A Magia do Natal

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A Magia do Natal
Sumário
Ano L - N.º 590 - Dezembro de 2009
Mensagem de Natal
do CEME 5
PROPRIEDADE
DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO
Direcção, Redacção e Administração
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DIRECÇÃO
Director
Coronel de Infantaria
José Custódio Madaleno Geraldo
Secretária
Ass Técnica Teresa Felicíssimo
Soldado Condutor RC Pedro Ferreira
REDACÇÃO
Chefe
Tenente-Coronel J. Pinto Bessa
Redactores
Tenente RC Rico dos Santos
Alferes RC Nelson Cavaco
1º Sargento Anjos das Neves
Mauro Matias
Operadoras Informáticas
Ass Técnica Elisa Pio
Ass Técnica Guiomar Brito
O uso da força nas operações
de peacekeeping
das Nações Unidas 24
Timor-Leste
como se reforma um sector de
segurança? 32
Santa Bárbara
Padroeira dos Artilheiros
Cinquentenário 40
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO
Chefe
Major Augusto Correia
Operadores Informáticos
Ass Técnica Tânia Espírito Santo
1.º Cabo Gonçalo Silva
Biblioteca
Ass Técnica Joana Moita
SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS
Operador Informático
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Distribuição e Publicidade
Sargento-Ajudante Luís Silva
Ass Operacional Filomena Remédios
SECRETARIA
Sargento-Chefe Costa e Silva
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Lusa - Agência de Notícias
de Portugal, SA
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EXECUÇÃO GRÁFICA
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Tiragem − 6 000 exemplares
Depósito Legal n.º 1465/82
ISSN 0871/8598
Suplemento
VIII – D. Afonso V
e a Batalha de Toro
Poema de Natal 4
Cibersegurança Uma realidade virtual? 16
Secções
Figuras e Factos – 8 a 15
Passatempos de outros tempos – 46
Capa: Ministro da Defesa Nacional visita o Exército – Foto do Alferes Nelson Cavaco
Contracapa: Anunciação de Jorge Herold, 1930. Colecção particular
Revisão de texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias
Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do Exército Português
ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60
O Jornal do Exército formula a todos os seus leitores
votos de Boas Festas e Feliz Ano Novo
A Magia do Natal
Na breve escola da vida
Festejamos o Natal
A mais bela que foi vivida
Por Jesus, Homem, imortal.
Jesus, O Filho de Deus,
Jesus, Filho de Maria,
Sémen que desceu dos Céus
Na Pomba Branca que luzia.
Ilumina o Mundo Inteiro
Este Natal que é Cristo.
Filho de José, carpinteiro,
E de um Deus sempre visto.
Porque está em toda a parte
É de toda a Humanidade
Basta crer, com magia e arte,
Natal é eternidade!
O Director do JE
José Custódio Madaleno Geraldo
Coronel de Infantaria
4
Mensagem de Natal
do General CEME
Militares e Funcionários Civis do Exército.
A
proxima-se o fim de um ano de intenso trabalho de todos os que têm vindo a
cumprir, com esforço, lealdade e determinação, a sua missão no âmbito das diversas
áreas funcionais, contribuindo assim para a afirmação do Exército que se assume na
actualidade, como uma organização flexível, moderna, internacional e com padrões de
funcionamento extremamente exigentes e elevados, que se quer no caminho da excelência.
O Comandante do Exército reconhece o significado e o contributo do trabalho desenvolvido durante o ano, no âmbito das
actividades que competem a cada Órgão Central deAdministração e Direcção, na transformação do Exército, processo contínuo
de melhoria e adaptação, exigindo uma permanente análise e optimização de procedimentos.
De igual forma se reconhece o contributo de todos os militares em missões fora de Portugal, nas Forças Nacionais
Destacadas, nos Quartéis-Generais Multinacionais e em missões de observação, de ligação e em acções de cooperação
técnico-militar, pelo seu profissionalismo, dedicação e patriotismo, com que têm representado o Exército e dignificado o País.
Preparamo-nos agora para viver a quadra Natalícia que tradicionalmente se caracteriza pelos valores da fraternidade, da
amizade e da solidariedade. São valores que, a par de outros como a camaradagem, procuramos desenvolver em permanência,
porque fazem parte da nossa cultura institucional.
Sendo por excelência uma festa da Família, é uma oportunidade de fortalecer esses laços que, por força da disponibilidade
com que nos entregamos às nossas missões, não raras vezes, saem prejudicados no apoio e no tempo que gostaríamos de lhes
dedicar, em especial os homens e mulheres do Exército que, em vários teatros, em operações de apoio à paz, nas forças
nacionais destacadas, nos quartéis-generais e nas missões de observação cumprem de forma dedicada a sua missão, longe do
convívio das suas famílias.
Saúdo todos os militares e funcionários civis, que com enorme espírito de entrega e profissionalismo, trabalham
quotidianamente nas nossas unidades, estabelecimentos e órgãos. Este esforço anónimo tem-se constituído como a base do
prestígio da instituição que servimos. Relevo ainda a Família Militar que constitui um importante apoio de rectaguarda de forma
incondicional e silenciosa e um indiscutível factor de coesão moral e de disponibilidade dos nossos militares.
Esta quadra propicia igualmente oportunidade para uma reflexão sobre o passado, sobre as nossas acções e comportamentos,
mas também nos impele a projectar o futuro com determinação.
Constituem desafios no curto prazo, o projecto de reestruturação das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento e da
Manutenção Militar; a dinamização das estruturas de Recrutamento que permitam atrair e ampliar o universo de Voluntários e
Contratados, designadamente em Praças, assim como estimular a sua permanência nas fileiras através da aprovação dos
diplomas que concretizem o Regime de Contrato Especial, para os militares RV/RC que favoreçam o enquadramento e a
operacionalidade do Sistema de Forças Nacional mas igualmente propiciem um desenvolvimento equilibrado entre QP/RV-RC,
e permita uma normal progressão de carreira dos Oficiais e Sargentos do Quadro Permanente.
É igualmente necessária a publicação do diploma dos Suplementos Remuneratórios e uma reavaliação do Sistema
Remuneratório, que valorize, decididamente, a Condição Militar e as Carreiras de Oficial e Sargento e o apoio social que é
devido aos militares e à Família Militar, designadamente através da efectiva acção do IASFA neste domínio.
Como elemento basilar do Sistema de Forças Nacional, destacam-se também os projectos estruturantes de Reequipamento,
que lhe conferem coerência e os que materializam os requisitos operacionais urgentes para as Forças Nacionais Destacadas.
Sabendo que nos serão colocados desafios e oportunidades, continuamos firmemente convictos da inequívoca importância
da afirmação do Exército, dos seus valores e da grandeza da sua missão e por isso o Comandante do Exército, manifesta o seu
optimismo e a sua confiança na determinação, inteligência, dinamismo, ambição e motivação de todos quantos o servem,
garantes de que a missão continuará a ser bem cumprida em todas as circunstâncias, para a dignificação e o prestígio do
Exército e de Portugal.
Formulo votos de Boas Festas e de um Feliz Ano Novo para todos os Oficiais, Sargentos, Praças, Civis na situação de
activo, reserva e reforma e também para toda a Família Militar e que o ano de 2010 seja um Bom Ano para o Exército.
O Chefe do Estado-Maior do Exército
José Luís Pinto Ramalho
General
5
FIGURAS e FACTOS
Ministro da Defesa Nacional visita Exército Português
principais exercícios à implementação do ciclo operacional
Forças Nacionais Destacadas, envolvendo um vasto conjunto
de desafios e projectos estruturantes para o Exército.
Seguiu-se uma visita à sala de operações, onde se assistiu
a uma video-conferência, com a participação das Brigadas do
Exército (Brigada de Reacção Rápida, Brigada de Intervenção e
Brigada Mecanizada) e das Forças Nacionais Destacadas
(Líbano, Kosovo e Afeganistão).
O
Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor
Doutor Augusto Santos Silva, acompanhado pelo
Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do
Mar, Doutor Marcos Perestrello, visitou o Exército Português,
no dia 20 de Novembro.
A visita decorreu no Comando Operacional das Forças
Terrestres, em Oeiras, onde o MDN recebeu as honras militares
da Guarda de Polícia e das Forças em Parada.
Seguidamente, foi efectuado um briefing do Exército
Português, onde foi apresentado um enquadramento deste
Ramo, nomeadamente, da Missão do Exército, das suas
conflitualidades, dos novos paradigmas, da visão para o Exército
e do nível de ambição, optimização e reequipamento das Força
Operacionais (FOPE). Foi ainda feita referência à estrutura
orgânica do Exército, às suas Brigadas, às forças de apoio geral
e às suas zonas militares, ao ponto de situação dos recursos
humanos e financeiros, à actividade operacional, desde os
8
A visita foi concluída com a assinatura, do Livro de Honra
pelo MDN.
FIGURAS e FACTOS
Dr. Marcos da Cunha e Lorenha Perestrello de Vasconcellos − Secretário da
Defesa Nacional
N
http://www.mdn.gov.pt/mdn/pt/mdn/sednam/
asceu em Lisboa, em 1971. Licenciado
em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, (1994), é advogado de
profissão e foi, até recentemente, vice-presidente
da Câmara Municipal de Lisboa.Assumiu funções
de adjunto do Ministro dos Assuntos
Parlamentares, em 1995, e de chefe do gabinete
do Secretário de Estado da Administração Interna
(1999). Em 1998, fez o curso deAuditores de Defesa
Nacional.
Em 2001, funda e assume a direcção, durante
seis anos, do Centro de Informação, Mediação e
Arbitragem de SegurosAutomóveis. Em 2004, é
eleito membro do Secretariado Nacional do PS
e, em 2005, foi eleito deputado da Assembleia
da República e vice-presidente do Grupo
Parlamentar do PS. Integrou a Comissão de
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades
e Garantias e é eleito membro da Assembleia
Parlamentar da Organização para a Segurança e
Cooperação na Europa.
Assume a vice-presidência da Câmara
Municipal de Lisboa, em 2007, sendo vereador
da Câmara Municipal de Oeiras (desde 2009).
Visita do Comandante do Exército da República de Moçambique ao Exército
Português
D
ecorreu no período de 22 a 27 de
Novembro, a visita do Comandante do
Exército da República de Moçambique, MajorGeneral Graça Tomás Chongo, a Portugal.
O Chefe do Estado-Maior do Exército, General
Pinto Ramalho, recebeu-o com honras militares,
no Pátio dos Canhões do Estado-Maior, no dia
23 de Novembro, onde mais tarde assistiu a uma
exposição sobre o Exército Português.
Do restante programa, destacam-se as
seguintes visitas: Comando das Forças
Terrestres, Brigada de Reacção Rápida, Escola
de Tropas Páraquedistas, Escola Prática de
Infantaria, Instituto Geográfico do Exército,
Academia Militar.
Novo Director de Justiça e Disciplina
E
m 20 de Julho, iniciou funções de Director de Justiça
e Disciplina do Comando do Pessoal, no Porto, o
Major-General José António Henriques Dinis, nomeado por
despacho do Chefe do Estado-Maior do Exército, General
José Luís Pinto Ramalho.
O Major-General Henriques Dinis nasceu em 1954, no
concelho de Oliveira do Hospital, foi incorporado na
Academia Militar em 1973 e promovido ao actual posto em
25 de Novembro de 2008.
Anteriormente, exercia funções de Inspector-Adjunto do
Inspector-Geral do Exército.
9
FIGURAS e FACTOS
Dia Litúrgico de São Nuno de Santa Maria
R
ealizou-se, no passado dia 6 de Novembro, na Igreja
do Santo Condestável, em Lisboa, a Missa Solene do
dia de S. Nuno de Santa Maria. A cerimónia foi presidida pelo
Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo, contando
com a presença de várias ilustres entidades civis e militares,
nomeadamente o Chefe do Estado-Maior General das Forças
Armadas, General LuísVasco Valença Pinto e o Chefe do EstadoMaior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho.
Foi a primeira vez que foi celebrada a festa litúrgica de
S. Nuno de Santa Maria, após a canonização por Bento XVI no
passado dia 26 de Abril, no Vaticano.
Nascido a 24 de Junho de 1360, o novo santo foi um dos
portugueses que mais profundamente marcaram a história do
nosso país. Depois da sua carreira militar, pediu a admissão,
como irmão leigo, na Ordem do Carmo. Tinha grande devoção
à Virgem Maria e mostrou sempre grande compaixão para com
os pobres. Morreu no Domingo da Ressurreição do ano de
1431 (1 deAbril).
Viveu e morreu nesta cidade, amou Portugal, viveu
profundamente essa radicalidade pascal. Foi santo porque
foi um cristão fiel. Com a sua intercessão e com o seu exemplo,
desafia-nos a percorrermos, também nós, o caminho da
santidade na fidelidade. (…) Em Nuno Alvares Pereira, numa
longa vida, variada nas responsabilidades e nas missões a
que foi chamado, sempre se evidenciaram a profundidade da
sua fé e a grandeza da caridade, que levou ao extremo do
apagamento humano para que só ficasse o amor. Ele continua
a dizer-nos que é possível viver com fé todas as realidades
humanas, sociais, políticas, militares, familiares, religiosas;
continua a dizer-nos que é possível ser santo em todas elas,
que se pode viver toda a vida com Deus, que nos vai sugerindo,
em cada momento e em cada circunstância, a maneira de
acreditar e de amar.
D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa,
Homilia (Igreja de Santo Condestável, 10 de Maio de 2009).
Lançamento do livro
“A Ascensão da China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”
R
ealizou-se no dia 3 de Novembro, na livraria Almedina,
em Lisboa, o lançamento do livro “A Ascensão da
China, Acomodação Pacífica ou Grande Guerra?”, da autoria
do Coronel Tiago Vasconcelos.
O livro explica a lógica da ascensão da China como Potência
Mundial, evidenciando factores Geoestratégicos e Político-Culturais, entre outros, procurando responder se a China terá
uma acomodação pacífica ou conflituosa quando se afirmar
como potência mundial.
A obra foi apresentada pelo Tenente-General Abel Cabral
Couto e contou com a presença do Professor Doutor Narana
Coissoró.
O lançamento contou com a presença de diversas e ilustres
personalidades militares e civis.
TABELA DE PREÇOS PARA 2009
PREÇO DE CAPA • 2,00
ASSINATURA ANUAL (11 números)
VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores • 20.00
VIA AÉREA - Países europeus • 45,00; Restantes Países • 65,00
NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente
NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 • 4,00; 1970 a 1979 • 4,00; 1980 a 1989 • 3,00; 1990 a 2001 • 2,50; 2002 a 2008 • 2,00
Os preços incluem IVA à taxa de 5%
N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 • 4,21; 3000/8000 • 5,79; Açores e Madeira • 6,56.
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FIGURAS e FACTOS
Comemorações do 91.º Aniversário do Armistício e do 86.º Aniversário
da Liga dos Combatentes
O
91.º aniversário doArmistício da 1.ª Guerra Mundial,
o 86.º aniversário da Liga dos Combatentes e o 31.º
aniversário da fim da Guerra do Ultramar foram celebrados no
dia 14 de Novembro, junto ao Monumento aos Combatentes
do Ultramar, no Forte do Bom Sucesso, em Belém.
O Ministro da Defesa Nacional (MDN), Professor Doutor
Augusto Santos Silva, presidiu à cerimónia e recebeu as honras
militares da força composta pelos três ramos das Forças
Armadas portuguesas: Exército, Força Aérea e Marinha.
As comemorações iniciaram-se com as alocuções proferidas
pelo Presidente da Liga dos Combatentes, Tenente-General
Chito Rodrigues, pelo Chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto e pelo
Ministro da Defesa Nacional.
Na tribuna encontravam-se diversas entidades militares e
civis, entre as quais o Secretário de Estado da Defesa Nacional
e dos Assuntos do Mar, Dr. Marcos Perestrello, o Chefe do
Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, o
Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Fernando José
Ribeiro de Melo Gomes e o Chefe do Estado-Maior da Força
Aérea, General Luís Evangelista Esteves de Araújo.
Assistiu-se à condecoração de membros da Liga dos
Combatentes e à condecoração, a título póstumo, do MajorGeneral Carlos Manuel Costa Lopes Camilo, com a Grã-Cruz da
Medalha de Mérito Militar.
Foi, de seguida, descerrada uma placa pelo MDN e pelo
Presidente da Liga dos Combatentes, com os nomes de 53
combatentes portugueses mortos em combate na guerra da
Guiné. Os presentes assistiram, também, à cerimónia que
assinalou a transladação dos restos mortais de três soldados
mortos na Guiné-Bissau e à evocação doArmistício e aniversário
da Liga dos Combatentes, com deposição de coroas de flores
no monumento supracitado.
Seguiu-se uma homenagem aos mortos em combate pelo
Bispo das ForçasArmadas, D. Januário Torgal Mendes Ferreira,
na presença dos restos mortais dos soldados transladados da
Guiné-Bissau.
No final, escutou-se o Hino da Liga dos Combatentes,
seguindo-se o desfile das Forças em Parada ao som da Banda
da Força Aérea.
Terminada a cerimónia, houve uma visita ao Forte do Bom
Sucesso, onde estavam patentes exposições estáticas alusivas
às efemérides e aos 100 anos da aviação em Portugal.
Visita do Comandante das Forças Armadas de S. Tomé e Príncipe ao
Exército Português
O
Estado-Maior do Exército (EME) recebeu, em 17 de
Novembro, a visita do Tenente-Coronel deArtilharia,
Idalécio Custódio Pachire, Comandante das Forças Armadas
de S. Tomé e Príncipe.
O Comandante das ForçasArmadas de São Tomé e Príncipe
iniciou, dia 16 de Novembro, uma visita oficial a Portugal, a
convite do Chefe do Estado-Maior-General das ForçasArmadas
(CEMGFA), General LuísVasco Valença Pinto.
No primeiro dia da visita manteve um encontro privado com
o General CEMGFA, onde foram abordados diversos temas,
com destaque para a cooperação bilateral na área militar e a
cooperação no âmbito da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa.
Nos dias que se seguiram, o Tenente-Coronel Pachire
cumpriu um programa de visitas a diversas unidades, dos três
ramos das Forças Armadas, tendo sido, o Exército o primeiro
ramo a ser visitado.
No dia 17, foi recebido pelo Chefe do Estado-Maior do
Exército, General José Luís Pinto Ramalho, onde foi feita uma
apresentação sobre o Exército, a sua organização e estrutura,
visitando posteriormente o Instituto Militar dos Pupilos do
Exército. Esta parte da visita prolongou-se por mais dois dias,
nos quais o CEMGFA de S. Tomé e Príncipe teve a oportunidade
de visitar o Centro de Simulação do Exército, o Depósito Geral
de Material do Exército e a Brigada Mecanizada.
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FIGURAS e FACTOS
Chegada da OMLT KCD 01/02 ao TO do Afeganistão
N
o dia 28 de Setembro partiu para o Teatro de
Operações (TO) do Afeganistão a 2.ª Operational
Mentor and Liaison Team (OMLT), que vai apoiar a Kabul
Capital Division (KCD) do Afghan National Army (ANA),
tendo chegado a Cabul no dia 30 de Setembro. A força é
comandada pelo Coronel de Infantaria Pára-quedista José
dos Santos Correia e é constituída por nove oficiais e oito
sargentos, bem como organizada num Estado-Maior com o
respectivo Chefe de Estado-Maior e as várias áreas
funcionais: G1 (Pessoal), G2 (Informações), G3 (Operações),
G4 (Logística), G5 (Planos e CIMIC), G6 (Comunicações) e
G7 (Engenharia), um Oficial Médico e ainda um SargentoMor.
A missão da OMLT KCD no TO consiste na mentorização
da Divisão de Cabul do Exército Nacional Afegão,
nomeadamente do seu Comandante, Chefe do Estado-Maior
e outras áreas deste, prestando o apoio necessário na ligação,
no Comando e Controlo e no planeamento e emprego das
sub-unidades da Divisão durante as operações no terreno.
Com este tipo de assessoria, pretende-se que a Divisão esteja
apta a conduzir operações de forma eficaz e independente.
De acordo com estratégia da NATO para o Afeganistão,
é fundamental uma evolução sistemática e consistente do
ANA, de forma a permitir que o Governo seja capaz de
estabelecer e manter um clima de segurança a longo prazo. O
factor mais significativo é o apoio prestado pelas OMLT da
NATO e pelas Embedded Training Teams (ETT) dos EUA.
Assim, numa altura em que o grau de ameaça no TO está
«Alto» e que a NATO pretende recuperar a confiança das
populações afegãs, a missão das OMLT reveste-se da maior
importância para levar a bom termo a estratégia de saída e
atingir o estado final desejado para o Afeganistão.
A 2.ª OMLT KCD constituiu-se como Força Nacional
Destacada e iniciou o seu aprontamento em 15 de Junho nas
instalações da Unidade de Aviação Ligeira do Exército em
Tancos, sob a responsabilidade das Brigada de Reacção
Rápida.
Brigadeiro General Taur Matan Ruak visita o Exército Português
A
convite do Chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas, General Luís Vasco Valença Pinto,
12
decorreu a visita do Brigadeiro General Taur Matan Ruak,
Chefe de Estado-Maior General das Falintil – Forças de
Defesa de Timor Leste a Portugal, no período compreendido entre 27 de Setembro a 2 de Outubro.
Do programa realça-se a visita ao Exército Português
no dia 30 de Setembro. O período da manhã foi destinado
à visita ao Estado-Maior do Exército, tendo o General
Taur Matan Ruak apresentado cumprimentos ao Chefe do
Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto
Ramalho, que o recebeu com honras militares no Pátio
dos Canhões. Seguidamente, no Auditório, foi apresentado um briefing sobre o Exército Português, seguido
de uma visita guiada ao Museu Militar.
Durante a tarde, visitou a Brigada de Reacção Rápida,
no Centro de Tropas Comando, onde pôde apreciar uma
demonstração de capacidades.
O General Taur Matan Ruak, além de visitar as Forças
Armadas ao longo da sua estadia, também visitou a
Associação dos Deficientes das Forças Armadas e a Liga
dos Combatentes.
FIGURAS e FACTOS
Rendição de Equipa Médica Militar
A
terrou no Aeródromo de Transito N.º 1, em Figo
Maduro, a 8 de Novembro, pelas 15h00, a primeira
de três equipas de médicos militares que se encontrava,
desde Julho, no Aeroporto de Cabul, no Afeganistão.
