de um prejuízo às literaturas francófonas quando compreendidas como 'Outro' da literatura francesa. O desenvolvimento teórico proposto à hipótese compreenderá a clivagem proposta entre literatura francesa e literaturas francófonas através do que Jonathan Culler (1997) denomina metafísica da diferença, circunscrevendo, nestes termos, a contribuição de Nimrod ao debate acerca das literaturas francófonas contemporâneas Apontamentos à noção de francofonia A aplicação do termo francofonia tem sido particularmente restrita a obras de escritores fora da França, sobretudo ao se tratar de escritores originários de departamentos ultramarinos ou ex-colônias francesas. Nesse sentido, o uso literário do termo francofonia diz respeito, atualmente, a sistemas literários em língua francesa fora da França, mais precisamente, a suas antigas colônias (ALVES, 2012, p. 109-110). A francofonia, em sua origem concebida como um conceito de integração das diferentes literaturas, segundo o critério de pertença a uma mesma língua, estabeleceria, em suas últimas consequências, uma condição de desigualdade entre a literatura francesa e as demais literaturas de língua francesa, com o risco de tomá-las como variantes exóticas ou mesmo inferiores de um modelo: Peut-on parler d'un champ littéraire africain francophone? Même si cette littérature dispose d'institutions, d'évènements et d'éditeurs spécialisés, elle reste attachée au centre parisien par des liens linguistiques, économiques et symboliques qui se reflètent parfois dans les œuvres elles-mêmes (TERVONEN, 2005)4 4 Claire Riffard (2006) situa o conceito de campo literário, segundo Bordieu, em seu recenseamento das abordagens críticas contemporâneas ao conceito de francofonia literária - mais precisamente dentre aquelas que retomam a noção de espaço (ALVES, 2012). As abordagens contemporâneas da noção de francofonia literária são divididas, nestes termos, em três grupos: as que retomam o conceito de espaço como, por exemplo, os trabalhos de Dominique Maingueneau e o conceito de campo segundo teóricos como Bernard Mouralis e Pascale Casanova, em sua République mondiale des lettres (1999); as que retomam a noção de história literária, desenvolvidas por teóricos pós-colonialistas como Jean-Marc Moura (1999); as que retomam a noção de língua, dentre os quais se situam as pesquisas de Lise Gauvin (2010). 105 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Malgrado o conceito de francofonia presuma a integração das literaturas de língua francesa, mediante o princípio de uma irmandade baseada no critério da língua; e malgrado as literaturas nacionais de colônias e ex-colônias tendam a se exprimir majoritariamente em língua francesa; a noção de francofonia pode levar a uma tensão entre o sistema literário francês quando percebido em uma posição dominante ante os demais sistemas literários em língua francesa. O problema ora exposto pode ser melhor formulado ao adotar-se uma distinção fecunda entre um campo literário francófono, no qual situam-se empiricamente todas as literaturas expressas majoritariamente em língua francesa, e um sistema literário francês. A adoção dessa distinção permite, hipoteticamente, perceber dentro do campo literário francófono uma correlação de forças cuja consequência é um estatuto desigual entre o sistema literário francês e os demais sistemas em jogo (ALVES, 2012, p. 110)5. Em diálogo a este argumento, Jean Mouralis (1984) critica uma concepção de África desde um lugar francês, concepção esta culturalmente imposta aos escritores africanos e, em certo sentido, parte do campo literário francófono africano; sob tais condições, o conceito de África subjacente às obras literárias francófonas africanas emanaria, paradoxalmente, de e à França. Disso decorreria um problema científico relativo tanto às condições de possibilidade à edição e difusão das obras quanto às condições de recepção das obras literárias francófonas por um público francês ou, mais precisamente, parisiense. Pontualmente nesse último aspecto, concentrase tanto o debate no texto de Nimrod quanto o argumento central deste artigo, a saber, os termos da recusa de Nimrod a uma concepção exógena do que seja África: exógena enquanto definida e delimitada desde um lugar de enunciação francês, e de modo suficiente a uma determinação, igualmente exógena, daquilo a que devam se circunscrever as literaturas africanas contemporâneas para que sejam consideradas e legitimadas como tais. Sobre este ponto, Michel Le Bris, em seu capítulo da obra coletiva Pour une littérature-monde, constrói um problema semelhante, embora em bases distintas ao conceito de campo literário: Tervonen, sobre este tema, argumenta que alguns dos problemas atinentes ao campo literário francófono africano se devem ao fato de que, apesar da presença dos elementos necessários à constituição de um campo literário autônomo (traduzido, por exemplo, no desenvolvimento e estímulo a editoras africanas, eventos e prêmios literários africanos), ainda se trata, segundo a autora, de uma literatura que “reste attachée au centre parisien”, do qual emana sua legitimidade e, do ponto de vista eminentemente literário, do qual emanam, também, os critérios estéticos subjacentes “qui se reflètent parfois dans les œuvres elles-mêmes”. 5 106 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 [...] Et ne parlons plus d’une littérature “francophone” que l’on distinguerait, consciemment ou non, de la littérature proprement “française” - variante inférieure, ou exotique, qui n’aurait d’autre perspective de reconnaissance que s’intégrer en se niant. Autant le dire tout net: l’émergence de cette littérature monde signe la fin de la “francophonie”, entendue comme l’espace où la France dispenserait ses lumières sur des masses quelque peu enténébrées, pour promouvoir un espace de liberté et d’échanges sur un pied d’égalité (LE BRIS, 2007, p.24) Le Bris percebe a negação da literatura francófona como um preço a ser pago por sua legitimação por um centro normativo parisiense, mediante o uso do verbo nier, somado à construção restritiva ne...que a estipular a condição necessária para que a literatura francófona aceda ao estatuto de literatura legitimada. Dois dos indícios presentes na citação, o exotismo e o reconhecimento, ambos exógenos porque tomados em relação à literatura francesa, assinalam no texto de Le Bris o que se considera propriamente literatura francófona: sempre determinada, em seus termos subjacentes, em relação à literatura francesa, segundo regras atinentes ao campo literário francês. Claire Riffard (2006) comenta uma passagem de Littérature et développement sobre a abordagem das literaturas francófonas africanas mediante um processo de folclorização, privilegiando a construção de uma África idealizada que, ao fim e ao cabo, corresponderia às expectativas francesas sobre ela: les discours idéalisateurs de la 'rencontre des cultures' et du 'métissage culturel'. Travaillant dans le sens d'une recontextualisation de la littérature africaine, il a montré de façon magistrale comment la France a voulu modeler la littérature africaine dans le sens d'une folklorisation” (RIFFARD, 2006) Ao referido comentário, cabe adicionar a citação de Jean Mouralis, para quem o estudo de uma história literária francófona africana ainda permanece, em larga medida, tributário de uma história literária francesa: 107 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Le colonisé s'est efforcé, d'autre part, d'entrer dans le champ littéraire de son époque. A cet égard, il faut se souvenir que le colonisateur, loin de s'y opposer, a encouragé la production d'une littérature écrite autochtone. Mais dans son esprit, celle-ci devait être centrée sur l'Afrique “véritable” et l'écrivain africain était invité à recueillir des contes ou des légendes, à évoquer des figures historiques, à décrire des coutumes (MOURALIS, apud RIFFARD, 2006) Nestes termos, cumpre indagar o quanto o escritor africano de língua francesa “devait être centrée sur l'Afrique 'véritable' et l'écrivain africain était invité à recueillir des contes ou des légendes, à évoquer des figures historiques, à décrire des coutumes” (MOURALIS, apud RIFFARD, 2006), assim como os termos a um “lugar francófono” estipulado e normatizado na França, para consumo africano. Nestes termos, emanaria da França não apenas uma definição de África mas, de modo complementar a ela, uma circunscrição do objeto e de temas específicos a uma literatura francófona legitimamente africana, legítima porque assim reconhecida na e pela França. Eis uma armadilha que se coloca ante o escritor africano: o estabelecimento de um lugar que passa, decisivamente, por uma “África verdadeira”, a-histórica (ALVES, 2012, p. 91)6. As literaturas francófonas africanas como metafísica da presença Uma discussão dos pressupostos gnoseológicos subjacentes ao problema proposto se mostra, de modo mais claro, em alguns dos comentários à contribuição de Léopold Sédar Senghor ao movimento da Negritude, levados a termo por Diva Barbaro Damato, em sua obra Édouard Glissant: poética e política. Amparado pela leitura do Orphée noir, Senghor circunscreve a emoção como principal característica do Negro, tomado enquanto absoluto, universal: 6 Esse processo de circunscrição pode ser comparado à apropriação de máscaras e estatuetas africanas que, na Paris vanguardista do início do século XX, necessitam de um reconhecimento do milieu francês para acederem ao estatuto de arte. Aprecia-se amiúde o caráter revolucionário das máscaras africanas em um quadro como Les demoiselles d'Avignon, sem se cogitar um problema quando signos artísticos africanos (como as máscaras e estatuetas Fang, por exemplo) são tomados e ressignificados para a constituição de uma arte vanguardista europeia, ao preço da invisibilidade dos artistas africanos que as produziram e significaram. Ainda que se possa questionar se as condições de produção destas máscaras e estatuetas as reivindicam, de fato, como o que se pensa ocidentalmente como arte, tanto seu estatuto de objet d´art como sua autenticidade estão diretamente condicionados não à procedência, sequer ao reconhecimento da própria comunidade da qual emergem, mas de sua posse por um museu francês ou por um Picasso, um Matisse ou um Derian, por exemplo (DIAWARA, 1998). 108 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Nous voilà dans le domaine royal du Nègre, qui est l´émotion. J'aurais pu citer Gobineau: qu´il me suffise de rappeler le Comte de Leyserling parlant de la “rivalité orageuse”, de la grande chaleur émotionnelle du sang noir (SENGHOR, apud DAMATO, 1995, p. 118) Ressalte-se o papel da emoção como principal característica do Negro (com maiúscula, enquanto conceito metafísico). Enunciando a partir de uma posição humanista, Senghor justapõe a contribuição do Negro à ideia de civilização universal. Malgrado o mérito de buscar, objetivamente, evidenciar a componente negra na formação cultural ocidental, no que é corroborado pelo conjunto dos fundamentos da Negritude, o argumento de Senghor executa este movimento mediante o par Razão/emoção, identificando o primeiro termo à civilização europeia e o segundo, ao Negro (ALVES, 2012, p. 94). Não por acaso, Senghor reformula o cogito cartesiano de modo a definir a natureza do Negro tendo ao centro, em vez do Ser, o Sentir: não apenas a uma suposta natureza do Negro se circunscreveria a emoção em oposição à Razão (sem que se defina, exatamente, o que o termo emoção queira significar) mas, como consequência adicional, ao Negro africano (note-se a homologia entre os termos negro e africano) restaria, ao fim e ao cabo, ser definido em relação ao Europeu. Ao aceitar e desenvolver os termos de Orphée noir, Senghor segue, para além do argumento sartreano, uma definição da natureza do Negro em relação à civilização europeia; aceitando o pressuposto humanista no cerne da formulação sartreana, Senghor se compromete com uma essencialização do sujeito negro africano, avalizada pelo par Razão/emoção. Uma formulação do tipo “Je sens, donc je suis” corrobora o que Jonathan Culler (1997) define como metafísica da presença contribuindo, assim, para determinar a emoção como lugar do negro e promulgar este lugar como pertencente à suposta natureza de um negro africano, essencial e Uno. Ainda que se possa interpretar a recuperação do cogito, por Senghor, como um movimento de apropriação criativa, quiçá subversiva do cânone filosófico ocidental, em uma substituição do ser pelo sentir, o argumento de Senghor oferece o risco de a estabelecer a natureza de um Negro absoluto, que se requer distinto do europeu mas se define, essencialmente, em relação a ele. Do argumento inicial com vistas a uma definição última do Ser do Negro, decorre uma definição que se dá em relação ao europeu ou, extrapolando a constatação, uma definição em relação àquele tomado, na tradição filosófica ocidental, como O Ser. A apropriação do cogito, tal como proposta por Senghor, compromete o esforço de definição do negro africano 109 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 com o apelo a uma essencialização tributária de uma tradição filosófica exógena pois o Negro africano homogêneo, absoluto, é apenas na medida em que sente; Senghor permanece tributário de uma metafísica da presença ao recorrer ao par europeu/negro, ao que subjaz o par inicial pensamento/sentimento. É possível deduzir outra consequência da aceitação do par Razão/emoção, sob o signo de uma metafísica da presença, no que tange a definições essencialistas dos sujeitos negros: caso se observe a vigência do par Razão/emoção em Orphée noir, constata-se um segundo par, auxiliar, mediante o qual ao homem europeu seria associado o domínio da Técnica (da Ciência) ao passo que o homem negro definir-se-ia pela comunhão com a Natureza: Mais cette revendication hautaine de la non-technicité renverse la situation: ce qui pouvait passer pour un manque devient source positive de richesse. Le rapport technique avec la Nature la dévoile comme quantité pure, inertie, extériorité: elle meurt. Par son refus hautain d’être homo faber, le nègre lui rend la vie. Comme si, dans le couple ‘homme-nature’, la passivité d’un des termes entraînait nécessairement l’activité de l’autre. (...) L’action du nègre est d’abord action sur soi. Le noir se dresse et s’immobilise comme un charmeur d’oiseaux et les choses viennent se percher sur les branches de cet arbre faux. Il s’agit bien d’une captation du monde, mais magique, par le silence et le repos: en agissant d’abord sur la Nature, le blanc se perd en la perdant; an agissant d’abord sur soi, le nègre prétend gagner la Nature en se gagnant (SARTRE, 2001) Sartre propõe a recusa deste Negro essencializado à ciência e à tecnologia como uma source positive de richesse ainda que, sob a ótica ocidental (na qual vigora o par Ocidente/Áfricacomo-lugar-do-Negro), uma suposta não-tecnicidade possa evidenciar uma ausência, uma insuficiência, ambas marcas próprias a definições sob a égide de uma metafísica da presença7. Os dois usos do adjetivo hautain assinalam, por parte do Negro, uma compreensão da Natureza que 7 Há uma estrofe do poema Cahier d´un retour au pays natal, de Aimé Césaire (2008, p. 44), que opera a mesma distinção entre uma tecnicidade e cientificidade próprias ao Ocidente, em oposição a um domínio da natureza local por parte dos sujeitos martinicanos; contudo, no caso de Césaire, percebe-se uma busca efetiva do valor gnoseológico do conhecimento da natureza, assim como da significação do lugar caribenho, por parte dos sujeitos que nele habitam (ALVES, 2010). Pode-se propor, analogamente, que Caliban assenta seu golpe final em Próspero, na cena final de Une tempête, regido por uma busca e uma convicção do valor gnoseológico do conhecimento da natureza local, tomando-o mesmo como condição sine qua non a seu estar-na-ilha – em última instância, a ausência deste conhecimento determinaria a ruína do Próspero césaireano. 110 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 depende, de forma indelével, de categorias ocidentais: o Negro africano recusaria conscientemente sua pertença ao homo faber e, de tal recusa, resultaria uma certa “captation du monde, mais magique, par le silence et le repos”. O uso da conjunção mais, bem como o qualificativo magique, reforçam uma definição essencializada do Negro africano em relação ao homem europeu, ante o qual representaria um ideal de relação com a Natureza, nela fundando sua Weltanschauung. Eis, nesse ponto, uma característica fundamental à metafísica da presença: na definição da diferença mediante um par, o segundo termo, onde reside a diferença, se define como ausência (ou falta ou insuficiência) de Ser. No presente exemplo, a Natureza poderia ser definida, ao fim e ao cabo, como ausência de Técnica, ainda que Sartre pretenda atenuar o par caracterizando a relação do Negro como “rapport technique avec la Nature”. Ou seja, mesmo aceitando o par Técnica/Natureza, estabelecendo o domínio do Negro ao segundo elemento, a compreensão do fazer negro ante a Natureza resta, em última instância, definida a partir da Técnica própria ao Ser Ocidental visto que a compreensão, pelo negro, de seu meio é definida como um tipo de relação (técnica) com a Natureza, desprivilegiado ante a Técnica (em maiúsculo) como domínio propriamente ocidental (ALVES, 2012, p. 99-100). A metafísica da presença, a partir dos sujeitos francófonos africanos Ressalte-se que a essencialização do sujeito negro africano, definida em termos de universalidade, potencializa o caráter exógeno da definição do Negro enquanto Ser africano, assentada sobre o par Técnica/natureza ao qual subjaz, em última instância, um par do tipo Ocidente-universal/África-como-lugar-do-Negro. O caráter exógeno da definição, aliado ao conceito de lugar a ela subjacente, estabelecem as bases a uma crítica estabelecida por certos textos da obra coletiva Pour une littérature-monde ante uma definição essencial do negro, deduzida de Orphée noir. Dentre os quais, recebe atenção, neste artigo, o capítulo de Nimrod, no qual, iniciando seu argumento pela descrição de uma cena ocorrida no lançamento de seu romance Le départ, disserta sobre os problemas relativos a uma África determinada desde um lugar francês: 111 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Les africanistes les plus réputés de France soutiendraient sans sourciller que les vrais Africains sont des Africains qui vivent dans des villages. Les Aficains sont sommés d'entrer dans l'ordre occidental à condition de demeurer les “bons sauvages” qu'on voudraient qu'ils soient. Si l'Afrique est une essence, la bonne conscience occidentale est sauve. Aussi, un Africain doit rester africain, un Africain ne doit jamais changer (NIMROD, 2007, p. 221) A África determinada de um lugar francês, sob tais condições, demonstra a vigência da premissa de ocidentalização do mundo (já apontada por Le Bris), de onde emergiria uma literatura global enunciando em francês a partir da África: contudo, uma literatura global nestes termos depende visceralmente da aceitação, por parte do escritor africano, do lugar designado ao “bom selvagem”, termo necessário evidenciado entre aspas, no argumento de Nimrod, mediante dois elementos, a saber, a conjunção à condition de, determinando em que medida o escritor africano pode aceder a uma condição de legitimidade; e a estrutura condicional calcada no verbo être, em suas extremidades, reforçando a essência estabelecida a um suposto ser africano (ALVES, 2012, p. 100). A essa África, por vezes se busca relegar o domínio do escritor africano. Em tais condições, leituras de textos literários africanos em língua francesa implicariam, frequentemente, abordagens dessas literaturas mediante conceitos e critérios especificamente franceses, por vezes subjacentes, em um movimento no qual o texto literário considerado francófono percorre o círculo hermenêutico de, através e à França, e segundo o qual as condições mesmas de produção, circulação e recepção destes textos são determinadas de, através e à França. O recurso ao texto de Bourdieu permitiria flagrar um equívoco frequente a leituras desse tipo: o transporte de ideias se dá, amiúde, compreendendo de modo insuficiente seu lugar de enunciação. Se a “imigração das ideias”, como diz Marx, raramente se faz sem dano, é porque ela separa as produções culturais do sistema de referências teóricas em relação as quais as ideias se definiram, consciente ou inconscientemente (…) Por isso, as situações de “imigração” impõem com uma força especial que se torne visível o horizonte de referência o qual, nas situações correntes, pode permanecer em estado implícito. Embora seja escusado dizer que repatriar este produto de exportação implica riscos graves de ingenuidade e de simplificação – e também grandes inconvenientes, pois fornece um elemento de objectivação (BOURDIEU, 2005, p. 7) 112 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O transporte de ideias se dá amiúde, no caso específico da clivagem anteriormente sugerida entre os domínios francês e francófono, estipulando seja uma universalidade do lugar de enunciação francês, seja uma homogeneização daquilo que se define como francófono – parte dos “riscos graves de ingenuidade e de simplificação” aos quais a citação de Bourdieu se refere. Em ambos os casos, corre-se o risco permanente de, no estudo de textos literários denominados francófonos, substituir o dado da enunciação (e de um lugar de enunciação) em língua francesa por um conjunto de juízos preconcebidos sobre o lugar e o(s) sujeito(s) enunciador(es) dos textos lidos: reduz-se, assim, a complexidade do Outro ao qual se denomina francófono mediante o uso, justamente, daquilo que o constitui. O adjetivo “francófono”, de diferença, passa a rótulo8. Nimrod interroga uma suposta natureza de objeto do escritor africano da qual, na análise de seu argumento, se pode deduzir e debater em que medida o estabelecimento de critérios de uma literatura “autenticamente” africana se dá amiúde externamente a ela: Et que dire de l'écrivain africain? Tout se passe comme s'il devait produire une littérature exotique destinée aux Européens et à lui même, ce qui revient à vouer à la nostalgie d´une Afrique qui a disparu voilà longtemps. Et ce par voies et faits d'une production qui se veut autentiquement africaine. Avec des filles excisées, des mariages forcés, le tout dans un cadre de préference villageois: c'est là que les Africains sont autentiques (NIMROD, 2007, p. 223) A pergunta sobre a relação entre literatura francesa e as demais literaturas de língua francesa se desenha em termos do lugar designado à obra denominada como francófona e, por conseguinte, ao escritor relegado a uma posição francófona. Mais especificamente, e tornando o problema mais complexo, Nimrod aponta para o estabelecimento de uma definição de África formulada de e à França, para consumo de uma literatura emanada de um lugar geograficamente 8 A recorrência deste sintoma se mostra significativa em uma breve análise da literatura martinicana entre os anos 1990 e 2000: não por acaso, nas primeiras páginas de Adèle et la pacotilleuse (2005), a protagonista Céline Alvarez Bàà se ocupa em uma definição de si que, antes de tudo, se ocupa em assinalar que ela não é, ou não corresponde, ás definições emanadas desde o continente ou mesmo desde França. O mesmo se passa com o primeiro parágrafo do ensaio Le discours antillais, de Édouard Glissant (1997), para citar apenas dois exemplos. 113 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 dito francófono mas definido a partir da França, e através de um critério qualitativo que estabelece o qualificativo francófono, em última instância, como o que, por ausência de Ser, não é francês. A definição de um lugar africano implicaria, nestas condições, uma literatura restrita a determinados temas, topoï, paisagens consideradas autênticas de um determinado lugar, ou daquilo que a ele competiria, o que conduziria, paradoxalmente, a uma reivindicação identitária que, ao fim e ao cabo, se constrói estritamente nos termos do Outro. No tocante aos processos escravagistas e ao Tráfico, tanto na África quanto na América, tais construções e redefinições identitárias levariam, em suas últimas consequências, a uma definição do colonizado restrita essencialmente àquilo estabelecido por outrem. Nimrod, na introdução de seu capítulo, descreve que, após uma intervenção em Nancy para o lançamento de seu livro Le départ, fora interpelado por um homem francês que “connais l'Afrique” pelo fato de haver nela vivido alguns anos, gozando de uma posição legítima para “dire que vous n'êtes pas africain”: Vous vous appelez Nimrod, les personnages de votre récit s'appellent Gath, Évodie, Royès et autres. Ils portent des noms chrétiens. Et puis, ce qui m'a fait le plus rire, c'est que vous parlez de poireaux, navets, carottes, pâquerettes...Ça n'est pas africain, ça, mon Dieu! Pas du tout! Car l'Afrique, je connais, je connais votre pays, il n'y a pas de carottes, il n'y a pas de navets, il n'y a pas de pâquerettes...Rien de ce que vous décrivez n'est pas africain...(NIMROD, 2007, p. 218-219) Um recenseamento de elementos considerados “legitimamente africanos” conduziria, provavelmente, a uma lista de características que, ao fim e ao cabo, remeteriam o lugar africano à preservação e manutenção de uma África a-histórica, “à la nostalgie d'une Afrique qui a disparu voilà longtemps”, a uma África da qual se interditam processos e trocas culturais (ALVES, 2012, p. 119). Paradoxalmente, uma tal definição de África, a sua revelia, implicaria em uma literatura que, para aceder ao estatuto de literatura africana, não poderia falar de um lugar africano contemporâneo. Em uma redução ab absurdo, noções como contemporaneidade e transculturalidade consistiriam em um contra-senso ao que se define como literatura francófona africana, uma vez que permaneceria relegada a uma posição de defesa e manutenção de uma cultura a-histórica, própria de um “país africano” jamais claramente localizado. 114 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Conclusões parciais A a-historicidade de um conceito exógeno de África fora anteriormente explicitada por Mouralis e por Riffard, cujas críticas apontavam a um conjunto de topoï estabelecidos como critério à definição de uma literatura tida como legitimamente africana, ao que o texto de Nimrod dialoga com os dois supracitados. Prosseguindo o exame de tais conseqüências, seria possível propor que uma adoção destas literaturas aos referidos temas, no sentido do que Mouralis (apud RIFFARD, 2006) identificara como “des contes ou des légendes, à évoquer des figures historiques, à décrire des coutumes” e do que Nimrod enumerara como “des filles excisées, des mariages forcés, le tout dans un cadre de préference villageois”, quando adotada por escritores africanos contemporâneos resultaria, a contrapelo de suas reivindicações de definição identitária, em uma literatura de cunho identitário que, ao fim e ao cabo, redunda produzida e consumida em relação à França, oferecendo o risco subjacente de uma aspiração identitária que, pretendendo-se legítima, mantém a França como sua instância legitimadora e seu lugar de enunciação como aquele que pecaria por ausência de Ser. Como consequência, perversa, outorgar-se-ia a uma instância exógena o direito de enunciar o que é esta literatura africana contemporânea tentando defender, literariamente, suas próprias construções identitárias. Por fim, e para além de uma definição ocidental de África, cumpre sublinhar que o capítulo de Fabienne Kanor em Pour une littérature-monde oferece elementos tangentes ao debate sobre o problema do campo literário francófono. Kanor assinala em seu discurso uma consequência da centralidade de um milieu parisiense no estabelecimento de critérios a uma literatura francesa, e dos usos excludentes atribuídos a denominações como “literaturas francófonas” e “literaturas africanas”: a impermeabilidade de um campo literário francês (compreendido, hipoteticamente, pelo conjunto das literaturas em língua francesa) a obras e autores tidos como periféricos. “Péri quoi?” Phérique. Périphérique. Ou si vous préférez: underground, an ba fey, à part, dans l'ombre, alternative, en marge...bref, tout ce qui se conçoit et s'enonce différemment. (…) Sauf que sur le terrain (en librairie) l'expression s'ancre, justifiant sans doute la mise en quarantaine d'une bonne partie de cette littérature-là (KANOR, 2007, p. 238) 115 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O problema do lugar se mostra a partir de uma periodização literária que, na prateleira das editoras e distribuidoras francesas, agrupam distintas literaturas sob um mesmo critério, homogeneizante e, portanto, insuficiente a uma compreensão seja do Diverso destas literaturas, seja dos processos transculturais que as relacionam, tanto entre si quanto com o próprio patrimônio tido como literatura francesa (ALVES, 2012, p. 123). O estabelecimento de um lugar às literaturas consideradas pelas editoras como “francófonas”, desde seu processo criativo, passa pelas editoras (francesas) e culmina com a recepção das obras pelo público (francês, em grande parte): Tes mains pelotent et inspectent, tes yeux n'en croient pas leurs oreilles: quoi de commun entre un Bessora et un Césaire? Entre un Tadjo et un...Chut! Il est des questoins qui ne se posent point. Des logiques qui ne s'expliquent pas. Réjouis-toi plutôt d'avoir trouvé ton exemplaire. Un Frankétienne pris en sandwich entre Dongala et (Ben) Jelloun...fallait y penser (Ibid., p. 238-239) Muitos dos fundamentos à noção operatória de literaturas francófonas são criticados, nestes termos, por Nimrod, por Kanor e por boa parte dos escritores que subscrevem a obra Pour une littérature-monde. Referências CÉSAIRE, Aimé. Une tempête. Paris: Éditions du Seuil, 2008. CÉSAIRE, Aimé. Cahier d´un retour au pays natal. 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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Romance africano de língua francesa: implicações do novo código e matriz tradicional Maria Suzana Moreira do Carmo1 Resumo: Com o exame das matrizes das literaturas africanas, este artigo pretende avaliar os elementos da história recente da África ocidental que propiciaram o surgimento dos romances africanos de língua francesa. O período aqui considerado refere-se, sobretudo, à passagem do romance histórico às obras de ficção que adquiriram certa autonomia, com a expressão da individualidade do autor, mas que ainda mantiveram um estreito vínculo com a narrativa tradicional. Palavras-chave: Literaturas africanas. Narrativa tradicional. Romance africano. Résumé: En examinant des origines des littératures africaines, cet article vise à évaluer les éléments de l'histoire récente de l'Afrique de l'Ouest qui ont conduit à l'émergence des romans africains de langue française. Nous considérerons, à cet effet, la période qui comprend surtout le passage du roman historique aux œuvres de fiction ayant acquis une certaine autonomie avec l'expression de l'individualité de l'auteur, tout en maintenant un lien étroit avec le récit traditionnel. Mots-clés: Littératures africaines. Récit traditionnel. Roman africain. Les paroles très anciennes C’est comme les graines... Camara Sory 11Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e professora Adjunto II do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários). E-mail: suzanamcarmo@ileel.ufu.br 118 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 As circunstâncias que propiciaram o surgimento das literaturas africanas – a introdução da educação formal pelas mãos do colonizador em um continente orientado social e culturalmente pela oralidade – levaram o romancista africano a elaborar suas obras segundo uma visão estética que se apoiava tanto na tradição romanesca européia quanto nas narrativas tradicionais. Se as literaturas do ocidente modelaram, em parte, a criação dos países colonizados, a preservação de elementos da tradição oral tornou-se um meio privilegiado de defesa do direito à diferença e à constituição de campos literários africanos que se demarcam do cânone ocidental. Com o intuito de examinar os elementos constitutivos do romance africano, Amadou Koné (1985) analisa, sucessivamente e segundo uma ordem cronológica, a narrativa oral tradicional, o romance histórico e o romance moderno, partindo da hipótese de que parte da ficção africana é decorrente de um processo evolutivo da narrativa heróica tradicional oral e que essa evolução é devida à “transformação da realidade africana e de seu sistema de criação literária” 2 (1985, p. 133).3 Com uma orientação semelhante, embora menos imparcial, Makouta-Mboukou, em seu estudo sobre o romance africano de língua francesa, não se limita à análise dos aspectos formais e estéticos da criação literária. Segundo o autor, o encontro de culturas que gerou o romance africano de língua francesa representa uma via de alienação e o corolário da seguinte constatação: A civilização ocidental é essencialmente caracterizada por sua intolerância. Os três elementos que a compõem não deixam entre si nenhum interstício capaz de abrigar os elementos de cultura estrangeira. São estes: a religião cristã, a técnica e o espírito cartesiano. (1980, p. 162) 4 [Grifos do autor] Sob essa perspectiva, os três pilares da civilização ocidental formariam a base da rejeição da cultura tradicional africana. Enquanto a religião cristã não reconhece a existência de outras práticas e pensamentos religiosos, a técnica ocidental, oriunda do pensamento discursivo, rejeita a priori a razão negra. Quanto ao pensamento cartesiano, sua fé na capacidade cognitiva da razão elimina a sensibilidade diante dos mistérios da natureza e a comunhão com as forças secretas do universo como meios de aquisição de conhecimento. A citação acima compreende, de fato, um sentido extenso de rejeição cultural que será considerada, no âmbito deste trabalho, sob a 2 3 Todas citações das obras originalmente em francês terão traduções de minha autoria. « ... à la transformation de la réalité africaine et de son système de création littéraire. » « La civilisation occidentale est essentiellement caractérisée par son intolérance. Les trois éléments qui la composent ne laissente entre eux aucun interstice pour loger les éléments de culture étrangère. Ce sont : la religion chrétienne, la technique et l’esprit cartésien. » 4 119 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 perspectiva dos efeitos da recepção e legitimação de obras africanas por parte de crítica europeia. Rejeitando os elementos da narrativa tradicional, essa recepção inicial desconsiderava o fato de que, a despeito de sua orientação temática ou ideológica, a ficção africana não poderia deixar de refletir o encontro da cultura ocidental com a tradição africana que, por sua vez, compreende a cultura árabe. É nesse sentido que faremos a seguir a verificação da permanência dos elementos da narrativa tradicional nos primeiros romances africanos de língua francesa. Cumpre, no entanto, esclarecer que por romance moderno compreende-se as obras de ficção que adquiriram certa autonomia na expressão da individualidade do autor, mas que ainda mantinham um vínculo com o passado pré-colonial, evocando a tradição, seja por meio da temática, do estilo ou da composição formal da obra. Portanto, não faremos qualquer menção aos autores que Bernard Magnier classificou, poeticamente, como “os viajantes solitários”5 (1990, p. 102), autores dos anos 80, dotados de um estilo próprio, mais individual, mas cujos percursos originais não eliminam a sensibilidade em relação à coletividade, embora esta seja considerada sob uma perspectiva mais universal e menos ligada às questões específicas da África. Ao contrário, a evolução da narrativa tradicional ao romance moderno restringir-se-á à produção literária que marca a passagem do oral ao escrito. O surgimento das literaturas africanas de língua francesa A produção do romance africano de língua francesa é esparsa e lenta até o período da liberação das colônias francesas, em 1960. Makouta-Mboukou (1980, p. 195) considera que os primeiros romances representam, na verdade, um período de exploração e experimentação, mas aponta os romances Le reprouvé, do senegalês Massyla Diop, e Karim e Mirages de Paris, do também senegalês Ousmane Socé, como romances dignos de atenção e indicadores dos rumos que tomariam esse gênero na era pós-colonial. Le reprouvé, publicado sob a forma de folhetim, 5 Bernard Margnier refere-se à produção literária dos anos 80 de autores que, nascidos no continente africano, elegeram Paris como domicílio e cujas obras parecem aderir a estratégias muito mais individuais do que coletivas. São eles: Yodi Karone, Marie Ndiaye, Catherine N’Diaye, Blaise NDjehoya, Simon Njami, Calixthe Beyala, Thomas Mpoyi-Buatu, Léandre-Alain Baker Barnabé Laye, Bolya Baenga, Caya Makhele, entre outros. 120 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 em 1926, já indica a degenerescência dos costumes da África colonial, mas, embora lamente o desaparecimento gradativo do passado africano, não rejeita a assimilação cultural. Quanto a Karim, primeiro romance de Socé, de 1935, é possível verificar de maneira mais precisa a armadilha montada para o jovem africano letrado, que é seduzido pelo brilho artificial da civilização ocidental, tema que, aliás, se tornaria recorrente na ficção africana. Se por um lado, intelectuais como Amadou Koné (1985) e Makouta-Mboukou (1980) reivindicam o reconhecimento da narrativa tradicional como matriz e inspiração da ficção africana, por outro lado, é importante observar os impactos da alteração de código – do oral ao escrito – e da materialização da literatura, instituídas pelo sistema colonial, que promoveram a sobreposição da escrita a uma cultura baseada na oralidade. Implantação da cultura letrada A alteração de código deveu-se à implantação do sistema educacional e consequente divulgação da língua e cultura francesas nas antigas colônias. Como propósito inicial, esse sistema previa a implantação de um modelo europeu para fins de divulgação dos hábitos e da superioridade da civilização ocidental em contraposição ao que o colonizador considerava como os costumes bárbaros de um povo pouco afeito ao exercício da lógica, o que justificava a precariedade que, na opinião do colonizador, se refletia no cotidiano africano. Sem discutirmos, por enquanto, a fragilidade do argumento, podemos ao menos dizer que, nos interstícios da ação benevolente, escondia-se a necessidade de fornecer os subsídios adequados à população autóctone para que pudesse colaborar efetivamente com o assentamento da administração colonial. Foi, no entanto, essa ação educativa que proporcionou a formação de leitores e forneceu as bases para o surgimento dos futuros escritores, poetas e, posteriormente, do pensamento crítico africano. “Na verdade, o poder colonial francês, ao organizar um sistema de ensino nos territórios ocupados em função da necessidade de sua própria sobrevivência, suscitou, sucessivamente, e entre outros, dois fenômenos que certamente não figuravam em suas previsões: em primeiro lugar, a formação progressiva de um público que lia e se 121 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 expressava em francês e, em seguida, a emergência de uma literatura de expressão igualmente francesa” (GNAOULÉ-OUPOH, 2000. p. 12).6 O sistema de ensino colonial teve sua primeira escola oficial aberta em agosto de 1887, por iniciativa de Arthur Verdier, navegador e comerciante francês, instalado em uma província da Costa do Marfim, cuja intenção se limitava a formar os homens da região a fim de solucionar os problemas imediatos de seu comércio e das plantações locais. A mesma necessidade detectada por Verdier levaria o governador da colônia, Binger, a assinar uma convenção entre a administração local e a congregação das Missões Africanas de Lyon para garantir a eficácia do ensino, por ele julgado insuficiente, e servir de apoio ao empreendimento colonial de divulgação da língua e da cultura francesas. O desenvolvimento do ensino em língua francesa só se efetuou, portanto, a partir da necessidade de expansão e domínio do colonizador7, sendo o desenvolvimento da literatura uma conseqüência natural da expansão do ensino e, posteriormente, da abertura das universidades e formação dos futuros intelectuais do continente africano. Quando a organização do ensino público passa à administração federal, ou seja, quando a administração colonial estabelece uma nova política escolar orientada a partir de Dakar 8, a expansão do ensino público tem o mérito de estender sua ação às diversas regiões dos países colonizados, mas o demérito de provocar, pela proposta de organização do ensino que dividia as escolas em rurais, regionais e urbanas, a oficialização da exclusão. Enquanto as escolas rurais eram mantidas por monitores africanos cuja principal atribuição era fornecer (...) os rudimentos de língua francesa, de higiene e de cálculo [as escolas urbanas] foram criadas com o objetivo de satisfazer as necessidades de escolarização dos filhos e filhas “En effet, le pouvoir colonial français, en organisant, pour les besoins de sa propre survie, un systhème d’enseignement dans les territoires occupés, a successivement suscité, entre autres, deux phénomènes qui ne figuraient certainement pas au nombre de ses prévisions : d’abord la formation progressive d’un pubic lisant et s’exprimant en français, ensuite l’émergence d’une littérature également d’expression française.” 6 7 Outro ponto que merece atenção por corroborar com o desejo de promover a submissão do colonizado é a instauração tardia do ensino feminino. Este só se produziu, com efeito, a partir do momento em que os padres responsáveis por parte das escolas oficiais concluíram que apenas com a formação de núcleos familiares cristãos poderiam garantir o sucesso das Missões, uma vez que haviam constatado que os convertidos retornavam ao seu meio de origem. 8 Dakar tornou-se a sede da AOF (Afrique-occidentale française) que regia o conjunto das colônias africanas e da qual emanavam as leis e decretos que organizavam as colônias no plano político, econômico, social e, na medida de seus interesses e necessidades, também no plano cultural. 122 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 de europeus e de funcionários africanos que dominassem bem o francês e que vivessem ‘à moda européia’. 9 (GNAOULÉ-OUPOH, 2000, ibidem, p. 21). Além da inserção do modelo, tal valoração do modus vivendi europeu não deixará de ter implicações diretas nas literaturas africanas, cuja produção inspirou-se fortemente na realidade imediata. Mesmo quando os escritores se empenham em recuperar a tradição, sem fazer qualquer menção ao momento histórico vigente, trata-se de um resgate que visa enaltecer os méritos e as virtudes dos grandes homens, da estrutura social e costumes tradicionais. A imposição da língua e de hábitos europeus a uma cultura social e politicamente organizada só poderia provocar a reação de parte da população que permanecia refratária ao domínio francês. Não é, portanto, de se admirar que, em poucos anos de existência, a literatura africana tenha mudado suas feições. Se, por um lado, o sistema educacional colonial permite o surgimento das primeiras obras literárias nos moldes metropolitanos, por outro, as dimensões políticas e socioculturais dessa inserção de valores e modelos franceses criam as condições ideais para o surgimento de obras elaboradas, sobretudo, a partir da reação ao totalitarismo e aos abusos cometidos contra o povo africano. Com a recuperação da tradição, as literaturas africanas trazem à cena literária aquilo que a Europa tentou condenar ao esquecimento: a cultura africana précolonial. Em entrevista concedida a Edouard Maunick (2002), Léopold Sédar Senghor relembra sua experiência pessoal com a instrução francesa que tinha como objetivo principal caracterizar a barbárie da cultura africana: Foi nos anos 20, eu estava no seminário Libermann; o diretor, o padre Lalouse, era realmente um educador: ele queria, como nos dizia com freqüência, fazer de nós verdadeiros franceses negros. O padre Lalouse tinha o hábito de nos dizer que nós não éramos civilizados, que o que havia era uma tábula rasa e que era preciso nos ensinar a pensar, a agir e até mesmo a sentir como os europeus, como os brancos, como os franceses, e eu me revoltava contra essa idéia e voltava ao passado. Eu pensava nos dias de Djilor, naquela vida de vilarejo que era ordenada como uma cerimônia, desde o amanhecer, os cumprimentos a meu pai com o esboço de genuflexão das mulheres e das moças, até às noites escuras, palpitantes, com seus contos e lendas. Tudo era organizado, tudo era digno, tudo era belo e, mais tarde, me lembraria dessa vida de Djilor ao ler Léo Frobenius falando dos Negros e dizendo que esses homens eram civilizados até os ossos.10 (SENGHOR, 2002, p. 7). “... des rudiments de langue française, d’hygiène et de calcul, [as escolas urbanas] ont été créées dans le but de satisfaire les besoins de scolarisation des fils et filles d’Européens et de fonctionnaires africains, maîtrisant bien le français et vivant « à l’européenne”. 10 “C’était dans les années vingt, j’étais au collège séminaire Libermann, le père directeur, le père Lalouse était vraiment un éducateur, il voulait comme il nous l’a souvent dit faire de nous des Français noirs. Et le père Lalouse 9 123 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No prefácio de Les Damnés de la terre, de Frantz Fanon, Sartre (1968, p. 137) denuncia o processo de helenização do colonialismo, o engodo e as táticas de uma agressão imperialista. Em 1948, o filósofo já havia feito a apreciação das conseqüências deste processo no plano literário. Os rumos que as literaturas africanas tomaram nos anos subsequentes não fizeram senão ratificar as previsões de Sartre: o plano estético-literário foi revelando, de forma profunda e consistente, a conscientização de uma realidade histórica que compreendia tanto a valorização das tradições quanto a intervenção do imperialismo europeu, visando ainda estabelecer o balanço dessa dicotomia em benefício de uma constituição identitária, conforme aponta Charles Nokan: A maioria dos escritores freqüentou a escola do colonizador e foram, portanto, parcialmente influenciados pela educação que receberam. Havia uma espécie de escola em cada região, em nossos diferentes grupos étnicos, mas tratava-se de uma escola cujo ensino era exercido junto aos pais [pois] essa era uma época de experiências, relacionada ao que os pais faziam, a tudo o que diziam; tudo era oral naquele momento; antes de sermos educados pela educação criada pelos ocidentais, criada pelos colonizadores, nós havíamos sido formados por esse tipo de educação que eu chamaria de educação africana, educação da etnia, [exercida] junto aos pais e que só pode ser feita por meio da experiência. Depois, tivemos na escola a cultura que o ocidente nos apresentou: a França ou a Inglaterra, dependendo da região da África. E não há dúvida de que também adquirimos certa experiência e isso transforma parcialmente o indivíduo: temos um pouco de ambos, o que pode aparecer nas atividades que exercemos (...), portanto, costumamos dizer que ambos se manifestam na obra. Cabe agora aos leitores, aos críticos verificar o que é mais influenciado pelo ocidente e o que é, em parte, influenciado por nossas culturas africanas. (NOKAN, 2006) Vejamos, então, em que medida os elementos da narrativa tradicional determinaram os traços que constituíram o moderno romance africano, confirmando as alegações supracitadas de que o gênero romanesco africano não se limita a uma servil adaptação do romance francês. avait l’habitude de dire que nous n’avions pas de civilisation, qu’il y avait table rase, et qu’il nous fallait apprendre à penser, à agir et même à sentir comme les Européens, comme les Blancs, comme les Français et je me révoltais contre cette idée et je revenais en arrière. Je songeais aux jours de Djilor, à cette vie de village qui était réglée comme une cérémonie depuis le réveil du matin, les salutations à mon père avec l’esquisse de génuflexion des femmes et des jeunes filles jusqu’aux veillées noires palpitant de contes et de légendes. Tout était réglé, tout était digne, tout était beau et plus tard je me rappellerai cette vie de Djilor en lisant Léo Frobénius parlant des Noirs et disant que ces hommes étaient civilisés jusqu’à la moelle des os.” 124 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Mestres do discurso: do griot ao escritor moderno A sociedade tradicional, anterior ao tráfico negreiro, é definida por Amadou Koné (1980, p. 137) como uma sociedade fechada, na qual o principal objetivo consistia em salvaguardar a unidade e coerência do grupo. Seu sistema de organização contava com um princípio metafísico que se expressava por meio dos mitos e permitia o equilíbrio entre o homem e a natureza. Esses mitos regiam então as questões fundamentais da comunidade e eram ensinados pelos anciãos, verdadeiros guardiões da tradição e mandatários dos deuses e ancestrais, que tinham como função principal a manutenção do equilíbrio e o respeito aos valores do clã tais como a continuação da linhagem, ou a importância do princípio de descendência, o valor da virilidade, da coragem, e da fecundidade, entre outros. Como afirma Jacques Maquet (1968, p. 18-21), tudo o que o africano é e possui se deve a seu status como membro de uma linhagem, como descendente de um ancestral, cuja imagem é venerada como a de um ser forte e poderoso. O herói mítico se torna então um modelo em torno do qual gravita a narrativa tradicional, proporcionando a criação de personagens históricos como Sundjata, ancestral da região do Mandinga, cujos grandes feitos foram narrados por Djibril Tamsir Niane (1960) em Soundjata ou l’épopée du Manding. Sem grande densidade psicológica, o herói tradicional não tem dúvidas ou apreensões quanto ao papel que deve desempenhar em sua relação com os demais personagens, com a natureza ou as contingências da ação. “Nesse mundo “fechado e perfeito”, a questão fundamental não é saber se é preciso ‘ser ou não ser’ mas, antes, como estar o mais alinhado possível com os valores considerados como os melhores”.11 (KONÉ, 1985, p. 137). Em sua pesquisa, Koné identifica duas etapas na evolução do romance africano. A primeira, que constitui a formação do romance histórico, é caracterizada pelo processo de recriação de uma história antiga na qual o escritor não desempenha o papel de simples tradutor, mas reelabora o tema como se ele próprio a tivesse criado. Ser mais do que um simples tradutor é ainda uma característica que diferencia a atividade do romancista da transcrição direta da “Dans ce monde “clos et parfait”, la question fondamentale n’est pas de savoir s’il faut “être ou ne pas être” mais plutôt comment être le plus en conformité avec les valeurs considérées comme les meilleures”. 11 125 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 narrativa tradicional. O escritor, em parte ocidentalizado, deixa a sua marca de criador, daquele que possui certa autonomia que lhe permite parafrasear a história. Talvez tenha sido esta uma das razões que levaram alguns críticos a se perguntarem, por exemplo, em que medida Wangrin, personagem do romance L’Étrange destin de Wangrin, de Amadou Hampaté Bâ (1992), corresponde ao personagem real apresentado na advertência que precede o romance e qual seria a parte de inventividade com que o autor teria complementado o perfil e as façanhas do personagem. No posfácio, redigido treze anos após a publicação do romance, Hampaté Bâ usa de fina ironia para esclarecer os mal entendidos relativos à autenticidade dos personagens e eventos narrados: Desde a publicação deste livro, em 1973, alguns mal entendidos surgiram cá a lá, tanto no que concerne à personalidade real do herói quanto à própria natureza da obra. (...) Admite-se, em geral, a existência histórica daquele que se apelidou, ele próprio, de “Wangrin”, mas acredita-se que devo ter “romanceado” um pouco sua vida, introduzindo uma dose sutil de tradição oral e eventos sobrenaturais de minha autoria, a fim de encorpar a história e lhe dar uma espécie de significação simbólica. Sinto-me extremamente lisonjeado pelo fato de que exegetas, que são, com freqüência, eminentes professores de literatura, atribuam a mim tais qualidades de criação literária”12 (1992, p. 359). A segunda etapa seria marcada pela maior liberdade com que o escritor elaboraria suas tramas, mesmo que seus romances ainda lembrassem, direta ou indiretamente, a tradição oral. Trata-se, portanto, de uma interpretação livre da narrativa tradicional. Além da formação européia dos escritores, que permitiu a mudança do código de expressão e o acesso ao cânone ocidental, um outro fato relevante para a gradual aquisição de liberdade de criação do escritor africano foi o afastamento do controle do público. As narrativas da tradição eram proferidas para uma audiência que dominava o teor das histórias narradas e conhecia profundamente os mitos e heróis. Esse conhecimento fazia com que o público exercesse um controle sobre a fidelidade da 12 Depuis la parution de ce livre en 1973, certains malentendus sont apparus çà et là tant sur la personnalité réelle du héros que sur la nature même de l’ouvrage. (...) On admet généralement l’existence historique de celui qui s’était surnommé lui-même « Wangrin », mais on pense que j’ai dû « romancer » quelque peu sa vie, y introduisant même, pour corser l’histoire et lui donner une sorte de signification symbolique, un dosage subtil de tradition orale et d’événements surnaturels de mon cru. Je suis extrêmement flatté que des exégètes, qui sont d’ailleurs souvent d’éminants professeurs de littérature, m’attribuent de telles qualités de création littéraire ”. 126 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 narrativa, controle que desaparece com a alteração do suporte: o livro nas mãos do leitor admite certamente uma recepção crítica, mas não altera os rumos da narrativa como ocorria durante a transmissão oral. É exatamente por essa razão que a justificativa da procedência dos mitos e heróis narrados é recorrente nos discursos dos griots. Em Soundjata, o griot Mamadou Kouyaté garante ser merecedor de crédito quanto à História do Ancestral do grande Manding: Minha palavra é pura e despojada de qualquer mentira; é a palavra de meu pai; é a palavra do pai de meu pai. Eu vos transmitirei a palavra de meu pai tal qual a recebi; os griots dos reis ignoram a mentira13 (NIANE, 1960, p. 10) Soundjata ou l’épopée du Manding é um romance histórico, cuja estrutura e função estão muito próximas da narrativa oral tradicional. Já em outra fase, e considerando-se os desenvolvimentos do romance estabelecidos por Amadou Koné, L’étrange destin de Wangrin suscita algumas suspeitas em relação à credibilidade dos eventos narrados. Se Hampaté Bâ garante a veracidade de sua narrativa e de sua fonte, pela ‘palavra’ recebida do próprio Wangrin, a dúvida traz o reconhecimento implícito da atuação da imaginação do autor. Um passo adiante, quando a autonomia do autor já seria então francamente reconhecida, Ahmadou Kourouma, Les Soleils des indépendances, revela uma imagem muito tênue do griot da sociedade tradicional. Diamourou, descendente dos virtuosos griots da família Doumbouya (KOUROUMA, 1970, p. 107), apresenta um discurso competente e tenta manter o prestígio de sua casta, mas não evoca a autenticidade de seu discurso. Diamourou é o griot da moderna criação literária africana que, além de estar distante da respeitosa audiência de outrora e ter perdido sua função de memória reguladora da sociedade e do clã, é fruto do esfacelamento da sociedade tradicional trazido pelos novos ventos das independências, sendo que ele próprio tira proveito da situação, vivendo às expensas da filha e dos netos, que enriqueceram graças ao novo poder e à nova administração. A passagem da narrativa do griot à narrativa do escritor moderno é, portanto, marcada por um processo evolutivo que se inicia na narrativa oral tradicional, passa pelos romances históricos que compreendem uma espécie de tradução, ou transcrição, dos grandes temas míticos e históricos, até chegar ao moderno romance africano. Neste momento, a imaginação e a “Ma parole est pure et dépouillée de tout mensonge; c’est la parole de mon père; c’est la parole du père de mon père. Je vous dirai la parole de mon père telle que je l’ai recue; les griots de roi ignorent le mensonge”. 