Esta primeiro grupo, que se fez transportar num C-130 da
Força Aérea Portuguesa, é constituído por quinze militares,
dos quais dois médicos (um de Clínica Geral e um de
Medicina Interna), oito enfermeiros, um é fisioterapeuta, um
é técnico de laboratório e três socorristas, que tiveram como
missão prestar apoio aos militares da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (NATO) no Hospital Militar, em Kaia
(Kabul Internacional Airport).
Estas equipas irão permanecer ao serviço da Força
Internacional de Assistência à Segurança, subordinada à
NATO, pelo período de um ano.
Com a voz embargada, mas com o sentimento de “dever
cumprido”, estes militares reconheceram que o maior desafio
da missão foi a saudade que sentiram dos seus familiares.
O militar mais antigo da equipa, Tenente Alípio Araújo,
salientou que os primeiros meses foram muito complicados,
mas que esta missão “correu muito bem” e que, durante
quatro meses, foi feito “um excelente trabalho. A adaptação
foi dolorosa, mas foi uma experiência muito positiva”, disse
aquele militar.
13
FIGURAS e FACTOS
1.ª Grande Gala da Rádio Sim
R
ealizou-se, a 19 de Outubro, no Teatro Tivoli, em
Lisboa, a 1.ª Grande Gala da Rádio Sim, que contou
com a especial participação da Orquestra Ligeira do Exército.
Com o Tivoli esgotado, foi possível assistir à actuação
de grandes nomes da música portuguesa. Vozes que fizeram
desfilar canções inesquecíveis. Foi possível voltar a ouvir
temas como “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”, “Como Posso
Ter Ciúmes”, “Kanimanbo”, “E Depois do Adeus”, “Ternura
dos Quarenta”, “Regresso”, entre muitas outras canções
de sucesso no passado.
Subiram ao palco Anita Guerreiro, Paco Bandeira, Maria
Valejo, António Calvário, Ada de Castro, Vicente da Câmara,
Artur Garcia, Daniel Bacelar, João Maria Tudela, Rodrigo,
António Sala, Maria José Valério e Paulo de Carvalho,
acompanhados pela Orquestra Ligeira do Exército.
Os artistas foram apresentados pelas vozes da Rádio
Sim, que falaram em palco sobre os dias desta emissora, que
é a mais jovem aposta do Grupo Renascença.
Os aplausos foram uma constante durante toda a noite e
quem não conseguiu assistir a esta gala pôde acompanhar a
emissão em directo.
Homenageado em Castelo Branco o Militar mais idoso do Exército Português
P
or iniciativa do Provedor da Santa Casa da
Misericórdia, acompanhado por militares e amigos
residentes em Castelo Branco, foi homenageado, naquela
instituição, no Dia Nacional do Idoso, o 2.º sargento do
Exército, José da Graça Rascão, com 104 anos de idade.
Nasceu em Nisa, a 1 de Agosto de 1905, assentou praça
no Exército em 1 de Dezembro de 1927 e passou toda a sua
vida militar nos Regimentos 6 e 8 de Castelo Branco,
terminando a carreira militar no distrito de recrutamento
desta cidade.
A forma afável e disponível como desempenhou as
funções militares e sempre se comportou como cidadão
valeu-lhe a admiração de quantos o conhecem, entre os
quais desfruta de grande prestígio. A Junta de Freguesia
entendeu prestar-lhe, por isso, um público tributo em 2008
e já este ano concedeu-lhe a Medalha de Reconhecimento.
Transcrevemos o último louvor da sua vida militar,
concedido pelo Comandante da Região Militar Centro, que
o Sargento Rascão guarda religiosamente, num excerto bem
revelador do seu carácter: “(…) Militar disciplinado e bom
camarada com elevado brio profissional e comprovada
lealdade e honestidade demonstrou sempre exemplar
conduta ao longo dos 49 anos que serviu o Exército. É,
pois, com pesar que todos os que trabalharam com o
Sargento Rascão, sentem o afastamento do seu convívio a
que este distrito de recrutamento fica a dever muito da sua
eficiência”. É detentor das medalhas de ouro e prata de
Comportamento Exemplar.
O 2.º Sargento Rascão (à esquerda), acompanhado pelo Provedor da
Santa Casa da Misericórdia de Castelo Branco, Coronel de Infantaria
reformado, José Guardado Moreira, no dia da homenagem.
14
FIGURAS e FACTOS
77º Aniversário do IGeoE
palestra proferida pelo Capitão
de Artilharia Agostinho Freitas,
subordinada ao tema técnico
“Uma Base de Dados Geográfica
para a Carta Militar de Portugal”
e a imposição de condecorações
a militares do Instituto.
O evento prosseguiu com a
visita às instalações, durante a
qual foi inaugurada a exposição
“Finis Portugalliae = Nos
confins de Portugal”.
C
elebrou-se, no dia 24 de Novembro de 2009, o 77.º
aniversário do Instituto Geográfico do Exército
(IGeoE). Neste dia festivo pretendeu-se privilegiar a confraternização entre todos aqueles que, com grande devoção, dedicaram parte significativa da sua vida activa à
ciência cartográfica e realizar, simultaneamente, a
apresentação da realidade técnico-científica às entidades
militares e civis presentes, bem como evidenciar o
contributo que o IGeoE presta à Cartografia Nacional e
ao País.
A cerimónia foi presidida pelo Director de Finanças, o
Major-General João António Esteves da Silva, em
representação do Tenente-General Quartel-Mestre General
estando presentes outras altas entidades militares
representativas da hierarquia do Exército, Comandantes,
Directores ou Chefes de Unidades, Estabelecimentos e
Órgãos contíguos ou com afinidades no campo técnicocientífico, bem como entidades civis representativas do
espectro cartográfico nacional, representantes de
instituições com quem o IGeoE estabeleceu protocolos e
que, por razões institucionais ou outras, têm contactos
mais assíduos de cooperação com este Instituto.
Para comemorar esta importante efeméride, e com a
dignidade que merece, também estiveram presentes os
anteriores Chefes/Directores e colaboradores do Serviço
Cartográfico do Exército /Instituto Geográfico do Exército,
como forma de deferência e respeito pelo contributo por
eles prestado, sob as mais variadas formas, à Cartografia e
ao Exército.
Dando continuidade a uma longa tradição que está fortemente arreigada no espírito militar português, o IGeoE
desenvolveu um conjunto de actividades inseridas no
contexto das comemorações, designadamente o hastear
da Bandeira Nacional, a recepção das Altas Entidades
convidadas, a alocução pelo Director do Instituto, uma
15
Fotocomposição: Mauro Matias
Academia Militar e CIIWAC. Participação dos grupos de trabalho especializados em Segurança da
Informação e em Guerra de Informação1
C
ientes da necessidade emergente de garantir
uma profunda reflexão de âmbito nacional
sobre a temática da Cibersegurança, procura-se de
forma simples e resumida, numa atitude de mera
divulgação e sensibilização, expôr, enquanto grupo
de reflexão, o nosso modesto contributo nesta temá16
tica. Salienta-se que as ideias e as situações retratadas no artigo não reflectem qualquer visão doutrinária ou orientação institucional, mas resultam das
qualificações académicas e da experiência profissional dos seus elementos e de formação ministrada no
âmbito da Pós-Graduação em Guerra de Informação/
Competitive Intelligence pela Academia Militar.
Revelada a motivação e a envolvente deste artigo, preparamos um hipotético cenário que, de forma
abstracta, permite sistematizar alguns dos principais
conceitos envolvidos nesta problemática de natureza virtual. São ainda objectivos essenciais alertar fundamentalmente para a necessidade de desenvolver
mecanismos de Segurança da Informação nas Organizações, onde é fundamental garantir a disponibilidade, confidencialidade e integridade da informação que circula nos seus Sistemas de Informação
e que alimenta o processo de decisão organizacional.
Segundo a UNESCO e citando Balsinhas (2003,
p. 8), “o Ciberespaço é um novo ambiente humano e
tecnológico de expressão, informação e transacções
económicas. É constituído por pessoas de todos os
países, de todas as culturas e línguas, de todas as
idades e profissões fornecendo e requisitando
informação, de uma rede mundial de computadores
interligada pela infraestrutura de telecomunicações
que permite à informação em trânsito ser processada
e transmitida digitalmente”.
A Internet, como suporte tecnológico do Ciberespaço e da própria Sociedade em Rede, provoca
assim alterações nas dinâmicas de Poder, em virtude
de através dela se poder explorar e fazer uso da informação de modo competitivo ou mesmo conflitual. Para
além das vantagens funcionais associadas à sua
utilização, não é possível ignorar também o facto de
ela constituir o suporte ideal para a condução de
actividades como o ciberterrorismo, a cibercriminalidade e, fundamentalmente, a cyberwarfare
(Nunes, 1999; Martins, 2009 e Nunes, 2009).
Consequentemente, a exploração da Internet exige uma
atitude responsável por parte dos Estados, das
Organizações e dos próprios indivíduos, sob pena
das novas ameaças explorarem vulnerabilidades deste
meio aberto de interacção e poderem pôr em risco a
própria Segurança e Defesa Nacional (Hildreth, 2001;
Martins e Nunes, 2008).
Em termos simplistas, os ataques às redes de
computadores desenvolvem-se em quatro fases
(Tipton e Krause, 2004; Young eAitel, 2004; Santos,
2008). Numa primeira fase, denominada de
Levantamento (Profiling), procura-se identificar/
localizar a(s) rede(s) da organização a atingir, após
o que se verifica numa segunda fase de Pesquisa
(Scanning), quais os computadores e serviços
activos e vulnerabilidades existentes. A terceira
fase, Enumeração (Enumeration), tem como
objectivo apoderar-se de contas de utilizador ou
de direitos de acesso a partilhas em máquinas da
rede (entre outras). Por fim, na fase quatro, Exploração (Exploiting), pretende-se fundamentalmente
alterar a disponibilidade2 , confidencialidade 3 ou a
integridade4 da informação a que se teve acesso.
As duas primeiras fases coincidem com uma possível metodologia de avaliação de segurança de redes,
divergindo nas fases seguintes (McNab, 2004 e
Clarke, 2005).
O Ciberespaço, enquanto espaço de interacção
aberto e global, facilita o lançamento de ataques planeados contra Sistemas de Informação via Internet,
podendo consequentemente provocar incidentes
graves, motivados pela destruição física dos sistemas
informáticos ou pela alteração da sua lógica de
funcionamento, sendo fundamental garantir a
Segurança da Informação nas Organizações (Martins, 2008; Martins, Santos e Nunes 2009). Estamos
conscientes que a Segurança e a Economia de um
País, bem como o bem-estar dos seus cidadãos
dependem de determinadas infraestruturas e dos
serviços por elas fornecidos. A destruição ou
perturbação de infraestruturas que prestam serviços
fundamentais pode implicar a perda de vidas e de
bens materiais, bem como um forte abalo da confiança
e da moral dos seus cidadãos.
O advento da iWar5 reflecte as tendências do
novo século: a disseminação da Internet, o acesso a
esse poder por parte dos indivíduos e o declínio relativo
do poder do Estado no controlo das suas
infraestruturas de comunicação.As instruções disponibilizadas on-line e o software necessário de fácil
utilização, conferem virtualmente, a qualquer actor com
1
Elementos participantes na elaboração do cenário:
TCor António Flambó, TCor António Galindro, Engº Bruno
Réne, Cap GNR Carlos Pimentel, TCor Francisco Martins,
TCor Luís Pinheiro, Engº Luís Sousa, Pedro Salgueiro –
MCSE, Maj Pessoa Dinis, Dr. José Lopes, Engº Jorge
Custódio, Cor José Freire, TCor José Martins, Engº Marco
Manso, Engº Nuno Guerreiro, Maj Paulo Balsinhas, Maj
Paulo Branco e TCor Paulo Nunes.
2
Garantir que os utilizadores autorizados tenham acesso
à informação quando necessário.
3
Garantir que a informação seja acessível apenas aqueles
que estão autorizados a terem acesso.
4
Garantir que o conteúdo da informação e/ou os
métodos de processamento não são modificados de forma
inesperada.
5
Guerra da Informação ou seja o conjunto de acções
destinadas a preservar os nossos Sistemas de Informação da
exploração, corrupção ou destruição, enquanto simultaneamente se explora, corrompe ou destrói os Sistemas de
Informação Inimigos (Nunes, 1999).
Introdução
17
Arquivo JE
Entre os principais actores salientam-se as Entidades e as
Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do
País.
uma ligação à Internet o poder de explorar as
vulnerabilidades de adversários ou competidores. Um
problema desta natureza pode ser estudado e
analisado com base na construção de cenários
realistas de Gestão de Crises no Ciberespaço, tendo
em conta fundamentalmente as seguintes dimensões:
- O enquadramento da situação, onde o Ciberespaço é o palco das relações de poder e onde os
actores procuram explorar assimetrias. As suas
acções poderão ter expressão ao nível Diplomático,
Militar, Económico e da Informação, explorando
algumas das vulnerabilidades potenciadas pelas
Tecnologias de Informação e Comunicação,
especialmente no domínio da Informação e das
Infraestruturas Críticas. Neste âmbito, é notória uma
certa tipificação de métodos de ataque focalizados em
tecnologia e que permitem o aparecimento de cada
vez mais actores capazes de empreender ataques de
modo isolado.
- Os principais actores, entre os quais são normalmente salientados a título exemplificativo as Entidades e as Organizações responsáveis pelas Infraestruturas Críticas do País (Rede Eléctrica,
Telecomunicações, Águas e Saneamento Básico, os
Transportes, o Sistema Financeiro e de Segurança do
Estado).
18
Tendo os Órgãos de Comunicação Social um papel
fundamental na gestão correcta da informação em
qualquer situação de Crise, a sua acção é determinante para o desenvolvimento de uma percepção e
conduta correcta do cidadão, minimizando os impactos negativos no seu quotidiano, especialmente nas
actividades diárias, ao nível das transacções
comerciais, deslocamentos para o local de trabalho e
na utilização de fontes de energia.
Face à diversidade e complexidade do espectro
da ameaça, o Estado necessita de um Serviço de Informações Nacional activo e capaz de efectuar uma
identificação e avaliação dos actores capazes de o
poder atingir e fragilizar. Dentro deste contexto, importa
também punir os possíveis criminosos,
responsabilizando-os pelas consequências dos seus
actos. Esta realidade sugere a necessidade de
intervenção de algumas das instituições do Estado
de modo a garantir uma correcta obtenção da prova
de “agressão”, que vise garantir que na evidência6
digital obtida, nenhum dado possa ser adicionado ou
removido. Exige-se consequentemente elevada
capacidade técnica e científica da Entidade que efectua a obtenção da prova, de forma a suportar legalmente a acusação e posterior actuação.
Numa dinâmica de possível Gestão de Crises, a
resposta eficaz e eficiente passa por um envolvimento
activo dos principais agentes políticos (ex-Governo,
Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa, Gabinete
Nacional de Segurança), dos Internet Service Provider, das Instituições de monitorização da Internet
(ex-Computer Emergency Response Team − CERT) e
Institutos de investigação com competências técnicas
específicas nesta temática. Principalmente na
elaboração e coordenação de um plano de Disaster
Recovery (componente de um Plano de Continuidade
de Negócio mais alargado), ao nível do Estado,
elaborando propostas para mitigar os riscos através
da utilização das melhores práticas e do ajustamento
criativo de soluções, de forma a garantir a Segurança
da Informação e dos activos de suporte.
- Os métodos de ataque mais usuais focados em
tecnologia e utilizados pelas ameaças até à presente
data e que consistem na utilização de Malware7 (ex.
Virus, Worms e Trojans), no DoS 8 (denial of service),
Packet Sniffer9 , Masquerade10 (ex. IP spoofing) e
modificar e apagar mensagens (man-in-the-middle).
A narrativa que a seguir se apresenta para
caracterizar uma situação de Crise não tem ligação
com a presente realidade nacional. Por essa razão, a
referência a Empresas, Sistemas ou componentes de
Sistemas que surgem associados a este Cenário ao
longo do artigo são fictícias. Assumimos o Ciberespaço e os diferentes aspectos associados à Segurança da Informação como tendo o papel central.
Iniciamos na primeira secção a caracterização da
situação Nacional no ano de 2012. De seguida
caracterizamos a Crise na segunda secção, tendo como
suporte o Ciberespaço e alguns dos principais actores
Nacionais intervenientes no desenrolar do Cenário
apresentado. Nas considerações finais procuramos
indicar algumas sugestões e propostas para reflexão
do leitor.
Fotocomposição: Mauro Matias
Situação Nacional
Portugal começa a evidenciar alguns sinais inquietantes ao
nível da Segurança e Criminalidade.
Procuramos, com este cenário, antecipar acontecimentos e explorar possíveis e diferentes futuros.Tal
como refere Catarina Leal, “o planeamento por cenários
deriva da constatação de que dada a impossibilidade
de saber de que forma o futuro vai evoluir, uma boa
decisão ou estratégia para adoptar é aquela que é
escolhida entre vários futuros possíveis. Para
encontrar uma estratégia (robusta), são criados
cenários, de forma a que cada cenário seja marcadamente divergente dos outros” (2007).
6
É o vestígio (ex. material) que após ser devidamente
analisado e interpretado, estabelece a relação inequívoca com
o facto de delito e as pessoas com ele relacionadas.
7
Programas maliciosos desenvolvidos por programadores que, como um vírus biológico, infectam o sistema,
podendo efectuar cópias de si mesmo e tentando nalguns
casos espalhar-se para outros computadores, replicando-se
internamente e externamente se o computador estiver ligado
em rede. Uma das possíveis acções é impedir a execução de
serviços e a destruição de dados, podendo mesmo incapacitar
o funcionamento da máquina que afectou.
8
Trata-se de um tipo de ataque em que as redes são
bombardeadas com quantidades tão grandes de informação
Estamos no início do Outono do ano de 2012,
Portugal é hoje um País desenvolvido, economicamente próspero, social e politicamente estável e com
índice de desenvolvimento humano elevado.
Encontra-se entre os 20 países do mundo com melhor
qualidade de vida. Nos últimos tempos, face à crise
energética e dos cereais, com a subida repentina dos
preços, o País tem sofrido grandes movimentações
sociais de protesto.
Situado no extremo sudoeste da Península Ibérica, a sua localização ao longo da costa atlântica desde
cedo determinou uma vocação marítima.As vantagens
naturais de um País de sol radioso e de surpreendente
variedade geográfica fizeram de Portugal um destino
de eleição, ideal para a prática de desportos náuticos
e de golfe, dotado de modernas infraestruturas
turísticas e de formas muito tradicionais e
personalizadas de acolhimento, como o Turismo de
Habitação, os Hotéis de Charme ou as Pousadas.
Membro da União Europeia desde 1986, Portugal
é hoje uma Nação, que tem conservado através dos
séculos o seu maior tesouro: a identidade de um povo
hospitaleiro que faz do seu País um porto de simpatia
e segurança.
No entanto, Portugal começa a evidenciar alguns
sinais inquietantes ao nível da Segurança e
Criminalidade. O Crime constitui, sem dúvida, um dos
fenómenos contemporâneos que mais tem contribuído
para um aumento dos níveis de ansiedade e de
insegurança existentes na Sociedade Portuguesa.
O problema afecta não só Portugal como
que ocorre um congestionamento ou estrangulamento,
levando à paralisação da rede de computadores.
9
Consiste em capturar dados ou informação que circulam
na rede. Existem dispositivos (sniffer) cuja finalidade é analisar
o tráfego de rede e identificar áreas de potencial preocupação.
Podem analisar um ou mais protocolos de comunicação. A
existência de um sniffer com intenção maliciosa na rede pode
comprometer a segurança, podendo capturar passwords e
informações confidenciais que nela circulam.
10
É o acto de utilizar uma máquina para personificar
outra, por exemplo forjando o endereço de origem de um
ou mais computadores na sua autenticação numa rede
informática.
19
potencialmente toda a População da União Europeia,
as empresas, os Governos dos Estados-Membros e a
União Europeia no seu conjunto. Os efeitos podem
ser directos (por exemplo, um atentado terrorista com
vítimas mortais), ou indirectos (por exemplo, a
perturbação de certos serviços na sequência de
problemas numa infraestrutura específica).
O Estado Português, através do seu Serviço de
Informações Nacional dependente do PrimeiroMinistro e de congéneres europeus, foi informado
que vários actores internos e externos estariam a
ultimar desenvolvimentos para encetar uma
“campanha de Operações Centradas em Rede” com o
fim de afectar seriamente a Infraestrutura de
Informação Global (IIG). Esta campanha caracterizase principalmente pelo lançamento de ataques levados
a cabo através da Internet, em que os alvos são as
infraestruturas dos Fornecedores de Serviço de
Acesso à Internet, tal como os sítios na WEB que dão
acesso aos serviços on-line, explorando também a
infra-estrutura de Segurança Nacional.
A curto prazo, a iWar coloca uma ameaça crescente aos membros da OTAN ao conferir poder a
actores menores e a Governos hostis. Resta saber se
a iWar se torna uma ferramenta para os actores estado,
ou se os actores menores mantêm a sua capacidade
de empreender iWar contra os Estados-Nação.
O acesso não autorizado às Local Area Network
(LAN) 11 representa um dos maiores riscos para a
Segurança das Redes e para os Sistemas de
Informação das Organizações. Quando é permitido
acesso não autenticado através de computadores
pessoais não geridos, as Organizações e os respectivos dados ficam particularmente vulneráveis a
ataques de software malicioso (ex. vírus).
De acordo com as preocupações formuladas pelo
Estado Português (levantadas em abstracto), surgiu
a desconfiança de que um ou mais actores internos e
externos, tenham desenvolvido a capacidade
necessária para aceder e explorar a IIG como um campo
de Operações Político-Militares Estratégicas. Esta
situação levantou uma grande instabilidade e algumas
dúvidas relativamente à Segurança da Infraestrutura
de Informação Nacional (IIN) e da Infraestrutura de
Informação de Defesa (IID) já em evolução,.
As ameaças referenciadas podem utilizar um
possível conjunto de diversos métodos de ataque
que permitem explorar as vulnerabilidades existentes nos Sistemas de Informação das Instituições
Governamentais e das Organizações públicas e
privadas do País. Das informações disponibilizadas, podemos considerar que os métodos de
ataque mais utilizados pelas ameaças até à
presente data consistem na utilização de Malware,
no DoS, Packet Sniffer, Masquerade e na
20
modificação e eliminação de mensagens.