13 127 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 criatividade individual desempenham um papel preponderante sem, contudo, abandonar totalmente a estrutura da narrativa tradicional. Além de certa submissão ao cânone ocidental e da liberdade adquirida para expressar sua individualidade e ideologia, a alteração do código da comunicação, do oral ao escrito, também permite que o autor prolongue, de certo modo, a atuação do griot. Esboçando um esquema comunicacional da narrativa tradicional, Amadou Koné aponta ainda a dupla função do escritor moderno: além de assumir o lugar do griot, ou seja, o lugar do emissor das histórias exemplares da tradição, também assume o papel do agente rítmico cujas intervenções musicais foram substituídas, no novo código, pelos acréscimos do enredo e pelo estilo do autor, enriquecendo a mensagem e permitindo a introdução da ideologia do autor. Um dos traços que distinguem o griot do escritor moderno africano é o fato do griot não ser um criador na concepção ocidental do termo. Aliás, no momento em que o autor africano ganhava autonomia e liberava sua imaginação, na França, teóricos como Barthes (1984, p. 63-69) e Foucault (1994, p. 789-821) opunham-se à tradição clássica e propunham, num movimento vanguardista, a morte do autor. Dito isso, assinalamos um dos pontos de divergência, tanto na produção literária quanto na crítica, entre metrópole e ex-colônias. Isso não significa que o privilégio da escritura em detrimento do autor não possa constituir uma via possível de análise das literaturas africanas, mas no período que marcou a passagem do romance histórico ao romance moderno africano, ou ainda no período que, posteriormente, compreenderia a era das reivindicações, das lutas pela liberação e os anos subseqüentes às Independências, esse modelo de leitura de uma obra africana constituiria praticamente um anacronismo. Na passagem da tradição oral à escrita, a ideologia do autor e o momento histórico são partes integrantes da narrativa. O cenário literário que abriga, por exemplo, o primeiro romance de Ahmadou Kourouma encontra-se em estágio acentuado de liberação do escritor14. Mesmo que a sociedade tradicional continuasse sendo uma fonte inesgotável de motivos temáticos, o controle da narrativa oral exercido pelo público havia desaparecido. A supressão do crítico e censor 14 Esse momento coincide com uma vasta produção de romances que sucederam o processo das independências do oeste africano. A esse respeito, podemos consultar a extensa lista de publicações selecionadas por Pius NGANDU Nkashama em Les années littéraires en Afrique (1912-1987). 128 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 imediato, cuja exigência de fidelidade à História restringia o papel do narrador à manipulação competente do discurso, permitiu o livre curso da imaginação do autor. Esse é o momento em que o escritor assume o papel de emissor independente, abandonando a função de intérprete ou recriador de uma história há muito conhecida. Entretanto, isso não significa que os temas tradicionais tenham sido totalmente abandonados, a diferença reside no tipo de tratamento dado ao texto, que se singulariza por efeito da introdução da imaginação e ideologia do autor. Se o escritor utiliza episódios da memória tradicional, com referências a personagens, datas ou eventos históricos, a óptica pessoal prevalece em detrimento da fidelidade histórica. Escrevendo agora em seu nome, em nome de suas aspirações e de seus compromissos ideológicos, suas opiniões não são oficiais e o narrador, isento de compromisso com a comunidade, pode expressar livremente seu julgamento. O romance africano permitiu, portanto, que o escritor, cada vez mais impregnado da cultura ocidental, se apartasse dos compromissos que o narrador tradicional tinha para com o seu público. Suas convicções e aspirações sócio-políticas ou suas crenças religiosas encontram, agora, livre curso de expressão. Afastando-se dos temas e dos heróis tradicionais, os escritores podem enfim criticar e buscar alternativas para as questões discutidas em seus enredos. O romance moderno africano surge, de fato, com a introdução da cultura ocidental no continente, mas não deixa de ter uma ligação genética com a narrativa heróica tradicional. Depois de uma breve passagem pelo romance histórico, no qual o autor torna-se uma espécie de intérprete do passado, o escritor passa a expressar posicionamentos pessoais sem, contudo, negligenciar as grandes questões coletivas ou a tradição. Considerando-se a história recente do continente africano, as questões coletivas compreendem, em geral, as mazelas provocadas pela colonização e pela pós-colonização, responsáveis pelo desequilíbrio e destruição das instituições tradicionais. Não é, portanto de se admirar que a crítica literária referente às literaturas africanas tenha privilegiado as relações entre a sociedade e a obra literária: Georges Lukács, Lucien Goldmann e Mikhail Bakhtin são teóricos recorrentes nos estudos referentes às literaturas africanas. Com tudo o que este continente comporta de tradições, crenças e organização social e política, quer se trate de um traço deliberado, quer represente uma manifestação não intencional, 129 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 inconsciente, os escritores africanos deixam sempre entrever, em maior ou menor grau, as marcas da sociedade tradicional africana e a herança da narrativa oral. Referências BARTHES, R. Le bruissement de la langue: Essais critiques IV. Paris: Seuil, 1984. FANON, F. Les damnés de la terre. Préface: J.-P. Sartre. Paris: Découverte, 1987. FOUCAULT, M. Qu'est-ce qu'un auteur. In: Dits et écrits. Paris : Gallimard, 1994. p. 789-821. GNAOULÉ-OUPOH, B. 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Maria Aparecida de Barros1 RESUMO: Colônia portuguesa, Angola esteve sob jugo dessa empresa capitalista no percurso de quinhentos anos. A independência ocorreu em 1975. É desse cenário a obra de contos Dizanga dia Muenhu, de Boaventura Cardoso, editada em 1977. O escritor não se dispôs a traduzir o título do livro, evento que suscita a hipótese de que cabe ao leitor investigar o termo em quimbundo, grupo etnolinguístico do povo banto, estética de valoração à cultura de tradição oral africana. Dos contos, elegemos Nga Fefa Kajinvunda, em que a protagonista se faz pela palavra. Tratase de uma das inúmeras mulheres que comercializam no mercado ao ar livre. O processo de violência substancia-se pelo autoritarismo do universo masculino sobre o feminino e pela supremacia da visão europeia em detrimento à pessoa negra. Diante disso, a proposta deste artigo visa analisar as formas de resistência da personagem feminina, que se ampara na voz, no discurso vivo, para espelhar na escrita de Boaventura Cardoso, o enfrentamento e a recusa à anulação. Assim, a voz recobre-se de signos. Representativa da coletividade, forja-se na escrita, recurso utilizado para romper o cerco de invisibilidade imposto à sociedade angolana. Na trama literária, os elementos composicionais entrelaçam-se de vocábulos quimbundo imbricados à língua portuguesa, criando uma escrita que repercute a oralidade que, além de formular denúncia à violência, à exploração, ao racismo, funciona como húmus identitário. PALAVRAS-CHAVE: Voz feminina; Exploração; Violência; Resistência; Subversão. RÉSUMÉ: La colonie portugaise, Angola était sous le domaine de l’enreprise capitaliste au cours de cinq cents ans. L’indépendance a eu lieu en 1975. Dans ce scénario l’oeuvre de contes de Dizanga dia Muenhu, Boaventura Cardoso, publié em 1977. L’auteur n’a pas cherché à traduire le titre du livre, événement qui souléve l’hypothèse que c’est au lecteur d’étudier le terme en quimbundo, groupe éthno-linguistique du peuple bantou, esthétique de valorisation à la culture de la tradition orale africaine. Des contes, j’ai choisit Nga Fefa Kajinvunda, où la protagoniste se fait par la parole. C’est une des mombreuses femmes qui font du commerce à l’air libre. Le processus de violence passe par l’autoritarisme de l’univers masculin sur le féminin et la suprématie de la vision européenne en détriment de la personne de race noire. Par conséquent, le but de cet article est d’analyser les formes de résistance du personnage féminin, qui est soutenu par la voix, le discours en direct, pour refléter dans l’art de Boaventura Cardoso, l’affrontement et le refus à l’annulation. Ainsi, la voix se recouvre de signes. Représentative de la communauté, forgée sur l’écriture, caractéristique utilisée pour rompre le siège de l’invisibilité imposée à la société angolaise. Dans cette trame littéraire, les éléments de composition se croisent avec des mots quimbundo immiscés dans la langue portugaise, en créant une écriture qui résonne dans l’oralité qui, outre la formulation de dénonces à la violence, l’exploitation, le racisme, fonctionne comme l’humus identitaire. 1 Doutoranda em Letras, Universidade Estadual de Londrina - UEL, Linha de pesquisa: Diálogos Culturais. Trabalha no Núcleo Regional da Educação, situado à Av. Minas Gerais, 435, Cornélio Procópio. Endereço para contato: mapdebarros@gmail.com 132 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 MOTS-CLEFS: Voix féminine; Exploration; Violence; Résistence; Subversion. Introdução Colônia portuguesa, Angola esteve sob jugo dessa empresa capitalista no percurso de quinhentos anos. Organizada militarmente, desde 1961, obteve independência, proclamada em 11 de novembro de 1975 pelo presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), António Agostinho Neto, eleito primeiro presidente após a independência. Lançamos olhar a um habitante de África, Boaventura Cardoso, nascido em Luanda, aos 26 de julho de 1944, que dos oito aos 22 anos viveu em Malange, província de Angola, localizada na África Austral. É destas localidades que vibra a voz do produtor ficcional, que "é um dos escritores mais lidos na atualidade, sendo sua obra traduzida em várias línguas" (CHAVES; MACÊDO; MATA, 2005, p.11). Graduado em Ciências Sociais, Boaventura Cardoso desempenhou funções diversas. Dirigiu o Serviço de Informação Pública do Ministério de Informação da República Popular de Angola, bem como o Instituto Angolano do Livro. Foi Secretário da Cultura. E, em França, assumiu o cargo de Embaixador extraordinário e plenipotenciário de Angola. Atividade também que passou a desenvolver em Roma. De volta ao seu país, atuou como Ministro da Cultura; Governador da Província de Malange. No momento, é Deputado da Assembleia Nacional de Angola. Seu repertório artístico abrange as composições: Dizanga Dia Muenhu, (1977); O Fogo da Fala (1980); A Morte do Velho Kipacaça, (1987); O Signo do Fogo, (1992); Maio Mês de Maria (1997); Mãe Materno Mar, (2001) e Noites de Vigília (2013), sendo os três primeiros livros de contos e os demais romances. Para a elaboração deste artigo selecionamos o conto Nga Fefa Kajinvunda, retirado da obra Dzanga dia Muenhu, em que o escritor angolano crava denúncia contra a exploração e a violência. Enveredando neste percurso literário, propusemo-nos a levantar alguns dados sobre como se arvora o processo de anulação do sujeito negro por parte da cultura hegemônica europeia. A voz que se entrelaça à do narrador é a da personagem feminina. Trata-se de um discurso arquitetado por uma mulher negra, que no bojo dialógico permite aflorar o contexto de referência à luta pela sobrevivência num espaço margeado pela intolerância, pelo racismo. Na contenda, a mulher negra toma para si a palavra e anuncia a verdade pelo viés do marginalizado, 133 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 torna-se sujeito histórico, “revela-se como criador e criatura” (RATTS, 2007, p.41). Sob esta perspectiva, pontuaremos algumas marcas dialógicas, presentes no discurso dessa personagem que a tornam referência do povo angolano em arenas conflituosas. Por meio da voz, a palavra define seu posicionamento e sua visão de mundo acerca dos problemas que assolam os membros da comunidade de Angola, objetivam sua anulação, conforme reflexões arroladas nos itens a seguir. Voz: estatuto de sujeito à personagem feminina A oralidade patenteia-se no conto Nga Fefa Kajinvunda. Fala e corpo traduzem vivências, particularizam a compreensão que o sujeito tem de si, bem como da sociedade na qual se encontra inserido. Sob este prisma, avalia a situação histórica que perpassa a trajetória humana e pelo acúmulo de conhecimentos assimilados no percurso existencial reúne valores culturais, registro de singularidade. Nesse sentido, a palavra/voz revela a visão de mundo, em que as escolhas reorganizam o indivíduo em si mesmo e, em uma dimensão mais ampla, a conduta projeta valores humanitários, basilares para normatização social. ZUMTHOR (2007) credita função preponderante à voz. Para além da observação aguçada, o pesquisador deve auscultar a poeticidade que emana do coletivo, com fim de perceber as formas de pensamento que orientam os grupos sociais. O corpo associa-se à voz na transmissão de conceitos elementares de formulação humana, conservados nos compartimentos da memória. A articulação voz/corpo resulta na “performance”, que se “situa num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional [...], ultrapassa o curso comum dos acontecimentos” (p. 31). Neste conjunto de ensinamentos se ampliam as vivências, porque ao ilustrar fatos pretensamente triviais, sinalizam-se a complexidade de sua constituição, ou seja, ilustram a situação-problema em suas causas e consequências. Nestes termos a voz humana constitui em toda cultura um fenômeno central. Colocar-se, por assim dizer, no interior desse fenômeno é ocupar necessariamente um ponto privilegiado, a partir do qual as perspectivas contemplam a totalidade do que está na base dessas culturas, na fonte da energia que as anima, irradiando todos os aspectos de sua realidade (ZUMTHOR, 2007, p. 10). 134 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O escritor Boaventura Cardoso, no conto Nga Fefa Kajinvunda, entalha na escrita a “performance”, conjugada pela articulação entre fala e manifestação corporal, configurada na expressiva atuação da personagem feminina. A ação indica a cultura de sua origem e nela se encontra a “energia”, combustão em que se abastece a protagonista para enfrentar os obstáculos sociais, definidos pela exploração, racismo, intolerância. É deste contexto a produção do ficcionista Boaventura Cardoso, há, em seu ato criativo, representação à violência e atrocidades cometidas aos subalternos. Sua estética opera em sentido contrário à lógica capitalista ao espelhar a positividade na atitude de Nga Fefa Kajinvunda. Com isso, estabelece ruptura com os padrões das empresas imperialistas, já que a percepção do autor se volta para a valoração da língua quimbundo e a alteridade conferida à personagem central, conforme sinalizado em: Kuateno! Kuateno! O grito rebentou no ventre atmosférico rapidamente na kazucutice 2 do Xamavo3. Negócios ainda parados, quitandeiras na berridagem do gatuno. Kuateno! Kuateno! Tudo nas corridas para acaçar o dinheiro na ponda 4 de Nga Xica roubado. Na berrida os fiscais também estavam. Pessoas que andavam nos becos ficavam assustadas, movimentação era no acontecimento dos ladrões fugindo, Xamavo tinha desordem. Kandengues até se espantavam, depois mergulhavam rindo na algazarra. Kuateno! Kuateno! Grito levado longe, grito testemunho de boca bocando bocas. Nga Fefa Kajinvunda, como lhe chamavam por causa da força dela na discussão, refilona, quem lhe punha só desafio?, nem mesmo as polícias podiam com ela (CARDOSO,1982, p. 23). Vários termos em quimbundo desfilam juntamente com vocábulos portugueses, denotando a singularidade inerente ao modo de narrar do escritor angolano, que privilegia aspectos da oralidade, bem como a arte de contar histórias. Demarcando o aspecto sonoro propagado pela voz, que ruidosamente se espalha pelas vias do mercado aberto, “Xamavo”. Do ponto de vista ficcional, o alcance da vibração vocal se traduz pelas condições propícias deste ambiente povoado por pessoas diversas, composto, sobretudo, por mulheres comerciantes, crianças e homens. 2 Desordem, confusão (N.E.). Nome de antigo mercado (N.E.). 4 Pano que as quitandeiras usam à cintura e onde guardam o dinheiro (N.E.). 3 135 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 De acordo com PEREIRA (2003), quimbundo é língua africana falada pelo grupo etnolinguístico banto, cultivado por cerca de 500 povos distintos de vários países de África Subsaariana, falado por aproximadamente 60 milhões de pessoas. Constituem cerca de 70% da população do continente. Por estarem esses povos distantes da escrita, a palavra falada foi a via por onde se engendraram os mitos, registros fundadores, que alojados na memória irromperam as barreiras temporais. O discurso vivo consolidou valores, fontes edificadoras de crenças centrais, veículo para normatizar a conduta comunitária. Boaventura Cardoso banha-se nestas vertentes e enfatiza que: Exercito uma semiósis que intersecciona o português angolanizado e as contribuições semânticas da língua Kimbundu, em sua performance e competência. Parto sempre da língua portuguesa reelaborada pelos povos Kimbundu, reelaboração essa, a partir da qual arquitecto a minha gíria estético-literária (CARDOSO, 2010). A confluência estética gera imagens e, de súbito, introduz o leitor à cena dos acontecimentos. Conduz-nos a vislumbrar a agitação advinda do “Xamavo”, particularizada pela movimentação de indivíduos na prática da comercialização e, respectivamente, na obtenção de produtos. Para além disso, informa-nos que a correria aumentou devido ao furto cometido por “kuateno”. O grito lançado contribui para aumentar a vivacidade do recinto. A ambientação edifica-se por um cenário desigual fruto da gestão colonial, que se arquitetou na imposição de autoridade de uma cultura sobre a outra e, no caso de Angola, ocorreu pela truculência do poderio militar na destruição da cultura local. Este estratagema se perdurou e no conto, em questão, o autor dirige a percepção do leitor para as feiras livres, local destacado pela atividade desenvolvida pelas “quitandeiras”. Espaço que conserva as marcas ideológicas repressivas, manifestado pelo poder patriarcal. A ação imposta tem por fim intensificar e selar a violência, com consequente perpetuação da miséria e alienação, cuja tônica consiste em silenciar o outro. O emprego da metáfora “boca bocando bocas”, intensifica a movimentação, sendo que o propósito dessas passagens é elevar a imagem de Nga Fefa Kajinvunda. O evento narrativo centra-se nesta personalidade feminina, que se firma no discurso vivo. Atributo que lhe reveste de força e coragem, já que o corpo “refilona” e a palavra se convertem em instrumentos 136 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 distintivos de luta e resistência contra o sistema opressivo. Por isso, o narrador exalta-lhe a competência discursiva, tal atributo lhe reveste de autoridade. Se pensarmos no adjetivo refilar/ “refilona”, dentre as acepções o que nos parece mais ilustrativo à personagem se restringiria a opor-se tenazmente, resistir, reagir falando. Caráter distintivo que a consagra como signo de resistência, já que pelo seu espírito questionador ninguém ousava a lhe provocar, nem mesmo “as polícias”. Boaventura Cardoso, em nota de rodapé, traduz o significado de Nga Fefa Kajinvunda, “dona Josefa, a zaragateira” (p.23). O acréscimo do adjetivo denota a expressividade da personagem, que não abre mão de seus direitos, faz-se ouvir por meio da discussão, simboliza a possibilidade de reverter a situação opressiva e o menosprezo dirigidos à população marginalizada. A imposição da língua portuguesa como idioma nacional consiste num dos mecanismos basilares das potências europeias para suplantar a identidade dos povos subjugados. Então, somadas às marcas da oralidade há palavras em quimbundo, inclusive lançadas no início e dispersas na narrativa, de modo a enfatizar o lugar social de onde são emanadas. Elas têm relevo pelas representações que adquirem no decorrer da história: o de registrar a violência aos colonizados na intensa demanda em extinguir-lhes as vozes. Os termos da língua nativa se rebelam contra a hegemonia do colonizador e, sendo subversivos, vislumbram a libertação. De acordo com (BONICCI (2009), no campo semeado pelo colonialismo, houve poda aos colonizados quanto ao direito de assumirem suas respectivas identidades. Impôs-se a língua portuguesa como idioma oficial e se repreendeu o uso das línguas nativas, obstruíram as vias para que estes não pudessem ter acesso a própria herança ancestral, bem como aos bens e serviços implantados em suas terras, conquistadas pelo explorador estrangeiro. Em espaços cercados e conduzidos pela mão férrea das potências capitalistas, inibia-se a demonstração de insatisfação e de rejeição à violência estabelecida em seus territórios, restando-lhes o silenciar e o aceitar da submissão. Contudo, muitos foram os meios encontrados pelos povos dominados para alcançar e transpor a muralha de invisibilidade e no período pós-independência traçou-se um projeto objetivava a nacionalização. Dessa forma, “os autores se distanciam da literatura metropolitana e assumem uma literatura mais engajada e mais consoante à cultura e à formação dos sujeitos” (BONICCI, 2009, p. 339). Nga Fefa não sucumbe ao estratagema de silenciamento, pelo 137 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 contrário, o episódio já se abre com um grito. A personagem sustenta sua fala com firmeza e se dirige a seus opositores com determinação. Ainda sob a perspectiva deste pensador, se ideologicamente, durante o longo processo de colonização, as empresas imperiais visaram o aniquilamento da cultura social angolana, em contrapartida, no decorrer desse trâmite, o colonizado desenvolveu a réplica de modo velado em forma de contestação à tirania, à violência, valendo-se dos recursos que lhes convinham de modo a garantir a subjetividade. Assim, a cortesia, o silêncio funcionavam como mecanismos de superação à brutal realidade, sendo que as ideias propagadas pela escrita “revelam não somente a resposta do sujeito colonizado, mas a ambiguidade e a fragmentação do colonizador” (BONICCI, 2009, p. 339). O empenho prima pela “recuperação de voz”, instrumento de valorização, pois de objeto o ser africano passa a ser sujeito de sua própria história, conforme atestado em: Uma vez ela foi. Palavras zangadas com sô Zé, caloteiro. Mé dia, hora suarenta. Ainda dentro de casa que começaram, quase sem barulho. Discutidamente depois, das gargantas vomitavam berros, diálogo violento com as malcriações na língua. Palavras e gestos no enquadramento. Os corpos na discussão enunciavam formas variadas. Paga não pago. Nga Fefa e sô Zé no afrontamento. A solução não aparecia. As pessoas com a curiosidade de saber que conversa era aquela de falar berradamente. Compreenderam bem as conversas que passavam, quando dois já cá fora no prolongamento da maka. Sô Zé pensava por ela ser mulher podia lhe ganhar na luta logo. Se enganou. Eu sou mulher mas você não brincas comigo hem, caloteiro, não tem vergonha — Nga Fefa falou autoridade nas palavras (CARDOSO, 1982, p. 23-24). A tônica à voz patenteia-se no conto, apresentando aspectos da poética oral. A fala feminina provoca a masculina no sentido de clamar por justiça, reivindicando para si e o coletivo o direito legítimo de questionar o sistema, reclamando outras normas para compor as leis sociais. O embate entre os personagens se inicia ao meio dia, o narrador denomina o período por “hora suarenta”, pois este calor se propagará na discussão, de maneira intensiva. Os vestígios de violência ascendem, a princípio, no repertório da fala e se prolongam por meio dos gestos. Corpo e voz culminam na dramatização do episódio, a conjugação mobiliza o leitor a adentrar na cena descrita. “A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca” (ZUMTHOR, 1992, p.32). Marcadamente, faz-se notória a metáfora "garganta vomitavam berros" e, pela câmara conduzida pelo narrador, o foco se afunila em "Palavras e gestos no enquadramento". A junção 138 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 denota percepção de que as letras se desprendem das páginas, de forma a convidar o leitor para também compor a multidão e visualizar a dança espetaculosa, intermediada por corpos e vozes. Com a estratégia da narração em terceira pessoa, o narrador observador em alguns lances concede a palavra à protagonista e no entrelace de vozes evidencia o lugar em que se postula no contexto. Historicamente, coloca-se como parceiro da população explorada, mostra apreço e admiração pela força da mulher, que por sua configuração genética foi depreciada pela fragilidade. Analogicamente, pode-se pensar que na mesma condição se encontra a nação angolana, mas que demonstra resistência e determinação para reverter as consequências fecundadas pela colonização. “Sô Zé pensava por ela ser mulher podia lhe ganhar na luta logo. Se enganou.” A gradação performática prossegue: Todos não estavam acreditar, é embora era garganta dela, manias de desafiar homem, mé! A repetição da cena acontecia outra vez. Cada um na afirmação de si. Kajinvunda nem que fugia só. Fia da mãe! Sô Zé começou de lhe empurrar no chão ali. Vai agora dálhe já — a multidão aquecida de contente. Nga Fefa no chão e o homem masculinamente vitorioso. Mas, boxeiramente5 se levantou e lançou as mãos na garganta masculina. Sô Zé na aflição, eué! Zolhos dele na viragem moribunda. Multidão atenta. Expectativa dominante nos homens e nas mulheres. Receosos de ver sô Zé apanhar nas fuças, os homens estavam. Era uma mulher. Vergonha para eles se Nga Fefa ganhava. Elas, o lado delas, não queriam também ver Kajinvunda debaixo do corpo musculoso.[...] No Sambila, na hora das mé dia, não te digo nada!, porrada grossa, meu! Ninguém se meteu na cena. Só eles. Ditado que mandava não meter a colher entre marido e mulher, ali era lei. Nga Fefa de repentemente baçulou6 o homem e a vitória dela com sô Zé no chão. [...] Nga Fefa ainda na socagem do adversário. Tiveram de lhe dizer chega, vontade era muita (CARDOSO, 1982, p. 24). A ocorrência ganha plenitude ao sair da instância privada para a pública, tendo a população como expectadora do embate entre Sô Zé e Nga Fefa. Notadamente, o narrador exalta a coragem feminina no enfrentamento ao cerco de injustiças, mesmo tendo ciência da desvantagem pertinente às correlações de forças, conforme assinala a afirmação: “Kajinvunda nem que fugia só. Fia da mãe!”. Da afirmação, podese intuir que as vozes autoral e narradora contemplam com interesse e admiração o procedimento da mulher que não se rende aos ditames de práticas transgressoras de direitos igualitários. Momento em que o narrador a consagra por seu qualificativo “Kajinvunda”, isto é, esta representação advém das camadas 5 Com jeito de boxeiro (N.E.). 6 Dar rasteira (N.E.). 139 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 populares, provoca tumulto, sendo expressiva tanto a força discursiva quanto a de resistência física frente ao opressor, pois “uma vez reiniciada a comunicação, as pessoas se redescobrem como seres humanos” (THOMPSON, 1992, p. 213). É perceptível que a ideologia machista naturaliza a opressão à mulher negra, captura mentes tanto de homens brancos como de homens negros, justamente pelo fato de ser transmitida e reproduzida pelo sistema capitalista, tentáculos de dominação e da ampliação da exploração, já que " Receosos de ver sô Zé apanhar nas fuças, os homens estavam. Era uma mulher. Vergonha para eles se Nga Fefa ganhava". O comportamento da plateia indica ser costumeiro o triunfo da brutalidade sobre as pessoas que são avaliadas em suas fragilidades, por isso, a efusão da torcida em prol daquele que ocupa funções gerenciadas pelo escalão colonizador. No entanto, Nga Fefa Kajinvunda não se intimida. Os advérbios “ali” e “já” conferem dinamicidade ao acontecimento, enquanto que “de repentemente” e “ainda” exteriorizam a revolta sufocada, sinaliza que o oprimido pode reverter a ordem imposta sob a reputação positiva conferida à protagonista. “A lição importante é aprender a estar atento àquilo que não está sendo dito, e a considerar o que significam os silêncios. Os significados mais simples são provavelmente os mais convincentes” (THOMPSON, 1992, p. 205). A lição ensinada por Thompson faz-se presente no conto de Boaventura Cardoso, cuja concentração estética prioriza histórias da tradição oral. Seu ato inventivo recai sobre a essencialidade do ser humano, focaliza atributos em que repousam qualidades, vias pelas quais se pode observar o projeto de identificação com os aspectos culturais formuladores da sociedade angolana. Seus curtos contos, densos nas abordagens, abrangem o panorama histórico em que é possível “ouvir” as vozes e interpretar a expressão corporal manifestadas pelas personagens, sinais distintivos da forma de conceber o mundo. "O emprego da dupla dizer-ouvir tem por função manifesta promover (mesmo ficticiamente) o texto no estatuto do falante e de designar sua comunicação como uma situação de discurso in presentia (ZUMTHOR, 199, p.39). Este ponto de vista é notável no conto em questão, pois o autor se dispôs a relatar fatos cotidianos que cercam os grupos sociais de Angola, pelas vias ficcionais. É a voz de uma mulher preterida pelo sistema político-econômico eleita para testemunhar, expor as intrigas desempenhadas pela imensa parcela populacional, descompensada do conjunto de benefícios, distintivo de uma sociedade desigual. Ao externar a interioridade pelo instrumento da faculdade de falar, traz à tona sentimentos reveladores da concepção de mundo dos destituídos, porque a 140 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 palavra expressa a subjetividade de Nga Fefa. Voz e performance designam resistência ao regime patriarcal, fixado por condutas violentas e racistas, conforme o pronunciamento: Nga Fefa, hum parece mentira! Nga Fefa agarrou mesmo o ladrão. Com uma aduela tirou-lhe a vontade de correr. Os miúdos entravam na socagem e bofetadas também davam na condenação. Vinham depois relatos de uma aventura breve, no palco mussequeiro, grávido de cenas. Nunca recuava no medo das pessoas. Nga Fefa tinha homem no corpo dela de mulher. Respondia xingantemente todos que lhe insultavam e até os fiscais punham respeito nela. Senhoras inda que vinham do putu com as manias de superior, não torravam farinha com ela. Olhar sisudo, cigarro na boca, falas poucas, personificava a autoridade e o respeito (CARDOSO, 1982, p. 25). A voz narradora expressa o incidente, manifesta o simulacro no qual contracenam, num espaço divisório, de um lado encontrando-se a população negra e de outro a opulência caucasiana, definida pela supremacia sobre os desprestigiados. O relato vincula-se a valorização dos subjugados, enaltece Nga Fefa que se recusa a curvar-se à ideologia masculina, postulada pelo império colonial, que julga a mulher como ser inferior. Na pauta literária, o autor engrandece a personagem feminina, ressalta-lhe a coragem e destreza em enfrentar o sistema violento, que se sela também pela arrogância das mulheres brancas, que também vivendo sob o jugo machista, sentem prazer em se impor à mulher negra por acreditarem estar momentaneamente no poder. Sob a ótica autoral, Nga Fefa representa a população angolana que mesmo estando à margem, sinaliza a possibilidade de reverter a situação. A presença dos “miúdos”, atuando com a protagonista, aponta novas perspectivas. Estratégia desdobrada no item a seguir. Morte: sublimação do sujeito Nesta etapa do artigo propõe-se ressaltar nos recursos retóricos de Boaventura Cardoso o sentimento de indignação entre dominador e dominados, num espaço singrado pelo ódio. O comportamento violento intenta minar a integridade física, moral e psicológica da protagonista, que como um véu, representa o coletivo dos despossuídos. Emerge do enredo denúncia a grave vulnerabilidade imposta a este grupo social, que encontra na postura de Nga Fefa Kajivunda, respaldo para enfrentar seus dilemas. Talvez, por este motivo, o narrador lhe outorga de força. Diferentemente da violência, que se manifesta pela agressão, conjugada por atos corruptos, que lesam as pessoas, a força se materializa em ações firmes, expressam a moral positiva da 141 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 personagem feminina. No evento ela procura ser respeitada e empenha-se na auto-afirmação, a fim de romper laços opressores, conforme ilustra o excerto a seguir. Chegou e perguntou saber se o peixe quanto é: Trinta escudos. Foi a resposta seca que ela falou na intenção de não arranjar mais conversa. Ela sabia o costume antigo das senhoras da Baixa de discutirem o preço da mercadoria. “Oh! É muito caro, Maria. Toma lá quinze escudos se quiseres.” Braço estendido da senhora ficou embora só no espaço. Nga Fefa parece lhe bateram vibrantemente no corpo. Tirou o cigarro da boca e descansou arrogantemente as mãos na cintura. A mão da oferta barata ainda abandonada no espaço. Zolhos das quitandeiras de repente espiando, muximas palpitantes. Parece que vão vundumunar-se7. Banzaram. “A senhora está chamar Maria a quem? Você viste meu nome é Maria? Vê lá, hem!” –– se arregalaram os olhos no desafio enquanto a mão da oferta cobardemente murchando. Senhora, boca admirada. Nunca tinha ouvido dizer quitandeira fala assim numa senhora. Estava no hábito dela ir no mercado e entrar na discussão do preço, altivamente. Com o criado lá em casa, com a gente do musseque com quem às vezes falava, comportamento dela único. Tempo ainda colonial. Pensou que a quitandeira estivesse maluca. “Parece-me que há um mal-entendido, Maria”. Fora da banca, Nga Fefa no gesto mussequeiro mandou a senhora calar a boca logo, logo senão lhe dava (CARDOSO, 1982, p. 25-26). Não bastasse a luta da personagem feminina pelo direito ao seu espaço num regime machista, a disputa prossegue na inscrição da supremacia irrestrita do poderio do colonizador sobre os nativos colonizados, representada pela “senhora”, que também se encontra aprisionada ao sistema. Duas oponentes, mulher negra e mulher branca, defendem seus princípios, sendo que esta se julga superior àquela, tratando-a, bem como todos os pertencentes a seu grupo etnolinguístico, como seres inferiores. Na comunicação entre ambas, Nga Fefa, em continuidade a moral desempenhada, se impõe na mesma instância de igualdade com a mulher branca, já que não se avalia como inferior, fator de espanto e incômodo à outra. A interferência ao comércio da protagonista, retratado na cena, em que a mulher branca se julga no direito de determinar o preço que irá pagar na mercadoria, denota desvalorização sobre a atividade trabalhista da feirante, mantendo a lucratividade da sociedade capitalista, já que o possível lucro obtido interferiria no modo de sobrevivência da Nga Fefa. No que se refere ao tratamento à personagem principal, nomeada por “Maria”, há descaracterização de sua individualidade, fragilizada pelas disparidades, arbitrariedade e 7 Bater-se, lutar (N.E.). 142 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 intolerância, centradas nas relações sociais entre estas personagens, que pelo foco narrativo, singulariza a sociedade de Angola. Revidando ao procedimento imperioso da “senhora”, Nga Fefa não se intimida pelo autoritarismo e mesmo sob a ameaça mantém-se firme em sua decisão de luta, entendendo que não haveria outro caminho para superar a condição subalterna, conferida e ela, e, num plano maior, à nação. Assim, no enredo literário Nga Fefa Kajinvunda é símbolo de resistência do povo angolano, em particular ao aprisionamento da mulher negra, que deve submissão à superioridade de homens e mulheres da sociedade branca e por extensão ideológica, também aos homens negros. Por isso, sua voz contestadora reclama por sua dignidade e, consequentemente, abrange o coletivo feminino, já que Palavrosamente as quitandeiras caçoavam a mulher da Baixa, desaparecendo. Nos kimbundos8 delas escondiam toda a fúria contra o colonialismo que não podiam falar na língua da senhora abertamente. Anos de opressão se transformavam em liberdade nas falas kimbundas (CARDOSO, 1982, p. 26). Nesta movimentação, a linguagem do escritor de Dizanga Dia Muenhu irrefutavelmente sustenta-se na leitura crítica ao contexto cultural. Apanha as falas de teor testemunhal e as avalia na dimensão social e política, porque refuta os conhecimentos ocidentais que descaracterizam os de matrizes africanas. Ao se debruçar sobre os costumes locais, detalhando barbáries à população mais vulneráveis, ressalta por meio das vozes ficcionais, a particularidade do pensamento banto, que na especificidade identitária demonstra a capacidade de edificar a essencialidade humana por si própria, abastecendo-se em seu acervo filosófico. A potencialidade das “falas kimbundas” configura-se em resistência, instrumento em que a personagem principal e as demais vozes femininas que se agregam à dela extravasam sentimentos de repulsa à ocupação colonial e, consequentemente, contra o patriarcado, uma das ramificações do colonialismo. “Todo discurso é ação, física e psiquicamente efetiva. Donde a riqueza das tradições orais, contrárias ao que quebra o ritmo da voz viva. O verbo se expande no mundo, que por seu meio foi criado e dá vida. Na palavra se origina o poder de chefe e da política, do camponês e da semente (ZUMTHOR, 1993, p. 75). 8 Língua falada pelo povo Kimbundo que havia no Norte de Angola, ao Norte do rio Kuanza (N.E.). 143 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O poder da palavra asseverado por Zumthor aflora-se no discurso vivo proferido pela protagonista, que ao se recusar e driblar o silenciamento, contribui para o fluir das demais vozes de mulheres angolanas negligenciadas pela hegemonia colonial. Então, estas falas refutam a ingerência patriarcal e, neste ato, se funde a identidade feminina. Redes tecidas por meio da avaliação de relações entre este universo de mulheres e o mundo opressor que as sufocam. A sonoridade proliferada no conto arvora-se em dois grupos de mulheres feirantes, sendo a que primeira imagem foca-se na protagonista em sua conduta emancipada, que clama por uma sociedade que considere e valorize a pluralidade da cultura nativa. A outra representação destinase às quitandeiras do “Xamavo” que não possuem a disposição política de Nga Fefa, no choque com a dinastia do dominador, suas atitudes expressam aversão, mas sem a iniciativa e disposição que emanam da personagem central. Estas vozes se tornam expressivas ao unirem-se à voz desafiadora de Nga Fefa. Nesse sentido, voz, corpo e performance retratam a reação do silêncio dos oprimidos no anseio de se fazerem ouvir. A feira do “Xamavo” é o palco no qual se torna possível a audição de vozes outrora amordaçadas, rumores grávidos por libertação. Tal exemplo se amplia a seguir Os policiais vinham acompanhados da senhora triunfante, apontando Nga Fefa: é aquela negra! Medo ainda no princípio, a quitandeira fez coragem depois. Olhou à volta. Ninguém estava. Chegaram e nem mais que avançaram saber como é que a maka foi. Começaram só no castigo da quitandeira. Nga Fefa ainda deu uma paulada na cabeça dum chuí9. Aqui é que mesmo na luta de verdade começou. A senhora no entimulamento da fúria colonial: dêem-lhe mais! Força! Kajinvunda sem força, estendida no vermelho sangue da morte (CARDOSO, 1982, p. 26). Os desafetos cultivados nas relações de poder plantados pelo etnocentrismo europeu patenteiam a trama violenta que se faz ilustrar no conto. O drama vivido por Nga Fefa resulta em sua morte, tributo por macular a ordem imposta pela ideologia dominante. A conduta subversiva em não se conformar com a realidade colonial foi fator preponderante para erradicá-la do veio social, por isso, sua presença era indesejável e inaceitável. Por estas vias, torna-se possível conjeturar que a auto-afirmação de Nga Fefa foi brutalmente silenciada, já que a repressão 9 Policial, no sentido pejorativo (N.E.). 144 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 colonial se alimenta na alienação do dominado, torna-o objeto sob a égide da violência, com a consequente anulação de seu modo de interagir com o universo. Repertório em que não há opção para a argumentação, tampouco, trâmite para um julgamento pautado na equidade. Impera o predomínio da brutalidade, seguido do extermínio. O espetáculo destina-se a intimidar a população negra para que não ouse infringir as normas. Caso sejam burladas, a sentença será a mesma imputada à protagonista: a morte como punição. Na trajetória de libertação articulada por Nga Fefa Kajinvunda, o homem de pele branca firma seu autoritarismo ao nativo, com o propósito de minar-lhe a confiança e determinação, de forma a acorrentá-lo nas malhas da submissão, imputando-lhe a morte psicológica. A destruição da personagem feminina torna-se, para o homem branco, espelho para refletir o temor. Nele se mira o homem negro para se revestir de coragem, visto que, no percurso vinculado pela contradição, ela reivindica para si e para a sociedade de Angola o direito de tornarem-se sujeitos, propósito firmado em sua conduta crítica, contestadora e audaciosa. A voz oprimida e silenciada no clímax narrativo confere vitória ao colonizador, na conservação da manipulação de mentes e corpos para manutenção da ideologia capitalista. Mas ao atentar para a resistência de Nga Fefa às formas coercivas lhe imputadas, ousamos enfatizar que sua morte não lhe cessou a voz. Canalizada pelo narrador e autor ecoa pelas ondas sonoras universais, numa linguagem perpassada pela expressão reivindicatória, que brada por uma sociedade fraterna, que cultive o respeito ao ser humano. Referências BONICCI, Thomas (org.) Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Maringá: EDUEM, 2009. CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia; MATA, Inocência (orgs) Boaventura Cardoso: a escrita em processo. São Paulo: Alameda, União dos Escritores Angolanos, 2005 CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo: Ática, 1982. __________, Entrevista à Revista Metamorfoses, em 14 de janeiro de 2010. Disponível em: < http://www.ueangola.com/entrevistas/item/375-entrevista-%C3%A0-revista-metamorfoses >. Acesso em 5 de junho 2014. 145 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/>. RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Kuanza, 2007. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. __________, A letra e a voz: a "literatura" medieval; tradução Amálio Pinheiro; Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia da Letras, 1993. Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Vozes Francófonas no Brasil PEIAS E ESPARTILHOS: sátira popular à moda francesa na Primeira República CLOGS AND CORSETS: popular satire on the french way in the First Republic Francisco Cláudio Alves Marques1 Esequiel Gomes da Silva2 Resumo: Nas primeiras décadas da República, as ruas das principais capitais brasileiras, sobretudo do Rio de Janeiro e do Recife, reurbanizadas nos moldes da Paris haussmanniana e bafejadas pela febre de cosmopolitismo que investia a Europa, ofereciam-se às mulheres como passarelas onde podiam exibir seus modelos imitados ou importados, principalmente de Paris. A iconografia e os anúncios veiculados pelas revistas e periódicos ilustrados da época, como o Almanach de Pernambuco e a revista Kosmos, por exemplo, configuram-se testemunhos da maciça presença de franceses no Rio e em Recife, proprietários de lojas e maisons interessados em atender às exigências do público republicano. Apesar da forte adesão dos brasileiros aos modelos de sociabilidade importados da Europa, as classes menos favorecida, por meio da literatura popular, manifestava certa resistência a essas mudanças nos costumes e na indumentária, principalmente no Nordeste, onde ainda reinava resquícios da mentalidade e da moral católica e patriarcal. Palavras-chave: Sátira; Literatura de Cordel; Leandro Gomes de Barros; Moda Francesa; Primeira República. Abstract: In the first decades of the Republic, the streets of the main Brazilian capital cities, especially of Rio de Janeiro and Recife, recently urbanized based on the Haussmanian Paris and smiled upon by the fever of cosmopolitanism that invested Europe, women had been used as runways where they could exhibit her imitated or imported models, especially in Paris. The iconography of the time and the advertisements conveyed by magazines and illustrated periodicals, such as the Almanach de Pernambuco and the magazine Kosmos, for instance, form the testimonies of the massive presence of the French in Rio and Recife, owners of stores and maisons, interested in fulfill the demands of the republican public. In spite of the Strong adherence of the Brazilians to the sociability models to the imported from Europe, the less-favored classes, through the popular literature, showed some resistance to these changes in the habits and clothing, especially in the Northeast, where traces of the Catholic and patriarchal moral and mentality were still alive. Keywords: Satire; Literature of Cordel; Leandro Gomes de Barros; French fashion; First Republic. Quem caminhasse pelas ruas centrais do Recife de final do século XIX e começo do XX, experimentaria aquela mesma sensação descrita por António de Alcântara Machado referindo-se Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, professor do Departamento de Letras Modernas da UNESP – campus de Assis. Av. Dom Antonio, 2.100. Parque Universitário. E-mail: fransclau@gmail.com 2 Doutorando em Letras/Literatura e Vida Social pela UNESP – campus de Assis. E-mail: esequielg72@gmail.com 1 147 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 à variedade de estilos arquitetônicos, de línguas estrangeiras que podiam ser ouvidas nas ruas da cidade de São Paulo e, certamente, à enorme presença de estabelecimentos comerciais estrangeiros que aumentava vertiginosamente nas primeiras décadas do século XX. O escritor modernista observa, com certa ironia, que São Paulo possuía “todos os estilos [arquitetônicos] possíveis e impossíveis”, diversidade que emprestava à Paulicéia “um arzinho de exposição internacional.” (MACHADO, 1983, p. 171). Pelo fato de não termos acesso, neste texto, a fotografias das ruas da Recife republicana para legitimar as premissas anteriores, recorremos ao Almanach de Pernambuco, periódico anual com relativa quantidade de informações iconográficas, criado por Julio Pires Ferreira, que circulou entre os anos de 1899 e 1931. No periódico em apreço, fotografias de praças, edifícios e ruas da cidade, bem como anúncios comerciais de toda ordem, alternavam-se com biografias de figuras locais, textos literários e relatórios oficiais alusivos aos feitos políticos e sociais da capital pernambucana. Para a matéria a ser discutida mais adiante interessa-nos, sobremaneira, a avalanche de anúncios que o periódico trazia em suas páginas. Geralmente em caixa alta, as chamadas para as casas de comércio se sucediam por páginas e páginas, cada uma ocupando a página inteira. O Almanach para o ano de 1900 trazia anúncios sobre estabelecimentos cujos proprietários eram alemães, ingleses, portugueses e franceses radicados em Recife, sendo que os dois últimos se destacavam entre os demais. Na edição de 1900 a filial francesa da relojoaria “A PENDULA PERNAMBUCANA” anunciava: “Unico deposito dos verdadeiros relogios de Palek, Philippe & C. Genéve e de J. Lippetz, Chaux de Fonds”, enumerando, logo em seguida, as distinções recebidas pela qualidade do produto: “Medalha de ouro na Exposição Nacional, Medalha de ouro na Exposição Universal de Paris em 1889, da Suissa 1896.” Além de indicar o endereço da filial recifense, a companhia Eugéne Goestchel & Ca. informava o endereço da matriz na França: “Caza em Paris: 8, Rue d´Angouléme”. Na mesma edição MMe Pigeon, a proprietária do estabelecimento “Costureira Francesa”, anunciava “Forro de todas as qualidades, crepe liso e bordado para luto.” Na edição de 1901, entre anúncios de companhias de seguros, armazéns de açúcar, lojas de móveis e ferragens, as casas francesas de moda aparecem com maior frequência. MMe Léon Gérard é a proprietária 148 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 da casa “MODISTA FRANCEZA – CASA DE MODAS – PARA VESTIDOS E ESPARTILHOS.” O anúncio estampado na segunda capa do Almanach de 1906, ao lado da biografia do tenente-general José Joaquim Coelho (Barão de Victória), trazia a seguinte chamada: “Maison Chic: Modas, Tecidos e Confecções, Espartilhos de Paris”. Alusões à moda importada da Europa, sobretudo da França, aparece também em vários anúncios da edição de 1910. A casa “A Rosa dos Alpes”, situada no n. 32 da Rua Barão da Victoria, anunciava “Espartilhos para Senhoras”, definindo-se como “o estabelecimento preferido pelo chic feminino [...] pelo seu completo sortimento vindo directa e mensalmente da Europa.” Acreditamos que os exemplos citados são suficientes para que se tenha presente a forte preferência das mulheres brasileiras pelos modos de vestir importados da Europa ou pelas roupas confeccionadas por modistas francesas estabelecidas em Recife. Naquele começo de século, as ruas de algumas capitais brasileiras reurbanizadas nos moldes da Paris haussmanniana obedeciam ao ideal cosmopolita republicano, oferecendo-se às mulheres como uma passarela onde podiam exibir seus modelos imitados ou importados da Europa, adquiridos nos melhores estabelecimentos comerciais. Era assim descrita pela revista Kosmos, em 1907, a performance da mulher republicana em perfeita consonância com o novo traçado das ruas do Rio de Janeiro: [...] Sabes a quem a mulher de hoje deve o realce encantador de sua beleza e elegância? – À rua, aos melhoramentos da rua. Antigamente, nos apertos do nosso velho beco do Ouvidor, no círculo desairoso do largo da Carioca, nem eu nem tu, podíamos ver bem a mulher, nem ela se nos podia mostrar com a exigida perspectiva. Além disso, o mau calçamento, sempre em péssimo estado, tirava-lhe a cadência do olhar, fazendo-a gingar, como os nossos capadócios [...] Agora não. Com as ruas amplas, com a moldura alegre das casas novas, o movimento e o gesto podem obedecer a todas as exigências e aos rigores de todos os estudos. (Kosmos apud Nosso Século, 1980) Apesar de ter acesso a bens importados, os moradores do Brasil imperial eram considerados mal vestidos pelos estrangeiros. A francesa Rose Freycinet, por exemplo, em visita ao país em 1871, registrou a deselegância do príncipe real, chamando atenção para a contradição entre a beleza do porte físico e suas péssimas maneiras. Além disso, destacou a francesa; “Vestiase, na ocasião (uma missa na Capela Real), com um fraque marrom e uma calça de nanquim, traje bastante ridículo para as 8 horas da noite, numa grande festa pública.” (FREYCINET apud RASPANTI, 2013, p. 32). Essas observações deixam claro que, no Brasil, os ditames da moda já vinham sendo prescritos pelos franceses desde a época do Império. 149 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Márcia Pinna Raspanti observa que, no Rio de Janeiro, os ingleses com portas abertas nas ruas Direita e da Alfândega detinham a venda de artigos para homens, enquanto os franceses, instalados na Rua do Ouvidor, privilegiavam a moda feminina. Entre os mimos disponíveis nas lojas e maisons, oferecidos ao público feminino, destacavam-se roupas, tecidos, perucas, luvas, lenços, sapatos, águas de colônia, cosméticos, leques, bijuterias, meias, chapéus, espartilhos e tudo o que havia de mais chic. (RASPANTI, 2013, pp. 32-33). À medida que começam a frequentar mais livremente os espaços públicos, ostentando o que de mais atual havia em termos de moda, as mulheres tornam-se objetos de sátira, críticas e anedotas de toda ordem. O uso de saias compridas e cheias de adereços, imitação da jupe-culotte francesa, motivou sátiras como esta, presente no poema “O balão”, de autoria do poeta Luiz Gama, publicada na primeira edição das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, em 1859: Silêncio! é ela! Tão vaporosa Vem, e formosa, – Que treme o chão! Gordo cetáceo, Deixando os mares, Que afronta os lares, Sobre um balão! Eu te saúdo, Oh tartaruga, Romba taruga, De barracão! Monstro que alojas, Sob os babados, Dez mil soldados, Do rei Plutão! (GAMA, 2000, p. 48) O poeta continua caricaturizando a peça, lembrando que debaixo dela existem “Curvadas molas,/Arcos de pipa,/Cordas de tripa,/E um rebecão”; e ainda “Caixas de guerra,/Rouco zabumba,/Que retumba,/Como um trovão;/Felpuda palha,/Para viveiros,/Dois travesseiros,/E um trombão.” (GAMA, 2000, p. 48). Não diferentemente, o boom da moda feminina em Paris, no início do século XX, leva o escritor Guillaume Apollinaire a descrever um diálogo entre Paponat e Tristouse Ballerinette, constante do livro O poeta assassinado (1927), cujo conteúdo configura-se uma sátira cortante às combinações mais extravagantes da vestimenta feminina parisiense: 150 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 – Olhe, este ano a moda é insólita e trivial – disse Tristouse, simples e cheia de fantasia. Todas as matérias dos diversos reinos da natureza podem entrar na composição de um vestido de mulher. Vi um feito de rolhas de cortiça, encantador, e por certo valendo mais do que esses bonitos modelos para noite, de pano cru, furor de todas as estreias. Há mesmo um grande costureiro que medita o lançamento de saias-e-casacos feitos da capa de livros velhos encadernados em pelo de bezerro. [...] As espinhas de peixe estão a usar-se muito nos chapéus. E também é vulgar que as raparigas deliciosas apareçam vestidas à peregrino de S. Tiago de Compostela, provavelmente com o vestido de constelado de conchinhas de S. Tiago. A porcelana, o grés e a faiança surgiram de repente na arte do vestuário. (APOLLINAIRE, 1983, pp. 83-85) Paponat, interessado em modas e recém-chegado da Itália, pede que Tristouse faça um relato sobre o que vestiriam as mulheres naquele ano, por volta de 1911, período que se convencionou chamar de Belle époque. É bastante significativo que o excerto acima esteja inserido em uma obra classificada como surrealista, o que pode ser concebido como uma sátira às tendências da moda na sociedade moderna. Nos interstícios, vozes de um segmento da sociedade que não aceitava passivamente as tendências do momento, pois a sátira, como se sabe, é uma forma de se colocar contra instituições e costumes de determinada época ou grupo. De certa forma, o que o escritor surrealista estava fazendo era prever as mudanças que se operariam no mundo da moda na sociedade do futuro, o que podemos ver na continuação do diálogo: [...] Não só chapéus as plumas passaram a decorar, mas sapatos e luvas; no próximo ano até nas sombrinhas havemos de vê-las. Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de Baccarat. [...] E já me esquecia de informá-lo de que vi nos bulevares, na quarta-feira passada, uma pirosa qualquer com espelhinhos aplicados e colados no vestido. Ao sol, era de um efeito suntuoso. Parecia uma mina de ouro em passeio. Mais tarde começou a chover e a dama ficou parecida com uma mina de prata. [...] A moda vai ficando cada vez mais prática e não desperdiça nada; a tudo confere nobreza. Vai fazendo com as matérias aquilo que os românticos fizeram com as palavras. (APOLLINAIRE, 1983, pp. 83-85) Além das extravagantes indumentárias acima referidas, Tristouse lembra a Paponat o hábito de as pessoas vestirem-se com animais vivos. A namorada de Croniamantal, personagem central do livro, teria encontrado uma senhora que trazia vinte pássaros no chapéu: “canários, pintassilgos, pintarroxos, todos com a pata presa a seu fio, numa grande chilreada e a bater as asas”. “O vestido bordado a grão de café, a dentes verdadeiros ou de alho, a cebolas e a cachos de uvas também” seriam muito usados para visitas (APOLLINAIRE, 1983). No Nordeste brasileiro dos primeiros decênios da República, as saias francesas e os espartilhos causaram sensação entre as mulheres, que logo aderiam ao uso das peças supostamente importadas de Paris pelas lojas e maisons estabelecidas, sobretudo, nas ruas mais movimentadas. Na verdade, muitas das peças usadas pelas brasileiras eram confeccionadas por 151 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 costureiras que, oportunamente, diziam-se francesas. O fato é que, pelo menos em Recife, a incipiente industrialização começa a atrair mulheres para o mercado de trabalho, liberando-as do domínio da casa, lugar que a tradição patriarcal e arcaizante havia lhes reservado. As primeiras operárias procuram nivelar-se às damas da “sociedade”, copiando-lhes a indumentária, frequentando lugares até então designados para os homens, arremedando a performance da mulher moderna cujos padrões comportamentais passavam a ser ditados por modelos de sociabilidade importados da Europa. Tal conduta, pelo fato de destoar dos padrões consagrados pela moral tradicional, levou muitos poetas populares, no Nordeste, a compor poemas de conteúdo misógino e moralizante. Nesta empresa destacou-se o poeta Leandro Gomes de Barros, saudosista dos tempos do Império. Declaradamente antirrepublicano, Leandro compôs o folheto de cordel O Bataclan Moderno, publicado em Recife nos primeiros anos do século XX, criticando agudamente a adesão aos novos costumes pelas mulheres: Mundo velho desgraçado Teu povo precisa um freio, Para ver se assim melhora Este costume tão feio De uma moça simi-nua Andar mostrando na rua O suvaco a perna o seio. [...] Antigamente uma moça Quando fazia um vestido Gastava quase oito metros P´ra ele sair comprido Não punha os braços de fora Porém o contrário agora, Assim tem acontecido. Hoje porém com três metros As vezes com dois e meio Faz uma moça um vestido Que seja bonito ou feio Porque a moda MODERNA É até em cima da perna E decotar todo o seio. (BARROS, 1953, p. 1) A referência à “moda MODERNA”, em caixa alta, manifesta uma crítica declarada à proposta republicana de modernização dos costumes, de abolição dos hábitos provincianos, indicativos do atraso e da “falta de civilização” do brasileiro. Para Leandro, estas medidas, 152 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 prescritas como uma forma de higienização física, mental e social, agridem a moral costumeira, corroem o moral dos homens da sociedade: Hoje a civilização Em tudo foi transformada, Não existe mais pudor A moral não vale nada A vergonha apodreceu A sociedade morreu Há muito foi sepultada. (BARROS, 1953, p. 1) A caricatura da mulher conformada aos costumes modernos é um dos leitmotiv da sátira produzida por Leandro Gomes de Barros. As novidades da moda são agudamente satirizadas pelo poeta, que não perde a oportunidade de ridicularizar a jupe-culotte francesa, saia muito usada pelas mulheres no começo do século XX, também conhecidas como saias-calções. A peça aqui considerada foi sarcasticamente criticada por Leandro em As saias calções, de 1911. Por seus ornatos, formato exótico e corte extravagante, foram comparadas à pamonha. A sátira, extensiva às novidades viabilizadas pela abertura republicana, castiga com vistas à moralização dos costumes. Na visão de Leandro, a indumentária feminina e os ornamentos modernos servem às mulheres de algemas e peias (impedimento; embaraço; prisão de corda ou ferro que segura os “pés” das bestas): As mulheres que só vivem A sondar a invenção, Acharam que est´avam bem Inventando cinturão, Com pouco mais ellas andam Com cartucheira e facão. Além da tal pulseira Com que vivem algemadas, Chegaram as saias pamonhas Com essas vivem peiadas, Agora as saias calções Chegaram mesmo damnadas. (BARROS, 1911, p. 2) Vista como um prenúncio do fim dos tempos, a jupe-culotte suscitou reações diversas entre as mulheres do Nordeste agrário/urbano pós-Imperial, alcançando dimensões apocalípticas: “São cousas de fim do mundo”, diz uma vizinha à outra, “Bem disse frei Panellada/Que ainda chegava o tempo/De a gente viver peiada”. “Quem morrer vestida n´ella/Não alcança salvação”, diz uma comadre à outra, em tom de admoestação. À mostra numa vitrine e vestindo um 153 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 manequim – a loja é de uma modista francesa – a saia causa assombro em um velho sertanejo de passagem: “Este diabo é o cão/Que está todo abotuado,/Credo em cruz, Ave Maria/Dou-te figa, condenado”. Embora acolhida com reserva, a saia-pamonha provoca reações partidárias na maioria das mulheres. À beira da morte, uma velha que havia rejeitado a confissão, pede ao filho que não lhe faça caixão: “[...] quero em vez de mortalha/É uma saia calção”. No confessionário, a freira Chica Bazar adverte que prefere fugir do convento “Se quizerem me empatar,/Mas, uma saia calção/Eu não deixo de botar”. Embora o marido esteja falido, a mulher do padeiro “Felippe pão” insiste: “Meu velho na padaria/Não ganha mais um tustão,/Mas, embora, venda o forno/Dá-me uma saia calção”. Uma velha que andava “Escorada n´um bastão,/Pedindo por caridade/Em toda parte um tustão”, suplicava que lhe completassem o dinheiro “De uma saia calção”. O poeta, porém, não vê nenhum sinal de elegância na peça, antes acentua sua deformidade: “Procuro um jeito nellas/De forma nenhuma acho,/São botões como diabos/Desde cima até embaixo,/Estando mulheres e homens/Parece ser tudo macho”. Do ponto de vista da sátira moralizante, a mulher que “sai de casa” se submete deliberadamente às exigências do olhar masculino na rua, lugar tradicionalmente reservado aos homens e às mulheres descomprometidas com o cânon moral: Dantes n´uma barbearia Quem entrasse a qualquer hora Não encontrava uma moça Mas tudo mudou agora De mulheres vive cheia Dali a que for mais feia É esta a que mais namora. (BARROS, 1953, p. 2) Embora livres das peias domésticas, as mulheres modernas tornam-se reféns da moda. Apeiam-se as éguas e os cavalos, para domesticá-los e domá-los, sobretudo quando indomáveis ou no cio. Em As saias calções, as mulheres encontram-se duplamente algemadas: por um lado, a crítica moralizante configura-se como rédeas à sua conduta transviada; do outro, peias e algemas fazem uma alusão crítica à ditadura da moda. De acordo com Roberto DaMatta, no âmbito do carnaval brasileiro a exibição contrapõese à modéstia e ao recato, ou melhor, a dialética do que é (ou deve ficar) escondido e do que é 154 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 abertamente revelado (DAMATTA, 1997, p. 140). Assim Leandro descreve a desenvoltura das mulheres que se tornam “públicas”: As senhoritas de agora É certo o que o povo diz, Não há vivente no mundo Da sorte tão infeliz; Vê-se uma mulher raspada Não se sabe se é casada, Se é donzela ou meretriz. Traz a cabeça pelada Bem raspadinho o cangote, O vestido que ela usa Tem trez palmos de decote Sendo de frente ou de banda Vê-se bem quando ela anda O seio dando pinote. (BARROS, 1953, p. 3) No poema, os seios das mulheres não estão simplesmente à mostra, eles “pinotam”, saltam, fazem piruetas sugestivas, metáfora emprestada à equitação: “pinote”, salto que a cavalgadura dá, escoiceando. Por analogia, a mulher moderna aproxima-se da égua no cio, do potro sem doma. No carnaval, continua DaMatta, [...] a representação do corpo não se contenta em mostrá-lo parado, como nas esculturas chamadas ‘nus artísticos’ (em que a nudez é ritualizada, congelada e tornada digna e moralmente viável). Ao contrário, o corpo não só se desnuda, mas se movimenta, revelando todas as suas potencialidades reprodutivas. [...] É um corpo que “chama” o outro, tornando-se sempre alusivo do ato sexual, da forma mais essencial de confusão e ambiguidade do grotesco, quando – como nos indica Bajtin – dois corpos se transformam em um. (DAMATTA, 1997, p. 140) Mas o movimentar-se sugestivamente, na sátira moralizante, equivale a cavar o próprio túmulo corporal. As mulheres que saem furtivamente para a rua, com seus trajes indecentes, deixam revelar partes de seu corpo reservadas apenas ao marido, na intimidade da casa. No entanto, no âmbito da rua, o que foge ao controle do talhe fica exposto “Aos olhos da piratagem”: Conheço certa senhora Que é esposa de um doutor, Quando ela sai a passeio O povo treme de horror Pois seu modo de trajar Já tem dado o que falar A quem não é falador. 155 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Tem o cabelo cortado Usa o vestido bem curto Sem mangas, até o joelho Se ela cair d´um susto O que levar escondido Sem licença do marido, Pode a gente ver sem custo. Quando ela sai a passeio Não usa dizer p´ra onde Se a viagem é prolongada Precisa tomar o bonde Cousa que a gente ignora Fica do lado de fora Que o vestido não esconde. Sua carne vive esposta Aos olhos da piratagem Que vai p´ra certo lugar Pra ver a sua passagem... (BARROS, 1953, p. 3) Na sátira em barbante, a “rua” representa um espaço sintetizador de diferenças e contradições do mundo rural, urbano, moderno, republicano. A poesia satírica de Leandro ajudava a reforçar os laços moralizantes da tradição, repropondo um modelo de conduta que devia ser seguido por toda a sociedade; rechaçava a febre republicana de modernidade porque feria a “honra” e os bons costumes, princípios que vinham sendo conservados no interior de cápsulas morais, e que se queriam impermeáveis, desde os tempos do carrancismo. A crítica à moda copiada da Europa não se restringia apenas à indumentária feminina. O modo “avançado” como alguns homens se vestiam também incomodava os mais conservadores. Recorrendo à tópica medieval do “mundo às avessas”, Leandro Gomes de Barros lamenta a inversão dos papéis sexuais nos primeiros versos de As saias calções: O mundo está as avessa, As couzas não vão de graça, Homem raspando bigode, E mulher vestindo calça, Isso é um páo com formiga, Um banheiro com fumaça. (BARROS, 1911, p. 1) Colocar no mesmo campo semântico duas peças tradicionalmente pertencentes ao gênero feminino, “saias”, e masculino, “calções”, informa-nos sobre o juízo que o público menos afeito às inovações fazia da peça francesa, sobretudo no que se refere à inversão dos papéis sexuais 156 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 naquele começo de século, quando as mulheres começavam a emancipar-se, entrando para o mercado de trabalho. Tais mudanças não passam despercebidas do poeta popular: Os homens de hoje só querem Mulher para trabalhar, A mulher de casa é elle, Faz tudo que ella ordenar, Para ser ama de leite Só falta dar de mamar. Agora analysem bem Um homem assim como é: A mulher vai para a fábrica, Elle há de torrar café, Faz fogo aprompta o jantar Dar papa e banho ao bebê. Vai ver água enche vasilhas, Forra o chão com uma estoupa Bota nella os pannos todos, Vai ao rio e lava roupa, É ama, é creada, é tudo E alli só ganha a soupa. Se ella for uma esperta Diz-lhe logo mandilhão! Marido que não trabalha Só tem direito ao pirão; Se pisar fora do risco, Apanha de cinturão. (BARROS, s.d., p . 2) Leandro coloca pelo avesso a identidade sexual de homens e mulheres que se submetem à ditadura da moda. No poema As cousas mudadas (1910-1912), a adesão aos novos costumes parece confundir os sentidos do poeta: “Hoje se vê uma moça/Ninguém sabe se é rapaz/Anda com calça e chapéo,/Pouca differença faz.” As calças masculinas com braguilhas pra trás, fortemente criticadas por Leandro, remetem a uma tópica rabelaisiana que neste contexto ajudanos a entender a postura conservadora do poeta paraibano, cuja mentalidade ainda revelava, por meio da sua escrita, fortes laços com a antiga geração agrária, católica e patriarcal. Sinônimo de virilidade, a função da braguilha em Rabelais é carnavalizada, desviada de sua função habitual. Panurge, máscara rabelaisiana, tece longas considerações para convencer a 157 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Pantagruel de que a braguilha “é a primeira peça de armadura para armar o homem de guerra”, servindo também para proteger seu órgão viril. Por inspiração da Natureza e pela virtude Divina, o homem teria sido inspirado a “armar-se”, expressão ambígua, primeiro pelos colhões. O arquétipo da braguilha/armadura teria sido a folha de parreira com que o Adão primordial se cobrira, explica Panurge: Assim testemunha o capitão e filósofo hebreu Moisés, afirmando que Adão se armou com uma brava e galante braguilha, feita e modelada por uma bela invenção de folhas de figueira, que são muito simples e muito cômodas em durabilidade, incisão, frisamento, polidez, tamanho, cor, odor, virtude e faculdade para cobrir e armar os colhões (RABELAIS, 2006, pp. 87-90) A associação com a virilidade, presente no texto de Rabelais, nos permite entender que a tradicional topografia da braguilha, havia mudado de eixo nos tempos de Leandro, de modo que os valores masculinidade e virilidade, tão preservados pelos homens nordestinos, estavam topograficamente invertidos naquele momento da história. “O mundo está às avessas”, reclama recorrentemente o poeta. Apesar da forte adesão dos brasileiros aos modelos de sociabilidade importados da Europa, as classes menos favorecidas, por meio da literatura popular, manifestavam certa resistência a essas mudanças nos costumes e na indumentária, principalmente no Nordeste, onde ainda imperava resquícios da mentalidade e da moral católica e patriarcal. Fazendo-o, contudo, por meio da sátira. Muitos, talvez, como uma espécie de desrecalque por não poder usufruir das benesses acessíveis somente a uma parcela ainda muito pequena da população brasileira. Sem dúvida nenhuma, expressões recorrentes – “estabelecimento preferido pelo chic feminino”, “completo sortimento vindo directa e mensalmente da Europa” – usadas para qualificar os produtos anunciados no Almanach de Pernambuco, sobretudo pelos franceses radicados na capital pernambucana, ajudavam a distinguir a que tipo de público estavam reservados aqueles produtos. Referências Almanach de Pernambuco. Recife: Ribeiro & Martins, para os anos de 1900, 1901, 1906 e 1910. 158 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 APOLLINAIRE, Guillaume. O poeta assassinado. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Estampa, 1983. ATHAYDE, João Martins de. O bataclan moderno. Juazeiro do Norte: Editor José Bernardo da Silva, 1953. BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas, História de João da Cruz (4º vol.), Recife: Tip. Moderna, (Rua Duque de Caxias, 38), [s.d.], 16 p., (Col. CRB e FVL). BARROS, Leandro Gomes de. As saias calções, Um susto de minha sogra, A defesa da aguardente. Recife: LGB, (Rua do Alecrim, 38-E), 1911, 16 p., (Col. CRB). GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, (Vol. 6 da Coleção “Poetas do Brasil”). MACHADO, António de Alcântara. Prosa Preparatória – Cavaquinho e Saxofone. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. Nosso Século (1900-1910), Abril Cultural, n. 2, 1980, (Citação da Kosmos de 1907). 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A partir deste projeto de escritura poética, o artigo desenvolve uma reflexão epistemológica que, questionando o campo historiográfico, institui a voz e a oralidade como elementos fundamentais para a construção de um novo tipo conhecimento a respeito da realidade brasileira. Assim, a escritura literária oralizada por meio da voz, traz um conhecimento inédito sobre nossas sociedades. PALAVRAS-CHAVES: projeto de escritura literária. Brasilidade. Voz. Oralidade. Epistemologia. RÉSUMÉ: Cet article propose une réflexion sur le projet d’écriture à partir du poème que j’ai rédigé en langue française dont le titre est “historiographies premières’’. A partir de ce projet d’écriture poétique, l’article développe une réflexion épistémologique qui, interrogeant le champ historiographique, élève la voix et l’oralité comme des éléments fondamentaux pour construire une nouveau type de connaissance sur la réalité brésilienne. Ainsi, l’écriture littéraire oralisée par l’intermédiaire de la voix apporte une connaissance inédite sur nos sociétés. MOTS-CLÉS: projet d’écriture littéraire. Brésilianité. Voix. Oralité. Épistémologie. 1 Professora Doutora, Universidade de Brasília, Instituto de Letras, Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução, Colaboradora do Programa de Pós-Graduação Estudos em Tradução (POSTRAD), Líder do grupo de pesquisa do CNPq Tradução, Experiência, Epistemologia, anahrossi@gmail.com 160 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 INTRODUÇÃO: prolegômenos para um projeto de escritura oralizada O nascer do poema historiographies premières se define como uma voz que luta para encontrar o seu lugar no universo linguístico e cultural francês. Ele é uma tentativa para resgatar uma voz que se fez inicialmente presente em língua portuguesa do Brasil, e que depois migrou para o universo francófono e francês. A razão de ser do poema remete a dois níveis primordiais de entendimento: um de ordem racional (que também é político no sentido da res-publica), e o outro de ordem afetiva. Entendemos que quando se fala de projeto de escritura, de poesia, e do fazer poética, torna-se impossível separar estes dois níveis de entendimento. Não existe apenas a razão. Logo, discutir o projeto de escritura da poesia implica situar-se a um nível epistêmico que não se atém ao que é comumente aceito como racional no plano científico. O conceito de “voz” (neste caso, individual mas não ligada a uma pessoa física) utilizado no projeto de escritura remete ao fato dela não ser oriunda do espaço linguístico francês. Esta separação entre de um lado o que remete à voz do poema, à sua oralidade, isto é, ao que se ouve na poesia (inclusive na poesia escrita), e, por outro lado, o que é da escrita e da escritura, é o que deve ser pensado. Dentro deste espaço identificamos e compreendemos como se moldam elementos tidos como díspares entre si, tais como os dados biográficos e os de ordem sócio-histórica. Este moldar demanda uma reflexão sobre o fazer poético dentro de um espaço linguístico que é expressão de uma cultura. Logo, o espaço linguístico também molda o poema formatando-o dentro de referenciais que, longe de serem universais, são de tipo histórico e cultural. Tais questões nos remetem, portanto à busca de novos conceitos e novas hipóteses de trabalho que explique as relações da oralidade na escritura. Neste artigo não me situo dentro da dicotômica cultura popular versus cultura de elite. Entendo não ser possível estruturar a problemática de tal maneira por referir-me a conceitos que permitem visualizar o objeto de estudo, que é a “voz” definida como potencialidade que traz à tona a memória do corpo fugidio, isto é, que não existe mais no instante “t” do aqui e do agora, mas que perdura na memória e no tempo em “t+n”. Um outro conceito é o de “memória” definida como sendo a recomposição da categoria tempo, não mais como sucessão 161 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 de datas ou de dados factuais, mas como o conjunto das modificações do que somos e do que fazemos, assim como daquilo que diz o poema diz no instante “t+1” até o “t+n”. É a força da performance (do gesto teatral, da narrativa contada, das noites em torno da fogueira 2) que, potencializando o instante “t” reconstrói o que a “memória” em “t+n” que nunca são iguais. Esta modificação inclui necessariamente a dimensão afetiva que escapa ao racional tal como conceituado pela ciência. O conceito do poema historiographies premières se insere neste espaço em construção. A gestação do poema historiographies premières ocorreu, portanto, em distintas fases. A primeira começa no silêncio do corpo. A voz, inserida e definindo o corpo, prepara a existência do sujeito narrador. Pouco a pouco, a questão caminha rumo a um objeto de estudo vocalizado, dentro do qual a voz passa a ter um papel determinante no interrogar e dizer a narrativa oficial sobre a brasilidade. Esta narrativa histórica inserida em uma memória “t1” remete ao contexto da sociedade brasileira no início dos anos setenta, logo depois do Ato Institucional nº5. A voz que emerge deste poema parte deste instante político-social específico e da consequente narrativa da historiografia brasileira no seio de uma socialização que emerge nos primeiros anos da escola primária no interior do estado de São Paulo, na cidade de Araçatuba. Este é o espaço “real” histórico-político e o tempo “t” de indagação inicial que, progressivamente, se delimita para repensar a construção da brasilidade a partir dos elementos historiográficos. Referir-se à historiografia do Brasil implica adentrar em um campo onde importa reconsiderar as relações entre o discurso e o real, mostrando o que foi escrito, por quem foi escrito, como foi escrito, em detrimento de quem. No caso do poema, entrar neste campo deu-se a partir do espaço da memória individual. A voz do poema emerge deste silêncio que indaga o que foi e que não é mais, mas que persiste sob a forma de memória individual. O aparecimento da voz do poema reelabora a historiografia brasileira em suas sistematizações e olvidos, como a experiência da escravidão no Brasil e a ocupação do território nacional, questões tão mais apagadas no nosso imaginário coletivo quanto mais presentes nas concretudes de nossa vida 2 Ganduglia N. País de Magias Escondidas. Montevideo: Planeta. 2010. p.37. 162 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 social. A constituição da voz do poema passa pela História e pelas estórias definidas como conjunto de fragmentos que reconstroem os elementos diferenciados e dispersos à minha disposição. A carne deste poema resulta, portanto, de uma vasta pesquisa sobre a formação do Brasil, sobre um passado (ainda) invisível que, paradoxalmente, salta aos olhos de quem enxerga sem olhar. A voz do poema adquire uma consistência e uma feição que lateja e impõe espaço para sair. A ficção conquista, neste projeto de escritura, o seu lugar de síntese, por intermédio da poesia de uma parte da historiografia nacional. O poema3 é um todo, dividido em 9 cantos [« chants des mémoires », « chant 1 – hier le présent », « chant 2 – maintenant » - « chant 3 – voix des langues » - chant 4 – mémoire une au pluriel » - « chant 5 – voix de l’écriture rythmée » - chant 6 – voix des allers-retours », « chant 7 – histoire et historiographies » - « chant 8 – ayvu rapyta »]. Cada um dos nove cantos tem a força da parte do todo, e refere-se a diferentes vozes que se mesclam. Temos a voz do que já foi cantado, aquela a respeito do que nunca foi cantado, e aquela que, talvez, um dia, refira-se ao que poderá ser cantado. Estamos dentro de um espaço de criação ficcional onde o que é mentira e o que é verdade perdem sua explicação racional. A voz individual se multiplica e assume, a partir do universo ficcional, sua função de trazer para o campo das possibilidades o universalismo das experiências humanas, aquelas que dizem respeito a todo ser humano. Logo, a ficção entra nesta relação estreita com o real, e recompõe, a partir da experiência estética individual, uma estética definida e fundamentada na memória coletiva. Assim sendo, o poema se encarna diz respeito às dores universais compartilhadas por todos, independentemente das diferenças culturais e territoriais. A partir daí, começa a questão de como construir este poema em língua francesa. A pergunta, árdua, significa, necessariamente, introduzir na língua francesa elementos culturais que lhe são estranhos. A língua francesa, e em especial, a norma culta constitui uma situação de escritura singular porque remete às lógicas formais historicamente datas e ligadas, entre outros elementos, à retórica de Cícero. O que está em questão é inventar uma narração sob a forma de um poema 3 ROSSI A. historiographies premières. Toulon: Arco-Íris. 2008. 163 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que dizendo respeito a uma realidade que se situa no espaço de inteligibilidade brasileira, possa ser escrito em língua francesa. Refiro-me à possibilidade de narrar uma experiência poéticobiográfico-histórico-social sobre a brasilidade no espaço de inteligibilidade do universo linguístico e cultural francês. Este é o desafio que, encarnando sob a forma do projeto de escritura, remete a uma observação das estruturas sintáticas da língua. O primeiro embate é como uma escritura que articula o real e o discurso isto é, que fundamenta o que se chama historiografia, traz elementos da realidade brasileira dentro do universo francês, e da “língua francesa”. Neste particular, “L’historiographie (c’est-à-dire “histoire” et “écriture”) porte inscrit dans son nom propre le paradoxe – et quasi l’oxymoron – de la mise en relation de deux termes antinomiques: le réel et le discours. Elle a pour tâche de les articuler et, là où ce lien n’est pas pensable, de faire comme si elle les articulait. De la relation que le discours entretient avec le réel dont il traite, ce livre est né. Quelle alliance entre l´écriture et l’histoire? (...) De ce point de vue, le réexamen de l’opérativité historiographique débouche d’une part sur un problème politique (les procédures propre au “faire de l’histoire” renvoient à une manière de faire l’histoire”), et d’autre part, sur la question du sujet (du corps, et de la parole énonciatrice), question refoulée du côté de la fiction ou du silence par la loi d’une écriture “scientifique”.”4 O que está em jogo são as inteligibilidades oriundas do universo cultural (grafia da história) brasileiro, e suas possíveis recriações no universo cultural francês mediadas pela voz. Este primeiro embate sistematiza os pontos de conflitos, as teias de significações, as situações problemáticas do projeto de escritura. 1) « língua francesa » : as transformações de um pré-conceito DE CERTEAU M. L´écriture de l’histoire. Paris : Gallimard. 1975. p. 5 « A historiografia (isto é, « história » e « escritura ») traz inscrito em seu próprio nome o paradoxo – e quase o oxímoro – da relação de dois termos antinômicos : o real e o discurso. Ela tem como tarefa articulá-los e, lá onde esta ligação não está pensada, fazer como si ela as articulasse. Da relação que o discurso estabelece com o real do qual ele trata, nasce este livro. Que aliança entre a escritura e a história ? (...) Deste ponto de vista, reexaminar a operatividade historiográfica desemboca de um lado sobre um problema político (os procedimentos próprios ao « fazer a história » remetem a uma maneira de fazer história »), e de outro lado, sobre a questão do sujeito (do corpo, e da palavra anunciadora), questão colocada para o lado da ficção ou do silêncio pela lei de uma escritura « científica ». (Tradução minha). 4 164 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A segunda versão do poema consistiu na pesquisa dos espaços sociais, políticos e linguísticos da língua francesa. Muitos autores foram lidos, autores literários em sua grande maioria. O que buscava era, não proximidade linguística, mas mais propriamente a cultural. Não era a « língua » francesa que « me faisait défaut », mas sim a expressão linguístico-cultural desta língua francesa inserida em uma realidade que se aproximasse da experiência afro-brasileira e indígena. Autores como Guimarães Rosa pesquisaram, por intermédio da escritura literária, o espaço do interior do Brasil que conjuga culturas “sertanejas” situadas em um território distante da costa atlântica e suas rotas, africanas e europeias. Inventar este espaço literário implicou na leitura de autores que criam literaturas onde o elemento francês ou francófono aparece entrelaçado a outros, como também se apresenta deslocado de seu eixo e de suas características principais. Procurava estes espaços diante da dificuldade de dizer a brasilidade em língua (e cultura) francesas. historiographies premières impunha de se expressar em uma língua francesa que se referisse a outros espaços tempos e gêneses, a outras prosódias e ritmos, aos povos oriundos das Américas e da África. Povos transplantados, estórias e histórias fragmentadas, descosturadas a partir das quais a narrativa recompõe fragmentos, dados esparsos, fios retorcidos dentro da lógica que aparece no decorrer da escritura, no seu próprio processo íntimo de criação. Foi necessário interligar espaços de criação e de indagação, e sobretudo me permitir ultrapassar os limites da língua francesa que conhecia, e ensinava em sala de aula na França. Estes limites foram ultrapassados dentro do processo de criação interligados às leituras dos autores antilhanos e dos africanos que escrevem em francês e em inglês. A pesquisa chamou minha atenção para o atlas da língua francesa (francófona), um atlas disperso, diverso cuja língua pertence, já, a diferentes povos geograficamente distantes do continente europeu, e que, hoje, recompuseram a lógica da língua. A pesquisa também me possibilitou enxergar o que aconteceu com a língua francesa, e com a língua inglesa em territórios longínquos das antigas metrópoles. A tese da escritura deste longo poema em versos livres é a seguinte: cada língua carrega experiências humanas diferenciadas que objetivam seu pertencimento linguístico-cultural. Reconstruir este « cantar » em língua francesa implicou integrar o léxico das frutas, árvores. Mas 165 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 acima de tudo reiventar a sintaxe e a lógica a partir da voz que soa no poema. O canto 5 « voix de l’écriture rythmée » [voz da escritura ritmada] anuncia o projeto de escritura no corpo do poema. « dans l’écriture les feuilles décalent le regard la chaise le verre de lait le chant des mouettes de l’écriture mélodieuse énoncent les premiers langages nomment l’expérience entamée au soir de la disparition accouchée depuis par sa langue enfant dans le temps d’avant aujourd’hui dans l’au-delà de toute interdiction sert la gestation nommée en lieu d’exil qui se mue en écriture du temps abiographique confirmé dans le rythme de la chose expérimentée langue déposée sur la feuille du papier »5 2) o espaço “entre” como transcriação Abordar a oralidade e a voz em historiographies premières relaciona dois espaços a priori separados um do outro, o universo da língua francesa da França e o universo da língua portuguesa do Brasil. No entanto, refletir sobre este projeto de escritura demandou a formalização de um espaço “in-between”, o “entre”, lugar diferenciado que não se encontra nem totalmente em um lugar, nem em outro espaço de língua-cultura6. Este espaço “entre” remete à voz como um elemento estruturador da narrativa que se situa dentro de espaços-tempo diferenciados que se apresentam simultaneamente. Este espaço “entre” pensa o trânsito entre o que acontece dentro de um espaço, a passagem entre um e outro, e as transcriações no outro espaço. Ele é o que observa estas passagens ao sair de uma lógica, é necessário transportá-la para tal língua de maneira a que isto seja compreendido. Em historiographies premières, conceituamos três espaços-tempos: na língua francesa quando da primeira versão do poema que formaliza a matéria com a qual trabalhar-se-ia posteriormente. Este primeiro espaço-tempo gera um texto contínuo, em versos livres que apresenta um uso ortodoxo da pontuação e das letras minúsculas cuja inspiração baseou-se nos 5 Rossi A. historiographies premières. Toulon : Arco-Iris. 2008. p. 71. “na escritura as folhas deslocam o olhar a/cadeira o copo de leite o canto das gaivotas da escritura melodiosa anunciam as primeiras linguagens/inclusive a experiência iniciada no anoitecer do/ desaparecimento nascido desde então em sua língua/criança no tempo de antes hoje no/ além de qualquer proibição serve a gestação/nomeada em lugar de exílio que se transforma em escritura/do tempo abiográfico confirmado no ritmo/da coisa experimentada língua depositada sobre a/folha do papel.” (Tradução minha) 6 ROSSI A. et allii.“Antropofagia, Mestiçagem e Estranhamento: Tradução em (dis)curso”. Cadernos de Tradução nº31, p. 35-55, Florianópolis, 2013/1. 166 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 movimentos poéticos dos anos 50, e mais particularmente em autores como Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, o poeta e.e. cummings. Elaborada a partir de reminiscências pessoais, de dados históricos, de memórias de livros de história do Brasil que se autodefinem como “realidades”, esta narração em poema é constituída de fábulas que fogem à estreita definição de “real” e “ficcional”. Esta primeira versão redigida como uma escrita automática dos surrealistas destrava a razão para desembocar em um material literário que te como pano de fundo reminiscências, lembranças, invenções, dados biográficos reelaborados dentro da “língua francesa” a partir da ligação com a reflexão historiográfica brasileira sobre a brasilidade. A escritura é uma experiência pessoal levada adiante dentro da prosódia que impõe ritmo, silêncios que, todos, ultrapassam a lógica da escrita. Se a letra no sentido bermaniano é um conceito que objetiva o objeto da tradução, ela é insuficiente para definir as operações em jogo quando se tenta explicar a voz no interior deste projeto de escritura. Em historiographies premières a letra opera em vários níveis: reconstrução polissêmica e dialógica de materiais textuais que redimensionam a inteligibilidade da história brasileira a partir de dados biográficos, resquícios de poemas, memórias de trechos de romances, vocabulário e estruturas sintáxicas. Mas, em um outro nível, digamos, mais profundo, é imprescindível tratar da “voz”, do corpo” como expressão da memória em suas formas plásticas e fugidias. Esta primeira versão apresenta nove cantos, cada qual com seu respectivo título. Estes desabrocham no decorrer dos marcos da escritura do poema historiographies premières na medida em que o projeto de escritura interliga trajetória pessoal e coletiva. As duas línguas em presença, o português e o francês, constroem espaços-tempos diferentes que remetem a posições ideológicas, como se refere Paulo Leminski em seu ensaio “Três Línguas”7 : “Desde Linaeus, os animais e as plantas têm nomes em latim: o nome científico. Carvalho é “quercus pedunculata”. O rouxinol é o “icterus cyannensis”. Esses pássaros não cantam. Essas árvores não respondem à primavera. São lugares numa escala.” Assim, o tempo e o espaço são tratados neste projeto desde o ponto de vista da alteridade, isto é, como espaços múltiplos organizados dentro de cada língua cuja relação não é de superioridade, mas sim de temporalidades diferenciadas. Logo, não existe um locutor central e único, e muito menos centro e periferia. Esta é a dimensão política em jogo nesta escritura. Se não há « centro », 7 LEMINSKI P. Ensaios e anseios crípticos. Campinas:Editora Unicamp. 2011. p. 157. 167 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 por conseguinte, não há o seu correlato que é a « periferia ». Temos então espaços múltiplos dentro de tempos variados e múltiplos criados a partir da literariedade. O silêncio enquadra-se neste tópico na medida em que possui várias dimensões. Nas análises textuais, o silêncio é impossível de ser conceituado, e muitas vezes é identificado tipograficamente como sendo o “espaço branco da página”. Mas isto não conceitua o silêncio que não se define em relação a um espaço tipográfico, mas sim dentro da oralidade. Existem outras formas de silêncio, como o silêncio “falante” inserido no âmago do texto em várias situações: quando é impossível dizer algo que está aí porque não existem (ainda) palavras para dizê-lo. Apenas a voz consegue perceber e dizer estes silêncios. O silêncio é aquilo que não pode ser significado do ponto de vista tipográfico, que não pode ser arrimado apenas à língua porque o seu paradigma não remete a isto, mas sim à voz que o diz em um instante “t”. Eis porquê historiographies premières é antes de tudo um projeto de voz, de silêncio e de corpo. Esta questão fundamenta o poema historiographies premières. Como referir-se a uma realidade exterior ao espaço do pensamento da língua, em geral, e da língua francesa, em particular? Como pensar as reminiscências do espaço historiográfico brasileiro com suas interligações culturais e sociopolíticas dentro da língua francesa cuja visada cultural e ideológica está arrimada a elementos culturais de outras partes do mundo? Como referir-se a elementos culturais que não pertencem nem histórica, nem sociológica, nem ideologicamente ao espaço de inteligibilidade francês, tal como este é formalmente definido? A pesquisa realizada dentro dos espaços linguísticos e culturais do francês, e em particular nas Antilhas nas Guianas e na Ilha da Réunion respondem ao problema acima colocado. 3) corpo, voz e superposição de temporalidades Na época, as minhas referências sobre poesia “francófona” eram principalmente autores como Edouard Glissant (1960, 1981, 1990, 1994) e Gaston Miron (1970) cujas respectivas poesias e tratados de poética explicitam relações com a oralidade, e com a voz. Pela primeira vez, 168 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 vi o crioulo escrito e li o “francês” do Québec. Estes dois poetas trabalham aparecem a língua francesa em regiões geográficas longínquas da França septentrional. Daí a expressão linguística destas realidades di-ferirem. Tais leituras somadas a inúmeras outras constituíram uma primeira interrogação sobre o universo da “língua francesa” em suas localizações geopolíticas cujo denominador comum é que os projetos de escritura trazem para a língua francesa experiências políticas e históricas di-vergentes. A consciência de tais projetos norteou as pesquisas subsequentes no poema historiographies premières sobre como construir a brasilidade em língua francesa. Tomar consciência do projeto de escritura destes poemas no que tange à importância da voz significou inventar procedimentos e estratégias para compreender tais poemas que produziam sensações de total estranhamento. Após as primeiras leituras em voz baixa – totalmente infrutíferas e mortas, compreendi, mais por intuição, que para compreender tais poemas era necessário soltar a minha voz, ouvi-la esbarrando (o que vem em francês é “en me cognant contre les lettres) naquelas sequencias de letras que produziam sons tão desconhecidos aos meus ouvidos. Muito atenta, observava as potencialidades da língua francesa que eu aprendera durante tantos anos e que julgava conhecer. Mobilizei os recursos do corpo8 por inteiro (permaneci de pé, relaxei os ombros, destravei as palmas das mãos, estiquei a coluna, respirei fundo várias vezes e me lancei na leitura marcando marquei as pausas, os silêncios, procurando naquela sequência de instantes “t” e “t+1” a “t+n” modular minha voz, entoar o que lia não mais a partir do que eu estava escrito, mas procurando uma estrutura interna de inteligibilidade que apenas o corpo e a voz podem materializar e mostrar. A voz é, antes de tudo, uma experiência, individual e coletiva. Ela possui recursos próprios, seu próprio espaço de inteligibilidade que passa por elementos que os que regem a nossa escrita culta, silenciosa, sentada e calada. Esta experiência me colocou em uma situação de estranhamento cada vez maior quando me obrigou a mobilizar os recursos físicos para ouvir a minha voz dizer aqueles sons (e não mais CHAMORRO G. “Narrar com os pés: uma aproximação da história oral desde a perspectiva kaiowá”. Trânsitos da voz: estudos de oralidade e literatura. [Eudes Fernando Leite, Frederico Fernandes (organizadores)]. Londrina: EDUEL. 2012. p. 217 8 169 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 lendo letras escritas, “couchées sur le papier” como sintomaticamente diz a expressão em língua francesa) que não eram meus. Este estranhamento me levou a encontrar soluções para dizer os poemas de maneira a alcançar um entendimento mesmo que precário. Aproximava-me do sentido. Pude então, ouvir os rasgos e os traços da língua francesa que eu conhecia naqueles poemas embora estivessem escondidos. A partir daí, os poemas se tornaram um pouco “meus”. Foi-me possível ouvi-los em um processo de re-conhecimento da língua francesa que até então julgava conhecer. Neste caso, oralizar e utilizar a voz constituiu uma experiência de estranhamento onde os sons, dançando entre conhecidos e desconhecidos ou semi-conhecidos, me fizeram esquecer que estava em uma situação de leitura, e me lançaram em um espaço onde apenas os olhos e a técnica da leitura silenciosa não bastam. Foi preciso mobilizar os recursos físicos, todos eles, extraí-los de meu corpo para ouvir a música do poema que tanto buscava. A sequencia de sons, permeada pelos silêncios, pelo rugir das ondas do mar, pelo sol que queima, pelo sal que cicatriza e mata, pelos rasgos de choro, pelos corpos sendo jogados ao mar, pelo navio que chega ao porto, pelos gritos desesperados dos que aqui chegaram escravizados, passou então a ter sentido. Entendi o aspecto épico do poema de Edouard Glissant cunhado no poema de Homero, narrando a epopeia da chegada dos Africanos escravizados às ilhas fragmentadas das Antilhas. Esta experiência onde experimento a minha própria voz e onde tomo consciência da importância das potencialidades do corpo para alcançar o sentido constituiu uma ruptura no que, até então, definia como sendo “francês” e “língua francesa”, assim como na maneira de “ler” poesia. Neste período também estava muito envolvida com leituras de poemas meus no Centre International de Poésie de Marseille (CIPM)9, que se encontra na cidade de Marseille, na França. A mobilização do corpo com a presença da voz em suas inúmeras manifestações e formas foi fundamental para transcriar o sentido do poema. Porquê não utilizar este caminho para o próprio projeto de escritura que desenvolvia: ouvir a voz da língua portuguesa do Brasil no texto em língua francesa? 9 CENTRE INTERNATIONAL DE POÉSIE DE MARSEILLE, CIPM, leitura oralizada por Ana Rossi de seus poemas, http://www.cipmarseille.com/auteur_fiche.php?id=1839, consultado em 2 de abril de 2014. 170 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Uma das consequências desta experiência é a superposição de temporalidades onde o que é dito no poema não passa por uma mediação, nem representação. Antes de tudo, o que é dito é um “contar-se”10 onde se retoma, de maneira cíclica a cada vez que ocorre o dizer do poema, a vivência dos fatos primordiais, again and again. A atuação do corpo desenterra o poema da folha de papel dando-lhe um novo alento e uma nova vida. A atualização corpórea chama a si pelo menos duas temporalidades que se sobrepõem e que coexistem no dizer do poema: a temporalidade do corpo que “fala” aquele poema, e a temporalidade do que é dito no poema. Assim, a força do poema provem desta interseção onde as fronteiras entre “passado” e “presente” desaparecem, e, longe dos recortes historiográficos, superpõe estes tempos que produzem, então, uma totalidade que é eminentemente social e política de afirmação. O poema de Edouard Glissant, Le Sel Noir, ajudou-me também no tratamento do tema. O título do poema, com seu substantivo Sel e com o adjetivo Noir, remete à escravidão e à toda experiência histórico-social da qual participam não apenas os sequestrados na África e seus descendentes, mas a sociedade como um todo. Logo, a ficção torna-se um espaço inédito para repensar novos topos da escritura da história, a historiografia brasileira, que, por intermédio da mobilização dos recursos corporais e da voz trazem à luz do dia o que foi apagado. Desta experiência de escutar a minha própria voz para compreender o poema de Edouard Glissant nasce a ideia que norteia o projeto de escritura de historiographies premières: uma escritura que, revisitando aspectos da historiografia brasileira permite, por intermédio da voz tecê-los em língua francesa. Começa uma nova fase de pesquisa em que após uma primeira versão inicio a re-escritura que levanta outras questões: como definir a origem? Quais as fronteiras entre memória individual e coletiva? Como se dá a relação entre os dados biográficos e a narrativa que remete ao grupo? Como tecer estes fios sob a forma de uma narrativa em que a voz remenda os rasgos, clareia os apagamentos que recuperam nossa memória coletiva? A dificuldade em tecer os dados CHAMORRO G. “Narrar com os pés: uma aproximação da história oral desde a perspectiva kaiowá”. Trânsitos da voz: estudos de oralidade e literatura. [Eudes Fernando Leite, Frederico Fernandes (organizadores)], Londrina: EDUEL, 2012. p.228. 10 171 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 historiográficos (muitos e fragmentados) nos chamou a colocar o plural. Logo, historiographies. E historiographies premières remete ao marco inicial do transplante dos Africanos em solo americano, aquele instante “t” onde não temos a narrativa “de dentro”. historiographies premières pensa esses tempos primordiais a partir de elementos fragmentados como a vida nas plantações de cana, os castigos, os estupros, a fuga, os quilombos, o início da vida urbana. 4) a mise en scène da escritura A mise en scène da escritura, partindo das experiências do sujeito escritor, possibilita entrever o espectro das experiências humanas. A escritura se torna efetiva apenas na escritura. No ato de escrever, ela se transcria dando suporte e sustentação ao que foi escrito. A mão escrevendo, se escreve sózinha e por si só. Ela conduz o sujeito escritor a ser o que ele é, realizando o que está além das fronteiras díspares do que entendemos como « realidade » e « ficção ». Esta escritura ultrapassa estas barreiras, porque, integrando e intermediando elementos díspares, ela re-constrói a « realidade » tangível, essencial, em relação com a memória, depurando o que deve ficar e o que deve desaparecer. Todo o resto é poeira que se esvai no caminho. A reflexão sobre o que é escritura é um ato contínuo que se realiza a partir do escrever, e do refletir sobre este escrever. Nestes poemas, a escritura se explicita de várias maneiras. Contínua, ela emerge de maneira abrupta para mostrar fragmentos de outro tempo, de outro espaço que ela chama ininterruptamente ao palco. Fragmentos desdobrados em detalhes ínfimos adquirem voz própria que diz o que deve ser compreendido, o que deve ser dito e escrito sobre aquilo, voz que transcende o que definimos como “real”, as sendas do caminho que destilamos na escritura verso após verso em um caminhar que adquire sua feição após finalização. O fragmento histórico ou a memória pessoal adquire valor de testemunho que passa sob o crivo da experiência pessoal. A narrativa prestes a ser mostrada em sua feição final, e desemboca no ponto em que o projeto de escritura alcança seu término (sempre provisório). A história e as estórias compõem um cenário onde não é mais possível separar o individual da História. A narrativa resignifica os dados biográficos e garante uma inteligibilidade constitutiva de conhecimento. Este conhecimento presente nos versos institui a literatura também como conhecimento sobre a realidade. Eis porquê textos/fragmentos literários são usados como testemunho de uma época, e se tornam fonte de 172 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 conhecimento sobre outras épocas, como mostra o trecho abaixo, no canto 7 “histoires et historiographies”: « et après le voile déchiré de la mémoire survient entaché de marécages et de points de scansion des voix passage du milieu dans le souvenir du jour où le nous à son retour ne trouve plus d’habitants au village juste un bambin morveux pleurnichard au coin du feui caca-pipi uma marmite sans eua sur le feu et les trente-huit mille neuf cent douze âmes de carmanio disparues policierss juges enquêteurs limiers gratte-feuilles rien les autorités classent l’affaire étouffer la rumeur coûte que coûte rumeur qui s’amplifie le village de carmanio mangé corps et âmes par un arbre géant arbe du temps d’antan litanie présentes dans les mémoires l’arbre de gohomsaha flotte sur la place du village et pendant des siècles l’histoire officielle se tait sur les habitants de carmanio et ceux des autres villages avalés par l’arbre sauf qu’il n’y a ni arbre ni gohomsaha sauf qu’il y a un bambin culotte caca pipi plein sauf qu’il y a une marmite vide sur le feu à grésiller sauf qu’il y étouffe le silence des âmes délaissées sauf que les enlèvements en masse hurlent (...) »11 A arte da escritura media a experiência humana de escrever algo e de refletir sobre aquilo a partir do conhecimento ali gerado. No caso da escritura colocada por escrito, o conhecimento é observado a posteriori. No caso da escritura recriada pela voz, o conhecimento se corporifica 11 ROSSI A. historiographies premières. Toulon, Arco-Íris. 2008. p. 103. « e depois o véu rasgado da memória/vem manchado de pântanos e de/pontos de escansão vozes da passagem do/meio na lembrança do dia em que o nós/na volta não encontra mais os habitantes na/cidade apenas a criança catarrenta que chora/ao lado do fogo coco-xixi uma marmita sem/água sobre o fogo e as trinta e oito mil nove/centos e doze de carmanio desaparecidas/policiais juizes detetives finos escrivalhões/nada as autoridades arquivam o caso asfixiar o/rumo custe o que custar rumor que se amplia/a cidade de carmanio comida corpos e almas por/uma árvore gigante árvore do tempo de antes litania/presente nas memórias a árvore de gohomsaha/flutua sobre a praça da cidade e durante séculos/a história oficial emudece sobre os habitantes de/carmanio e daquelas outras cidades tragados pelo árvore/exceto que não tem nem árvore nem gohomsaha/exceto que tem uma criança calcinha coco xixi cheia/exceto que tem uma marmita vazia fervendo sobre o fogo/exceto que se asfixia o silêncio das almas abandonadas/exceto que os sequestros em massa berram (...) » (Tradução minha) 173 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 naquele instante “t”,, “t+1”, “t+n”. A escritura é experiência analítica que forja um conhecimento sobre a “realidade”. Nossa práxis atual é de considerar tal aspecto pertencente mais propriamente à ciência em suas formas acadêmicas como dissertação de mestrado, tese de doutorado, artigo científico, projeto e relatório de pesquisa. A escritura literária confere um conhecimento a respeito do social, reorganiza e reformula a observação, desloca os pontos de vista. Eis porquê a escritura literária observa e refunde o que está além do nosso alcance, de nossa visão imediata, de nossas tradições culturais, históricas, sociais e políticas. Assim, ela refunde os cânones, revisita os valores que devem ser analisados sob outro ângulo. Esta é a fundamentação dos “cantos” historiographies premières. 5) historiographies premières : o conceito Costuma-se ler o título em primeiro lugar apesar de sabermos que o titulo é sempre colocado por último. Neste caso específico, não será diferente. Durante toda a escritura, uma questão fundamental foi como dar sentido aos elementos textuais. O termo historiographies se compõe de duas partes: « historia » e « grafia ». O termo « história » se relaciona ao tempo, e considera a memória individual como elemento reconstitutivo da memória do longo tempo. O termo « grafia » remete ao que é escrito. Portanto, o titulo conceitua o projeto de escritura que é a escritura da História brasileira a partir do que foi apagado e dos elementos biográficos. O plural refere-se às várias estórias refundidas na História reconstituída. Os poemas culminam com o último canto que se intitula « Ayvu Rapyta ». Este título remete a um longo poema da nação Guarani que narra o nascimento do mundo e dos seres que povoam a terra. Trata-se de uma cosmogonia. De tradição oral, o poema foi coletado em território paraguaio na década de 1940, e neste momento, passa a ser veiculado sob sua forma escrita. É quando o mundo ocidental toma conhecimento deste poema pela antropologia e pela etnologia. A questão colocada é saber se o fato destes povos não terem grafia, de serem povos ágrafos não os possibilita terem história? Pois bem, a tese adotada nestes cantos é de reconstituir esta história dos ameríndios que não é separada daquela dos afrodescendentes, nem dos europeus que chegaram a estas terras brasilis. Eis porquê o poema refere-se à brasilidade. « et l’espace de la poésie jaillit sur fond 174 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 d’archipels de mémoire nomination naissant des ventres ronds mangés par la terre sépulcre et naissance du nommer dans la chaleur moite du passage du milieu qui transfigure la figure de l’africain transplanté-déporté en rien moins que rien pour l’exploitation de la terre amérindienne terre porteuse de promesses terre formée par les décalages amérindiens africains européens qui matissent métis-âge embruns du matin à l’orée de la nuit lorsque le jour annonce peut-être le viol dans la cour intérieure avant l’heure de la sieste et le ventre lourd attend la délivrance les seins sucés se vident de leur contenu et la vie jaillit »12 CONCLUSÃO Este projeto de escritura transcende o conhecimento unidirecional da História oficial para mostrar que o conhecimento pode ser apreendido de maneira plural, ele pode ter vários tipos de objetos, diferentes metodologias. A escritura literária constitui um caminho fundamental para ler o real a partir dos elementos vividos em sociedade. É tempo de revermos o que foi esquecido para produzir discursos plurais dentro na tentativa de explicitarmos o que passou neste território, isto é, a história e o tempo. A escritura literária abre campos de observação e de análise sobre como o conhecimento pode ser apreendido de diversas maneiras. Logo, a questão passa a ser sobre o que é conhecimento. Questão de fundamental importância epistemológica, a estruturação do conhecimento é complexo, e deve ser entendido a partir de seus diferentes matizes. A literatura e a escritura literária, abre-nos espaço para reformular os conceitos. Neste sentido, a oralidade apresenta um potencial que se faz presente nestes textos que pertencem à tradição oral, e que, em uma sociedade baseada no altíssimo valor do que está escrito, muitas vezes são objeto de esquecimento e de apagamento. É de fundamental importância observar, inclusive em nossas produções literárias, a oralidade como elemento constitutivo da escritura literária em torno da qual inúmeros elementos se reorganizam e novas questões epistemológicas são colocadas. 12 Rossi Ana, historiographies premières, Toulon, Arco-íris édition, 2008, p. 120. « e o espaço da poesia jorra sobre o pano de fundo/dos arquipélagos da memória nomeação nascendo/dos ventres redondos comidos pela terra sepulcra/e nascimento da nomeação no calor ressudado/da passagem do meio que transfigura a figura/do africano transplantado-deportado e nada menos/que nada para a exploração da terra ameríndia/terra carregada de promessas terra formada pelos/deslocamentos ameríndios africanos europeus que/amarronzam mestiço-idade rebentação da manhã na aurora/da noite quando o dia anuncia talvez o/estupro no pátio interior antes da hora da/sesta e o ventre pesado espera a libertação os/seios chupados se esvaziam de seu conteúdo e a vida jorra” (Tradução minha). 