Uma análise superficial dos resultados
apresentados por auditorias externas aos Sistemas
de Informação de Empresas, Organizações e
Órgãos do Estado permitiu verificar em algumas a
inexistência de Políticas de Segurança estruturadas e coordenadas, a inexistência de
identificação e avaliação dos riscos, bem como a
falta de um modelo de gestão de Segurança da
Informação que integre algumas das suas
possíveis dimensões da Segurança: tecnológica,
física, humana e organizacional.
É nesta situação fictícia que surge a Crise no
Ciberespaço, cujo desenvolvimento processa-se
com a orientação e o enquadramento apresentado
na próxima secção.
A Crise
Na noite de 24 de Dezembro, os sites do Governo
Português, com maior incidência os do Ministério da
Defesa Nacional (Estado-Maior General das Forças
Armadas, Exército, Marinha e ForçaAérea), do Ministério da Administração Interna (PSP e GNR), do
Ministério da Justiça e Ministério das Finanças, foram
sujeitos a tentativas de DoS e alteração dos seus
conteúdos.
Na manhã de 25, foram detectadas tentativas de
reconhecimento e avaliação da estrutura e organização das suas redes através de Port Scans12 , bem como
tentativas de alteração dos dados existentes nas bases
de dados dos Sistemas de Informação da PSP e GNR,
dos registos de notariado do Ministério Público e
das Bases de Dados de IRS do Ministério das
Finanças.
Face à dimensão dos incidentes foi chamada para
efectuar a análise forense computacional a Brigada de
Combate ao Crime Informático da Polícia Judiciária
apoiada por equipas de especialistas de várias
organizações entre as quais salientamos: a Policia
Judiciária Militar, a PSP, a GNR, o Centro de Dados da
Defesa e uma equipa de especialistas em Segurança
Informática do Regimento de Transmissões do
Exército.
Nesta fase inicial, devido à complexidade técnica
do problema foi necessário garantir e coordenar o
apoio de especialistas de diversos Centros de Investigação & Desenvolvimento Nacionais, coordenadas
pelo Serviço de Resposta a Incidentes de Segurança
Informática (CERT.PT), que identificaram a origem dos
ataques através dos logs de routers e das firewall13
de algumas organizações atingidas.
Foi também necessário contactar alguns dos
Internet Service Provider (ISP) Nacionais e
Internacionais, face à necessidade de identificar as
11
Redes informáticas locais das Organizações que suportam
os seus Sistemas de Informação e as quais na sua maioria se
encontram ligadas à Internet.
12
São programas que consultam as “portas” dos
computadores e obtêm informações valiosas sobre eles, tais
como, que serviços (possíveis vulnerabilidades) estão a ser
executados. Estes programas permitem efectuar uma rápida
auditoria a centenas ou milhares de computadores num curto
espaço de tempo. São excelentes para detectar vulnerabilidades
numa rede, mas simultaneamente permitem sensibilizar/educar
os Administradores de Rede para os potenciais riscos existentes
na sua Rede Informática.
13
É um qualquer dispositivo implementado (hardware ou
software), para impedir que estranhos acedam a uma determinada
rede informática. As firewalls estão para as redes, assim como as
passwords para a autenticação dos utilizadores nos sistemas
operativos.
14
É um conjunto de protocolos de comunicação entre
computadores em rede. O seu nome provem de dois protocolos,
o TCP (Transmission Control Protocol) e o IP (Internet Protocol).
15
Forma de fraude electrónica, caracterizada pela tentativa
de adquirir informações confidenciais, tais como por exemplo o
número de cartão de crédito, fazendo passar-se por uma pessoa
de confiança ou uma empresa, através do envio uma comunicação digital oficial, como uma mensagem de correio electrónico.
www.skyscrapercity.com
origens de alguns dos ataques efectuados. Simultaneamente, contactou-se o Centro de Excelência da
NATO em Ciberdefesa (localizado na Estónia), para
apoiar na identificação e análise das intrusões, face à
sua experiência com casos análogos.
Após estes primeiros eventos e decorrendo um
período de alguma acalmia, surgem novos incidentes
em Março de 2013, na madrugada do dia 10.A Rede de
Energia que serve a região de Lisboa e Vale do Tejo,
onde se inclui o Centro de Dados da Defesa, falhou
por curtos períodos de 30 minutos, no horário
compreendido entre as 05h00 e as 12h00. Embora a
energia fosse restaurada rapidamente, uma avaliação
da causa da falha indicou a intrusão na sua Rede
Informática principal, onde se localizam os Sistemas
de Gestão e Controlo da Rede Eléctrica Nacional.
Na noite de 12 de Maio, as principais Operadoras
de Comunicações Nacionais (PT, TMN, Vodafone e
Optimus), sofreram uma série de falhas no seu
funcionamento. Simultaneamente, as maiores estações
de fornecimento de água do Alentejo e Algarve
(Alqueva e Odeleite), tiveram um problema no seu
sistema de gestão de funcionamento, permitindo
descarregar o seu caudal máximo, reserva essencial
para fazer face ao período de seca que se avizinhava.
Pelas 19h00 de 14 de Maio, a Rede Telefónica
Pública e as principais Operadoras de Comunicações
Nacionais sofreram novamente uma série de falhas,
dificultando a utilização do número de emergência
112 e, consequentemente, as acções de socorro
prestado pelo Serviço Nacional de Bombeiros e
Protecção Civil às vítimas dos diferentes incidentes
que ocorriam de Norte a Sul do País e dos quais
referimos:
1. Às 20h00, o comboio de passageiros de alta
velocidade, TGV Lisboa - Porto embatia num comboio
de cargas, aparentemente desgovernado perto do
Entrocamento. A PSP constatou que o embate dos
comboios vitimou 100 passageiros e feriu gravemente
outras 200 pessoas.
2. Pelas 23h30, atacantes cibernéticos criam o
pânico no Aeroporto de Lisboa e colocam em risco
todo o tráfego aéreo com destino e origem no referido
Aeroporto, pela indisponibilidade do Sistema de
Controlo deTráfego Aéreo. O objectivo dos atacantes
foi a penetração na rede informática interna do
Aeroporto e posterior ataque por DoS aos sistemas
de ajuda à aterragem das aeronaves, nomeadamente
os que indicam a direcção da pista, altura das
aeronaves e os radares, sistemas de comunicação
rádio e sinalização luminosa, a sua maioria geridos
através de uma rede informática que usa o protocolo
TCP/IP14. Em simultâneo, foi atacado o web site da
principal Transportadora Aérea (TAP), através de
Phishing15 com o objectivo de falsificar as informações dos voos, incluindo as reservas, tarifas e horários.
Às 20h00, o comboio de passageiros de alta velocidade,
TGV Lisboa - Porto, embatia num comboio de cargas
21
A rede ATM 16 deixou de funcionar, lançando o caos nos principais Centros Comerciais.
3. Entre as 22h00 e as 00h30, surgiu uma avaria
simultânea nos sistemas de controlo de trânsito das
principais cidades do País, do qual resultaram inúmeros
acidentes que vitimaram 50 pessoas e feriram
gravemente outras 150.
Também os Bancos portugueses, durante
auditorias de rotina, conduzidas pelas equipas
internas, detectaram dispositivos sniffer no seu principal sistema de transferência de fundos, temendo a
Administração dos Bancos que indivíduos não
autorizados possam agora tentar entrar num sistema
que se considerava invulnerável.
Durante o dia 17 de Maio, a comunicação Nacional
especulou sobre a extensão das vulnerabilidades de
Portugal no Ciberespaço, essencialmente sobre as
origens dos ataques de iWar sofridos até ao momento
e sobre as capacidades Nacionais para enfrentar a
Crise. Simultaneamente, com as notícias surgidas, a
rede ATM16 deixou de funcionar por volta das 17h00,
lançando o caos nos principais Centros Comerciais e
paralisando praticamente todo o comércio local.
Uma reunião governamental de emergência foi
realizada às 21H00 do dia 18 de Maio, para estudar
algumas das possíveis recomendações imediatas e
de médio prazo para uma resposta concertada a esta
“Crise no Ciberespaço” que actualmente afecta Portugal.
A reunião abriu com um briefing do Serviço de
Informações de Segurança que enfatizou a incerteza
existente na determinação da fonte ou das fontes dos
ciberataques, seguido por algumas recomendações
do Gabinete Nacional da Segurança que fez notar que
nesta altura não havia “nenhuma maneira de saber ao
certo” se o conjunto de acções registado configura
ou não:
(1) um teste à capacidade portuguesa de
Ciberdefesa desenvolvido por um ou mais actores;
(2) ou o início de uma campanha de iWar orientada
para perturbar com alguma antecedência a coesão do
Governo Português e o funcionamento das
Instituições Democráticas.
Durante a reunião, o Primeiro-Ministro alertou
repetidas vezes os elementos da Comunicação Social
presentes para a necessidade de manter a calma e de
22
Arquivo JE
diminuir toda a especulação relativamente à extensão
das vulnerabilidades de Portugal no Ciberespaço (em
virtude da mitigação dos principais riscos já ter sido
realizada), quer ao que diz respeito às origens dos
ataques deiWar sofridos até ao momento, em especial
aqueles que tiveram origem no Território Nacional.
Fizeram notar que futuras decisões relacionadas com
a crise podiam tornar-se cada vez mais difíceis se existir
um pânico generalizado, acrescido pelo empolamento
dos efeitos dos ataques por parte dos meios de
comunicação.
Após encerramento da reunião, o PrimeiroMinistro solicitou ao Ministro da Defesa Nacional
que coordenasse um grupo de peritos de Segurança
da Informação, de Redes Informáticas e de Computer
Network Operations, com o objectivo de gerar ideias
novas e criativas capazes de minorar num curto espaço
de tempo, os problemas de iWar que suscitam uma
maior preocupação na presente Crise no Ciberespaço.
Descreveu-lhe as suas principais preocupações e
pediu-lhe possíveis recomendações para os
problemas encontrados, de modo a garantir a
segurança dos Sistemas de Informação que as
Organizações Governamentais utilizam ou
provavelmente virão a utilizar, reflectindo o seu impacto no domínio Diplomático/Político, no ambiente da
Informação Nacional, na área Militar e no domínio
Económico (DIME).
Uma Possível Resposta…
Após a realização de diversas reuniões, a equipa
de peritos sugeriu, entre outras, as seguintes propostas fundamentais para o médio prazo:
1. Proceder à implementação de uma Certificção
de Segurança da Informação nas Organizações consideradas mais críticas e importantes face à avaliação
da sua informação e à identificação e avaliação dos
riscos de segurança existentes;
2. Desenvolver e aplicar uma metodologia de auditoria aos Sistemas de Informação implementados,
que garanta a sua real Segurança da Informação, com
base em indicadores de segurança mensuráveis;
3. Desenvolver um manual de boas práticas de
Segurança da Informação para apoiar as Pequenas e
Médias Empresas, onde os requisitos principais sejam
a facilidade de operacionalização e o custo mínimo de
implementação;
4. Sensibilizar os utilizadores das tecnologias de
informação para a problemática da Segurança da
Informação, evitando desta forma os ataques de
Engenharia Social17 mais usuais sobre o elo mais fraco
da cadeia de segurança: o elemento humano;
No contexto formulado pela equipa de peritos,
importa salientar que o importante é o planeamento
rigoroso dos controlos de segurança a implementar
ao nível das Organizações consideradas críticas, onde
a coordenação de esforços e de competências nesta
temática é obrigatória, face à complexidade e
importância dos assuntos envolvidos.
Considerações Finais
Enquanto processo de sistematização e instrumento de aplicação dos pressupostos associados à
necessidades de qualquer Estado garantir a sua
Ciberdefesa, o levantamento de cenários e a própria
condução de Exercícios de Gestão de Crises no
Ciberespaço representa uma manifesta mais-valia,
permitindo:
- avaliar as implicações políticas e estratégicas do
Ciberespaço e analisar a sua importância como factor
decisivo para o planeamento e condução das
actividades associadas aos diversos instrumentos de
exercício do Poder dos Estados (Diplomático/Político,
Informação, Militar e Económico);
- estudar metodologias para analisar e gerir o Risco
Social, capazes de avaliar ameaças, identificar
vulnerabilidades e promover a adopção de contramedidas especialmente orientadas para fazer face aos
riscos emergentes da Sociedade de Informação,
Comunicação e Conhecimento;
- identificar iniciativas que ajudem a desenvolver
as capacidades necessárias para minimizar as
implicações negativas da ocorrência de Crises no
Ciberespaço, permitindo mitigar as suas consequências e reduzir a sua probabilidade de ocorrência;
- estimular o desenvolvimento de actividades e
iniciativas cooperativas destinadas a melhorar o intercâmbio entre os diversos actores envolvidos na
Protecção da IIN, através da análise de assuntos
emergentes de interesse mútuo, onde a Segurança e
Defesa Nacional se apresentam como temas privilegiados de análise.
Apesar de ter surgido num contexto académico, o
Cenário aqui apresentado, poderá servir de suporte e
permitir a exploração destes objectivos. Tendo por
base o Cenário apresentado para reflexão, importa
referir que todas as possíveis soluções destinadas a
mitigar o risco social no Ciberespaço devem ter por
base as boas práticas já existentes em algumas das
Instituições/Organizações públicas ou privadas e em
estudos já realizados e publicados, garantindo a
celeridade no processo e evitando custos
desnecessários. No que diz respeito às medidas
imediatas a implementar, em artigo posterior serão
analisadas as futuras propostas.JE
16
Sistema de máquinas para realizar operações bancárias.
Evitando a manipulação dos utilizadores de forma a
convencê-los a realizar determinadas acções que visam
alterar as propriedades da segurança da informação.
17
Bibliografia
BALSINHAS, Paulo (2003).
Os Riscos do
Ciberespaço - Análise e Gestão dos Riscos nas InfraEstruturas Criticas de Informação, Pós – Graduação em
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LEAL, Catarina Mendes (2007). “ Construir Cenários
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Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional,
Lisboa.
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23
Fonte: unescap.org
Dra. Maria do Céu Pinto
A ONU e o uso da força
D
urante a Guerra-Fria, o Conselho de
Segurança (CS) não conseguiu chegar a
acordo quanto a mecanismos colectivos de
enforcement, nomeadamente a activação do artigo
43.º da Carta das Nações Unidas, que prevê o uso
da força contra os Estados agressores1 e o seu
corolário: a constituição de um corpo de forças armadas ao serviço das Nações Unidas (NU)2. Para colmatar essa falha, foi desenvolvido um instrumento
menor − o peacekeeping −, sob os auspícios das
NU. O peacekeeping foi o expediente de um CS
24
dividido ao qual faltava o consenso para a acção
colectiva e que se contentava em usar um instrumento menos poderoso e que não tinha implicações
nas relações de poder das superpotências3.
No caso de um conflito, o CS pode adoptar
medidas provisórias para “evitar o agravar da
situação”, dispondo de várias opções que não
envolvem o uso da força. Esgotadas as medidas
pacíficas do Capítulo VI da Carta, as hipóteses
apresentadas foram as sanções (artigo 41.º), uma
forma de enforcement não-militar. Se as medidas
anteriormente mencionadas não surtirem efeito, o
CS “(…) poderá levar a efeito, por meio de forças
1
O artigo 43.º estabelece que os Estados-membros
concordam em “(…) proporcionar ao Conselho de
Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou
acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades,
inclusive direitos de passagem (…)”
2
Aquele artigo prevê a criação de forças armadas das
NU a serem utilizadas de acordo com planos de acção
determinados pelo CS com a assistência da Comissão de
Estado-Maior, composta pelos Chefes de Estado-Maior dos
membros permanentes do CS (ou respectivos representantes). O Comité reuniu-se entre 1946 e 1948 para estudar,
do ponto de vista militar, as implicações do artigo 43.º e
avançar com propostas para dar corpo àquele artigo. Devido
a desacordos insanáveis, o Comité suspendeu os seus
trabalhos em 1948 (v. Derek W. Bowett, United Nations
Forces: A Legal Study, NY, Praeger, 1964, pp. 12-18).
3
John Mackinlay e Jarat Chopra, “Second Generation
Multinational Operations”, The Washington Quarterly, vol.
15, nº 3, Verão de 1992, p. 114.
4
Alex J. Bellamy et al., Understanding Peacekeeping,
Cambridge, Polity Press, 2004, p. 147.
5
Boutros-Ghali, Agenda para a Paz, NY, Nações
Unidas, 1992 (ed. em português; a partir de agora, referida
como Agenda), § 42.
6
V. Leland M. Goodrich et al., Charter of the United
Nations: Commentary and Documents, NY, Columbia U.P,
1969, p. 291.
7
United Nations, The Blue Helmets: A Review of United
Nations Peacekeeping, NY, UNDPI, 1996, p. 4.
8
David Rieff cit. in Tom Woodhouse, “The Gentle
Hand of Peace?”, International Peacekeeping, vol. 6, n.º
2, Verão de 1999, p. 24.
Fonte: UN.org
aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar
necessária […]. Tal acção poderá compreender
demonstrações, bloqueios e outras operações, por
parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos
Membros das Nações Unidas” (artigo 42.º).
O enforcement militar na Carta da ONU, previsto
no artigo 42.º, deriva da necessidade de sustentar o
princípio da segurança colectiva. A ideia central do
sistema de segurança colectiva é a defesa de certos
valores, principalmente o da paz. Contudo, se os
meios pacíficos não forem suficientes para assegurar
a paz, então a organização poderá recorrer à ameaça
e/ou uso efectivo da força4. Na Agenda para a Paz,
o ex-Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, afirma:
“a essência do conceito de segurança colectiva, tal
como contida na Carta, é que se as medidas pacíficas
falharem, as medidas previstas no Capítulo VII devem
ser usadas, por decisão do Conselho de Segurança,
para manter ou restaurar a paz e a segurança
internacional, se se estiver face a uma 'ameaça à paz,
ruptura de paz ou acto de agressão'.”5
A possibilidade do CS tomar medidas militares
foi considerada um progresso notável em relação ao
sistema da Sociedade das Nações. Contudo, a
importância destas medidas não residia na
expectativa ou probabilidade de se recorrer a elas.
Efectivamente, “pensava-se que a ameaça de acção
militar seria um incentivo importante para fazer com
que os Estados implementassem as medidas que o
Conselho considerasse necessárias para manter ou
restaurar a paz e segurança internacionais. Também
serviria para deter os actos agressivos dos Estados,
constituindo um incentivo adicional para resolver
as disputas entre os Estados.”6
Voltando ao peacekeeping, este consiste no uso
das forças militares, desprovidas, no seu exercício,
do uso normal da força, para de-escalar ou pacificar
situações de conflito. Boutros-Ghali definiu-o
sinteticamente como o “uso não violento da força
militar para preservar a paz.”7
O uso de efectivos militares para o desempenho
de tarefas de peacekeeping encerra uma contradição
nos termos. O uso de militares, canonicamente
treinados para a guerra e o combate, parece não se
coadunar com tarefas pacíficas que exigem dos
militares grande restrição e auto-controlo e um
sentido rigoroso de imparcialidade. Apesar disso, a
comunidade internacional vê no peacekeeping militar
uma “panaceia moldável e infinita para os conflitos
mundiais”8. Após o exemplo bem-sucedido da UNEF
I I (UN Emergency Force I) para assistir à retirada
das forças invasoras do Egipto (1956-67), criou-se a
convicção de que o peacekeeping se poderia aplicar
indistintamente para implementar cessar-fogos,
retiradas militares e verificar acordos de paz.A função
original do peacekeeping era monitorar as tréguas e
acordos de cessar-fogo com observadores militares
da ONU, desarmados ou usando armamento ligeiro,
que vigiavam as linhas de fronteira e as zonas-tampão
("buffer zones").
O peacekeeping foi o expediente de um CS dividido ao qual
faltava o consenso para a acção colectiva
25
26
Fonte: UN.org
O peacekeeping tornou-se o remédio miraculoso
para resolver os conflitos que proliferaram na Guerrafria, pela simples razão de que os Estados e as
organizações internacionais não conseguiam
encontrar outro remédio. Escudados pelos princípios
sagrados que os deveriam nortear (a “trindade sagrada”: consentimento, imparcialidade e o uso da
força)9, os peacekeepers foram enviados para todo o
tipo de missões, até para as mais inverosímeis, como
o Congo, o Líbano e a Somália.
Se o peacekeeping é desempenhado por militares, em última instância ele remete-nos para a possibilidade de estes usarem da sua prerrogativa natural:
a aplicação da força. Na realidade, o peacekeeping
assenta, como afirma Findlay, sobre um elemento
(implícito e indefinido) de bluff: a de que os capacetes
azuis, se confrontados com situações extremas, usarão
a força. Este bluff é produtivo se tiver um efeito
dissuasor sobre potenciais opositores, isto é, se a
parte antagonista se convencer de que tem algo a
perder se não respeitar os compromissos que
assumiu. Contudo, a capacidade das NU deterem as
forças hostis só existe se: se tiver comunicado de
forma clara à parte adversária o objectivo da missão,
bem como a ameaça da aplicação da força, no caso de
incumprimento ou obstrução por parte dos
“spoilers”10; se a força de peacekeeping demonstrar
a capacidade e a intenção de usar a força.
A realidade é que opeacekeeping nunca foi, como
idealmente se projectou, uma prática inteiramente
pacífica: na UNEF I, a força foi usada logo nos
primeiros dias da operação e, no total, a missão
registou 89 vítimas11. A questão do consentimento
das partes também não tem sido uniforme: embora o
Egipto e Israel tivessem aceite a presença da UNEF I
e II, tiveram de ser persuadidos a tal. A ONUC
(Opération des Nations Unies au Congo, entre 1960
e 1964), foi enviada sem o consentimento das
autoridades da província secessionista do Katanga e
a Bélgica, potência colonial em retirada, deu o seu
consentimento com relutância. A UNIFIL (United
Nations Interim Force in Lebanon) trabalha no Líbano
desde 1978 com a aquiescência deste país, mas foi
frequentemente hostilizada e atingida durante
incursões e ataques militares dos israelitas no sul do
Líbano. Os Khmers Vermelhos aceitaram com mávontade a entrada da UNTAC (United Nations
Transitional Authority in Cambodia) no Cambodja.
O mesmo aconteceu com as facções somalis em relação
à UNOSOM I e II (UN Operation in Somalia). A
Indonésia aceitou a presença da INTERFET
(International Force for East Timor) e da UNTAET
(UN Transition Authority in East Timor) após fortes
pressões da comunidade internacional, inclusive dos
EUA.