175 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 REFERENCIAS BERMAN A. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. [tradutores Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini]. Rio de Janeiro:7Letras/PGET, 2007. CENTRE INTERNATIONAL DE POÉSIE DE MARSEILLE, Marseille:CIPM, leitura oralizada por Ana Rossi de seus poemas, http://www.cipmarseille.com/auteur_fiche.php?id=1839, consultado em 2 de abril de 2014. CHAMORRO G. “Narrar com os pés: uma aproximação da história oral desde a perspectiva kaiowá”. Trânsitos da voz: estudos de oralidade e literatura. [Eudes Fernando Leite, Frederico Fernandes (organizadores)], Londrina: EDUEL, 2012. DE CERTEAU M. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard. 1975. FERNANDES F. “Voz, Futuro da Arte”. As razões da voz [organizador: FERNANDES Frederico]. Londrina:Eduel. 2014. GANDUGLIA N. País de magias escondidas. Montevidéo:Planeta, 2010. GLISSANT E. Faulkner, Mississipi. Paris: Stock. 1996. GLISSANT E. Le Discours antillais, Paris: Seuil. 1981. GLISSANT E. Le sel noir, Paris: Seuil. 1960. GLISSANT E. 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Alexandre Ranieri1 Resumo: Este artigo teve como objetivo tratar do método entrevista do projeto IFNOPAP a partir do documento Achegas para técnica e ética de coleta com vistas a analisar os procedimentos adotados a luz tanto dos folcloristas como Renato Almeida (1965), Oswaldo Cabral (1954), entre outros, quanto dos pesquisadores nossos contemporâneos como Maria Inês de Almeida e Sonia Queiroz (2004) e Frederico Fernandes (2003) para, com isso, entender melhor o processo de desenraizamento das narrativas contidas no CD-ROM Caleidoscópio Amazônico (1998) e se as mesmas, nesse processo, ainda guardam vestígios do chamado “Etnotexto” descrito por Pelen (2001). No entanto, o objetivo maior deste artigo é definir se as ações do projeto IFNOPAP respeitam uma metodologia ou se foram feitas a partir de algumas práticas que não se chegam a se constituírem em um método. O presente artigo, portanto, é uma pequena parte da minha tese de doutorado em andamento. Nele, faço uso de outros autores importantes como Mahshall Macluhan (1972), Walter Benjamin (2001) e Paul Zumthor (2010), dentre outros. Palavras-chave: Método; IFNOPAP; Prática; Entrevista. Abstract: This paper aims to discuss the interview method IFNOPAP project from Achegas document for technical and ethical collection in order to analyze the procedures adopted in light of both folklorists as Renato Almeida (1965) , Oswaldo Cabral (1954) , among others , as our contemporary researchers like Mary Ines Almeida and Sonia Queiroz (2004) and Frederico Fernandes (2003) to thereby better understand the process of uprooting the narratives contained in the CD- ROM Amazon Kaleidoscope (1998 ) and the same , this process still retain vestiges of the " Etnotexto " described by Pelen (2001) . However , the main goal of this article is to define the shares in respect IFNOPAP design methodology or if they were made from some practices that do not come to constitute a method . This article, therefore , is a small part of my doctoral thesis in progress . In it , I make use of other important authors as Mahshall McLuhan (1972) , Walter Benjamin (2001) and Paul Zumthor (2010) , among others . Keywords: Method ; IFNOPAP ; Practice ; Interview . Este artigo é uma pequena parte da minha tese de doutorado. Nela, investigo, dentre outras coisas, se as narrativas do CD-ROM Caleidoscópio Amazônico: uma aventura de imagens e cores (1998) ainda apresentam traços do “Etnotexto” descrito por Pelen (2001) Para tanto, tive que voltar ao começo, ou melhor, até onde o método de investigação me permite retornar. Sabe-se 1 Aluno do curso de doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), sob a orientação do Professor Frederico Augusto Garcia Fernandes. Professo licenciado da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA). 177 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que o CD-ROM é um produto acabado e fechado dentro dos limites do formato de arquivo no qual se encontra, e que o mesmo toma por base as narrativas do projeto IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense), sabe-se, também, que não é possível voltar ao instante da enunciação por parte do informante, quando o mesmo conta uma história com base em algum acontecimento cotidiano, momento (performático) único em que ocorre o “exercício fônico” realizado no emprego da linguagem que segundo Paul Zumthor em Introdução à poesia oral a poesia se enraíza (ZUMTHOR, 2010, p. 8). Nos resta voltar ao começo acadêmico, quando o pesquisador sai dos muros da universidade e vai a campo coletar narrativas munido de um gravador ou qualquer outro instrumento que lhe permita registrar o momento da enunciação. Esse momento no qual o pesquisador encontra-se diante do informante e lhe diz “me conte uma história!” em pouco se iguala ao momento sui generis da “contação” contextualizada pelo momento que surge a partir de uma dúvida ou ato falho cometido no ambiente doméstico. Por isso, nesse momento, pesquisador e informante, participam de um “jogo”. O primeiro pede ao segundo um objeto para o seu estudo: uma narrativa, esperando o máximo de espontaneidade. O segundo dá ao primeiro o que seu conhecimento de mundo lhe diz para dar: uma narrativa do seu cancioneiro pessoal, se esforçando para parecer espontâneo, mesmo com a presença de uma pessoa oriunda do ambiente acadêmico – um “doutor” talvez pense o informante – munido de um aparato tecnológico. Sobre essa relação (ou esse jogo), nada podemos afirmar com exatidão em relação ao segundo personagem (o informante), apenas podemos supor muitas coisas como a seu desconforto na presença de um acadêmico ou diante de um gravador. Sobre nossos anseios enquanto pesquisadores, podemos concluir baseados em inúmeros conceitos antropológico, sociológicos, estéticos, de psicologia etc, muitas coisas a partir de toda nossa documentação acadêmica que precede e/ou surge após a entrevista. Então, sobre o informante no momento em que se vê na situação de ter que contar uma história outrora imersa em uma situação de comunicação e transportá-la para outra completamente diferente como a de uma entrevista, só podemos afirmar com exatidão que a situação é simplesmente diferente. Segundo Carpenter, citando como exemplo os talhadores esquimó, na tradição oral, o contador fala como “muitos-para-muitos” e não como “pessoa-para-pessoa” por isso pode-se 178 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 ouvir a obra de arte de qualquer direção igualmente bem, pois ela dirige-se a todos (CARPENTER, 1960, p. 66-67 apud MCLUHAN, 1972, p. 103). Todavia, é importante ressaltar a diferença entre ouvi-la bem e entendê-la tal qual um membro da comunidade. Um estudioso pode apreciar o momento e entender a beleza daquilo do ponto de vista estético-antropológico e sua importância para a comunidade de onde provém, mas possivelmente não saberá com exatidão a que aquilo se aplica no contexto de onde foi tirado. Segundo Marshal Mcluhan em A galáxia de Gutenberg, a razão porque achamos difícil compreender os mitos está justamente no fato deles não excluírem qualquer faceta da experiência como fazem as culturas alfabetizadas, ou seja, todos os níveis de significação são simultâneos (MCLUHAN, 1972, p. 110). Portanto, entender como se deu esse processo em se tratando do Projeto IFNOPAP é entender o começo do processo de “desenraizamento” e afastamento que as narrativas sofreram até a produção de um objeto tecnológico como a gravação do Compact Disc em questão. Considerações sobre método Muitos são os autores e os métodos de coleta e transcrição de entrevistas orais adotadas no Brasil. São eles antropólogos, sociólogos, historiadores, linguistas, literatos, jornalistas e até mesmo profissionais de marketing, ciências exatas e biológicas fazem uso desse método de pesquisa. Há, por certo, muitas coisas em comum e muitas especificidades nesses processos. Como o acervo do projeto IFNOPAP abarca desde mitos e lendas amazônicas até a história oral de vida dos homens e mulheres da região – inclusive algumas das narrativas que chegaram ao Caleidoscópio possuem traços de história oral de vida – tratarei neste subcapítulo sobre os métodos usados tanto por folcloristas quanto por estudiosos da história oral já que segundo José Carlos Bom-Meihy em Manual de História Oral “ainda que a tradição oral implique em entrevista, ela remete às questões do passado longínquo que se manifestam através do folclore e pela transmissão geracional” (MEIHY, 1996. p. 45). No entanto, sabe-se que o método dos folcloristas abarca um incontável número de facetas de pesquisa que em grande parte não diz respeito – senão de forma indireta – a este estudo. Centrar-me-ei, mais adiante, nos processos metodológicos que julgar mais adequado a coletas de 179 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 narrativas orais, ou seja, aqueles que, a meu ver, menos interferem na espontaneidade do entrevistado, causando, assim, o mínimo de ruptura possível com o Etnotexto (PELEN, 1996), tais como a pesquisa prévia sobre a comunidade e seus membros; a aproximação ao informante com vistas a ganhar a confiança dele; o registro de tudo o que cerca o momento da “contação”; a transcrição o mais fiel possível à gravação e com observações sobre a performance do narrador e glossário, dentre outras. Pensando nisso, recorro a Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz que em Na captura da voz acusam três momentos na história das edições do conto oral popular no Brasil: o dos pioneiros, que conviveram com as primeiras máquinas impressoras no país entre os anos de 1881 e 1920, os quais priorizavam muito mais a coleta do que a reflexão analítica; a dos folcloristas, em grande parte por iniciativa e recursos próprios, e antropólogos já vinculados às instituições superiores nos primeiros anos da Universidade brasileira os quais primavam pelo rigor metodológico, dando ênfase ao registro de informações sobre o contador e na fidelidade ao dialeto da narração, graças aos equipamentos de gravação já desenvolvido o suficiente naquela época; e o os pesquisadores universitários ligados aos programas de Pós-Graduação nas áreas de Ciências Humanas e Letras, em especial a partir das décadas de 70 e 80, que voltam sua atenção para cena performática graças ao desenvolvimento das teorias da enunciação e do videofilme. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 123) É interessante notar que as autoras fazem essa divisão histórica levando em consideração a questão do método, tamanha é a importância do mesmo para o resultado final: seja uma coletânea impressa (ou digital) ou um estudo crítico sobre as narrativas coletadas. Nesse aspecto, o estudo das fontes primárias e dos seus métodos de coleta nos ajuda a entender melhor não apenas o produto final que é o dispositivo eletrônico de que trato, mas me dá aporte teórico para entender o início do processo que desembocará no CD-ROM. Para tanto, é necessário analisar algumas peculiaridades do método de pesquisa desde o planejamento, passando pela coleta até o registro. Para isso nos servimos das palavras de Oswaldo R. Cabral que afirma em Cultura e folclore: bases científicas do folclore que: É da observação de fenômenos reveladores da existência de determinadas modalidades da cultura vulgar, do seu levantamento, da sua distribuição, das suas características particulares, da sua descrição e do seu registro que se há de partir para atingir-se o propósito superior que é a análise (CABRAL, 1954, p. 173 apud JARDIM, 2011, p. 103) 180 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Com isso, esperamos analisar os métodos utilizados pelo Projeto IFNOPAP para constituição de seu corpus acadêmico e entender até que ponto houve uma preocupação com a metodologia para proporcionar uma melhor análise por parte dos estudiosos que fizeram uso desse objeto. Neste artigo, analisarei os métodos utilizados pelo IFNOPAP com base, em especial mas não exclusivamente, no documento fornecido pela coordenação do projeto: Achegas para técnica e ética da coleta. O documento é dividido em três partes: “a propósito do entrevistador”, “a propósito do informante” e “a propósito da gravação”. O último item se divide em “antes”, “durante” e “depois” da entrevista. Achegas para técnica e ética da coleta Antes de entrarmos nas achegas propriamente ditas é importante lembrarmos o objetivo primeiro do IFNOPAP: “mapear o que se conta no Pará” (SIMÕES, 2014). Esse foi um objetivo ambicioso, tendo e vista que um dos lemas do projeto nessa fase era o de escutar (gravar) quem tivesse uma história para contar, sem se importar com idade, etnia, cor, sexo... o que nos faz lembrar as palavras de Renato Almeida quando afirma que os detentores do folclore não estão somente entre as classes mais pobres ou somente no meio rural (ALMEIDA, 1965, p. 30-31). A primeira coisa que me chamou atenção nessa espécie de “pequeno manual” foi o nome dado a ele: “achegas”, que segundo Vilhena era um termo muito usado pelos folcloristas para publicações curtas – de cerca de três laudas datilografadas – e indicava “que o autor pretendia apresentar hipóteses gerais sobre um problema, aproximar-se ligeiramente de um assunto, ou somente acrescentar algumas informações a um debate” (VILHENA, 1997, p. 177). O termo, outrora utilizado para aqueles pequenos artigos, foi bem empregado para esse documento – também em três laudas – que trata de maneira geral de algumas (poucas) regras para a coleta de narrativas. Segundo a professora Maria do Socorro Simões, em entrevista concedida no dia 06 de janeiro de 2014, as achegas foram feitas em partes com métodos científicos orientados pelo professor Cristophe Golder – que, na época, acabara de defender a sua tese de doutorado em semiótica pela Université de Franche Comté e cujo tema versava sobre o Bumba-meu-boi do 181 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Maranhão – em partes com base na intuição dos professores que participavam do projeto. (SIMÕES, 2014) a) A propósito do entrevistador A primeira orientação dada nessa primeira parte das “achegas” é: “a pesquisa de campo consistirá, em princípio, na coleta de narrativas tal como nos forem repassadas, espontaneamente” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.1). Todavia, o documento em questão fora produzido em uma fase do projeto posterior ao que descrevemos anteriormente quando se utilizavam recursos próprios para a coleta. Portanto, é bastante comum encontrarmos em fitas e transcrições, registros de interrupções dos entrevistadores ou ainda, observações feitas pelos transcritores que afirmam que a narrativa não pode ser completada como no trecho que se segue: Essa história é apenas uma parte de uma longa e fascinante narrativa que se perdeu devido ao ensaio solicitado pela informante, a qual temia uma má performance, por isso nos proibiu de gravá-la. O cansaço também colaborou, pois a mesma já havia contado outras narrativas, sempre seguidas de um ensaio. A incipiência desta pesquisadora fez com que a narrativa fosse contada de forma fragmentada. A tentativa de recompor o quadro da narrativa anterior é refletida nas várias intervenções feitas (PORTAL DE POÉTICAS ORAIS, 2014). A nota de rodapé acima, retirada da narrativa publicada por mim no Portal de Poéticas Orais, O Tejo do Jacaré, mostra uma declarada incipiência da pesquisadora que permitiu um “ensaio” por parte da informante – o que, provavelmente, tirou boa parte da espontaneidade da narrativa – e uma “contação” fragmentada graças a interrupções externas. A orientação seguinte diz que “a espontaneidade estabelecer-se-á a partir das atitudes do próprio pesquisador” e é complementada pelas seguintes: - o entrevistador deve ser: discreto, habilidoso, elegante, atento. Evitar ser importuno. Deixar o informante à vontade. Evitar que o informante se desvie dos propósitos da pesquisa; - o entrevistador é, tão-somente, o coletor das narrativas, do que se conclui que deve falar o mínimo e ouvir (gravar) o máximo; (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.1) Nessas orientações, podemos perceber a preocupação da equipe organizadora em preservar a espontaneidade a partir da postura do próprio entrevistador. Mas sem se aprofundar ou dar 182 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 exemplos de como proceder em casos que possam ser recorrentes. Como essas instruções foram dadas pela equipe da capital em visita às localidades no decorrer de uma espécie de minicurso, acredito que essas e muitas outras dúvidas devam ter sido sanadas. Tanto que abaixo desses itens referentes ao entrevistador podemos ver a seguinte “Observação: este não é um documento acabado. Há orientações básicas indispensáveis e há orientações que podem, eventualmente, ser adaptadas às circunstâncias” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). O penúltimo item trata do trabalho em grupo (2 ou 3 membros) (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). Nesse caso, a preocupação estava no caso de o pesquisador ser de outra localidade (como a capital, por exemplo) e não conhecer as pessoas e lugares por onde passaria. Essa orientação segundo a coordenadora do projeto foi cumprida por raríssimos pesquisadores tendo em vista que o projeto carecia de coletores e, na maioria das vezes, eles eram da localidade ou conheciam as regiões onde trabalharam (SIMÕES, 2014). Caso a orientação fosse seguida à risca, ela feriria uma das observações feitas por Renato Almeida de que as entrevistas deveriam ser feitas a sós com o entrevistado. Todavia, na impossibilidade – assim como orienta Renato Almeida – os coletores tomavam nota de tudo (ALMEIDA, 1965, p.28). O último e enigmático aviso “deixar a emoção na UFPA” se refere ao envolvimento do entrevistador com o que é contado pelo informante(ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). O entrevistador não poderia ser indiferente ao que se conta, mas o mesmo também não poderia se envolver a ponto de prejudicar a espontaneidade do que se estava contando. Todavia, Frederico Fernandes alerta para o risco dessa abordagem “cimentar uma linha divisória entre o popular e o acadêmico” (FERNANDES, 2003, p. 33). E vai além, afirmando que numa pesquisa como essa “qualquer tentativa de afastamento interfere nos resultados” e finaliza o raciocínio afirmando ter se sentido parte do objeto por interagir com a narrativa (FERNANDES, 2003, p. 136); Outras informações que não constam nas achegas me foram repassadas em entrevista, como a roupa que os entrevistadores deveriam trajar, esta não poderia ser chamativa, todos deveriam ir bem vestidos, mas com nada que pudesse tirar a atenção dos informantes no momento da “contação” – tal qual sugere Renato Almeida (ALMEIDA, 1965, p.26). 183 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 b) A propósito do informante Ainda que autores como Renato Almeida (1965) e Amadeu Amaral (1976) acusem como necessário a coleta uma pesquisa prévia, a primeira orientação deste item afirma que deve-se começar a coleta através dos conhecidos. Com esses e autoridades (prefeitos, religiosos, médicos, professores), colher informações e passar, a partir daí a entrevistar os demais membros da comunidade. O que faz sentido, afinal de contas, se sou membro de uma comunidade, conheço as pessoas que vou entrevistar, seus hábitos e costumes, não tenho porquê pesquisar afinal de contas já conheço o suficiente sobre aquela pessoa. Acredito que as observações de Renato Almeida e Amadeu Amaral são importantes para os pesquisadores que não são membros da comunidade. O que não foi o caso da maior parte dos coletores do projeto IFNOPAP. No segundo item das achegas, temos “não limitar a figura do informante: faixa etária; origem geográfica; classe social; profissão; religião” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2), em relação à origem geográfica, em entrevista, a professora Socorro, afirma que a única restrição estaria em que a pessoa deveria viver no Pará há pelo menos dois anos. Mesmo que autores como Vilhena e Ortiz afirmem que não se deve utilizar informantes especializados, a metodologia adotada pelo projeto está de acordo com o que defende Renato Almeida que afirma que os detentores do folclore não estão somente entre os analfabetos (ALMEIDA, 1965, 2014). Mas, pergunto-me qual o tempo necessário para alguém criar vínculos com um determinado local ou região? Acredito que isso depende da relação que o indivíduo tem com o seu próprio lugar de origem. Pensando nisso é quase impossível não lembrar de Walter Benjamin em seu renomado capítulo O narrador, do livro Magia e técnica, arte e política, no qual afirma que existem dois grupos de narradores “que se interpenetram de múltiplas maneiras”: o viajante e o residente, cada um deles “alimenta” o outro. Tanto o viajante que carrega consigo o imaginário de onde provem e de lugares por onde passou deixa a sua marca no imaginário local, quanto o narrador residente empresta um pouco do que conhece ao viajante para a formação do seu cancioneiro. Nesse aspecto, viajante e residente, são as duas faces de uma mesma moeda, suas histórias de vida e 184 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 suas narrativas se complementam mutuamente e cooperam uma com a outra na formação do cancioneiro de um e de outro (BENJAMIN, 1994, p. 198). Assim, acredito que se o objetivo era “mapear o que se conta no Pará” (SIMÕES, 2014) (grifo meu) o narrador que esteja “no” Pará por menor que seja sua estadia, em ser um narrador, a meu ver, ele já interfere na “paisagem oral”2 deixando sua marca indelével no que circula ou irá circular nas rodas de amigos ou na casas de famílias de onde tentamos escutar o que se diz. No contato com o informante, o documento afirma que se deve “informar sobre a proposta de trabalho, com clareza, objetividade, simplicidade e humildade” e “referir que se trata de um trabalho de equipe, sem fins lucrativos e, se julgar necessário e oportuno, dar informações mais completas”. No caso de dúvidas “formular as questões e responder as perguntas com clareza e honestidade, para angariar a confiança do informante” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). Tais informações são básicas e não requerem um esforço analítico da minha parte. No entanto, a orientação seguinte é no mínimo intrigante: “tentar ser parte do grupo, sem exageros, naturalmente” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.2). A afirmação é um tanto quanto equivocada, na minha opinião, ou você faz parte, ou você não faz parte de um grupo. Talvez o que os organizadores quiseram dizer foi que o entrevistador deveria se “enturmar” ao grupo e não necessariamente fazer parte dele. Não estivesse essa orientação especificamente no item “a propósito do informante e pensaria que “grupo” se referiria aos pesquisadores. No final deste item, há um conjunto de observações referentes às solicitações dos informantes - Pagamento: deixar claro que se trata de estudo e não de atividades com fins lucrativos. Se o informante quiser objetos em troca das informações, o pesquisador tentará resolver a questão da maneira mais adequada. - Sugestões sentimentais: agir com recato, discrição e evitar constrangimentos. - Procurar atender o informante se se tratar de troca de informações. (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3). 2 Para a utilização deste termo, concordo com Frederico Augusto Garcia Fernandes que em A voz e sentido o define como “a polifonia presente nos relatos e que podem vir de muitas fontes”. Ainda que o autor não cite, especificamente, a presença do viajante como elemento desta polifonia, acredito que ele faça parte dela por menor que seja a sua intervenção (dias, meses, anos) na paisagem oral (FERNANDES, 2007, p. 77). 185 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 As observações acima resumem boa parte do que foi dito nesse item. Na questão do pagamento, se por um lado não se diz exatamente o que fazer no caso da insistência do pagamento por outro deixa-se o entrevistador a vontade para resolver a questão da maneira mais conveniente. Em relação às sugestões de caráter sentimental a orientação reitera o que foi dito a propósito de “deixar as emoções na UFPA”. Por fim as trocas de informações não só são aceitas como são quase recomendadas. No documento não há qualquer referência especificamente sobre o que Oswaldo Cabral chama de “mores tradicionais” (CABRAL, 1954, p. 188 apud JARDIM, 2011, p. 105). Não há referências sobre a relação entre pessoas de sexo diferente – como no caso de termos uma entrevistadora e um entrevistado ou vice-versa –, ou sobre uma possível atitude de descrença ao que se está escutando – o que não deve nunca ocorrer sob risco de colocar não só aquela, mas todas as outras entrevistas naquela comunidade a perder, já que um membro da comunidade que se sentir destratado pelo entrevistador pode conversar a todos os outros membros da comunidade a não cooperar com o pesquisador –, conforme alerta Oswaldo Cabral (CABRAL, 1954, p. 188 apud JARDIM, 2011, p. 105). Ou essas especificidades foram referidas durante o minicurso de orientação ministrado nas localidades ou partiu-se do princípio de que como os entrevistadores seriam membros da comunidade, eles já teriam esse trato arraigado em suas práticas cotidianas. Somente quando se diz “tentar ser parte do grupo, sem exageros, naturalmente” é que percebo a tentativa de instruir os entrevistadores quanto ao que Oswaldo Cabral chama de “excessiva liberdade” e “ultrapassar os mores tradicionais do meio”. c) A propósito da gravação Este item se divide em “antes”, “durante” e “depois” da gravação e se refere a questões meramente técnicas. No “antes”, temos orientações que tratam sobre reunir o material necessário (caneta, papel, gravador, pilhas, fitas, máquina fotográfica, filmes), examinar e testar as fitas e o gravador, além de assinalar a referência na fita que se fosse utilizar (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3). 186 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A referência às máquinas fotográficas tinha como pressuposto, segundo Maria do Socorro Simões, que as mesmas não atrapalhassem a performance, para isso, os fotógrafos teriam que trabalhar da forma mais discretas possível. As câmeras de vídeos não chegaram a ser usadas devido à falta de recursos (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3). No subitem “Durante”, exige-se do entrevistador que grave na fita, inicialmente os dados pessoais do informante, o local, a data e hora da gravação, além de verificar se o microfone está bem posicionado em relação ao informante, controlar o avanço da fita e virá-la em momento de interrupção demorada para que a mesma não interrompa o informante no momento em que narra. A última orientação deste subitem avisa que não se deve interromper a gravação mesmo durante conversas paralelas. Nesse subitem também há algumas observações sobre “anotar em folha de papel informações que julgar interessantes e/ou perguntas para esclarecimentos posteriores, sem nunca interromper a gravação para fazer isso e só falar se for inquirido pelo informante” (ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA, 1994, p.3). Estas informações me parecem de acordo com o que Renato Almeida aconselha: anotar-se o modo como a história é contada, se há assistentes e qual a reação de quem escuta (ALMEIDA, 1965, p. 156). Podemos observar que tal orientação foi cumprida quando observamos a nota de rodapé da narrativa O tejo, história contada pela informante Francisca Paulina Cardoso e publicada no livro Belém conta...: 6 A digressão feita a partir deste ponto, foi devido à confusão com os nomes das personagens. A informante acabou repassando para seus ouvintes (a entrevistadora, alguns vizinhos e familiares) a responsabilidade de esclarecer a questão. 7 Nos dois parágrafos a seguir, a informante diminui o tom da voz para mostrar que a personagem estava falando consigo mesma. 8 Instrumento construído com galhos de árvore, é utilizado por caçadores para transportar caça. 9 A informante reproduziu a fala da personagem, dizendo [móio]. 10 A informante bate com a mão fechada, na mesa, para confirmar sua colocação. 11 “Tejo” segundo a informante é o que se dá a lagartos. Também chamado de Teju”. 12 [Viu...!], [fil...!]: onomatopéias que denotam movimento veloz. São seguidas por gesto: a informante levanta o braço direito e o mergulha no ar. (SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe, 1995, p. 13-16) 187 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Observo que a pesquisadora Veruza Mourão, responsável pela gravação e transcrição desta narrativa faz referência à maneira como dona Francisca conta, os recursos que a mesma utiliza e a ajuda ou interrupção que a mesma teve durante a contação, algo que se aproxima bastante das orientações dadas por Renato Almeida. As orientações para o momento após a gravação resumem-se em “reformular as questões que ficaram pendentes durante a narrativa” com vistas, dentre outras coisas, fazer o glossário e/ou as notas explicativas como as vistas acima; e “proteger a fita imediatamente após a gravação total (narrativas, perguntas e respostas posteriores)”. d) A transcrição A transcrição é outro momento do processo de desenraizamento. Daí em diante, a decisão da equipe de pesquisadores de como fazer é importante. Nas transcrições feitas pelos pesquisadores do projeto decidiu-se respeitar o modo de falar do informante tentando adequá-lo à transcrição escrita, recriando os momentos de oscilação e pausa, por exemplo, usando reticências ou colchetes quando não é possível para o pesquisador entender o que foi dito pelo informante. Todavia, a transcrição deixa passar muitas das características do perfil linguístico da comunidade. Não há qualquer referência ao processo de transcrição das narrativas nas achegas, mas em entrevista concedida no dia 24/07/2012, a professora Socorro Simões afirma que o critério de transcrição não levou em consideração os fatos fonéticos porque o objetivo do projeto era outro que não necessariamente o linguístico. Então, a transcrição foi feita a maneira de um ditado escolar, respeitando a gramática da língua portuguesa, sendo que, ao final da entrevista, as palavras que o entrevistador não compreendesse seriam perguntadas ao informante para a formação do glossário (SIMÕES, 2012). Essa faceta do método empregado se coaduna com o que Almeida e Queiroz afirmam sobre a formação de um glossário no momento da transcrição (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 138). Mas, em nenhuma das publicações da série Pará conta... (Belém, Santarém e Abaetetuba conta...) 188 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 (SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe, 1995), há o que as autoras chamam de “paratexto crítico”, ou seja, “apresentação, prefácio e notas, escritos pelo próprio organizador (na maior parte dos casos), ou por um intelectual convidado” onde se teriam algumas particularidades do método de coleta e os objetivos da pesquisa, o que impede que outros estudiosos que não estejam em contato direto ou possuam relações próximas ao projeto (como eu) de trabalharem de forma mais aprofundada com o corpus do projeto IFNOPAP. Por fim, acredito que ao projeto ainda lhe faltaram algumas informações específicas de como abordar os entrevistados, como seria esse primeiro contato? Não há especificações como o faz Renato Almeida que afirma que nunca se deve ir direto ao assunto. Com base em todas as informações que obtive a partir da leitura de autores e obras que versam sobre a metodologia de coleta folclórica e levando em consideração o que pude observar a partir dos documentos, entrevistas e produtos do projeto em questão, pude concluir que o mesmo utilizou uma metodologia, em grande parte, adequada a coleta de narrativas. Não se trata, portanto de uma simples prática, mas de um método, algumas vezes equivocado mas que “acertou” na maior parte das ações que empreendeu, constituindo assim, efetivamente, um método de entrevista oral. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG, 2004. ALMEIDA, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro, 1965. AMARAL, Amadeu. Tradições Populares. Est. Introd. Paulo Duarte. São Paulo: Hucitec, 1976. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197221 FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz e o sentido: a poesia oral em sincronia. São Paulo: Editora Unesp, 2007. MACLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo: Editora Nacional, 1972. 189 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 MEIHY. José Carlos Bom. Manual de história oral. São Paulo: Edição Loyola, 1996. PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. In: Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História (PUC-SP), v.22, pp. 49-77, 2001. SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe. Abaetetuba conta... Belém: CEJUP, 1995 _____________________________________________. Belém conta... Belém: CEJUP, 1995 _____________________________________________. Santarém conta... Belém: CEJUP, 1995 VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e Missão: o Movimento Folclórico Brasileiro, 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getulio Vargas, 1997. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010. CD-ROM CALEIDOSCÓPIO Amazônico: uma aventura em imagens e cores. Produção: Ana Prado e Osmar Aruok. Local: Belém -PA, 1998. CD-ROM. Documento ACHEGAS PARA TECNICA E ÉTICA DA COLETA. 1994. Belém, PA: UFPA, 1994. Entrevistas SIMÕES, Maria do Socorro. Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre Ranieri. Belém, 24 jul. 2012. Gravação digital 50min estéreo. _______________________. Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre Ranieri. Belém, 06 jan. 2014. Gravação digital 1h30min estéreo. Site PORTAL DE POÉTICAS ORAIS. Disponível em: http://www.portaldepoeticasorais.com.br/site/?pg=escutar&id_audio=35. Acesso em 15/02/2014. 190 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Tese FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz em performance: uma abordagem sincrônica de narrativas e versos a cultura oral pantaneira. Tese de Doutorado. UNESP: Assis, 2003. JARDIM, Marcelo Rodrigues. Cartografia de poéticas orais da região Sul do Brasil: os estudos folclóricos e a poesia oral (1945-1995). Tese de doutorado. UEL: Londrina, 2011. Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O LUGAR DAS POÉTICAS ORAIS THE PLACE OF ORAL POETICS Danieli dos Santos Pimentel (PUCRS-FALE)1 Josebel Akel Fares (UEPA- PPGED)2 Resumo: O interesse pela pesquisa com as poéticas orais foi que nos levou a escrever este artigo. Assim sendo, nos debruçamos na tentativa de refletir sobre um tipo de abordagem como a que será observada ao logo do texto. Apresentamos, de forma didática e teórica, os percursos quase sempre encarados no decorrer da pesquisa com as poéticas. Primeiramente, nos acercaremos de uma breve discussão em torno da entrada dos estudos da oralidade no ramo das teorias da literatura, em seguida, pontuaremos algumas das etapas adotadas nesse percurso: o campo de pesquisa e suas implicações, a escolha dos narradores, técnicas de pesquisa em literatura oral, entrevistas narrativas, metodologia (a história oral e a abordagem cartográfica), transcrição, e por último, a análise e interpretação dos dados. Desse modo, optamos pelo cruzamento de teorias, algumas específicas das poéticas da voz, e, outras oriundas do cenário das ciências sociais. Palavras-chave: Poéticas orais; Pesquisa; Metodologia. Abstract: The interest in research with oral poetics was what led us to write this article. Therefore, we concentrate in an attempt to reflect about one type of approach as it will be seen through the text. We present in a theoretical and didactic way what is seen during the research with the poetic. We start a brief discussion about the entrance of orality study in the field of literature theories. Then we appoint some of the steps taken during this path: the field of research and its implications, the choice of narrators, research techniques in oral literature, narrative interviews, methodology (oral history and cartographic approach), transcription and finally the analysis and interpretation of data. Thus, we chose the intersection between theories from social sciences and voice poetic. Keywords: Oral poetics; Research; Methodology. O texto poético oral Entendida como um espaço de mesclas, a nova historiografia da literatura se vê obrigada a agregar, ao ramo dos estudos narrativos, outras expressões da cultura até então deixadas à margem pela crítica literária. Na acepção de Paul Zumthor, a ressurgência dos fenômenos vocais Doutoranda em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – bolsista Capes. Mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) com parceria interinstitucional UEPA/PUCRS – mestrado sanduíche com bolsa Capes, Integrante do grupo de pesquisa Cultura e Memórias da Amazônia (CUMAUEPA). E-mail para contato: danielipimentel@yahoo.com.br. 1 2 Doutora em Comunicação e Semiótica: Intersemiose na Literatura e nas Artes (PUCSP, 2003); mestra em Letras: Teoria Literária (UFPA, 1997). Possui estágio Pós-Doutoral em Educação (PUCRS, 2012). Coordena o Núcleo de pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA). E-mail para contato: belfares@uol.com.br. 192 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 instaura a revanche no cenário da teoria da literatura. Se pensarmos pela lógica de que as tradições orais são anteriores aos textos canônicos e literários lidos pelo mundo inteiro, não descartamos a prerrogativa de que a literatura quase sempre, se serviu do imaginário dos povos de culturas antigas. Visto dessa maneira, ao ter firmado o pé nas velhas tradições, a literatura não pode hesitar de olhar para o ontem de sua gênese criadora, nem tampouco, “negar a importância do papel que desempenharam, na história da humanidade, as tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm graças a elas” (ZUMTHOR, 2010, p. 8). Adiante, Zumthor estabelece questionamentos acerca da literatura “operada tanto pela escrita quanto pela voz”: quantos poemas na Paris dos anos 1950, escritos e editados “literariamente”, musicados posteriormente, tornaram-se canções na consciência e no uso coletivos? Por sua vez, o ensino primário não transformou, para crianças de minha geração, algumas fábulas de La Fontaine em poesia oral por excelência? [...] Isso não é novidade: desde o século XIV, a classe popular florentina cantava versos da Divina Comédia e, ainda no século XVIII, os gondoleiros venezianos cantavam oitavas de Tasso. De modo inverso, quantos poemas e contos literários serviram-se de uma tradição popular? (ZUMTHOR, 2010, p. 23). Neste início de século, assistimos as novas teorias híbridas: mestiçagens, complexidades e multiplicidades de valores, bem como da não negação e interdependência entre saberes e práticas seguem nesta prerrogativa. A metonímia já não é capaz de explicar a parte do todo, por isso, está sendo combatida pelo atravessamento de multiplicidades simultâneas e emergentes. A concepção dual não cabe mais na noção movente da cultura ao passo que, agimos como integrados, e ainda, vezes por outra, como apocalípticos redutores, para lembrar aqui Umberto Eco (1979). Diante disso, nós os pesquisadores das poéticas orais, temos um papel fundamental – recobrar a revisão da historiografia literária no intuito agregar as multiplicidades narrativas. Fixamos nosso olhar no texto poético oral. Isto é, o texto narrativo oral presente tanto na voz de narradores quanto na literatura impressa, uma vez que esta se utiliza da experiência do ato de narrar. O texto oral segue na contramão de uma historiografia literária excludente de muitos textos da cultura, dentre eles: o texto poético oral. Sobre a questão, Doralice Alcoforado (2007, p. 3) observa: “o texto poético oral permaneceu por muito tempo fora do enfoque teórico dos estudos literários, cuja tradição tem privilegiado a escrita”. 193 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Um tipo de abordagem ainda reducionista e diacrônica porque se prende apenas as investigações de cunho estruturalistas, formalistas, comparativistas e tantas outras “istas” arraigadas nos galhos das confortáveis teorias da literatura são, antes de tudo, corretas, mas um tanto limitadas uma vez que, por narrativas não se compreende apenas os registros impressos, mas quaisquer manifestações de linguagem, ou ainda, todos os textos da cultura no sentido lato dos gêneros textuais. O que de fato requer um olhar diferenciado e atento aos textos da oralidade, modalidade artesanal, constituinte de uma linguagem estética. Por conseguinte, Zumthor (2010, p. 24) chama a atenção para a subalternização do oral: “É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura. Oralidade não significa analfabetismo”. Na mesma proposição observa Frederico Fernandes (2002, p. 15-6). As questões de ordem estética não podem ser apreendidas unicamente pelo aspecto formal, como muitas vezes se faz na literatura escrita. A forma de narrar é, por excelência, artesanal. E isso não quer dizer que a palavra esteja totalmente despida de uma estética, ao contrário, aqui a apreensão do belo torna-se mais facilmente compreendida pela transmissão de saberes e de coisas simples do dia-a-dia [...] Pode-se dizer, então, que a literatura popular resulta de um trabalho com a linguagem, em que a criatividade, as maneiras de contar, o entretenimento e o plano ideológico, provenientes dela, trazem indícios de que se está lidando com uma “enfabulação” do cotidiano. Para Alcoforado (2007, p. 4) “o texto oral simultaneamente é um texto artístico e um texto etnográfico. Mantido virtualmente na memória do seu transmissor, que o ajusta ao universo cultural do seu grupo”. Artístico no agenciamento de imagens semânticas e de profundo significado próprio do universo mítico oral, textos que refletem uma complexa cosmogonia e teias simbólicas de imaginários descritos pela ótica devaneante de velhos guardiões de memórias. Etnográfico porque suscita imagens mentais de uma determinada cultura, acontecimento viável somente pelo ouvido sensível capaz de escutar o leve canto trazido pelo vento das origens, daquilo que a cultura muito se esforça para traduzir no indizível das palavras, daquilo que ela nos diz, representa e descreve simbolicamente. A literatura escrita continua em débito com a oralidade, ninguém ousaria negar a importância que a oralidade tem para a literatura, isto significa admitir que os textos orais já existiam antes mesmo de a escrita surgir. Portanto, duplas e ambivalentes uma vez uma se serve da outra. 194 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A chamada literatura de formação brasileira se apropriou do imaginário de povos indígenas em busca de um ideal de nação. Assim, a corrente idealizadora das páginas literárias não está totalmente despida da mítica, ao menos isso restou da barbárie colonizadora, e, graças ao imaginário indígena a literatura escrita brasileira deste período não é “menos pobre”. Os signos indígenas já existiam mesmo antes do discurso escrito chegar, o que os cronistas fizeram foi interpretá-lo e traduzi-lo, diga-se de passagem, conforme seus pontos de vista, e, por fim, adaptálo ao texto literário. Alfredo Bosi (1992) em Dialética da colonização observa como se deu essa “nova representação do sagrado”, primeiro na tentativa de “transpor para a fala do índio a mensagem católica”, segundo, na tentativa de “aculturar” e “traduzir” esse jogo duplo e ambivalente da colonização. Com o fim de converter o nativo Anchieta engendrou uma poesia e um teatro cujo correlato imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forças em perpétua luta: Tupã-Deus, com sua constelação familiar de anjos e santos, e Anhanga-Demônio, com a sua coorte de espíritos malévolos que se fazem presentes nas cerimônias tupis. Um dualismo ontológico preside a essa concepção totalizante da vida indígena: um de seus feitos mais poderosos, em termos de aculturação, é o fato de o missionário vincular o ethos da tribo a poderes exteriores e superiores à vontade do índio (BOSI, 1992, p. 67-8). Uma parcela do panteão foi, sem dúvida, usurpada e demonizada pelas instituições esmagadoras deste período. A literatura escrita não pode continuar negando a oralidade, pois dela serviu-se e continua servindo-se até hoje. Só temos acesso às culturas antigas por meio delas, (oralidade literatura) mas não teríamos o acesso sem que essas culturas tivessem existido e produzido significados de que a literatura se ocupou. Oralidade e literatura são pares indissociáveis, uma não existe sem a outra. Longe desse ranço, precisamos emergir no trabalho com todos os gêneros textuais, sobretudo, reavaliar a natureza dos objetos no contexto dos estudos literários. Pensar os textos: literários orais no entrelace com outras linguagens, na contribuição de outras teorias que o ajudam a problematizá-lo. Existe um estatuto bastante consolidado pela teoria da literatura, resta a utilização do texto poético oral, por exemplo, visto pela ótica das teorias críticas da literatura. Precisamos avançar. Aproximar as teorias, tanto as da literatura, quanto as da oralidade com o objetivo de estabelecer ressonâncias, identificar as incompletudes de uma em relação a outra e torná-las negociáveis. Lutar pelas reciprocidades. A teoria literária precisa se abrir aos novos objetos, nesse ponto, a pesquisa com as poéticas orais 195 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 tem seu mérito. Nasce do constante diálogo com outras áreas do conhecimento. O trabalho de um pesquisador de narrativas orais que, necessariamente, trabalha com rupturas e deslocamentos, espécie de arqueólogo dos índices e sinais da oralidade. A sua imersão no campo de pesquisa requer, além de um letramento teórico, uma habilidade prática de convívio. O pesquisador é esse arqueólogo em campo que luta com as virtualidades teóricas que na prática, ele a deseja com afinco. A pesquisa com as poéticas orais difere das pesquisas realizadas na formação de professores de língua e literatura. Trata-se de um trabalho que começa, como afirma Fernandes (2002, p. 14), com a “inversão de foco”, ou ainda, “inverte-se o foco de análise” em que além do trabalho de pesquisa bibliográfica, há ainda o trabalho de recolha dos materiais, fontes orais de pesquisa no locus – etapa que demanda tempo e disponibilidade. Não bastasse a habilidade de “dialogar com as mais variadas áreas do conhecimento”, a pesquisa de campo exige um “letramento” sensível, cartográfico e etnográfico para tratar com os envolvidos. Vale ressaltar que o sujeito da pesquisa é quem determina a sua participação no trabalho, pois ele torna-se o principal responsável pela criação e circulação dos textos poéticos orais. De posse das questões emergentes, elabora-se um roteiro de entrevista para conduzir o diálogo com os narradores. [...] é natural que as entrevistas pautem-se em um roteiro básico, que pode ser modificado diante dos narradores, pois são eles que constroem as teias para o diálogo avançar. Assim, quem conduz o trabalho deve conhecer a matéria e ser sensível ao tratamento da questão, para encontrar a questão necessária; reconduzir alguns temas; escolher a palavra compreensível naquele universo; conceber várias formas de expressar a pergunta; saber calar e ter disponibilidade de ouvir, de ouvir muito; não deixar a ansiedade saltar caminhos e chegar à pergunta final, sem ainda ter chegado ao fim da entrevista; deixar espaços abertos para uma próxima entrevista, ou um próximo pesquisador; para tantas outras aprendizagens e trocas (FARES, 2010, p. 24). O material recolhido a partir das entrevistas narrativas são de domínio do narrador e este conduz o diálogo, demarca e seleciona o seu repertório. O tempo de cada entrevista (uma a duas horas, no máximo) não deve desgastar o entrevistado, podendo repetir-se em turnos e momentos diferenciados. Não perder de vista os objetivos e a metodologia a serem seguidos, pois em se tratando da quantidade de dados gerados a partir de uma única entrevista, não há como prever seus encaminhamentos, por hora, o olhar atento de sempre retornar aos objetivos e suas reformulações (FARES, 2010, p. 35). 196 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Durante a coleta, “muitas dessas narrativas são, a nosso olhar, completamente inusitadas e diante do contador não temos como dizer o que queremos ouvir, pois não há como ter um reconhecimento prévio de seu repertório” (FERNANDES, 2002, p. 14). As experiências obtidas em campo não comportam nos anais de dissertações, teses, diários de campo, uma vez que muitas fogem de nosso controle, são teóricas, metodológicas, afetivas e tudo o mais extraído das experiências sensoriais e subjetivas raramente levadas ao conhecimento do público. Como então se manter atento, flexível, e neutro no processo? Digamos então que esta assertiva não comporta o trabalho de pesquisa de campo. Atento sim, flexível sempre. Porém neutro, impossível. Muitas vezes, a paixão pelo objeto nos faz perder na profusão de dúvidas. Desespero total diante do obscuro. Mistério que se aprofunda para acalmar-se na redenção dos achados. O objeto é parceiro da conquista, sentimento exasperado para além de nossas razões. O pesquisador tornase um adolescente deslumbrado pelo objeto de desejo. Com paixão surge o olhar anuviado e um perder-se por vontade. Tateante, o pesquisador caminha noite adentro em busca de respostas. No profundo de si gritam as hipóteses, surgem monstros assustadores e os demônios das teorias a espera do tempo derradeiro para enfim, acalmar-se nas águas das conclusões tardias. As teorias servem como luvas ajustáveis as mãos. Pensar o objeto à luz das teorias e pensar as teorias em prol do objeto é um exercício contínuo, acordados ou em sonho o objeto não desaparece. O trabalho com as poéticas tem sido uma investida que subverte a lógica dos estudos literários, trata-se antes de tudo, uma aventura contra o cânone. Um lance audaz na tentativa de reformular as estruturas dominantes da crítica literária. No entrelugar da cultura e dos estudos literários nos embrenhamos e tiramos do limbo as culturas das bordas3. O que nos faz pensar que temos o direito de excluir as formas narrativas orais dos estudos literários? De forma pontual Fares (2013) esclarece: 1) O fato de a matéria estar fora do cânone e por isso afastada dos círculos acadêmicos, seja como disciplina ou como conteúdo, e exemplifico com os cursos de graduação em Letras, que nunca a incluíram em seus currículos. A arquitetura desses conhecimentos é complexamente bem desenhada e perceber as linhas de sua construção é tão importante e O conceito “cultura das bordas” cunhado por Jerusa Pires Ferreira (2010, p. 11-2) ajuda-nos a pensar a questão da subalternidade a que foi destinado inúmeros textos e expressões da cultura. Bordas “implica a pertença múltipla e toda a dificuldade de estabelecer limites. Pode ser um contra cânone e mais, a liberdade de assumir heterodoxias e o equilíbrio precário daquilo que pode estar nas beiras do sistema [...], fora dos sistemas centrais”. Ou ainda, “Bordas é a definição em equilíbrio, como no fio da faca”. 3 197 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 difícil quanto desvendar os fios que tecem o canônico, as matérias instituídas, como a matemática, a história, a linguística, a literatura de verniz superior. 2) Muitos profissionais da área, normalmente, como disse anteriormente, desqualificam quaisquer literaturas ditas das bordas – as de expressões regionais, as direcionadas virtualmente ao público infantil e juvenil, as africanas, as de testemunho etc., as consideram “meioliterárias” ou não literatura. – e não promovem o interesse de novas pesquisas no corpo discente. 