A experiência veio a demonstrar a necessidade de permitir
aos capacetes azuis usar a força.
O uso da força no peacekeeping, para além da
auto-defesa, é viável se a operação for enquadrada
no Capítulo VII da Carta, uma vez que este capítulo
trata de medidas que o Conselho de Segurança pode
impor, como as sanções ou o uso da força militar. Este
entendimento foi confirmado por uma sentença do
Tribunal Internacional de Justiça, em 1962, que
afirmava que as NU têm a capacidade inerente de criar
e assumir o comando de forças militares. Contudo, a
sentença estabelece que estas só podem usar de
“direitos beligerantes” quando autorizadas para tal
pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo
VII12.
O uso da força em auto-defesa é legitimado por
várias fontes. O filósofo holandês Hugo Grotius (15831645) defendeu a auto-preservação como um direito
inerente e natural do indivíduo que nenhuma lei
poderia limitar ou ab-rogar. Também afirmou o direito
dos Estados à auto-defesa, um conceito que está
consagrado na lei internacional através do artigo 51.º
da Carta das NU. Uma vez que as forças armadas são
as principais defensoras do Estado, tem-se deduzido
que o seu direito de auto-defesa colectiva é um
prolongamento do direito dos Estados de assegurarem
a sua auto-defesa. Tem-se partido do princípio de que
os militares desfrutam daquele direito, mesmo quando
operam sob comando das NU. Alguns autores
defendem que a ONU, tal como os Estados, goza do
direito de defesa própria e que o seu pessoal, por
extensão, goza do direito de defesa individual e
colectiva13.
Inicialmente, auto-defesa significava a defesa da
pessoa do peacekeeper através das suas armas.
Contudo, a experiência veio a demonstrar a necessidade de alargar este entendimento de forma a permi-
tir aos capacetes azuis usar a força para: impedir
tentativas de os desarmar, defender as suas posições,
veículos e equipamento contra ataques armados ou
contra tentativas de captura dos capacetes azuis e
apoiar outros contingentes da ONU14. Esta concepção
foi posteriormente alargada de forma a autorizar os
capacetes azuis a defender as agências civis e outro
pessoal das NU. Trata-se de uma situação menos clara
porque cabe ao comandante da força decidir sobre
estas situações numa base casuística.
Após 1973, a regra da auto-defesa foi expandida
para acomodar a necessidade de “defesa da missão”.
A auto-defesa passou assim a incluir a resistência a
tentativas, pela força, de impedir os peacekeepers de
desempenhar a sua missão15 . Trata-se também aqui
de um “terreno pantanoso”, que veio gerar mais
confusão e incerteza, principalmente ao nível dos
comandantes da força, relativamente à interpretação
do sentido de “defesa da sua missão”. Como é sabido,
o CS tende a elaborar o mandato das missões no
sentido mais amplo e a ser o menos concreto possível
em relação a detalhes cruciais e potencialmente
comprometedores para o bom funcionamento da
missão, como o que fazer se a missão não conseguir
desempenhar as tarefas que lhe foram cometidas, se
as partes não cooperarem ou deliberadamente
oferecerem resistência. Face ao habitual alheamento
do CS, a responsabilidade de interpretar a “defesa da
missão” é devolvida ao Secretário-Geral/Secretariado.
A interpretação do que é a “defesa da missão”
depende, obviamente, da natureza e do contexto da
missão. Se se tratar essencialmente de uma missão
humanitária, então a força pode ser usada para permitir
que os capacetes azuis tenham livre acesso às áreas
críticas. Se a missão exigir o desarmamento e
desmobilização dos beligerantes, o uso da força pode
ser mais problemático porque pode desencadear uma
espiral de confrontação.
A utilização da força em auto-defesa tem limites
que estão codificados na lei internacional e têm sido
estabelecidos com a prática. Os mais importantes são
os critérios da necessidade e da proporcionalidade.A
força pode ser empregue se houver necessidade
9
“Holy trinity”, v. Bellamy et al., op. cit., p. 95.
Stephen J. Stedman, “Spoiler Problems in Peace
Processes”, International Security, vol. 22, n.º 2, 1997.
11
Trevor Findlay, The Use of Force in UN Peace
Operations, Estocolmo, SIPRI/Oxford University Press,
2002, p. 44.
12
International Court of Justice, Certain Expenses of
the United Nations (Article 17, § 1), Advisory Opinion of
20 July 1962, Reports of Judgements, Advisory Opinions
and Orders International Court of Justice, Haia, 1962, p.
177; cit. in Findlay, op. cit., p. 8.
13
Sobre este assunto, v. Findlay, op. cit., p. 15.
14
International Peace Academy, Peacekeeper´s
10
absoluta dela, isto é, em última necessidade. Em
segundo lugar, a força usada deve ser proporcional à
ameaça.
O relatório da ONU, A More Secure World, lançado
em Dezembro de 2004, aborda a questão do uso da
força sancionado pelas NU. Trata-se, quer de
situações de auto-defesa (artigo 51.º), quer de
respostas no âmbito das ameaças previstas no
Capítulo VII16. Em todos os casos, para ser legítimo, o
emprego da força deve obedecer aos seguintes
critérios:
- Seriedade da ameaça: o mal em causa (contra os
Estados, ordem internacional ou segurança humana)
é suficientemente claro e sério para justificar, prima
facie, o uso da força militar?;
- Justo propósito: é claro que o principal objectivo
da acção militar é deter ou evitar a ameaça em questão,
à parte de outras considerações envolvidas?;
- Último recurso: todas as opções não-militares
foram exploradas a fundo?;
- Meios proporcionais: a escala, duração e
intensidade da acção militar são estabelecidas com
base no mínimo necessário para fazer frente à ameaça
em questão?;
- Balanço das consequências: a acção militar tem
probabilidades razoáveis de fazer face à ameaça ou as
consequências dessa acção podem ser piores do que
a falta de acção?.
Em relação ao uso da força, os Estados têm
demonstrado uma dupla atitude. Por um lado, a
insistência para que o mandato das operações ONU
preveja o uso da força em auto-defesa de forma a
terem alguma garantia de preservação das suas
tropas. Por outro, a relutância em que as operações
de peacekeeping passem esta fronteira e se
envolvam em actividades de enforcement. A
relutância em autorizar missões de enforcement
prende-se com o facto de nas mesmas haver maior
probabilidade de haver vítimas entre os soldados.
Além disso, e no que se refere aos grandes Estados,
o seu receio é que a organização usurpe o seu
monopólio do uso da força17.
Apesar disso, as resoluções do Conselho de
Handbook, NY, IPA e Pergamon Press, 1984, p. 57.
15
O relatório da ONU, A More Secure World: Our
Shared Responsibility (Report of the High-level Panel on
Threats, Challenges and Change, 2004), afirma que o uso
da força “[…] é amplamente entendido como estendendose à 'defesa da missão””, § 213.
16
Em relação ao Capítulo VII, o relatório faz a distinção
entre as ameaças externas (a ameaça que os Estados põem
a outros Estados, a povos fora das suas fronteiras e à ordem
internacional em geral) e as ameaças internas e a consequente responsabilidade dos Estados de protegerem as suas
populações.
17
V. Findlay, op. cit., p. 16.
27
28
linguagem eufemística, como “todas as medidas
necessárias” (UNPROFOR, na Bósnia-Herzegovina)
ou “todos os meios necessários” (UNOSOM II, na
Somália). O enquadramento vago do uso da força tem
ainda como consequência não definir o nível ou tipo
de força a ser usada na operação específica.
O CS não só tem decidido sobre o emprego de
medidas de injunção sem as nomear claramente, mas
tem-no feito mesmo quando já tem em vista o executor
dessas medidas: é o caso das resoluções 83 e 84 sobre
a Coreia (1950)22 e da resolução 221 sobre o embargo
petrolífero contra a Rodésia do Sul (1966)23. A
resolução 83 (27 de Junho de 1950) recomenda que os
Estados-membros da ONU forneçam ajuda à Coreia
do Sul; a resolução 84 (7 de Julho de 1950) cria um
Comando Unificado dirigido pelos EUA.A resolução
221 apela aos Estados-membros que quebrem as
relações económicas com a Rodésia do Sul (regime
“branco” de Ian Smith) e que implementem um embargo ao petróleo e produtos derivados. A resolução foi
criada tendo em mente o Reino Unido, que orquestrou
a elaboração da resolução para montar um bloqueio
naval destinado a impedir a chegada de petroleiros ao
porto da Beira, Moçambique (embargo esse também
dirigido pelaRoyal Navy, do Reino Unido).
Com o fim da Guerra-fria, as NU começaram a
enquadrar as novas missões de peacekeeping
explicitamente ao abrigo do Capítulo VII, dando lugar
de relevo ao uso da força ou outras medidas de
carácter coercivo.Wallensteen e Johansson calcularam
que 93% das resoluções adoptadas pelo CS ao abrigo
daquele capítulo aconteceram na pós-Guerra-fria24.
Desde 1990, 25% das resoluções do CS foram
enquadradas no Capítulo VII. Em 2001, a média foi de
35% e em 2002, de 47%.
Algumas resoluções fazem referência explícita ao
18
Higgins faz esta observação a propósito das resoluções
relativas ao Congo, mas diz que aquelas se reportavam aos
artigos 25.º e 49.º para vincar a sua natureza obrigatória e o
dever dos Estados-membros de as apoiar: Rosalyn Higgins,
The Development of International Law through the Political
Organs of the United Nations, Londres, Oxford University
Press, 1963, p. 235.
19
Na Resolução 83 do Conselho de Segurança (27 de
Junho de 1950) relativa à invasão da Coreia do Sul, o
Conselho de Segurança “recomenda que os Estados-membros
das Nações Unidas forneçam a assistência à República da
Coreia que for necessária para repelir o ataque armado e para
restaurar a paz e a segurança internacional na área”.
20
Jerzy Ciechanski, “Enforcement Measures under
Chapter VII of the UN Charter: UN Practice after the Cold
War”, in Michael Pugh (ed.), The UN, Peace and Force,
Londres, Frank Cass, 1997, p. 84.
21
Ver, por exemplo, as sanções contra a África do Sul
(resolução 181, de 7 de Agosto de 1963; resolução 182, de 4
de Dezembro de 1963 e resolução 421, de 9 de Dezembro de
1977), Portugal (resolução 180, de 31 de Julho de 1963 e
resolução 218, de 23 de Novembro de 1965) e a Rodésia
(resolução 216, de 12 de Novembro de 1965 e resolução
217, de 20 de Novembro de 1965). V. Goodrich et al., op.
cit., p. 313.
22
Na realidade, o uso da força na Coreia não foi
sancionado pelo artigo 42.º: a acção foi tomada com base
numa “recomendação” do CS ao abrigo do artigo 39.º V.
Goodrich et al., op. cit., p. 315.
23
A resolução fala explicitamente da conivência das
autoridades portuguesas com o regime da Rodésia.
24
Entre 1946 e 1989, as NU invocaram o Capítulo VII
em 24 ocasiões (v. Bellamy et al., op. cit., pp. 19-20). Entre
1946 e 1986, o CS adoptou oito resoluções ao abrigo do
Capítulo VII. Outras sete resoluções eram de natureza
obrigatória, embora não invocassem aquele capítulo.
25
A UNCRO foi lançada pela Resolução 981, de 31 de
Março de 1995. A UNCRO substituiu a UNPROFOR na
Croácia. Tinha como principais funções velar pela
tranquilidade na região com vista à integração pacífica das
zonas dominadas pelos Sérvios na Croácia (Eslavónia
Ocidental e Oriental, a região da Krajina e a península de
Prevlaka, e garantir os direitos e a segurança das comunidades
minoritárias na Croácia). Em Maio e Agosto de 1995, a
Fonte: www.army.cz.
Segurança que prevêem o enforcement (sanções e
uso da força), raramente o mencionam de forma
explícita18. Na operação militar contra a Coreia do
Norte, em 1950, por exemplo, embora a operação
fosse de enforcement, ela não foi enquadrada ao
abrigo do Capítulo VII19.
São raras as resoluções, como a 660, de 2 de
Agosto de 1990, em resposta à agressão iraquiana
contra o Kuwait, em que o Conselho explicitamente
afirma agir ao abrigo dos artigos 39.º, 40.º ou 42.º. O
artigo 42.º foi invocado em poucas ocasiões: o que se
explica por este invocar o uso da força. Também o
artigo 39.º, que tem menos implicações, foi referido
raramente: este artigo, estabelece que o CS deve
determinar se, nos conflitos em consideração, existe
qualquer situação de ameaça à paz, ruptura de paz ou
acto de agressão. Nas suas resoluções ao abrigo do
Capítulo VII, o que o CS geralmente tem feito é a
constatação geral da existência (ou da continuação)
de uma ameaça à paz internacional, sem referir o artigo
39.º20. Ao qualificar a situação como uma ameaça à
paz, ruptura de paz ou acto de agressão, o CS está a
lidar com situações delicadas, podendo, em
consequência (e dependendo do seu julgamento
político do caso), accionar medidas de injunção. O
Conselho também aplicou medidas do artigo 41.º sem
o citar expressamente e sem ter previamente
determinado se a situação em causa era de natureza a
requerer medidas ao abrigo do Capítulo VII21.
No geral, as resoluções referem que o CS está a
agir “ao abrigo do Capítulo VII", uma forma lacónica
de autorizar os Estados-membros a usar a força ou a
fazer uso de outros instrumentos coercivos. Noutros
casos, o CS afirma que se está perante uma ameaça à
paz e segurança internacionais. Por vezes, a
autorização do uso da força vem encapotado em
Croácia conquistou a Eslavónia Ocidental e a Krajina. As NU
ficaram reduzidas à presença na Eslavónia Oriental, o último
reduto sérvio. A UNTAES (v. a Resolução 1037, de 15 de
Janeiro de 1996) foi criada na sequência da assinatura do
Basic Agreement on the Region of Eastern Slavonia, Baranja
and Western Sirmium (parte dos Acordos de Dayton, 1995),
que previa a transferência pacífica destas regiões, de população
maioritariamente sérvia, para o governo croata. O Acordo
solicitava ao CS que estabelecesse uma administração
transitória durante 12 meses e que criasse uma força
internacional para manter a paz e a segurança nesse período
(a operação acabaria por ter a duração de 24 meses). A
UNTAES tinha uma componente militar (essencialmente
para supervisionar a desmilitarização da região, assegurar o
regresso dos refugiados e pessoas deslocadas aos seus locais de
origem e manter a segurança em geral) e uma componente
civil (para criar e treinar uma força de polícia, organizar
eleições, ajudar na reconstrução económica e monitorizar o
respeito pelos Direitos Humanos); v. http://www.un.org/
Depts/dpko/dpko/co_mission/untaes_p.htm. É ainda o caso
da MINURCA (UN Mission in the Central African Republic),
criada em Abril de 1998. A MINURCA foi dotada de um
mandato do Capítulo VI, substituindo a operação MISAB
(Inter-African Mission to Monitor the Implementation of
the Bangui Agreements) que tinha sido dotada de um mandato
do Capítulo VII, mas apenas para proteger a segurança e
liberdade de movimentos do seu pessoal. A Multinational
Protection Force, lançada para a Albânia em 1997, recebeu
a mesma autorização de uso da força da MISAB. A MONUC,
estabelecida em Novembro de 1999 para o Congo, recebeu
um mandato do Capítulo VII em Fevereiro de 2000: para
proteger a força, o pessoal da Comissão Conjunta Militar e
os civis ameaçados.
26
Caso da resolução 1509, de 19 de Setembro de 2003,
que cria a UNMIS para o Sudão.
27
De 21 de Maio de 2004.
28
Ao contrário destas resoluções, a resolução 1479, de 13
de Maio de 2003, que cria a UN Mission in Côte d´Ivoire
(MINUCI), não refere explicitamente o Capítulo VII, mas
determina “[…] que a situação na Costa do Marfim constitui
uma ameaça à paz e segurança internacional na região”.
29
Resolução 807, de 19 de Fevereiro de 1993, e Resolução
815, de 30 de Março de 1993. A UNPROFOR na Macedónia
permaneceu como operação de peacekeeping.
Fonte: www.gov.east-timor.org.
Capítulo VII nas resoluções que criavam. É o caso da
UNCRO (UN Confidence Restoration Operation) e
da UNTAES (UN Transitional Administration for
Eastern Slavonia, Baranja and Western Sirmium) que
contemplavam, nas resoluções que as instituíam25, o
direito de usar a força em auto-defesa (uma
redundância, uma vez que, por natureza, o
peacekeeping permite o uso da força em auto-defesa).
Resoluções mais recentes não só enquadram as
operações ao abrigo do Capítulo VII, como
determinam ainda a existência de uma situação de
“ameaça à paz e à segurança internacional”26. Outras
invocam o Capítulo VII e explicitam detalhadamente
as situações em que os peacekeepers estão
autorizados a “usar todos os meios” para desempenhar o mandato.
A resolução 154527, que cria a ONUB (UN
Operation in Burundi), enuncia uma lista de nove
situações em que os soldados da missão estão
autorizados a “usar todos os meios”. Elas vão da
monitorização do cessar-fogo, até ao desarmamento
e desmobilização dos combatentes, protecção dos
civis e protecção do pessoal das NU, das suas
instalações e equipamento. A resolução que cria a
missão das Nações Unidas no Sudão, a UN Mission
in Sudan, é mais concisa, mas paradigmática no que
se refere às situações de enforcement tuteladas pelo
CS: “Decide que a UNMIS é autorizada a tomar as
acções necessárias, dentro das suas possibilidades e
na área de posicionamento das suas forças, para
proteger o pessoal das Nações Unidas, suas
instalações e equipamento; garantir a segurança e
liberdade de movimento do pessoal das Nações
Unidas, pessoal humanitário, do pessoal do
mecanismo de avaliação conjunta e da comissão de
avaliação e, sem prejuízo da responsabilidade do
governo do Sudão, proteger os civis sob ameaça
iminente de violência física”28.
Noutros casos, algumas missões lançadas ao
abrigo do Capítulo VI foram posteriormente reforçadas com a previsão do uso da força. Trata-se do caso
mais comum nos anos 90, em que certas missões se
defrontaram com dificuldade continuadas, como a
UNPROFOR.A UNPROFOR foi inicialmente lançada
como uma missão de peacekeeping. Em Fevereiro de
1993, dois dos seus três segmentos (Croácia e BósniaHerzegovina) transformaram-se em operações do
Capítulo VII29. Também a UNOSOM, na Somália, foi
uma operação de peacekeeping entre 1992 e Junho
de 1993. Nessa altura, o CS rebaptizou a operação
(UNOSOM II) e deu-lhe um mandato ao abrigo do
Capítulo VII. Em casos mais raros, as missões de
peacekeeping dotadas de mandatos ao abrigo do
Em casos mais raros, as missões de peacekeeping dotadas
de mandatos ao abrigo do Capítulo VII eram na realidade
operações de peace enforcement
29
Capítulo VII eram na realidade operações de peace
enforcement: casos da UNOSOM II, na Somália, da
UNTAET, em Timor, e da UNAMSIL, na Serra Leoa.
Modalidades do uso da força
Geralmente, o CS não tem usado a força nos moldes
previstos no Capítulo VII, isto é, usando as forças
militares ao abrigo de acções colectivas como aquelas
previstas no artigo 43.º (com o uniforme da ONU e
sob o seu comando). Jane Boulden faz a distinção
entre operações de puro peace-enforcement e
operações de “mandate enforcement”. As primeiras
poderiam definir-se com mais precisão como “fullfledged enforcement”, o que “[…] significa conduzir
operações ofensivas de combate para impor os termos
de um mandato a um malfeitor renitente identificado
pelo Conselho de Segurança” (caso da Coreia do
Norte e do Iraque)30. As segundas (actualmente
denominadas “grey area operations”) situam-se num
ponto indefinido algures num percurso que se situa
entre o peacekeeping tradicional e o peaceenforcement. Nelas, o uso da força é uma necessidade
para assegurar o cumprimento do mandato31.
O uso da força autorizado pelo Conselho de Segurança destina-se, por regra, a reforçar a implementação
do mandato das operações de paz ou a implementar
os acordos entre os beligerantes. Nesse sentido, o
peace-enforcement das NU, geralmente, não
corresponde ao “full-scale enforcement” de
operações, como a intervenção contra o Kuwait de
1991. As operações de enforcement, geralmente,
reúnem os seguintes requisitos:
- autorização ao abrigo do Capítulo VII da Carta;
- autorização para usar a força para fins que vão
além da auto-defesa;
- respeito pela imparcialidade, o que significa que
a operação não tem em conta as reivindicações ou
posições das partes no conflito, mas que se rege
unicamente pelo respeito do mandato;
- o consentimento das partes para a operação não
é um pré-requisito32.
Em vez disso, o CS tem autorizado certos Estados-Membros ou coligações de Estados a, por sua
delegação e em seu nome, usar a força.Aliás, o artigo
42.º não especifica que as forças empregues em
operação de enforcement sejam forças da ONU: limitase a autorizar o CS a fazê-lo “[…] por meio de forças
aéreas, navais ou terrestres”.Além disso, o artigo 48.º
refere expressamente que “[A] acção necessária ao
cumprimento das decisões do Conselho de Segurança
para a manutenção da paz e da segurança internacionais será levada a efeito por todos os Membros das
Nações Unidas ou, por alguns deles, conforme seja
determinado pelo Conselho de Segurança.”33
30
O artigo fala ainda do papel que outras organizações internacionais podem desempenhar na
execução das “decisões” do CS: “[Essas] decisões
serão executadas pelos Membros das Nações Unidas directamente, e, por seu intermédio, nos organismos internacionais apropriados de que façam
parte.”34 O artigo 53.º afirma que o CS pode lançar
mão de acordos ou organizações regionais para “[…]
uma acção coercitiva sob a sua própria autoridade.”
O uso da força, autorizado pelo Conselho de
Segurança, tem revestido as seguintes modalidades:
- coligações lideradas pelos Americanos: Coreia
(1950), Iraque-Kuwait (1990), Somália (1992), Haiti
(1994);
- autorizações a países a título individual para
organizar e comandar uma força multinacional: A
França, no Ruanda (“Operação Turquesa”, 1994), a
Itália, na Albânia (“Operação Alba”, em 1997) e a
Austrália, emTimor-Leste (INTERFET, 1999);
- a delegação do uso da força em entidades
regionais: É o caso das acções militares da NATO na
Bósnia-Herzegovina em 1994-5, em especial a
“Operação Deliberate Force”. Um exemplo recente
foi a criação da Multinational Force to Liberia,
composta por membros da Comunidade Económica
dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e
destinada a restabelecer a segurança no país após o
reacender do conflito em inícios de 2003. É ainda o
caso da missão da Interim Emergency Multinational
Force (conhecida como “Operação Artémis”, em
2003), lançada pela União Europeia para a República
Democrática do Congo a fim de permitir às Nações
Unidas reforçarem a MONUC35;
- as operações da NATO autorizadas pelo
Conselho de Segurança na Bósnia-Herzegovina: na
sequência dos Acordos de Dayton, de Novembro de
1995, foram lançadas a Implementation Force, em 1995
(IFOR), e a Stabilization Force, em 1996 (SFOR);
- o uso da força em certas operações de peacekeeping, como a UN Operation in Somalia II (UNOSOM
II) e a UN Mission in Sierra Leone (UNAMSIL);
- autorização do uso da força concedida a missões que não são da ONU: é o caso da autorização
concedida a uma força autorizada pela ONU, a International Security Assistance Force, ISAF no
Afeganistão. Trata-se de uma força constituída nos
moldes de uma “coalition of the willing”, criada
com a autorização do CS mas organizada fora do
âmbito da ONU36. Foi mandatada para providenciar
a segurança na área em torno de Cabul, para apoiar a
Autoridade Transitória do Afeganistão, o Governo
Provisório (eleito em Janeiro de 2005) e para auxiliar
as actividades da UN Assistance Mission to Afghanistan (UNAMA), bem como outras agências
humanitárias.
30
Donald C. F. Daniel e Bradd C. Hayes, Securing
Observance of UN Mandates Through the Employment of
Military Force, in Pugh, op. cit., p. 108.
31
Jane Boulden, The United Nations and Mandate
Enforcement, Kingston, Ontário, Centre for International
Relations/Institut Quebécois des Hautes Études Internationales,
1999, p. 3.
32
Id., p. 4.
33
Meu itálico.
34
Artigo 48.º § 2 (meu itálico).
35
UN Organization Mission in the Democratic Republic
of Congo; Resolução 1484 de 30 de Maio de 2003.
36
Inicialmente, certos Estados ofereceram-se para liderar
a ISAF numa base semestral. O primeiro foi o Reino Unido,
seguido pela Turquia. A terceira missão da ISAF, a partir de
Fevereiro de 2003, foi liderada conjuntamente pela Alemanha
e pela Holanda, com o apoio da NATO. Desde 11 de Agosto de
2003, a ISAF é liderada pela NATO e financiada pelos EstadosMembros que contribuem com tropas (v. http://www.nato.int/
issues/afghanistan/evolution.htm e http://www.afnorth.
nato.int/ISAF/about/about/_history.htm).).
37
Mackinlay e Chopra, op. cit., p. 118.
38
Também designadas como “Capítulo VI+”, “Capítulo
VI e Meio”, “Segundo Nível”, “Wider Peacekeeping” e
“Peacekeeping Musculado ou Robusto”: v. Robert M. Cassidy,
“Armed Humanitarian Operations”, Working Paper da
CIAONET, 1998, p. 1. V. Peter Viggo Jakobsen, “The
Emerging Consensus on Grey Area Peace Operations
Doctrine: Will It Last and Enhance Operational
Effectiveness?”, International Peacekeeping, vol. 7, nº 3,
Outono de 2000, pp. 38-47. V. também a posição de Michael
Pugh, “From Mission Cringe to Mission Creep?”, in Pugh
(ed.), op. cit., p. 191.
39
Sir Brian Urquhart, “Who Can Stop Civil Wars?”, The
New York Times, 29 de Dezembro de 1991, secção 4, p. 9.
40
Sir Michael Rose, “Military Aspects of Peacekeeping”,
in Wolfgang Biermann e Martin Vadset (eds.), UN
Peacekeeping in Trouble: Lessons Learned from the Former
Yugoslavia, Aldershot, Ashgate, 1998, p. 159.
41
Ibid.
Foto: arquivo JE
As intervenções da ONU após a Guerra-fria
(Cambodja, Somália, Bósnia-Herzegovina e Ruanda)
ocorreram em ambientes voláteis, de alto risco e
incerteza e em guerras civis de contornos mutáveis.
Nestas operações, é fundamental que os contornos
do uso da força sejam definidos sem margem para
ambiguidades. É necessário “[…] que decisões
políticas claras precedam e sustentem um mandato
[…] na execução das tarefas, a importância da eficácia
militar cresce à medida que a intensidade da operação
aumenta, até que no limiar do enforcement colectivo,
se torna a chave principal do sucesso.”37
Trata-se de operações que têm vindo a ser
designadas, na gíria, como missões de “middle
ground” ou “grey area operations” por se encontrarem a meio caminho entre o peacekeeping tradicional e opeace-enforcement38. Brian Urquhart, um dos
artífices do peacekeeping onusiano, admitiu a
necessidade de encontrar uma opção intermédia que
se situe entre o binário peacekeeping - peaceenforcement: “É necessária uma terceira categoria de
operações internacionais militares algures entre o
peacekeeping e o enforcement em larga escala. Seria
destinada a pôr fim à violência descontrolada e a criar
um grau razoável de paz e ordem, de forma a que o
trabalho humanitário possa prosseguir e que o
processo de reconciliação possa ter início […] ao
contrário das forças de peacekeeping, tais tropas
incorreriam, pelo menos inicialmente, em alguns riscos
em combate para controlar a violência: consistiriam
essencialmente em acções armadas de polícia.”39
O uso da força em missão de peacekeeping é uma
matéria polémica e os debates em curso sobre esta
matéria não são sempre definitivos. O General Michael
Rose, antigo comandante da UNPROFOR, inventou
a expressão “linha de Mogadíscio” (“Mogadishu
line”) − que depois se popularizou nos debates da
área − para transmitir a ideia dos riscos que se incorre
ao ultrapassar a fronteira que separa o peacekeeping
do enforcement. O General Rose diz que o nível de
força que supera os requerimentos do peacekeeping
é como “[…] atravessar a fronteira - a linha de
Mogadíscio - que separa os não-combatentes dos
combatentes.” O General Rose afirma que “[…] é
óbvio que, quando uma força militar está ao serviço
de uma missão humanitária de peacekeeping, estálhe interdito, pela sua natureza e regras de
empenhamento, actuar como combatente.”40 O General
Rose conclui que “[…] a necessidade de manter o
consentimento e a imparcialidade, por um lado, e a
necessidade de usar a força, por outro, devem ser
reconciliados, se a comunidade internacional pretender
que o peacekeeping continue a ser uma opção viável
para a resolução internacional de conflitos.”41 JE
Foto: arquivo JE
31
Mestre Mónica Ferro
A
centralidade dos programas de Governação
e Reforma do Sector de Segurança (RSS)
nas agendas da cooperação internacional e,
mormente, nos esforços de reconstrução pósconflito ou de processos de transição democrática
ficou a dever-se a uma alteração paradigmática: a
segurança não é mais exclusiva do Estado, nem
como referente, nem como fornecedor; a segurança
é humana. Isto trouxe implicações bem mais
profundas do que aquelas que iremos abordar, mas
do ponto de vista do sector de segurança isto
significou a introdução de padrões e normas de
governação, transparência e responsabilização, do
primado do estado de direito, da sujeição da acção
destas forças a agendas de direitos humanos e ao
controlo civil, e à reconversão do modo como um
sector de segurança é pensado, funciona e é
monitorizado.
O nexo segurança e desenvolvimento, a
demonstração que sem paz não há desenvolvimento
e que o desenvolvimento sem paz é apenas
temporário, fez com que a comunidade internacional
reconhecesse que tem que dar resposta a ambos
os desafios, em simultâneo. A reforma dos sectores
de segurança surge inserida neste esforço mais global de optimizar a eficácia da ajuda, tratar as causas
profundas dos conflitos e perceber o que faz uma
sociedade constituir-se com resiliência, como
espaço democrático, de paz e com um projecto de
desenvolvimento sustentável.
Em Timor-Leste este é um projecto para gerações.
Portugal é um parceiro privilegiado nesta construção
e, não obstante os sucessos limitados até agora, há
um caminho que deve continuar a ser percorrido, com
ajustes, mas sempre com a certeza de que a viabilidade
do estado, o desenvolvimento do país e a segurança
do povo implicam uma profunda revisão e consequente reforma do sector de segurança.
Da assistência militar
tradicional à reforma
do sector de segurança
Os programas de RSS são novos na história da
cooperação entre os Estados. O que é novo é o
facto de a reestruturação e assistência nestas
matérias ter deixado de ser vista como um exclusivo
dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da
Defesa, altamente politizada e focada na segurança
do Estado e na assistência técnica e desenvolvimento de capacidades tecnológico-militares; e ter
cessado a abordagem de soma-zero aos gastos
militares, isto é, a ideia de que cortes nos gastos
32
www.un.org (Reuters Photo by Cheryl Ravelo)
militares se converteriam imediatamente em
recursos disponíveis para o desenvolvimento.
Enquanto a primeira abordagem é sintoma de Guerra
Fria, a segunda traduz uma lógica simplista, datada,
de certos programas, como os de ajustamento
estrutural do Banco Mundial, em que a redução das
despesas militares era, em si, uma coisa boa e
proporcionaria ganhos de desenvolvimento.
Foi o fim da Guerra Fria e a demonstração de que
tal ligação entre a redução dos aparelhos de segurança
e os ganhos em estabilidade política e em
desenvolvimento era, na melhor das hipóteses,
contingente, e, com frequência, causa de mais
instabilidade, podendo até levar à destruição dos
aparelhos de segurança, tornando-os incapazes de
garantirem a segurança interna e a defesa contra as
ameaças externas, a ascensão de sociedades civis
livres e organizadas, a afirmação do paradigma da
segurança humana e de um novo pensamento sobre
a RSS que fez desta o ponto de entrada privilegiado
para a consolidação e fortalecimento de estados numa
qualquer situação de fragilidade.
Os países da Europa Central e de Leste, após 1989,
foram os primeiros a executarem RSS em sentido actual, quando reorientaram as suas sociedades e as
reformaram para poderem aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e à União Europeia
(UE); para além de reorganizarem e reestruturarem as
suas forças armadas e aparelhos de defesa, tiveram
que desenvolver estruturas civis de monitorização e
supervisão, reescrever conceitos e doutrinas,
promover o envolvimento dos parlamentos no
processo e mudar toda uma atitude e mentalidade típica
do período bipolar que se encerrava.
Esta RSS foi potenciada, desenvolvida em padrões,
normas, boas práticas e inserida na agenda do
desenvolvimento graças a iniciativas dos países
nórdicos e da Holanda e do Departamento para o
Desenvolvimento Internacional do governo britânico,
e por organizações como a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE),
que tem desenvolvido um trabalho conceptual e
programático notável.A ONU e, mais recentemente, a
UE têm levado a cabo projectos de RSS, bem como a
NATO, a União Africana e outras organizações
regionais, mas sem uma doutrina policial e militar que
os sustente conceptualmente.
O que é Reforma do Sector
de Segurança
A RSS é um conceito normativo e programático
que visa reformar ou reconstruir o sector de segurança
dos estados. Tem como ponto de partida um sector
disfuncional que não garante a segurança ao estado
e ao povo, ou ainda, sectores de segurança que são
fontes de insegurança em si.
A RSS é um esforço sistematizado, holístico
abordando segurança e desenvolvimento como se
de dois gémeos virtuosos se tratassem, de construir,
reconstruir, reformar ou transformar sectores de
segurança (onde se incluem todos os actores
envolvidos no mesmo desde o Parlamento que faz as
leis, aos Ministérios que as executam, aos agentes
que a aplicam e aos organismos que supervisionam a
33
No que diz respeito
à Polícia, que após
a crise de 2006
tem recebido o grosso
da atenção
e dos recursos, é,
mais uma vez
Portugal que,
ao lado da UNMIT
e da UNPOL, mais apoia
o processo de reforma
fim último.
Em Timor-Leste, a agenda de reforma é uma agenda típica de cenários de reconstrução pós-conflito,
com tarefas como desarmamento, desmobilização e
reintegração de antigos combatentes, desminagem,
combate ao tráfico de armas ligeiras, justiça transitória,
reforço do estado de direito, reforma da Polícia e das
Forças Armadas, boas práticas para o sector de
segurança e construção de um enquadramento
legislativo adequado.
A Reforma do Sector
de Segurança em Timor-Leste
O Sector de Segurança em TimorLeste
O sector de segurança em Timor-Leste é o produto
de factores resultantes da ocupação indonésia, da
34
UN Photo - Martine Perret
democraticidade e transparência deste processo e,
ainda, às forças de segurança que operam à margem
deste quadro de referência), tornando-os mais
adequados aos desafios que os países têm que
enfrentar: o desenvolvimento humano sustentável e
a consolidação da paz.
A governação do sector de segurança, de todas
as entidades com um mandato legítimo para o exercício
da força, e de todas as estruturas que a exercem à
margem da lei ou mesmo competindo com o poder
legítimo, num quadro de governação democrática de
provisão de segurança humana é, por conseguinte, o
A construção da Polícia Nacional de Timor Leste foi outra
das prioridades do mandato da UNTAET.
desmobilização da resistência, da actuação da
Administração Transitória das Nações Unidas
(UNTAET) na construção de um estado timorense e
das decisões pós-independência.
A construção das forças armadas de Timor-Leste
foi feita com a desmobilização dos antigos
combatentes das FALINTIL – que actuava na
clandestinidade e em que muitos dos seus elementos,
embora tivessem alguma experiência de combate, não
tinham treino militar nem disciplina ou coesão, típicos
de uma força organizada. Para além disso, alguns
combatentes não “puderam ser integrados no novo
exército, deixando-os ressentidos por terem sido
deixados de fora e a sentirem-se desprezados1 ”.
Decidir quem ficava e com que posto no pequeno
exército timorense foi uma fonte constante de
tensões2 .
E mesmo a criação de forças armadas foi uma
decisão pressionada pela evolução dos acontecimentos. Sérgio Vieira de Mello, o administrador
transitório de Timor-Leste, reconheceu que antes de
Setembro de 1999 a opção da equipa das Nações
Unidas que acompanhava Timor era por um modelo
tipo Costa Rica3 . E, quando a violência de Setembro
eclode, essa opção é afastada sem que essa equipa
estivesse preparada para decidir o que fazer com as
forças de guerrilha das FALINTIL, e para sequer
pensar como criar um aparelho militar para um pequeno
pobre país vizinho de um gigante4 .
A construção da Polícia Nacional de Timor Leste
(PNTL) foi outra das prioridades do mandato da
UNTAET5 . Também aqui as Nações Unidas tinham
experiência, mas não tinham doutrina ou filosofia
própria, e tiveram que criar a PNTL com indivíduos
sem experiência relevante e com elementos que
tinham sido membros da polícia indonésia acusados
de corrupção e violações de direitos humanos. A
PNTL acabou por incluir antigos membros da polícia
indonésia ao lado de recrutas sem qualquer
experiência e alguns postos elevados, incluindo o
de comandante, foram ocupados por timorenses
que tinham pertencido à polícia indonésia6 .
As sementes para as cisões e tensões dentro
das forças de segurança estavam lançadas. A falta
de estatuto da Polícia (que estava mal equipada e
mal preparada), o descontentamento generalizado
pelos salários baixos e falta de infra-estruturas e
equipamento adequado, o ressentimento contra os
que tinham trabalhado nas forças indonésias e as
evidentes tensões entre os protagonistas políticos
timorenses, em especial entre o Presidente da
República e o Primeiro-Ministro, alimentaram um
clima de instabilidade e frustração social. A crise de
2006, a chamada “crise dos peticionários”, apenas
veio juntar a este contexto as acusações de
discriminação e politizar um conflito que nunca
havia sido relevante: as rivalidades inter-regionais
entre loromunus e lorosaes.
desacreditado, disfuncional e um pedido de apoio
internacional para a reposição da ordem e da paz em
Timor. Timor-Leste não foi capaz de lidar com os
problemas que esta crise pôs a descoberto; as
demissões de Xanana Gusmão e de Mari Alkatiri
levaram o país a eleições antecipadas e os problemas
do sector de segurança foram relegados para
segundo plano, preparando o cenário para os
atentados de Fevereiro de 2008 e prolongando a
situação das pessoas internamente deslocadas que
apenas agora regressaram a casa. Um exemplo cabal
de que procrastinar apenas torna a solução mais
difícil.
A Revisão e Reforma do Sector
de Segurança
O mês de Abril de 2006 revelou a ausência de
uma política de segurança nacional e graves falhas
na legislação sobre segurança; uma polícia com baixo
prestígio e um excesso de interferência política na
sua actuação; falta de transparência e de mecanismos
de controlo político, tais como supervisão parlamentar e judicial para ambas as forças de segurança.
Uma crise que estava à espera de acontecer.
A Crise dos peticionários
Ao estabelecer a
untaet-cap www.diggerhistory.info.jpg
U N M I T,
o
Foi a crise de 2006, a tal dos
Conselho
de
peticionários, que fez com que a questão
Segurança
da Reforma do Sector de Segurança
advoga explisubisse ao topo da agenda timorense com
citamente
carácter de urgência.
necessidade
A crise de 2006 é profundamente
de
uma
complexa e teve como catalisador
revisão
inteo despedimento de cerca de 600
grada do secsoldados das F-FDTL, em
tor
de seguMarço de 2006, que
8
rança
. O relareivindicavam não terem
tório
do
SG,
do
mesmo
mês,
sido promovidos por
afirma
que
a
superação
da
crise
motivos de discriminação.
recente implicava uma abordagem
As manifestações em Díli, emAbril,
holística ao sector de segurança, em que
rapidamente revelaram que os
se identificassem as necessidades e futuros
manifestantes estavam altamente politizados,
alinhados partidariamente e que a questão tinha mais papéis da polícia e das forças armadas, bem como as
a ver com o controlo do poder político no país do formas pelas quais se pudesse transformar uma
9 e 10
que com a alegada discriminação. A mobilização de relação competitiva numa relação cooperativa .
Está assim montado o palco para que a RSS fosse
grupos de jovens foi o corolário da exploração política do descontentamento provocado pela falta de a protagonista dos esforços de cooperação
emprego e de oportunidades de uma larga maioria internacional.
Em Timor-Leste estão em curso vários programas
da população. Em 28 de Abril, quando a violência
eclodiu, as imagens de jovens, polícias e forças ar- de RSS executados por organizações internacionais
madas combatendo nas ruas deixou prever o pior: ou bilateralmente. A falta de coordenação entre
que a mais jovem nação do mundo estivesse a doadores internacionais tem-se revelado contraprocaminho de se tornar no seu mais recente Estado ducente e apenas o novo paradigma que parece
surgir, em que o governo se apropria dessa
falhado7 .
O saldo final da crise foi um sector de segurança coordenação, parece poder resgatar alguma eficácia
35
O forte investimento que o Governo está a fazer em infraestruturas e equipamento para as forças de segurança
melhorará a eficácia das mesmas e aumentará a auto-estima
dos seus elementos.
36
UN Photo - Martine Perret
Ramos-Horta declarou que o modelo da GNR é o que melhor
se adequa a Timor-Leste.
justiça.
Da perspectiva da acção multilateral, a UNMIT
tem uma Unidade de Apoio à RSS e a equipa das
Nações Unidas no terreno gere três programas
exclusivamente centrados no sector de segurança.
Como já referimos, a RSS é definida pela ONU
como uma área fundamental para a consolidação
do estado e na resolução que estende o mandato
da UNMIT até Fevereiro de 2010 é reafirmada a
importância de clarificar os papéis e responsabilidades das F-FDTL e da PNTL, de modo a fortalecer
os quadros legais e melhorar os mecanismos civis
de fiscalização e responsabilização de ambas as
UN Photo - Martine Perret
dos processos em curso.
As áreas de reforma mais activas são a das
forças armadas, da polícia, do sistema de justiça, a
inclusão de uma dimensão de género e de direitos
humanos nas boas práticas para o sector, a justiça
transitória com ênfase no apuramento da verdade e
o fim da impunidade e, ainda, a criação de
capacidades nacionais para a governação do sector de segurança 11.
A reforma das F-FDTL tem sido executada no
âmbito da cooperação bilateral com Portugal, ao
lado da Austrália, a serem os grandes parceiros de
Timor. Portugal tem disponibilizado recursos,
consultores e formadores e todo o tipo de assistência solicitada. O Secretário de Estado da Defesa
timorense afirma que o modelo para a formação
militar básica em Timor será o “sistema português,
o qual se rege pelos padrões da NATO, podendo a
formação especializada basear-se no sistema de
outros países”12 . Também o Brasil e a China se
posicionam como interessados em aprofundar a
cooperação nestas áreas.
No que diz respeito à Polícia, que após a crise
de 2006 tem recebido o grosso da atenção e dos
recursos, é mais uma vez Portugal que, ao lado da
UNMIT e da UNPOL13 , mais apoia o processo de
reforma. A liderança timorense favorece um sistema
de polícia tipo português (Ramos-Horta já declarou
publicamente que o modelo da Guarda Nacional
Republicana é o que melhor se adequa a TimorLeste) e Portugal tem prestado aconselhamento nas
várias fases de constituição da Polícia, desde o
processo legislativo até o recrutamento, certificação
e formação. Austrália e Nova Zelândia são, também,
parceiros relevantes nesta matéria.
A inclusão de uma dimensão de género na
Polícia, de uma cultura de direitos humanos nas
forças armadas são processos de formação
demorados e cujos resultados poderemos aferir a
médio prazo. A realização de workshops e de acções
de formação têm dado frutos muito limitados.
A questão do apuramento da verdade e fim da
impunidade é um assunto que tem sido muito
controverso, sobretudo face à ausência de quaisquer consequências das conclusões da Comissão
de Acolhimento, Verdade e Recepção, e à inclinação,
de alguma liderança timorense para uma prática de
amnistias que em nada favorece a justiça transitória,
não contribui para a reconciliação nacional e gera,
na população, a sensação de que os elementos das
forças de segurança e do governo estão imunes à
instituições de segurança, é solicitado à UNMIT que
continue a apoiar o Governo de Timor-Leste nestes
esforços15 .