3) O mito, a lenda e o caso, como ainda se costuma titular o repertório oral, é matéria vinda das raízes populares, ou seja, produção das classes mais pobres, muito vezes, analfabetas ou semianalfabetas, e a “literatura” sempre se aproximou do saber erudito, escolarizado, daí que essas formas orais sempre foram muito mais objeto dos antropólogos e dos folcloristas do que dos profissionais das Letras. Zumthor, ao reconhecer a importância da memória oral criou um estatuto para a voz, interessado pelo medievo lançou-se no terreno das antigas tradições: “Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenharam, na história da humanidade, as tradições orais” (ZUMTHOR, 2010, p. 8). A voz, em seu caráter fundante e poético, encontra no autor a possibilidade compreendida como gênese do acontecimento – constelação metafórica que deságua numa sintaxe imagética, verborrágica em plena da pulsão de vida. A voz jaz no silêncio do corpo como o corpo em sua matriz. Mas, ao contrário do corpo, ela retorna a cada instante, abolindo-se como palavra e como som. Ao falar, ressoa em sua concha o eco deste deserto antes da ruptura, onde, em surdina, estão a vida e a paz, a morte e a loucura. O sopro da voz é criador (ZUMTHOR, 2010, p. 10). Fernandes (2007, p. 25) ao relacionar a poesia oral e estudos literários, adverte: “a poesia oral necessita de um direcionamento que a (re) coloque na berlinda da teoria literária, para que o valor poético eminente em seus textos possa ser investigado à luz de uma disciplina artísticocultural”. O autor critica ainda a marginalização da poesia oral pela crítica literária. Primeiro porque se desvinculava da escrita e, por conseguinte, foi tratada como uma literatura de pessoas que não sabiam ler nem escrever. Segundo, porque assumiu a definição de popular ou de primitiva em contraposição à de erudita. Terceiro, porque se tornou objeto de uma investigação folclórica, no qual eram observados costumes, sincretismo religioso, origem étnica, ao passo que o valor poético descaracteriza-se em meio ao caldo heterogêneo da cultura popular. Quarto, porque se tornou exótica. E quinto, porque a teoria literária começa a se desvincular de um modelo analítico regido pela batuta da letra tardiamente (FERNANDES, 2007, p. 24-5). Assim sendo, Zumthor (1993) em A letra e a voz já antevia a falta de interesse pelo estudo interpretativo da poesia oral. Ao dedicar-se aos estudos da poesia medieval, ele supõe que, de 198 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 alguma maneira, as poéticas orais já tem reconhecimento. Porém, mesmo a poesia medieval já constituída como objeto dos estudos literários, continua sendo relegada. O que reavemos, é sem dúvida, um olhar mais atento às singularidades da cultura no sentido de um interesse particular e sistematizador do problema do poético no texto oral. Da mesma forma que Zumthor sinalizou para a importância dos textos recolhidos do imaginário popular medieval. Admitimos a emergência de contrapor o discurso hegemônico e autoritário canônico de uma historiografia literária que tem se servido muito mais em demasia dos textos escritos. Propomos, nesse sentido, a criação de um estatuto epistemológico que dê conta do estudo das poéticas orais no sentido de compreendê-las como formas constitutivas de linguagem, tal qual já foi sistematizada as teorias da narrativa no âmbito dos textos literários. Campo interdisciplinar por excelência Cineasta e etnógrafo Jean Rouch (2003, p. 185) afirmou: “Tudo o que posso dizer hoje é que no campo o simples observador se modifica a si mesmo”. Ninguém sai de uma pesquisa da mesma forma que entrou. Deslocar-se do seu eixo para adentrar na imensidão do outro, a princípio, não é uma tarefa fácil. A universidade por muito tempo privilegiou a pesquisa bibliográfica ou documental do que a pesquisa de campo. A partir dessa constatação, acreditamos na abertura para as mais variadas experiências do senso comum, ou ainda que a universidade possa integrar-se a vida cotidiana. O mundo apresenta muitos saberes, os quais, muitas vezes, o universo acadêmico simplesmente ignora pela maça dominante cientificista vigente esmagadora. O pensamento técnico-científico contemporâneo se afasta cada vez mais da visão cartesiana segregadora dos saberes, daí sentimos a necessidade de religar saberes e práticas dentro do contexto acadêmico. Para cumprir o percurso, a sabedoria aconselha apurar o olhar. O outro ajudará no processo de construção da epopeia e a posição diante deste interlocutor é dialógica sempre, e, muitas e muitas vezes, de aprendiz. O pesquisador nunca alcançará todas as sutilezas das diferentes formas de expressão, o mundo é imensamente maior que os nossos olhos. Assim, é indispensável depor “as armas” instituídas e abrir-se para a construção de novos roteiros e novas formas de caminhar. E, ao encontrar o inusitado, às vezes, precisa-se ter disponibilidade para mudar rumos e tempos programados. Em síntese, compreender que o alvo para onde a mira aponta não é a única forma de ver, mas que o olhar periférico, desfocado, comunica significados relevantes, configura o homem 199 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 com menos disfarces, e com menos poses (como todo pesquisador, sabemos que a câmera e o gravador favorecem o gesto rígido, posado) (FARES, 2003, p.78). Quão difícil, é para nós, a tarefa de “tolerar” o mundo externo do Outro, compreendê-lo e aceitá-lo na sua singularidade, do contrário, seria mais prático, como acontece normalmente, relegá-lo a um canto sozinho sem o direito as contrapalvras. Agimos pelo fetiche atroz e impulsivo/dominante que nega qualquer direito do outro exercer a sua individualidade. Desde que existe o Eu e o Outro estamos imersos na alteridade, contudo não a tornamos real nas relações humanas. O Outro é sempre diferente de mim a medida que o Outro é “esse” Outro, nem por isso, ele é inferior a mim. Alguma coisa dispersa que aproxima. Sou eu também um Estrangeiro para o Outro e para mim mesmo até o momento em que “aquele Outro” não me atravessa se não o deixo atravessar. Em outras palavras, o “estranho está em mim, portanto, somos todos estrangeiros. Se sou estrangeiro, não existem estrangeiros” (KRISTEVA, 1994, p. 201-2). Ao fechar-me em minha couraça continuo sendo alheio em minha individualidade, acreditando fantasmaticamente ser um autêntico primordial. Do contrário, “aquele Outro” poderia me ignorar. Impedir meu fluxo em direção a ele. Contudo, insisto, dou meia volta, ajusto o passo e me lanço no abismo do desconhecido. Se o outro é para mim tão alheio como o julgo sem antes de conhecê-lo? Kristeva (1991, p. 09) nos responde: Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por conhecê-lo em nós, poupamos-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. Barbero nos mostra que a cultura de outrem não o torna melhor nem pior, apenas diferente pela sua particularidade. Mas com ela, e nela, na cultura do outro também podemos emergir, sem negar a si e ao outro pelo simples desejo de cambiar informações. Num pensamento consonante com as teorias do híbrido e da cultura, temos que aprender com o outro em meio à experiência de intercâmbio. Paulo Freire (1995, p. 110), em uma conhecida fala nos revela “abri-se a ‘alma’ da cultura e deixar-se ‘molhar-se’, ‘ensopar-se’ das águas culturais e históricas dos indivíduos envolvidos na experiência”. Sem dúvida, é esse um dos caminhos esperados no campo da 200 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 pesquisa. A entrada envolve não só questões de ordem teórica como também os embates das relações humanas travadas nesse processo. Não é fácil obter as respostas de imediato, mas é plenamente plausível que se comece a pensar sobre as relações que envolvem um trabalho ético de pesquisa de campo. Não se trata de um retorno de ordem financeira, e, sim, do legado para os envolvidos no processo, o que não pode ser simplesmente quebrado pela falta de compromisso e respeito aos saberes do outro. Relacionado a tudo isso, incluem-se, na permanência no campo de pesquisa, relações de alteridade em que o campo é uma porta de entrada para o processo de investigação, mas também é a saída para as respostas dos fenômenos e melhoria das questões sociais. Acima de tudo, são respostas para os problemas humanos e para o humano. A experiência de narrar Walter Benjamin (1993, p. 198) sobre a experiência de narrar afirma: “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores”. Tomemos como ponto de partida a arte de narrar como sendo o componente norteador para a seleção dos partícipes da pesquisa. Os mais experientes seriam o mais indicados, os mais habilidosos na arte da memória e na arte de narrar. Sempre há uma pessoa constantemente lembrada por alguém da comunidade – aquele que dispõe de grande memória local. Assim, afirma o autor: “por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais” (BENJAMIN, 1993, p. 197). Se o narrador está perdendo a capacidade de narrar, precisamos então dar voz a ele para que a memória do passado distante ecoe na atualidade das pessoas mais jovens, garantindo assim, a continuidade da tradição de um povo. Sobre este assunto, o mesmo Benjamin afirma que, “a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. Como selecionar os narradores? Cabe ao pesquisador fazer o levantamento prévio dos “detentores” dos saberes que se associam ao tema de sua pesquisa. De preferência, as pessoas com mais idade, preferivelmente, aqueles que nasceram e nunca saíram de suas terras (categoria – narrador sedentário de acordo com Benjamin), pois o tempo pode ter lhes somado grande 201 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 conhecimento sobre os acontecimentos locais. Podemos nos deparar com pessoas que não nasceram na comunidade (categoria – narrador viajante, conforme Benjamin), mas ao se estabelecerem acabaram somando grande experiência sobre os acontecimentos do lugar. Mediante escolha de narradores, previamente selecionados, esses normalmente se incubem de indicar outras pessoas. Deve-se ter cuidado é com o número de pessoas a serem entrevistadas, pois dependendo da quantidade selecionada, o material de entrevista se amontoa e consequentemente o tempo de transcrição redobra. Contudo, o trabalho não se esgota aí. Lidar com lembranças de pessoas mais velhas é também lidar com os “buracos do esquecimento” e para isso, precisamos adquirir a habilidade e a sensibilidade ao lidar com a memória do outro. Jerusa Pires Ferreira (2003, p. 94) ao estudar o Esquecimento enquanto pivô narrativo nos contos populares ressalta: “Poderíamos mesmo dizer que o esquecimento seria responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança”. Os lapsos de esquecimento durante o exercício da memória pode estar ligado às interdições, numa visão psicanalítica, “é o esquecimento que vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental”. Também Zumthor (1997, p. 15), nos alerta que “nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência”. Sendo o esquecimento o par indissociável do exercício “mnemotécnico”, devemos nos acostumar com as questões que envolvem a memória dos narradores. Certamente, identificadas nas expressões: “esqueci”, “se me lembro muito bem”, “estou meio esquecido”, “outro dia te conto melhor”, “nem me lembro mais”, “faz tanto tempo”. Do rizoma às pistas da cartografia Por muito tempo, o trabalho com as formas narrativas orais se utilizou do método da história oral4. Recentemente, a cartografia passou a ser frequentemente adotada na pesquisa com as poéticas orais. De que forma estamos pensando a cartografia enquanto método a ser utilizado na pesquisa em literatura oral? Os estudos de história oral, no entender de Jorge Aceves Lozano (2006, p. 15), “interessou-se pela ‘oralidade’ na medida em que ela permitiu obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar análises históricas com base na criação de fontes inéditas ou novas”. 4 202 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Primeiramente, porque a cartografia nos mostra um novo roteiro a ser seguido, a começar pelo exercício recognitivo do olhar do pesquisador cartógrafo em campo. Necessariamente, observador de eventos em curso. O pesquisador cartógrafo é um viajante em busca de outros territórios da voz. A segunda justificativa corresponde à aproximação da cartografia com a etnografia, olhar sensível em movimento que parte de um ângulo, e, uma vez que o pesquisador (de narrativas orais) se estabelece numa determinada comunidade, este, necessariamente, precisa desenvolver um exercício do olho etnográfico. Suely Rolnik (2011, p. 31) em Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo explica essa alegoria do olho humano e cartográfico utilizando-se da linguagem cinematográfica. Nesse movimento, (CLAQUETE: MOVIMENTO UM) “uma câmera o conduz” em direção a uma cena. Imagem inicial que se mostra na pesquisa, esses movimentos “só são apreensíveis por seu olho vibrátil, ou melhor, por todo aquele seu corpo que alcança o invisível” (ROLNIK, 2011, p. 31). Notemos que o texto oral suscita, sobremaneira, esse deslocamento. Movimento do olhar sensível pelo fato de comportar a substância do simbólico e a matéria do imaginário traduzida em narratividades pouco a pouco expressas na voz de narradores. Além do mais, reiteramos que textos orais, sobrepostos uns aos outros, formam mapas cognitivos em que o pesquisador cartógrafo terá que encontrar achar, capturar, ajuntar, coletar, manipular e interpretar de acordo com os mapas da cultura oral.5 A cartografia passou a integrar as diversas áreas da cultura e da comunicação. Desde os conceitos dicionarizados de Houaiss (2004) e Aurelio (1986), perpassando por diversas conceituações da cultura, podemos afirmar que, a cartografia mais do que uma mera noção de construção de mapas, constitui-se em registros das manifestações da cultura. Fares (2011, p. 834), baseada na leitura de Zumthor6, sinaliza. A carta é um signo que tem uma lógica própria, é instrumento de referência e mensagem, que remete mais a representação condicionada pelas tradições culturais, que a própria realidade espacial. Como texto, o mapa exige ao mesmo tempo uma leitura e uma interpretação e atua sobre a imaginação de quem o consulta. Como os relatos dos 5 Um estudo mais direcionado para a aplicação e utilização do método cartográfico em pesquisa com as poéticas orais ver o trabalho de dissertação de mestrado: “Cartografias poéticas em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades e Saberes em diálogo”, de Danieli dos Santos Pimentel (2012). Referência completa ao final do artigo. 6 ZUMTHOR, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’ espace au moyen age. Paris: Seuil, 1993. 203 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 viajantes, os mapas também serviram para ilustrar a revelação bíblica e render a homenagem da terra à vontade divina. Por isto, o espaço universal se reduzia ao ecumênico, à parte da terra onde se encontra o homem é entendido como espaço de Redenção. Então, eles variam de abrangência, de objetivo e nas formas de imitar a terra. As imagens, desprovidas de pretensões de imitar a realidade, trazem o desejo de colocar em destaque a interpretação de mundo do desenhista, do cartógrafo. O elemento histórico se forja ali, os ícones presentes nos mapas arquivam os acontecimentos da história e da memória social de um povo. Dessa forma, o mapa pode ser encarado como um texto a ser decifrado por quem se dispõe a estudá-lo. Estabelecendo, assim, um exercício em prol da imaginação de quem o consulta. Os mapas nunca são iguais, pois estes variam em sua maneira de representar a terra e o espaço. Possuem ainda formatos diferenciados, representam determinadas épocas e historicidades. Deleuze e Guattari não pensaram a cartografia metodologicamente, para ambos, o termo se apresentou, num primeiro momento, como um conceito. Mais tarde, após transposição metodológica firmou-se no campo das diversas áreas do conhecimento. Nesse âmbito, as elaborações dos novos mapas engendram outras formas de entender o caminho da filosofia das ciências, na condição de melhor pensar a natureza dos objetos e suas possibilidades interpretativas. Nasce então com a cartografia o princípio norteador das multiplicidades que toma para si a quebra de dualismos.7 Para Barbero (2002, p. 15) “isso implica não só a tarefa de ligar, mas também a mais arriscada e fecunda, de redesenhar os modelos, para que caibam nossas diferentes realidades”. Atraída por sua flexibilidade, a abordagem permite realçar a sensibilidade do cartógrafo frente à realidade em construção, assim defende Virgínia Kastrup (2009, p. 49): “o cartógrafo deve pautar-se numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia, embora já estivesse ali, como virtualidade”. A cartografia cunhada pela filosofia foi escrita em resposta às teorias psicanalistas ainda em voga. Deleuze e Guattari contrapõem as teorias dicotômicas, convencidos da ideia de multiplicidades, desenvolvem a noção de aproximação das territorialidades. Resulta dai a imagem 7 Para melhor compreender a formulação do pensamento dos filósofos em questão, é preciso compreender que em Mil Platôs instaura-se uma crítica tecida contra os moldes da teoria de Sigmund Freud de tendência estruturalista. Entendida a partir de um ponto de vista da “desterritorialização” em que a multiplicidade de linguagens confluem para um ponto de encontro, daí o próprio título da obra (Mil Platôs), mil possibilidades de acesso aos ramos do conhecimento. 204 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 do rizoma que Deleuze e Guattari tanto enfatizaram: a noção de “raiz pivotante”, própria da teoria psicanalítica, é contrária a ideia de múltiplo que também é o oposto da “lógica binária” adotada pela psicanálise. Saltamos da “raiz pivotante” para o “sistema-radícula”, a que está no centro do ponto de vista cartográfico. Os filósofos associam a imagem de multiplicidade ao método cup-ut de Burroughs, empregado pelo escritor na sobrepor textos sobre textos (palimpsestos) como prática de colagem. Dito de outra forma, a ciência cartesiana foi, aos poucos, aceitando a ideia de que o mundo é um amontoado de signos, e a ciência clássica não pode negar que o caos segue em direção ao “caosmo-radídula”. Essa lógica rizomórfica da qual Deleuze e Guattari criaram tem a ver com os princípios: conexão e de heterogeneidade; multiplicidade; ruptura a-significante. O rizoma não é fixo, ele “pode ser rompido, quebrado em lugar qualquer” [...] compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado” (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 18). Além dos elementos rizomórficos acima, inclui-se o princípio de cartografia ou de “decalcomania”. Tal assertiva nos ajuda a pensar a escolha do método cartográfico utilizado na pesquisa com as poéticas orais. De acordo com Deleuze e Guattari (1995, p. 21) o “princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda”. O conceito de cartografia formulado por Deleuze e Guattari (1995 p. 21) surge como o princípio do “rizoma” que está “inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real”. Desse modo, desloca-se do lugar comum para um “entrelugar” 8, posição movediça para adentrar na “imensidão” do Outro. O que promove o sentindo à prática cartográfica é o reconhecimento do “Outro” no processo, fruto da relação do eu outro: “Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 11). A cartografia atesta um princípio “rizomático” e “fractalizado”, imbricado nas relações da ciência com o saberes, sem jamais atribuir juízos de valor às dicotomias entre “erudito e popular”. Ao estreitar as bases do conhecimento, a cartografia exercita uma correspondência entre as artes, entre o homem e o cotidiano. No entender de Rolnik (2011, p. 23), O termo “entrelugar” é usado por Silviano Santiago em seu estudo “O entrelugar do discurso latino americano” (1978), com o objetivo de repensar a forma que é entendida a cultura e a identidade brasileira. 8 205 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 o cartógrafo se incumbe de “dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhes parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago. Jerusa Pires Ferreira (2007), durante entrevista concedida ao GT de Literatura Oral e Popular, de Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), discorre sobre o sentido da prática cartográfica: “cartografar significa recuperar elementos fundamentais para a explicação dos fenômenos da cultura, do social, do geográfico, do código, eu diria que esses mapas são cosmográficos também”. Um dos exemplos citados por Ferreira (sobre o exercício da cartografia) se dá através da recolha dos textos do imaginário amazônico, a partir do projeto IFNOPAP (Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia), coordenado pela professora Maria do Socorro Simões da Universidade Federal do Pará (UFPA): ao longo desses anos fomos pensando essas viagens e essas viagens foram sugerindo cartografias, foram sugerindo apreensões, foram sugerindo métodos e até um método famoso, nessa viagem nossa que se tornou famoso que foi aquele das escapadas, escapadas significava ir descobrir novas coisas quando o navio parava e dentre essas novas coisas, pessoas, objetos, arquiteturas, indícios, signos, se fosse no Xingu, fosse no rio amazonas, no rio Guamá, por onde nós andamos. A obra Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura expande o conceito de cartografia. A cartografia pensada por Barbero (2002, p. 12) propõe a seguinte interrogação: “quem disse que a cartografia só pode representar fronteiras e não construir imagens das relações, dos entrelaçamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos?” Todavia, o sentido da prática cartográfica é acompanhar eventos em curso, ao mesmo tempo atar e reatar os fios que compõem as etapas da pesquisa, mais que isso, é fazer o caminho inverso do conhecimento, romper fronteiras do estabelecido, ir ao encontro de novas formas de enxergar o mundo, isto é, perceber que acima de tudo, as fronteiras da ciência se “solapam”, se “despregam” dos velhos continentes que teimam em ver o todo sem a parte e a parte sem o todo. 206 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Fernandes (2011) ao tratar da abordagem cartográfica critica a visão diacrônica dos estudos literários e o ensino da disciplina literatura. Conforme o autor, a poesia oral tem ficado há muito tempo relegada pela teoria da literatura responsável, muitas vezes, pela subalternização e folclorização da produção poética oral: a historiografia literária brasileira, com sua perspectiva diacrônica, ainda não conseguiu conceber uma narrativa que interpretasse a poesia oral como um texto poético, para além do folclórico, ou como uma paraliteratura que, apenas, serve de base para a grande obra literária (FERNANDES, 2011, p. 150).9 A noção de paraliteratura tem a ver com o fato de as produções orais terem sido relegadas, deixadas à margem do sistema literário, e, sobretudo, pensadas na esteira de uma forma de poesia inferior como ainda fazem os defensores do grande pensamento canônico formador de opiniões excludentes de outras manifestações de linguagem. Entende-se que através da abordagem cartográfica, encarada enquanto metodologia para o estudo das poéticas orais, o mapa se torna mais aberto para as particularidades, vistas com outra lógica do fazer científico. Ao lidarmos com a memória estamos lidando com o plano subjetivo do narrador – pausas, silêncios, lacunas, entonações, expressão fácil e performance corporal são elementos fundamentais a serem observados. Esses elementos semânticos não podem passar despercebidos diante do olhar do transcritor. Na passagem do oral para o escrito muita coisa se perde (dada a impossibilidade da tradução) uma vez que o transcritor lida com a voz e o corpo em movimento. Ao trabalhar com texto poético o transcritor deve entrar nesse mundo da passagem para o poético, permitir-se entrar pelas da imaginação – mundo habitado por poetas, sábios, duendes, bruxos, encantados, cantadores e narradores em geral – quase sempre, imersos em outra [i]realidade tão diferente, muitas vezes, do mundo palpável do pesquisador. Como já foi dito, o transcritor deve atentar para a questão da performance da voz, pois diante do material narrado ocorre o “momento em que uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 1993, p. 295). Daí a necessidade do olhar sensível do ouvinte para detectar os turnos de linguagem poética em meio ao material coletado. A recepção do texto poético é o efeito estético compreendido e 9 Bella Jozef (2006) discorre sobre esse conceito em A máscara e o enigma, assim expõe: “no âmbito literário, desenvolveu-se a chamada ‘paraliteratura’, com vasto campo de ação, e o fazer artístico viu-se num impasse”. 207 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 observado em face do narrador, pois se trata de uma poética instaurada na voz em presença, assim descreve Zumthor (2000, p. 59): “A performance é então o momento de recepção – momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido”. Seguramente, a performance envolve a relação “eu-outro”, os movimentos do corpo vibram na potência do outro num processo dialógico ativo. Veremos novamente essa definição proposta pelo mesmo Zumthor (2010, p. 217) na obra Introdução à poesia oral: “A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro, seja um gesto mudo, um olhar [...] Os movimentos do corpo são assim integrados a uma poética”. A etapa da transcrição não pode ser negligenciada, conclui-se neste momento, um dos momentos fundamentais da pesquisa. A transcrição gera os dados e as categorias de análise. Entender o material gravado em áudio previamente como a matéria que dá vida ao texto oral depende da forma como este é agenciado e atualizado pelo transcritor-ouvinte, depende inclusive de sua visão particular de mundo, pois este imprime também as suas marcas pessoais na forma de transcrever e compreender os múltiplos significados narrativos. A transcrição dos textos orais não são os mesmos modelos levados em conta pela transcrição fonética realizada pela linguística. Alcoforado (2007, p. 4) afirma que “o texto poético oral não se restringe a um contexto enunciativo exclusivamente verbal. Aspectos translinguísticos, específicos do discurso oral, associam-se à voz para lhe dar mais concretude”. A autora chama a atenção para o acontecimento performático do ato narrativo, como “os gestos, a dicção entonacional, as pausas, a mímica facial, e os movimentos do corpo, até mesmo o estímulo da plateia, que não reduzem a oralidade à ação exclusiva da voz”. Assim, se forjam os elementos constituintes da performance a ser decodificado pela tarefa do transcritor. A dificuldade de transferir-se para a escrita a diversidade de signos sonoros e gestuais, que se constelam no momento da performance, leva a simplificações de entendimento e a preconceitos de julgamento, quanto ao valor poético do texto oral, quase sempre confundido com a versão transcrita do texto gravado. Por isso o transcritor precisa ter sensibilidade para perceber não apenas as variações linguísticas lexicais, morfosintáticas e fonéticas, mas também outros aspectos presentes no texto gravado tais como os silêncios, as pausas, mas sobretudo os procedimentos que exploram elementos prosódicos transformando em imagens verbais as imagens auditivas, expressas por meio de sequências fônicas imitativas – as onomatopeias (ALCOFORADO, 2007, p. 5). 208 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Atrelado à dificuldade traduzir para o escrito os elementos da prosódia e a habilidade fidedigna de não deixar esvair-se o componente poético que dá vida ao texto oral. Sendo que cada narrador imprime sua marca individual e particular dos elementos gestuais, corporais e expressivos, de modo geral, cada pessoa imprime seu ato performático espontâneo. Como não os componentes do poético oral durante a passagem para o texto escrito? Esses fatos sonoros, aparentemente desprovidos de significado, agrupam-se, aliteram-se em correspondências imitativas bastante expressivas, ganhando força de palavra, reforçando, por vezes como significante, significados suplementares ao signo poético. As onomatopeias são quase sempre criações espontâneas motivadas por associações sonoras imitativas buscando certa aproximação com o significado (ALCOFORADO, 2007, p. 5). O sentido da busca por uma transcrição eficiente ancora-se no caráter ético e no compromisso com o objeto de pesquisa, diante do compromisso social com a palavra do narrador e, sobretudo, com a permanência e transmissão da memória diante do material narrado, o registro escrito se encarregaria desse guardado ao alcance das gerações posteriores. Desdobramento do exercício cognitivo, capacidade decifrável de enigmas, momento lúdico. A análise e a interpretação só se concretizam, de fato, quando ocorre um letramento específico acerca do objeto. Muitas vezes, todas as etapas ocorrem dentro do esperado, no entanto, cabe ao pesquisador desenvolver sua habilidade interpretativa frente aos indícios, sinais e achados. Momento solitário. Trabalho de arqueólogo. Ninguém mostrará o verdadeiro caminho, de certo, ele não existe. A errância é a bagagem do viajante. Nestes termos, o pesquisador envereda por suas próprias trilhas, caminhos e escolhas. Não há uma receita pronta ou fórmula exata, cada objeto demanda especificidade, hipóteses e questionamentos. O objeto é único em sua inteireza e chama para si teorias, método e abordagem. O pesquisador deve ouvir suas vozes internas. O que mais lhe chama atenção para determinado ângulo? Muitos livros de metodologia científica já foram escritos, pensando talvez, na especificidade dos métodos. Podem e devem ser consultados, aliás, nos ajudam a tatear caminhos e respostas. A leitura de manuais científicos até sinalizam caminhos e sugerem escolhas, mas nem sempre aplicáveis em tudo. As angústias e a falta de respostas emergem naturalmente. De alguma forma a inquietude provoca a perturbação do estado das coisas. Mostra 209 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que alguma coisa aconteceu. Não existe pesquisa sem inquietação, se não há inquietação não há pesquisa, pois na certa, não temos mais questionamentos e tudo está muito bem resolvido dentro de nós. Na pesquisa ocorre o contrário. Referências ALCOFORADO, Doralice. Oralidade e Literatura. In: Oralidade e Literatura: outras veredas da voz (Org.). FERNANDES, Frederico. Londrina: EDUEL, 2007. BARBERO, Jesús Martín. Ofício de cartógrafo travessias latino americanas da comunicação na cultura. Trad. Fidelina González. São Paulo. Fondo de cultura: Econômica. 2002. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Lescov. In: Obras escolhidas. 6. ed. Vol I. São Paulo: Brasiliense. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 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Trata-se de um estudo desenvolvido interdisciplinarmente no espaço da Literatura Comparada onde são estabelecidas convergências conceituais da teoria e crítica literárias, da nova história e dos estudos da cultura. Parte-se de uma pesquisa bibliográfica, relacionando questões sobre performance (ZUMTHOR, 2000; FERNANDES, 2002; ALCOFORADO, 2002), memória (NORA, 2004; HALBWACHS, 2006; FERREIRA, 2004; POLLACK, 1989) e práticas simbólicas (CERTEAU, 1998; IPHAN, 2000.). Por meio da pesquisa de campo, foram feitas a recolha dos relatos e depoimentos através do método da história oral (PORTELLI, 1989). O tratamento desses relatos e depoimentos foi fundamentado na concepção de testemunho (MOREIRAS, 2001; LEMAIRE, 2002) enquanto formas primárias de manifestação cultural. A pesquisa permitiu verificar que as narrativas orais podem ser entendidas como uma síntese de processos sociais e culturais, de um passado compartilhado pela comunidade; podem ser consideradas como representação das práticas cotidianas, das tradições e vivências coletivas. Assim, essas narrativas são expressões literárias consideradas lugares de memória (NORA, 2004) por suas referências simbólicas e culturais, e por revelarem momentos de convivências, integração social e sociabilidade. Palavras-chave: Performance. Memória. Práticas cotidianas. Literatura. Rio do Engenho. RÉSUMÉ: Cette étude a pour but d’analyser les récits oraux du Rio do Engenho, produits au quotidien de cette communauté dans ses pratiques symboliques. Il s’agit d’une étude interdisciplinaire dans le cadre de la Littérature Comparée où les convergences conceptuelles de la théorie et de la critique littéraire, de la nouvelle histoire et des études culturelles. Le point de départ se reporte aux questions sur la performance (ZUMTHOR, 2000; FERNANDES, 2002 ; ALCOFORADO, 2002), la mémoire (NORA, 2004; HALBWACHS, 2006 ; FERREIRA, 2004 ; POLLACK, 1989) et les pratiques symboliques (CERTEAU, 1998 ; IPHAN, 2000). La recherche sur le terrain a donné un reccueil de récits et de témoignages à travers la méthode de l’histoire orale (PORTELLI, 1989). Le traitement de ce matériel a été basé sur la conception de témoignage (MOREIRAS, 2001 ; LEMAIRE, 2002) en tant que forme primaire de manifestation culturelle. La recherche a permis de constater que les récits oraux peuvent être compris comme une synthèse des processus sociaux et culturels, d’un passé partagé par la communauté. Ces récits peuvent être considérés comme une représentation des pratiques quotidiennes, des traditions et d’expériences collectives. En outre, ces récits sont des expressions littéraires considérées comme des lieux de mémoire (NORA, 2004), par ses références symboliques et culturelles et par le fait de réveler des moments de convivialités, d’intégration sociale et de sociabilité Mots-clés : Mémoire. Performance. Pratiques quotidiennes. Rio do Engenho Contar é muito dificultoso, não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavando, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. De cada vivimento 1 Mestranda em Letras, na Universidade Estadual de Santa Cruz. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Grupo Identidade Cultural e Expressões Regionais - ICER/DLA/ UESC. E-mail: gisa_santana@yahoo.com.br 2 Doutora em Estudos Portugueses e pós-doutora em Literatura Comparada e Turismo Cultural, pela Universidade Nova de Lisboa. Pesquisadora do Grupo Identidade Cultural e Expressões Regionais - ICER/DLA/ UESC. 213 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Guimarães Rosa Como bem diz Guimarães Rosa, contar histórias não é tarefa fácil. É ofício para vozes poéticas que transformam o tempo vivido em tempo pensado e narrado, através dos fios da memória. Tal qual um artesão, essas vozes, na trama do tear, tecem paisagens cotidianas de suas lutas, nos trânsitos da casa e da rua e constroem imagens, expõem odores, sabores e sonhos, entrelaçando os fios do tempo. Sua arte de narrar lhe vem das experiências cotidianas da vida; sua lição, elas extraem da própria dor; sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo. A habilidade de tecer histórias, ao longo do tempo, se fez necessária para a sobrevivência dos grupos sociais; tal prática tornou comum a compreensão de que dela resultam as tramas simbólicas, orientadoras da vida em coletividade. É por meio do exercício dessa capacidade, que os humanos deixam suas trilhas para as gerações futuras. Essas vozes poéticas, protagonistas anônimas da história, representam a memória dos tempos, como observou Benjamim (1989, p 57), “a experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores”. Trata-se de vozes que rompem silêncios e desvelam aspectos e elementos de lugares obscurecidos pela memória oficial. Guardadas em trechos diversos, as narrativas cotidianas, apoiadas na memória, são tecidas diariamente para o grande continuum da transmissão oral. No Rio do Engenho – distrito de Ilhéus desde o tempo colonial, quando o atual município foi a Capitania São Jorge dos Ilhéus – as narrativas fazem parte de uma herança cultural de tradições e costumes que estão guardadas na memória de alguns dos habitantes da região. Assim, por meio das festas, ofícios, rezas, danças e artesanatos os moradores procuram em seu percurso histórico articular saberes, corroborando a manutenção da vida social e cultural do distrito. O nosso interesse por essas narrativas, justifica-se devido a não haver, até o momento, nenhuma recolha sistematizada de tal expressão literária. Nesse sentido, a recolha e análise dessas narrativas poderão contribuir para a preservação da expressão literária e da memória dos contadores de história da localidade. Para irmos ao encontro das vozes poéticas e de suas narrativas na referida comunidade, foi necessária a adoção de procedimentos metodológicos para identificação, coleta e registros das 214 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 narrativas orais do Rio do Engenho. Com o objetivo de melhor entender o modo de viver e morar da comunidade, a via escolhida, por ser aquela que melhor nos conduziu às casas de farinha, aos ramais, ao Rio Santana e ao encontro dos heróis anônimos, segue os princípios da pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo, essa última feita através de entrevistas conversacionais (ANDRADE, 1999). A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida interdisciplinarmente no espaço da Literatura Comparada em sua feição contemporânea: convergências conceituais da teoria e crítica literárias, da Nova História e dos Estudos da Cultura. Com base na visão teórica referida, partimos para a pesquisa de campo. O itinerário desenvolvido, a partir desse andamento, constou de uma sucessão de passos, os quais nem todos foram previamente definidos e planejados, pois na verdade, muito se construiu à medida que a pesquisa ia se realizando, no entendimento de que a dinâmica das entrevistas sinalizaria demandas. As entrevistas foram feitas, através do método da história oral (PORTELLI, 1989) nos momentos descontraídos, procurando-se interferir o mínimo possível na exposição das narrativas, a fim de que os narradores pudessem expressar livremente a história do lugar, as suas ideias, os seus costumes a sua memória cultural, ou seja, as histórias de vida e as narrativas da vida (TODOROV, 2006). Procuramos registrar o discurso dos narradores, a fim de preservar o máximo possível as marcas da oralidade presentes no cotidiano, proporcionando ao leitor o contato com essa literatura que representa a memória cultural daquela comunidade. Mantivemos o colorido do palavreado pessoal de cada narrador, pois “trata-se de um primeiro e decisivo esforço de traduzir a linguagem escrita daquilo que foi gravado” (ALBERTI, 2010, p.174). Depois da conferência do texto transcrito, passamos para a copidescagem, seguindo as orientações de Alberti (2010, p.214) O copidesque não modifica a entrevista: não interfere na ordem das palavras, mantém perguntas e respostas tais quais foram proferidas, não substitui palavras por sinônimos, enfim respeita a correspondência entre o que foi dito e o que está escrito. Tendo em vista as normas padrões da escrita, fizemos algumas adaptações na transcrição das narrativas para este trabalho. Entretanto, respeitando os diversos falares dos narradores, conservamos a linguagem simples e poética, com alguns desvios, como “tô”, “falano”, 215 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 “escutarum”, “virum”, e outras marcas da oralidade. Em relação à transcrição dos recursos performáticos, com as mudanças tonais da voz, o uso de repetição, o silêncio repentino – elementos inerentes à oralidade, esses e outros elementos, pelas próprias peculiaridades dos discursos, procuramos expressar através da pontuação. Com base no exposto, o estudo sobre as narrativas orais do Rio do Engenho foi estruturado em duas seções: a primeira discorre sobre as narrativas do cotidiano do Rio do Engenho; a segunda discute sobre a importância dos recursos performáticos para o sentido e significado ao que se narra. Assim, através da pesquisa, concluímos que as narrativas orais do Rio do Engenho não podem ser descaracterizadas ou esquecidas, uma vez que revelam o modus vivendi dos moradores, mantendo formas de relacionamento entre homens e o lugar em que eles habitam. Dessa maneira, buscamos uma forma de contribuição para dar visibilidade às vozes anônimas e contribuir para transformá-los em sujeitos sociais a serem reconhecidos pela sociedade como parte integrante do patrimônio cultural de Ilhéus. 1. As narrativas do cotidiano O conteúdo das narrativas orais são fragmentos do cotidiano, visíveis entre fatos lembrados e fatos vividos pelos moradores e, como registros de experiências vivenciadas, são bens simbólicos - patrimônio imaterial (IPHAN, 2000; LONDRES, 2004). Desse modo, a singularidade das narrativas não se limita apenas ao seu valor estético; mas, também, em sua força representativa, ao valor sociocultural que as revestem, pois esses evidenciam um ethos cultural característico do lugar. As memórias coletivas se materializam através das práticas simbólicas (CERTEAU,1998) que, ao serem exteriorizados, agem como um meio de socialização nas atividades coletivas desenvolvidas pelos grupos sociais. Esse patrimônio imaterial é construído a partir da memória coletiva, portanto inclui-se na categoria lugar de memória (NORA,1993). Nessas narrativas, o cotidiano se transfigura em espaços imateriais - lugar social, no dizer de Ricoeur (2007) - como paisagens visuais, sonoras e olfativas - uma cartografia de sons, ritmos e cores ,que povoam o imaginário constante do Rio do Engenho. Dessa maneira, é no 216 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 invisível cotidiano do Rio do Engenho, que conhecemos as crendices, os saberes, os fazeres, as técnicas e o vocabulário dos moradores, evidenciando por meio dos modos de fazer e morar, a base da organização social da comunidade. Tal organização se enquadra no modelo de ação tradicional, em que o cotidiano é marcado por ações de sociabilidade, proximidade e solidariedade – laços que são estreitados todos os dias entre as pessoas e o espaço habitado. Os elementos materiais como as barcaças, as casas de farinha, a igreja, o rio, as matas, o riacho e o mangue; e também, os imateriais - as rezas, as técnicas, celebrações – compõem o patrimônio simbólico, e fazem do distrito um lugar social (RICOEUR, 2007). Assim, os saberes e fazeres apresentam a maneira de viver, determinando as representações sociais que, por sua vez, definem a identidade coletiva dos habitantes do distrito rural. As experiências individuais e coletivas dessas vozes poéticas caracterizam noções de pertencimento coletivo, uma vez que integram o acervo do imaginário cultural dos povos, que atravessam os tempos. Para Pollak é a memória herdada – fenômeno construído no âmbito individual e coletivo. A memória herdada apresenta-se na interação entre memória e sentimento de identidade entendido como “ imagem de si para si e para os outros” (1992, p.204) que desenvolve a continuidade e a coerência da pessoa e/ou do grupo. No livro Armadilhas da Memória (2004), a pesquisadora Jerusa Pires Ferreira traz a memória como temática central para discutir as teias de relações que envolvem os processos culturais de um lugar social. Para a pesquisadora, a memória, em certos espaços, se configura como alicerce que constrói e desconstrói narrativas, dando vez a outras possibilidades de renovações diversas. Nas entrevistas realizadas, as narrativas sobre as práticas simbólicas eram sempre interpostas pela referência aos espaços de: casa de farinha, rio Santana, matas, roças, barcaças. Havia uma relação entre os fatos narrados e os espaços em que esses fatos foram vividos. De tal modo, esses espaços tornam-se um ponto de evocação do passado. Numa conversa calorosa com seu Antônio, através da memória herdada, ele explica as etapas da colheita, secagem3 e beneficiamento do cacau Eu sou trabalhadô rural, num sabe? Meu pai e meu avô que me ensinô a cultivá o cacau 3 A região é bastante conhecida pela tradição cacaueira, difundida por sua contribuição à economia nacional e também pelo imaginário retratado na literatura produzida por Jorge Amado, Adonias Filho, Sosígenes Costa e outros. Conferir a antologia “Esteja a gosto! Viajando pela Costa do Cacau em Literatura e Fotografia”, organizada por Maria de Lourdes Netto Simões, 2007. 217 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O nosso cacau aqui é cultivado no sistema cabruca4 Tira cum podão. Faiz um mutuê... [pergunto sobre o que é um mutuê, e ele responde] uma ruma de cacau, uma bandeira, depois um grupo quebra, outro tira o cacau, coloca na prensa pra tirá o mel...é cum o mel faiz licô, geléa, suco...[ depois de uma pausa, começa a falar sobre a secagem do cacau] bota no cocho pra fermentá, depois bota os caroço na barcaça, pra tomá sol e vai mexendo cum rodo, pra num ficá desidratada. Olhe [alerta seu Antônio] tem que passá o rodo umas 6 veiz por dia, pra num tê mofo.. Num pode tomar nem chuva nem sereno. Se chuver, fecha a barcaça. Se moiá o cacau num presta. Num pode tê mofo, nem sujera. A gente pede a Deus e a Viugem Maria pra dá um tempo bom. Se tivé um tempo bom seca cum 4 a 5 dias. A gente aproveita tudo. A casca você pinica e bota no sol pra secá, aí fica a palha do cacau. Ou vende ou bota na planta. O cacau de água [ cacau verde] faz salada. A polpa faz suco e geléa. A sibira bota par secá, bota no fogo cum açúcar e faz doce. Faz chocolate e doce cum as amêndoas. [...] Valte faiz muitos doces com cacau, ele aproveita tudo, até a folha. Aqui tem uma fábrica de chocolate de D. Diva. O chocolate é feito cum o cacau daqui. (Antônio dos Santos, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013) Nessa narrativa, seu Antônio conta sobre os seus conhecimentos acerca de um importante elemento da cultura regional: o cacau. Todo processo de beneficiamento do cacau ele aprendeu com seu pai e avô, que eram trabalhadores rurais. Esse modo de fazer difundiu informações sobre um conhecimento tradicional na região de Ilhéus e Itabuna. Assim, existe uma gama de saberes e fazeres ligados à produção de cacau que somente há algumas décadas vem ganhando reconhecimento no âmbito do delineamento de uma imagem de identidade cultural no território. Dentre eles, podemos listar o licor de cacau, o mel de cacau, o e a geléia da polpa do cacau, com destaque para os tabletes de cacau e amêndoas torradas com açúcar orgânico – doces artesanais, desenvolvidos por alguns moradores do Rio do Engenho. No distrito, vivem pessoas cujo modo de vida é orientado pelos conhecimentos tradicionais; uma localidade em que os mais velhos são responsáveis por transmitir, pela tradição oral, seus saberes e fazeres. Nesse entendimento, existe uma memória compartilhada por diversos grupos de moradores, e é o conteúdo dessas memórias que compõe os significados do cotidiano. Portanto, o cotidiano constitui-se como lugar no qual as pessoas “produzem práticas culturais próprias, com isso, transformam o conteúdo cultural” (CERTEAU,1998, p.45) Termo regional originário do verbo “brocar” que significa corta arbusto para plantar cacau, caracterizando o cultivo de cacau em conjunto com a Mata Atlântica. O sistema cabroca fundamenta-se no modelo de desenvolvimento sustentável. 4 218 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O processo histórico do Rio do Engenho e do seu entorno resultou da hibridação das etnias indígena (Tupiniquim e Aimoré), africana5e portuguesa. A partir dessas etnias se constituíram as práticas simbólicas,reunindo num mesmo espaço sujeitos, culturas e costumes diferentes, instituindo modos de vida particulares. Desse processo histórico que os sujeitos constituíram no distrito, as narrativas cotidianas emergem como um lugar onde as práticas simbólicas podem ser observadas de forma mais aguda; lugar de história, experiências coletivas e de construção do passado, portanto, lugar de memória. No contexto do distrito rural, ainda é comum a figura do curandeiro, como o único capaz de curar determinados males para os quais a ciência não oferece intervenção. Cascudo (2000, p. 270) define-o como: “sabedor de segredos para dirigir e tornar alguém invulnerável usando apenas a força de formas oracionais”. Na narrativa para vento caído e quebrante, há símbolo dos elementos do catolicismo (pai nosso, ladainha, ave-maria e salve maria), do candomblé (as folhas usadas durante a benzeção são consagradas a Ossaim – deus da folha e das ervas), e dos índios caboclos6 – conhecedores da medicina local. Portanto, essa narrativa apresenta traços de uma hibridização cultural. Claramente, aspectos da cultura portuguesa aparecem fundidos com a cultura africana e indígena. [ com o ramo verde na mão, D. Tereza diz:] Reza pra vento caído e quebrante Deus quando no mundo andô todo mal ele curô, espiela e arca levantô. Eu levanto a espiela de [diz o nome da pessoa] pelo vosso divino amor. [ Reza em voz baixa outra oração que não pode ser transcrita, e depois diz;} Reza dois Padre-nosso e oferece a deus da mata e os cabocos. (Tereza, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013) O curandeiro adquire forças porque sua cura é uma influência dos caboclos da floresta. É ele que expulsa o espírito e as doenças; liberta a alma e torna são o corpo das feridas, dos quebrantos, dos ventos caídos, do mal olhado, frieiras e peito aberto. Assim, o curandeiro é coautor da intervenção. 5 Ver livro MARCIS, Therezinha. Viagem ao Engenho de Santana. Ilhéus: Editus, 2000. “Os caboclos são os espíritos donos da terra e representam os índios que aqui viviam antes da chegada dos brancos e negros” (SILVA, 1994,p.57) 6 219 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Esse ofício de Tereza é dom concedido por Deus: Foi num sonho que eu recebi o comunicado, sabia? Eu dormia e E a voz me chamava... Falarum pra mim no sonho... Mas eu falei... Mas como eu posso ajudar? Aí a voz falô a oração no sonho [faz uma pausa de uns cinco minutos, como se quisesse lembrar de outros detalhes, e diz:] Eu aprendi assim. Eu tenho essa obrigação até o fim da vida Eu num sei explicar, porque não é ensinado por pessoa, vem do dom da pessoa [...] ninguém sabe essa oração. Meu pai nun sabia. Já ajudei muita gente aqui, no repartimento, na tranquilidade, esse povo todo vem aqui pra mim rezá.[...] [ depois de um tempo em silêncio, D. Tereza diz:] Inda tenho muita história prá conta. (Tereza, entrevista concedia em 08 de dezembro de 2013) Depois da reza, D. Tereza afirma que não basta ela ter fé no ato reza, mas que tal sentimento deve estar presente naquele que recebe a benzeção. A afirmação da curandeira ratifica o caráter mágico do ato simbólico, expresso por Lévi-Strauss (1975), que diz que a eficácia da magia implica na crença da magia. Os curandeiros falam sobre a melhora na qualidade da saúde daqueles que atendem; os ajudados narram acontecimentos que ratificam a competência do atendente e, inclusive na comunidade, as pessoas se reconhecem, indicando os cuidados possíveis e atestando a idoneidade de quem os pratica. A narrativa de D. Tereza delineia um retrato histórico-cultural de um povo e vincula o passado ao presente. O passado ecoa na evocação das lembranças do outro e o presente se revela na natureza criadora da curandeira, que narra os acontecimentos, repassando um momento vivenciado por ela. Ao repassar o seu passado, Tereza comprova que a memória oral é lugar de construção da identidade cultural. Na narrativa da curandeira, a performance foi um instrumento essencial para contar sobre seu dom; as mudanças tonais da voz, o olhar dirigido ao ouvinte, as expressões faciais pontuando cada momento significante e os movimentos das mãos, conferiam autoridade ao seu discurso. 2 A arte de narrar A arte de narrar histórias, causos e acontecimentos requer não apenas o saber narrar, mas o como narrar. Os gestos, as expressões, os olhares furtivos, as mudanças rítmicas e tonais da voz 220 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 são alguns dos muitos recursos de que se vale o depositário da memória para dar sentido e significado ao que se narra. Dessa maneira, pode-se dizer que o relato oral é constituído no momento da performance “momento em que a mensagem poética é transmitida e percebida” (ZUMTHOR,1993, p 295). São histórias em que os narradores são as personagens principais, testemunhas ou ouvintes dos episódios narrados, conforme podemos observar no relato da Senhora Luzia, moradora do Rio do Engenho há 40 anos. Meu pai era pescador. Criou nois tudo (oito filhos) pescando. Era uma época de muita fartura [ no semblante uma expressão de felicidade]. O rio era limpo dava muito peixe... [ D. Luzia aponta para o rio]. a gente bebia agua, lavava ropa... era muito bom! Meu pai dizia que aqueles que respeitavam as águas pescavam muito peixe, mas o que não respeitava ela, [a Mãe D’Agua], enganava. A Mãe D’agua aparecia muito aqui, era bonitona, cabelos aqui ó [mão a cintura para indicar o tamanho dos cabelos da Mãe D’Agua] ela aparecia sentada na pedra, cantava uma cantiga bunita. Muitos pescador já se afogarum porque foram atrás desse canto...é verdade! Hoje ela num aparece mais não...[balança a cabeça e faz alguns minutos de silêncio] num sei porquê[...] Ele contava que aparecia muitas almas nesse Rio do Engenho. E num era mentira, não. Aqui teve muito sangue derramado dos escravo... de noite, quando estava no rio pescano, ele e finado Zezinho (que Deus o tenha) cansava de ver uma mulher de branco sentada chorando; ouvia assobios, gemidos, via muita visagem... os escravos sofrerum muito aqui. Aí ele rezava o creiu em Deus padi, é uma oração muito forti! Crei em Deus padi todo poderoso, craidor...e assim ia. E rezava ave-maria para alma dos escravos [nesse momento, D. Luzia faz o sinal da cruz, e levanta o olhar para o céu, pedindo proteção]. Ah! A gente todo sábado às 5 da manhã rezava o santo ofício. – também pela almas. Por isso meu pai não tinha medo. A gente é que tinha. Até hoje rezo três ave-maria, toda segunda feira, que é dia das alma. (Luzia Santos, entrevista concedida em 13 de dezembro) À medida que ia contando os fatos, os sentimentos de D. Luzia oscilavam – alegria, tristeza, saudade. O semblante da narradora, ao contar suas histórias, evoca uma saudade. Os gestos feitos por D. Luzia aparecem como um texto paralelo; para o que a voz não dá conta de narrar “[...] gesto e voz; regulados um pelo outro, asseguram uma harmonia que nos transcende [...] o elo que liga a voz e o gesto é de ordem funcional, resultando de uma finalidade em comum” (ZUMTHOR, 1993, p.48). A palavra então é corporificada. Os braços acompanham o 221 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 rumo da história e dão o tom da grandeza do evento narrado, as mãos também falam. Todas essas expressões parecem dar vida à narração performática7 de D. Luzia. A narradora, ao assumir a responsabilidade de contar histórias, empresta seu corpo e sua expressividade para a realização do texto, que se materializa por meio da performance; “voz e gestos, faz a coreografia de suas narrativas. A voz do poeta, viva na garganta, presente e até vibrante no silêncio ruidoso de seus poemas, fala a linguagem do corpo. Voz é também corpo.” (MATOS, 2007, p.150) [grifo nosso]. Dessa maneira, o depositário da memória assume a responsabilidade pelo que é dito e como isso é feito. Ele atua como vínculo entre passado (tradição e experiências coletivas) e o momento presente: desde que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos parcialmente, estatuto de símbolo. O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz que vem de outra parte, ele a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda “argumentação” suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta, seu lugar, fora da língua, fora do corpo. (ZUMTHOR, 2010, p.15-16) Em muitas ocasiões, ao presenciar as narrativas performáticas dos moradores do rio do Engenho, tivemos a sensação de sermos levadas para um lugar fora do espaço da casa, adentramos no universo das histórias. Isso demonstra o status simbólico que tem a voz em performance. Esse modo particular de narrar adotado pelo narrador performático é responsável por um movimento regular que caracteriza a narração Esse movimento pode ser percebido na musicalidade da linguagem; na entonação de palavras e frases, exclamações e interrogações; na encenação que o narrador faz das vozes de suas personagens. Tais formas de movimento emprestam à narração um ritmo que lhe será próprio. O ritmo é objetificado pelo narrador figurado na escrita, mais do que por suas palavras, embora sejam as palavras que sugiram os movimentos do corpo, pelo efeito icônico que provocam. O corpo figurado do narrador, ao realizar os movimentos, revela-nos, através de determinados gestos, a estrutura e a textura das imagens verbalmente evocadas. (MOREIRA, 2000, p. 167) No relato de D. Luzia, essa narração performática acontece mediada também pela rememoração, que combina tempos e vozes distintas na enunciação, no corpo em presença desse 7 Ver o artigo Escrita e Performance na Literatura Moçambicana, de Terezinha Taborda Moreira. http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta08/Conteudo/N08_Parte03_art07.pdf 222 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 depositário da memória. Desse modo, a memória funciona como uma espécie de operadora das relações dialógicas, das temporalidades diversas, permitindo aos narradores inscreverem, na enunciação, esse mosaico de vozes e essa série de gestos. Tal relato é totalmente dialógico e plurivocal, pois ela enuncia palavras suas e menciona palavras de outros. Assim, o texto oral se articula a partir da figuração da voz em sua historicidade, ou seja, na relação de trânsito que a voz estabelece. Diálogo em ato, e ato de diálogo, o texto encena a vocalidade (ZUMTHOR, 1993, p. 161) em seu sentido de abertura para o mundo, para a vida. A elocução vocalizada do narrador configura o que Paul Zumthor nomeia de gestus8, que se refere a um comportamento corporal num todo, compreendendo risos, lágrimas, espasmos, um comportamento que constitui um fator necessário da performance poética (ZUMTHOR, 1993) Na reflexão sobre a narrativa, percebe-se que D. Luzia atesta a veridicidade do fenômeno sobrenatural, além de revelar seu conhecimento sobre as suas experiências e as de seu pai com as visagens. Seu discurso vai tecendo os fios da narrativa, ao tempo que apresenta elementos para o entendimento delas. Entre eles, é o tempo noturno como significado de um momento próprio para as aparições das visagens. Essa narrativa revela também o quanto a atividade da pesca tornou-se uma alternativa econômica para população do distrito, além de ser reforço à alimentação das famílias. Para Chartier (1990), podemos compreender que as maneiras de perceber a realidade social não são discursos neutros; determinam estratégias e práticas que tendem a estabelecer autoridade, além de justificarem, para os indivíduos, suas escolhas e condutas. Nesse caso, as criaturas incorporadas na tradição oral do Rio do Engenho estabelecem entre suas inúmeras funções, maneiras de moldar certos padrões de caráter, a constituição e a reafirmação de valores e ética, além de viabilizar um conjunto de histórias comunicativas para a vida em sociedade. Partindo dessa premissa, pode-se dizer que, na transmissão de boca a ouvido, repassam-se valores responsáveis pela estrutura social e pela tradição de um povo. Assim, as narrativas orais constituem-se em instrumento de expressão identitária. Nesse entendimento, a memória é “um elemento essencial da construção identitária” (LE GOFF, 1992, p. 24). 8 Segundo Moreira (2011) o gestus transforma a narrativa em performance, materializando, em letra escrita, a performance oral dos contadores de histórias. 