Para este efeito, destacamos o programa de revisão
e levantamento das necessidades do sector de
segurança16, o programa de apoio ao desenvolvimento
de uma capacidade nacional para uma boa governação
do sector de segurança17 e, ainda, o Projecto de Justiça
também do PNUD18 .
De facto, há uma evidente abundância de
parceiros e de programas de RSS em Timor-Leste sem
que a coordenação esteja assegurada ou a
sobreposição seja evitada. Neste sentido, os esforços
recentes do governo de apropriação do processo
parecem-nos um passo na direcção certa.
RSS made in Timor-Leste
O governo timorense, no seu programa (com uma
parte intitulada especificamente Reforma do Sector
de Segurança) na forma como constitui o seu
organograma e nas suas declarações revela vontade
de construir uma capacidade nacional para gestão e
governação do seu sector de segurança. Esta evolução
é resultado de dois fluxos de sinal divergente: por um
lado, a desejável timorização do processo que significa
que têm que ser os timorenses, em processos
inclusivos, apartidários, a consensualizarem quais são
as suas necessidades de segurança e quais os meios
que deverão ser cativados para garantia da mesma;
pelo outro, algum desconforto e descrédito na forma
como os actores internacionais o têm estado a fazer,
de cima para baixo, de fora para dentro, mais orientados
pelas suas agendas do que para as necessidades do
beneficiário19 .
A criação do Grupo para a Reforma e Desenvolvimento do Sector de Segurança é sintomático desta
mudança de paradigma. Para além desta, há várias
reformas a destacar: o Decreto-Lei que aprova a Lei
Orgânica do Ministério da Defesa e da Segurança, a
Proposta de Lei de Segurança Nacional (que regulamenta a cooperação entre a PNTL, as F-F-DTL e a
Protecção Civil), a Revisão da Lei do Serviço Militar
(e respectiva regulamentação), a Proposta de Lei de
Defesa Nacional. Em fase de aprovação encontramse diplomas relevantes, tais como a Lei da Programação Militar e o Código de Justiça Militar; a definição
de um novo Conceito e Sistema de Formação e a
criação de um novo Conceito de Emprego das Forças
Armadas. O forte investimento que o Governo está a
fazer em infra-estruturas e equipamento para as forças
de segurança melhorará a eficácia das mesmas e
aumentará a auto-estima dos seus elementos.
São passos no caminho certo, mas que não
dispensam a monitorização e aconselhamento
internacional no que diz respeito a ajudar os timorenses a escolherem o melhor modelo para o seu sector de segurança e a sujeição destes a boas práticas
identificadas.
O caminho em diante
O caminho em diante foi o título do primeiro
relatório de desenvolvimento humano de TimorLeste, em 2002. Além de ter identificado a pobreza
como o principal desafio que Timor-Leste teria que
vencer, o Relatório demonstra como um compromisso com o desenvolvimento humano pode pôr o
país num caminho de paz e prosperidade. É esse
compromisso que tem que ser recuperado, reconhecendo que sem segurança nenhum dos dividendos da paz será sustentável, como a destruição de
infra-estruturas e o elevado número de pessoas
internamente deslocadas, provocados pela crise de
2006, tão bem demonstraram.
Construir um sector de segurança eficiente e
eficaz, profissional, integrando todos grupos
diferenciados do país, cumprindo uma agenda de
direitos humanos, sujeito ao primado do direito e a
mecanismos de controlo parlamentar e civil e a
padrões e normas internacionais de boa governação
é uma missão quase impossível, sobretudo num
estado em situação de fragilidade como é TimorLeste. Uma reforma tão profunda como a que é
necessária implicaria uma espécie de pausa na
segurança – uma situação em que o país pararia e
cessariam as necessidades de segurança enquanto
se procederia à reforma. Na impossibilidade deste
cenário, as forças de segurança têm que ser
reformadas enquanto executam o seu papel que
também vai sendo reformado, acrescentando mais
desafios a um processo que nunca é simples, nem
rápido, nem passível de ser aprendido num sítio e
aplicado a outro, de tão distintas que são as
condições no terreno.
Não obstante estes constrangimentos, há uma
série de recomendações que Timor-Leste e os seus
parceiros podem seguir tentando optimizar recursos
e resultados.
A RSS é um processo de longa duração, de
gerações, com medidas de impacto rápido, mas que
devem ser sempre pensadas para cada caso concreto e de forma sustentável. Esta sustentabilidade
é garantida pelo empenho das lideranças nacionais,
pela definição de objectivos claros, pela programação
e financiamento adequados, mas também por
alguma flexibilidade do projecto original que
permita adapta-lo às dinâmicas de cada caso.
Como Timor-Leste já o demonstrou antes, a
vontade de devolver o poder e as responsabilidades
37
UN Photo - Martine Perret
A vontade de devolver o poder e as responsabilidades às autoridades nacionais não deve traduzir-se em saídas precipitadas
e sem estratégia.
às autoridades nacionais não deve traduzir-se em
saídas precipitadas e sem estratégia. Isto significa que
os doadores internacionais devem estar preparados
para sair, mas apenas quando os padrões
internacionais tiverem sido atingidos.A programação
deve ter este desígnio muito presente.
As organizações internacionais que não tenham
doutrinas militares e policiais definidas (não obstante
os recursos e a experiência que possuam) devem
abster-se de liderar missões de construção de
capacidade nacionais para boa governação do sector
de segurança. Em Timor, uma das críticas que se ouve
é que cada acção de formação tem a marca da
nacionalidade do formador, precisamente porque as
Nações Unidas não têm uma doutrina que os enquadre
a todos. Aqui, a competição entre modelos e agendas
nacionais é uma constante.
A coordenação internacional deverá ser preparada
desde o planeamento e não tentada no terreno. O que
as experiências demonstram é que os doadores não
comunicam entre si e raramente reconhecem que o
modelo do outro é melhor do que o seu. Assim, a
apropriação nacional dos programas e da sua
coordenação, possibilitada pela construção de
capacidades nacionais para o efeito, parece ser a
resposta a essa descoordenação.
Esta preparação do governo para assumir as suas
responsabilidades passa por uma mudança de atitude
da comunidade de doadores que deverá permitir que
sejam os próprios timorenses a escolher quais os
modelos de polícia, de forças armadas, de sistema
judicialque preferem, bem como de quem querem que
os ajude a implementá-los. A solução chave na mão,
38
do tipo aqui têm um modelo e um agente de
implementação, e que tem sido seguida em relação a
Timor, tem sido rejeitada pelas lideranças políticas e
militares locais.
Mais uma vez a solução é timorizar o processo:
construir capacidades para que o governo, o parlamento, o sistema judicial, a sociedade civil e todos os
outros actores saibam identificar as suas necessidades
de segurança, escolher de entre todas as opções
disponíveis o modelo que melhor se lhes adapta e, de
acordo com normas internacionais exigentes,
escolherem e trilharem o seu próprio caminho.
O caminho em diante é cheio de obstáculos, mas
fazendo justiça e reforçando o estado de direito, a boa
governação e reforma do seu sector de segurança
serão uma consequência e uma etapa para um TimorLeste mais desenvolvido, mais pacífico e mais seguro.
O preço de não escolher este caminho será a próxima
crise.JE
1
Initiative for Peacebuilding, Country Case Study: TimorLeste, Security Sector Reform in Timor-Leste, Junho 2009, p. 8.
2
Mónica Ferro, “Chasing Failure Away in Timor-Leste,”
DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,
12, 2007, Instituto do Oriente, Lisboa, http://ioriente.
iscsp.utl.pt/revista_12.pdf p. 94
3
Idem.
4
Sérgio Vieira de Mello, UNTAET: Lessons to learn for
future United Nations Peace Operations, Presentation to the
Oxford University European Affairs Society, Oxford, 26 de
Outubro de 2001
5
Cfr. UNTAET Press Office, Fact Sheet 6 – Law and
Order, Abril 2002.
6
Initiative for Peacebuilding, SSR in Timor-Leste, op.
cit., p. 9.
7
Mark Forbes, “A nation ruled by the gun,” The Age, 21
Maio 2006.
8
S/RES/2006/1704, 25 Agosto 2006.
9
S/RES/2006/628, para. 62
10
A Comissão de Inquérito que investigou as causas da
crise de 2006 concluiu que o governo não tinha sido
suficientemente proactivo no tratamento da falta de uma
política nacional de segurança e dos problemas evidentes
entre a polícia e as forças armadas. “Report of the United
Nations Independent Special Commission of Inquiry for
Timor-Leste (CoI)”, 2 Outubro 2006 disponível in
www.ohchr.org/english/countries/tp/docs/CoIReportEnglish.pdf
11
Mónica Ferro, Reinaldo Hermenegildo Saraiva, “Re/
Formação do Sector de Segurança em Timor-Leste,”
DAXIYANGGUO, Revista Portuguesa de Estudos Asiáticos,
14, 2009, no prelo.
12
Júlio Tomás Pinto, “A Reforma do Sector de Segurança,
Enfrentado desafios, alcançando o progresso de TimorLeste”, 20 de Agosto de 2009, disponível in http://forumhaksesuk.blogsopt.com/2009/08/reforma-do-sector-daseguranca.html
13
A UNPOL é chefiada pelo Intendente Luís Carilho.
Para uma análise e crítica da actuação da UNPOL na
reabilitação, reconstrução e reforma (RRR) da PNTL ver,
entre outros, Nicolas Lemay-Hébert, “UNPOL and Police
Reform in Timor-Leste: Accomplishments and Setbacks,”
International Peacekeeping, 16:3, pp. 393-406.
14
A S/2009/72, para. 21., estabelece como critérios para
essa transferência a capacidade de a polícia nacional responder
adequadamente ao ambiente de segurança num determinado
distrito; a certificação final de pelo menos 80% dos oficiais
de polícia nacional elegíveis num determinado distrito ou
unidade; a existência de certos requisitos iniciais operacionais
e logísticos; e estabilidade institucional que inclui, entre outros,
a capacidade para exercer o comando, controlo e a sua
aceitação pela comunidade.
15
S/RES/1867 (2009), 26 de Fevereiro de 2009.
16
Security Sector Review in Timor-Leste, Disponível in
http://unmit.unmissions.org/Portals/UNMIT/SSR/
Project%20document%20for%20SSR%20signed%
2013June2008.pdf.
17
Projecto coordenado pela União Europeia e pelo
PNUD, executado pelo PNUD em Timor-Leste, intitulado:
Security Sector Review in Timor-Leste – Capacity Development Facility, assinado em Dezembro de 2008.
18
PNUD “Enhancing the Democratic Rule of Law
through Strengthening the Justice System in Timor-Leste”
programme,” assinado em Dezembro de 2008.
19
Yoshino Funaki, The UN and Security Sector Reform
in Timor-Leste: A Widening Credibility Gap, Center on International Cooperation, Maio 2009, disponível in http://
fundasaunmahein.files.wordpress.com/2009/07/funakitimor-ssr-final.pdf.
39
Tenente-Coronel de Artilharia
Joaquim Luís Correia Lopes
N
ão será necessário trovejar para evocarmos
Santa Bárbara, porque estará sempre
presente na memória de todos e fundamentalmente,
na dos Artilheiros − a sua Santa protectora e
Padroeira.
Mas, talvez na memória dos mais novos
(artilheiros), se possa depreender que Santa
Bárbara sempre foi a Padroeira da Artilharia
Portuguesa, porque na realidade fez exactamente
cinquenta anos que, por despacho de 14 de Abril
de 1959, o Sub-secretário de Estado do Exército,
escolheu Santa Bárbara como Padroeira da
Artilharia Portuguesa e 4 de Dezembro, o dia da
Escola Prática de Artilharia.
Parafraseando as palavras do Coronel de
Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, nos
seus comentários na Revista de Artilharia de
Agosto de 1959 (pág. 59), diríamos “vamos
recolocar os pontos nos ii”.
40
Santa Bárbara viveu na época do imperador
romano Diocleciano. Nascido em 244 na costa da
Dalmácia (Croácia), Diocleciano era de origem muito
humilde. Seu pai foi escriba, talvez mesmo um
antigo escravo de um rico senador. Aparentemente,
recebeu pouca educação para além daquela tida,
no seu tempo, como elementar.
Os primeiros anos de vida de Diocleciano foram
vividos em contexto de falência do Império Romano,
graça a desmazelos internos e externos. Os
imperadores sucediam-se com frequência, sendo
assim a presença de “Deus na Terra” marcada pela
instabilidade e diversidade; concediam grandes
aumentos aos militares ou a quem militasse nos
seus Exércitos, a fim de “comprar o seu apoio”.
Neste contexto, Diocleciano procurou também
a fortuna nas legiões. Durante esse período, provou
ser astuto, hábil e ambicioso. Foi nomeado “dux da
Mésia” (uma província na margem do baixo
Danúbio), com responsabilidades na defesa das
fronteiras do império. Era um oficial prudente e
metódico, tendo sido mais tarde promovido a
comandante de Cavalaria da guarda pessoal imperial
− posto este que o colocava na condição de virtual
candidato ao trono imperial e mais tarde, por volta
de 283, foi nomeado cônsul.
Com a morte do Imperador Caro, o poder ficou
entregue aos seus dois jovens filhos, Numeriano
no Leste e Carino no Ocidente. Num curto período
Foi na primeira
metade do século XIV
que se iniciou o culto
dos militares à gloriosa
Santa Bárbara
de tempo, Numeriano morreu sob circunstâncias
misteriosas e, em 285, Carino foi morto em combate
perto de Belgrado passando, desde então,
Diocleciano a controlar todo o império.
Diocleciano reabilitou as velhas tradições,
incentivando o culto dos deuses antigos. Perseguiu
os maniqueus, que praticavam uma religião de
origem persa. Empreendeu aquela que é conhecida
por alguns historiadores eclesiásticos como a
penúltima grande perseguição levada a cabo pelo
Império Romano contra o Cristianismo: foi a Era
dos Mártires.
A primeira perseguição a todo o espaço imperial
aconteceu sob o “governo” de Maximino, mas o
seu clímax deu-se no tempo de Diocleciano, no final
do século III e início do IV. Esta é considerada a
maior de todas as perseguições. Proibiu as práticas
cristãs e emitiu ordem de prisão ao clero. Aquela
perseguição intensificou-se até que ordenou a
todos os cristãos do Império que se sacrificassem
aos deuses imperiais, sob pena de execução em
caso de recusa.
O termo “Mártir”, de origem grega, que significa
“testemunha”, é aplicado àqueles que morrem
defendendo o Evangelho. Corria então o ano de
303, em que os cristãos foram perseguidos, na justa
medida da sua rejeição aos deuses do Império
Romano e ao culto do imperador. Destas perseguições e consequentes mártires, dois nomes se
evidenciaram, sendo venerados até aos nossos dias,
particularmente pelos Artilheiros: Santa Bárbara e
São Sebastião.
Santa Bárbara
Foi em Nicomédia (hoje Izmit), capital da antiga
província romana da Bitínia (território actualmente
integrado na Turquia), no séc. III, que nasceu e
viveu Santa Bárbara, sendo também testemunho
do seu martírio.
Os artilheiros escolheram-na como a Santa Padroeira no
início de 1529.
fonte: wikimedia.commons
Santa Bárbara viveu na época do imperador romano
Diocleciano
fonte: www.infopedia.pt
41
42
Fonte: almocreve.blogs.sapo.pt
Bárbara era filha única de Dióscoro, um rico
comerciante.Ambos eram pagãos. Cioso da beleza de
sua filha, para que ela não tivesse contacto com algum
jovem diferente do tipo que pretendia para seu genro
e para que não sofresse a influência do Cristianismo,
Dióscoro mandou construir uma torre na sua
propriedade e para lá enviou Bárbara. A vigiá-la,
colocou pajens e damas de companhia, seus leais
seguidores, alegando que a filha precisava de
recolhimento para se entregar aos estudos.
Após a instalação de Bárbara na torre, Dióscoro
partiu para uma longa viagem de negócios pelas ilhas
do mar Egeu, permanecendo fora de casa
aproximadamente um ano. Entretanto, Entrementes, o
velho cristão preceptor de retórica, instruía Bárbara
nas verdades cristãs, o que a levou a aceitar o
Cristianismo, a pedir e a receber o baptismo.
Quando o pai voltou encontrou Bárbara,
exuberante nos seus 20 anos, mas logo foi informado
das transformações ocorridas na vida da filha,
incluindo a sua recusa em casar, o que o terá levado a
repreendê-la severamente. Bárbara, conhecendo a ira
do pai, fugiu de casa, mas rapidamente foi encontrada.
Sabendo pela própria filha que se tornara cristã,
acusou-a perante as autoridades e entregou-a para
ser presa. Houve tentativas fracassadas para fazê-la
mudar de ideias, incluindo torturas horríveis. Bárbara,
todavia, permanecia impassível. Foi então condenada
à decapitação.
Alguns historiadores afirmam que o próprio
Dióscoro teria solicitado ao governador Marciano para
ser o executor da sentença. Outros, referem que o
governador, surpreso diante da obstinação de Bárbara,
teria insinuado que o pai era o principal acusador da
filha e fosse também o seu algoz, o seu executor.
Bárbara foi então decapitada pelo próprio pai,
Dióscoro.
Conta-se, então, que após a execução da mártir,
no alto de uma colina, uma tremenda tempestade se
abateu sobre o local. Naquele instante, seu pai foi
atingido por um raio, tendo morte imediata. Por isso,
devido às circunstâncias em que ocorreu o seu
martírio, Santa Bárbara é invocada como protectora
contra tempestades, temporais e tormentas.
O martírio de Bárbara aconteceu em Nicomédia, a
4 de Dezembro, provavelmente no ano de 235, primeiro
ano do reinado do cruel Maximino.
Santa Bárbara foi homenageada desde os tempos
antigos, pelos sírios, gregos e latinos. Inicialmente,
como uma protectora das obras e torres fortificadas,
tornando-se padroeira dos militares, após a invenção
da pólvora. Foi a divina protectora dos soldados que
detinham a força e os depósitos das armas de guerra,
bem como dos marinheiros que tinham à sua guarda
os explosivos existentes a bordo dos navios.
Bárbara foi decapitada pelo próprio pai, Dióscoro.
De salientar que, embora a pólvora negra fosse já
conhecida pelos chineses nos primeiros séculos da
Era cristã, apenas era utilizada em fogos de artifício,
aparecendo na Europa como pólvora e como um meio
de destruição só no século XIV.
Foi precisamente na primeira metade deste século
que se iniciou o culto dos militares à gloriosa Santa
Bárbara. Os artilheiros escolheram-na como a Santa
Padroeira no início de 1529. O Papa Pio XII, em 4 de
Dezembro de 1951, proclamou solenemente Santa
Bárbara de Nicomédia, Celestial Padroeira dos
Artilheiros, Marinheiros, Engenheiros e Bombeiros,
estendendo-se mais tarde o culto da Santa aos doentes
e a todas as pessoas com deficiência, tais como os
leprosos e os moribundos.
Na iconografia cristã, Santa Bárbara é geralmente
apresentada como uma virgem, alta, majestosa, com
uma palma que significa o martírio, um cálice como
símbolo de sua protecção em favor dos moribundos
e, ao lado, uma espada, instrumento da sua morte.
No século VI, as relíquias de Santa Bárbara foram
transladadas para Constantinopla. No século XII, a
filha do Imperador Bizantino Aleixo Comenes, a
princesa Bárbara, após contrair matrimónio com o
príncipe russo Miguel Izyaslavich, transladou-as para
Kiev, capital da actual Ucrânia, local onde hoje as
suas santas relíquias descansam na Catedral de São
Valdomiro.
foi retirar o corpo de Sebastião a fim de lhe dar uma
sepultura digna e, para surpresa sua, viu que estava
vivo.
Sebastião depois de curado, não só não fugiu
para longe do Império, como se pôs a confirmar e a
proclamar a fé cristã, levando outros a crerem em
Jesus. Tendo recebido a notícia de que Sebastião
estava vivo e a provocar os deuses, Diocleciano
ordenou que o aprisionassem; preso, foi condenado
ao espancamento até a morte e decapitado no dia
20 de Janeiro, sendo o seu corpo lançado numa
fossa.
Sabendo do ocorrido, uma cristã, chamada Lucina,
descobriu onde estava o corpo, foi buscá-lo e
sepultou-o no lugar chamado ad catacumbas, na Via
Ápia. Nessas catacumbas, fora dos muros da cidade
São Sebastião e Nossa
Senhora da Saúde
Sebastião era um soldado que se alistou no exército romano
por volta de 283 com a única intenção de afirmar o coração
dos cristãos.
Diocleciano e Maximino, que o queriam sempre
próximo; ignorando tratar-se de um cristão,
designaram-no capitão da sua guarda pessoal − a
Guarda Pretoriana.
Por volta de 286, a sua conduta branda para com
os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo
sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua
execução.
Entregue a um grupo de arqueiros da Mauritânia,
para que se divertissem atirando flechas para o seu
corpo amarrado a um tronco, foi crivado daqueles
artefactos e depois abandonado como morto, para
ser devorado pelos abutres, conforme também era
habitual nessa altura. Uma cristã, Irene, em segredo,
São Sebastião, de Guido Rurei (séc XVII), Museu do Palácio Rosso de Génova
Fonte: S.Sebastião, 1535-40 Museu de Grão Vasco Viseu, Portugal
São Sebastião nasceu em França no ano de 256.
Era originário de Narbonne, mas foi criado pela sua
mãe na cidade de Milão, em Itália. O seu nome deriva
do grego Sebastós, que significa divino, venerável.
Sebastião era um soldado que se alistou no exército
romano por volta de 283 com a única intenção de
afirmar o coração dos cristãos, enfraquecidos diante
das torturas. Era apreciado pelos imperadores
de Roma, em 288, tinham sido exumadas as relíquias
dos apóstolos Pedro e Paulo e foi aí que o apóstolo
dos mártires foi também sepultado. Corriam os
primeiros anos do século IV, talvez o ano 303-304,
quando São Sebastião se tornou Mártir.
Mais tarde, no ano de 680, as suas relíquias foram
solenemente transportadas para a Basílica de S. Paulo,
construída pelo Imperador Constantino, onde se
encontram até aos dias de hoje.
Naquela altura, Roma estava assolada por uma
terrível peste que vitimou muita gente. Curiosamente,
a epidemia desapareceu a partir do momento da
transladação dos restos mortais deste mártir, pelo que
43
44
Fonte: Judah Benoliel, 1958, Arquivo Municipal de Lisboa – AFML A43114
passou a ser venerado como padroeiro contra a peste,
a fome e a guerra.
Foi sobretudo no século XVI que o culto a São
Sebastião se intensificou no nosso País. D. Sebastião
foi, aliás, baptizado com o seu nome, em 1554, por ter
nascido em 20 de Janeiro, dia em que se assinala a
morte do mártir. São Sebastião constitui-se, assim
como o patrono de todos osArtilheiros desde o início
do séc. XVI.
No princípio do século XVI, a classe militar foi
particularmente atingida pela peste, pelo que os
artilheiros invocaram o auxílio de São Sebastião, tido
como protector contra a peste, a fome e a guerra. À
data, os artilheiros da Corte, instalados no Castelo de
S. Jorge, em Lisboa, agradeceram ao seu santo protector por os ter poupado e constituíram a Irmandade
de São Sebastião. Os artilheiros da Guarnição de
Lisboa, denominados por bombardeiros, mandaram
erguer em 1505, uma pequena ermida dedicada a São
Sebastião, padroeiro e advogado da peste, em
cumprimento da promessa feita ao mártir pelo fim da
epidemia, que nesse ano assolou toda a cidade, tendo
vitimado muitos habitantes.
Mais tarde, em 1569, a peste provocou novamente uma enorme mortandade em Lisboa: morreram 50 a
60 mil pessoas, numa população de 120 mil habitantes.
Segundo relatos da época, registavam-se por dia mais
de 600 funerais.A epidemia era de tal ordem que, como
havia falta de gente para enterrar os mortos, foi
necessário libertar os presos para esta missão. El-Rei
D. Sebastião e parte da Corte refugiaram-se em Sintra
e a rainha D. Catarina, sua avó, foi paraAlenquer. Em
pânico, o povo e a nobreza de Lisboa invocaram em
seu auxílio a Mãe do Céu. Por esse motivo, D.
Sebastião terá pedido uma relíquia significativa de S.
Sebastião, para que a mortandade provocada pela
cólera tivesse um fim, pelo que terá sido enviado de
Roma um braço de São Sebastião.
Assim, e após a chegada das relíquias de São
Sebastião, a peste reduziu-se e como foram atendidos
nas suas preces, mandaram, em prova de gratidão,
fazer uma imagem da Virgem, que foi benzida com o
nome de Nossa Senhora da Saúde. A imagem ficou
então exposta à veneração pública na ermida do
Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos.
A 20 de Abril de 1570, teve lugar a primeira
procissão em honra de Nossa Senhora da Saúde,
decorrendo sem interrupções, durante 341 anos −
desde 1570 até 1910, sempre com grande pompa
religiosa e militar (apelidada variadíssimas vezes por
Procissão dos Artilheiros). Com a implantação da
República, seguiu-se um interregno que perdurou até
21 de Abril de 1940, data em que se reatou esta antiga
manifestação de fé e de religiosidade, permanecendo
até aos dias de hoje.
Ermida de Nossa Senhora da Saúde.
Padroeira da Artilharia
Por volta de 1959, o debate sobre quem deveria
ser a padroeira da Artilharia entrou na temática dos
números 405 e 406 da Revista de Artilharia. Num
artigo da autoria do General Monteiro do Amaral,
questionava-se qual o dia daArma, qual a padroeira e
qual o patrono da Artilharia Portuguesa.
Por fim, emAgosto de 1959 no número 407/408 da
Revista de Artilharia, o Coronel de Artilharia, Marino da Cunha Sanches Ferreira, num artigo intitulado
“Pontos nos ii”, levanta e responde à temática iniciada
pelo General MonteiroAmaral referindo:
“Sabemos que por proposta do Exmº General
Correia Leal, quando ocupava o lugar de Director
da Arma, foi indicada Santa Bárbara para padroeira
da artilharia portuguesa. Essa proposta foi enviada
ao Estado-Maior do Exército e mandada submeter
ao estudo da Comissão de História Militar, que lhe
deve ter dado parecer favorável, visto que foi já
oficialmente considerada como padroeira da
Artilharia Portuguesa, afirmação esta baseada na
leitura da Ordem de Serviço nº 106 de 4 de Maio
último, da Escola Prática de Artilharia, assinada
pelo seu Comandante, Coronel Carlos Vidal de
Campos Andrada, que diz”:
Art.º 17 − Dia Festivo da E.P.A. Segundo comunica o Q.G. da 4ª R.M. em nota nº
137/1− P.º 219.2 de 27-4-59, foi o seguinte o despacho
de Sua Excelência acerca do assunto em epígrafe:
“1 − Informo V. Ex.ª que, por despacho de 14 do
corrente de Sua Excelência o Subsecretário de Estado
do Exército, é considerada Santa Bárbara como
padroeira da Artilharia Portuguesa.
2 − Deve, portanto o dia da E.P.A. ser transferido
para 4 de Dezembro − Dia daquele Santo − e não para
20 de Janeiro.”
que a Escola Prática deArtilharia, como escola mais
antiga do Exército Português, celebrará em 18 de
Março de 2011 os seus 150 anos de existência.JE
Biografia
Joaquim Luís Correia Lopes, Tenente-Coronel de
Artilharia, ingressou na Academia Militar em 1984. Prestou
serviço em várias Unidades, nomeadamente: Escola Prática
de Artilharia, Centro de Classificação e Selecção de Lisboa,
Campo Militar de Santa Margarida e Quartel General da RMS.
Presentemente desempenha as funções de Chefe da Secção
de Logística da EPA.
Bibliografia
Interior da Capela Real, na EPA.
Em 4 de Dezembro de 1959, realizou-se a cerimónia
de entronização da imagem de Santa Bárbara, na capela da Escola Prática deArtilharia, em Vendas Novas.
No passado dia 4 de Dezembro de 2009, comemorou-se, assim, o cinquentenário da designação de
Santa Bárbara como Padroeira da Artilharia Portuguesa e da sua casa Mãe. É, igualmente, de salientar
FERRIL, Arther - A Queda do Império Romano, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989
FINLEY, Moses I. - "O Imperador Diocleciano", in
Aspectos da Antiguidade, Lisboa, Edições 70, 1989
http://portalapui.com.br/paroquia/?page_id=5
SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, Dicionário
da História de Lisboa, 1.ª ed.,
http://www.monumentos.pt/Monumentos/forms/
002_B1.aspx )
http://www.ordemengenheiros.pt/Default.aspx?
tabid=1761
http://www.jf-sspedreira.pt/
Estatutos da Real Irmandade de Nossa Senhora da Saúde
Revistas de Artilharia n.º 405, 406, 407 e 408, Junho e
Agosto de 1959
45
PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS
in Jornal do Exército n.º 2 de Fevereiro de 1961
Soluções deste número:
1 - Sold. com pistola-metr. ao ombro; 2 - Idem sem polainitos; 3 - Cabo clarim com gravata, em camisa; 4 - Sentinela de bivaque; 5 - Faxina
com capote; 6 - Idem sem cinturão; 7 - Ordenança com sabre no lado direito; 8 - Esporas do Oficial de dia.
Pretendo assinar o Jornal do Exército
Para encomendar basta fotocopiar o cupão e enviar para ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO – Secção de
Logística, Rua dos Remédios, n.º 202 – 1140-065 LISBOA
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Para pedido de números atrasados, ou encadernações, contacte-nos para: Largo S. Sebastião da Pedreira - 1069-020 Lisboa,
Tel: 213 567 700 ou via email: jornal.exercito@sapo.pt
PARA PAGAMENTO DA MINHA ASSINATURA
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA: Nacional 0781 0112 0112 0011 6976 9 – D.G.T.
CHEQUE: junto envio o Cheque n.º - ________________ s/Banco - ______________________ à ordem da
Secção de Logística do Estado-Maior do Exército.
VALE POSTAL: junto envio o vale postal n.º ______________ no valor de ___________________________
46
D. Afonso V
e a Batalha de Toro
1432 (Janeiro) – Nasce,
em Sintra, o infante
D. Afonso.
1438 (Novembro) –
Afonso V, com seis anos
de idade, é aclamado rei
de Portugal, por morte
de D. Duarte; Infante
D. Pedro regente do reino.
1448 (Agosto) –
D. Afonso V assume
a governação do reino.
1449 (Maio) – Batalha
da Alfarrobeira e morte
do Infante D. Pedro.
1452 – Descoberta das
ilhas ocidentais dos
Açores (Flores e Corvo).
1458 (Outubro) – Conquista de Alcácer Ceguer.
1461-62 – Descobrimento das ilhas de Cabo
Verde.
1469 – Arrendamento
do comércio da Guiné
a Fernão Gomes.
1471 – Conquista
de Arzila (após insucesso em 1463) e ocupação
de Tânger.
1472 – Descoberta
dos Camarões e da Ilha
Formosa.
1475 (Maio) – Invasão
e guerra contra Castela;
casa com a princesa D.
Joana e proclama-se rei
de Portugal, Leão
e Castela.
1475 (Setembro) –
Tratado de aliança com
a França de Luís XI.
1476 (1 de Março) –
Batalha de Toro.
1479 (Setembro) –
Firma o Tratado
de Alcáçovas com os reis
Católicos.
1481 (Agosto) –
Morte de D. Afonso V.
O Comandante
F
ilho de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão,
D. Afonso V é aclamado com apenas seis
anos de idade, tornando-se no décimo terceiro
Rei de Portugal e terceiro da Dinastia de Avis.
O seu reinado surge marcado, internamente,
pelo regresso a uma mentalidade feudal mediante
o fortalecimento das casas senhoriais
em detrimento da Coroa.
A acção governativa de D. Afonso V divide-se
em três períodos distintos: o primeiro decorre
desde a sua aclamação ao trono (1438) até ao
desfecho da batalha da Alfarrobeira (1449); o
segundo é marcado pelas expedições ao Norte de
África, que lhe fazem merecer o epíteto de «O
Africano» e acrescentar ao título de «Rei de
Portugal e dos Algarves», a referência «de aquém
e além-mar em África»; a terceira fase integra a
tentativa de união ibérica sob o ceptro
português, chegando a intitular-se rei “per graça
de Deus Rei de Castela e de Léon e de Portugal e
de Toledo e de Galiza e de Sevilha e de Córdoba e
de Múrcia e de Jaen e dos Algarves daquém e de
Além-mar em África e dasAljariza e de Gibraltar e
senhor de Biscaia e de Molina”.
Com uma situação interna estável, D. Afonso V
concentra-se na expansão no Norte de África,
que adia devido à queda de Constantinopla
(1453) e à penetração otomana na Europa,
correspondendo ao apelo de cruzada lançado
pelo Papa Calisto III (1456) com a preparação de
um exército de cerca de 12 000 homens. Contudo,
a morte do Papa cancela o projecto e D. Afonso V
recupera a ideia de conquista no Norte de África.
Consequentemente, conquista Alcácer Ceguer
(1458) e ocupa Arzila e Tânger (1471). A sua
presença no comando dos exércitos no norte de
África granjeia-lhe grande prestígio por toda a
Europa. Para além destes feitos, D. Afonso V
subsidia as explorações no oceano Atlântico e
arrenda o comércio na Guiné a Fernão Gomes,
comerciante de Lisboa, por duzentos mil réis
anuais, na condição de descobrir todos os anos
cem léguas de costa da Serra Leoa para sul
(1469). Desta forma, a exploração da costa
africana atinge o cabo de Santa Catarina
(Gabão), em 1475.
GOMES, Saul, D. Afonso V, Circulo de Leitores, 2006
Cronologia
D. Afonso V.
A empresa das conquistas africanas com que de
D. Afonso V «cravou» o estandarte português
nas terras entre o rio do Ouro e o cabo de Santa
Catarina foi, depois, abandonada em detrimento
do projecto de união ibérica, aproveitando uma
crise sucessória na coroa castelhana e a
aproximação desta a Aragão. Neste contexto, a
aura vitoriosa do rei de Portugal e as liberdades
concedidas à fidalguia portuguesa motivaram
uma franja da nobreza castelhana a solicitar a sua
intervenção. D. Afonso V aproxima-se, então, da
França de Luís XI, negociando uma aliança
ofensiva contra Aragão, em 1475, e ataca nesse
mesmo ano território castelhano. A batalha de
Toro é o culminar de todo o processo.
Será a desastrosa campanha militar em Castela a
causa da perda da influência de D. Afonso V ante
a nobreza castelhana, o rei Luís XI de França e o
Sumo Pontífice. A recuperação do prestígio da
Coroa portuguesa caberá ao filho e sucessor, D.
João II, que privilegiará a estratégia política em
detrimento da militar.
73
SÁNCHEZ, Aurélio Valdês, Artillería y Fortificaciones en la corona de Castilla durante el reinado de Isabel la Católica. Secretaria General Técnica del Ministério de Defensa, 2004.
Cerco de Arzila.
Enquadramento
Político-Estratégico
Portugal, no segundo quartel do século XV, é um
Estado que começa a firmar-se na modernidade.
Para isso muito contribui a regência do infante D.
Pedro, marcada por uma política de reforço dos
laços comerciais com áreas e países
economicamente desenvolvidos (Borgonha,
Flandres, Inglaterra, Mar do Norte e
Mediterrâneo) e pelo afastamento relativamente
ao binómio Castela - Aragão. Será esta “visão
arejada”, no quadro da política externa, a razão
pela qual eclode um clima de hostilidade para com
a regência por parte de determinadas franjas da
nobreza. O clima de guerra civil (incitado pela
rainha D. Leonor e pelo duque de Bragança) e o
desapego que o regente tem pelas conquistas
africanas motivam D. Afonso V, após atingir a
74
maioridade, a dispensar os serviços de D. Pedro.
Depois, impulsionado pela fidalguia e com o
apoio do Duque de Bragança, combate o tio na
Batalha da Alfarrobeira (14 de Maio de 1449),
onde este último morre. Livre “do importuno
censor”, o monarca português lança-se na
cruzada africana.
As conquistas no norte de África representam,
para Afonso V, o reconhecimento perante a
Cristandade da cruzada encetada por Portugal.
Mas, para a Coroa, esta empresa era
politicamente complexa, dela não advindo
riquezas que compensassem a perda de vidas e
energias, constituindo a erosão do erário real um
facto incontornável. Acresce que a conquista de
Marrocos, enquanto ponto decisivo para atingir
Jerusalém, também se mostrou estéril. Contudo,
as conquistas portuguesas no norte de África
concorrem para evitar agitações internas,
garantindo à nobreza e à população em geral
serviço em prol de uma causa colectiva e uma
“escola de guerra”.
O vector ibérico, abandonado por D. Pedro em
consonância com a tradicional política de Avis,
passa, com D. Afonso V, a ter outro
entendimento. Em 1455, promove o casamento da
sua irmã, D. Joana, com Henrique IV de Castela,
lançando as bases de uma política orientada para
a Península Ibérica. Desta união nasce a princesa
Joana que, após um longo período de esterilidade
do rei de Castela, faz levantar a questão da
paternidade da princesa. A discussão do assunto
introduz uma marcada hostilidade sócio-política
relativamente ao monarca castelhano, chegando a
assumir contornos insurreccionais.
Esta é uma questão decisiva, que dividirá Castela
em dois partidos antagónicos, “legitimistas” e
“Isabelistas”. Os primeiros, compostos na
essência pela alta nobreza, vêm na princesa
Joana, (depreciativamente denominada pelos
opositores de “A Beltraneja”) a legítima herdeira
da Coroa. Os segundos, viam no infante Afonso
(irmão de Henrique IV) a solução para conduzir
os destinos de Castela. Porém, este sentimento
esmoreceu após a morte prematura do infante
Afonso, sendo este apoio transferido para a
infanta Isabel (sua irmã), que anui assumir o
trono após a morte de Henrique IV, ocorrida em
Dezembro de 1474. Entretanto, ainda em 1474,
Isabel casa com Fernando, herdeiro do trono de
Aragão (contrariando a tradicional política de
alianças peninsulares), faz-se aclamar rainha de
Castela, em Segóvia, e prepara-se para sustentar
as suas pretensões contra os partidários da
“Beltraneja”. A inserção de Portugal na
conjuntura e o ensejo de D. Afonso V em cingir
as coroas ibéricas completam o xadrez estratégico
peninsular. A questão da sucessão ao trono de
Castela, tal como ocorrera em Portugal em 1383,
ficava em aberto e à mercê do “partido”
politicamente mais hábil e militarmente mais forte.
Aproveitando as solicitações feitas pela fidalguia
castelhana apoiante de Joana, D. Afonso V fica
com “via aberta” para intervir em proveito
próprio. Porém, a aliança de Castela com Aragão
introduziu um factor destabilizador na balança de
poderes da região. Por um lado, colocava
Portugal numa situação de inferioridade face ao
bloco castelhano-aragonês e, por outro, a França,
que mantinha com Aragão um diferendo em
relação ao Rossilhão, passava a contar com um
adversário de peso junto à fronteira ocidental.
Consequentemente, convinha a D. Afonso V a
entrada da França numa hipotética campanha,
que obrigaria João II de Aragão a desviar
atenções militares para a fronteira francoaragonesa, fragilizando a frente interna de apoio
ao filho e herdeiro Fernando. Dessa forma, D.
Afonso V garantia a liberdade de acção
necessária para intervir na região, sujeitando o
bloco castelano-aragonês a uma guerra em duas
frentes. Assim, D. Afonso V dá início a
negociações com Luís XI em Janeiro de 1475,
sendo o Tratado de Liga Ofensiva entre Luís XI e
D. Afonso V contra o reino de Aragão assinado
em Setembro daquele ano.
Em Abril de 1475, D. Afonso V enceta os
preparativos para dar início à campanha militar,
reunindo em Arronches um exército para o efeito,
nomeia o príncipe D. João para a regência do
reino e marcha para Plasencia, onde realiza
esponsais com Joana “a Beltraneja” (não
materializados) e recebe apoios dos partidários
desta. Iniciava-se a operação “conquista de
Castela”.
A erosão do tesouro real, que as exageradas
doações à fidalguia provocou, aconselhava que a
campanha fosse conduzida com muita
racionalidade. Para o efeito, dever-se-ia
consolidar, inicialmente, os apoios em Castela e,
então, defrontar as forças leais aos futuros Reis
Católicos. Mas a inépcia política e as irresoluções
militares do monarca português deitarão tudo a
perder. Desde logo, a espera por reforços em
Arévalo (onde sofreu enormes baixas resultantes
da peste), permitem a Fernando de Aragão o
tempo necessário para reunir “um exército de más
tropas” que lança cerco, durante nove meses, a
Burgos, leal ao partido da “Beltraneja”.
Percepcionando a falta de capacidade
operacional para socorrer aquela praça, D.
Afonso V abandona-a à sua sorte e dirige-se a
Toro que entretanto, se lhe entrega. Mas o
episódio de Burgos marca, de forma significativa,
a sorte do partido de Isabel que, aos poucos,
fruto da irresoluta actividade militar de D. Afonso
V, favorece a transferência dos apoios de Joana.
Em Dezembro de 1475, forças de Fernando de
Aragão lançam cerco a Zamora, leal ao partido do
«Africano», dando início a um período de
impasse na condução das operações militares.
Incapaz de fazer levantar o cerco a Zamora, D.
Afonso V pede auxílio ao príncipe D. João que, a
partir de Portugal e com o apoio do clero da Beira,
organiza uma hoste para reforçar o exército do
pai. Com as suas forças regeneradas, e numa
tentativa dar batalha a Fernando, “o Africano”,
acomete sobre Zamora, localidade que, mais uma
vez, estaria no centro das grandes decisões
políticas da Península.
75
Caracterização dos Aparelhos
Militares
O efeito contrário ao espírito da cavalaria
medieva introduzido pela besta e pela alabarda
nos campos de batalha exponencia-se, a partir
do século XV, com a utilização da arma de fogo.
Assim, a cavalaria perde importância militar e
mantém a sobranceria nobiliárquica, a infantaria
ganha dignidade militar, mas permanece na
base da pirâmide social, a artilharia anula a
característica de baluarte defensivo do castelo
e redu-lo a casa senhorial, a engenharia
desenvolve as futuras fortalezas abaluartadas
enquanto anti-arma dos projécteis de ferro.
Porém, a diminuta mobilidade e a baixa
cadência de tiro, aliadas à reduzida eficácia
demonstrada no número de baixas causadas no
província de acordo com os bens e classe
social, insere o recrutamento dos artilheiros,
por contrato, na classe dos mesteirais dos
burgos. As primeiras notícias do emprego
deste novo tipo de armamento, em batalha, são
na malograda tentativa de conquistar Tânger
(1437), na qual os espingardeiros não estariam,
ainda, organizados num corpo autónomo,
combatendo por isso lado a lado com
besteiros.
A regência de D. Pedro reveste-se de especial
importância no que concerne à organização
militar e à aquisição de material oriundo,
principalmente, do Norte da Europa. É com o
Infante que surge a função de Vedor-Mor da
Artilharia (1446), reconfirmada posteriormente
por Afonso V (1449), cujas competências eram
sobretudo territoriais: identificar as peças de
artilharia pertencentes à Coroa e que andassem
Serpentina e Falconete.
DUARTE, Luís Miguel, “1549-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003
inimigo, leva a que a artilharia raramente seja
usada em batalhas campais. Já as armas de
fogo individuais (espingardas de mecha),
colectivas ligeiras (bombardas de mão ou
colibrina) ou colectivas pesadas (canhões
como a serpentina e o falconete montados em
carretas) conheceram uma forma relativamente
eficaz de emprego em batalha.
A introdução das armas de fogo em Portugal
coincide com o início da dinastia de Avis. D.
Duarte, pelo Regimento de Coudéis, para além
de definir as obrigações de cada súbdito e
76
extraviadas, fazendo-as recolher aos armazéns
régios; requisitar, aos juízes locais, meios de
locomoção (em geral, animais), bem como
carros e barcas para o transporte das peças;
controlar a entrega das peças nos referidos
armazéns para emprego da hoste real; garantir
o pagamento a mesteirais (bombardeiros,
carpinteiros, pedreiros e ferreiros) destacados
para o serviço da artilharia; garantir que os
castelos e respectivos armazéns estivessem
devidamente providos de artilharia (peças,
munições e pólvora) e que esta fosse bem
DUARTE, Luís Miguel, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora, Nova História Militar, Circulo de Leitores, 2003
Espingarda.
usada e cuidada.
É na segunda metade do
século XV que, decorrente
dos empenhamentos no Norte
de África, se encontra uma
preocupação de organizar os
espingardeiros para combate.