223 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Nas narrativas que trilham pelos caminhos da memória, é comum as histórias se darem em razão de “fatos que assumem tamanho relevo para a pessoa que ouve que ela passa a contálos como se os tivesse vivido” (POLLACK, 1992, p.200). Eu ainda escuto falar muito em lobisoni nessas bandas, até hoje; tinha um homem aqui no Santo Antônio que virava. Ele mexia nas filhas, cê sabe, né?, num pode pai e filha. Aí virava lobisoni... sempre na quaresma e no Natal ele aparecia e ficava rondando as fazendas do Rio do Engenho. É verdade! [balança a cabeça]. Olha como fico arrupiada! Meu marido viu, correu atrás dele, mas não conseguiu pegar. No outro dia ele viu o capim todo amassado das pisadas do lobisoni... [ Dona Maria descreve como era o lobisomem] O lobisoni era alto, cabeludo, tinha o pé grande, cheiro de enxofre. Aqui, no Rio do Engenho, ele aparece sempre, pergunta à Maria [senhora que estava sentada ao lado dela, no momento da entrevista]. Graças a Deus eu nunca vi. (Maria Batista dos Santos, entrevista concedida em 13 de dezembro de 2013) Nessa narrativa, o corpo participa do ato do dizer. A voz firme de D. Maria é realçada com o olhar penetrante no ouvinte e os meneios da cabeça, que promovem a persuasão. Durante a entrevista, Dona Maria aponta o conhecimento de seres fantásticos no Rio do Engenho sobre os quais já ouviu falar através das narrativas contadas pelos mais antigos. De acordo com Cascudo (2002), a metamorfose em lobisomem é constituinte do mito universal que chegou ao Brasil na memória do colonizador, decorrente da cultura ibérica, na qual virar lobo significava um castigo por alguma ofensa moral grave, como a relação libidinosa entre parentes consanguíneos. O incesto simboliza a natureza animal do ser humano, seu impedimento explica a relação entre a natureza e a sociabilidade. Violar esse princípio social determina outra ordem numa outra dimensão, a punição por meio da transformação em bicho - lobisomem. Desse modo, os fatos selecionados pela memória e narrados trazem consigo leituras e versões de mundo. Na descrição das características do lobisomem, D. Maria apresenta detalhes minuciosos; acaba revivendo a história vivida e contada pelo seu marido. O odor da criatura evidencia o contato do marido de D. Maria com o lobisomem. Assim, o cheiro de enxofre atesta a existência do ser encantado. No momento da sua performance, ela enaltece não somente as suas experiências de ouvinte, mas também a de terceiros – nesse caso, a do seu marido. Para evidenciar a veracidade nesse fato, D. Maria conta com o testemunho de Maria, sua vizinha “ É verdade, ele aparece sempre aqui, principalmente nas noites de lua cheia. Nas casa de farinha , 224 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 se tiver farinha torrada ele come muito” (Maria Silva, entrevista concedida em 13 de dezembro de 2013). Nesses relatos, os depositários deixam evidente, em suas performances, a preocupação com a veracidade das narrativas. A performance se dá pela interação de uma série de elementos, é a constituição de uma cena, cujo centro é o corpo e a voz: “a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe” (ZUMTHOR, 2005, p.69).Há necessidade de persuadir, de explicar a verdade dos fatos, ainda que as narrativas apresentem personagens e situações fantásticas. O testemunho é um elemento importante na relação entre o imaginário e a verdade, torna-se o componente essencial para atestar fidelidade aos acontecimentos. Para o narrador, “o que importa é a realidade, a verdade das ações narradas; função parecida com a que na Idade-Média tiveram gêneros literários tais como o exemplum e a parábola [...]” (LEMAIRE, 2002, p. 110). Nesse sentido, o patrimônio imaterial – o conteúdo da narrativa - e a memória oral não abordam a totalidade do passado, mas os fragmentos escolhidos e ressignificados pelo presente. Dessa maneira, a memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas” (THOMSON,1997, p. 57). Além de tal característica, a memória oral também possui um caráter ficcional que, de certa forma, colabora para essa não totalidade. "Quando acreditamos evocar o passado há noventa e nove por cento de reconstrução e um por cento de evocação verdadeira" (HALBWACHS, 2006, p.43). Nesse caso, é impossível uma lembrança que reproduza precisamente um fato ocorrido. Partindo desse pressuposto, pode-se dizer que, para o depositário da memória, a sua história não é mito, nem lenda, é a sua verdade; isso porque o que se narra se mistura com a sua própria experiência de vida. Esse modo de representação da realidade faz com que os depoentes difundam o lugar de uma conexão das narrativas onde são, ao mesmo tempo, leitores e coautores de produção de sentidos e significados. Para Alcoforado (2008), estão associados à voz do narrador, vários aspectos translinguísticos, específicos do discurso oral, como os gestos, dicção entonacional, mímica facial, expressão corporal e o próprio estímulo da plateia, que não reduz a transmissão da 225 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 mensagem exclusivamente à ação específica da voz. São expressões não verbais, que imprimem mais força, vigor e realismo ao texto. Observar a expressão tranquila da rezadeira Maria da Glória e o seu olhar fixo para o horizonte, ao narrar as suas histórias de vida, é poder assistir a um espetáculo. O olhar da rezadeira revela os gestos de leitura do mundo. A doçura de sua voz encanta o ouvinte, que permanece atento a todos os detalhes da narrativa; A mudança no timbre da voz, sublinha certos momentos da narrativa que nos leva a adentrar na veracidade da narrativas : Aprendi a rezar as pessoa com minha vó e minha mãe – elas que me ensinarum. Antes dela partir ela me ensinou. Eu ainda num ensinei a ninguém...só posso ensiná a alguma pessoa se me sentí fraca (foi isso que minha vó ensinô) Já rezei muitas crianças. Eu num tinha sussego, não. Era dia e noite, até domingo o povo querendo reza. Era o meu ofício. Hoje eu quase num rezo mais, [a rezadeira faz uma pausa] às vezes um chega e pede: “D. Maria da Glória reza aqui. Aí eu rezo um pra tirar quebranto, mau olhado, bruxarias, essas coisas de esprito desgraçado... As pessoas num acredita mais, sabe? [os olhos ficam marejados de lágrimas] Todo menino que nascia aqui as mães trazia pra mim rezar... [depois de um tempo em silêncio, D. Maria diz] Lembrar o que a gente viveu e aprendeu é viver novamente experiências jamais esquecidas. [...] Certa vez nasceu uma menina mulher de uma cumade minha, a bichinha era bem bunitinha. Apareceu alguém pra visita a criança. Pois bem, depois que a visita saiu, essa menina choro, choro, choro [uem, uem, uem uem - imita o choro da criança]... isso era mais ou meno dez hora da manhã! Atardinha levaru pra mim. Batero na porta com muita força [olha para porta da frente e imita a batida] pá, pá, pá, pá pá, pá. Ela ia morrê! Passei uns chá e rezei, mas disse pra mãe: “Foi a mulher que butou olhado nessa bichinha!” Ficaro assim, né?... Será? Vixe Nossa Senhora Aparecida! Isso tá com muitos ano, mas nunca esqueci, esse menina tá é moça, mulher de filhos [expressão de alegria] (Maria de Glória Silva, entrevista concedida em 17 de dezembro de 2013) Ao organizar os fragmentos de sua história de vida em texto a ser transmitido oralmente, D. Maria, revisita seu passado por meio do exercício da recriação deste pela narrativa; e projeta expectativas sobre dois aspectos: sociedade e saúde. Sua narrativa biográfica e memorialista é a sua forma pessoal de agir sobre o mundo. Daí a perspectiva dialética da memória, ao mesmo tempo em que molda a identidade é moldada por ela. 226 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A linguagem performática utilizada por Maria da Glória é um recurso usado por ela para assegurar ao público-ouvinte o caráter verossímil. Em nome da verossimilhança9, os depositários buscam no ato de narrar histórias do universo fantasioso um artifício interessante para atrair e ganhar aceitação diante dos seus receptores. A performance utilizada pelo contadores de histórias garante a verossimilhança quando o seu receptor se identifica com os fatos relatados, a ponto de estabelecer um determinado vínculo com a realidade do texto. O jogo performático possibilita ao narrador a impressão de que ele está contando algo que se desenrolou naquele momento e ainda não está inteiramente determinado, ou seja, torna os acontecimentos presentes, assim como o faz a arte dramática. Zumthor destaca a importância da presença de alguém para ouvir o que se conta. A performance se processa pelo diálogo, ainda que a palavra esteja apenas com um único participante. Observa que “a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis por que o verbo poético exige o calor do contato” (1993, p,222). Outro recurso utilizado por D. Maria da Glória são as onomatopeias – suporte da performance. O narrador de história prende a atenção da plateia, com as correspondências imitativas - (uem, uem, uem uem - imita o choro da criança)...Batero na porta com muita força (olha para porta da frente e imita a batida: pá, pá, pá, pá pá, pá) ; ainda cria situações em que o ouvinte é levado para o momento da ação, isto é, consegue passar de maneira convincente a “carga emotiva que está por trás dos gestos da personagem, dando a ideia aproximada da dramaticidade da cena” (ALCOFORADO, 2008,p.4). Assim, a onomatopeia é mais um recurso do narrador para conferir ao seu discurso validade. Partindo do conteúdo do relato apresentado, destaca-se também a importância da memória para o ato do narrar. [A] Memória das vozes pretende ser uma ajuda à compreensão destas vozes que vêm do passado e continuam vivas no presente, vozes poéticas e cantadas, ou “traduzidas” para a escrita quando a simples memória enfraquece e se revela insuficiente para conservar a riqueza do patrimônio poético. (MUZARTE-FONSECA, 2006, p. 15). 9 Entender esse conceito de semelhante à verdade é fundamental para o estudo da literatura e das artes em geral. A Poética de Aristóteles apresenta, que, "pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (Aristóteles, 1984, p. 451, cap. IX). 227 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Assim sendo, o ato de narrar constitui a materialização da memória. A memória, como um componente constituinte do sentimento de identidade, é uma espécie de guardiã da integridade de cada grupo social, que garante a sobrevivência de fatos que marcaram um tempo e garante a partilha desses acontecimentos entre indivíduos de um grupo social. “A recordação do passado é necessária para afirmar a própria identidade, tanto individual como de grupo. Um e outro também se definem, evidentemente, por sua vontade no presente e seus projetos de futuro” (TODOROV, 2002, p. 199). Assim sendo, a memória reforça os sentimentos de pertença e adesão afetiva ao grupo, contribuindo para coesão social. A memória reúne a um só tempo aquilo que os olhos viram e os ouvidos ouviram; ou aquilo que os olhos não viram, mas os ouvidos ouviram, mas que se torna presente e visível através da performance do contador. A memória é sempre uma construção feita no presente a partir de vivências ocorridas no passado. A memória é a força que recria os fatos, os quais se atualizam através das narrativas. Para Zumthor (1998), a realização vocal performática está carregada de significação que vai além da comunicação linguística. Através da realização vocal, desempenhada nas práticas sociais e cotidianas dos povos, a voz poética conseguiu permanecer nas formas de representação cultural da comunidade do Rio do Engenho. Assim sendo, pelo ato de narrar as histórias, os grupos sociais vão perpetuando a própria cultura, suas trajetórias pessoais e suas visões de mundo. Esse material simbólico constitui teias de significações e de marcadores identitários de um povo cujas narrativas podem ser pensadas como lugares de memória. De acordo Pierre Nora (1993), os lugares de memória são identificados como espaços carregados de conteúdo simbólico e de referências culturais. Desse modo, um lugar de memória é um núcleo significativo, tanto material como imaterial, e de larga permanência através das gerações, para a memória e as identidades coletivas. Este núcleo se caracteriza por uma carga simbólica, portadora de referências às identidades culturais; está enraizado nas convenções, nos costumes, nas manifestações culturais e se modifica na medida em que mudam as maneiras de concepção, aprovação, uso e tradição. Os lugares de memória são estabilizadores da memória coletiva. Assim, o conceito de lugar de memória transcende os bens culturais edificados considerados excepcionais e vinculados a uma historiografia tradicional, aproxima-se, portanto do conceito de referência cultural (IPHAN,2000), na medida em que nele inserem-se as 228 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 expressões orais, práticas e manifestações culturais que representam a trajetória de uma comunidade. São lugares evocadores da historicidade e do desenvolvimento comunitário, em suas várias dimensões, onde se descortinam vozes, silêncios, experiências, que eternizaram gerações e permanecem vivos nas subjetividades e nas práticas cotidianas. Nesse sentido, pode-se dizer que a narrativa oral é lugar de memória, de construção e atualização do passado, e funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social. Elas representam lugares de vivências coletivas e de atualização principais simbologias, rituais e práticas cotidianas que identificam uma comunidade com o seu patrimônio cultural. As narrativas do Rio do Engenho enquanto lugares de memórias seguem o movimento das águas do Rio Santana, que tem os seus narradores como testemunhas que buscam o cumprimento da sua missão: perpetuar a memória da comunidade, de modo mais verossímil possível. Os materiais do passado, resultado de juízo de valores, que formam o patrimônio cultural, são artefatos potenciais de memória, em que essa pode se aportar. Para Nora (1993, p.09), "a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”, entretanto é importante sublinhar que "somente a atualização desses traços ou vestígios é que lhes poderá conferir o caráter de documento" (DODEBEI, 2005, p.43), que é a maneira pela qual os materiais de memória se apresentam. A respeito desse fato, Le Goff (1992,p.68), comenta: "o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação dos vestígios, mas também a releitura desses vestígios" que é a sua atualização. Assim, a preservação da expressão literária poderá contribuir para a salvaguarda desse bem cultural, além de tornar possível a valorização da antiga capitania hereditária de São Jorge dos Ilhéus. Considerações finais As narrativas orais, sobre as quais aqui falamos, instituem uma das formas de ocupar os tempos livres, comumente no entardecer e à noite, reforçando os laços de confiança entre os membros familiares e da comunidade. Por meio de narrativas, do contar, era/é possível aliviar a 229 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 dureza do trabalho e ainda transmitir costumes, ensinamentos, padrões para o convívio em sociedade – elementos promotores da coesão social. O narrador é uma pessoa, figura singular para as narrativas orais; sua desenvoltura na arte de narrar se assemelha à agilidade com que manuseia a rede para a pesca ou os utensílios para a lavoura e para a caça. Por isso, podemos chamá-lo de artesão narrador. Em meio às teias simbólicas (GEERTZ, 1989) os depositários da memória do Rio do Engenho, com suas narrativas, tornam-se fonte de reconhecimento do passado e da história do presente, já que existe uma coerência entre passado e presente que podem ser percebidas nas práticas cotidianas. Assim, os relatos orais sobre o passado dão suporte a atos de resistência e territorialidade não unicamente em relação ao grupo estudado em referência, como também a outros grupos, que conseguiram preservar as raízes de sua cultura ainda vivas até hoje. As informações recolhidas pela pesquisa demonstraram que as narrativas orais possibilitam, através da voz discurso, a junção de campos de grande relevância tais como o conhecimento acerca do mundo e das coisas, as reminiscências, as conversas cotidianas, a rememoração, a evocação, a forma de vida cotidiana, os hábitos, os usos e costumes. A palavra vocalizada (ZUMTHOR, 1993) e as práticas cotidianas (CERTEAU, 1998), possibilitam às pessoas participar de um ritual de reconstrução de histórias no qual o homem integrado nesse processo possa se religar ao universo. Embora seja um mestre do ofício de narrar, a sua voz, mesmo sendo poética, não ecoa no espaço do discurso disciplinar. São atores anônimos, que tecem diariamente suas obras, ou narrativas, com os fios das memórias e com uma diversificada riqueza de detalhes, as vidas e memórias de um povo, que comumente se perdem nos desvãos da história. Trazer à tona o lado submerso do iceberg, para usar uma metáfora de Paul Veyne, como as narrativas dos atores anônimos do Rio do Engenho, remete aos desafios presentes e constantes nas discussões da Literatura e da Nova História. Referências ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier. Literatura oral e popular. Boitatá – Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL. Número especial – ago/dez de 2008b 230 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembrança de velhos. 14. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1984. CASCUDO, L. da Camara. Geografia dos Mitos Brasileiros. 5ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora/MEC, 1998. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Voz, visualidade e texto: diálogos poéticos possíveis a partir do trabalho artístico From the forest/ Da floresta de Luana Costa e Hedi Jaansoo Luana Costa1 RESUMO: Este trabalho pretende aprofundar as investigações realizadas durante o processo de criação da obra “From the Forest/Da Floresta”, trabalho sonoro e visual criado por Luana Costa (Rio de Janeiro) e Hedi Jaansoo (Bergen) durante a disciplina de Pós-Graduação “Voz, Texto, Coletividade”, ofertada pela UERJ, ministrada por Ricardo Basbaum no Brasil em parceria com Brandon LaBelle, professor da Academia de Belas-Artes da Noruega. O objetivo é prosseguir as análises acerca da produção sonora (oralidades, leituras e suas derivações), intentando alargar as discussões sobre a emissão de voz, e produção de discursos (escrito, gravado), experimentalismos sonoros e fenômenos da linguagem. PALAVRAS-CHAVE: Voz; discursos; poéticas contemporâneas. ABSTRACT: This work intends to deepen the investigations carried out during the process of creating the audible and visual work "From the Forest / Da floresta" created by Luana Costa (Rio de Janeiro) and Hedi Jaansoo (Bergen) during the course of Postgraduate: "Voice, Text Collectivity", taught by Ricardo Basbaum in Brazil in partnership with Brandon LaBelle, a professor at the Bergen Academy of Art & Design, in Norway. The purpose is to continue the analyzes of sound production (orality, readings and their derivations), intending to extend the discussions on the issue of voice and speech production (written, recorded), experimentalism and sonic phenomena of language. KEYWORDS: Voice; speeches; contemporary poetics. Introdução No ano de 2012, os professores e artistas Ricardo Basbaum (UERJ) e Brandon LaBelle (Academia de Belas Artes da Noruega) realizaram através do curso “Voz, Texto e Coletividade/ Voice, Text, Collectivity”, uma proposta de criação, experimentação e parceria artística entre os alunos de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e dos alunos de Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega. Naquela ocasião, o curso ofertado pelas duas instituições parceiras buscava problematizar as questões pertinentes às artes sonoras, proporcionando uma investigação acerca da produção e emissão de voz (leitura, fala e seus 1 Poeta, performer multimídia, atriz. Professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola. Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense – RJ. 233 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 desdobramentos), dos processos de criação e produção de discurso (escrito, impresso ou gravado), bem como da emissão de voz em domínio coletivo (coros, refrões, manifestações, conversas coletivas e dinâmicas de grupo). Ao longo do curso o som esteve no centro de nossa pesquisa de tal modo que, buscando iniciar um alargamento de nossas percepções com respeito à arte sonora foram formuladas desde o início do processo de trabalho algumas perguntas concernentes ao campo sônico, tais como: “O que é o ouvir?”; “O que ouvimos?”; “Existem diferentes tipos de escuta?”; “Por que nos concentramos em alguns tipos de sons e ignoramos outros?”. Essas indagações, intermediadas em nossas aulas pelo artista e Prof. Ricardo Basbaum, foram expostas de maneira empírica e delicada, despertando-nos aos sensíveis que essas mesmas questões provocavam. Enquanto pensávamos sobre tais perguntas, Basbaum convidava-nos a escutar da sala de aula o som do vento que entrecortava as persianas, pequenos ruídos que se espalhavam pelo espaço, o som das buzinas dos automóveis que ressoavam das ruas até a larga janela - um ouvido aberto sobre o mundo. Sobremaneira, para pensar um exercício sobre a escuta e ajudar-nos a problematizar questões que foram surgindo-nos, importantes pensadores do som adentraram como escopo de leitura em nossas investigações, dentre eles Christoph Cox (2001) e o texto Beyond Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism, Michel de Certau (1996) e sua obra de Vocal Utopias: Glossolalias, o próprio Brandon LaBelle (2006) e a obra Background Noise: Perspectives on Sound Art e o escritor, compositor e educador musical Murray Schafer (1992), autor dentre outras da obra A Sound Education: 100 Exercises in Listening and Soundmaking. Tais textos foram discutidos, sempre os associando às experimentações no campo da linguagem e do som realizadas pelos artistas modernos e contemporâneos. A obra de Schafer no entanto revelou-se de destacada importância para nossos apontamentos pois através dos exercícios sonoros propostos pelo autor logramos discutir alguns pontos chave pertencentes ao campo sônico nos fazendo valer de muitas das assertivas do autor sobre as experimentações sonoras. Destaquemos algumas observações de Schafer contidas em A Sound Education. Nesse seu trabalho o pesquisador canadense afirma que o ambiente ao nosso redor seria uma potente 234 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 paisagem sonora, e a escuta não seria uniforme, tampouco a mesma para todos os indivíduos não apenas os indivíduos escutariam de formas diferentes entre si como também as sociedades e culturas possuiriam escutas distintas umas das outras, já que a paisagem sonora do mundo seria “incrivelmente variável diferindo de acordo com a hora, a estação, o lugar e a cultura” (SCHAFER, 1992, p. 8, tradução minha). Haveriam ainda diferenças entre o que ele chamou de “escuta concentrada” e “escuta periférica”, escutas pela quais determinados sons se sobreporiam culturalmente sobre outros, deixando à margem certos sons ignorados em sua matéria sonora. Para ilustrar essa afirmação destaco aqui algumas das indagações propostas pelo autor: Por que nós nos concentramos em determinados sons, enquanto que outros ouvimos apenas por acaso? Seriam alguns sons descriminados culturalmente de modo a não serem ouvidos de nenhum modo? (Um africano disse certa vez: ‘O Apartheid é um som!'). Alguns sons são filtrados ou tornados imperceptíveis por outras pessoas? E como é que a mudança do ambiente acústico afetaria os tipos de sons que escolhemos para ouvir ou ignorar? (SCHAFER, 1992, p. 7-8, tradução minha). Ao revelar o campo sonoro como uma paisagem passível de ser delimitada, edificada, com sons culturalmente aceitos e outros ignorados, o autor expõe em seguida que uma consciência sobre o som e os diferentes modos de ouvir devem ser por nós repensados de maneira profunda, amplificada. Para ele muitos dos sons que escutamos na contemporaneidade são apenas frutos de produções de nossa civilização mecanizada, que desde o século XX teria nos sobrecarregado sensorialmente com sua floresta de engenhocas ruidosas. A produção musical a partir do século XX teria sofrido uma transformação drástica em suas práticas por meio de tecnologias que teriam modificado as técnicas da escuta e manipulação gerando consequências devastadoras às práticas musicais e a maneira de ouvir configuradas até então. Afirma o autor que desde tais consequências, os sons que ouviríamos seriam culturalmente impostos, delineando uma paisagem sonora poluída e desesperadora que nos afetaria psicologicamente de modo negativo e ensurdecedor, tornando nossos sentidos deveras submisso, silenciado, não-criativo. 235 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No entanto, seria possível mudar essas configurações sonoras impostas socialmente através do desejo de uma escuta sensibilizada. Tal escuta seria produto de uma atuação consciente e participante sobre nosso mundo sonoro e se daria através de exercícios práticos e do retorno de hábitos já não mais incorporados ao nosso cotidiano. Um importante hábito destacado pelo autor ao longo de sua obra seria o de aprender a ouvir. Este hábito seria uma necessidade fundante para um efetivo processo de sensibilidade e educação sonora afim de transformarmos nosso modo de ouvir e a paisagem sonora ruidosa em que vivemos. Sobre essa reaprendizagem da escuta, assim afirmou o autor: Eu acredito que o caminho para melhorar a sonoridade do mundo é bastante simples. Devemos aprender a ouvir. Parece ser um hábito que nos esquecemos. Devemos sensibilizar o ouvido para o mundo milagroso de sons que nos rodeiam. Depois de ter desenvolvido alguma perspicácia crítica, podemos ir para projetos maiores, com implicação social, de modo que outras pessoas podem ser influenciadas por nossas experiências. O objetivo final seria começar a tomar decisões conscientes sobre projetos que afetam a nossa paisagem sonora (SCHAFER, 1992, p. 11, tradução minha). Aprender a ouvir e exercitar a própria escuta para verter nosso ouvido autômato em um ouvido pensante, eis o propósito do autor. Abrir as terminações nervosas dos ouvidos dos outros sentidos - esgarçar a escuta do paladar, a escuta do tato, dos poros, do olhar. Tornar visível a todos os sentidos o invisível, decidir conscientemente e de maneira crítica a nossa experiência sonora incorporando-a de fato às nossas vidas. Tarefa aparentemente árdua, porém simples quando intermediada pelo desejo, o simples desejo de ouvir... E foi mesmo de modo a refletir a escuta enquanto pulsação poética desejante, enquanto experimentação, enquanto sensação, possibilidade e um modo de estar e agir no mundo, que trabalhamos os elementos sonoros de modo singular e coletivo durante o curso “Voz, Texto, Coletividade”. Tendo o pensamento sobre o campo sonoro conjugado à ação e como modo efetivo de interferir conscientemente em nossa paisagem sonora, fomos estimulados pelos professores Ricardo Basbaum no Rio de Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega a realizar um trabalho artístico que valorizasse a experimentação sonora e se fizesse valer de recursos técnicos durante sua elaboração, tais como o gravador sonoro para a captação do som, de modo a abarcar as questões suscitadas ao longo do curso pensando e experimentando o sonoro no contemporâneo. 236 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Acerca da possibilidade de captação dos eventos sonoros, esta é fruto das transformações causadas na prática musical desde o século XX que, como nos revela o pesquisador e compositor de música experimental Michel Chion (1994) autor de Música, media e tecnologia a forma de se produzir o som teria se alterado drasticamente a partir das novas tecnologias insurgentes. Tais tecnologias permitiram alterar os modos de produção do som pois através delas qualquer som poderia ser agora capturado e posteriormente reproduzido, gerando por sua vez uma cisão entre a fonte sonora e seu resultado sonoro. Essa mudança tornou desnecessário que durante a escuta de um som sua fonte estivesse presente; seria preciso somente do suporte de registro do som captado. E foi mesmo através de um trabalho pela captura de sons que nossa experiência sinestésica teve início. A captação de eventos acústicos de diferentes paisagens sonoras e a partilha coletiva dos sons coletados deu-se como um profícuo exercício experimental ao longo do curso. Demos início às nossas conversas sobre a voz, o texto e a coletividade em processos artísticos sonoros estimulado pelas propostas de Schafer (1992); referenciando-nos em artistas sonoros da vanguarda - tais como John Cage (1912-1992), Alvin Lucier (1913) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007); bem como em artistas contemporâneos como o próprio Ricardo Basbaum e seu trabalho sonoro “conversas coletivas”. Sobre essas conversas coletivas do autor, elas se constituíram de ações performáticas pertencentes ao trabalho “conversas & exercícios [área instalação + conversa coletiva]” exposto na 30ª Bienal de São Paulo no ano de 2012 e trataram-se de leituras públicas desenvolvidas em Workshop e realizadas com participantes e convidados (dentre eles Brandon LaBelle) na área de instalação do trabalho do autor no espaço da Bienal. Visando integrar o texto escrito à sua emissão sonora de forma a incorporar os discursos diversos que irrompem na arte contemporânea, a conversa coletiva 1 “fala, som, texto” e a conversa coletiva 2 “grupo, coletivo, experiência” deram-se em grupo e de forma multivocal, polifônica. A partir do Workshop, uma leitura pública coletiva foi realizada na Bienal. Naquela ocasião alguns alunos do curso “Voz, Texto, Coletividade” também participaram do workshop tendo estado presentes durante a leitura pública do trabalho. A partilha das experiências sonoras dos trabalhos artísticos de Ricardo Basbaum foram importantes para ajudar-nos a seguir em nossas elucubrações sobre os elementos sonoros do 237 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 próprio curso. Ainda que a captação sonora de ruídos tenha sido realizada por cada um de nós, interessava também abarcar experimentações relacionadas à voz e ao texto, pensando-o em sua possível multiplicidade sonora, coletiva. Ao longo do curso partilhamos com o grupo algumas experiências sonoras individuais, discutindo-as. Cada colega revelava ao longo da partilha certas inclinações acústicas. Como poetisa, interessou-me as possibilidades e intervenções sonoras sobre o texto e através da poesia falada, de forma a criar uma espécie de poética da voz. A fala poética como evocação da arte performática que integra palavra, o corpo, e a voz é um campo que venho experimentando desde 2003. Em Cuiabá-MT, realizei minhas primeiras experimentações de poesia falada no Encontro dos Poetas Livres2 nas Praças Cuiabanas e dei início também aos meus trabalhos poéticos e performáticos em diálogo com as artes visuais, tendo a fotografia como suporte. Imbricada à performance, os desdobramentos das experimentações poéticas que atualmente tenho realizado em parceria com o ator, músico e fotógrafo Jone Castilho é trabalhada sempre no intuito de expandir o texto para outras esferas como a voz, o corpo e as artes visuais, como se pode ver em uma de nossas experiências fotográficas que se segue: 2 O Encontro dos Poetas Livres nas Praças Cuiabanas foi idealizado em 2001 pelo poeta cuiabano Neneto Sá e obteve ao longo de sua existência a presença de muitos poetas de Cuiabá, que temporária e nomadicamente habitavam as praças da cidade para falar e ouvir poesia. 238 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Fig. 1. Era a Ela. Fotografia: Jone Castilho. Corpo: Luana Costa. Pintura corporal: José Cardoso, julho de 2011. Exposta na mostra 1 Instante, Niterói. O desejo de criar diálogos entre o texto e as poéticas visuais como pode-se perceber sempre acompanhou-me em minhas inquietações artísticas. E não foi diferente quando da proposta de realização de uma obra artística sonora por parte dos professores e artistas Ricardo Basbaum e Brandon LaBelle durante o curso ofertado no ano de 2012. Para a realização do trabalho correspondente a este curso de artes sonoras tive de empreender uma experimentação profunda do campo textual enquanto potencialidade sônica. Esgarçar o som enquanto elemento de plasticidade acústica por meio de tecnologias contemporâneas tal como gravadores sonoros e programas para gravação e audição de áudio foram eventos inéditos para mim. Sobremaneira, este trabalho não concretizou-se de modo individual. A intenção dos professores foi a de efetuar uma parceria entre os estudantes de Pós-Graduação em Artes do Rio de Janeiro e os estudantes de Pós-Graduação da Academia de Belas Artes da Noruega. Selecionadas por afinidade curricular pelos dois professores - Ricardo Basbaum no Rio de Janeiro e Brandon LaBelle na Noruega - o meu trabalho no curso deu-se em parceria com a 239 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 artista estoniana Hedi Jaansoo. Os processos de nosso trabalho rumo à criação de nossa obra tiveram início em outubro de 2012, quando do primeiro contato por correio eletrônico, como se detalhará. Primeiros diálogos: Sonoridade, visualidade e texto no processo de criação da obra From the Forest/Da Floresta Hedi Jaansoo enviou-me àquela data um arquivo de sua voz e uma imagem da floresta da Estônia (Fig.2), país báltico da Europa Setentrional e seu país natal. No texto enviado junto à imagem ela detalhava-me o interesse em fazer da imagem abaixo um elemento para nossa obra em processo. Fig.2 Floresta da Estonia. Hedi Jaansoo, 2012 240 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Segundo havia-me me afirmado Jaansoo, o seu desejo era o de editá-la em movimento circular, movimento este que para ela simbolizava o ritmo e a continuidade da vida. A artista desejava também associá-la ao som de sua respiração para acentuar a proposta da relação intrínseca entre a natureza e a vida humana. Paralelamente ao envio da imagem da floresta por Hedi Jaansoo, eu efetuava uma visita para Rio Branco, capital do Estado do Acre. Tal viagem, aproximando-me da Floresta Amazônica, despertou meu interesse pela flora brasileira e os elementos da natureza enquanto material e matéria potente para a criação artística. Já completamente envolvida e contaminada pelas elucubrações do curso e as assertivas sobre as paisagens sonoras, dei início aos meus primeiros registros dos eventos sonoros daquela região. A intenção da viagem havia então se convertido também no desejo de executar captações de sons através do gravador sonoro, companheiro inseparável desde o início do curso; apontar impressões escritas e fotografar a cidade de Rio Branco ainda desconhecida aos meus olhos e ouvidos era também o meu intuito. Tendo em mãos desde o início da viagem um caderno confeccionado por mim e intitulado Caderno de Sonhos, realizei em suas folhas em branco a anotação diária de meus sonhos na capital do Acre e a escrita de impressões do lugar durante minhas caminhadas pelo local. Como um exercício de escuta para o fazer sonoro realizei um primeiro vídeo da imagem de uma forte chuva que caíra em Rio Branco dando ênfase ao seu som; gravei os ruídos de coaxares de sapos em diversos pontos da Universidade Federal do Acre; da voz de um indígena fazendo um pronunciamento público nessa mesma Universidade; escrevi sobre a sensação experimentada quando de meu alojamento na moradia indígena existente na Universidade Federal do Acre; descrevi em meu caderno os sabores da comida oferecida a mim e feitas por um casal de indígenas que ali estavam; detalhei sobre a noite em que todos cantávamos e contávamos histórias ao redor de uma fogueira durante uma noite calorosa sob a Lua crescente. A expectativa era a de fazer destes escritos um dado para agregar aos processos artísticos de nossa obra quando de meu retorno ao Rio de Janeiro. No entanto, tais expectativas viram-se momentaneamente perdidas quando do extravio deste caderno no Aeroporto de Belo Horizonte - Minas Gerais. Ao retornar à minha morada no 241 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Estado do Rio de Janeiro, desejei salvaguardar de algum modo as impressões e sensações que ainda estavam vivas em minha memória. No anseio por capturar essas impressões um tanto fantasmáticas desta ida à capital do Acre em parte esquecidas como alguns de meus sonhos anotados periodicamente durante os quatro dias que lá passei, tomei a decisão de realizar uma escrita literária desta viagem. Tal escrita poderia de algum modo condensar a experiência e ser uma espécie de cartografia mnemônica e poética de minha vivência no local. Escrevi assim um texto e dediquei-o ao Acre. Intitulei-o Sonho Amazônico. Eis os seus versos: Sonho Amazônico No seio da Floresta Vi pajés coloridos entoarem cânticos Índias de prata abrirem estrelas E entregar suas luzes como oferenda Para fazer dançar os príncipes-trovões No seio da Floresta Vi o Sol transformar os pássaros em ouro Vi raízes e folhas virarem manto E o leite das árvores dos seringais Pintarem de branco os cabelos dos Rios No seio da Floresta Vi o Povo da Água emergindo da chuva Vi o Povo do Fogo sobre os raios do Sol Vi o Povo da Terra saindo das grutas E mulheres guerreiras voltando das lutas 242 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No seio da Floresta Ouvi as vozes das sereias-feiticeiras Onças aladas movendo-se nas telhas Ouvi pulsar o coração de uma estrela No seio da Floresta Com meu terceiro olho sônico Movi-me nas densas trilhas de éter Rumo a um íngreme sonho amazônico. Após escrevê-lo apresentei o texto escrito em língua inglesa à Hedi Jaansoo, que respondeu-me com entusiasmo e enfatizando a aproximação de eventos de sua própria vida com os versos da terceira estrofe do poema. A partir desta escrita e da recepção positiva pela artista sugeri que realizássemos uma conjugação da experiência sonora da terceira estrofe deste texto com sua imagem da Floresta da Estônia, mas de modo a operar de modo distinto e não convencional com a emissão sonora de minha voz. Aqui destaco a importância da leitura do texto de Michel de Certau (1996) durante o curso para o pensamento deste procedimento sônico. Afeta-me os fenômenos de linguagem que apontam para os desejos e atos de transcriação das operações normativas da língua e as manifestações linguísticas que indicam uma elaboração de alteridades para a criação de um tópos literário capaz de causar uma fissura na própria verve da linguagem - fenômenos e ações poéticas das quais o escritor Ghérasim Luca3 (1913-1994) constitui uma importante referência para mim. Ora, sobre tais fenômenos - em especial a glossolalia - assim afirmou Michel de Certau sobre suas emissões: Arte da fala [un art de dire] dentro dos limites de uma ilusão (...) desregulam a organização dos sistemas de significado como ervas daninhas que crescem por entre o concreto. Por um momento, como o ritual ‘Loa’ Vodu, as vozes se apossam do discurso. (CERTAU, 1996, p. 29, tradução minha). Segundo Guilherme Castelo Branco, para o poeta romeno Ghérasim Luca, a poesia seria “uma operação pela qual cada palavra é submetida a uma série de mutações sonoras, e cada uma das facetas da palavra acaba por libertar a multiplicidade de sentidos que ela carrega, algumas delas radicalmente novas” (CASTELO BRANCO, 2010, p. 81). 3 243 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 No caminho de uma intervenção sonora menos à ordem dos ditames orais e mais à desconstrução dos discursos majoritários da linguagem, procurei realizar uma gravação sonora da poesia que fosse convidativa para a entrada nessas perturbações linguísticas e incitasse ao segredo e ao secreto, ao ritual e ao mágico, já que minha experiência vivida na região Amazônica também havia sido atravessada pelo ritualístico. Assim, a gravação sonora da 3ª estrofe foi realizada de modo que a impostação de minha voz fosse outra que não a minha natural e usual nos modos de fala convencionais. Falada de maneira sussurrante, emiti-a como se tais palavras fossem próprias de um segredo contado aos ouvidos de alguém por alguma entidade ou espírito das florestas. Na intenção de também preservar a ideia sugerida por Hedi (imbricar a imagem em loop da floresta da Estonia ao som de sua respiração) e seguindo a sugestão dada em sala de aula pelo Prof. Ricardo Basbaum, reeditei o som de minha voz sussurrada ao som de minha respiração sobrepondo-as. Minha respiração, feita de modo convulsivo, anti-natural e bastante marcado através de minha inspiração efetuada pela boca possibilitou converter o trabalho sonoro em uma dupla voz, um duplo som, uma voz coletiva. Traduzida para o inglês, a gravação foi novamente enviada para Hedi Jaansoo, que realizou a edição final junto ao seu vídeo da floresta estoniana de maneira que o som acabou por torna-se uma emissão sônica em loop e em uníssono com a imagem da floresta. Estes processos desaguaram por fim em nossa obra From the Forest/Da floresta, constituindo assim um encontro singular entre nossas florestas, intermediadas pelos diálogos entre texto, voz e imagem. O nosso trabalho artístico integrou a exposição Dupla-Boca/Double-Mouth sob curadoria dos professores e artistas Ricardo Basbaum e Brandon LaBelle tendo sido levada à público, junto aos demais trabalhos de outras duplas de alunos, na exposição realizada em Bergen, Noruega e na Galeria Cândido Portinari da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil. Referências bibliográficas: CERTAU, Michel. Vocal Utopias: Glossolalias. In: Representations, Volume 0, Issue 56, Special Issue: The new Eruditon. Automn, 1996. 244 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 COX, Cristoph. Beyond Representation and Signification: Toward a Sonic Materialism. In: Journal of Visual Culture, vol. 10. Sage Publications: Los Angeles, London, New Delhi, Singapore and Washington DC, August, 2011. Disponível em: http://vcu.sagepub.com CHION, M. Música, media e tecnologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. Foucault, M. 2006. “Outros Espaços”. Estética: literatura e pintura, música e cinema, Ditos e Escritos Vol. III, Rio de Janeiro, Forense Universitária. SCHAFER, R. Murray. A Sound Education. Canada: Arcana Editions, 1992. LA BELLE, Brandon. Background Noise: Perspectives on sound art. Continuum International Publishing Group: New York, 2006. VASCONCELOS, Jorge; BRANCO, Guilherme Castelo. “Michel Foucault e a Literatura” In: Arte, vida e política: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: LCV, 2010. Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A matéria carolíngea no sertão: a cavalaria em rimas e versos nordestinos The carolingian in hinterland: the cavalry in northeastern rhymes and verses Naelza de Araújo Wanderley 1 Resumo: O propósito desse estudo é desenvolver uma leitura comparativa a partir do texto português A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, enquanto “mediador” da matéria carolíngea em terras brasileiras, e de poemas pertencentes à literatura de cordel nordestina (A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A prisão de Oliveiros, de Leandro Gomes de Barros; Traições de Galalão e a morte dos Doze Pares de França, de Marcos Sampaio, entre outros). Através deste, conta-se destacar, à luz das relações transtextuais, que a modernidade também reservou, principalmente no Nordeste brasileiro através da Literatura de Cordel, o seu lugar de destaque para o fascínio que a gesta carolíngea exerceu e exerce sobre o público através dos séculos. Muitos são os aspectos que aproximam e que distanciam o texto português e os folhetos de cordel que desenvolvem seus versos acerca da heroicidade de Rolando, da lendária dor do rei Carlos Magno e de batalhas apocalípticas em nome da honra. Esses cordéis são produtos de uma nova leitura que apenas revela algumas permanências pontuais. A vitalidade desse tema francês do século XII reflete uma permanência da épica europeia trazida pelo elemento colonizador que foi assimilada e recontextualizada pelos poetas da literatura de cordel no Nordeste brasileiro. . Palavras-chave: Cordel. Intertextualidade. Carlos Magno e os Doze Pares de França. Abstract: The purpose of this study is to develop a comparative reading between the Portuguese text A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, while "mediator" of carolingian in Brazilian lands, and poems from Northeast popular literature (A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A prisão de Oliveiros, de Leandro Gomes de Barros; Traições de Galalão e a morte dos Doze Pares de França, de Marcos Sampaio, among others). It stands out, in the light of transtextual relations, which modernity also reserved, especially in the Brazilian Northeast, through the popular literature, its place of prominence to the fascination that the management carolingian exercised and exerts on the public through the centuries. There are many close and apart aspects from the Portuguese text and the Northeast popular literature that incorporate Rolando’s heroism the legendary king Carlos Magno’ pain and the apocalyptic battles in the name of honor. These Northeast popular literatures are products of a new reading, which reveals some specific periods. The vitality of the French’s theme from the 12th century reflects the idea of continuity of European epic brought by element colonizer, which was assimilated and recontextualized by poets of the Brazilian Northeast popular literature. Keywords: Northeast popular literature. Intertextuality. Carlos Magno e dos Doze Pares de França. 1 Introdução A opção por uma leitura que tem como suporte teórico inicial a literatura comparada apresenta-se aqui como espaço aberto à noção de intertextualidade, uma vez que esta, segundo 1 Drª– Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Email: naelzanobrega@ig.com.br 246 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Carvalhal (1986, p. 53), “abre um campo novo e sugere modos de atuação diferentes ao comparativista.” As várias formas de distanciamento que se apresentam entre a canção de gesta francesa (medieval) e os folhetos de cordel, pertencentes à literatura popular do Nordeste brasileiro (século XX) evidenciam um longo e paradoxal caminho. A busca pelos pontos que unem, principalmente, e pelos que distanciam esses textos, mesmo sendo estes pertencentes a épocas e lugares distantes no tempo, no espaço e no contexto, vai além do aspecto comparativo entre as produções literárias de uma época ou de determinado espaço, pois conduz o leitor ao(s) intertexto(s) que se entrelaçam ao longo da história literária que une a medievalidade europeia e o poeta popular do sertão nordestino. A referência a intertextos justifica-se através da escrita e reescrita de vários textos que retomam a saga carolíngea2 e que, ao longo dos séculos, compõem a trilha que permite também aos poetas populares do Nordeste brasileiro recontar, em seus folhetos de cordel, as façanhas do imperador Carlos Magno e de seus valorosos guerreiros. Esta é uma temática que pertence, em sua origem, à gesta francesa. Observe-se que as chansons de geste francesas, assim como a epopeia, têm como tema os feitos históricos / ilustres medievais e foram escritos a partir da segunda metade do século XI até o século XIII. De origem indefinida, a canção de gesta pode ter surgido das cantilhenas, canto de celebração dos soldados após as vitórias nas batalhas (MOISÉS, 1985). Ainda segundo esse autor (1985, p. 76), “Em francês, o termo cantilène designa uma curta composição medieval [...], que alguns estudiosos aceitaram como a forma precursora das canções de gesta.” Essa composição medieval de pequena extensão, conforme se pode observar, tinha seu canto executado pelo povo e sua temática se voltava para um conteúdo de exaltação. Segundo Leoni (1967, p. 13), os cantos lírico-épicos (cantilenas) teriam sido reunidos, transformados, ampliados, formando grandes 2 A repercussão dos cantos carolíngeos não ficou restrita apenas ao território francês. Espalhou-se por outras terras e inspirou inúmeras composições. Foram eles a fonte de inspiração de Ariosto, em seu Orlando Furioso e de Boiardo, em Orlando enamorado, “talvez a mais alta obra de imaginação da poesia vernácula italiana durante o século XV,” segundo Gardner (1941, p. 25). Macy (1941, p. 137) afirma que, “Em inumeráveis versões a história de Roland atravessou toda a Renascença. Foi imensamente popular na Itália, onde se fez assunto de Orlando Furioso, a obra prima de Ariosto”. A literatura portuguesa também foi herdeira dessa gesta francesa e dentre os livros que narram as aventuras de Carlos Magno e dos Pares de França está a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, conhecido em Portugal desde o século XVI e, posteriormente, trazido para o Brasil pelos colonizadores. 247 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 epopéias (as canções de gesta). “Estas canções seriam, pois, fruto de séculos e de gerações. Mas os textos primitivos nunca foram encontrados.” A gesta francesa divide-se em três grupos e, entre eles, está o ciclo denominado francês, também chamado de Carlos Magno. As canções de gesta deste ciclo datam, sobretudo, dos séculos XII e XIII. Elas também se subdividem em dois grupos: a epopeia real e epopeia feudal. Denominada de epopeia real, a Canção de Rolando pode ser considerada a obra principal de toda a Idade Média francesa. É considerada uma verdadeira epopeia nacional, cuja composição data de 1050, mais ou menos, e é composta de mais de quatro mil versos decassilábicos. A Canção de Rolando, de autoria anônima3, apresenta, como núcleo temático, a batalha de Roncesvalles, travada no desfiladeiro de mesmo nome, segundo indica a tradição, por Rolando, sobrinho de Carlos Magno, e os demais Pares de França, no ano de 778. Esse núcleo histórico será bastante ampliado através dos elementos lendários acrescidos aos acontecimentos acerca dessa batalha. Cantados oralmente, os versos dessa canção chegaram a várias partes do Ocidente Europeu através dos jograis e, através do canto deles, a história alimenta a lenda, e esta, por sua vez, reinventa a história. O ato de recontar, através dos séculos, determinada obra ou temática através da reescritura4 reflete algo que ultrapassa os limites da simples inspiração a partir um texto do passado. Desta forma, uma nova manifestação literária se ergue todas as vezes que histórias são reescritas, pois essa postura funciona, muitas vezes, como uma espécie de mola propulsora da atividade literária. Esse processo ratifica a ideia de que a matéria que dá significado e 3 Ressalte-se que a questão da autoria dessa obra, assim como a sua origem, também se apresenta de forma indefinida pela crítica, pois se alguns acreditam em uma criação coletiva, outros atribuem o registro da identificação do autor ao último verso do poema: “Ici finit la gest que Turold décline” (CORDIER, 1935, p. 101) ou “Ice s´arrête La Geste que Thérould a chantée.” (THEROULDE, 1888?, p. 237). Observe-se que as duas escritas do último verso da Canção de Rolando, ambas elaboradas a partir do códice de Oxford, revelam a assinatura de Turold / Thérould e são encerradas pelos verbos “decline” e “chantée”. Dessa forma, considerando-se o(s) sentido(s) apresentados por esses verbos, Turold / Thérould seria o autor, o copista, o tradutor ou apenas o recitador dos versos dessa narrativa heroica notavelmente elaborada. 4 Trabalhar com o termo reescrita, ao invés de retextualização, justifica-se, no presente texto, inicialmente, pelo fato de que, na abordagem de muitos estudiosos desse campo de pesquisa, não há uma definição muito clara acerca dessa noção. Marcuschi (2010, p. 46) ao discutir esses processos, apenas apresenta a amplitude dos conceitos, afirmando que, na retextualização, acontece uma espécie de “‘tradução’, mas de uma modalidade para outra, permanecendo-se, no entanto, na mesma língua”. A seguir, o autor comenta o processo que chamou de reescrita, afirmando que este poderia ser visto como sinônimo do termo retextualização, uma vez que “igualmente poderíamos usar as expressões refacção e reescrita, (...) que observam aspectos relativos às mudanças de um texto no seu interior (uma escrita para outra, reescrevendo o mesmo texto)”. 248 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 movimento à criação literária é a própria literatura, pois, segundo Curtius (1957, p. 1415) a literatura do passado pode continuar contribuindo com o presente; é uma espécie de “presente eterno”, e, para a literatura, “todo passado é presente ou pode sê-lo”. Uma canção de gesta medieval presentificada em diferentes contextos e assumindo novos significados ao longo dos séculos e em diferentes literaturas. Esse é o caminho percorrido pela matéria de França que, no início do século XX, torna-se uma das principais temáticas dos representantes da literatura de cordel5 no Nordeste brasileiro. 2 O cordel nordestino e as várias versões da saga carolíngea Eis o que é a poesia do povo: a natureza no momento mais expansivo da sua verdade, a inspiração no vôo mais livre e inconsciente. Quem não há de estudá-la? Estender a mão para sentir as pulsações latentes do coração da humanidade? Escutar as alegrias do mundo através d´esta harpa animada, em que ressoam todas as alegrias e tristezas do poema da vida? Teófilo Braga Apresentando-se como fenômeno bastante conhecido no Nordeste do Brasil, a literatura de cordel tem a sua origem ligada às folhas volantes e aos vários manuscritos portugueses que percorreram essa região desde fins do século XVI. Essa produção portuguesa introduzida no Brasil sofreu adaptações para se adequar ao novo ambiente e, na Região Nordeste, assume características bastante peculiares. De temática diversificada, essa forma de literatura reflete basicamente a realidade social em que nasceu. Dessa forma, ao escolher a temática da novela de cavalaria como ponto de partida para a sua criação poética, o poeta popular do início do século XX, certamente, desconhecia toda a linhagem histórica e literária da qual está envolta a matéria carolíngea, uma vez que “A maioria deles nasceu na zona rural, filhos de pequenos proprietários ou de trabalhadores assalariados. Tiveram pouca ou nenhuma instrução formal. Alguns eram autodidatas, outros aprenderam a ler com parentes e conhecidos” (ABREU, 2006, p. 93). Assim sendo, coube à figura do colonizador 5 A literatura de cordel é, sem dúvida, herdeira da tradição medieval, mas não daquela que se criou e desenvolveu no sul da França pela arte dos “troubadours”. Não, suas raízes devem ser procuradas mais ao norte, na Normandia, na Flandres, na Picardia, melhor dizendo, nos cantões de “langue d´oil”, com os “trouvères” criadores das “chansons de geste”, com os poetas que celebraram os feitos heroicos e patrióticos dos nobres senhores, as explorações guerreiras dos heróis nacionais e dos cavaleiros cristãos contra os infiéis. (RIBEIRO, 1987, p. 80) 249 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 português a mediação desse verdadeiro processo de transplantação da matéria de França em solo brasileiro, mesmo quando esta já não tinha o mesmo destaque em solo francês. A Provença nos veio através da influência galaico-portuguesa e não diretamente. [...] A figura de ROLDÃO, o Roland, Par de França, continua viva na poesia cantada do sertão do Nordeste. Não ocorre o mesmo na França, onde viveu, nem na Espanha, onde sucumbiu em agosto de 778. [...] Não penetrou nos contos, mas é indispensável nos versos, imagem mais legítima da bravura, da coragem imediata, o homem-sem-medo, eterno encanto para a velha turbulência sertaneja. [...] Os cantadores e poetas populares nordestinos ignoram o Roland das chansons de geste ampliadoras e a própria Chanson de Roland não deixou a companhia de alguns estudiosos urbanos, leitura que não alcança curiosidade plebeia. O Roldão brasileiro é uma atualidade. Não era possível retirá-lo da lembrança coletiva do meu país. (CASCUDO, 2001, p.10-11) Roland, o brasileiro e português Roldão, não está no conto popular, na história tradicional. É infalível na cantoria, nos versos de desafio, na batalha poética, constituindo um recurso prestante no confronto do supremo destemor. Onze séculos não o afastaram da citação sertaneja no Nordeste do Brasil, como no Brasil do centro e do sul. [...] Mas, curiosamente, essa fama ilustre que se tornou tradição popular do Brasil não teve fonte oral e sim origem impressa, perfeitamente identificável. [...] É a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, nas edições de Lisboa, 1723, 1728, 1789, tradução de Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor de Algarve, e que representam recapitulações e edições dos vários livros sucessivos, antes da forma definitiva que alcançou nos princípios do século XIX. No Brasil o Carlos Magno foi motivo de inspiração popular em muitos episódios que apareceram versificados, cantados, constituindo folhetos de ampla divulgação, como a Batalha de Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, A Morte dos Doze Pares, pelos poetas populares Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde, José Bernardo da Silva, Marcos Sampaio, editados na Paraíba, Pernambuco e Ceará, com infalível mercado consumidor entre o povo e perfeita ignorância dos letrados. [...] A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, como a conhecemos em Portugal e Brasil, não existe em espanhol e francês. [...]Todos os velhos cantadores profissionais a sabiam de cor. [...] Não conhecer a História de Carlos Magno era ignorância indesculpável, indigna dos bardos sertanejos, mesmo analfabetos. Faziam-na ler, folha por folha, escutando, aprendendo, entusiasmando-se, decorando, repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em perguntas fulminantes e respostas esmagadoras. [...] Roland au Moyen-Âge, está morto na memória folclórica de França, por quem lutou, e na Espanha, onde morreu. Vive, valoroso, invencido, incomparável, na poesia cantada do Nordeste do Brasil. (CASCUDO, 2001, p. 51-60) 250 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A narrativa poética do cordel que apresenta como tema principal os feitos do rei Carlos Magno e de seus guerreiros surge de um processo de identificação do público popular nordestino com os valores apresentados nos textos acerca dessa temática. O código de honra, a coragem do guerreiro frente às injustiças e às traições humanas, a defesa da fé (Cristianismo), entre outros, motivam a escrita poética e legitima, através do público, o mais completo exercício de recepção que a criação literária pode testemunhar e que surge da interação autor/ público leitor / obra. Segundo Abreu (2006, p. 95-97), essa interação era essencial à sobrevivência desse gênero, uma vez que ela acontecia de tal forma que, no ato da venda e apresentação dos folhetos pelo poeta, era possível a intervenção direta do público ouvinte através de protestos que poderiam influenciar diretamente na composição de um novo folheto. Os “versos”, como eram chamados os folhetos pelas pessoas comuns, eram recitados, muitas vezes, de memória, com grande orgulho para o recitador, nas calçadas das fazendas, ao término do suado dia de trabalho braçal. Segundo Terra (1983, p.36), “Os folhetos contariam com maior audiência no campo onde seria uma das poucas formas de lazer e fonte de informação.” Era um deleite para o corpo e para a alma do sertanejo que tinha a oportunidade de ouvir e de comentar admiradamente sobre aqueles personagens. Faziam-no de tal forma que davam a impressão de que conheciam de perto os guerreiros franceses, a sua “valentia”, o seu compromisso com a fé em Cristo, assim como o código de honra que unia homem e “lenda” em tempos e contextos tão diferentes. Ao comentar a presença da matéria carolíngea entre os sertanejos, Câmara Cascudo, em sua obra Cinco livros do povo, já identificava como sendo “do povo” as edições portuguesas sobre essa temática: A HISTÓRIA DE CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA foi, até poucos anos, o livro mais conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos grandes centros urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado, engenhos de açúcar, residências de praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso existente em casa. Raríssima no sertão seria a casa sem a HISTÓRIA DE CARLOS MAGNO, nas velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos Pares ou a imponência do Imperador da barba florida. (CASCUDO, 1994, p 441) É nesse cenário que a edição portuguesa de A história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França coloca-se para os poetas populares como texto matriz que deu origem a vários folhetos de cordel ao longo dos anos. Estava aberto o caminho para o amplo processo de 251 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 reescrita executado pelos poetas populares que, através do cordel, iriam recontar essa história em suas narrativas poéticas, adaptadas ao gosto do público e às cores do cenário nordestino. Ayala, em seu texto Riqueza de pobre (1997, p. 161-162), cita Manoel Cavalcante Proença, que, ao analisar os folhetos que contam a história de Carlos Magno, afirma não ser “possível transportar temas sem naturalização” e que “ao povo, pouco lhe importa de onde venha a lenda. Quando ele vive essa lenda, essa lenda está se passando no Nordeste.” É, através de recursos dessa ordem, que o poeta popular, assim como o jogral medieval, aproxima o público leitor de seus textos do conteúdo das gestas francesas. Ele serve como uma espécie de mediador que adéqua os traços gerais dos intrincados textos portugueses, atribuindo-lhes uma linguagem que possa ser compreendida pelos seus leitores. Pode-se observar que essa mediação nada tem de inocente. Ela tem como objetivo principal a construção de um processo de identificação através do qual o poeta persegue o autorreconhecimento do sertanejo na figura do nobre ou do bravo guerreiro medieval que, muitas vezes, tem o sertão nordestino como cenário de lutas lendárias. Carvalhal (1986, p. 53-54) afirma que A repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto, etc.) nunca é inocente. [...] Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inventa. A popularidade da gesta carolíngea na literatura popular nordestina pode ser constatada através da retomada dessa temática em vários folhetos e por vários autores. Entre eles, podem-se citar os seguintes cordéis: A história de Carlos Magno e os Doze Pares de França, de João Lopes Freire; A batalha de Oliveiros com Ferrabrás e A prisão de Oliveiros e seus companheiros, de Leandro Gomes de Barros; A morte dos 12 Pares de França, de Marcos Sampaio; História completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio da Silva; Roldão no Leão de Ouro, de João Martins de Athayde. A elaboração desses textos requer do poeta popular certa fidelidade ao texto que lhe serve como matriz comum ao folhetos, fato que não o impede de recorrer a certos recursos adaptativos. 252 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Essas adaptações constroem o que Ivan Cavalcante Proença (1977, p. 40) chama de “as pontes para o público” e Jerusa Pires Ferreira (1993, p. 21), de “‘Brechas’ da Criação”. O processo que envolve a elaboração desses textos, partindo de um texto matriz comum, dá origem a um entrelaçamento intertextual6 quase único na literatura brasileira. Fenômeno semelhante pode ser registrado na literatura erudita, com os textos Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga e com a Canção de exílio, de Gonçalves Dias. O entrelaçamento intertextual que aproxima o texto História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França e os folhetos de cordel, já referidos anteriormente, pode ser percebido através de uma postura narrativa que ora se aproxima da citação, ora da alusão. Os trechos selecionados dos folhetos A batalha de Oliveiros com Ferrabrás e de A prisão de Oliveiros e seus companheiros, de Leandro Gomes de Barros, comparados ao texto matriz,7 evidenciam como é elaborado esse processo, não apenas em algumas passagens, mas em toda a extensão dos dois textos de Leandro Gomes de Barros: Ferrabraz8 como se viu com tão cruel e quase mortal ferida, iluminado da graça do Espírito Santo, conheceu o erro dos Turcos; e posta a mão esquerda sobre a ferida, disse a Oliveiros: Ó nobre cavaleiro, por honra de teu Deus, o qual confesso se verdadeiro, e 6 Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes, define a intertextualidade como sendo uma das relações transtextuais, a primeira delas, constituída pela relação de copresença de um texto em outro. Segundo Genette, a intertextualidade tem a seguinte definição: uma relação de copresença entre dois ou mais textos , isto é, essencialmente mais frequente, pela presença evidente de um texto em outro. Gerard Genette reconhece na intertextualidade três tipos de relações intertextuais: a citação, o plágio e a alusão. A citação é uma das formas de intertextualidade mais facilmente perceptível no interior do texto, pois constitui uma citação literal das palavras do autor citado, tornando-se, assim, bastante explícita. Mesmo sendo uma reprodução parcial de um texto de outro autor, ela pode, ou não, aparecer entre aspas com uma referência precisa sobre o autor e a obra de onde foi retirado o fragmento. No folheto de cordel, a relação intertextual não se encontra delimitada no texto através de aspas, embora ela seja visível no decorrer de todo o folheto. A transtextualidade é definida por Genette como sendo “tudo o que põe um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (1982, p. 7). Essa teoria apresenta cinco possibilidades de leituras analíticas para um texto: a Intertextualidade, que se mostra na superficialidade do texto, de forma explícita ou implícita, e que se confirma através de três processos: a citação, o plágio e a alusão; a Paratextualidade, que diz respeito a todo texto paralelo ao texto literário; a Metatextualidade, que estabelece uma relação crítica com outro texto; a Hipertextualidade, que analisa a relação hipotexto/hipertexto e a Arquitextualidade, que diz respeito à classificação do texto literário, (GENETTE 1982, p. 7 - 12). Dessa forma, o texto que aqui está sendo tratado como texto matriz é, na realidade, segundo a teoria de Genette, um hipotexto que dá origem a vários hipertextos. 8 Cumpre assinalar que o texto original foi preservado sem qualquer tipo de alteração na ordem sequencial deste. Foi feita somente a atualização ortográfica. 7 253 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Onipotente, te rogo que não me deixes morrer, sem que antes receba o Santo Batismo, e depois faze de mim quanto quiseres, pois que me venceste em muito leal batalha; [...] Teve Oliveiros tanto pesar, como contentamento de ver a Ferrabraz convertido, que com o grande gosto lhe rebentaram as lágrimas pelos olhos, e com grande amor lhe curou a ferida o melhor que pode. Então disse Ferrabraz: — Oliveiros, convém muito para que a minha alma se salve, que montes no meu cavalo, e me ajudes a subir nas ancas, ou atravessado sobre o pescoço, e me leves com brevidade, por que se te detiveste algum tempo, temo que não tenhas poder para valer-te a ti;nem ao menos para levar-me aonde tanto desejo ir; porque esta manhã deixei dez mil Turcos emboscados detrás deste monte; e vendo-me vencido, sairão todos contra ti para eu ser resgatado; o que já não quero, senão viver na Fé de JESUS Cristo. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 49-50) — Nobre e grande cavaleiro! Disse o turco, arrependido. Agora estou convencido Que teu Deus é verdadeiro, Grande, bom e justiceiro, Ente de grande mister — Faz tudo quanto Ele quer, NEle não há quem O pise! Te peço que me batize — Depois faça o que quiser! Oliveiros, quando acabou De ouvir o que ele dizia, Ficou com tanta alegria, Que, de contente, chorou. As feridas lhe curou, Livrou ele de morrer. Então, se ouviu dizer Aquela alma fiel: — Bendito, ó Deus de Israel, Que foi, que é, que há de ser! [...] E disse: — Hás de montar Em seu cavalo e seguir E ajudar-me a subir, Para poder me levar. E não deves demorar, Porque estou muito ferido — Ficarei muito sentido Em morrer sem batizar-me E ali tem a esperar-me Um exército crescido! (BARROS, [19 - -], p. 15 – 16) Foram levados os cinco Cavaleiros com as mãos atadas, e Oliveiros também com os olhos tapados, ao Almirante Balão, o qual perguntou a Burlantes seu capitão, que os trazia presos, qual daqueles era o que tinha vencido a seu filho Ferrabraz? [...] 254 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Perguntou o Almirante a Oliveiros, quem era, e como se chamava? Respondeu Oliveiros. — Senhor, eu me chamo Egino, pobre Cavaleiro, aventureiro, somos todos cinco da Província de Lorena,e viemos servir ao Imperador Carlos Magno só pelo soldo; é a primeira vez que entramos em batalha. [...] —E logo chamou a seu camarista Barbaças, e lhe disse: — Faze que estes presos sejam levados ao campo e despidos, seja atado cada um a seu pau, e se lhe dê cruel morte. — Disse então o seu Capitão Burlantes: —Senhor, será melhor enviar embaixada ao Imperador Carlos Magno, para ver se quer dar a teu filho Ferrabraz em troco destes cinco Cavaleiros. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 55-56) E, naquela multidão, Levando os prisioneiros, Entregou os cavaleiros Ao almirante Balão. Ele lá como um leão, Em desesperos fatais, Igualmente a Satanás No dia que o céu perdeu, Disse: — Desses, quem venceu O meu filho Ferrabraz? [...] O rei fez uma mudança: Perguntou a Oliveiros Se eles eram cavaleiros Dos Doze Pares de França. Oliveiros sem tardança, Disse: — Nós somos soldados Muito pouco exercitados. Somos todos de Lorenda, Para a primeira contenda Agora fomos chamados! Ordenou o almirante Que para o campo so levassem E todos cinco matassem, Por um meio agonizante. Ali lhe disse Burlante: —Teu plano não é capaz: Creio que lucrava mais Mandar por dois mensageiros Trocar esses cavaleiros Por teu filho Ferrabraz. (BARROS, [19 - -], p. 18 – 19) Os folhetos editados pela Editora Luzeiro, contendo as duas narrativas poéticas, na década de 1970, já anunciavam, em sua página de abertura, entre parênteses, a seguinte observação: “(extraídas do livro de Carlos Magno)”. Não se sabe ao certo se esta foi uma atitude já 255 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 apresentada pelo autor na primeira impressão desses textos de cordel. De qualquer forma, este texto oferece ao leitor do sertão, aquele não tivera em suas mãos a oportunidade de conhecer o livro da edição portuguesa através do qual vários filhos de pequenos fazendeiros da região aprenderam ler, a oportunidade de também conhecer essa história. A transformação do gênero narrativo (prosa) em versos populares, a serem cantados nas feiras da região, possibilitou ao sertanejo simples a “posse” desse texto, mesmo que fosse apenas através do ato de ouvir alguém recitar, pois, na maioria das vezes, a leitura era realizada por aquele que “conhecia as letras” para muitos que apenas ouviam atentamente na calçada para comentar depois, animadamente, a valentia e a honra dos “cabras” de Carlos Magno, como se estes fossem personagens tão próximos deles quanto os conhecidos cangaceiros do sertão. Leandro Gomes de Barros, além de apresentar ao homem simples do sertão nordestino a matéria oriunda da medieva gesta carolíngea, também exercitava, ao seu modo, não o plágio, mas já anunciava, em seus folhetos, uma espécie de citação direta quando apresenta ao leitor o hipotexto gerador de dois grandes hipertextos da literatura de cordel nordestina. De fato, um grande vanguardista do cordel nordestino. Segundo Cavignac (2006, p. 83), “os poetas de cordel seriam trovadores modernos — os últimos detentores de uma tradição multissecular — e o folheto seria uma prova, entre outras, da sobrevivência da Idade Média europeia no Brasil.” Os versos da narrativa poética de cordel recortam o essencial do texto em português em prosa e, por vezes, aproximam-se tanto, que chegam a “se tocar” nas palavras, nos nomes e nas ações das personagens. Esse aparente distanciamento do hipotexto permite ao poeta popular a “síntese” necessária aos recortes dos detalhes essenciais da narrativa na atividade de reescrita. Observe-se como o poeta popular preenche os espaços dos detalhes suprimidos em relação à narrativa de origem com elementos bem próximos da linguagem e do mundo de seus leitores; o almirante Balão, pelo desespero em que se encontrava, estava “como um leão”, símbolo de ferocidade, e é também comparado a Satanás em maldade. Uma espécie de gradação que conduz o leitor à elaboração de uma imagem deformada pelo desespero e pela maldade para o personagem que foi o algoz do grande guerreiro Oliveiros. 256 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Esses mesmos recursos também conduzem à elaboração dos demais folhetos acerca dessa temática, mesmo sendo elaborados por diferentes autores. O episódio da prisão de Oliveiros pelos turcos, entre outros, também será narrado no folheto A história de Carlos Magno e os Doze Pares de França, de João Lopes Freire. Observe-se que o desenvolver da narrativa poética acontece de tal forma que permite ao leitor o reconhecimento de uma postura poética muito próxima, tanto em relação ao hipotexto quanto em relação aos demais folhetos dos poetas populares que versam sobre a temática carolíngea: Dali fizeram partida tudo cheios de emoção e levaram Oliveiros para o almirante Balão disse este venceu meu filho mas vai pagar na prisão. Ordenou o almirante que os levasse em um instante podia mandar matar com a morte agonizante assim fazia a vingança sobre o seu filho importante. Deu-lhe o conselho brilhante este palamo não é capaz é melhor formar uma troca de Oliveiros por Ferrabraz porque ele é teu filho e talvez tu não veja ele mais. (FREIRE, [19 - -], p.30 -31) O folheto de João Lopes Freire apresenta uma estrutura poética diferenciada daquela apresentada por Leandro Gomes de Barros nos referidos folhetos, pois sua estrofe é uma sextilha de sete sílabas, enquanto que os outros folhetos são estruturados em martelos (décimas de sete sílabas) e, já nas primeiras estrofes, sugere ao leitor uma justificativa do poeta para a escrita sobre o tema: Minha caneta de ouro prendo ela em minha mão para escrever uma história de grande admiração a vida de Carlos Magno que foi Imperador Cristão. (FREIRE, [19 - -], p.1) 257 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Primeiramente, o poeta popular faz referência a um de seus principais instrumentos de trabalho, a caneta. Ela é de “ouro”, uma matéria nobre para contar a história de nobres. A exaltação da fé cristã surge, na narrativa, como uma verdadeira “ponte” entre o religioso sertanejo e o folheto que se inicia, pois Carlos Magno assume, já nos primeiros versos do poeta, a função de símbolo de luta pela fé cristã, afinal ele foi o “Imperador Cristão”, e a absolutização dessas palavras já revelam ao leitor a intenção do poeta em contar a história daquele era o defensor dos cristãos e que, em suas batalhas, “recebia forças / das regiões divinais”, pois era “um enviado / do divino Espírito Santo / para defender a Igreja”. Esse folheto apresenta-se como uma espécie de síntese de toda a narrativa da edição portuguesa, pois os demais tratam de alguns episódios da narrativa. Por exemplo, os textos de Leandro Gomes de Barros narram apenas os capítulos referentes à batalha de Oliveiros com o gigante Ferrabraz e a prisão do guerreiro de França pelos turcos, presentes no Livro II, da edição portuguesa. Assim sendo, essa edição, não somente sintetiza para o leitor a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, mas também se narra episódios que serão retomados isoladamente por outros autores, em outros folhetos. A história do romance proibido de Berta, mãe de Roldão e irmã do rei Carlos Magno, e do Duque Milão, pai de Roldão, a origem de Roldão e a explicação para o seu nome, a sua armação como Cavaleiro, assim como a sua morte fazem parte da narrativa de João Lopes Freire e também do cordel História completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio da Silva, episódios narrados nos livros IV e V da Primeira Parte da edição portuguesa: Saídos dos estados de França os dois Esposos chegaram à Itália; e desviando-se sempre dos lugares públicos para não serem conhecidos, chegaram a um deserto pertencente, e junto à Cidade de Sena, e achando entre os mais ásperos penhascos uma profunda cova, se acomodaram nela, valendo-se para seu sustento das silvestres frutas, rústicas ervas. Passados poucos dias daquela rústica habitação, começou Berta a sentir as dores do parto, que se fazia mais penoso, por não terem, nem para seu sustento, nem para enfaixar o fruto nascido. E assim todo cheio de lágrimas, e suspiros, saiu Milão da cova, e se foi por aqueles campos pedir esmola. 258 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Ausente Milão, começara a crescer as dores em Berta, de sorte que a faziam andar aos tombos pela cova; e como estava só, se viu tão aflita, que chegou ao último instante de sua vida, sem poder articular palavra. Em fim, chegou a parir um menino junto da boca da cova, o qual caindo sobre a terra, veio rodando por ela um grande espaço até um plano, que estava defronte da cova, por fazer ali uma ladeira, chegando Milão, e vendo aqueles dois espetáculos, sua esposa como morta, e a seu filho rodando pela terra tomou o menino e o lavou, e aquentando uns toscos coeirinhos, que pelo amor de Deus lhe tinham dado, o envolveu neles, e lavando também Berta a apertou, e logo consertou a cama com o novo mato, e deixou a ambos nela. Enquanto o menino dormiu, esteve Milão contando a Berta na forma que o tinha achado rodando sobre a terra todo ensanguentado, porque Berta não o tinha visto, pois quando o pariu estava sem sentidos. Quando Berta tal ouviu, começou de novo a dar graças a Deus, de ter livrado aquele inocente de morrer pagão, e o mesmo fazia Milão, e assim ajustaram de o batizar, e por-lhe o nome de Rodando, (pois rodando nasceu) e hoje se chama Roldão, por corrupção do vocábulo. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 195-196) Depois que Carlos Magno chegou à França, começo a examinar em várias matérias, e também nas de guerra o seu sobrinho Roldão, porém ele as sabia melhor do que eles, porque em todas era insigne, principalmente na arte de Cavalaria. Justas e Torneios; era tão valente, que não havia quem com ele quisesse jogar as lutas, ainda que fosse o mais valente homem. Vendo Carlos Magno tantos prodígios em seu sobrinho, logo tratou (ainda que não tinha idade completa) de o armar cavaleiro, para o que convocou toda a corte, e todos uniformemente o consentiram, e foi o dia de maior aplauso, e festejos que jamais houve. Armado Cavaleiro Roldão, sendo de nove anos, na forma costumado, se mandaram apregoar as festas, Justas e Torneios feitas em seu aplauso; para o que concorreram os melhores cavaleiros, não só do mesmo Reino, mas também dos Estrangeiros. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 208-209) Tornando em si Roldão, juntou as mãos, e olhando para o Céu pedia perdão a Deus [...] e depois abraçando-se com a espada, disse: In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum. Que quer dizer: nas tuas mãos, Senhor, encomendo a minha alma. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 184) Junto a cidade Sena em um matagal afastado tinha uma profunda cova Milão olha com cuidado viu que ali com sua esposa dava para ficar hospedado. [...] Milão precisava sair para procurar o que comer e um dia ele saiu Berta começou sofrer e as dores do parto começou a aparecer. 259 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Viu o seu filho nascer ela gemendo e chorando porém na bera da cova a criança saiu rolando por Deus que nessa hora Roldão ia chegando. [...] A palavra roldão porque ele nasceu bolando quando Berta deu a luz nada ficou enxergando o lugar era acidentado a criança saiu rolando. (FREIRE, [19 - -], p.9-10) [...] Com 9 anos de idade Carlos Magno mandou chamar deu-lhe cavalo e armamento para ele poder treinar não tinha o que aprender mas tinha o que ensinar. (FREIRE, [19 - -], p.16) [...] Sua espada duridana morreu abraçado com ela foi a sua defensora que lhe serviu de vela em todos os momentos nunca se separou dela. (FREIRE, [19 - -], p.38) Passaram longe de Roma perto a cidade de Sena encontraram num deserto uma furna bem pequena Berta ia num estado que quem visse tinha pena Ficaram ali nessa cova ambos dormindo no chão frutas e hervas silvestres era a alimentação e ela ainda assombrada do rancor de seu irmão. [...] Ficou ela já com dores e Milão saiu sozinho pelos casebres dos campos chorando pelo caminho 260 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 implorando alguma esmola pra socorrer seu filhinho Na ausência do esposo duplicou mais seu sofrer pois a furna era apertada para ela se mover já bem na boca da furna veio a criança nascer Saiu rodando a criança por sobre uma lanceada perto havia uma ladeira ficou ali encostada Berta nas folhas e sem fala muito abatida e prostrada. Milão arranjou nas casas alimento e mais de um coeiro achou a mulher no campo e o filho taboleiro ele não soube dos dois qual acudisse primeiro. [...] Milão tomou-o nos braços e seguiu no outro dia apresentou o menino ao cura da freguesia com o nome de Rodando foi batizado na pia. O pai achou-o rodando ensanguentado no chão e da palavra rodando foi derivado Roldão [...] (SILVA, 1960, p. 10 – 12) Admirava a todos e a real majestade os cavaleiros da corte lhe tomaram amizade foi armado cavaleiro com nove anos de idade. Começou com nove anos pelo tio foi armado e nas batalhas que ia tirava bom resultado que dentre os mais cavaleiros foi ele o mais respeitado. (SILVA, 1960, p. 26) 261 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O entrelaçamento intertextual que aproxima os dois folhetos e a edição portuguesa é facilmente identificado através da referência aos personagens, aos mesmos fatos narrados, aos mesmos espaços descritos e também através da sugestão de exaltação à figura do herói Roldão. Observe-se, ainda, que o folheto História completa do Cavaleiro Roldão, de Antonio Eugenio da Silva, apesar de anunciar a “história completa” de Roldão, narra apenas uma parte, pois a morte desse cavaleiro não é descrita nesse cordel, como acontece no folheto de João Lopes Freire. Existem ainda dois outros folhetos que se apresentam ao público leitor do cordel nordestino como reescritas das histórias dos heróis carolíngeos e que têm como texto de origem a mesma edição portuguesa aqui apresentada. São eles A morte dos 12 Pares de França, de Marcos Sampaio, e Roldão no Leão de Ouro, de João Martins de Athayde. Oh maldito Galalão, o mal aventurado homem, nasceste de sangue nobre, e por avarento foste traidor! Sendo rico te moveste por dinheiro! Sendo grande, e nobre te fizeste pequeno, baixo e vil! Foste escolhido entre tantos, tão grandes cavaleiros para ir com a embaixada, e vendeste a teu Senhor! [...] E sempre foste traidor, e ambicioso, pois por um quase nada vendeste o que mais valia que todo o mundo. Oh perversa avareza, inimiga de toda a caridade, e da boa virtude, de quantos males és causadora! Por avareza vendeu Judas a Jesus Cristo, por avareza foi Adão desobediente ao seu Criador, por avareza foi a cidade de Troia destruída; e pela avareza vendeu Galalão aos nobres, e virtuosos Cavaleiros. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 178) Oh! maldito Galalão mau desaventurado homem nasceste de sangue nobre a avareza te consome sendo rico te vendeste botando em lama teu nome Tu sendo um príncipe nobre de tão alta distinção foste escolhido por todos para tão fina missão porém com tua nobreza usaste a negra traição [...] Cometeste contra Deus a mais infame maldade de vender teus companheiros 262 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 aos monstros sem piedade tu covarde hás de sentir o pago disto mais tarde Tu era sempre traidor em tudo o mais vagabundo vendeste o que valia mais do que tudo neste mundo botaste teus companheiros no abismo mais profundo Por avareza vendeu Judas a Jesus nosso Redentor por avareza foi Adão desobediente ao criador por avareza vendeu Galalão o seu senhor (SAMPAIO, 1954, p. 4-6) A proximidade entre os textos, no caso desse folheto, é tão evidente que o poeta popular transforma em versos certas passagens da narrativa em prosa. Assume a mesma postura de desdém em relação ao personagem Galalão e às suas ações de traidor. Assim como no hipotexto, o cordel nordestino transforma esse personagem da saga carolíngea em alguém tão desprezível quanto aqueles que, segundo o Cristianismo, cometeram os maiores erros de toda a história da humanidade. Observe-se que o poeta omitiu, em seus versos, a referência à lendária Troia, possivelmente, um recurso para atribuir mais veracidade à construção caricata desse personagem que, em solo sertanejo, ainda tem seu nome relacionado à ideia de alguém traiçoeiro, perigoso. O castigo atribuído a esse personagem não poderia ser menor que o seu erro, pois a simples morte não vingaria nem ao Rei Carlos Magno, que perdeu os Doze Pares de França, por causa da traição de Galalão, e nem o público sertanejo que o condenou perpetuamente. [...] mandou Carlos Magno que Galalão fosse atado a quatro ferozes cavalos, a cada braço um, e cada pé outro, e depois de bem atado, cavalgaram quatro homens nos quatro cavalos, e cada um partiu para sua parte, e todos ao mesmo tempo, e cada cavalo saiu com seu quarto. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 187) Quatro ferozes cavalos Carlos Magno mandou buscar e pegaram Galalão e neles foram amarrar em cada cavalo um membro era para estraçalhar 263 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Então os quatro cavalos partiram em velocidade e do infame Galalão cada um levou a metade era o fim do desgraçado que usou da falsidade. (SAMPAIO, 1954, p. 30) Se a temática amorosa é praticamente inexistente em A Canção de Rolando, a edição portuguesa da História do imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França abre espaço para o capítulo lírico da vida de Rolando e permite ao poeta popular do Nordeste brasileiro João Martins de Athayde, no folheto Roldão no Leão de Ouro, assim como o fez Boiardo, ao cantar para o mundo o seu “Orlando innamorato”, cantar em seus versos a paixão de Roldão pela princesa Angélica, assim como o seu casamento. Tinha o leão uma porta na barriga, que se abria por dentro, e fora, é tão sutil, que só quem soubesse o segredo a percebia; por ela meteu Ricarte a Roldão e ajustando os braços e pernas pelas do leão e cabeça, e mais partes da mesma sorte, fechou a porta e ficou Roldão dentro à sua vontade, porque para ver tinha o leão furado os olhos, e para respirar os narizes e a boca; [...] desta sorte com as molas que o leão tinha nos braços e pernas, movendo Roldão os seus, parecia era o mesmo leão que se movia por si. (HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO E DOS DOZE PARES DE FRANÇA, 1864, p. 242) Este leão tinha juntas que andava e se movia todo de barriga oca nele um homem cabia e tinha os olhos furados que escondido tudo via [...] Quando o leão estava pronto Ricarte chamou Roldão e mandou que ele entrasse na barriga do leão pois só assim ele via D. Angelica na prisão (ATHAYDE, 1960, p. 14-15) Aqui o texto do folheto não está tão próximo do hipotexto ou texto matriz quanto no poema de Sampaio. Embora existam elementos comuns aos dois textos, estes não se apresentam com as características de proximidade narrativa dos textos anteriormente citados. Faz-se importante lembrar que, através da alusão, a leitura intertextual remete o leitor, duplamente, a 264 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 outro texto anterior ao folheto e à edição portuguesa; a referência ao leão de ouro como artifício que possibilita a Roldão o ato de infiltrar-se na prisão da princesa Angelica conduz o leitor a outro possível vínculo de intertextualidade: os versos de Homero e o famoso cavalo de troia. Mas esta é somente uma das muitas páginas, que cabe entre uma página e outra do infinito “livro de areia” que é o cordel nordestino. 3 Considerações finais A leitura da poesia popular sertaneja possibilita ao leitor de hoje um encantamento diferente daquele que evocava no sertanejo do início do século passado. É evidente que, em cada época, existem obras, autores e públicos específicos. Esse é o grande círculo da produção literária culta ou popular. Mas a magia dos grandes textos não morre com o tempo. Dada a sua grandeza, eles sempre encontram alguém que os faça ressurgir com aparência e novos sentidos para encantar um novo leitor. Esse é o processo que possibilitou ao sertanejo simples, através da mão calejada do poeta popular, o contato e a identificação imediata com as aventuras do rei Carlos Magno e seus guerreiros. Foi pelos versos cantados pelo poeta popular nas feiras nordestinas que a temática oriunda da matéria de França, pertencente às páginas medievais, foi lida, ouvida e preenchida de novos sentidos por um novo público leitor, o homem simples do campo no início do século XX, no Nordeste brasileiro. Na modernidade, a lenda carolíngea e seus heróis, assim como o cordel nordestino, continuam seu caminho na direção de novos leitores e de novas leituras. Exemplo desse fato são as edições em quadrinhos da Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, de Leandro Gomes de Barros (desenhada pelo cearense Klévisson Viana e promovida pela Secretaria de Cultura do Ceará), e da obra Rolando (publicada no Brasil, em 2005, pela Via Lettera Editora), que remete o leitor ao texto da Canção de Rolando. Abre-se, assim, a partir de novas propostas como estas, um novo tempo para a literatura popular do Nordeste e também um novo público, certamente. É a leitura da imagem atrelada às palavras e à construção de sentidos. Por essa via, os folhetos e a matéria carolíngea têm uma roupagem nova, mas, apesar desse fato, acredita-se que o encanto poético advindo da essência da narrativa do cordel e da medieva gesta francesa ainda é o aspecto de oralidade, o contar 265 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 recitando, a identificação imediata do leitor / ouvinte, pois nasceram do povo e da sua vontade de cantar, de contar, mas também de recontar / reescrever, ao seu modo, as histórias passadas para uma geração do presente. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras, 2006. ATHAYDE, João Martins de. Roldão no leão de ouro. Juazeiro do Norte: Tipografia São Francisco, 1960. AYALA, M. I. N. Riqueza de pobre. Literatura e sociedade: revista de teoria literária e literatura comparada, São Paulo, USP, p. 160-169, 1997. BRAGA. Teóphilo. História da poesia popular portugueza. Porto: Typographia Lusitana, 1867. 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Flamarion, Éditeurs, [1888?] Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 O ASSASSINO DO AQUEDUTO E SUA REPRESENTAÇÃO NA LITERATURA POPULAR PORTUGUESA Nilce Camila de Carvalho1 RESUMO: Diogo Alves foi um célebre bandido português do século XIX que ficou conhecido como “O assassino do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa”. Sua principal prática criminosa consistia em assaltar e jogar a vítima do alto do Arco Grande a fim de que não houvesse testemunha. Apesar de ter ficado famoso por esses crimes, ele foi julgado e condenado à forca por um outro. Diogo Alves transformou-se em uma lenda urbana. Sua história deu origem a livros, folhetos de cordel e filmes, seus atos são lembrados até hoje pelos lisboetas, uma vez que sua memória ficou atrelada ao aqueduto. Assim, a proposta desse artigo é refletir sobre o personagem, seus crimes e sua lenda, discutindo as suas representações literárias e as explícitas intenções dos autores. PALAVRAS-CHAVE: Bandido; lenda; literatura popular; representação. ABSTRACT: Diogo Alves was a famous nineteenth-century Portuguese bandit who became commonly known as "The murderer of the Águas Livres Aqueduct of Lisbon". His main criminal activity was to rob and then throw the victim from the top of the Great Arch, a section of this Aqueduct, intending to left no witnesses. Despite having become famous for those crimes, he was tried and hanged by another. Diogo Alves became an urban legend. His story originated several books, brochures, pamphlets and movies, his crimes are remembered even today by the Lisboans, since his memory has been engraved in the aqueduct. Thus, the aim of this paper is to discuss this character, his crimes and his legend, debating his literary representations as well as the intentions of the authors. KEYWORDS: Outlaw; legend; popular literature; representation. Na literatura popular portuguesa existem séries de folhetos de cordel que narram as façanhas de bandidos que se tornaram populares. Sobre esse tema, foram produzidas, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, três coleções: “Histórias populares portuguezas”, “Grandes criminosos” e “Criminosos célebres”. Tais folhetos apresentam a vida e os crimes desses homens lendários. José do Telhado, João Brandão, Diogo Alves e Remexido são os bandoleiros mais destacados na literatura de cordel portuguesa. Todos viveram no século XIX e atuaram em determinadas regiões: Zé do Telhado na região do Minho e Trás-os-montes; João Brandão na Beira; Remexido na serra do Algarve; e Diogo Alves em Lisboa, único bandido urbano entre os citados. 1 Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Estadual de Londrina. Esse trabalho foi realizado a partir do estágio PDSE financiado pela CAPES (Proc. 9829-12-1) sob a orientação do Prof. Dr. José Joaquim Dias Marques (Universidade do Algarve/ Portugal) 268 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A reflexão acerca do momento histórico vivido por esses personagens auxilia na compreensão dos motivos que os conduziram à vida criminosa. José do Telhado é o bandido aclamado popularmente como “Robin Hood português”. Ele se alistou no regimento dos Lanceiros da Rainha, participou de revoltas populares, foi condecorado com a medalha da Torre e Espada por salvar a vida do general Sá de Bandeira e, no entanto, com a mudança das diretrizes políticas, se viu perseguido por representantes do governo, desempregado e com uma família para sustentar. A partir desse momento, segundo as representações literárias acerca desse personagem, Zé do Telhado entrou para a vida criminosa, mas agiu de acordo com seus nobres princípios. Remexido foi um guerrilheiro que lutou bravamente pelos interesses miguelistas na Guerra Civil (1823-1834), a qual opôs absolutistas, que apoiavam D. Miguel, e liberais, defensores de D. Maria. Após o exílio de D. Miguel, o governo português decidiu extinguir as revoltas localizadas que ainda demonstravam apoio à política absolutista. Diante desse quadro, Remexido resolveu manter-se escondido na Serra do Algarve, lugar de difícil acesso para o exército da rainha, e continuou com sua guerrilha particular conhecida como “A guerrilha do Homem da Serra” (1834-1838). Para subsistência de seu grupo, Remexido saqueou as vilas mais próximas e as estradas, ações que o qualificou também como bandoleiro. João Brandão, conhecido como o “terror da Beira”, era de uma família liberal que foi acirradamente perseguida a partir de 1828. Com o fim da guerrilha que perseguia os miguelistas, a família conseguiu se restabelecer servindo no combate aos miguelistas insurretos. Mais tarde, João Brandão fez parte do concelho de Midões que elegia os deputados que iam para a capital. Em 1853, recebeu permissão para perseguir os ladrões e assassinos da Beira. Mesmo “agindo dentro da lei”, os excessos cometidos por João Brandão, enquanto exercia esse poder local, foram responsáveis por seu declínio posterior, uma vez que houve interesses políticos em condená-lo. Em relação a esses bandidos, Diogo Alves é o que mais destoa, não apenas por ser um bandido citadino, mas também por não ter um claro objetivo político. A conjuntura social que levou esse personagem à vida de crimes difere bastante em relação a dos outros, e seus motivos foram considerados mais sórdidos pela população e pelos autores que se dedicaram a narrar sua história. Os crimes que mais causaram indignação popular foram cometidos no Aqueduto das Águas Livres de Lisboa, o qual foi construído sob a ordem de Rei D. João V para o fornecimento 269 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 de água potável para a cidade, e seu funcionamento se deu a partir de 1748. O “caminho dos arcos” era utilizado para ir dos bairros mais periféricos, como Benfica, passando por cima do vale de Alcântara, em direção ao centro da cidade. Diogo Alves possuía (não se sabe como) uma chave falsa de uma das galerias interiores dos arcos. Sua prática criminosa consistia em assaltar o transeunte solitário que percorria aquele caminho, e após roubá-lo, para evitar que houvesse delação, jogava-o do alto do Arco Grande. As obras relatam que esses roubos seguidos de assassinatos duraram cerca de 6 meses e, por falta de investigação policial, não se pode apurar o número exato das vítimas. Embora tenha se tornado famoso pelos crimes do aqueduto, o bandoleiro foi julgado e condenado por um outro crime: o assalto à casa de um médico na Rua das Flores. As várias representações existentes sobre Diogo Alves imputam-lhe certo “pendor” e “satisfação” em relação ao crime. Tais características o tornaram o assassino mais caricato da literatura popular portuguesa. Em razão dessas peculiaridades, esse artigo tem como objetivo analisar a representação literária de Diogo Alves, o assassino do aqueduto. Todos os bandoleiros citados tiveram várias representações literárias. Zé do Telhado é o que mais suscitou obras e tem um lugar marcado na tradição oral, não só em sua região, mas em todo Portugal. Histórias de bandidos, alguns heroificados como Zé do Telhado, sempre encantaram a imaginação popular. São figuras que cativam e empolgam por sua coragem e destemor, e outras vezes que aterrorizam por sua crueldade e frieza. Não raro, o relato das façanhas desses personagens são caracterizados como literatura de aventuras. Nesse sentido, exercem a função de entreter o leitor, transmitindo àqueles que ouvem ou leem suas histórias uma sensação de liberdade e de poder que, geralmente, não desfrutam em suas vidas rotineiras. Roger Chartier ao analisar os folhetos2 sobre um bandido popular francês do século XVII, Guilleri, argumenta: Diferentes por sua data, origem, gênero, estilo, esses textos repousam, entretanto, sobre uma mesma solicitação do imaginário dos leitores, introduzidos no mundo inquietante e atraente, secreto e aberto, dos trapaceiros de toda espécie. Quer a ficção seja dada como 2 Chartier analisa o interesse popular pela leitura dos folhetos que hoje compõem o acervo da Biblioteca Azul, folhetos baratos que circulavam na França do Antigo Regime, muito dos quais narravam histórias de malandros, trapaceiros e bandidos, personagens que permitiam aos leitores conhecer não só os seus modos de vida e as suas sutilezas como também suas gírias, os jargões utilizados por eles e que eram empregados na escritura dos livretos Entre os folhetos mais populares está a Vida generosa dos andarilhos, mendigos e boêmios (última edição em 1627) e O vagabundo ou a história e o caráter da malícia e da trapaça daqueles que correm o mundo às expensas dos outros (editado primeiramente em italiano em 1621). Ver (CHARTIER, 2004, cap. 8). 270 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 verdade quer o discurso realista contenha intenções divertidas, picarescas ou burlescas, o objetivo é o mesmo: descrever a sociedade dos malandros, oferecer como leitura a perambulação vagabunda para aqueles que permanecem no lugar, a trapaça para os honestos, a aventura para quem só conhece a repetição familiar dos trabalhos cotidianos. (CHARTIER, 2004, p. 289). Além de apresentar um tema popularesco, os folhetos instigavam a leitura por incluir nas publicações dicionários e/ou léxicos que permitiam aos leitores compartilhar da linguagem secreta dos malandros e do “estilo de vida” dos vagabundos. Tais características são a razão de seu sucesso na França do século XVII. A “fórmula editorial” (CHARTIER apud ABREU, 1999, p. 23), publicações em brochuras e em papel barato, é comum em toda a Europa e auxiliou na popularização da literatura erudita através de adaptações. Considerado em Portugal como literatura de cordel, esse “gênero editorial” tornou-se bastante popular, praticado desde o século XVI, também divulgou textos literários antes restritos a um pequeno grupo social (ABREU, 1999, p. 24-25) e sua produção abarca uma grande variedade de assuntos e temas de diferentes gêneros e formas como “autos, pequenas novelas, farsas, contos fantásticos, moralizantes, histórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras, notícias...além de poder ser escrita em prosa, em verso ou sob a forma de peça teatral” (ABREU, 1999, p. 21). É dentro desse “gênero editorial” que foram produzidas grande parte das narrativas sobre Diogo Alves. Escritos em prosa: a coleção “Crimes e Criminosos Célebres”, sob a autoria de Belo Redondo e Tomé Vieira, publicou Diogo Alves e a sua quadrilha (18--); a coleção intititulada “Os Grandes Criminosos” publicou Os crimes de Diogo Alves e da sua quadrilha (1922); a coleção “Histórias Populares Portuguezas” publicou o folheto intitulado História verdadeira e completa do celebre ladrão e assassino Diogo Alves (19--); há também um folheto com o título Vida, e Morte de Diogo Alves (1841) escrito por Francisco Antonio Martins Bastos3. No campo da poesia, tem-se duas publicações: O supplicio de Diogo Alves: canto funebre... (1841), escrito por Antonio Manoel Terras, e Conversação nocturna que teve o reu Francisco Mattos Lobo, com a sombra de Diogo Alves (1841) de autoria de A. J. P.. Trata-se de dois longos poemas compostos ao estilo romântico. O primeiro, de composição mais trabalhada e com vocábulos rebuscados, tece uma reflexão sobre a pena de morte imputada ao bandido e canta 3 Em razão das semelhanças de forma e conteúdo desses folhetos, eles serão referidos apenas genericamente como “folhetos” nesse artigo. Como “obras” refiro-me a toda a produção relacionada à Diogo Alves. 271 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 seus últimos momentos que vão da entrada no Oratório até o patíbulo. O segundo poema é um diálogo entre um bandoleiro preso, Francisco Mattos, e a alma de Diogo Alves que surge para lamentar seus infames crimes e admoestar o seu “sucessor” em atrocidades. Esse segundo poema possui uma linguagem com marcas evidentes de oralidade, característica resultante de sua própria especificidade dialógica que o torna mais fluído e, portanto, mais popular. Em 1877, Leite Bastos publicou O crimes de Diogo Alves, obra que classificou como biografia romanceada e na qual narra a vida, os crimes e a relação do bandoleiro com sua quadrilha, inclusive com sua amante, situando histórica e socialmente as ações do personagem na cidade de Lisboa. É a obra mais vigorosa e detalhada existente sobre Diogo Alves por tencionar reconstruir o universo típico dos bandoleiros na época, se valendo, para tanto, da linguagem popular e das gírias dos malandros e vadios que perambulavam pelas ruas e vielas da capital. Diogo Alves e os crimes do aqueduto (2003), de Artur Varatojo, também dedica-se à vida de crimes do personagem, no que se aproxima a todas as outras anteriores, porém, essa obra contém um capítulo inusitado intitulado “Estudo do crânio de Diogo Alves”. Artur Varatojo, formado em direito e medicina legal, foi um escritor dedicado à análise criminológica, conhecido popularmente como “Inspetor Varatojo”. Ele publicava crônicas semanais no jornal A Capital sob o título “O crime visto por Artur Varatojo”, teve programas televisivos e radiofônicos (“Na pista do crime”). Com sua formação voltada para o estudo criminológico, Artur Varatojo se aproveitou do fascínio popular pelo crime. No entanto, nesse caso, o que surpreende é o fato de sua análise sobre Diogo Alves ser baseada em conceitos cientificistas4 do século XIX, os quais são transmitidos como sendo plausíveis no século XXI. Diogo Alves cometeu seus crimes entre os anos de 1836 e 1839. Sua alcunha era “o Pancada”, ele nasceu em Lugo na Galícia (Espanha) em 1810 e aos treze anos, como ocorreu entre muitos galegos, deixou os pais e foi tentar melhores condições de vida em Portugal. De modo geral, essas obras apresentadas acima narram momentos cruciais da vida de Diogo Alves. Principiam comentando sua partida da Galícia, sua obediência aos pais, pobres e honrados camponeses, seu trabalho de boleeiro (cocheiro) na cidade de Lisboa. Todos os autores Não é insignificante reiterar que esses conceitos cientificistas baseavam-se no racismo científico, na eugenia e na craniometria. No caso, a análise de Varatojo parte do princípio de que o crânio de Diogo Alves possuia anomalias que indicavam sua propensão inata para o crime. 4 272 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 afirmam que Diogo Alves não apresentava nenhum indício do assassino que viria a ser. Era, ao contrário, muito bom empregado e honesto. No século XIX, era comum aos galegos sairem de sua terra e irem a Lisboa trabalhar como “criado de servir”. A intenção desses migrantes era conseguir uma economia suficiente para uma vida modesta na Galícia. Os galegos tinham já demarcadas as funções que poderiam exercer na capital portuguesa: aguadeiro, boleeiro, “moço de recado”, criado doméstico, carregador, entre outras. Tais profissões eram vistas com desdém por serem trabalhos braçais e não qualificados, assim, aqueles que as exerciam eram alvo de preconceitos e ridicularizações5. Diogo Alves, segundo os autores dos folhetos, obteve certa fama como boleeiro. Inclusive, Belo Redondo e Tomé Vieira afirmam que ele era um profissional disputado no ramo. Afirmam ainda que, após esse princípio de vida calma e sem turbulências na capital, Diogo Alves começou a frequentar tavernas e viciou-se no jogo. É dessa forma que começou sua derrocada: bebia e jogava, não levava mais o trabalho a sério, consequentemente, o seu último patrão, ao perceber algumas mudanças em seu comportamento, o dispensou temendo um desenlace violento. Diogo Alves, já então com má fama, não conseguiu mais colocação profissional. Os folhetos são unânimes ao apontar para a influência exercida pela taberneira Gertrudes Maria, a Parreirinha, sobre o personagem. Diogo havia a conhecido na tasca que esta mantinha em uma ruela chamada Águas Boas. Era uma portuguesa separada do marido e que morava com dois filhos. A taberna, segundo os autores, era mal frequentada, com aspecto sombrio e sujo e a taberneira é descrita como uma mulher vulgar, uma felina, tão sórdida quanto o lugar em que trabalhava. Diogo Alves se apaixonou pela Parreirinha, e essa mulher foi acusada pelos autores e pela tradição popular de ser a responsável pela perdição do galego. No folheto Os crime de Diogo Alves, da coleção “Os Grandes criminosos”, lê-se: O seu conhecimento e ligação com uma mulher de baixa esféra como elle, mas de má conduta, e a sugestão que ella soube exercer sobre o seu pobre e fraco espirito compeliram-o á pratica de nefandos átos e a entregar-se a uma vida desregrada de vicio em que a taberna o iniciou e que d'ali para diante seguiu sempre até morrer. […] E' aqui que começa a vida aventurosa de Diogo Alves que o conhecimento de tal mulher instigou e impeliu para o crime como vamos vêr o que durou a sua acção no Aqueduto das Aguas Livres, a que Diogo Alves deixou ligado o seu nome. (ANONIMO, 18?, p. 45 Esses imigrantes galegos eram vistos sobretudo como grosseiros, avarentos e, às vezes, beberrões. Há toda uma produção cultural portuguesa da primeira metade do século XIX que pretende ridicularizar a imagem desses imigrantes (JUSTO, 2011, p.41). 273 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 5) No caso, o papel atribuido à Parreirinha remete à concepção que se tinha da mulher naquele período histórico. Ela poderia ser a mulher honrada, submissa, que servia e ajudava o marido ou poderia ser a sua perdição. Parreirinha é descrita como “fera”, “gralha sinistra”, “monstro”, “abominação”, “mulher perversa” que ofereceu o “fruto proibido ao homem”. No mesmo sentido, em Diogo Alves e sua quadrilha, Belo Redondo e Tomé Vieira afirmam que Mais do que a Diogo Alves, o ódio popular recaíu, principalmente, sôbre a Parreirinha, visou especialmente a amante do salteador. Ela ficou como o génio do Mal, a sinistra inspiradora das atrocidades que o outro praticou, pervertedora de um homem que, antes de a conhecer, fôra sempre orientado pelos preceitos da dignidade e da honra. A história de Diogo Alves, contada pelo Povo, reconstituída de reminiscência em reminiscência, transmitida de coração em coração, é a história de alguém que se perdeu por amor, que desceu às maiores vilanias e baixezas para conquistar e manter a mulher que não o merecia. (…) (…) o ladrão e assassino só o foi por inspiração, alento e domínio da Parreirinha, que esta mantinha um extraordinário poder sôbre êle, colaborou activamente em muitas das suas tristes façanhas e que era para satisfazer os caprichos e necessidades da sua amante que o bandoleiro roubava e matava (REDONDO; VIEIRA, 1930, p. 13) Apesar de a justiça condenar Diogo Alves à forca6 e de a população ter-se horrorizado com seus crimes, a visão concebida em torno da amante do bandido é ainda mais avassaladora, sendo ela tida como a “musa inspiradora” do criminoso, para a qual seus atos convergem. Essa culpabilidade atribuída à Parreirinha advém da formação machista e religiosa portuguesa e dos preceitos sob os quais eram qualificados a figura feminina no século XIX. O simples fato de ser mulher atrairia julgamentos duvidosos, como então qualificar uma mulher pobre, separada do marido e que trabalhava em uma tasca? A mesma leitura religiosa feita acerca da Parreirinha norteia também a própria iniciativa dos autores ao narrar os crimes praticados por Diogo Alves. O objetivo explicitado nos textos é 6 Diogo Alves é considerado o último condenado à forca em Portugal. Sua execução se deu em fevereiro de 1841 (no mesmo dia também foi enforcado Antonio Martins, um dos membros de sua quadrilha). Sua cabeça foi guardada com intenção de análises criminológicas que revelassem seu pendor ao crime. Hoje pertence à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Apesar de ser popularmente veiculado a informação de que ele foi o último condenado a forca, há uma afirmação na biografia romanceada de Leite Bastos dizendo que Francisco de Matos Lobo, o mesmo bandido que tem a “conversação noturna” com Diogo Alves, foi executado no Algarve, na cidade de Lagos, em 1846 (BASTOS, 2006, p. 223). Assim, o dado controverso é provavelmente oriundo da tradição oral, que considera o bandido galego como sendo último enforcado, fato que também acaba sendo uma estratégia para a memorização e transmissão de sua lenda. 