O seu emprego nas
campanhas marroquinas
deve-se, provavelmente, à
generalização da espingarda
que, em 1460, já se fabricava
em Portugal, ainda que a
importação deste armamento
tivesse um peso significativo
em termos de geração de
forças. Deste modo, os
espingardeiros encontravamse organizados em corpo
próprio e o recrutamento e
treino era dirigido pelo
Anadel-Mor dos
espingardeiros, cargo criado à
semelhança do que existia
para a bestaria de conto. De
facto, a importância que esta
nova força possui em batalha
verifica-se com o seu emprego
na batalha de Toro, quer do
lado castelhano (ainda que o
seu emprego só fosse
generalizado nas primeiras
duas décadas do século XVI),
quer do lado português. Em
batalha, a principal tarefa
destas armas era de
desorganizar a cavalaria
inimiga, de forma a criar
brechas para perturbar e
enfraquecer o efeito do
choque da carga inicial. Isso é
visível em Toro, onde a
primeira salva dos
espingardeiros castelhanos
paralisou e assustou os
cavalos portugueses e os
disparos dos espingardeiros
do príncipe D. João facilitou o
trabalho das lanças que
romperam com grande ímpeto
a formação castelhana.
Não obstante, a introdução
das armas de fogo teve,
inicialmente, efeitos bastante
penosos para os exércitos. O
A Pólvora e a Transformação
da Guerra
O aparecimento da pólvora nos campos de
batalha representou o fim de uma era e
constitui a primeira (e porventura maior)
transformação dos assuntos militares. Trata-se
de um acontecimento “revolucionário”,
desenvolvido ao longo de décadas, que
impeliu a profundas alterações políticas
(centralização do poder do estado e do
príncipe), sociais/mentalidades (fim da
exclusividade guerreira da cavalaria e
consequente “democratização” da guerra com
a crescente importância do infante),
económicos (porque os novos meios técnicos
eram dispendiosos e os exércitos se
sobredimensionaram, os poderes passaram a
ponderar o binómio custos/objectivos) e
militares (readaptações de planeamento
estratégico, organização dos dispositivos,
novas concepções tácticas). Com a utilização
da pólvora nos meios de coacção militares
entra-se, assim, na época técnica da arte da
guerra, em que a tendência latente é a
eliminação, simultaneamente física e moral, do
adversário. A bravura cede o lugar à mecânica,
pois aquele que brandir a melhor arma e dela
souber tirar o máximo proveito técnico e
táctico é o adversário mais temível, qualquer
que seja a sua situação social ou a sua
coragem. Desta forma, a cavalaria, renitente em
adaptar-se aos novos tempos e à novas armas,
vê a sua importância decair, não
compreendendo que a pólvora transformara o
modo de vida cristão da Idade Média. A guerra
deixara de ser uma prova moral pela batalha,
um julgamento de Deus que a Igreja arbitrava
em seu nome; agora, era um meio de que os
governantes se socorriam para atingir fins
políticos.
aumento assinalável dos efectivos dos
exércitos (para além dos homens, a
necessidade de transportar o armamento,
munições e pólvora careceu de um aumento no
número de animais) associado a uma
incapacidade sanitária de processar os
resíduos, que por certo inquinariam fontes de
água e alimentos frescos, levaram para ao
campo de batalha a peste, um inimigo invisível
e quase impossível de combater.
77
78
79
Descrição da Batalha
Situada a meio caminho entre Zamora e
Tordesilhas (localidades leonesas emblemáticas
na História de Portugal), Toro é uma pequena
vila que D. Afonso V transformou em base
operacional da campanha em Castela. Em
meados de Fevereiro de 1476, o monarca sai de
Toro e marcha para Zamora, que Fernando de
Aragão submete a um cerco a partir das
muralhas a norte. Sem capacidade militar para
romper o assédio do adversário e levar auxílio
aos sitiados no castelo, D. Afonso V monta
arraial na margem esquerda do Douro, junto da
ponte e em linha de vista com a porta sul,
fortificando o terreno. Dessa forma, controlando
o itinerário de exfiltração e mantendo o exército
de Fernando sob pressão, D. Afonso V espera
provocar batalha. No campo contrário,
Fernando, enquanto recebe reforços de Isabel, a
partir de Burgos, e “mede” a força de D. Afonso
V, propõe tréguas, que resultam inócuas face às
exigências territoriais do rei português.
Decorridos cerca de quinze dias e perante o
impasse, agravado por condições climatéricas
adversas que minam o moral da tropa, a 1 de
Março D. Afonso V levanta o arraial e decide
recolher a Toro. É nesta altura que Fernando,
liberto de pressão, abandona Zamora e marcha
na peugada do inimigo. Envia uma força de
cavalaria ligeira a esclarecer a situação, que
estreita contacto com a guarda da retaguarda e é
repelida. Então, perto do fim da tarde, o grosso
do exército castelhano depara-se com o exército
português na veiga de Toro, nas cercanias de
Peleagonzalo. Feito o contacto, os dois exércitos
“medem-se” e os respectivos comandantes
determinam dar batalha, conscientes que o seu
resultado decidirá a sorte da guerra.
A região de Peleagonzalo, relativamente plana, é
delimitada a Norte e a Oeste pelo rio Douro, e a
Sul pelas elevações de Castro Queimado. Com a
frente para Sudoeste, o exército de Afonso V
adoptou a seguinte ordem de batalha: na
vanguarda, com peças artilhadas à sua frente,
estava o senhor da Feria com os seus homens
de armas, no centro da qual se posicionou o
«Africano» com o estandarte real; na ala direita,
apoiada no rio Douro, estava o arcebispo de
Toledo, com as suas lanças, e as forças do
Duque de Guimarães e de Vila Real; na ala
esquerda, apoiado nas cercanias da serra, o
príncipe D. João organizou uma força menos
numerosa que as restantes, mas “cortesaã e mui
80
limpa”, que contava com os espingardeiros do
bispo de Évora, que lhe guarneciam o flanco
direito, e um grupo de fiéis da “sua casa” e de
besteiros, que sustentavam o flanco esquerdo; a
reserva estava sob o comando do Conde de
Monsanto que, juntamente com os quatro
corpos de peonagem, foi colocada na
retaguarda, junto ao Rio Douro. A hoste
castelhana, cujo potencial se equivalia ao
português (cerca de 10 000 homens),
posicionou-se da seguinte forma: na vanguarda,
a guarda real, comandada pelo mordomo-mor
Henrique, onde se distribuíram os
espingardeiros; na ala direita, sob o comando de
Álvaro de Mendoza, seis pequenos troços de
homens de armas, fronteiro ao contingente de D.
João; a ala esquerda, comandada pelo Duque de
Alba, estava no enfiamento do Arcebispo de
Toledo e compreendia cavalaria e
espingardeiros; a peonagem encontrava-se à
retaguarda da vanguarda, preenchendo os seus
intervalos, sob o comando de D. Fernando; a
“encerrar” o dispositivo encontrava-se uma
pequena reserva.
Portanto, os dois exércitos organizados para a
batalha encaixavam um no outro: formavam em
duas linhas, a vanguarda e as alas consistiam
em troços de cavalaria e espingardeiros, a
segunda linha, apeada, era constituída por
piqueiros e besteiros, enquanto um pequeno
núcleo de reserva montada (superior no
dispositivo português) aguardava as
contingências da batalha. As diferenças
estavam na peonagem, que no caso português
se situava à retaguarda da reserva e,
principalmente, ao nível dos comandantes, pois
D. Afonso V estava na linha da frente,
enquanto D. Fernando se resguardou na linha
de peonagem.
Debaixo de chuva e na fase crepuscular de um
frio dia de Inverno, as trombetas dos
contendores dão o sinal de início da batalha e
os gritos de guerra impelem os homens a medir
forças. Iniciava-se a batalha de Toro, marcada
pela confusão de decisões contraditórias e
ataques simultâneos que redundou no seu
fraccionamento, com resultados divergentes.
Assim, enquanto as vanguardas se
entrechocam, do lado do rio o Duque de Alba
acomete a força do Arcebispo de Toledo e, na
direcção oposta, D. João irrompe contra o flanco
de Álvaro de Mendoza.
O ataque da cavalaria e dos espingardeiros do
Duque de Alba rompe a ala direita portuguesa,
desorganizando-a, criando uma situação de
Autores
Croqui da batalha.
desequilíbrio passível de envolver o dispositivo.
Esta acção criou a desordem nas forças da
retaguarda e colocou a vanguarda portuguesa
na iminência de combater numa frente invertida,
que lhe seria fatal. Perante a rotura da sua força,
a impotência da segunda linha e a inacção da
reserva, que se colocam maioritariamente em
fuga na direcção do rio, D. Afonso V,
desconhecendo o que se passava no “combate
de D. João”, dá a batalha como perdida e
abandona o campo, recolhendo à fortaleza de
Castro Nuño.
Contudo, no “outro lado da batalha” os
acontecimentos favoreciam as armas
portuguesas. Detendo a iniciativa, D. João,
apoiado pelos espingardeiros do bispo de
Évora, caiu sobre os seis troços dos homens de
armas de Álvaro de Mendoza, que desbaratou e
empurrou para dentro das linhas inimigas,
seguindo-se uma fuga desordenada na direcção
dos montes sobranceiros, debaixo de
perseguição das tropas do príncipe. No entanto,
não tendo conhecimento do desenrolar da
batalha no seu todo, D. João troca a exploração
do sucesso e regressa à posição inicial,
reorganizando as suas forças na posição, onde
se lhe junta o remanescente da ala direita
desarticulada pela ofensiva do Duque de Alba.
Porém, o tempo perdido na perseguição ao
contingente de Álvaro de Mendoza gorara,
eventualmente, a oportunidade de anular o
sucesso do ataque do Duque de Alba às tropas
de D. Afonso V.
Decorridas três horas de batalha e com a noite a
velar o campo, Fernando de Aragão, que
assistiu à retirada de D. Afonso V, à derrota de
Álvaro de Mendoza e acompanha a actuação de
D. João, receia o desenlace da batalha e retira
para Zamora, deixando a condução das
operações ao Duque de Alba, que não terá
consequências. D. João é senhor do campo,
onde permanece simbolicamente durante três
horas, a conselho do Arcebispo de Toledo, e se
posiciona como vencedor, mandando acender
fogueiras e tocar trombetas. Só então retirou
para Toro, onde entrou de forma triunfante e
soube da “sorte” do pai, conseguindo mitigar o
caos que grassava na cidade.
81
82
Batalha de Toro.
contrariamente à primeira, é bem sucedida
na refrega inicial. Porém, a falta de coordenação
e de comando e controlo impedem uma acção
de conjunto do “grupo” de D. João,
desconhecedor das ocorrências da batalha
no seu todo.
Fernando de Aragão, numa posição
resguardada, deixa ao livre arbítrio do
comandante da sua vanguarda o desenrolar da
acção. Neste sentido, se o combate inicial terá
resultados positivos para o partido castelhano,
em virtude da manobra de envolvimento
produzida pela sua ala esquerda, a ausência do
rei é determinante para a retirada do
contestável de Castela, impossibilitado de fazer
a exploração do sucesso. Esta retirada
castelhano-aragonesa permite a D. João
permanecer no campo de batalha, por três
horas, dando, perante os costumes, a vitória
aos portugueses.
Toro é, acima de tudo, uma batalha de grandes
feitos individuais mas, militarmente, uma derrota
de ambos os contendores e uma prova da
“pequenez” táctica dos dois comandantes, que
se permitiram abandonar o campo de batalha
como desconhecedores do seu desenlace.
D. J
http://www.vidaslusofonas.pt
A importância da batalha de Toro visualiza-se na
proeminência dos chefes militares presentes,
concretamente, o rei e o príncipe de Portugal, de
um lado, o príncipe herdeiro de Aragão e o
condestável de Castela, do outro. Toro é uma
batalha em que dois exércitos de potencial
equivalente se defrontam na procura de um
resultado politicamente definitivo. Porém, apesar
do valor individual demonstrado, o resultado é
militarmente indefinido.
Para isso muito contribuíram as condições em
que a batalha se desenrolou. O terreno,
relativamente plano e empapado, conjugado
com as condições meteorológicas adversas e o
cair da noite apresentam-se como um factor
multiplicador dos desacertos tácticos de ambos
os contendores. A ausência de planeamento fica
patente nos esquemas de manobra adoptados
por ambos os adversários em Peleagonzalo. A
opção de uma reserva fraca, no centro do
dispositivo de Fernando, indicia o
conhecimento que este detém da ameaça
portuguesa, permitindo-lhe colocar o máximo
potencial na frente. Para D. Afonso V, o
desconhecimento do potencial de combate do
inimigo é notório. Por isso necessita de uma
reserva forte situada o mais próximo possível da
frente, de modo a reduzir os prazos de
intervenção e, assim, assegurar a necessária
flexibilidade durante a batalha. Além do mais, a
reserva situa-se num local servido de caminhos
que facilitam a sua intervenção e
cumulativamente garante profundidade ao
dispositivo na ala direita.
O resultado indeciso da batalha começa a
desenhar-se logo pós o soar das trombetas. Em
Toro denota-se falta de coesão nos
dispositivos, que é maximizada pela ausência de
comando e controlo por parte dos dois
monarcas. Afonso V, ao mais puro estilo
medieval, coloca-se junto da vanguarda, o que
lhe retira capacidade de tomar decisões durante
o desenrolar da batalha, permitindo que cada
“troço” combata de per si. A ala direita é
rompida e coloca-se em fuga, desorganizando a
reserva e a peonagem que estava na sua
retaguarda. Falta de liderança? Moral baixa? O
facto é que esta retirada se apresentou fatal para
a vanguarda. Sem possibilidade de repor a frente
na ala direita, D. Afonso V vê-se envolvido e
colocado perante a contingência de combater
em duas direcções. A ala esquerda,
http://purl.pt
Análise da Batalha
oão II.
SARAIVA, José Hermano (coord.), História de Portugal, (Vol. III, Quidnovi, 2004
Tratado de Alcáçovas.
Consequências
Se a batalha de Toro foi militarmente
inconclusiva, as consequências políticas
resultantes da campanha portuguesa em Castela
foram definitivas. D. Afonso V viu esvair-se o
objectivo de união das coroas de Portugal,
Castela e Leão sob o seu ceptro.
Após a batalha, D. João recolhe a
Portugal de modo a garantir a
defesa da fronteira do Alentejo,
sujeita a assédios nos anos
seguintes. Enquanto isso D.
Afonso V, tendo a percepção da
dificuldade de derrotar Isabel e
Fernando sozinho, retira de Castela
em Junho de 1476.
No final desse ano, o «Africano»
manda preparar uma armada e parte
para França, com o objectivo de
solicitar o cumprimento do Tratado
luso-francês de 1475, ou seja, motivar
a França a auxiliar Portugal na
campanha contra o bloco castelhanoaragonês. Porém, com Toro tudo
havia mudado. O prestígio de “O
Africano” diluiu-se junto de Luís XI,
não obtendo disponibilidade para a
empresa. Entretanto, Isabel firma-se
como rainha de Castela, unindo o estrato social do
reino, enquanto Fernando sobe ao trono de Aragão
em 1479. Do enlace matrimonial entre os dois e da
união das duas coroas surgirá, posteriormente, a
Espanha, onde o prestígio dos Reis Católicos sobe
de patamar, particularmente junto de Roma, com a
conquista de Granada em 1492.
Assim, D. Afonso V vê diminuir o peso relativo
de Portugal face ao conjunto peninsular por
oposição à dinastia castelhana-aragonesa, perde
credibilidade política junto da França e
desperdiça as “boas graças” do sumo pontífice.
Tal situação é suficiente para o monarca
português entrar num estado de letargia, que o
impele à vontade de resignar em nome do filho. E,
de facto, a partir de 1477, é D. João quem
governa, em nome do pai. Portanto, Toro
desligou, definitivamente, Castela de Portugal e
criou um clima de agressividade que se estendeu
ao mar, passando os castelhanos a atacar os
entrepostos comerciais portugueses em África e
a disputar o domínio da rota da Guiné. D. Afonso
V reconhece, então, os Reis Católicos como
soberanos legítimos de Castela e abandona as
pretensões às Canárias, enquanto que Castela
anula as reivindicações a tudo o que fica para sul
deste arquipélago, até à Guiné. A estratégia
portuguesa passou a residir no domínio marítimo
desde a costa portuguesa à Guiné e no exercício
do esforço negocial com a Santa Sé. Assim, Em
1479, Portugal celebra com Castela a paz de
Alcáçovas, que põe fim à guerra peninsular e aos
diferendos ultramarinos, através de uma primeira
delimitação, em latitude, dos espaços marítimos
das duas potências. Conjuntamente com o
Tratado de Alcáçovas, no sentido de serem
dadas garantias recíprocas de paz, assinava-se
também o Tratado das Terçarias de Moura, no
qual D. Afonso, primogénito de D. João, casaria
com a Princesa D. Isabel, filha dos reis Católicos,
e D. Joana de Portugal casaria com o príncipe D.
João de Castela.
O «Africano» morreria acalentando o sonho de
união Ibérica. O que não se havia sido
conseguido pelas armas mostrava-se, agora,
possível através do engenho diplomático do
Príncipe Perfeito, apresentado internamente como
o vencedor de Toro. Após 1481, D. João II é rei de
Portugal que, de acordo com as suas palavras, e
fruto das liberdades que o pai concedera à
fidalguia, “era rei das estradas do reino”. Mas
tudo iria mudar nos anos seguintes, para quem a
centralização régia e a estratégia de “conter
Castela em terra e batê-la no mar” seriam o
normativo da governação.
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Curiosamente, a batalha de Toro, segundo as
crónicas da época, teve dois vencedores.
Efectivamente, o cronista castelhano Hernando del
Pulgar, e o português Rui de Pina, enfatizam a vitória
memorável da sua bandeira. O mesmo acontece
quando Fernando de Aragão a relata por carta aos
dignitários do reino, a partir de Zamora (logo a 2 de
Março de 1476) e D. João II, como rei, o faz à Câmara
do Porto (11 de Março de 1482). Estrondosa vitória,
que justifica, em ambos os reinos, efusivas e
solenes festas religiosas em acção de graças, que se
arrastam por anos, e mercês aos valorosos
combatentes que dignificaram as armas reais.
Curioso paradoxo.
Contudo, a batalha de Toro releva, sobretudo, de
actos de heroísmo individuais, que merecem
perdurar na memória colectiva. D. Duarte de
Almeida, o Decepado, é, sem dúvida, um desses
heróis que timbraram com honra o sangue vertido
no campo de batalha.
No final da tarde de 1 de Março de 1476, em Castro
Queimado, na fase mais dura da peleja, D. Duarte de
Almeida, alferes-mor do reino e a quem estava
confiado o pendão real, viu-se cercado de inimigos
que procuravam capturar a balsa portuguesa. Nesse
sentido, uma lâmina castelhana desfere um golpe,
amputando a mão direita do valoroso alferes. D.
Duarte passou o pendão real para a mão esquerda
que, resultante da acção de outra lâmina castelhana,
não tardou a ser cortada. No entanto, perante a dor,
a resistência daquele cavaleiro não fraquejou e,
conforme relata Sousa Viterbo, “com os côtos e com
os dentes, no phrenesi da honra e do patriotismo,
oppunha ainda a mais tenaz resistência”. Incapaz de
resistir, o pendão real foi, então, arrebatado ao
decepado, depois de este ser derrubado da sua
montada. O alferes-mor terá sido levado como
prisioneiro para Zamora e as suas armas e arnês
para a Igreja de Santa Maria de Toledo. Mas o
pendão real português, arrancado «a ferros» do
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Curiosidades
Episódio de “O Decepado”.
alferes-mor, não se manteve em posse castelhana o
tempo suficiente para que o inimigo pudesse tirar
partido da glória alcançada. Efectivamente, Gonçalo
Peres, posteriormente apelidado de Bandeira, um
simples soldado sem o nome inscrito no rol da
nobreza, é outro dos nomes associados a Toro. O
assédio dos cavaleiros castelhanos a D. Duarte de
Almeida foi, provavelmente, presenciado pelo
escudeiro Gonçalo Peres, que se colocou no
caminho daquele que transportava a balsa régia
portuguesa (um fidalgo castelhano de sobrenome
Sottomayor) e “tão rijo golpe lhe deu, que o
derrubou e aprisionou, tomando-lhe o precioso
trophéo, que foi logo apresentar ao principe, cujo
contentamento bem se póde imaginar” (Viterbo). O
prémio a Gonçalo Peres surgiu cerca de sete anos
depois dos acontecimentos de Toro pela mão de D.
João II sob a forma de carta de fidalgo, onde atribuía
um brasão de armas e a possibilidade de
acrescentar, ao seu nome, o apelido de Bandeira.
Toro não foi apenas uma batalha de resultado
indefinido, foi acima de tudo uma batalha medieval
no alvor da época moderna onde o valor individual
se sobrepôs ao valor do todo. Os exemplos de
coragem, lealdade e abnegação traduzidos nas
acções de D. Duarte de Almeida e de Gonçalo Peres
Bandeira e tantos outros heróis de Toro são, ainda
hoje, reconhecidos e lembrados.
Autores:
Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada, Professor de História Militar do IESM.
Major Luís Falcão Escorrega, Professor de Estratégia do IESM.
Major António Cordeiro Menezes, Professor de Táctica do IESM.
Bibliografia
- DUARTE, António Paulo, Equilíbrio Ibérico. Séc. XI – XX. História e Fundamentos, Lisboa, Edições Cosmos e
Instituto de Defesa Nacional, 2003.
- DUARTE, Luís Miguel, “1495-1549: o Triunfo da Pólvora”, in Nova História Militar, Direcção de Themudo Barata
e Severiano Teixeira, Vol. 1, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2003.
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Boletin de la Real Academia de La Historia, Tomo 38, Cuaderno IV, Abril de 1901.
- GOMES, Saul António, D. Afonso V, Rio de Mouro, Circulo de Leitores, 2006.
- RODRIGUES, Barros, Organização dos Exércitos, Organização Militar Portuguesa, Estratégia, Geografia e História,
Secção IV, História Militar, Lisboa, Escola do Exército, 1935-1936.
- VITERBO, Sousa, “A Batalha de Toro. Alguns dados e documentos para a sua monographia histórica”, in Revista
Militar, Ano LII, nº 6, Lisboa, Março de 1900.
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