274 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 demonstrar o fim trágico do homem que escolhe viver uma vida de vícios, de vadiagem e de crimes. A questão moral e de cunho condenatório perpassa todos esses textos populares e também é o fio condutor do romance biográfico publicado por Leite Bastos Os crimes de Diogo Alves (1877). Para que se tenha uma visão mais ampla do estilo narrativo dessas obras, segue abaixo a introdução do folheto Vida, e Morte de Diogo Alves: Não somente os homens insignes por virtudes, armas, e letras devem ser immortalisados pela historia, mas tambem aquelles que se fizerão celebres por seus crimes, porque de huns e outros sempre se tiraa resultado; os homens bons devem ser o modelo de nossas acções, assim como os perversos, o exemplo que nos faça abominar o caminho do crime. Parece que em nosso tempo não poderia apparecer hum homem, que com seu desordenado modo de vida, e desgraçado fim melhor imposesse hum freio á quasi geral abominação, que vemos grassar infelizmente em nosso paiz; nós sempre desejosos do melhor bem da nossa Patria, julgamos a preposito escrever a vida deste homem, que à poucos dias no patíbulo soffreu o castigo de seus crimes, para que a mocidade fuja como de viboras, de toda a má companhia, e deteste o amor do ócio, como origem de todos os males, e considere as paixões, como implacáveis inimigos, que dentro de seu coração nutre. Por isso deixando longas reflexões, que não serião inuteis, passaremos a narrar a vida de Diogo Alves, e seus horrendos crimes (BASTOS, 1841, p. 3). Desse modo, a série de crimes praticados por Diogo Alves, bem como a pena capital que lhe imputaram, foi representada e concebida nessa literatura de acordo com uma doutrina moralista com o intuito de mostrar, principalmente aos mais jovens, o fim cruel que pode ter um homem que opta pelas más companhias e pela “vida fácil” de ladrão. É interessante pensar na recepção desses folhetos, cuja “fórmula editorial” pretendia alcançar leitores variados, dentre os quais se incluíam, majoritariamente, pessoas de baixa condição social7. Nesse sentido, possivelmente a publicação dessa literatura, mais particularmente nesse caso, estava condicionada por um objetivo educativo e moralizante visando não só conter, indiretamente, a criminalidade na cidade de Lisboa, como também guiava-se por principios iluministas pautados na ideia de formação moral do cidadão8. Essa perspectiva, também relacionada aos índices de criminalidade da capital portuguesa no período, é ressaltada no romance de Leite Bastos, Os crimes de Diogo Alves, única obra que 7 Por tratar-se de folhetos populares, deve-se considerar a veiculação oral das histórias. Essa forma de transmissão era primordial, uma vez que era alta a taxa de analfabetismo, abarcando cerca de 80% da população portuguesa (CORREIA, Luís Grosso. Centenário da República: O ensino primário na primeira república – O homem vale, sobretudo, pela educação que possui. In.: Revista Seara Nova, n. 1713, 2010. Disponível em www.searanova.publ.pt/pt/1713/dossier/163). Acessado em 19/03/2014. 8 É importante destacar que nesse período há certa preocupação em relação à formação plena (moral, educacional) do cidadão devido à constituição do Estado-nação (BAUMAN, 2013, 7 - 21). 275 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 apresenta o contexto histórico social vivido pelo personagem, incluindo uma análise minuciosa do bandoleiro, embora também não se esquive do objetivo de “instruir para o bem” (BASTOS, 2006, p. 23): A calçada do Duque era então sítio mal afamado, que as pessoas decentes evitavam. As ruas da Condessa e dos Galegos, até ao pátio do marquês de Penalva, coito de vadios e das mulheres de má nota, formavam como que um bairro à parte da cidade, onde a acção da polícia se não atrevia a penetrar. Na calçada do Duque, à direita, como quem vai para S. Roque, havia um taberninha que comunicava com o pátio do marquês, conhecida pela tasca da Joaquina do Forno, na qual a ronda chuchadeira nem ousava a meter o nariz. Ali cantava-se, bebia-se e bailava-se o fandango, o solo inglês e o fado, a toda a hora do dia e da noite, ao mesmo tempo em que se jogava e esfaqueava qualquer freguês que não se conformasse muito bem com o ajuste das contas. A orgia era permanente. Aquele labirinto de becos e casinhotos do pátio que se estende até à rua do Príncipe e é limitado pela frondosa mata, foi teatro de crimes e violências de toda a ordem. Quem iria pedir ali ao assassino contas da vida de um homem?! A política absorvia todas as atenções. A vida e a bolsa do cidadão estavam à mercê da população nómada que enxameava nas tabernas e vivia da pilhagem e do crime. (…) Mas, não só a cidade estava infestada de ladrões. Este mal estendia-se por toda a Estremadura. A Beira, o Minho e Trás-os-Montes tinham à mercê deles os seus campos, as suas aldeias, as suas vilas e a suas cidades (BASTOS, 2006, p. 37-38). A descrição de Leite Bastos é bastante detalhada ao apontar os lugares que normalmente eram considerados como sendo frequentados por bandoleiros. O fragmento mostra a negligência das autoridades competentes em sanar esses problemas sociais. No período, a cidade de Lisboa enfrentava uma tensão relacionada ao crime em razão de uma grave crise econômica, de um pequeno crescimento urbano e devido ao descaso do governo mais preocupado com as constantes revoltas e guerrilhas que despontavam no campo (Revolta dos Marechais, Guerrilha do Remexido, etc.). Ademais, em Lisboa, a política governamental privilegiava os nobres e a nascente burguesia, deixando a população, em geral, marginalizada. Ao entrar no mundo do crime, Diogo Alves se tornou chefe de bando. Seu primeiro alvo, como já foi dito, foi realizar assaltos no Aqueduto das Águas Livres. Há alguns autores que dizem que os crimes do aqueduto foram praticados apenas por ele. Duas narrativas fílmicas existentes sobre o personagem, a primeira de 1909 (inacabada) e a segunda de 1911 - ambas intituladas Os crimes de Diogo Alves - representam o personagem e seu bando agindo 276 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 conjuntamente no aqueduto9. Logo, não há um consenso entre as várias representações literárias e fílmicas. No filme de 1911, nas cenas em que Diogo joga as vítimas do aqueduto, sempre há uma comemoração feliz do personagem com pulos e urros de alegria. Essa representação do bandido como alguém que se comprazia no crime também aparece nos folhetos, embora com menor fulgor. As pessoas que por ali passavam, na grande maioria, eram pobres comerciantes e lavradores que iam vender suas produções na cidade. Após a queda, a vítima ficava irreconhecível, não sendo possível saber se havia sofrido qualquer agressão física. Essa característica e o fato de haver vigilância nas entradas da galeria fizeram as autoridades supor que se tratava de uma onda de suicídios. Os jornais apenas noticiavam as sequentes mortes em notas de rodapés, sem dar grande importância ao assunto, às vezes com o subtítulo “Notas Diversas” (MOUTINHO apud BASTOS, 2006, p.15). No folheto História verdadeira e completa do célebre ladrão e assassino Diogo Alves da “Coleção Histórias Populares Portuguezas”, o autor menciona um diálogo que representa a crença popular a respeito do que ocorria no Aqueduto das Águas livres: D’uma vez o Carioca juntára-se com alguns amigos e como se demorasse mais do que tencionava, resolveu tomar o caminho de Bemfica pelo aqueducto, e assim o comunicou aos companheiros que tentaram dissuadil-o, lembrando-lhe que parecia estar excomungado aquelle caminho pois quem o transitava era acommettido do desejo de pôr termo á existência. (ANÔNIMO, 19--, p. 7) O personagem Carioca não ouviu seus companheiros por acreditar que se tratava de crendices e fez o caminho como havia pensado. No dia seguinte foi encontrado morto no leito da ribeira de Alcântara, debaixo do Arco Grande. Devido a grande quantidade de mortes que ocorreram no aqueduto, o governo fechou a passagem, desse modo, Diogo Alves foi obrigado a encontrar outros meios de continuar seus roubos. Em Os crimes de Diogo Alves, da coleção “Os grandes criminosos”, há menção a um assalto singular, no qual Diogo não conseguiu matar a vítima: Um dia porém veio a conhecer-se o autor de tantos crimes: foi o caso que um outro creado da infanta quando ia receber as soldadas encontrou no caminho dos arcos Diogo 9 Segundo os relatos, a quadrilha de Diogo Alves era composta por Beiço Rachado (Manuel Joaquim da Silva, soldado), o Enterrador (João das Pedras, galego), o Pé de dança (José Candido Coelho, galego), Antônio Palhares (soldado), Antônio Martins (caixeiro, galego), a Parreirinha (Gertrudes Maria, amante), José Manoel Lopes (guarda barreira, galego), Cosme de Araujo (galego), entre outros citados pelos autores, a maioria galegos. 277 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Alves que lhe perguntou para onde ia, ao que elle respondeu informando-o do fim a que ia. A’ volta Diogo Alves que esperára por elle saindo-lhe ao encontro de faca em punho ordenou ao creado que lhe entregasse o dinheiro. Motejou com o servo da infanta e dispunha-se a vir-se embora quando reconhecendo os intuitos de Diogo Alves levou a mão á algibeira na intenção de tirar de lá o dinheiro que consigo trazia mas puchando para o facínora uma pistola o que o deixou aterrado. Aos gritos do creado acudiu logo gente mas Diogo Alves teve ainda tempo de fugir conseguindo safar-se por umas terras. Assim acabou a parte mais trágica da vida d’este facínora passada sobre estes arcos e que apenas existe na voz do povo. (ANÔNIMO, 1922, p. 6) Essa referência aparece em algumas das obras e em ambos os filmes, no entanto, se foi um episódio verídico não há como saber, mas o fato é que possivelmente a polícia já possuía pistas para investigar o caso, o que não foi feito, visto que, até então, não havia interesse por parte do governo em descobrir o criminoso. Muitas foram as pessoas assaltadas e mortas por Diogo Alves, e são também muitas as histórias que se contaram acerca de cada vítima. Entretanto, o desinteresse resultava da própria marginalidade daqueles que transitavam pelo “caminho dos arcos”. Qual seria a relevância de uma investigação que pretenderia prender um ladrão e assassino de pessoas pobres? Apesar da vultuosidade dos crimes do aqueduto, essa fase de Diogo Alves e de sua quadrilha é referida nos folhetos como sendo menor em relação ao crime que se sucedeu. Ignorado os crimes do aqueduto, Diogo e seu bando foram julgados e condenados apenas pelo crime da Rua das Flores que ocorreu depois de haverem fechado o “caminho dos arcos”. Em razão da importância e consequência desse crime para o desfecho da vida do personagem, é necessário um pequeno resumo. A quadrilha comandada por Diogo Alves reuniu-se por diversas vezes para planejar o atentado contra o Dr. Andrade. Receberam a ajuda de um criado da casa, o Manuel Alves, que facilitou a entrada dos bandidos. O criado Manuel foi impelido para o grupo pelo primo, um caixeiro de uma taberna que também fazia parte da quadrilha. Na noite do crime, o Dr. Andrade não estava na casa, apenas uma senhora viúva10 com suas duas filhas e um filho, José Elias 10 Algumas obras afirmam ser essa senhora uma parenta do Dr. Andrade, viúva de seu irmão, outras mencionam que era apenas uma senhora cuja família o médico sentiu “compaixão” e acolheu. 278 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Correia Mourão11, que visitava a família, visto que estudava em Coimbra. Os bandidos mataram as vítimas por estrangulamento e, em seguida, recolheram o dinheiro e os objetos de interesse. Os autores que narram o episódio afirmam que foi homicídio seguido de roubo em razão da prática criminosa de Diogo Alves de não deixar testemunhas. É imprescindível comentar que esse roubo causou um imenso prejuízo ao médico, motivo que levou os autores dos folhetos a qualificá-lo como “maior” comparado aos do aqueduto12. Esse crime chocou os lisboetas e foi largamente noticiado por tratar-se de uma família ilustre. O grande alvoroço causado fez com que a polícia ficasse determinada a encontrar os assassinos e, assim, esse foi o único crime cometido por Diogo Alves e por seu bando que foi devidamente investigado, com ressalvas a uma pequena referência ao assalto cometido contra uma estanqueira (dona de uma tabacaria) que testemunhou contra o bandido no julgamento. Através da pista deixada pelo criado Manuel Alves (dado como desaparecido), que se arrependeu amargamente e, por isso, foi assassinado por Diogo e seu bando, a polícia chegou aos culpados. Todos receberam sua pena: Diogo Alves, Antônio Martins, Palhares e Beiço Rachado foram condenados à pena de morte, outros membros do grupo e a Parreirinha foram condenados ao degredo perpétuo em colônias africanas. Dentre as testemunhas estavam a estanqueira que foi roubada pela quadrilha e a filha de onze anos da Parreirinha, a qual as obras dizem que a mãe mandou Diogo matar porque talvez tivesse ouvido e visto a morte do criado Manuel Alves e era, assim, testemunha ocular dos planos encetados pelo bando. Diogo se recusou a matar a menina afirmando que esta de nada sabia porque estava dormindo. Um dos crimes de Diogo que ficou marcado na tradição oral de Lisboa (inclusive referido 11 Em nenhuma das obras aparece o nome das mulheres vítimas dessa assalto, apenas o nome do filho. Nota-se nessa ausência, principalmente do nome da mãe, o mesmo descaso em relação à representação da mulher na sociedade do período. 12 O crime é medido pelos autores como sendo maior por tratar-se de uma família ilustre. Em Os crimes de Diogo Alves e da sua quadrilha, o autor refere-se ao crime da Rua das Flores como “o maior de todos de Diogo Alves, pela avultada importancia do seu roubo, (…), foi todavia d'uma altissima importancia para a policia não só pelo facto do bom nome da familia atingida, pelo golpe audaz e certeiro do temivel faquista, como tambem pelos signaes evidentes de cumplicidade portas a dentro d'aquela casa e que serviriam de pista a ulteriores pesquizas levadas a efeito com grande sucesso caindo pouco tempo depois na alçada da justiça para apuramento de responsabilidades toda a quadrilha do famigerado assassino”(ANÔNIMO, 18?, p. 11). Vale também destacar que o médico Dr. Andrade, segundo as obras, não ofereceu à família morta um enterro digno, sendo todos enterrados em vala comum. Os variados autores conjecturam hipóteses para a “estranha” atitude do médico. Ao que parece, a negligente e cruel decisão do Dr. Andrade vem da tristeza maior em perder parte de sua fortuna. 279 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 pelo coorientador desse trabalho, J. J. Dias Marques, que se lembra de ter ouvido essa narrativa de sua avó, falecida em 1978) foi o homicídio que dizem que ele cometeu contra uma criança que jogou do aqueduto. No momento em que foi lançar a menina do arco, conta-se que esta sorriu para ele. A tradição diz que este foi o único crime do qual o temível bandoleiro se arrependeu. Esta história não se encontra nos folhetos publicados sobre os crimes de Diogo Alves, apenas no filme de 1911 há uma cena de Diogo jogando uma menina dos arcos e arrependendo-se em seguida. Com tal representação, a lenda ameniza, ou melhor humaniza, de certa forma, a imagem facinorosa que é veiculada a respeito do bandoleiro. Na história de Lisboa, Diogo Alves ficou profundamente ligado ao Aqueduto das Águas Livres, sendo mais lembrado em relação a esse monumento do que o nome dos próprios engenheiros, como afirma José Viale Moutinho no prefácio da obra de Leite Bastos. Em 2012, o bandido mereceu uma pequena menção em uma revista popular de Lisboa, Time Out, a qual, na semana em que se comemorava o dia de Halloween, publicou um número especial apresentando todos os lugares da cidade considerados como mal assombrados. Nessa edição, a lenda de Diogo Alves aparece acompanhada de uma foto de sua cabeça: Diogo Alves (1810 -1841), o famoso assassino em série que tirou a vida de pelo menos 70 pessoas, atirando-as do alto do Aqueduto das Águas Livres, constitui “um dos mais misteriosos casos da criminologia em Portugal”, na opinião de Francisco Moita Flores, escritor e ex-inspector da Polícia Judiciária. “Os jornais da época falavam de um monstro que habitava o aqueduto, de uma alma penada que existia em Lisboa, diziam que o diabo andava á solta”, afirma. “Foi um mistério que empolgou a cidade durante anos. Até se descobrir a verdade, atribuíam-se os crimes a causas sobrenaturais.” Diogo Alves foi o último condenado à morte em Portugal – por enforcamento. E aquilo que se acredita ser o seu crânio está hoje em exposição no Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. (Time Out Lisboa, 31out – 06 nov/2012, p. 20) O trecho apenas apresenta o bandido e menciona a aura misteriosa com que ficaram marcados os seus crimes, nunca investigados. A revista anuncia que se tratava de um número mínimo de setenta mortes, número assustador tendo em vista que tais homicídios foram realizados durante o período de seis meses. Essa informação, muito provavelmente falsa e imprecisa, busca perpetuar e intensificar a lenda criada em torno do bandoleiro e do aqueduto. A ideia de ser algo sobrenatural que fazia com que as pessoas que passassem pelo Caminho dos Arcos fossem acometidas de uma vontade insana de se atirar de lá, foi, presumivelmente, uma explicação popular para um mistério que rondava a cidade e a estarrecia com acontecimentos que se tornaram recorrentes e desconhecidos, e que, de fato, nunca foram plenamente esclarecidos. 280 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Uma análise minuciosa acerca do personagem Diogo Alves vai além de uma leitura superficial dos relatos literários, da biografia e dos filmes realizados sobre ele. Esse bandido requer um profundo estudo histórico acerca da época em que viveu, um estudo que lance luz em muitos pontos ocultos que permeiam sua história, a começar pelas condições de vida a que eram submetidos os galegos que iam para Portugal a procura de melhores oportunidades e eram os únicos que se sujeitavam às profissões braçais. As obras existentes sobre esse bandido possibilitam compreender muito do momento histórico, e principalmente do pensamento da época, visto que as narrativas estão repletas de preconceitos não só contra os galegos, que eram muitos, mas também em relação às mulheres, pelo fato de haver um consenso entre os autores de que a culpa da “perdição” de Diogo Alves estava em seu relacionamento com a Parreirinha. Em todas as obras ela é a “Eva” que oferece o “fruto” proibido a “Adão”. Os folhetos e as obras literárias sobre Diogo possuem um objetivo comum: pretendem mostrar o fim trágico que pode ter uma pessoa que se deixa influenciar por “más companhias”, decindo sair do “caminho do bem” a fim de gozar de uma “vida fácil” e aventurosa de bandido. As representações literárias partem de um discurso que, na maioria das vezes, veicula apenas um dos lados que envolvem a questão. Quando é mencionada a negligência policial e governamental, essa vem expressa com sutileza, quase ofuscada pelo objetivo maior da narrativa: formar cidadãos decididos a afastar-se do mau caminho. A história de Diogo Alves está cheia de lacunas que não podem ser respondidas com análises contemporâneas que partem de uma metodologia criminal comum ao século XIX. Os motivos que levaram esse bandido a cometer tais atrocidade ficaram perdidos no tempo e espaço devido a uma iniciativa política e policial que importava mais em exterminar o agente do mal sem compreender as razões que o originaram. Os crimes perpetrados por Diogo Alves, cuja personalidade foi qualificada de fria, calculista e insana, podem ter sido frutos de um problema histórico social, existencial, psicológico ou mesmo oriundos de uma revolta pessoal contra sua condição marginalizada. Todavia, seu julgamento e sentença, tão rapidamente atribuídos, denunciam o completo descaso em que estava a população nas mãos de um Estado mais interessado em punir. Diante dessas questões e da significativa produção literária sobre Diogo Alves, que além 281 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 de entreter, possuía objetivos educativos e moralizantes, conclui-se que a emergência do tema nessa literatura popular tinha também uma função paliativa que se aliava a um discurso religioso na tentativa de conter a crescente criminalidade. Para tanto, a figura de um imigrante galego que era tido como honesto e trabalhador e que se deixa levar pela “vida fácil” e aventurosa de ladrão, sendo ao cabo julgado e condenado a forca, serve como um excelente caso para exemplificação. A lenda criada em torno de Diogo Alves é uma matéria bastante profícua para a literatura de aventuras13, como bem aponta Moutinho no prefácio da biografia de Diogo Alves, no entanto, é imprescindível que ela seja considerada a partir de um ponto de vista crítico em relação ao contexto histórico, social e cultural da época em que surgiu. Nesse sentido, a reconstrução da linguagem dos bandoleiros e da paisagem urbana de Lisboa no período, representada em Os crimes de Diogo Alves, somada às informações presentes nos relatos existentes nos folhetos, dão a dimensão da representação popular do personagem em diversos momentos, fornecendo conteúdo para uma compreensão do seu significado social, bem como para reflexões literárias envolvendo a narrativa oral e popular. Referências ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1999. ANÔNIMO. História e vida de Diogo Alves e da sua quadrilha: narrativa verdadeira das façanhas do célebre bandido. Lisboa: Francisco Romero, [19--]. ____________. História verdadeira e completa do célebre ladrão e assassino Diogo Alves. Coleção: Histórias populares portuguesas. [S.l. : s.n., 19--]. ____________. Os crimes de Diogo Alves e da sua quadrilha. Coleção: Os grande criminosos. Lisboa: Liv. Barateira, 1930. BASTOS, Francisco António Martins. Vida e Morte de Diogo Alves. Lisboa: na Typ. de F.C.A, 1841. BASTOS, Leite. Os crimes de Diogo Alves. Porto: Esfera do Caos, 2006. BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BELO, Redondo; VIEIRA, Tomé. Crimes e criminosos célebres: Diogo Alves e sua quadrilha. Lisboa: Guimarães, 1930. CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora UNESP, 2004. CORREIA, Luís Grosso. Centenário da República: O ensino primário na primeira república – O 13 Esse ano, 2014, foi lançada mais uma obra sobre Diogo Alves intitulada O assassino do aqueduto, de Anabela Natário, que não pode ser incluída nesse artigo por ser uma produção bastante recente. 282 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 homem vale, sobretudo, ela educação que possui. In.: Revista Seara Nova, N. 1713, 2010. Disponível em www.searanova.publ.pt/pt/1713/dossier/163. Acessado em 19/03/2014 JUSTO, Carlos Pazos. “A imagem da Galiza e dos galegos em Portugal entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX: do imagotipo negativo ao imagotipo de afinidade”. In.: VEREDAS 16. (Santiago de Compostela, 2011), pp. 39-70 P, A. J.. Conversação nocturna que teve o reu Francisco Mattos Lobo, com a sombra de Diogo Alves. Lisboa: Typ. de F. C. A.. 1841. TERRAS, Antônio Manoel. O supplicio de Diogo Alves: canto funebre... Lisboa: Typ. De Mathias José Marques da Silva, 1841. VARATOJO, Artur. Diogo Alves e os crimes do aqueduto. Lisboa: Correio da Manhã, 2003. Revistas Time Out Lisboa. 31 outubro a 6 de novembro 2012. Nº 266. Filmes Os crimes de Diogo Alves. 1909. Lisboa. Direção: Lino Correia. (inacabado) Os crimes de Diogo Alves. 1911. Lisboa. Direção: João Tavares. (curta metragem) 283 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 CLARICE LISPECTOR: ORALIDADE, FABULAÇÃO E RECRIAÇÃO EM DOZE LENDAS BRASILEIRAS – COMO NASCERAM AS ESTRELAS - DOZE LENDAS BRASILEIRAS CLARICE LISPECTOR: ORALITY, FABULAÇÃO AND REBUILDING IN TWELVE BRAZILIAN LEGENDS – HOW WERE BORN THE STARS Samuel Frison1 Resumo: o presente artigo investiga as marcas da oralidade presentes na literatura infantojuvenil de Clarice Lispector. Recupera historicamente a recriação das fábulas contidas no livro Doze Lendas Brasileiras, publicado em forma de calendário no ano de 1977, e posteriormente lançado em forma de livros infantis com reedições até a contemporaneidade. Resgata a face contadora de histórias da escritora, sua capacidade de fabulação e ligação afetiva com o leitor mirim, bem como inúmeras confluências culturais na recriação de histórias conhecidas do nosso folclore. Palavras-chave: literatura oral, literatura infanto-juvenil, infância. Abstract: this paper investigates the marks of orality in children´s literature of Clarice Lispector. Retrieves historically recreating the fables in the book Twelve Brazilian Legends, published in form of calendar year 1977, and later released in the form of children's books with reissues until nowadays. Rescues the face of the storyteller writer, his ability to confabulation and emotional connection with the reader mirim, as well as numerous cultural confluences in the recreation of known stories of our folklore. Keywords: oral literature, children´s literature, childhood. “Antes de aprender a ler e a escrever eu já fabulava” (Clarice Lispector) “Que mistérios tem Clarice” (Caetano Veloso/Capinam) Introdução No início de 1977, ano de seu falecimento, Clarice Lispector passava por uma de suas muitas crises financeiras. A fábrica de brinquedos Estrela, líder de vendas para crianças à época, pediu à escritora que organizasse o texto de um calendário, contendo doze pequenas 1 Doutorando em Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: sfrison@terra.com.br 284 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 histórias que retratassem a cultura de cada região do país. O calendário seria distribuído junto às vendas. Devido ao período de necessidades em que se encontrava, ela decidiu aceitar a proposta, apesar de suspeitar da qualidade final do trabalho, uma característica comum sua a cada finalização de um projeto pessoal. Escreveu, certa vez, em uma de suas crônicas publicadas no jornal do Brasil, quando de sua projeção nacional sobre o paradoxo: “O anonimato é como um sonho. Estou precisando desse sonho. Aliás, eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro.” (2010, p. 133) O livro que se tem em mãos hoje, chamado Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras é a reunião daquelas histórias, organizada em forma de publicação, com ilustrações realizadas por Fernando Lopes, da Rocco Editores. Foi lançado posteriormente à morte da escritora, em 1987. Antes disso era possível encontrar muitas dessas histórias espalhadas por uma infinidade de livros didáticos do Brasil, dada sua relevância, tanto estilística quanto cultural. São doze pequenos contos dedicados a cada mês do ano, cujo cenário é a diversidade regional brasileira. Seus personagens são principalmente bichos – universo fascinante para Clarice - e indígenas representativos de várias tribos como guaranis, curumins, maués. Também estão presentes à coletânea protagonistas como o homem sertanejo, com uma releitura de Pedro Malasarte, e o gaúcho, através da lenda do Negrinho do Pastoreio. Como define Nádia Gotlib, “a escritora procura criar um universo com elementos da cultura popular, no sentido de ser fiel ao clima bem brasileiro.” (2009, p. 555) Todas as histórias que recontadas nesta publicação nasceram da tradição oral. Foram coletadas e rescritas a partir da pesquisa da própria autora e do contato que teve com amigos como Érico e Mafalda Veríssimo, à época que Érico despontava com escritor. Quando morou em Washington, Estados Unidos, o casal conviveu muito com Clarice e os filhos. A partir daí, a amizade entre eles tornou-se significativa. A inclusão de O Negrinho do Pastoreio em Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras justifica-se também por essa amizade. À época de lançamento do calendário o escritor gaúcho já havia falecido, mas a ligação de Clarice com Mafalda permaneceu. As outras histórias presentes ao livro são resquícios do contato de Clarice com a literatura de Monteiro Lobato e de outros escritores regionais, desde quando freqüentava a escola primária em Recife. Também recordações de uma infância povoada de histórias. 285 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Maria Inês Almeida e Sônia Queirós, em Na captura da Voz (2004), compreendem as coletâneas de contos orais de quatro maneiras: coletas, compilações, recriações e traduções. Para as autoras há uma diferenciação na forma de entender as coletâneas de contos orais na sua organização, bem como na natureza e nas intenções que levaram a sua publicação. Essa classificação torna-se um pouco problemática, tendo em vista o trabalho que Clarice teve para organizar os contos. Almeida e Queirós classificam as coletas como “coletâneas de narrativas orais populares resultantes de pesquisa de campo (....), visando ao deleite do leitor, especialmente o público infantil escolar”. (2004, p. 130). Nesse sentido, percebe-se a intenção primeira de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras: atender ao público consumidor de brinquedos. Posteriormente, ao se transformarem em conteúdo de livros didáticos, as narrativas atendem a outra demanda dentro do universo escolar em sua pretensa formação dos leitores infanto-juvenis. Ainda defendendo a ideia da transcriação e de adaptação que mantém como traço característico certo estilo autoral, as autoras circunscrevem a noção de compilação, ou seja, “coletâneas de narrativas orais já anteriormente escritas e publicadas por outros autores, reunidas numa nova organização.” (2004, p. 130). A obra de Clarice também atende a essa classificação, uma vez que é possível ver histórias como A perigosa Yara, O pássaro da sorte – que conta a lenda do Uirapuru - Do que eu tenho medo – a história do Saci-Pererê – entre outros, na escrita de outros autores como Ricardo Azevedo e Monteiro Lobato. Também a ideia de recriação perpassa a antologia clariceana, uma vez que está presente à forma das narrativas o estilo da escritora ligado ao questionamento existencial, ou seja, as provocações da vida como um grande mistério ainda a ser desvelado, traço característico de sua escrita. Talvez a ideia de recriação defendida por Almeida e Queirós é a que mais se adapte ao enquadre de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras. Isso decorre do fato de as recriações caracterizarem-se como coletâneas de narrativas “inspiradas na tradição oral, mas escritas já à distância da performance”, uma vez que os escritores as recriam com a ajuda da memória, relembrando situações ou fatos marcantes da infância, sem que haja uma “recolha sistemática do texto oral” (2004, p.131). Aqui a noção de memória, recordação – recordare – passar pelo coração novamente, na acepção da palavra – ganha uma conotação afetiva da alma clariceana. Retoma as memórias do Recife antigo, um tema recorrente às suas 286 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 crônicas e contos, cujo tema da infância se apresenta em A Legião Estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971) e a Descoberta do Mundo (1984) escritas para o público dito adulto. A adoração por animais e crianças é evidenciada tanto nas memórias da infância pobre, como também em suas obras infanto-juvenis. Como assinala Benjamin Moser na biografia Clarice : À medida que ficava mais velha e cada vez mais nostálgica da infância, sua ligação com os animais foi se fortalecendo, e eles passaram a desempenhar um papel cada vez mais importante em sua escrita. (2011, p. 564) A ligação da escritora com Lobato também evidencia o tom da narrativa nas lendas descritas, dada a forte ligação com o escritor de Reinações de Narizinho que aparece em Felicidade Clandestina (1971). Também nas primeiras leituras, como repara Gotlib (2009, p.109). “A menina mergulha assim nas aventuras de um mundo de fantasia, cm viagens ao fundo do mar, ao reino das Águas Claras, ao reino das Abelhas e aos vários países do Mundo das Maravilhas.” A pesquisadora vê nessa ligação entre a menina Clarice o Lobato certa vocação ao ato de contar histórias, fato que vai acentuar sua característica como fabuladora. Porém, as dificuldades da vida adulta empurram Clarice para uma progressiva mudez e introspecção, afastando-a da palavra oral para a solidão da escrita. Permanece então a contadora de histórias doméstica, a mãe afetiva e dedicada. Como coleta, compilação e recriação simultaneamente, Como Nasceram as Estrelas Doze Lendas Brasileiras adere ainda o conceito tratado por Ana Lúcia Liberato Tettamanzy no ensaio De Palmeiras e Colibris ou como a Voz Guarani vem se tornando letra (2010). O referido texto referenda o caráter que as narrativas orais quando transcritas adquirirem com o papel de textos divulgadores na cultura. Para a autora, esses textos, provindos de uma tradição ao se propor retratar cultura indígena, obtêm um traço diferenciado quando organizados para fins paradidáticos. No entanto, o problema da autoria que acarretam nos remete a um problema discutido pelos estudos pós-estruturalistas que tratam do conceito de “origem” de tais histórias, sua permanência e disseminação em outras culturas. No caso de Clarice, uma escritora russa, naturalizada brasileira, que morou em vários países da Europa e nos Estados Unidos, a marca dessa hibridização cultural se faz presente no processo de recriação, algo que pode ser presenciado em contos como Curupira, o danadinho, personagem que ilustra a história do mês de Julho. 287 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Na narrativa, com um estilo muito pessoal, Clarice descreve o Curupira como sendo esquisito como um “ser feio que nem o Tinhoso e peludo que nem um urso, mas pequeno.” (1987, p. 32) Mesclando humor e ironia, continua a descrever as peraltices do pequeno ser, de pés voltados para trás, como defensor das matas e dos animais – uma espécie de alter-ego da escritora: “Que ser misterioso, também sábio: conhece, ao olhar apenas, as plantas que curam doença de bicho” (1987, p. 32). No entanto, o diálogo de culturas é visível na recriação da autora, principalmente ao final da caracterização curupira, quando ela o compara a um “gnomo-monstro”, personagem símbolo do folclore escandinavo. Também sabe se vingar dos índios que, com flechas, ferem um bicho indefeso. Então o Curupira o atrai para caminhos sem fim e eis o caçador enganado, tonto e perdido. É verdade que pede antes a um caçador que não mate animais dos que vivem em grupo, porque o grupo ficará com saudade deles. Mas, ai de nós se o índio não cede! Não tem perdão do Curupira. Espalha fogo e quase deixa o índio bem assado. Os caçadores temem este espécie de gnomo-monstro e suas vinganças. (1987, p.33) Oralidade em Clarice Hermética era um adjetivo que incomodava Clarice Lispector, uma vez que reforçava sua vocação de mito difícil, algo que desdenhara desde sempre. Em 1967, ela venceu o prêmio nacional de Literatura Infantil com o seu primeiro livro dedicado às crianças, O mistério do Coelho Pensante. Aproveitou a ocasião para desconstruir o título de escritora inalcançável que insistiam em lhe impingir. Em uma de suas crônicas no jornal do Brasil que seriam reeditadas postumamente em A descoberta do Mundo (1984) agradece o reconhecimento dos leitores mirins e ironiza: Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando escrevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para os adultos fico difícil? (2010, p. 79). Se as primeiras obras foram inevitavelmente comparadas pelo estilo a escritores como Hermann Hesse e Virgínia Woolf, dada a presença do fluxo de consciência narrativo, similar em que, muitas vezes, a existência do discurso indireto-livre apaga os limites da voz entre narradores e personagens, o mesmo não se pode afirmar das narrativas dedicadas à literatura infanto-juvenil da autora. Há nelas a predominância do tom maternal, da voz onisciente e das marcas da oralidade muito frequentes ao gênero. 288 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 A oposição oralidade/escrita tem suscitado muitas discussões nos mais variados segmentos, contemplando estudos linguísticos, literários, históricos e sociais, com toda a problemática que pode acarretar essa dualidade tanto no estudo isolado como no diálogo entre as referidas áreas. Encontra-se nos estudos culturais também um espaço para articulações profícuas de caráter multidisciplinares para discussões dessa ordem, como afirma Frederico Fernandes em A Voz e o Sentido: « Pensar o texto literário a partir de uma abordagem discursiva corresponde extrapolar a discussão em torno dos períodos, gêneros e autores para colocá-los frente a frente com outras disciplinas ». (2007, p. 31). Dessa maneira não cabe polarizar essas linhas de pensamentos, mas justificar as hipóteses que fundamentam esse artigo. Assim prioriza-se uma visão sociointeracionista da linguagem, não tomando a oralidade como oposição à escrita, mas sim percebendo a sua vocação para o dialogismo, à dinâmica de interpenetrações, à sua interação de seus elementos na comunicabilidade. Assume-se ao invés de uma postura multidisciplinar, aquilo que Antoni Zabala, no livro Enfoque Globalizador e Pensamento Complexo (2002), define como transdisciplinar. Essa perspectiva crítica utiliza-se de variadas áreas do conhecimento para explicar um fenômeno que se dá no social, premissa básica para entender a abordagem sociointeracional do fenômeno da linguagem enquanto discurso no literário e em sua função performática. A partir dessa visão dialógica entre a fala e a escrita, pode-se perceber no texto clariceano de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras sua vocação para a contação de histórias. Isso se dá através de alguns elementos próprios da fala, outros da escrita, presentes ao texto que não se anulam, mas se complementam de forma interdependente. Uma das características dessa visão interacional é aquela que descarta a escrita como representação da fala. A ideia de representação nos remete a distanciamentos da origem, problematização comum dos estudos pós-estruturalistas desencadeados por Jacques Derrida em A Escritura e a Diferença (1967) e outros2. O filósofo do desconstrutivismo esboçou 2 Pós-estruturalismo entendido como o movimento desarticulador da estruturalidade da estrutura da linguagem, que questiona as ideias organizacionais do pensamento calcadas sob a pretensa noção de verdade calcada no logos da linguagem. 289 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 principalmente suas teorias a partir da visão fonocêntrica de Ferdinand de Saussure 3 sobre a distinção entre língua e fala, oposições que carregam uma visão logocêntrica articulada na linguagem. Para Derrida, a ideia de representação sempre carrega uma conotação de “menor”, de “falha”, de “faltas e ausências”, quando relacionada ao seu original. Quando se toma a distinção de oralidade oposta à escrita, se reduz a relação a dois pólos cujo centro de verdade esvazia a reciprocidade. Então um será sempre ausente e falho em relação ao outro. Reside na questão sobre o pensamento logocêntrico um dos principais questionamentos da crítica que envolve as teorias do gênero, da tradução, das literaturas periféricas, do questionamento do cânone, das poéticas da oralidade entre outros. Segundo Luiz Antonio Marcuschi, na obra Da fala para a escrita (2010), um dos problemas centrais da situação, ao colocar a escrita como representação da oralidade, situa-se principalmente na: ....impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguísticos diversos, de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da língua. São, portanto, realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista semiológico podem ter peculiaridades com diferenças acentuadas, de tal modo de que a escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização multissistêmica (palavras, gestos, mímicas) e os textos escritos também não se circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, ideogramas, por exemplo,os ícones do computador, e grafismos de todos os tipos). Fique, pois, claro que não postulamos uma simetria de representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações estritamente lingüísticas. (2010, p. 47) O pensamento de Mikhail Bakhtin em Estética da Criação Verbal (1992) sobre os gêneros do discurso é importante para se pensar a relação dialógica que existe entre enunciados, seus produtores e receptores dentro de uma perspectiva interacionista. Se antes havia por parte dos formalistas russos um entendimento da produção de discurso centrado na figura do emissor, Bakhtin dá uma nova dimensionalidade à compreensão dos sistemas comunicativos, atribuindo importância significativa aos enunciados em sua recepção no outro através do fluxo verbal. Cabe lembrar que o autor refere-se aos usos da língua como discurso e não propriamente como um sistema. O que ele reitera é a ideia de influência a que estão submetidos os gêneros orais e os gêneros escritos, o que mais tarde vem a ser chamado pelos 3 Ver A Estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1967. 290 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 estudiosos da língua como intergenerecidade4. Nessa perspectiva, tanto os gêneros orais são assimilados pelos escritos como o inverso, residindo no fato importante justificativa para expor a interação entre as formas orais e escritas como constituições híbridas que se retroalimentam numa progressão contínua e infinita. Pontuar essas interações no texto clariceano de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras é perceber a presença de elementos nos enunciados que, embora estejam na forma escrita nos remetem à fala, mais precisamente à contação de histórias enquanto gênero do discurso. Essas marcas da oralidade se apresentam principalmente em forma de categorização metaenunciativas,5 ou seja, comentários do próprio autor que interrompe o fluxo para tecer considerações, algo bastante comum à oralidade, uma vez que nessa estrutura do discurso a coerência pode ser restabelecida pelo faltante de forma mais imediata pela evocação do interlocutor. Outra forte presença da oralidade no texto infanto-juvenil clariceano são as catáforas que antecipam o que vai ser contado, recurso utilizado de forma muito freqüente pelos contadores de histórias, dada a necessidade de chamar atenção sobre o conteúdo a ser oralizado. A proximidade dessa enunciação na obra de Clarice Lispector nos revela a forma como suas histórias para crianças e jovens nasceram, ou seja, na relação da figura mãe com seus filhos. O Mistério do Coelho Pensante (1967) foi originado, segundo a própria autora, a partir de uma ordem do filho Paulo, quando moravam em Washington, à época que escrevia Maçã no Escuro (1961). O enredo da história parte de uma experiência da própria mãe e do filho quando estavam alimentando uns coelhos. Alguns dias depois, os animaizinhos misteriosamente desapareceram. Clarice repetiu a história oralmente para os filhos menores várias vezes e depois se rendeu a ordem de Paulo para que traduzisse a experiência em forma de escrita. “Então tirei o papel da máquina e escrevi a estória do coelho pensante que era real, que ele conhecia”. (Gotlib, 2009, p. 351). Findadas algumas laudas escritas, a mãe deu-as a uma babá para que contasse novamente a história, cumprindo assim sua obrigação e confirmando sua vocação para contadora de histórias. Mais tarde, em 1967, por sugestão de 4 Refiro-me aqui a Jean-Michel Adam na França e a Ingedore Koch e Luiz Antônio Marcuschi no Brasil. Todos eles influenciados pela teoria de Bakhtin. 5 São recursos metalingüísticos como comentários, advertências, declarações, promessas, reflexões, avaliações que interrompem o fluxo narrativo, chamando a atenção do leitor/ouvinte, conforme Kock e Elias (2006) 291 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 um editor de livros infantis, a escritora recuperou as laudas que ainda estavam escritas em inglês e verteu para o português a história, transformando-a em grande sucesso editorial. Não foi uma época fácil para Clarice, no entanto nunca deixou de responder e dar a devida atenção aos filhos. Também não foi sua primeira experiência com histórias infantis. Ela chegou a esboçar algumas ideias para sua sobrinha Márcia, em 1946, filha de Tânia Kauffmann, novamente como tia contadora. O tema da narrativa versava sobre a história de um menino que comia uma abóbora, cujo conteúdo tem outro menino que comia outra abóbora, e assim por diante. Esse ensaio da fabulação não chegou a se constituir como história escrita permanecendo na oralidade, ficando guardado o episódio na memória dos filhos de Clarice. A proximidade com seu público mirim revela o tom maternal de suas histórias infantojuvenis que se estenderam a todos os textos dedicados a essa faixa-etária, lugar em que as funções metaenunciativas e as catáforas se fazem presentes. Clarice sempre se deu bem com os pequenos, a quem considerava alegres, enquanto o adulto é triste: “Quando eu me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim. Aí é difícil.” 6 Os filhos Paulo e Pedro, a filha de seu psicanalista e amigo, Andréa Azulay, as crianças do orfanato que eram ajudadas por sua amiga, Olga Borelli, os filhos de Érico e Mafalda Veríssimo, seus sobrinhos, todos despertavam em Clarice um lado maternal que era alegre e triste ao mesmo tempo, dada a sua própria relação com a mãe, Mania Lispector 7. No seu papel materno, Clarice afirmava: “Nasci para amar os outros, nasci para escrever, nasci para criar meus filhos.” (Moser, 2011, p.313). Os recursos discursivos citados são muito comuns nas funções de maternagem durante o processo de contar histórias, dada à intimidade que revelam enquanto espécie de conversa 6 Fala recolhida da entrevista que deu a Julio Lerner, em 1977, na TV Cultura, pouco antes de falecer. Moser, na biografia Clarice, (2011) retoma dados que comprovam a profunda tristeza de Clarice Lispector pela situação de sua mãe. Desde o nascimento, a escritora conviveu com o fato de sua progenitora entrar numa profunda depressão e estar paralítica em virtude dos fatos ocorridos em Tchechelnik, Ucrânia, por ocasião da perseguição aos judeus e de um possível ataque violento de que Mania foi vítima, meses antes de Clarice nascer. Parte da tristeza da escritora estava na crença de uma possível melhora da mãe, o que não aconteceu. Desde pequena começou a fabular, representar pequenos teatros e declamar histórias para a mãe na esperança de que ela saísse daquele sonambulismo, o que não veio a acontecer até a sua morte, em 21 de setembro de 1930. “Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim. (...) Eu morria de sentimento de culpa porque pensava que tinha provocado isso quando nasci.” (Moser, 2011, p. 114) 7 292 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 próxima, ao pé do ouvido. São elementos típicos da interação familiar, da fabulação que responde a uma necessidade de afeto recíproco. Na história que abre Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras, cujo título é o mesmo da coletânea, tem-se a versão indígena de como se originaram as luzes que piscam no céu. Já no início, o narrador da história começa com uma catáfora em destaque, afirmando: Pois é, todo mundo pensa que sempre houve estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro – e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. (1987, p. 8). Prosseguindo no fluxo discursivo temos mais presenças de catáforas e um processo de interlocução com o leitor típico dos contos orais, na introdução da pergunta: Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam, roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer. Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas sob um gostoso sol amarelo. (1987, p.8) Ao final da história, a explicação para o nascimento das estrelas do céu repousa no fato da fuga dos pequenos curumins que, pensando em roubar mais fubá dos milharais, embrenharam-se em cipós para roubar-lhes mais milho. Subiram tanto que se transformaram em estrelas. No entanto, o narrador se permite o comentário metaenunciativo ao final dizendo ter sua versão para o fato, diferente da história narrada pelos índios. Para ele, as estrelas que estão no céu “são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que tudo ocorra bem. Para sempre. E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.” (1987, p. 9). Percebese a hibridização de culturas quando, ao final da história, o próprio narrador branco dá a sua versão para a lenda, sem denegrir a anterior, desencadeando a possibilidade da coexistência da visão de mundo e de suas crenças. Esses recursos estilísticos se repetem em outras narrativas da coletânea, demonstrando sua propensão ao ato de contar histórias. Na história do Saci-Pererê, intitulada Do que eu tenho medo, o narrador inicia novamente o texto com certa proximidade de seu interlocutor, fazendo uso de metaenunciações e catáforas. Assim narra a lenda do ser mágico que habita as matas brasileiras, marcando seu fluxo narrativo com abundantes usos dos dois pontos e dos comentários que a aproximam de seu interlocutor, o leitor/ouvinte: 293 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Bem, o jeito é começar fazendo uma confissão: a de que sou um pouquinho covarde, tenho meus medos. E você vai rir de mim quando souber de que é que eu receio tanto. É ...bem..., é.... (Vou tomar uma bruta coragem e dizer mais uma vez.) Tenho medo é do... Saci-Pererê! Mas que alívio eu já ter confessado. E que vergonha. Só não juro que o Saci existe porque não se deve ficar jurando à toa, por aí. Você é provavelmente de cidade e não me acredita. Mas que nas matas tem saci, lá isso tem. E eu garanto essa verdade que até parece mentira, garanto porque já vi esse meiogente e meio-bicho. (p. 40) Um fato interessante da narrativa De que tenho medo é a presença do narrador protagonista. Diferentemente das outras histórias da coletânea, há um desprendimento do distanciamento dos fatos deslocado para uma exposição da experiência do narradorpersonagem ter compartilhado o medo de conhecer o Saci-Pererê. Ao final da história, ele conta como fez para obter o revés e enganar a criatura arteira. Quando ele me pediu fumo, dei. Mas misturei ao tabaco, um pouco de pólvora (não demais porque eu não queria matá-lo). E quando ele tirou a primeira tragada, foi aquele estrondo. Porque eu também sou um pouco Saci-Pererê: foi com ele que aprendi as manhas. (1987, p. 41) Considerações Finais As narrativas que compõem Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras são conhecidas por grande parte da geração de Lobato e de seus precursores. São também parte um de um repertório cultural que permanece vivo naqueles que cultuam a arte de contar histórias, pertencendo à tradição da oralidade. Nesse sentido, compreendem aquilo que Fernandes (2007) redefine a partir de Paul Zumthor (1993) como arquétipos, ou seja, atualizações, espécie de “texto virtual” presentificado que se dissemina e perpetua como atual por uma comunidade ou cultura. É o trabalho que Clarice fez e seus editores e leitores permanecem realizando ao reeditar a obra ou transformá-la em conteúdo para a contação de histórias. Dessa forma, a escrita é desterritorizada, passando para oralidade a disseminação de seu conteúdo cultural. Para que o texto se torne um arquétipo, há a necessidade da disposição do receptor de tanto recebê-lo como transmiti-lo, motivo para um estudo da recepção dos contadores de histórias a partir da obra infanto-juvenil de Clarice em contexto de performance e recepção. O que se pode adiantar dessa perspectiva de estudo é que eles nasceram para ser contados, ainda nos dias atuais estão presentes em muitas coletâneas. Sua motivação provém de parte da obra da escritora que se inclina menos à introspecção, sem apagá-la, e acentua o diálogo com o público leitor. 294 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Moser (2011) aponta a necessidade de fabulação e depois de escrita como uma espécie de resiliência da escritora diante dos fatos da vida. Na infância, a doença da mãe lhe era por demais penosa e sofrida. Para ajudar em casa e no seu próprio tratamento, a única saída para a jovem Clarice em seus oito anos de idade era fabular e criar histórias. No entanto, a expectativa foi frustrada. A única ajuda que podia oferecer era mágica. Implorava a Deus que ajudasse sua mãe, e, de acordo com Bertha Lispector Cohen, encenava pequenas peças para entretê-la, às vezes conseguindo fazer rir a “estátua” condenada. Anita Rabin lembrava que, quando Clarice criava histórias, usando acessórios como lápis ou ladrilhos, ela inventava desfechos mágicos, em que uma intervenção milagrosa curava a doença da mãe. (p. 116) Clarice permanece sob a égide do mistério para alguns: “Eu sou a própria pergunta”, definia uma de suas crônicas. Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras, dada a sua característica de representação dos arquétipos e dos mitos culturais recriados de forma híbrida, também abarca os mistérios da escritora, esses revelados pelos questionamentos que perpassam o texto e indagam o ouvinte/leitor. Evidenciam-se no discurso da obra muitas indagações. Sobre o Saci Pererê - “não se sabe explicar porque ele é tão bom com os bichos” (1987, p. 33) - ou a respeito da sorte que o uirapuru traz ao povo da mata – “Como é que se espalhou que o uirapuru dá sorte?” (1987, p.17) - são muitos os mistérios invocados pela obra infantil de Clarice, o que estimula o leitor/ouvinte mirim a explorá-los, despertando uma espécie de necessidade de questionamento ou pedagogia da pergunta. O ser inquieto, a escritora que amava as crianças, Clarice Lispector veio ao mundo em situação familiar muito difícil. Cresceu em meio à esperança, mas as necessidades da vida foram transformando aquela menina de imaginação fértil e expansiva numa mulher cada vez mais silenciosa, solitária e ensimesmada. Passando por períodos mais introspectivos e menos sociais, permanecia em Clarice a latência do não pertencer. Disse ela certa vez em sua crônica Pertencer (2004, p. 53) sobre a passagem do tempo: “Com o tempo, sobretudo nos últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como é. E uma espécie toda nova da solidão de não pertencer começou a me invadir como heras num muro.” (p. 53) Mesmo com tantas perguntas sem respostas, identifica-se no discurso de Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras a necessidade de fabular, verbalizar e recriar. 295 Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504 Também um trabalho intercultural de dar voz a uma cultura nacional polifônica, ao mesmo tempo desterritorizada, dialógica, híbrida, como a própria constituição de Clarice: brasileira, nascida russa, cidadã do mundo. As histórias dessa coletânea continuam disponíveis para serem lidas e contadas, continuamente, desvelando uma face da escritora ainda pouco conhecida, a da contadora de histórias. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Maria Inês; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz. – as Edições da Narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. BAKHTIN. Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1967. FERNANDES, Frederico. A voz e o sentido. Poesia Oral em Sincronia. São Paulo: UNESP, 2007. GOTLIB, Nadia Battela. Clarice – uma vida que se conta. São Paulo: EDUSP, 2009. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vânia Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro:Rocco, 2004. ______________. Como Nasceram as Estrelas - Doze Lendas Brasileiras – Doze Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. ______________. Crônicas para jovens de escrita e de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da Fala para a Escrita – Atividades de Retextualização. São Paulo: Cortez, 2010. MOSER, Benjamin. Clarice, 2. ed. São Paulo, Cosacnaify, 2011. TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato. De palmeiras e colibris ou de como a voz guarani vem se tornando letra. Texto apresentado em Encontro do Grupo de Trabalho sobre Poéticas Orais. 2010. ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo. Porto Alegre: Artmed, 2002. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.